“coisas da téla”: uma análise sobre a matéria ... · trajetória da revista a onda pode ser...

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1 Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. “Coisas da téla”: uma análise sobre a matéria cinematográfica na revista de variedades A Onda (Campinas, 1921-1924) Lívia Cristina Corrêa 1 Em 1º de maio de 1921, era lançada na cidade de Campinas a revista A Onda, a partir da iniciativa de dois funcionários da agência local da Caixa Econômica do Estado, Domingos de Andrade e Victor Caruso (1888-1967). O empreendimento pode ser entendido como um projeto em conjunto, fruto da amizade entre ambos, através do qual poderiam dar publicidade aos seus projetos, bem como movimentar o meio intelectual local. Também integravam o grupo o caricaturista Manolo Romano (1895-1955) e alguns nomes ligados ao ensino público e comércio locais. A Onda pode ser caracterizada como uma revista de variedades, pois abarcava diversos assuntos de forma leve e condensada, sendo constituída por crônicas, poesias, contos, epigramas, além do grande número de ilustrações como charges, caricaturas e fotografias. Seu programa específico, no entanto, era voltado para o humorismo. Nesse ponto uma observação importante. Apesar de seu breve período de circulação, maio de 1921 a junho de 1924, a trajetória da revista A Onda pode ser dividida em duas fases: a primeira, sob a direção de Vitor Caruso, tinha o programa todo voltado para produções “breves e humorísticas”, sendo o trocadilho seu principal recurso estilístico. (Cf. PUPO, 1995) A partir de meados de 1923, no entanto, com a participação mais assídua do jovem poeta local Hildebrando Siqueira (1904-1946), a revista passou a tender mais para a literatura modernista. Essa ruptura também se deveu ao afastamento de Victor Caruso de Campinas, em meados de 1923, para ocupar o cargo de secretário da Câmara Municipal da cidade de Orlândia. Este, contudo, não abandona A Onda totalmente, a qual continua publicando textos de sua autoria. Nesse sentido, é importante ressaltar o papel de Caruso dentro da revista. Natural de Campinas, além do posto que ocupava na Caixa, exercia também a atividade de escritor, sendo autor de três brochuras já impressas na cidade, quando do aparecimento d’A Onda. 2 Em relação ao lançamento do periódico, é certo que desejava um veículo aberto a suas próprias produções, sendo autor de contos, 1 Graduada em História e Mestranda em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista FAPESP. 2 Para ler no trem (1911), Versos (1914) e De barriga pro ar (1915).

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1 Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

“Coisas da téla”: uma análise sobre a matéria cinematográfica na revista de variedades A Onda (Campinas, 1921-1924)

Lívia Cristina Corrêa1

Em 1º de maio de 1921, era lançada na cidade de Campinas a revista A Onda, a

partir da iniciativa de dois funcionários da agência local da Caixa Econômica do Estado,

Domingos de Andrade e Victor Caruso (1888-1967). O empreendimento pode ser

entendido como um projeto em conjunto, fruto da amizade entre ambos, através do qual

poderiam dar publicidade aos seus projetos, bem como movimentar o meio intelectual

local. Também integravam o grupo o caricaturista Manolo Romano (1895-1955) e

alguns nomes ligados ao ensino público e comércio locais. A Onda pode ser

caracterizada como uma revista de variedades, pois abarcava diversos assuntos de forma

leve e condensada, sendo constituída por crônicas, poesias, contos, epigramas, além do

grande número de ilustrações como charges, caricaturas e fotografias. Seu programa

específico, no entanto, era voltado para o humorismo. Nesse ponto uma observação

importante. Apesar de seu breve período de circulação, maio de 1921 a junho de 1924, a

trajetória da revista A Onda pode ser dividida em duas fases: a primeira, sob a direção

de Vitor Caruso, tinha o programa todo voltado para produções “breves e humorísticas”,

sendo o trocadilho seu principal recurso estilístico. (Cf. PUPO, 1995) A partir de

meados de 1923, no entanto, com a participação mais assídua do jovem poeta local

Hildebrando Siqueira (1904-1946), a revista passou a tender mais para a literatura

modernista.

