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10-06-2017 | Revista E E 42 Cobaias de Salazar Manter no mar a frota do bacalhau durante a II Guerra Mundial foi uma das mais temerárias decisões de Salazar. As consequências foram dramáticas, com a morte de dezenas de pescadores bombardeados por submarinos nazis

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10-06-2017 | Revista E

E 42

Cobaias de SalazarManter no mar a frota do bacalhau durante a II Guerra Mundial foi uma das mais temerárias decisões de Salazar. As consequências foram dramáticas, com a morte de dezenas de pescadores bombardeados por submarinos nazis

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madrugada antecipara a tragédia. As garras da ino-minável e definitiva escuridão aproveitaram a ma-drugada para tocar de raspão o casco do navio “Ma-ria da Glória”, saído de Lisboa a 18 de maio de 1942 em direção à Terra Nova. Em plena II Guerra Mun-dial, e devido a uma temerária determinação de Oli-veira Salazar, os barcos portugueses do bacalhau, o “pão do mar”, como lhe chamavam os ideólogos do regime, eram os únicos a aventurar-se por um Atlântico completamente armadilhado de subma-rinos artilhados com poderosas armas prontas a se-rem disparadas.

Ninguém dormiu naquela frágil embarcação quando comparada com a incontrolável fúria de uma tempestade sem fim. Feita de ventos cortantes. Granizo a martirizar os corpos dos homens espan-tados com tanta violência. As ondas agigantavam--se a cada instante. Tudo parecia perdido e, no en-tanto, a natureza acaba por se revelar magnânima. Cumpre-se o destino. Depois da tempestade, acari-cia-os o doce sabor da bonança. Prossegue a viagem com o horizonte longínquo a servir de tranquilizan-te para homens cansados, assustados, mas determi-nados a chegar aos “bancos” de pesca do chamado “fiel amigo”.

Começava a tarde daquele dia 5 de junho a es-preguiçar-se na lenta letargia da despida imensidão que sempre veste o mar alto, quando um sobressalto a todos desperta. Poderá ter havido um instante de hesitação, logo desfeito ao ser claro que aquela espé-cie de trovão cujo ruído desabara sobre o lugre era, na realidade, o eco do disparo de uma peça de arti-lharia. Vem de longe e não há tempo para elaboradas

reflexões, tamanhos e tão intensos são os disparos. Estilhaços caem sobre o “Maria da Glória”. O capitão Sílvio Ramalheira dá ordens para pararem o navio e hastearem mais uma bandeira portuguesa, país neu-tral no conflito. De nada adianta. O bombardeamen-to prossegue, imperturbável. O ataque é dirigido sem equívocos ao lugre português.

Há já três feridos a bordo. Os tiros atingem o bar-co. Há risco de ficar partido a meio. Caem granadas. Sucedem-se os rombos. O capitão decide-se pelo inevitável. Todos ao mar. Os pescadores lançam à água nove dóris — pequenas e frágeis embarcações destinadas a um só homem — nos quais embarcam os 44 tripulantes do navio. Sem mantimentos nem agasalhos ou qualquer material de apoio. O ataque provém de um submarino situado a mais de uma mi-lha de distância. Dado o golpe fatal responsável pelo afundamento do “Maria da Glória”, é lançada uma última granada em direção aos dóris. Não provoca nenhuma baixa.

Em mar alto, isolados, sem nada à vista, estão nove botes. Apenas um deles leva quatro homens. Em cada um dos restantes oito amontoam-se cinco pes-cadores. Navegam sem meios durante a tarde e noite, na esperança de encontrarem um dos navios que os seguiam. No dia seguinte, passam uma fase de vento e mar contrário, até conseguirem rumar, à vela, em direção às costas da Terra Nova ou do Labrador. São horas e dias penosos. Manterem-se em equilíbrio nos dóris é uma proeza. Conseguirem sobrevier à fome, ao frio, à sede, é do domínio do inverosímil.

Nos primeiros cinco dias conseguem conser-var-se juntos durante o dia. À noite, cada um fica

ATEXTO

VALDEMAR CRUZ

um país que através das agitações desonradas da hora presente tem sabido manter o rigor de uma situação de neutralidade absoluta e reconhecida por todos os contendores”.

