cÂmeras policiais individuais e o controle da atividade
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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBAFACULDADE DE DIREITO DE CURITIBA
LEONARDO QUEIROZ LORENZI
CÂMERAS POLICIAIS INDIVIDUAIS E O CONTROLE DA ATIVIDADE POLICIAL
CURITIBA2021
LEONARDO QUEIROZ LORENZI
CÂMERAS POLICIAIS INDIVIDUAIS E O CONTROLE DA ATIVIDADE POLICIAL
Monografia apresentada como requisito parcial àobtenção do grau de Bacharel em Direito doCentro Universitário Curitiba.
Orientador: Rodrigo Régnier Chemim Guimarães.
CURITIBA2021
LEONARDO QUEIROZ LORENZI
CÂMERAS POLICIAIS INDIVIDUAIS E O CONTROLE DA ATIVIDADE POLICIAL
Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em
Direito do Centro Universitário Curitiba, pela Banca Examinadora formadas pelos
Professores:
Orientador:____________________________________
Prof. Rodrigo Régnier Chemim Guimarães
______________________________________
Prof. Membro da Banca
Curitiba, de de 2021
DEDICATÓRIA
Para minha mãe, FERNANDA SENE,
sem ela não teria a oportunidade de pesquisar para este trabalho.
Também para SADALLA BISS,
pois sem seu apoio não o teria terminado.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, tenho de agradecer a todos que me acompanharam durante estatrajetória. Houveram diversas dificuldades pelo caminho, mas finalmente este
chegou ao fim.
Importante agradecer e ressaltar o trabalho de meu orientador Doutor RodrigoRégnier Chemim Guimarães, o qual foi fundamental neste trabalho com seus
apontamentos e apoio.
Agradeço também ao Centro Universitário Curitiba por todo o tempo que me acolheue me proporcionou a oportunidade de aprender sobre o Direito, mostrando a mim
meu papel no mundo e como desempenhá-lo.
De fundamental para minha formação e para este trabalho foram meus queridoscolegas, Beatriz Cristina Mota Cherem, Maria Regina Valdameri e Vitor Bazzani, os
quais sempre estiveram do meu lado me prestando apoio e suporte sempre quenecessário.
Meus agradecimentos se estendem também ao local onde originou o tema dopresente trabalho e que me proporcionou uma sede por justiça e igualdade
incomparável: Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado(GAECO) do Ministério Público do Paraná e também a seus membros que muito me
auxiliaram, em especial a Doutora Nicole Pilagallo da Silva Mäder Gonçalves,Fabiola de Camargo Hermann, Thyeme Munslinger.
Ainda há muitos outros que me acompanharam nesta caminhada, os quais nuncaserão esquecidos e a estes dedico minha gratidão.
RESUMO
O presente trabalho objetiva estudar as body worn cameras conhecidas tambémcomo câmeras policiais individuais, as quais pretendem causar mudanças profundasna forma como é realizado o policiamento e em como a sociedade vê as forças desegurança. Assim é trazido um histórico da Polícia Militar no Brasil e no Paraná, deforma a demonstrar sua importância no dever de coibir a prática de crimes, bemcomo explicar o funcionamento teórico das câmeras, os efeitos causados tanto nopolicial quanto na sociedade pela presença destas e os efeitos atingidos com seuemprego na prática, como a ocorrência de menos queixas contra policiais —explicada pela Teoria da Dissuasão — e um aumento da percepção de legitimaçãopolicial. Ademais, pretende-se demonstrar que não se trata de uma solução perfeita,uma vez que a função das câmeras é somente registrar os fatos ocorridos, havendoresultados indesejados como o aumento nos casos de agressão contra policiais e afalha em divulgar as gravações quando necessário. Também se pretende abordar aquestão dos custos de armazenamento e manutenção das imagens colhidas e osproblemas enfrentados na Suprema Corte Americana acerca da perda ou destruiçãode provas relevantes para um processo criminal.
Palavras-chave: Polícia. Segurança Pública. Câmeras Policiais Individuais. Teoriada Dissuasão. Legitimação Policial.