Essa ruptura também se deveu ao afastamento de Victor Caruso de Campinas,

em meados de 1923, para ocupar o cargo de secretário da Câmara Municipal da cidade

de Orlândia. Este, contudo, não abandona A Onda totalmente, a qual continua

publicando textos de sua autoria. Nesse sentido, é importante ressaltar o papel de

Caruso dentro da revista. Natural de Campinas, além do posto que ocupava na Caixa,

exercia também a atividade de escritor, sendo autor de três brochuras já impressas na

cidade, quando do aparecimento d’A Onda.2 Em relação ao lançamento do periódico, é

certo que desejava um veículo aberto a suas próprias produções, sendo autor de contos,

1 Graduada em História e Mestranda em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista FAPESP. 2 Para ler no trem (1911), Versos (1914) e De barriga pro ar (1915).

2 Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

crônicas e versos, em sua maioria de tom satírico. Essa será a grande característica do

autor e pela qual se tornará conhecido. Sua presença nos dois primeiros anos d’A Onda

é muito marcante, sendo caracterizado por alguns memorialistas como a alma da revista.

O humorismo propagado pela A Onda era caracterizado por seus fundadores

como sendo “sadio”, ou seja, sem ofensas ou acusações, não oferecendo nenhum risco a

ordem pública. De acordo com Eustáquio Gomes, seus redatores mantinham relações

com o PRP, que governava a cidade. (GOMES, 1992: p. 26) Sendo assim, suas piadas

eram voltadas, essencialmente, para a observação satírica do comportamento e

personalidade de figuras de relevo da cena local, como também sobre os novos hábitos

trazidos com a modernidade. Na maioria das vezes, utilizavam seus redatores do

trocadilho como principal recurso estilístico, fazendo alusões aos nomes e/ou profissões

de personagens da cidade, o que dotava o seu conteúdo de uma característica muito

específica e peculiar á cidade e aos habitantes de Campinas. Também recebia

colaborações dos leitores, mas estas tinham que obedecer a esse seu programa voltado

para o humor. Duas passagens dão conta do tipo de matéria privilegiada pelos redatores:

Não é necessário muito talento para collaborar A Onda. Basta que nos

mande qualquer produção original, breve e com uma pouca graça. Damos

sempre acolhida a trabalhos curtos, que têm a vantagem de não fatigar quem

os revê e quem os lê. (A Onda, ano I, n. 3, 5 de junho de 1921)

Nem a piada chula, nem a mofina soez, ou o mexerico de aldeia. A pilheria, o

trocadilho, a ironia sutil; numa palavra, o humorismo como esgrima

delicada, que seja mais que um divertimento afidalgado e menos que um

desforço de rivaes. (A Onda, ano II, n. 1, 1 de maio de 1922)

A Onda saía quinzenalmente aos domingos e era vendida em algumas das

principais lojas de comércio da cidade, tendo seu preço variado entre 500 e 800 réis.

Em relação á sua estrutura interna, a revista não tinha uma organização rígida,

principalmente no que diz respeito ás seções. Estas poderiam aparecer em ordem

aleatória ou de forma saltada, não estando presente em todos os números, e geralmente

vinham dispostas em meio a outros textos avulsos, principalmente poesias, anedotas e

crônicas. A partir de uma análise prévia do tipo de matéria, das referências e das

próprias seções veiculadas, é possível afirmar que grande parte dos leitores da revista,

talvez a sua maioria, fossem de mulheres. Seções como “Página das Leitoras” ou

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“Lições de Elegância” eram direcionadas diretamente ao público feminino, mas também

aquelas que tratavam da matéria cinematográfica foram inseridas a pedido,

principalmente, das leitoras. Até mesmo nessas seções os textos não deixavam de seguir

a linha humorística.

