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Literatura Medieval

Maria Clara de S Couto Wildschtz

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Marie de France:

Lais de Marie de France

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 3 / 79

ndice

I - INTRODUO: UM POUCO DA HISTRIA MEDIEVAL E SOBRE MARIE DE FRANCE E OS SEUS LAIS 4

II PRLOGO DOS LAIS: ANLISE DO ESTATUTO DE ESCRITA (EM RELAO ORALIDADE) 13

III FUNO DAS AUCTORITATES CITADAS NO PRLOGO DOS LAIS. 19

IV - NOO DE TRANLATIO CONCEBIDA POR MARIE DE FRANCE 22

V - COMPARAO DA CONCEPO DE TRANSLATIO DE MARIE DE FRANCE NO PRLOGO DE CLIGS DE CHRTIEN DE TROYES 23

VI - RECENSO CRTICA DO ARTIGO DE ALEXANDRE LEUPIN LA TCHE IMPOSSIBLE [MANIFESTER LA LITTRATURE] : DE LOBSCURIT CHEZ MARIE DE FRANCE. [A TAREFA IMPOSSVEL (MANIFESTAR A LITERATURA) DA OBSCURIDADE EM MARIE DE FRANCE] 34

VII ANLISE DO LAI DE CHIEVREFUEIL, DENOMINADO EM PORTUGUS LAI DE MADRESSILVA 41

VIII - CONCLUSO 71

IXA - BIBLIOGRAFIA 75

IXB - WEBGRAFIA 77

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 4 / 79

I - Introduo: Um pouco da histria medieval e sobre Marie de France e os seus Lais Com os contos da Idade Mdia, penetra-se num vasto e prestigioso domnio, o do imaginrio, do

maravilhoso, dos grandes mitos trgicos ou no, que nunca deixaro de assombrar os sonhos do

homem.

No entanto, tambm de poesia que se trata, uma poesia que revela um estado de esprito, uma

sensibilidade ao mundo, na busca e na descoberta de mistrios atravs duma linguagem levada ao seu

maior grau de significao.

No que diz respeito aos grandes temas que atravessam os contos e a poesia medieval, estes pertencem

a um domnio intemporal que leva ao sub-entendimento da vida, afrontamento do bem e do mal.

Da que seja a maior virtude das grandes obras medievais, que tem o poder de nos ligar a um passado

sempre vivo e presente, que nos une aos homens, atravs dos quais nos reconhecemos, nas alegrias e

nos sofrimentos.

As tendncias dominantes da literatura da poca medieval tm a aspirao de penetrar no sentido dos

smbolos, no s atravs do corao, mas pelo esprito (veja-se o romance arturiano que se

desenvolve num contexto maravilhoso, frequentemente pago dando lugar demanda do Santo Graal

na qual os cavaleiros so confrontados aos smbolos sucessivos que se explicitam longamente de uma

forma racional e didctica, no esquecendo a cortesia1). Cada vez mais, e desde os primrdios, se

tenta penetrar na ambio de dar conta da realidade, de exprimir o universo e o seu sentido.

1 Para melhor se entender este conceito dever-se- ler e perceber a obra A demanda do Santo Graal , por exemplo na

verso editada por Irene Freire Nunes, da Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

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Na origem da literatura medieval, segundo Jean-Claude Aubailly2, os contos medievais encontram-se

circunscritos a uma poca que se insere na tradio da fbula espica3 (aposta pelos Isopets de Marie

de FRance) e emanente de um mundo aristocrtico corts cujo esprito se transforma e atravs do qual

se aquiesce a uma pardia da literatura cortes da poca precedente, havendo autores conhecidos4

pretencentes ao mundo do clero, ao meio dos profissionais da cultura e da literatura da poca. No

entanto, no obstante, esses autores reconhecidos da corte, h que ter em conta e relembrar que

jograis5 e malabaristas, que na lrica medieval, eram os artistas profissionais, de origem popular, no

pertencendo nobreza, que geralmente cantavam ou tocavam instrumentos musicais, compondo

melodias e poemas, pessoas que divertiam atravs da profisso, que andavam de cidade em cidade, de

corte em corte, tiveram um papel importante na criao de contos medievais. Numa poca em que se

ignora o que a propriedade literria, esses artistas de rua puderam marcar com a sua

personalidade, modificando os contos, esses contos que se transmitiam pela via oral atravs da qual a

improviso poderia ter um papel primordial. Da que cada jogral apresentasse frequentemente a sua

verso como sendo a melhor e a mais original em relao a outras.

O realismo dos contos medievais, deriva, ento, desta actividade jogral. Diz-se que os contos

medievais provm da realidade, e essa, era contada pelos profissionais anteriormente referidos, sendo

um espelho do tempo. Por exemplo, em contos que evocam o campo, encontram-se descries

sumrias de paisagens rurais e actividades rurais, havendo tambm situaes em que se recriava

igualmente o aspecto mais srdido da vida agrria, talvez por isso, em inmeros documentos a vila

2 Em Fabliaux et contes moraux du Moyen ge, Paris, Le Livre de Poche nouvelle approche, 1987, pginas 201-203.

3 Esopo, fabulista grego de existncia duvidosa a quem se atribuem as fbulas reunidas por Demtrio de Falero no sculo

IV A.C., teria sido uma espcie de orador popular que conta histrias para convencer os ouvintes a agir de acordo com o

bom-senso e na defesa de seus prprios interesses. De acordo com Aristteles, a fbula espica uma das formas da arte

de persuadir e no poesia. A Idade Mdia cultivou com insistncia a tradio espica. Entre as muitas verses da poca,

divulgadas sob o nome de Ysopets (Esopetes), a mais famosa ficou sendo a de Marie de France, do sculo XII. Os

fabliaux (fabuletas) medievais, embora no sejam propriamente fbulas, guardam com elas algumas analogias. Por meio

dos personagens animais, os poetas fazem crticas e pretendem instruir divertindo. As Fbulas tambm so relacionadas

com "histrias fictcias que simulam verdades" tendo sempre fundo moral ou didtico, envolvem frequentemente deuses e

animais falantes e sendo, por vezes, humorsticas. Em geral, a fbula comea pelo ttulo, depois vem uma curta narrativa

em prosa e, quase sempre, um epimtio. No epimtio o fabulista frequentemente apresenta aquilo que chamamos, na

actualidade, a "moral da histria". Os personagens so geralmente animais, que falam, cometem erros, so sbios ou tolos,

maus ou bons, exactamente como os homens. A adaptao para o comportamento dos animais daquilo que se percebia nos

humanos, simplifica o entendimento e facilita a aceitao, da verdade contida nos julgamentos morais, por parte das

pessoas. A fbula comporta duas partes: a narrativa e a moralidade. 4 Como Courtebarbe, Durand, Eustache dAmiens, Hugues Piaucele, Guillaume le Normand, Jean de Cond, Jacques de

Baisieux, Jean Bodel, Rutebeuf, entre outros. (pg. 202, op. cit.) 5 A actividade do jogral desdobrava-se em mltiplas funes que, com o objectivo de recrear um pblico, combinavam os

jogos histrinicos, o acompanhamento musical, a interpretao de composies alheias ou prprias, a declamao de

narrativas picas, etc. A importncia do jogral enquanto meio de transmisso cultural, entre comunidades e entre geraes,

deve ser enfatizada tendo em conta o peso da oralidade sobre a escrita no ocidente medieval. In Infopdia [Em linha].

Porto: Porto Editora, 2003-2008. [Consult. 2008-07-10]. Disponvel na www: .

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medieval guarde as suas caractersticas camponesas. Nos contos medievais, tambm, na maior parte

dos casos se faz prova do desenvolvimento de uma notria discreo e de um desejo manifesto de

evitar tudo o que se pudesse parecer a um ensino directo: o discurso sbrio, no excluindo nem o

vigor, nem as situaes nas quais se do alguns traos de descrio ou algumas rplicas, nem os

caracteres com traado firme com a preocupao dos tons e dos valores dessa poca. Mesmo as

personagens secundrias podem participar no conjunto do conto, dando assim a impresso de rapidez,

eficcia e sintetizao, o que no raro nas obras medievais.

O conto, na mais pura tradio dos lais e de outros contos fericos, que floresceu no fim do sculo

XII, remetem para um tipo de conto, j bem conhecido e que ir ser objecto de estudo neste trabalho:

os lais. Os lais mais conhecidos devem-se pena (de escrita) de Marie de FRance que os dedicou a

Henrique II da Inglaterra e a Guillerme de Mandeville, conde de Essex. Os seus temas alm de

submergirem da tradio oral, reaparecem em inmeras obras, nos velhos e antigos fundos clticos, o

que no tira nada beleza, poesia, tonalidade extica do conto que por si s se deve de pr em

evidncia o quotidiano actualizando concomitantemente os velhos mitos aos quais se conferia assim

uma fico de autenticidade. Os seus contos testemunham um gosto pelo maravilhoso e ferico, nos

quais fluctua a sensibilidade de uma poca.

Em provenal (lais) e francs antigo, uma das designaes mais ambguas e polivalentes da literatura medieval, a

designao deste vocbulo. De facto, o termo, cuja etimologia ainda incerta muito mais incerta em relao polissemia

do prprio termo, que cobre campos smicos muito diversos: do canto dos pssaros a elementos da tcnica da composio

trovadoresca -, para a qual se evocou umas vezes o mdio-latino leudus, outras o cltico loid, ou o germnico laik, e

recentemente at mesmo o latim laicus, designa realizaes literrias muito diversas, que se resumem essencialmente nas

seguintes:

. O Lai narrativo um breve relato com couplets doctosyllabes (que se distingue do romance pelo seu carcter episdico e

pela menor amplitude de desenvolvimento), no musicado () inicialmente de matria bret, e mais concretamente

desenvolvimento de lais clticos (composies musicais alusivas a um facto particularmente impressionante e por

remembrer, dos quais se conserva algum eco na primeira literatura ango-normanda, divulgadas pelos jograis bretes com o

acompanhamento de instrumentos de corda), como foi explicitamente afirmado por Maria de Frana (sculo XII), o

primeiro e maior cultivador desta forma literria (por ela definida como conte e, a que ns tradicionalmente chamamos

lai, baseando-nos na presena deste termo nos seus prlogos e eplogos, onde, no entanto, lai se refere s fontes de

inspirao) e que se desenvolveu na rea da lngua de ol com numerosos textos annimos. Seguidamente, na esteira do

xito destes textos, o termo lai perde a sua especificidade bret para assumir o significado genrico de obra narrativa breve;

();

. O Lai lrico independente: composio estrfica musicada ();

. O Lai Lrico arturiano ou integrado: poemas musicados isostrficos e isomtricos, no autnomos mas funcionalmente

inseridos na trama narrativa de textos em prosa tardios (). Todos annimos, mas atribudos a personagens lendrias do

ciclo breto-arturiano (Tristo, Isolda, Ginebra, ) pelo contexto em prosa, que muitas vezes d ttulo ao lai (). 6

6 em LANCIANI, Giulia e TAVANI Giuseppe - Dicionrio da Literatura Medieval Galego e Portuguesa, Lisboa, Editorial

Caminho, S. A., 1993, pginas 374 e 375.