O “Diário de Notícias” titula que “A nação intei-ra repele mais este atentado à nossa honra e neutra-lidade”. Cinco dias depois, o “Século” publica com destaque na primeira página um texto apologético dos pescadores e da faina marítima intitulado “As Lá-grimas de Ílhavo”. Ali se sentencia que “quem mata pescadores comete dois crimes: mata sem precisar e mata heróis. Porque é mais heroico este mister, que arrisca, a cada minuto, a vida, para manter a vida dos semelhantes — do que a defesa vulgar da vida ou da terra que leva a matar para não ser morto”.

Em poucas linhas fica patente o programa ideológico do regime, assente numa neutralidade tolerada e na glorificação da pesca do bacalhau. Daí a incompreensão absoluta pelo sucedido. Daí o rancor para com o inimigo não identificado, que não com-preenderia o destino contido na saga de homens va-lorosos, dispostos a um sacrifício ímpar para irem à Gronelândia e à Terra Nova fazer o que todos os ou-tros países tinham abdicado de fazer.

A verdade, porém, é que Salazar, ao decidir não suspender a campanha do bacalhau durante a II Guerra Mundial, tomara uma decisão demasiado te-merária, cujas consequências se tornavam evidentes, mesmo se ninguém a ousava questionar em público. Houve dúvidas na oligarquia das pescas e no Estado--Maior Naval, assinala Álvaro Garrido, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coim-bra e autor do livro “O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau”. “Quando Portugal declara a sua neu-tralidade levanta-se a questão”, diz, da continuida-de da travessia do Atlântico pelos barcos portugue-ses. “Estavam em causa questões de segurança e de diplomacia internacional, muito delicadas e muito controladas por Londres.”

O regime inventa, então, a ideia de uma frota de paz, destinada a manter-se em laboração nos ma-res em guerra. O Estado-Maior Naval adverte que a zona de pesca dos navios portugueses, em particular a rota da Terra Nova, coincide em larga escala com a rota da guerra submarina. Logo, seria muito peri-goso manter a frota em laboração. Mantém-se, to-davia, como se percebe até da correspondência en-tre Henrique Tenreiro e Oliveira Salazar, uma per-severança insólita, teimosa, arriscada, responsável pela colocação em risco da vida das tripulações. Em

última instância, assegura Álvaro Garrido, “a deci-são de manter a frota no mar é do próprio Salazar, o que suscita alguma surpresa internacional”. Basta-rá referir que os navios espanhóis pararam em 1941.

O afundamento do “Maria da Glória” foi o mais trágico, porventura aquele ao qual mais se pode as-sociar uma narrativa com muito de épico, mas outros aconteceram. Três meses depois a frota bacalhoeira é de novo atacada. O “Delães” está de regresso a Lis-boa após 79 dias de pesca na Gronelândia. Vem com os porões a abarrotar com 9500 quintais (950 tone-ladas) graças também à inexistência de concorrên-cia de outros países. Às 9 horas da manhã do dia 11 de agosto de 1942 é atingido em cheio. Os 54 tripu-lantes abandonam o barco e, debaixo de fogo, acon-dicionam-se em 10 dóris. O submarino alemão U-94 acaba por se afastar sem provocar baixas humanas e a tripulação é recolhida no dia seguinte pelo baca-lhoeiro “Labrador”, também de regresso a Lisboa.

Segundo um levantamento feito pelo historiador Ricardo Silva, durante a II Guerra Mundial acaba-ram no fundo do mar, em vários pontos do Atlân-tico e do Mediterrâneo, 11 navios portugueses. “O primeiro afundamento de um barco português ocor-reu no Canal da Mancha, em plena Batalha de In-glaterra”, recorda Ricardo Silva. Uma das questões colocadas, em particular no caso do afundamento do “Maria da Glória”, passava pela tentativa de ex-plicação para o tido como inexplicável. Será neces-sário, porém, situar as condições em que navegava a frota portuguesa.

Um dos achados da propaganda do governo de Salazar passava por dois vetores. Para consumo in-terno criava-se o mito do “pescador-marinheiro”, na tentativa de estabelecer uma relação direta entre os navegadores das descobertas e os heróis da pesca do bacalhau. Como diz Álvaro Garrido, tratava-se de “uma épica historicista nacionalista da campanha do bacalhau, que estava a ser lançada e precisava de ser socializada”. Vem, de resto, na sequência da cam-panha do trigo, lançada em 1929, muito conhecida, mas um verdadeiro fracasso económico sem qual-quer continuidade.

No plano externo é tomada uma opção de gran-de impacto visual com a criação da chamada “fro-ta branca”. Para acentuar a sua condição neutral, os barcos portugueses da pesca do bacalhau são pinta-dos integralmente de branco, colocam bem visível a bandeira nacional e navegam em comboio, não obs-tante todos os inconvenientes e prejuízos associados a uma opção em tudo contrária ao bom desempenho de cada um dos navios.