Era impressa nos fundos da Casa Genoud, estabelecimento comercial que se

caracterizava como livraria, tipografia e abrangia seções desde perfumaria até

instrumentos musicais, e que por esses motivos, legou a revista uma apresentação

gráfica de melhor qualidade. Era um local que aglutinava os intelectuais, sendo o

principal ponto de encontro de escritores, jornalistas, poetas e músicos que ali discutiam

as novidades literárias e a política em geral. (Cf. GOMES, 1992; PUPO, 1982) É

importante notar que, sendo A Onda uma revista de variedades, está inserida num

contexto em que este gênero torna-se um dos principais meios de inserção e

experimentação de novidades técnicas e literárias. Um veículo importante para a

congregação e divulgação de produções culturais, principalmente num meio editorial

precário e de difícil desenvolvimento, bem como de experimentação dos avanços

técnicos na área de impressão, principalmente no que diz respeito á ilustração. (Cf.

MARTINS, 2001)

As referências ao cinema podem ser percebidas basicamente de três formas: num

primeiro tipo, dentro de crônicas, charges ou epigramas, as alusões se referem ao

próprio hábito de ir ao cinema e às situações, muitas vezes cômicas, relacionadas com

essa forma de entretenimento, sobressaindo-se o cinema como o lugar do “flirt”.

Também, num outro aspecto, a “cena muda” e sua constelação de astros são

relacionados às mulheres, principalmente pelo culto aos artistas e pelos novos hábitos

trazidos pela cinematografia, como vestimenta e mesmo certas atitudes que acabavam

influenciando o público feminino. Por último, a própria seção criada com esse fim,

inicialmente intitulada “A vida dos artistas”, que trazia perfis satíricos e em sua grande

maioria fantasiosos sobre os artistas da téla, acompanhados de fotografias ou gravuras

que ocupavam também várias das capas da revista. É importante notar que o conteúdo

sobre cinema está presente, principalmente, durante o primeiro ano d’A Onda, notando-

se uma diminuição no decorrer dos outros anos. No período em que o periódico é

dirigido por Hildebrando, e o humorismo caí para segundo plano, as referências

restringem-se a notícias sobre os filmes, ou fitas, que estreiavam nos cinemas da cidade

e também sobre a produção de filmes em Campinas, o que ficou conhecido como ciclo

de cinema campineiro.

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Sendo assim, em relação ao primeiro tipo de abordagem da matéria

cinematográfica pela revista, pode-se perceber uma aproximação entre o hábito de

frequentar o cinema com os assuntos ou fazeres cotidianos dos habitantes da cidade.

Estes se encontram a porta de um cinema e começam uma conversa, ou então é nessa

passagem, ou dentro da sala escura, que homens e mulheres travam o polêmico “flirt”.

Também quando os redatores estão fazendo alusões a figuras de relevo da cena local, ou

quando fazem piada com o comportamento ou manias de certos personagens, por

diversas vezes o local escolhido para ambientar a cena é o cinema.

Na ingênua intenção de prestar um serviço à nossa sociedade, vamos

apontando nesta secção, logo de entrada, os maus habitos de alto relevo, que

tanto afeiam illustres cavalheiros desta cidade. Começamos pelo Prof.

Camillo Vanzolini, que, no cinema, não dispensa o veso de acompanhar o

compasso da musica, batendo com o pé na cadeira da frente. (A Onda, ano I,

n. 1, 1 de maio de 1921)

O dr. Horacio Costa tem um cacoete que elle proprio ignora. E’ piscar com

o olho esquerdo. Estavamos hontem no cinema, quando uma melindrosa com

cara de lombriga queixava-se insistentemente a uma velha com feições de

tatorana, mãe da cuja. - Desaforo, aquelle homem está só piscando para

mim. Mas eu não ligo! Olhei era o dr. Horacio Costa. Vejam, como se

accusa um innocente! (A Onda, ano I, n. 2, 15 de maio de 1921)