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Assim, o gnero do Lai, inicialmente uma composio musical, designa um conto breve de

octosslabos de rimas, relatando uma aventura mais ou menos maravilhosa / fantstica num quadro

breto (Inglaterra, Esccia ou Bretanha). Menos de quarenta textos deste gnero so conhecidos, a

maior parte sendo annimos, foram famosos essencialmente no fim do sculo XII, sendo que no

sculo XIII comeam a desaparecer, o gnero perdendo o seu carcter ferico e evoluindo para a

novela cortes. Assim, os lais, sendo textos bastante curtos (nunca mais de quinhentos versos), vo de

encontro ao essencial.

O lai aparece ento como sendo uma forma medieval e transitria do conto revelando-se uma forma

de narrao muito prxima deste. Os lais de Marie de France so fbulas de amor onde o leitor

convidado a retirar uma lio, uma moral, um aviso o que vai de encontro escrita por smbolos.

Marie de France7, primeira escritora feminina do sculo XII, escreveu os Lais que so pequenos

contos narrativos em verso, os mesmos lais que tambm significam canes e que designam

partida uma obra musical. Tambm podem ser vistos como poemas lricos de curta amplitude

inspirados em temas do ciclo breto-arturiano e designados para serem entoados com

acompanhamento musical.

Esta autora situa-se nos limiares da revoluo potica inaugurada pelos jograis no sculo XII, o que

corresponde ao ponto de partida da literatura, sendo nesta poca que comea a nascer um esprito de

criao, pois antes deste perodo, recopiavam-se os grandes textos da Antiguidade Latina, sem se

criar algo de novo. Marie de France foi assim pioneira na criao. Nasceu nessa era a noo de

adaptao das obras antigas, adaptaes que incluem valores morais e intelectuais, onde poderemos

encontrar o lado obscuro da escrita ficcional. Adaptam-se as tradies orais, adaptam-se obras

7 Muito embora se possa referir o nome da poetisa em portugus - Maria de Frana - opta-se por regist-lo em francs

Marie de France - ao longo de todo o presente escrito, dado a sua aproximao (da autora) com a lngua francesa e o

mundo francfono. Os seus poemas (lais ou lays [encontram-se registos nestas duas formas]) foram redigidos em

francs antigo e muito embora ela escrevesse dessa forma, foi copiada pelos escribas anglo-normandos. A referida autora

viveu na segunda metade do sculo XII em Frana.

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escritas antigamente, adapta-se o folclore celta e todo este interesse vai transparecer nessa literatura

que nasce nesse sculo XII. No prlogo dos Lais reencontramos todos estes princpios, Marie de

France referindo que no criadora, mas que se situa numa tradio. Refere que se situa numa

herana8, a dos antigos (ancens), no entanto, esse hrdimo obscuro e assim a autora faz prova de

inteligncia acrescentando sentido (glose la lettre), adaptando o texto antigo. Assim as origens de

Marie de FRance esto bem patentes: a Antiguidade Latina (Priscien para a retrica) e a cultura bret

e cltica (o folclore breto).

Sabe-se desta autora, que escreveu no eplogo das suas fbulas "Marie ai num, si sui de France"

(Chamo-me Maria e sou de Frana) que este o seu nome e que viveu no referido pas. Desta

escritora medieval tambm se sabe que h referncias ao seu nome mencionadas no terceiro verso do

lai de Guiguemar9

[Oz, seignur, que dit Marie,

ki en sun tens ps ne soblie].

Ainda se encontra outra referncia relativamente ao seu nome, uma Maria autora de um Ysopet10

, uma

colectnea de fbulas adaptadas em francs de uma verso inglesa:

[Al finement de cest escrit,

quen romanz ai treit et dit,

me numerai pur remembrance:

Marie ai nun, si sui de France.],..

que se traduz por:

Ao final deste escrito

Que em romance foi tratado e dito,

Me apresento para lembrana:

Maria meu nome, eu sou de Frana.

entre outras referncias mais. Na realidade, apenas se sabe dela o que dito nos seus escritos.

8 Confira-se no prlogo dos lais de Marie de FRance, apresentado num captulo posterior.

9 Um dos doze Lais de Marie de France. Lai de Guigemar (Lai de Guingamor): este lai nomeado a partir da sua

personagem principal, conto onde o cavaleiro vai parar no pas das fadas e onde trezentos anos passam como se fossem

trs dias. Esse jovem cavaleiro que desdenhava o amor v-se por uma fada obrigado a respeitar as suas leis; depois de

muitas aventuras, a sua dama e o prprio cavaleiro amarram-se com um forte n, smbolo de sua fidelidade inquebrvel.

uma histria onde aparece o cinto de castidade (smbolo j presente na antiguidade medieval: o cinto um dos antigos

elementos do traje do homem. E sendo antigo, ou no, pode trazer uma ambivalncia simbolgica representada tanto pela

liberdade e poder como pela submisso e dependncia), onde o cavaleiro que aps anos encontra a sua bem-amada; a

nica que foi capaz de desfazer o n da sua camisa e em quem encontrou o cinto de castidade que lhe havia posto ao se

afastar para a guerra. 10

Marie de France tambm autora de As Fbulas de Ysopet. Podem-se remeter os Ysopets ou Isopets [encontram-se

escritos registados nestas duas formas] para uma compilao de fbulas influenciadas pelos escritores clssicos, com a

forma ou gnero bastante popular na poca. Segundo V.-L. Saulnier na sua obra La littrature franaise du Moyen ge

(PUF, 1962) [pg. 69] a tradio da fbula latina, em voga desde o sculo XI, reala Phdre e o seu sucessor Avienus.

Uma modificao e correco de Phdre em prosa, retomado em francs, cria o gnero dos Ysopets (do nome de Esopo,

criador do gnero). Segundo o Romulus Nilantii, derivado deste gnero mas enriquecido de adies orientais e diversas e

traduzido em ingls, Marie de France escreve o seu Ysopet francs.

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O facto que Marie de France insinue que vem de Frana leva a pensar que j no l vivia e a hiptese

mais seguida (entre muitas outras designadas em muitas obras sobre a autora) seria de que Marie de

France tenha vivido e escrito em Inglaterra, na corte de Henrique II. Nessa poca, nesse sculo XII, o

francs antigo estava longe se ser uniforme e a autora escrevia em anglo-normando. Esse dialecto da

Normandia era tambm falado na Grande-Bretanha, pois nessa poca Henrique II da Inglaterra,

casado com Alienor da Aquitnia, possua em parte o oeste da Frana do qual o ducado da

Normandia.

Maria de Frana, tal como se refere algumas vezes neste trabalho, autora da primeira colectnea de

fbulas francesas. Contudo, ela escreveu e traduziu outras obras (LEspurgatoire; Tractatus de

Purgatrio sancti Patricii), no entanto foi quando lanou o gnero francs dos lais que a autora

tomou parte consideravelmente na matria da Bretanha na literatura francesa.

A sua obra manifesta uma grande cultura. Embora tenha utilizado como base lais annimos que eram

divulgados oralmente, Marie de France elevou tais criaes populares a um nvel literrio superior,

sem no entanto afastar a atmosfera fantstica e os elementos ilgicos existentes nos lais originais. O

lai narrativo conta uma aventura invulgar, de natureza maravilhosa onde o humano se mistura com

o sobrenatural, no se devendo confundir com a fbula que se desenvolve num meio popular,

enquanto o lai decorre num ambiente corts, reflectindo as opinies e sentimentos da sociedade

cortes. Sendo inicialmente inspirado unicamente em temas da matria bret, acaba por alargar a sua

designao a qualquer obra narrativa breve de tema amoroso ou aventureiro.

Os Lais de Marie de France ou contos (1160-1175) so uma colectnea de doze pequenos contos

em octosslabos de rimas de dimenses variveis dos quais cada poema tem um ttulo diferente. A

escritora diz ter escrito e reunidos os seus textos a partir de lais da Bretanha inspirando-se neles.

Ela prpria chama as suas criaes como sendo lais, mas tambm as designa como contos. Um dos

temas recorrentes o Amor, que na maior parte das vezes est margem da sociedade, sendo o

principal motivo da colectnea, muito embora muitas vezes descrito com melancolia. Encontram-se

frequentemente situaes amorosas, as personagens principais sendo amantes. O ponto de partida

constantemente uma histria de amor impossvel, interdita pois adltera. Assim e dando seguimento a

esta lgica encontra-se frequentemente no lai o motivo da separao dos amantes, seguido de um

breve reencontro que d um instante de felicidade, instante esse precedido e sucedido pela tristeza e o

sofrimento dos amantes. Contudo, o fecho ou a chave de ouro dos lais so variados pois podem ser

finais felizes ou pelo contrrio trgicos e amargurados. Em vrios dos lais encontramos o fantstico

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maravilhoso, contudo todos tm o mundo real como pano de fundo. Os lais so de carcter

individual cuja descrio brilhante caracteriza a literatura da poca.

Assim, Marie de France, grande talento contador, acrescenta uma tonalidade de cortesia e de poesia

magia da matria da Bretanha. Uma emoo discreta liberta-se dos contos onde a autora privilegia a

piedade e a compaixo para com as suas personagens. O seu estilo duma grande economia de

meios, caracterizado pela sobriedade na composio do conto, a eficcia duma lngua simples e

lmpida.

Ainda dois dos lais de Marie de France Lanval e Chievrefueil [que remete para a lenda de Tristo

e Isolda] mencionam o Rei Artur e os seus Cavaleiros.11

Foi precisamente nesta poca e neste sculo XII que Marie de France aparece: no grandioso ponto de

partida da literatura, quando nascem os espritos da criao, pois neste sculo a noo de escritores

criadores ainda no fazia parte dos esquemas intelectuais. At este sculo, copiavam-se os grandes

textos da Antiguidade latina sem se pretender criar algo de novo. Mas tambm foi neste sculo que

comeou a nascer a noo de adaptao das obras da antiguidade. Retomam-se grandes textos latinos

que se traduzem e adaptam, por vezes aos valores morais e intelectuais da poca. a que se adapta

tambm a tradio oral.