Como corolário da estratégia, e porque um regi-me assente em coordenadas no essencial inspiradas na metodologia do fascismo italiano precisa de ações de massas, os barcos do bacalhau passam a partir to-dos de Lisboa após a celebração de uma missa campal nos Jerónimos, seguida de bênção das embarcações. É um ritual com elevada adesão, transformado em celebração da campanha do bacalhau, assente num programa de regime destinado a envolver toda a na-ção. A ação é definida, recorda Garrido, “com uma intencionalidade política de produzir e encenar um ritual nacionalista com uma coreografia claramente fascista e ao mesmo tempo clerical”.

Era tudo levado tão a peito que nenhum navio de pesca à linha podia deixar de participar na cerimónia da bênção. É na cerimónia de 1941 que Salazar pro-fere o célebre discurso em que afirma: “Não discuti-mos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua

FROTA BRANCA Os bacalhoeiros pintados de branco para assinalar a neutralidade portuguesa transformaram-se depois num bilhete-postal anacrónico, como era a pesca com recurso aos dóris

abandonado à sua sorte. Sem visibilidade, sem ins-trumentos de comunicação, a não ser a voz, come-çam alguns a dar sinais de fraqueza. Os dóris desa-parecem uns atrás dos outros. São homens tragados pelo mar. Nunca mais ninguém os vê.

A 14 de junho de 1942 estão já há nove dias per-didos no mar. São cada vez menos e a descrença apodera-se de todos. Até que um sinal lhes devolve a esperança. São avistados por um avião de patru-lha canadiano. Larga-lhes latas com refrescos e uma mensagem a comunicar que seria enviado socorro logo que possível. Naquele momento, dos nove dóris iniciais já só restam dois. Os pescadores estão esfo-meados. Aproveitam a chuva ocasionalmente caída durante a noite ou, numa alternativa de desespero, chegam a bochechar água do mar. Vivem dias e noites terríveis. Tentam animar-se uns aos outros, mas está a ser-lhes exigido um esforço sobre-humano. Um dos homens enlouquece ao ponto de preferir atirar-se ao mar a continuar a suportar aquele inferno.

O socorro demora. Apenas dois dias após a pas-sagem do avião, às 4h30 da madrugada do dia 16, os oito pescadores portugueses são recolhidos pelo na-vio patrulha dos EUA “Sea Cloud”. Até desembar-carem em Boston, permanecem a bordo durante 35 dias, durante os quais nunca lhes é dada autorização para comunicarem o seu salvamento. Nos EUA são entregues aos cuidados do cônsul de Portugal, mas só depois de interrogados pelas autoridades navais nor-te-americanas, interessadas em identificar o sub-marino atacante. Não são capazes de o fazer. Quan-do chegam a Portugal, a bordo do “Niassa”, o grupo está mais reduzido. Dos oito sobreviventes chegados aos EUA, quatro desapareceram em Nova Iorque na véspera da partida para Washington.

Passados todos estes anos, não há hoje qualquer dúvida quanto à nacionalidade dos responsáveis pelo afundamento do “Maria da Glória”. O investigador Ricardo Silva teve acesso a documentos que com-provam ter-se tratado do submarino alemão U-94. Há mesmo um relatório de navegação do submarino onde claramente é assinalado o nome do navio por-tuguês como tendo sido alvo da ação do U-94.

A NAÇÃO OFENDIDAA notícia só é conhecida dos portugueses no dia 24 de julho de 1942, quase dois meses após a tragédia. Num texto inflamado, “O Século” escreve que “é mais um brutal atentado cometido em circunstân-cias de flagrante deslealdade contra a navegação de

História; não discutimos a autoridade e o seu prestí-gio; não discutimos a família e a sua moral; não dis-cutimos a glória do trabalho e o seu dever.”

Consumada a bênção, partem os navios. Todos pintados de branco. “A partida era um momento de apogeu do Estado Novo e tornou-se quase uma pro-cissão religiosa”, diz Ricardo Silva, autor de vários trabalhos sobre esta temática. O que fora uma opção assente na romântica noção de que assim seria cria-do uma espécie de escudo para a frota portuguesa, desaba estrondosamente quando os ataques se su-cedem, na mais absoluta indiferença pela pretensa neutralidade do regime.