Foi no Colyseu. O garboso funccionario de estrada de ferro estava no

balcão. A elliflua prefessorinha descadeirada, isto é, que não obteve cadeira,

ainda, entrou ao começar a fita. Por uma coincidencia, sentou-se numa

cadeira até então occupada pelo sobretudo do tal, á sua direita. Até ahi,

nada de novo. Mas logo que o cinema ficou em trevas, um pandego, sentado

atraz e que tudo estava observando, extendeu a mão acariciativamente, ao

gajo. Este, rapido, numa falta de tacto e tactica levou-a aos labios e

imprimiu furtivo beijo á cabelluda munheca do endiabrado esportista. A cara

do freguez e da fregueza, logo que deram pela troça, foi de assustar

defunto... (A Onda, ano I, n. 4, 26 de junho de 1921)

De acordo com José de Castro Mendes (1901-1970), memorialista local, tendo

sido também colaborador e caricaturista da revista, contava a cidade nessa época com

oito casas de exibição que apresentavam “o melhor da programação européia-

americana”: Cine Recreio, Casino Carlos Gomes, Cine República, Coliseu, Cine São

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Carlos, Teatro São Carlos, Cine São João e Rink Campineiro. (MENDES, 1967) Entre

estes, o Rink, o Casino, o Coliseu e o Cine São Carlos são citados constantemente na

revista pois, esta fazia a propaganda das emprezas responsáveis pela exibição dos filmes

nessas casas, Vianna & Bianchi para os três primeiros e empresa Ortale para o último.

Sendo assim, é possível perceber que frequentar o cinema fazia parte do lazer e do

cotidiano dos habitantes da cidade, transformando o local em importante ponto de

referência e símbolo de alusões por parte dos redatores da revista, mas também

perfeitamente reconhecível pelos leitores. Algo que estava completamente em voga

naquele momento, presente no dia-a-dia e no imaginário dos campineiros.

Ao lado dessas situações corriqueiras, talvez a relação por mais vezes traçada

seja aquela entre as mulheres e sua paixão exagerada pelos artistas da téla. Nas palavras

dos redatores, as “moçinhas”, para desepero dos pais, só pensavam em cinema, antes de

qualquer coisa. Não podiam deixar de ir à matiné, conheciam os rostos e os nomes dos

artistas de cor e, o pior de tudo, queriam imitar os novos hábitos ou comportamentos

trazidos pela cinematografia. É interessante observar que ao mesmo tempo em que

reconhecem a febre exagerada pelo cinema, principalmente via Hollywood, os redatores

não chegam a condená-lo, antes reconhecendo a nova arte como uma institução dos

novos tempos, um importante ponto de referência que já se encontrava enraizado na

sociedade e nos costumes da época. No entanto, lamentam o fato das novas gerações,

principalmente as mulheres, conhecerem mais os artistas do cinema americano e toda a

cultura propagandeada por eles, do que os próprios símbolos nacionais.

Nesse sentido, é pertinente pensar no apelo que a imagem, agora em movimento,

exercia sobre a mentalidade da época. Não somente em relação à sua modernidade

técnica, mas também por todo o conjunto de novos elementos que eram propagados

pelas fitas, principalmente a moda e os comportamentos da estrelas. Num texto sem

autoria intitulado Crônica, do número 8 da revista, o redator primeiramente reconhece

alguns dos avanços que os americanos já legaram ao mundo, mas os condena

justamente quanto ao vestuário feminino, a moda trazida pelo cinema:

As nossas patricias – deixemos os marmanjos de lado – têm primado por

uma falta de senso e de gosto copiando tudo quanto os americanos fazem.

Recebem essas lições na téla dos cinemas e seguem religiosamente o que é a

favor do modernismo. Algumas das nossas campineiras num deploravel

fanatismo, pretendem encarnar em si os taes costumes da terra do dollar,

que viram nas fitas. Na rua andam com uma elegancia emprestada dos films;

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têm uns gestos fiteiros, uns arrebiques americanos; desde o andar, – passo

largo, busto um tanto arcado – até ao jeito de conversarem ou sentarem

denunciam a tola mania de seguir a moda americana. A imaginação dessas

meninas está a formigar de futilidades. Revistando-se-lhes todos os cantos da

mioleira não se encontra um centimetro cubico de idéa prestadia pois toda a

lotação da massa encephalica está occupada por outra vida – a vida dos

films. E’ notavel a frivolidade dessas apaixonadas. Deslembradas de tudo,

consagrando-se ao culto inconsciente do “americanismo”. E é tudo de

ouvido, ou melhor, de vista. Só conhecem aquelle paiz por que há fitas –

essas fitas que lhe dominaram a alma – novas Vestaes mantendo acceso

sempre o fogo sagrado da elegancia yankee... (A Onda, ano I, n. 8, 28 de

agosto de 1921)