12

Os Lais de Marie de France inspiraram-se em tradicionais e antigos contos clticos. Assim, a

marca folclrica celta foi adaptada, transposta para a escrita e transcrita em lngua romana. Denota-

-se ento uma influncia da cultura bret e cltica. Os celtas que so inicialmente um povo oriundo da

sia que se diversificou em vrios ramos sendo um deles o cltico. Esse povo veio, por migrao,

instalar-se na Glia, em Irlanda, na Bretanha, em Espanha e at mesmo em Portugal. Esse mesmo

povo, instalado na Europa Ocidental, tem uma importante potncia militar (essencialmente entre os

Romanos, at guerra da Glia). Os Celtas so ento romanizados e no V sculo, os povos

romanizados so vtimas de uma nova invaso a chegada das novas tribos, sendo por isso que ainda

se encontra hoje a lngua cltica no pas de Gales, na Esccia e na Bretanha. Mais tarde, no sculo

XII, o rei da Inglaterra, Henrique II, possui esse reino e a parte oeste da Frana (por ser casado com

11

No que diz respeito a este segundo Lai, far-se- uma exposio e anlise mais aprofundada num captulo posterior. 12

Fonte: para a referncia da imagem, clicar na mesma.

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 11 / 79

Alinor Da Aquitnia), e assim as trocas culturais so facilitadas fazendo com que a influncia do

mundo cltico esteja presente. nessa acepo que certos contadores comeam a escrever alguns

pontos da mitologia cltica. Vo-se, assim, buscar nos contos clticos os ideais que so reactualizados

no sculo XII, no que diz respeito ao papel da mulher e aos poderes mgicos da mesma. Os contos

clticos descrevem muito bem estes itens. Assim, a cultura oral do folclore breto encontra uma nova

fonte de temas que se vo desenvolver nesse referido sculo, fundando o nascimento da literatura

francesa e dos Lais.

a partir destes Lais, bem como de romances da poca, que vai emergir uma cultura,

independentemente da cultura oficial eclesistica e religiosa. Assim sendo, o trabalho de Marie de

France um trabalho de adaptao da matria antiga bem como do folclore breto. Essa adaptao

vai de encontro conciso da forma porque Marie de France escolhe a forma do Lai que exige

conciso e densidade do texto. Alis, os seus Lais so curtos, no tm descries detalhadas das

personagens e os locais so apenas evocados. uma arte da sugesto que rege o Lai, uma esttica

do silncio, o texto evocando e suscitando por parte do leitor um poder de interpretao do Lai. O

mesmo sendo cndido, conta histrias de amor que tantos podem findar bem como ter um fim

nefasto, sendo de qualquer das maneiras, contados de uma forma breve e linear.

Assim, numa arte do smbolo que Marie de France rege os Lais: elabora uma escrita baseada nas

imagens que enriquecem o valor potico dos textos. Marie de France d-nos conta de uma verdadeira

reflexo sobre a arte literria atravs da utilizao do smbolo. O hermetismo presente permite de

suscitar a imaginao do leitor porque a escrita atravs da imagem e do smbolo contm por si prpria

uma potncia muito forte. como se fosse uma obra aberta na qual o leitor convidado a entrar

porque este tipo de escrita no impe um sentido nico, antes permite que se interprete vontade do

leitor. No entanto, no se pode esquecer que o Lai uma forma medieval e transitria do conto e os

Lais de Marie de France so fbulas geralmente de amor onde o leitor alm de entrar em cena

ainda pode retirar uma lio ou um aviso (o que vai de encontro a uma escrita por smbolo). Ela tem

um grande talento de contista e junta uma tonalidade cortes e potica magia da matria da

Bretanha. Todos os contos ou poemas, se assim os podemos chamar, assentam num aspecto que

constitui um dos mais relevantes e vlidos topoi da escrita do sculo referido anteriormente, o que

parece incidir numa mutao significante de postura em analogia ao estatuto da oralidade cujo

monoplio comea a dissolver-se lentamente. Os prlogos atribuem escrita o domnio memorvel

de defender uma tradio oral que tende a desaparecer. A propagao exclusivamente oral da

narrativa degrada-se levando corrupo da palavra ancestral.

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 12 / 79

O essencial desse trabalho que Marie de France opera nos lais elabora-se entre a tradio oral e a

escrita. No seu prlogo, ela afirma querer adaptar em francs os Lais cantados pelos bretes para

perpetuar a sua recordao. O Lai narrativo que esta contadora parece inaugurar impe-se como um

memorial do Lai musical e tambm como um conjunto de tradies poticas dialogando entre elas.

No prlogo dos seus Lais Marie de France expe essencialmente a questo da traduo.

Os Lais de Marie de France so o exemplo mais conhecido deste lai narrativo. So dedicados pela

autora, esta aristocrata que viveu na segunda metade do sc. XII, ao rei Henrique II de Inglaterra e

que tm por temtica fundamental a do amor, sempre com inspirao nas personagens lendrias

arturianas.

Marie de France tambm implantou o gnero francs dos Lais, o que adquiriu uma parte importante

no assunto da matria da Bretanha, passando a fazer parte da literatura francesa.13

Todos os princpios morais, intelectuais e de tradio oral podem ser encontrados no prlogo dos

Lais de Marie de France. O que se pode retirar do prlogo que Marie de France se situa numa

herana dos antigos, dos antepassados, contudo essa herana literria frequentemente obscura, da a

necessidade de dar prova de inteligncia: essa inteligncia passa pelo facto de se ter de acrescentar

um sentido, sentido esse prprio, particular, aos escritos antigos, sendo ento substancial a adaptao.

13

No entanto, esta afirmao requer pesquisa aprofundada dado que Philippe Mnard conclui na sua obra Les Lais de

Marie de France Contes dAmour et dAventure du Moyen ge que no se pode apreciar o papel de Marie de France

na renovao das letras francesas. No se sabe ao certo se a mesma foi ou no a fonte do gnero dos Lais ou se a sua

aco foi determinante na transmisso da matria cltica. A grande questo da originalidade da poetisa ainda est por

determinar, segundo este autor.

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 13 / 79

II Prlogo dos Lais: Anlise do estatuto de escrita (em relao oralidade)

PROLOGUE DES LAIS, MARIE DE FRANCE

( E TRADUO EM FRANCS)14

1 Qui Deus a dun escince e de parler bone eloquence ne s'en deit taisir ne celer,

ainz se deit voluntiers mustrer.

5 Quant uns granz biens est mult oz, dunc a primes est il fluriz,

e quant loz est de plusurs, dunc a espandues ses flurs.

Custume fu as ancins,

10 ceo testimoine Precins, es livres que jadis faiseient assez oscurement diseient pur cels ki a venir esteient e ki aprendre les deveient,

15 que pessent gloser la letre

e de lur sen le surplus metre. Li philesophe le saveient

par els mesmes lentendeient, cum plus trespassereit li tens,

20 plus serreient sutil de sens e plus se savreient guarder de ceo qu'i ert, a trespasser. Ki de vice se vuelt defendre

estuder deit e entendre

25 e grevose oevre comencier ; par ceo sen puet plus esloignier

e de grant dolur delivrer. Pur ceo comenai a penser Dalkune bone estoire faire

30 e de Latin en Romanz traire; mais ne me fust guaires de pris:

itant s'en sunt altre entremis. Des lais pensai qu'oz aveie. Ne dutai pas, bien le saveie,

35 que pur remembrance les firent des aventures qu'il orent

cil ki primes les comencierent e ki avant les enveierent. Plusurs en ai oz conter,

40 nes vueil laissier ne oblir. Rime en ai e fait diti,

soventes feiz en ai veilli.

En l'honur de vus, nobles reis, ki tant estes pruz e curteis,

45 a qui tute joie sencline, e en qui quer tuz biens racine, m'entremis des lais assembler,

par rime faire e reconter. En mun quer pensoe e diseie,

50 sire, ques vos presentereie. Se vos les plaist a receveir,

mult me ferez grant joie aveir, a tuz jurs mais en serrai liee. Ne me tenez a surquidiee,

55 si vos os faire icest present. Ore oz le comencement!

1 Quand Dieu vous a donn la science et un talent de conteur,

il ne faut pas se taire ni se cacher mais se montrer sans hsitation.

5 Lorsquun beau fait est rpt, il commence fleurir, et quand les auditeurs

se rpandent en louanges, alors les fleurs spanouissent. Les Anciens avaient coutume,

10 comme en tmoigne Priscien, de sexprimer dans leurs livres

avec beaucoup dobscurit lintention de ceux

qui devaient venir aprs eux et apprendre leurs oeuvres :

15 ils voulaient leur laisser la possibilit de commenter le texte

et dy ajouter le surplus de science quils auraient. Les potes anciens savaient et comprenaient eux-mmes que plus le temps passerait,

20 plus les hommes auraient lesprit subtil et plus ils seraient capables dinterprter

les ouvrages antrieurs. Pour se protger du vice,

25 il faut tudier et entreprendre une oeuvre difficile : cest ainsi que lon sloigne

le plus du mal et que lon spargne la souffrance, Voil pourquoi jai dabord eu lide

de composer un bon rcit

30 que jaurais traduit de latin en franais. Mais je nen aurais pas tir grande estime

car tant dautres lont dj faitl Jai donc pens aux lais que javais entendus.

Je savais en toute certitude

35 que ceux qui avaient commenc les crire et les rpandre

avaient voulu perptuer le souvenir des aventures quils avaient entendues.

Jen connais moi-mme beaucoup

40 et je ne veux pas les laisser sombrer dans loubli. Jen ai donc fait des contes en vers

qui mont demand bien des heures de veille.

En votre honneur, noble roi, vous qui tes si preux et courtois,

45 vous que salue toute joie, vous dont le coeur donne naissance toutes les vertus,

jai entrepris de rassembler ces lais et de les raconter en vers.

50 Sire, avec le dsir de vous les offrir. Sil vous plait de les accepter,

vous me remplirez de joie tout jamais. Ne me jugez donc pas prsomptueuse

55 si jose vous faire ce prsent. Ecoutez maintenant, le rcit commence !

14

Segundo Laurence Harf-Lancner em Lais de Marie de France (Le Livre de Poche, 1990), pp. 22 - 25.

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 14 / 79

Traduo em Portugus:

Segundo Jean Rychner15

o prlogo dos Lais ter sido escrito depois dos prprios Lais, o que faz

sentido dado que os Lais so uma recolha de contos orais e que o prlogo funciona no s como

dedicatria mas tambm como introduo desta colectnea, se assim se pode denominar.

No prlogo dos Lais, os primeiros versos da diegese ou no eplogo de cada lai, Marie de France

conta as origens do lai - todos fazem meno Bretanha ou aos bretes ou ainda ao Pas de Gales

(um pas com as mesmas conotaes e associaes do que a Bretanha). E por isso que os Lais de

Marie de France so territrio do maravilhoso, do fantstico: domnio das fadas, dos lobisomens, da

magia, do outro mundo e sobretudo do amor.