As partes em conflito tinham suficientes motivos para desconfiar do papel assumido na contenda por Salazar. Uma das teorias depois postas a circular para explicar o ataque alemão ao “Maria da Glória” e ao “Delães” passava pela ideia de que teria constituído um episódio de pressão para obtenção de volfrâmio português, essencial para o esforço de guerra.

O afundamento dos lugres leva os beligeran-tes a sugerirem que seria mais prudente interditar os “bancos de bacalhau” à frota portuguesa. Além de alegarem ser impossível assegurar a segurança, suspeitavam da existência de espiões entre as tripu-lações dos bacalhoeiros portugueses. E tinham ra-zões para isso, em particular os Aliados, desde logo porque os bancos de pesca da Gronelândia e da Ter-ra Nova se situavam nas principais rotas do tráfe-go marítimo entre os EUA e a Europa. Estavam, por isso, os barcos portugueses em condições ideais para reportar as movimentações navais dos inimigos da Alemanha nazi. Os serviços secretos ingleses tinham já várias suspeitas assinaladas e, por fim, adquirem algumas certezas, ao ponto de no dia 1 de novembro de 1942 desencadearem uma operação em pleno al-to-mar para intercetar o navio hospital “Gil Eanes”. Começava a desenrolar-se o mais relevante e deli-cado incidente de espionagem envolvendo a frota do bacalhau portuguesa durante a II Guerra Mundial.

UM ESPIÃO PAGO PELOS ALEMÃESOs ingleses procuravam um radiotelegrafista do “Gil Eanes” a operar ao serviço dos alemães, com uma re-tribuição mensal da ordem dos 1500 escudos, uma soma avultada para a época — entre 1941 e 1946 a média salarial em Portugal era, segundo Fernando Rosas no “Dicionário da História de Portugal”, de 17 escudos diários (374 escudos mensais). Tratava-se do funchalense Gastão Crawford Ferraz e a sua história foi oficialmente divulgada ao mundo pelos Arquivos Nacionais do Reino Unido apenas em março de 2009. Não obstante o impacto dessa informação, o caso de Gastão Ferraz fora contado uns meses antes pelo jor-nalista Rui Araújo no seu livro “O Diário Secreto que Salazar Nunca Leu”.

O aprisionamento acontece uma sema-na antes do desembarque das tropas britânicas e

norte-americanas em Marrocos e na Argélia, a 8 de novembro. A história teve grande destaque em toda a imprensa internacional, até porque, como referiu o historiador Christopher Andrew, da Universidade de Cambridge, então citado pelo “Diário de Notícias”, a desclassificação dos documentos mudava “o enten-dimento da história britânica”. Isto porque, com a sua posição estratégica, Ferraz estaria em condições de reportar aos alemães as movimentações dos Ali-ados e, como consequência, fazer abortar o impacto pretendido com o desembarque. O curso da histó-ria poderia ter sido outro. Levado pelo navio britâni-co “HMS Duke of York” para Gibraltar, segue depois para Inglaterra, onde é interrogado. Fica internado três anos num campo de prisioneiros, até ao final da guerra. O regresso a Portugal é noticiado no “Diário de Notícias” de 17 de agosto de 1945 com a indicação de que nada teria sido provado contra cada um dos espiões, o que era falso.

Situações como esta eram não apenas embara-çosas como também preocupantes para o regime. A pesca do bacalhau era um dos esteios da política eco-nómica e social, assente na necessidade absoluta de garantir o abastecimento, até como fator de amorte-cimento de eventuais convulsões sociais. A memória dos tumultos da I República associados a problemas de subsistência estava bem presente no pensamen-to de Salazar, que em 1918, enquanto professor de Finanças e Economia Social, escrevera um livro no qual defendia que o Estado precisaria de ser um di-tador de víveres.

O trigo e o bacalhau eram os produtos que mais pesavam na estrutura alimentar e na balança comer-cial. Há todo um edifício ideológico e legislativo cria-do naqueles anos para solidificar um sector visto como estratégico. O Grémio dos Armadores de Navios da Pesca de Bacalhau impõe-se como o organismo cor-porativo mais entranhado na política do Estado Novo. Funciona como braço do regime, que tudo faz para oferecer aos armadores condições leoninas de labora-ção. O Grémio recebe de braços abertos a nova políti-ca, centrada na proteção total dos armadores de pesca portugueses, reserva do mercado interno, afastando a concorrência internacional, garantia de rendas, e ga-rantia de lucros avultados. “Fizeram-se fortunas com a pesca do bacalhau, até por não ser uma classe nu-merosa, com apenas 28 a 30 empresas, e sem qualquer tradição reivindicativa”, diz Garrido.