A partir do número 6, A Onda passa a estampar fotografias de atores de cinema

nas capas, bem como inaugura uma sessão dedicada à vida dos artistas. Os redatores

dizem que por insistência dos leitores, e quase como a contra gosto, a revista passaria a

abortar o assunto. Isso, no entanto, em tom irônico, pois, como dito anteriormente,

criticam o fato de a cinematografia, e toda a cultura americana nela contida, ter se

tornado motivo de culto da grande massa. Essa iniciativa, no entanto, pode ser

entendida como forma de seguir a demanda do mercado e, consequentemente, ampliar

ou manter as vendas. De acordo com Ana Luiza Martins, os responsáveis por revistas de

caráter como o d’A Onda, por exemplo, pretendiam a venda de seu produto como uma

mercadoria, além disso, que esta alcançasse o sucesso com o público. Para isso, de

acordo com a autora, era preciso veicular o que era rentável no momento, não deixando

de haver redefinições ou readequações de forma e conteúdo quando fosse preciso,

principalmente porque estas tendiam a seguir a uma demanda (MARTINS, 2001: p 22).

Os redatores, no entanto, seguindo o tom humorístico, não deixam de mostrar

descontentamento pelo fato de os leitores, muitas vezes, mostrarem preferência pela

cultura estrangeira em detrimento da nacional:

Com o intento de satisfazer a insistentes pedidos de leitores e leitoras, no

sentido de publicarmos noticias sobre a vida dos melhores artistas da tela,

iniciamos hoje a presente secção, que, certamente, será acolhida com muito

prazer pelos doidos apaixonados do cinema. Procuraremos ser o mais exacto

possivel ao descrever a vida deste ou daquelle artista, entrando, mesmo nos

mais secretos pormenores. E’ um excellente serviço que prestamos á

civilisação moderna, pois o conhecimento dos artistas do cine importa numa

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demonstração de cultura e é um verdadeiro culto. Hodiernamente pode-se

ignorar quem foi General Osorio, Deodoro, mas qualquer menino do 3.º

anno do grupo não pode, sob pena de ser taxado crassamente ignorante,

desconhecer quem é William Farnum ou Pearl White... E’ uma necessidade

momentosa que cumpre seguir, acompanhando, assim, a decadencia do

nosso gosto e a invasão ao reino da ignorancia. Seja, pois, como quer a

grande massa do povo: o cinema acima de tudo, obrigando as revistas a cair

nesse terreno extremamente páu como seja a vida dos artistas. (A Onda, ano

I, n. 6, 31 de julho de 1921)

Entre os atores mais citados pela revista encontram-se William Hart, William

Farnum, Wallace Reid, Dorothy Gish, Pearl White, Mary Pickford, Constance

Talmadge, Francisca Bertini, entre muitos outros. A quantidade de retratos de artistas

veiculados é muito grande, ocupando diversas capas como também páginas interiores da

revista. O que acabava por se caracterizar como uma estratégia de venda, pois incitava o

colecionismo por parte dos leitores. Em relação aos perfis biográficos dos artistas é

interessante notar que muitos deles são construídos de forma parcialmente fantasiosa.

Seguindo a linha humorística, mas talvez até como uma forma de crítica velada, os

redatores expõem informações falsas e engraçadas em relação aos atores. Em mais de

uma momento também, traçam aproximações entre os artistas e a cidade de Campinas,

estabelecendo relações de parentesco com personagens locais, ou dizendo que

determinado artista viria passar uma temporada na cidade.