Os lais tm um prlogo de cinquenta e seis versos (anteriormente referido e traduzido em francs)

no qual Marie de France descreve a sua razo de escrever. No mesmo, a referida diz que a sua

inspirao era o exemplo dos antigos e a literatura latina para criar algo que divertisse e instrusse.

Quis tambm preservar os contos que ouvira em tempos. Pode-se encontrar em inmeros Lais a

temtica e a estrutura de contos populares, da a sua relao com a oralidade. Marie de France refere-

15

Rychner, Jean Les Lais de Marie de France, Librairie Honor Champion, 1983

Prlogo dos Lais, Marie de France

Quando Deus deu a cincia e um talento de contador / a eloquncia, no devemos calarmo-nos nem

escondermo-nos, mas devemos mostrarmo-nos sem hesitao. Quando um feito admirvel

difundido, comea a florescer e quando os espectadores se propagam em louvores, ento as flores

desabrocham. Os Antigos tinham o costume, como o testemunha Priscien, de se exprimir nos seus

livros com muita obscuridade na inteno dos que deviam vir depois deles e aprender as suas obras:

eles queriam deixar a possibilidade de comentarem o texto e de acrescentarem o conhecimento sobre

a cincia que possuiriam a mais. Os poetas antigos sabiam e compreendiam que quanto mais o tempo

passava, mais os homens teriam o esprito subtil e cada vez mais seriam capazes de interpretar as

obras anteriores. Para se proteger do vcio, preciso estudar e comear uma obra difcil: assim que

nos afastamos mais do mal e que fugimos ao sofrimento. Eis porque tive a ideia de compor um bom

conto que teria traduzido do latim para o francs. Mas dele no teria tirado grande apreo pois tantos

outros j o fizeram. Pensei ento nos lais que eu tinha ouvido. Eu sabia com toda a certeza que

aqueles que tinham comeado a escrev-los e a espalh-los teriam querido perpetuar a lembrana das

aventuras que eles tinham ouvido. At eu conheo bastantes e no quero deix-los render-se ao

esquecimento. Assim, fiz deles contos em versos que me levaram muitas horas de viglia.

Em vossa honra, nobre rei, vs que sois to destemido e corts, vs que sada toda o jbilo, vs cujo

corao d origem a todas as virtudes, eu propus-me de agrupar estes lais e de os contar em verso,

senhor, com o desejo de vo-los ofertar. Se fizer o favor de os aceitar, encher-me- de alegria para

sempre. No me julgue presunosa, se ouso dar-lhe este presente. Oua agora, o conto comea!

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 15 / 79

se, alis, imensas vezes a fontes orais situando os seus contos na Bretanha uma Bretanha que Marie

de France situa num passado mtico, que frtil e cujos testemunhos e lembranas (do povo antigo da

Bretanha) se quis preservar atravs dos lais. Da que se encontre em alguns dos seus lais a estrutura

de contos maravilhosos e fantsticos. porque termos como aventura, conto e lai esto

intimamente ligados aos contos de Marie de France que se pode chegar a uma ligao intrnseca entre

os mesmos. A aventura sendo um ponto de ruptura entre o real e o surreal, um acontecimento

extraordinrio que rompe com o enredo da realidade, traduzindo-se atravs da exploso do

maravilhoso, do fantstico nos escritos de Marie de France. Essa aventura d origem a uma obra: o

lai. Contudo, entre os dois situa-se o conto, a tradio oral nascida da aventura (os contos dos quais

esse povo deu origem aos lais redigidos por Marie de France). Marie de France fez, por assim dizer,

entrar na literatura escrita os contos que ela ouvira contar, os contos populares dos Bretes. Assim,

aventura adviria o conto oral, o lai musical e o conto em verso.

Contudo o charme dos Lais reside tambm na integrao da temtica fantstica universal a um

universo potico nunca antes visto. Esse universo maravilhoso inscreve-se no mundo feudal do sculo

XII.

Marie de France justifica neste prlogo, que se fundamenta como uma dedicatria, o projecto de

reunir os lais e de os contar em versos. (Contudo, h lais annimos que se alimentam das mesmas

fontes folclricas que os desta colectnea, sem no entanto serem remetidos a esta autora).

Na poca de Marie de France, artistas da rua, originrios da Bretanha, cantavam e tocavam na sua

harpa canes a que chamavam Lais e que o pblico breto nomeava de lais bretes, devido s

origens de quem as cantava. Esses criadores tinham recolhido nessas canes, nesses lais, as

tradies lendrias do seu pas. Os mesmos foram o ponto de partida do trabalho de Marie de France

que, segundo Jean Rychner16

, fez outras pesquisas mais aprofundadas e outras fontes. Ela ter

recolhido tradies celtas fora dos lais propriamente dito.17

Numa anlise mais aprofundada deste prlogo, denotamos que h uma referncia ao que religioso e

bblico dado que logo no primeiro verso temos uma referncia a Deus. Ora daqui podemos deduzir

que Marie de France no punha de parte a crena sagrada tendo provavelmente similarmente

adquirido conhecimento pelo estatuto da oralidade, muito embora se manifeste que ter tido muitos

conhecimentos resultados de pesquisas frutferas. No entanto, em alguns dos seus Lais, -nos

revelado o estatuto oral que provm at escrita dos mesmos: ora ouviu falar dum lai, ora ouvir

16

ibidem 17

Como o fez Chrtien de Troyes da boca dos contadores.

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 16 / 79

contar um lai, ora versificou-o por escrito. Denota-se aqui uma mistura da tradio oral e da tradio

escrita, segundo Philippe Mnard18

. At so dadas referncias nos seus Lais em como ela assistiu a

cenas musicais tomando prazer nas mesmas pois a mesma d uma informao preciosa quanto a este

assunto, referindo que o Lai uma composio instrumental e que essa melodia ainda tocada, ora se

ainda tocada, isto quer dizer que ela as ouviu. A tcnica de Marie de France enquanto contadora e a

sua arte enquanto escritora renem-se numa obra sem par e revelam-se particularmente relevantes.

Marie de France, sem dvida, inspira-se em contos orais populares carregando-os de profundidade, de

emoo e de poesia. por isso que marca esta matria tradicional com a sua impresso, com o seu

estigma. Sabe-se tambm segundo Ernest Hoepffner19

que Marie de France ouviu vrios contadores

contar-lhe e dizer-lhe histrias que a prpria retomou. Esses contadores no eram necessariamente

bretes, mas a matria dos seus contos era seguramente dorigem bret. Todavia, o lai musical surge

de aventuras extraordinrias mas essencialmente como fim de perpetuar a reminiscncia. Pode no se

saber se as coisas foram realmente assim, contudo e segundo o mesmo autor referido anteriormente,

os romanceiros e contadores arturianos admitem-no sem hesitar. Ento, porque no acreditar neles?

At porque alguns dos ttulos dos lais de Marie de France remetem para a cultura bret, essa deve ter

sido adquirida pela tradio oral, dado que se desconhecem escritos anteriores a essa data que

remetessem para os seus lais. Segundo Ernest Hoepffner, Marie de France d o ttulo aos seus lais em

breto porque foi a nica referncia que tinha, ou seja, se os conheceu pela tradio oral, revela-os

dessa forma ela tinha ouvido o ttulo dessa maneira em breto! (Provavelmente porque ouvira os

artistas de que se falou anteriormente anunciar os seus lais ao pblico em breto). Por isso que o

ttulo o elo de ligao do lai musical para o conto, donde provavelmente foi inspirado. (Era comum

os artistas de rua explicarem os ttulos ao pblico, aos auditores, contando a aventura que tinha dado

origem ao lai musical que iam ouvir).

E no seu prlogo da recolha de lais que Marie de France refere os lais que ela ouviu contar e que

ps em rima, ou seja, versificou. Denotamos no mesmo prlogo que ela refere que pensava primeiro

compor um texto aprazvel que teria retirado do latim (sabe-se aqui que ento ela tambm sabia latim)

e posto em francs, contudo isso no lhe teria trazido muito renome dado o nmero de pessoas que

faziam tradues (aqui tambm reconhece que tem conhecimento sobre as tradues em latim que se

tem feito na poca). Foi ento que ela pensou nos lais que ouvira contar. Versificou-os e consagrou

muito tempo e dedicao a esse trabalho. Tudo isto nos remete para o facto de haver tradutores que

se inspiravam no estatuto da escrita enquanto Marie de France e outros como Chrtien de Troyes se

inspiraram no estatuto da oralidade. Os seus escritos foram um sucesso. E no podemos afirmar que a

18

Mnard, Philippe Les Lais de Marie de France Contes damour et daventure du Moyen ge, Presse Universitaire

de France, 1979. 19

Hoepffner, Ednest Les Lais de Marie de France, Nizet, 1971

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 17 / 79

mesma se baseou em contos populares que ouvira por falta de cultura porque sabe-se de fontes

seguras que possua uma cultura literria e cientfica bastante alargada, mostando-se at orgulhosa do

seu saber. Sabe-se porque o estudo revela-se primordial para a mesma. Ela prpria o diz no seu

prlogo: Aquele que quiser defender o vcio deve estudar, pensar, reflectir e empreender uma obra

difcil (tal como aquela que ela prpria tinha empreendido). Assim afastar-se- do mal e evitar

grandes desgostos. A sabedoria adquirida, Marie de France tomou prazer transmiti-la a outros, tal

como nos diz no incio do seu prlogo:Aquele a quem Deus concedeu a cincia e a retrica, no se

deve esconder, mas ao contrrio, faz-la conhecer, para que floresa e se colham frutos dessa

sapincia. por isso que ela tambm refere o testemunho do gramtico Prisciano. No entanto, h

uma certa contradio porque tal sapincia encontra-se antes no mundo aristocrtico que no mundo

do povo, e ela comunga da erudio do primeiro e da simplicidade do segundo. Da que o estatuto da

oralidade seja bastante importante. Ela queria chegar a todos desde o povo aristocracia e encontrou

o mtodo, refere a sua erudio em gesto perceptvel para todos. O seu interesse baseia-se no s nas

obras escritas mas tambm nas obras orais dos contadores referindo que ouvira vrios contarem lais e

at ouvira a aventura de onde foram retirados os lais. A poesia lrica da sua poca tanto quanto a

cano cortes bem como a cano popular eram-lhe familiares e forneceram-lhe vrios motivos e

temas literrios. Marie de France possua, como se disse anteriormente, uma vasta cultura, uma

bagagem literria respeitvel, vasta e variada, tanto o latim como lnguas vulgares, tanto a literatura

verncula e sbia como a tradio popular. Os lais representam assim a literatura narrativa mundana,

destinada aos meios corteses, tratando essencialmente de problemas do amor.