A pesca do bacalhau torna-se um emblema do sistema corporativo depois da II Guerra Mundial e em 1957 Portugal é já o primeiro produtor mundial de bacalhau salgado seco, e o nível de substituição das importações roça os 80%. Tudo é conseguido, tam-bém, à custa da violenta repressão dos trabalhadores. Num sector carente de grandes contingentes de mão de obra, o controlo público do recrutamento impõe um regime de matrícula obrigatória idílico para os armadores. O pescador fica obrigado a manter-se no

barco da campanha anterior e assim se elimina uma conquista histórica dos pescadores: a de se oferecerem ao capitão que desse melhores condições. A imposi-ção arranca em 1927 e é consagrada em lei em 1937.

Não por acaso, em 1937, há uma espécie de suble-vação coletiva dos pescadores, numa greve da qual resulta um abalo para o regime, até por surgir num ambiente de grande crispação fascista e delírio anti-comunista, exacerbada pelo atentado a Salazar, per-petrado por anarquistas. Assiste-se a uma repressão implacável dos pescadores, com inúmeras prisões e a publicação de um decreto de recrutamento obriga-tório. Passam a ser considerados desertores os pesca-dores que se recusem a embarcar no mesmo navio da campanha anterior. Ficava abalada a imagem propa-gandística laboriosamente construída por Henrique Tenreiro e outros ideólogos mais sofisticados à volta da ideia do pescador-marinheiro. De alguma forma, ser pescador de bacalhau constituía o topo da hierar-quia das pescas. Era a projeção da imagem do nave-gante, do herói do mar.

Há cineastas, fotógrafos e jornalistas a alimentar a ficção. A revista da “The National Geographic” as-sume um papel crucial na internacionalização deste propósito do Estado Novo. No outono de 1951 é publi-cado em Nova Iorque o livro, pouco depois traduzido para português, intitulado “A Campanha do Argus”, de Alan Villiers, do qual há uma nova e recente edi-ção da Cavalo de Ferro. Oficial da armada australia-na e com escritos regulares nas páginas da “National Geographic”, Villiers era um reputado escritor es-pecializado em temas relacionados com o mar. Bem escrito, depressa traduzido em várias línguas, o livro, resultante de um convite do embaixador de Portugal em Washington, Pedro Teotónio Pereira, ao construir uma espécie de épica à volta do trabalho, apesar de tudo já anacrónico, dos pescadores metidos nos frá-geis dóris saídos de navios todos pintados de branco, torna-se o epicentro de uma empenhada campanha de propaganda do regime. Villiers acaba mesmo por vir a Lisboa receber os louvores de Salazar.

Do mesmo modo que se deleitava com a iconogra-fia propagandística do mundo das pescas patente no livro, nos frescos de Almada Negreiros na Gare Marí-tima de Alcântara, nos óleos do pintor do regime, Do-mingos Rebelo, autor dos murais existentes na Assem-bleia da República, ou nas esculturas de Barata Feyo, a varina e o pescador-marinheiro, colocadas no agora Museu do Oriente, a oligarquia do regime tinha pesa-delos com tudo quanto pudesse questionar esta espé-cie de paz celestial conquistada nos mares terrenos. Daí o desprezo, os ataques dirigidos a Bernardo San-tareno quando publica trabalhos como “A Promes-sa”, “O Lugre” ou, sobretudo “Nos Mares do Fim do Mundo”, agora reeditado pela E-Primatur. Santareno participara como médico nas campanhas do bacalhau e constrói um retrato desencantado, desapiedado, no qual se espelha a violência a bordo dos bacalhoeiros, se evidencia os rigores da disciplina, mas também as inquietações, as revoltas, o sofrimento daqueles ho-mens que se faziam ao mar em condições miseráveis.

Era o reverso do bilhete-postal, mesmo se anacró-nico, construído pelo regime para consumo interno e divulgação internacional. O bacalhau poderia ser o “pão do mar”, mas era também a metáfora de uma opressão silenciada, de uma repressão sem fim, de uma dor nunca apagada. Porque os mortos nunca se esquecem. b

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A pesca do bacalhau torna-se um emblema da batalha ideológica do Estado Novo, assente nos benefícios aos armadores e na violenta repressão dos pescadores

42II Guerra Mundial Manter no mar a frota do bacalhau durante o conflito foi uma das mais temerárias e dramáticas decisões de Salazar

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