A seção não segue uma estrutura fixa, mudando de nome algumas vezes,

alternando entre “A vida dos artistas”, “Coisas da téla” e “Figuras da téla”, além de “Os

pharóes da téla”, onde vinham estampados retratos ou gravuras dos artistas. O

importante neste caso é atentar para o apelo da imagem. Para os responsáveis pela

revista ela elevaria o status do periódico, colocando-o ao nível das novidades técnicas

da época em se tratando de recursos de impressão. Mas também o colocaria a par das

novidades no plano artístico e cultural, trazendo um chamariz excepcional para época

como a indústria cinematográfica. Num tom de gracejo, afirmam ser os retratos

estampados feitos especialmente para a revista:

Não medindo sacrificio – já que todas nossas leitoras nol-o impõem –

continuaremos a publicar nas capas desta revista os retratos de todos os sóes

e estrellas da téla, certos de que com isso A Onda lucrará no seu systema

planetario maior sympathia. Por estes dias receberemos dos Estados Unidos

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farta colleção de retratos de artistas. Tanto as bellas capas de artistas da

téla que temos estampado, como todos os demais clichés que illustram a

revista são feitos especialmente para A Onda. (A Onda, ano I, n. 9, 1921)

A atriz Dorothy Gish (1898-1968), primeiro

retrato de artistas de cinema estampado no n.6 da

revista A Onda, em julho de 1921.

A atriz Clara Kimball Young (1890-1960), capa do

n.10 da revista em setembro de 1921.

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Intérprete de dramas de ação, o galã William

Farnum (1876–1953), ao lado de William Hart, era

extremamente popular, citado diversas vezes na

revista. Capa do n.11, em outubro de 1921.

A atriz Florence Vidor (1895-1977), uma das

últimas capas estampadas com retratos de

artistas, já no segundo ano da revista, n.5, em

julho de 1922.

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No entanto, a partir do segundo ano de circulação da revista, percebe-se que o

espaço dedicado a matéria cinematográfica diminui consideravelmente, tanto em relação

as capas quanto aos textos. Pode-se supor que com as comemorações do Centenário da

Independência em 1922, as temáticas girassem mais em torno do nacional. Mas não há

uma razão muito clara. A seção “Os pharóes da téla” continua estampando retratos dos

artistas, mas aquela dedicada os perfis biográficos desaparece. O que fica são pequenas

referências dentro de crônicas, anedotas referentes aos artistas e o noticiário sobre as

estréias, tanto de filmes estrangeiros quanto de nacionais, ou melhor, aqueles filmados

na própria cidade. Campinas na década de 1920 experimenta o que alguns denominam

de ciclo cinematográfico campineiro. Entre os anos de 1923 e 1927 são instaladas

quatro companhias cinematográficas na cidade, e sua produção, mesmo de caráter

amador e na maioria das vezes precária, legou à Campinas o título de “Hollywood

cabocla”. (BATTISTONI FILHO, 1999: p. 48) Entre as produções estão João da Mata,

de 1923, único filme da empresa Phoenix Film; Sofrer para Gozar, de 1923, produzido

pela APA-films, que também rodaria A Carne, de 1925; Alma Gentil, de 1924, pela

Condor Film; e Mocidade Louca, de 1927, pela Selecta Film. A referência a essa

produção local restringe-se a notícias e alguma crítica, não constando, porém, nenhuma

imagem fotográfica.

Concluindo, importa destacar o papel das revistas de variedades do início do

século, como A Onda, como veículos importantes de veiculação e divulgação da

novidade, sua matéria-prima. (COHEN, 2008: p. 111). Tanto de avanços técnicos, de

novas produções no campo cultural, quanto dos novos hábitos que se distinguiam por

uma certa atmosfera de modernidade. No caso da cinematografia, estabeleciam esse

diálogo com o público através da maciça veiculação de imagens das estrelas que

figuravam tanto na téla dos cinemas como, agora, nas páginas das revistas, que

buscavam estar em sintonia com as novidades técnicas e culturais da época, mas

também vender a sua mercadoria, o próprio periódico. Deste modo, fosse a imagem em

movimento ou estática, no caso da fotografia, esta teve um papel decisivo na

popularização dos impressos e na conformação de imaginários e padrões de

comportamento.

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BIBLIOGRAFIA

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