Assim pode-se concluir que a disposio contraditria da Idade Mdia para com a tradia anterior

que era a da oralidade deixa de pertencer ao campo de imitatio para se tornar num plano muito mais

vasto em obra. consequncia de uma constante elaborao de esplios vrios tais como folclore,

tradio bblica, contos, sendo necessrio fazer frutificar. Antes o homem, o poeta no podia aspirar a

ser criador, nem mesmo o autor por ser o que detinha a auctoritate. Da que a literatura medieval seja

uma literatura tpica, que absorve as tradies, continuando a servir de referncia para a mudana de

motivos e temas ao longo dos sculos, formando-se um repertrio, arquivo considervel. So

memrias que advm da oralidade at escrita, tendo-se transformado ao longo dos tempos mas uma

vez registados ficaram perenes e eternos. Sendo fixar a fico na histria, a exactido e a

incorruptibilidade numa sequncia, este um dos mais importantes e poderosos topoi da escrita dos

sculos XII e XIII, um topos que parece espelhar uma mutao significativa de atitude em relao ao

estatuto da oralidade cujo monoplio comea a desaparecer lentamente para dar lugar escrita mais

perene e eterna. Tenta conservar-se uma herana oral que ter tendncia a desaparecer e foi isto que

Marie de France pretendeu, preservar um esplio oral para que nunca mais se desvanecesse. E at

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 18 / 79

porque todos sabemos que a tradio oral d lugar deteriorao da palavra primeira e ancestral. A

escrita serviu, serve e servir para preservar a cultura oral para sempre.

O prlogo dos Lais de Marie de France um texto que designa claramente o artifcio pelo qual a obra

literria indaga a justificao de um passado cujos contornos apenas se encontram na sua prpria

escrita e cuja escrita confunde os contornos. Conhece-se o objectivo a que apela o prlogo: os

Antigos compuseram obras deliberadamente obscuras, contando com o tempo e com o conhecimento

dos leitores para dali retirar o sentido, o sumo, o significado. Marie de France pensou primeiro

consagrar-se traduo do latim para o francs, mas em vez disso, empreendeu a transcrio dos lais

bretes que ela ouvira para que no cassem no esquecimento: assim a nova obra da poetiza herana

e eplogo das obras do passado cuja tarefa da autora de, por um lado, salvar a memria e pelo outro,

desenvolver o significado. Delinea-se assim a dubiedade, a dvida nascida da incerteza do

significado, do sentido ou da fragilidade da memria. Assim, o texto constitui-se pondo a

problemtica por um lado da existncia de um modelo tirado do passado e das suas lacunas e pelo

outro, pela renovao operada por um novo pensamento conduzido pela autora. Poderemos ento

depararmo-nos com a obscuridade do sentido ou a do esquecimento, ou mesmo ambas.

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 19 / 79

III Funo das auctoritates citadas no prlogo dos Lais. Sendo a auctorita a autoridade escrita dada a um trabalho que permite ao homem transmitir uma obra

para levar a sua credibilidade ao produto ou ento recorrer citao com a finalidade de aumentar

mais uma vez a credibilidade da obra, a utilizao de tal autoridade tanto pode ser psicolgica como

tcnica. Muito embora esta forma de escrever seja a norma no meio fundamentalmente tradicional do

autor, tambm permite construir o seu discurso na autoridade e no reconhecimento de antigos autores

reconhecidos dando assim ao seu trabalho, sua obra um valor muito mais aprofundado e que ser

mais valorizado e reconhecido, dado que ningum poria em causa tal autoridade. Por exemplo, uma

das mais importantes e reconhecidas autoridades so a Bblia e grandes escritos teolgicos.

Formou-se uma linha de continuidade que no se limitou a transmitir o que os anteriores deixaram em

registo escrito, mas que se constituiu em tradio que envolve investimento e partilha de todo um

patrimnio comum. Essa tradio tem um sentido dinmico que implica os que a recebem e a

relanam. Tanto admite reconhecimento de auctoritates como implica comprometimento e

responsabilidade de deixar que essas mesmas auctoritates, pelo facto mesmo de o serem, se

desdobrem em contnuas ampliaes, variaes ou metamorfoses e desencadeiem permutaes.

Contudo, a finalidade dum escritor no se baseava no facto de acumular auctoritates e de constituir

um esplio organisado de sbios sobejamente reconhecidos, mas de pr disposio um saber til e

utilisvel, tendo assim uma finalidade definida. Os escritores, tais como Marie de France, procuram

dar acesso a um nvel de lngua que permite acolher as auctoritates, dotando o idioma de lngua sbia.

No Prlogo, ela adverte o leitor de que vai narrar uma histria verdica, segundo lais que ouviu e que

so autnticos. A autora demonstra desde as primeiras linhas, a necessidade de afirmar que este

verdadeiro, recorrendo a autoridades mximas, para tal.

A primeira autoridade que aparece no prlogo dos Lais Deus, ou seja, a religio, a Igreja, a Bblia.

Esta autoridade sendo das mais antigas no pode ser desmentida e s pode dar confianao ao leitor /

receptor da mensagem, fala-se da cincia que todos recebem e a obrigao de a partilhar porque Deus

deu-a sem nada em troca. Outra autoridade referida o gramtico Prisciano, este tambm sendo um

marco importante, tendo sido um gramtico latino do Sculo VI e tendo dirigido uma escola famosa,

no poderia ser contraditado. A sua principal obra foi a sua gramtica (Institutiones grammaticae)

que esteve na base do ensino at ao renascimento das letras. A gramtica fora uma das disciplinas do

trivium que com o quadrivium formavam as artes liberais, base da educao na Idade Mdia. Ora, se

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 20 / 79

este gramtico esteve em toda essa base no poderia ser melhor refeerncia e ele prprio se referia

aos antigos, o que conjecturava um conhecimento j por si s bastante lato (dado que provavelmente

se tinha documentado para poder comentar).

Assim sendo a funo das autoridades no prlogo de Marie de France chamar a ateno e informar

da sua erudio, da sua sapincia para dar reconhecimento sua obra. Alm das autoridades citadas

que servem para dar autenticao sua obra, Marie de France ainda se serve dos ttulos, da poca e da

verosimilhana, sendo dados que a mesma fornece tambm para garantir a veracidade (ficcional) das

suas histrias. Em alguns Lais, ela refere que a aco se passa com bretes, o que quer dizer que se

situa na Bretanha, justificando assim a exactido por contacto prprio. Denotam-se, por exemplo,

estas referncias no Lai de Chievrefueil onde no verso 16 refere o sul do Pas de Galles, no verso 27

h tambm uma referncia Cornouaille. Este Lai ser tratado posteriormente com mais preciso.

Marie de France aborda os mitos e as utopias na sua narrativa no mbito cultural, histrico e social,

analisando o percurso de arqutipos maravilhosos e fantsticos formadores da matria de Bretanha.

Usa uma linguagem que articula a interseco entre valores propagados pela Antiguidade Clssica,

pela mitologia crist e pelas acepes oriundas da cultura cltica, tal como j foi referido

anteriormente.

Marie de France ainda escreve os seus lais em romance e no em latim, inaugurando assim a fico

medieval, mas levando tambm a que os textos possam ter uma abrangncia maior dado que

poderiam ser lidas por um pblico muito mais vasto. O latim sendo uma linguagem de eruditos e de

classes aristocrticas, Marie de FRance opta por escrever de maneira a que a sua obra chega a mais

leitores, opta assim por escrever na linguagem falada na corte considerando os textos folclricos

textos que merecem o mesmo prestgio dos outros precedentemente publicados como os da

Antiguidade. Da que se encontrem muitos factores populares nas suas obras, sem no entanto descurar

um estilo de composio. Os Lais so por isso um ponto de convergncia da cultura cannica, da

cultura tradicional, da cultura crist, da cultura cltica., sendo esta ltima a mais popular e pag. Dada

a sua posio, a escritora adopta opinies e pontos de vista nunca antes citados por uma mulher, com

a sua habilidade na retrica. Entre outras referncias encontramos, por exemplo, o misticismo cristo

misturado ao mundo maravilhos e fantstico dos bretes, povoado tambm pelas aventuras de Tristo

e Isolda e pelas reunies volta da Tvola Redonda, na busca do Graal, em lugares mgicos como

florestas, ilhas, reinos, onde reis, cavaleiros, fadas, gigantes, princesas, damas e outras personagens

fantsticas interagem em aventuras deslumbrantes. Toda uma ideologia de natureza cavalheiresca e

crist coincide nos Lais.

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 21 / 79

De facto, a argumentao que anteriormente se analisou aproxima-se muita daquelas que se podem

observar em grande nmero de textos medievais nos quais as referncias s autoridades como as das

Sagradas Escrituras e a dos filsofos gregos so constantes. Havia a necessidade de se reportarem a

alguma obra j escrita sobre um assunto, ou mesmo de afirmar a existncia da histria que se vai

contar.

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 22 / 79

IV - Noo de tranlatio concebida por Marie de France

A noo de translatio, (que pode ser interpretada como transferir, deslocar o seu saber, traduzir em

suma), pode ser concebida como um exerccio pessoal na significao de Marie de France. A sua

subjectividade enquanto autora mais patente do que a sua identidade que pouco revela a no ser a

referncia ao seu nome e local, como j se referiu anteriormente. Esta noo de translatio constri-se

nos textos e por eles, as narraes esto situadas geograficamente na margem colonial anglo-

normanda de cultura francesa. Semioticamente, situa-se nos limites de uma cultura textual dominada

pelo homem. Os apontadores textuais, s margens do prlogo e do eplogo demarcam a localizao de

Marie de France nos hibridismos lingusticos e geogrficos. A autora preocupa-se com as paridades

do texto ao transformar a aventura em lai, este em poema (breto ou francs), referindo sempre o

incumbncia e a indispensabilidade da memria rememorar as palavras, lembrar para que no seja

extinto. A reminiscncia compe o idealismo do texto. A sua narrativa baseia-se no que ela ouvira e

vivera do imaginrio cltico, com perspicazes razes mitolgicas, que pouco a pouco se moldaram ao

cristianismo emergente. Maria pretendia assim interpretar o mundo real atravs do imaginrio. Da

que a concepo de traduo do latim ao breto e nomeadamente ao francs se tornasse necessria

para chegar a todos e no apenas aos eruditos. Marie de France cogitou e considerou bem que o

translatio encaminharia para mais pblico, logo mais preeminncia da ocorrncia da obra, logo mais

conhecimento disperso, divulgado pela esfera medieval, circulando atravs dos tempos, alis, o que

aconteceu, dado que ainda hoje, neste sculo, os escritos correram mundo chegando at ns muito

mais facilmente do que se inicialmente apenas se registassem em latim. No que os registos em latim

se perdessem no tempo, mas naquela poca, apenas seriam lidos e estudados por doutos e Marie de

France queria que chegassem a todos. A linguagem, assim sendo, actua como veculo de normas

tericas e prticas dando lugar a um gnero didctico, de base eclesistica. Como j se disse

anteriormente a tradio secular de translatio foi referida no prlogo dando assim informao que

Marie de France j entendia esses mtodos mas queria ir mais alm dos mesmos, em vez de traduzir

textos do latim preferiu recontar por escrito lais que escutara. At porque a traduo, na sua acepo

tradicional, remete para uma actividade impessoal e transparente, tendo o dever de transmitir com

objectividade os sentidos das intenes dos textos, devendo-se a correspondncia, a equivalncia e a

fidelidade ao texto original. No entanto, Marie de France queria alm de transmitir os lais, pr o seu

cunho pessoal, fazer um texto que a representasse, que remetesse a ela, da que se encontrem

referncias ao seu nome, o que permitiu denotar a autora, e referncias a local onde esteve.

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 23 / 79

V - Comparao da concepo de translatio de Marie de France no prlogo de Cligs de Chrtien de Troyes

Tambm no se sabe quase nada de Chrtien de Troyes, do maior romanceiro francs da Idade

Mdia. Poeta francs da Idade Mdia o seu nome aparece ligado ao ciclo dos grandes romances

arturianos. Supe-se que tenha frequentado as aulas de Marie de Champagne e de Philippe dAlsace,

conde de Flandres. A sua cultura instruda parece indicar uma formao de clero. Era um judeu que se

converteu ao cristianismo, provavelmente vindo da o seu pseudnimo Chrtien, j que poucos

autores deste perodo assinavam seus manuscritos. Alguns textos deixam transparecer uma certa

inspirao baseada no ocultismo. considerado um dos primeiros escritores do romance corts /

romance de cavalaria, nos quais o mito se unem histria para construir a narrativa com eventos ora

na esfera real, ora surreais.

Entre muitos dos seus romances, ter escrito tambm Cligs20

(por volta de 1176), nos quais

encontramos aventuras de cavaleiros que so os heris desses romances e que tm claro est um

sentido simblico que a busca duma identidade. O amor tambm tem o seu lugar nesses romances.

Nos prlogos dos seus romances em geral, o romanceiro expe de forma clara os grandes princpios

da sua potica, que tambm so os princpios do romance dessa poca. Essa potica articula-se volta

de trs noes: a matria (o assunto), fornecido atravs de fontes orais ou escritas, o sentido (a

direco, a orientao geral), frequentemente imposta pelo mandatrio e a conjuntura (a composio)

que d coerncia e unidade e que faz do romance uma obra de arte. Pela primeira vez, com Chrtien

de Troyes, fala-se de uma obra no sentido vasto. Os seus romances formam um conjunto coerente,

com constantes e rupturas. Distinguem-se atravs de estilo e tonalidade prprios: um gnero com

humor e poesia.

20

Para saber mais podem-se consultar os sites . http://www.a-enciclopedia-livre.info/?title=Clig%C3%A8s ; . http://www.a-enciclopedia-livre.info/?title=Chr%C3%A9tien_de_Troyes ;

. http://books.google.pt/books?id=fCC-wB_mPjcC&pg=PA187&lpg=PA187&dq=pr%C3%B3logo+de+Clig%C3%A8s+de+Chr%C3%A9tien+de+Troyes&source=bl&ots=4EUlNZkD4m&sig=KxVRRPg04mXJvQWAhShEtTnDL9Y&hl=pt-

BR&ei=BJdhSo_KOOGfjAec86HzDw&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=4 ;

. http://209.85.229.132/search?q=cache:Xqf9221mSHkJ:repositorioaberto.univ-ab.pt/bitstream/10400.2/140/1/DISCURSOS%2520%E2%80%93%2520(D)escrever%2520a%2520Cidade51-

84.pdf+pr%C3%B3logo+de+Clig%C3%A8s+de+Chr%C3%A9tien+de+Troyes&cd=19&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=pt&lr=lang_fr|lang_pt ;

http://books.google.pt/books?id=KiR2j1q4JlgC&pg=PA142&lpg=PA142&dq=pr%C3%B3logo+de+Clig%C3%A8s+de+Chr%C3%A9tien+de+Troyes&source=bl&ots=MLGt-6Hf8l&sig=0IqBqILvVHdJ3UJEHdmnUdQcZIQ&hl=pt-

BR&ei=KJxhSqOsGtyMjAf2lczyDw&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=4 ;

http://www.a-enciclopedia-livre.info/?title=Clig%C3%A8shttp://www.a-enciclopedia-livre.info/?title=Chr%C3%A9tien_de_Troyeshttp://books.google.pt/books?id=fCC-wB_mPjcC&pg=PA187&lpg=PA187&dq=pr%C3%B3logo+de+Clig%C3%A8s+de+Chr%C3%A9tien+de+Troyes&source=bl&ots=4EUlNZkD4m&sig=KxVRRPg04mXJvQWAhShEtTnDL9Y&hl=pt-BR&ei=BJdhSo_KOOGfjAec86HzDw&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=4http://books.google.pt/books?id=fCC-wB_mPjcC&pg=PA187&lpg=PA187&dq=pr%C3%B3logo+de+Clig%C3%A8s+de+Chr%C3%A9tien+de+Troyes&source=bl&ots=4EUlNZkD4m&sig=KxVRRPg04mXJvQWAhShEtTnDL9Y&hl=pt-BR&ei=BJdhSo_KOOGfjAec86HzDw&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=4http://209.85.229.132/search?q=cache:Xqf9221mSHkJ:repositorioaberto.univ-ab.pt/bitstream/10400.2/140/1/DISCURSOS%2520%E2%80%93%2520(D)escrever%2520a%2520Cidade51-84.pdf+pr%C3%B3logo+de+Clig%C3%A8s+de+Chr%C3%A9tien+de+Troyes&cd=19&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=pt&lr=lang_fr|lang_pthttp://209.85.229.132/search?q=cache:Xqf9221mSHkJ:repositorioaberto.univ-ab.pt/bitstream/10400.2/140/1/DISCURSOS%2520%E2%80%93%2520(D)escrever%2520a%2520Cidade51-84.pdf+pr%C3%B3logo+de+Clig%C3%A8s+de+Chr%C3%A9tien+de+Troyes&cd=19&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=pt&lr=lang_fr|lang_pthttp://books.google.pt/books?id=KiR2j1q4JlgC&pg=PA142&lpg=PA142&dq=pr%C3%B3logo+de+Clig%C3%A8s+de+Chr%C3%A9tien+de+Troyes&source=bl&ots=MLGt-6Hf8l&sig=0IqBqILvVHdJ3UJEHdmnUdQcZIQ&hl=pt-BR&ei=KJxhSqOsGtyMjAf2lczyDw&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=4http://books.google.pt/books?id=KiR2j1q4JlgC&pg=PA142&lpg=PA142&dq=pr%C3%B3logo+de+Clig%C3%A8s+de+Chr%C3%A9tien+de+Troyes&source=bl&ots=MLGt-6Hf8l&sig=0IqBqILvVHdJ3UJEHdmnUdQcZIQ&hl=pt-BR&ei=KJxhSqOsGtyMjAf2lczyDw&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=4

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 24 / 79

Assim, o pouco que se pde apurar foi que Chrtien de Troyes foi um escritor da Idade Mdia

considerado como um grande romanceiro francs e tambm como um dos primeiros autores de

romances de cavalaria. Nasceu em Troyes, da derivando o seu nome. A sua fonte de inspirao

encontra-se na tradio cltica et nas lendas brets (a matria da Bretanha). Contudo, Chrtien

confere-lhes uma dimenso crist, supe-se que fortemente impregnada pelas canes de gesta em

lngua de ol na segunda metade do sculo XII. O segredo da sua arte literria reside na sua

capacidade de reunir sabiamente a matria e o sentido. A sua grande cultura parece indicar uma

formao de clero. autor de cinco romances em versos: Erec et Enide (v. 1170), Cligs (v. 1176),

Le Chevalier de la Charrette (Lancelot) et Le Chevalier au Lion (Yvain) (v. 1178-1181) et Le Conte

du Graal (Perceval) (v. 1182-1190). As aventuras dos cavaleiros, heris destes romances, tm um

sentido simblico que o da busca da identidade, da queste. Muito embora o amor tambm tenha

um grande lugar, contrariamente a Marie de France, este apenas se realisa plenamente no casamento.

Ainda escreveu, canes de amor, supe-se que sejam consideradas as mais antigas conhecidas em

lngua de ol bem como um conto breve ovidiano denominado Philomena.

As suas obras so sobretudo adaptaes de fontes diversas e tm todas lugar na corte mtica do rei

Artur. Contudo, ele tambm foi um inovador criando a palavra Graal, sendo o primeiro a introduzir

a demanda de Perceval, uma personagem familiar aos seus primeiros poemas.

Cligs o segundo romance corts de Chrtien de Troyes, escrito por volta de 1176, faz parte da obra

romanesca que Chrtien de Troyes desenvolve.

Eis um exerto, sendo analisado o prlogo.

http://gallica.bnf.fr/catalog?CT=N101432

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 25 / 79

1 Cil qui fist d'Erec et d'Enide, 2 Et les comandemanz d'Ovide

3 Et l'art d'amors an romans mist, 4 Et le mors de l'espaule fist,

5 Del roi Marc et d'Ysalt la blonde,

6 Et de la hupe et de l'aronde 7 Et del rossignol la muance,

8 Un novel conte rancomance

9 D'un vaslet qui an Grece fu 10 Del linage le roi Artu.

11 Mes ainz que de lui rien vos die,

12 Orroiz de son pere la vie, 13 Dom il fu et de quel linage.

14 Tant fu preuz et de fier corage

15 Que por pris et por los conquerre 16 Ala de Grece an Engleterre,

17 Qui lors estoit Bretaigne dite.

18 Ceste estoire trovons escrite, 19 Que conter vos vuel et retraire,

20 En un des livres de l'aumaire

21 Monseignor saint Pere a Biauvez ;

22 De la fu li contes estrez

23 Qui tesmoingne l'estoire a voire,

24 Por ce fet ele mialz a croire. 25 Par les livres que nos avons

26 Les fez des anciens savons

27 Et del siegle qui fu jadis. 28 Ce nos ont nostre livre apris

29 Qu'an Grece ot de chevalerie

30 Le premier los et de clergie : 31 Puis vint chevalerie a Rome

32 Et de la clergie la some,

33 Qui or est an France venue. 34 Dex doint qu'ele i soit maintenue

35 Et que li leus li abelisse

36 Tant que ja mes de France n'isse 37 L'enors qui s'i est arestee.

38 Dex l'avoit as altres prestee,

39 Car des Grezois ne des Romains 40 Ne dit an mes ne plus ne mains,

41 D'ax est la parole remese

42 Et estainte la vive brese. 43 Crestiens comance son conte,

44 Si con li livres nos reconte,

45 Qui trez fu d'un empereor 46 Puissant de richesce et d'enor,

47 Qui tint Grece et Costantinoble.

48 Empereriz ot cointe et noble, 49 Don l'emperere ot .ii. enfanz.

50 Mes ainz fu li premiers si granz

51 Que li autres nessance est 52 Que li premiers, se lui plest,

53 Post chevaliers devenir 54 Et tot l'empire maintenir.

55 Li premiers ot non Alixandres,

56 Alis fu apelez li mandres. 57 Alixandres ot non li pere

58 Et Tantalis ot non la mere.

59 De l'empereriz Tantalis, 60 De l'empereor et d'Alis

61 La parole a tant lesseron ;

62 D'Alixandre vos conteron, 63 Qui tant fu corageus et fiers

64 Que il * deigna chevaliers

65 Devenir an sa region. 66 O ot feire menssion

67 Del roi Artus qui lors reignoit

68 Et des barons que il tenoit 69 An sa conpaignie toz jorz,

70 Par qu'estoit dotee sa corz

71 Et renomee par le monde. 72 Comant que la fins l'an responde

73 Et comant que il l'en aveingne,

74 N'est riens nee qui le deteingne 75 El mont que n'an voist an Breteingne.

76 Mes ainz est droiz que congi preingne 77 A son pere que il s'an aille

78 An Bretaigne n'an Cornoaille. 79 Por congi prandre et demander

80 Va a l'empereor parler.

81 Alixandres li biax, li preuz, 82 Ja li dira quex est ses veuz

83 Et que il vialt feire et anprandre :

84 Biau pere, por enor aprandre 85 Et por conquerre pris et los,

86 Un don, fet il, querre vos os,

87 Que je vuel que vos me doingniez ; 88 Ne ja ne le me porloigniez

89 Se otroier le me devez.

90 De ce ne cuide estre grevez 91 L'empereres ne po ne bien :

92 L'enor son fil sor tote rien

93 Doit il voloir et covoitier. 94 Mout cuideroit bien esploitier ;

95 Cuideroit ? et si feroit il,

96 S'il acroissoit l'enor son fil.

97 Biax filz, fet il, je vos otroi

98 Vostre pleisir, et dites moi

99 Que vos volez que je vos doingne. 100 Or a bien feite sa besoingne

101 Li vaslez, qui mout an fu liez

102 Qant li dons li fu otroez 103 Qu'il tant desirroit a avoir.

104 Sire, fet il, volez savoir

105 Que vos m'avez acreant ? 106 Je vuel avoir a grant plant

107 De vostre or et de vostre argent,

108 Et conpaignons de vostre gent 109 Tex con je les voldrai eslire ;

110 Car issir vuel de vostre empire,

111 S'irai presanter mon servise 112 Au roi qui Bretaingne justise,

113 Por ce que chevalier me face.

114 Ja n'avrai armee la face 115 Ne hiaume el chief, jel vos plevis,

116 A nul jor que je soie vis,

117 Tant que li rois Artus me ceingne 118 L'espee, se feire le deingne,

119 Car d'autrui ne vuel armes prandre.

120 L'empereres, sanz plus atandre, 121 Respont : Biax filz, por Deu ne dites !

122 Cist pas est vostres toz quites,

123 Et Costantinoble la riche. 124 Ne me devez tenir por chiche,

125 Qant si bel don vos vuel doner.

126 Demain vos ferai coroner 127 Et chevaliers seroiz demain.

128 Tote Grece iert an vostre main 129 Et de noz barons recevrez,

130 Si con reoivre les devez,

131 Les seiremanz et les homages. 132 Qui ce refuse il n'est pas sages.

133 Li vaslez antant la promesse

134 Que l'andemain aprs la messe 135 Le vialt ses peres adober,

136 Et dit qu'il iert malvs ou ber

137 En autre pas que el suen. 138 Se vos feire volez mon buen

139 De ce que je vos ai requis,

140 Or me donez et veir et gris 141 Et boens chevax et dras de soie ;

142 Car einois que chevaliers soie,

143 Voldrai servir le roi Artu ; 144 N'ai pas ancor si grant vertu

145 Que je posse armes porter.

146 Nus ne m'an porroit retorner, 147 Par proiere ne par losange,

148 Que je n'aille an la terre estrange

149 Veoir le roi et ses barons, 150 De cui si granz est li renons

151 De corteisie et de proesce.

152 Maint haut home par lor peresce 153 Perdent grant los qu'avoir porroient

154 Se par la terre cheminoient. 155 Ne s'acordent pas bien ansanble

156 Repos et los, si con moi sanble,

157 Car de nule rien ne s'alose 158 Riches hom qui toz jorz repose,

159 Ensi sont contraire et divers.

160 Et cil est a son avoir sers 161 Qui toz jorz l'amasse et acroist.

162 Biau pere, tant con il me loist

163 Los conquerre se je tant vail, 164 I vuel metre poinne et travail.

165 De ceste chose sanz dotance

166 L'emperere ot joie et pesance : 167 Joie a de ce que il antant

168 Que ses filz a proesce antant,

169 Et pesance, de l'autre part, 170 De ce que de lui se depart.

171 Mes por l'otroi qu'il en a fait,

172 Quelque pesance qu'il en ait,

173 Li covient son boen consantir,

174 Qu'ampereres ne doit mantir.

175 Biax filz, fet il, lessier ne doi, 176 Puis qu'a enor tandre vos voi,

177 Que ne face vostre pleisir.

178 An mes tresors poez seisir 179 D'or et d'argent plainnes deus barges,

180 Mes mout covient que soiez larges.

181 Or est li vaslez bien heitiez 182 Et cortois et bien afeitiez,

183 Qant ses peres tant li promet

184 Qu'a bandon ses tresors li met 185 Et si l'enore et li comande

186 Que largement doint et despande,

187 Et si li dit reison por coi : 188 Biax filz, fet il, de ce me croi

189 Que largesce est dame et rene

190 Qui totes vertuz anlumine, 191 Ne n'est mie grief a prover.

192 A quel bien cil se puet torner,

193 Ja tant ne soit puissanz ne riches, 194 Ne soit honiz se il est chiches ?

195 Qui a tant d'autre bien sanz grace

196 Que largesce loer ne face ? 197 Par soi fet prodome largesce,

198 Ce que ne puet feire hautesce

199 Ne corteisie ne savoir 200 Ne gentillesce ne avoir

201 Ne force ne chevalerie

202 Ne proesce ne seignorie 203 Ne biautez ne nule autre chose ;

204 Mes tot ausi come la rose 205 Est plus que nule autre flors bele,

206 Qant ele neist fresche et novele,

207 Einsi la ou largesce avient, 208 Desor totes vertuz se tient

209 Et les bontez que ele trueve

210 An prodome qui bien se prueve 211 Fet a .v.c. dobles monter.

212 Tant a en largesce a conter

213 Que n'an diroie la miti. 214 Bien a li vaslez esploiti

215 De quanqu'il a quis et rov,

216 Car ses peres li a rov 217 Tot ce qu'il li vint a creante.

()

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 26 / 79

Nos prlogos dos seus romances, o romanceiro expe de uma forma clara os grandes princpios da

sua potica que tambm so os princpios do romance desta poca. A potica desta poca articula-se

volta de trs noes: a matria ou o assunto, fornecida por fontes orais ou escritas, o sentido ou a

direco, orientao geral que frequentemente imposta pelo comanditrio e a conjuntura ou a

composio que d coerncia e unidade e que faz do romance uma obra de arte, tal como em Marie

de FRance. com Chrtien de Troyes que se pode falar de obra no seu sentido mais puro e mais

lato: os seus romances formam um conjunto coerente, com constantes e rupturas. Distinguem-se por

um estilo e uma tonalidade prprios: um gnero de distncia repleto de humor e de poesia.

Geralmente, o prlogo permite ao autor relembrar a dignidade e a importncia da matria da sua obra.

Assim, justifica de certa forma a escolha do assunto e d preciso da regulamentao do seu projecto

de escrita, orientando o leitor e dando-lhe indicaes sobre o sentido da sua obra. Por vezes, o autor

at lembra o seu papel e glorifica os seus mritos.

Chrtien de Troyes enumera no prlogo de Cligs as suas obras anteriores agregando as tradues de

Ovido e os romances bretes, como se a unidade prevalescesse a seus olhos sobre a disparidade dos

assuntos e das fontes.

no prlogo deste romance, Cligs, tratado neste captulo que Chrtien de Troyes faz referncia s

obras:

1 Cil qui fist d'Erec et d'Enide,

2 Et les comandemanz d'Ovide

3 Et l'art d'amors an romans mist,

4 Et le mors de l'espaule fist,

5 Del roi Marc et d'Ysalt la blonde,

6 Et de la hupe et de l'aronde

7 Et del rossignol la muance,

8 Un novel conte rancomance

(O que escreveu a histria de Erec e de Enide, o que pos em francs (lngua romance) os

Comandamentos de Ovdio e a Arte de Amar, o que fez a mordidela de serpente no ombro, aquele

que contou a histria do rei Marc e de Isolda a loira, a da metamorfose da andorinha e do rouxinol,

comea um novo conto.)

O prlogo de Cligs fornece-nos uma lista de obras tais como Erec e Enide (no verso 1); uma

traduo Ovide (no verso 2); A Arte de Amar (no verso 3); A Dentada no ombro (no verso 4),

un conto do rei Marc e de Isolda a loira (no verso 5); a metamorfose do pssaro, da andorinha e do

rouxinol (nos versos 6 e 7), o que faz de Chrtien de Troyes um autor bastante produtivo e assim, o

escritor d-nos a conhecer as suas obras. Tambm nos encontramos perante um homem do clero,

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 27 / 79

formado pela Igreja que domina o latim (denota-se na traduo de Ovdio), que frequentou a

biblioteca da Igreja de So Pedro de Beauvais (no verso 21). Em Cligs, Chrtien de Troyes recorre

ao tema da translatio studii inovador (nos versos 25 45), onde podemos encontrar a migrao dos

saberes, o deslocamento da civilizao de Atenas a Roma e no ocidente cristo.

Mais ou menos dez anos antes de Broul, j referido neste trabalho, Chrtien de Troyes escreve as

aventuras de Tristo e Isolda. Contudo no h vestgios deste escrito enquanto que o de Broul deixou

indcios. No entanto, cinco romances de Chrtien de Troyes, chegaram at ns, pertencendo ao ciclo

arturiano e tratando da matria de Bretanha. Atravs da sua obra pode constatar-se que Chrtien de

Troyes se demarca dos outros autores da poca medieval pois para ele o amor no uma maldio ou

uma fatalidade que rima com sofrimento mas sim antes um sentimento de amor que permite o

florescimento de si. Assim, Fenice, a herona de Cligs, contrariamente a Isolda, consegue conciliar o

seu amor pelo seu marido e o que sente pelo seu amante.

Nos seus romances, Chrtien de Troyes, descreve aventuras hericas que apenas se encontra a para

exaltar o ego, no sendo nem tendo uma finalidade prpria. Os seus heris so cavaleiros errantes que

vo de aventura em aventura para se realizarem. Gostam de se ultrapassar a si prprios, pondo as suas

aces ao servio de uma causa nobre.

Em Cligs, o romance dividido em duas partes. A primeira narra a histria de Alexandre, filho do

Imperador de Constantinopla, que, em resumo, aps inmeras aventuras sempre acompanhadas de

especulaes sobre o sentido do amor, casa-se com Soredamor, dama de companhia da rainha

Guinevere e com ela tem um filho: Cligs. Aps a morte do Imperador, seu pai, Alexandre estabelece

um acordo com Alis, seu irmo: Alis herdaria a coroa mas estaria impedido de se casar. Deste modo

Cligs, seu sobrinho, o filho de Alexandre, seria, um dia, seu susbtituto, assumindo o comando do

imprio. O tempo passa. Alexandre morre e Cligs j est com quinze anos. No respeitando o

combinado, o seu tio Alis decide casar-se com Fenice, filha do Imperador da Alemanha. Alis viaja

para Colnia, com uma comitiva da qual faz parte Cligs, para concretizar o casamento. Em Colnia,

num primeiro e ardente olhar, Fenice e Cligs descobrem que esto apaixonados. Um, porm, no

sabe da paixo do outro. A princesa fica deprimida e angustiada por ter que casar com um homem e

estar apaixonada por outro. Vendo a dor da moa, sua ama, entendida em magia, prepara filtros e

encantamentos de modo que com o imperador a jovem no precisar ter cautela nem receio. Podero

deitar-se juntos. Ao lado do esposo ela estar em segurana, como se entre ambos existisse uma

parede. Isso no causar ao imperador a menor contrariedade, pois durante o sono ele ter o prazer de

sua mulher. Nunca suspeitar que sonho, logro, mentira. O casamento realiza-se e assim Fenice,

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 28 / 79

apesar de casada e de se deitar todas as noites com o marido, permanece virgem. Tempos depois,

Cligs encontra-se a ss com Fenice, os dois conversam e descobrem, encantados, o amor que um

nutre pelo outro. Os enamorados apaixonados fazem um plano. Fenice, usando de novo os filtros

mgicos de sua ama, finge-se de doente e depois de morta. Os melhores mdicos so chamados mas

no conseguem vencer a estranha doena da moa que definha e acaba morrendo. Cligs manda fazer

um caixo especial de modo que ela possa respirar. A princesa, enterrada numa cerimnia fnebre,

mais tarde desenterrada pelo amante. Os dois passam a viver escondidos numa torre. Aps alguns

meses de amor e felicidade so denunciados e acabam perseguidos pelo Imperador que, furioso,

descobre tudo, inclusive que nunca desfrutara da sua esposa. Cligs pede ajuda ao rei Artur para

combater o tio mas acaba recebendo a notcia de que este faleceu de desgosto. Retornando

triunfalmente a Constantinopla, casa-se finalmente com a bela Fenice.

Nos outros romances do autor o amor desenvolve-se, ou dentro do casamento como os casais Erec e

Enide, Yvain e Laudine, Perceval e Brancaflor - ou tem, no casamento, a recompensa aps lutas e

sofrimentos como o caso presente de Cligs e Fenice.

Uma narrativa como esta, pode facilmente ser comparada a muitos contos populares, seno vejamos:

h uma injustia inicial que precisa ser remediada; h um homem e uma mulher lutando para

concretizar o seu amor; h foras desconhecidas modificando a realidade; h o ardil e a astcia; os

heris so ajudados por uma pessoa que, como as fadas, detm poderes desconhecidos e magia; a

princesa/rainha finge-se de morta para ser salva pelo prncipe (relembre-se A bela adormecida, A

Branca de Neve e tantas outras princesas vtimas de algum tipo de encanto ou quebranto, salvas pelo

amor do prncipe. Relembre-se ainda Romeu e Julieta, de Shakespeare, tambm inspirada em antigas

narrativas mas j com um desfecho que instiga tragdia); recorre ao final feliz. Assim, Os

romances do ciclo arturiano, como vimos, podem ser associados a antigas narrativas mticas.

Chrtien de Troyes to refinado quanto civilizado, seus escritos sendo repletos de impulsos e

reservas sbitas, enquanto problemas de conscincia e de emoo que confronta nas suas obras so

to complexos quanto o estudo da poca. No h no entanto nenhuma separao entre o romance

breto e o romance psicolgico-analtico. Ambos se podem entrelaar. Tudo numa mescla de amor,

conhecimento, fontes, provenalismo, subtileza, misticismo, tudo incorporado numa destreza

maravilhosa e fantstica, tal como Marie de France.

Um retorno Grcia, assim se define Cligs. O inventor do romance breto deixa-se levar pelas

lembranas de Troie e de Thbes, de Tantale e de Alexandre, de Mde e das mgicas de Thelassie,

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 29 / 79

antes de explorar a floresta de Brocliande no encalo da Fada amante. Nas metamorfoses dOvide,

ele ope a sua, a mudana do pssaro de Heliopolis cuja Phnice, a sua herona, carrega e bem o seu

nome. O amor no declina mais no modo de uma paixo fatal, que se estraga na morte, ele obra de

vida e nascimento novo. Cligs opera a transmutao de Tristo e Isolda. (Tal como em Marie de

France, a obra recorre a este mito lendrio). Sem nada ignorar da obra das trevas, das torres de iluso

nem das vias do errisrio: a histria da falsa morte lembra a mulher de Salomo e enuncia Romeu e

Julieta.

Em Cligs, o alicerce do conto remete para uma lenda oriental cuja herona habitual a mulher de

Salomo, tirada ao seu marido por um amante ( o que nos remete de imediato para o cenrio de

Chevrefueil, onde Isolda retirada a seu marido, muito embora mais subtilmente e pela via do Amor,

pelo amante Tristo). Chrtien de Troyes que tinha posto na moda e na vanguarda o romance breto,

conduziu os seus heris gregos corte de Artur e fez-lhes tomar parte no seio dos cavaleiros da

Tvola Redonda. Os poetas da Idade Mdia gostavam de relatar aventuras sucessivas de vrias

geraes, e Chrtien conta extensamente os amores de Alexandre, pai de Cligs, e o seu casamento

com Soredamor, irm de Gauvain, antes de chegar ao fundamental: a histria de Cligs e de Fenice.

A personagem de Fenice sendo tratada com muita delicadeza, parece que o autor Chrtien se tenha

aplicado a dissimular, a apagar, o que havia de escabroso neste adultrio entre um sobrinho e a

mulher do seu tio. O marido, este (de nome Alis), usurpou a coroa imperial pertencendo

legitimamente a Cligs. Fenice, que amava j o jovem antes do seu casamento, repugna-se a pertencer

a dois homens, tal como Isolda, infeliz no seu casamento, amando antes Tristo. Fenice, ajudada pela

fiel Thelassa, tal como Isolda ajudada pela sua aia, apenas quer ser mulher de um homem pelo menos

no corao. Assim encontramos em Cligs de Chrtien de Troyes uma certa similitude que

reencontramos no Chvrefueille de Marie de France, ambos os contos remetendo para a lenda de

Tristo e de Isolda.

No entanto, no texto de Chrtien, predominam influncias das canes de gesta, no abordadas na

escrita de Marie de France. Por exemplo, em Chrtien, detemos a brutalidade de certas cenas, o

prazer da descrio das batalhas, dos duelos, o que no acontece em Marie de France onde tudo se

desenvolve de uma forma muito breve, sem descries, passando de imediato ao essencial.

No entanto, a descrio feita por Chrtien de Troyes, no sculo XII, de Cligs, a herica personagem

de sua obra Cligs uma exposio bastante relatada. Apaixonado pela bela Fenice, noiva e, depois,

esposa de seu tio: o rei, Cligs enfrenta tudo e todos, usa de coragem, da magia e do ardil para

conseguir ficar com Fenice para si. Contrariamente, Marie de France tem descries bastante

Maria Clara de S Couto Wildschtz 2008 @ 2009 30 / 79

sucintas, descuidando o debuxo bsico, o que no tira nada compreenso do texto, nem to pouco

sua beleza.

Cligs, redigido por volta de 1176 (logo aps os escritos de Marie de France), depois de Erec e

Enide, mas antes de Yvain, Lancelot e Perceval, Cligs no , contrariamente a estes quatro contos,

um romance arturiano porque os dois heris, Alexandre e o seu filho Cligs so gregos e vivem em

Constantinopla. Chrtien f-los evoluir entre Constantinopla, a sua ptria e a Bretanha do rei Artur,

num vaivm perptuo entre o Este o o Oeste, entre o Ocidente e o Oriente e reunindo na personagem

de Cligs, o neto do imperador de Constantinopla e o neto-sobrinho do rei Artur. Neste quadro

oriental, Chrtien entrelaa uma histria de amor decalcada da lenda de Tristo e de Isolda (que

encontramos anteriormente tambm em Marie de France).

No prlogo de Cligs, Chrtien de Troyes afirma estar a escrever a histria que encontoru num

manuscrito, manuscrito esse que encontrou na Biblioteca de So Pedro de Beauvais, pelo que a sua

histria atestava a sua veracidade e merecia o crdito dos ouvintes.

18 Ceste estoire trovons escrite,

19 Que conter vos vuel et retraire,

20 En un des livres de l'aumaire

21 Monseignor saint Pere a Biauvez ;

22 De la fu li contes estrez

23 Qui tesmoingne l'estoire a voire,

24 Por ce fet ele mialz a croire.

25 Par les livres que nos avons

26 Les fez des anciens savons

27 Et del siegle qui fu jadis.

Tal como em Marie de France, Chrtien de Troyes quer assegurar a fidelidade e exactido das suas

fontes, remetendo para onde as histrias foram retiradas e assim confirmando que no estava a

inventar o que escrevia. No entanto, enquanto que Marie de France remete para histrias

essencialmente ouvidas e pouco refere os escritos (m