ABSTRACT
This work aims to study body-worn cameras, also known as body-worn video, whichintends to cause deep changes in the way policing is carried out and how societyviews the security forces. Thus, a history of the Military Police in Brazil and Paraná isbrought up, in order to demonstrate its importance in the duty to curb the practice ofcrimes, as well as to explain the theoretical functioning of the cameras, the effectscaused both on the police and society by their presence and the effects achievedwith its use in practice, such as the occurrence of fewer complaints against policeofficers — explained by the Deterrence Theory — and an increase in the perceptionof police legitimacy. Furthermore, it is intended to demonstrate that the cameras arenot a perfect solution, since the function of the cameras is only to record the factsthat have occurred, having undesirable results, such as the increase in cases ofaggression against police officers and the failure to release the recordings whennecessary. It is also intended to address the issue of the costs of storing andmaintaining the images collected and the problems faced by the American SupremeCourt regarding the loss or destruction of evidence relevant to a criminal case.
Keywords: Police. Public security. Body Worn Cameras. Deterrence Theory. PoliceLegitimacy.
LISTA DE SIGLAS
BWC — Body Worn Camera
BWCs — Body Worn Cameras
BWV — Body Worn Video
COP — Câmera Operacional Portátil
CPI — Câmera Policial Individual
PMESP — Polícia Militar do Estado de São Paulo
PM — Polícia Militar
PMSC — Polícia Militar de Santa Catarina
SWAT — Special Weapons And Tactics
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 92 ASPECTOS HISTÓRICOS, DEFINIÇÃO DOUTRINÁRIA E LEGISLAÇÃO 102.1 INTRODUÇÃO 102.2 A POLÍCIA MILITAR………………………………………………………………… ...102.2.1 Conceito de Polícia…………………………………………………………………..102.2.2 Surgimento da Polícia Militar no Brasil.……………………………………………112.2.3 A Corporação no Paraná ...…………………………………………………………122.2.4 Polícia Administrativa e Polícia Judiciária.....................................................….132.2.5 Polícia e Legislação...........................................................................................143 O USO DA TECNOLOGIA NO POLICIAMENTO...................................................173.1 INTRODUÇÃO.................................................................................................….173.2 AS BODY-WORN CAMERAS………………………………………………………...183.2.1 Definição Técnica...........................................................………………………...183.2.2 Utilização Internacional e Nacional...............................................................….193.2.3 Body-Worn Cameras na Prática........................................................................213.3 VANTAGENS E DESVANTAGENS..................................................................…243.3.1 Uso de Câmeras e Número de Queixas Contra Policiais ................................253.3.1.1 Experimento de Rialto e a Teoria da Dissuasão.....…....................................253.3.1.2 Período pós-experimental em Rialto......................…....................................263.3.1.3 Réplica do experimento de Rialto em escala global.………………………….273.3.2 Uruguai e o Estudo sobre Legitimação Policial…………………………………..303.3.2.1 Legitimação………..……………………………………………………………….303.3.2.2 Metodologia e resultados…………………………………………………………313.3.2.3 Conclusões…………………………………………………………………………333.4 PONTOS NEGATIVOS………………………………………………………………..333.4.1 A Morte de George Floyd…………………………………………………………...333.4.2 Aumento nos Incidentes de Agressão Contra Policiais………………………….343.4.3 Forças Policiais Especializadas....…………………………………………………363.5 A GRAVAÇÃO COMO PROVA………………………………………………………383.5.1 Confiabilidade e Segurança das Gravações……………………………………...383.5.2 Valor da Gravação Como Prova……………………………………………………383.5.3 Início e Fim da Gravação……………………………………………………………393.5.4 Os Casos Brady e Youngblood…………………………………………………….423.5.5 Publicidade e Privacidade…………………………………………………………..443.5.6 Gravação como Treinamento………………………………………………………455 CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………………….48REFERÊNCIAS…………………………………………………………………………….51
9
1 INTRODUÇÃO
No cenário atual onde a tecnologia está cada vez mais integrada ao
cotidiano e causando perceptíveis melhorias nos mais diversos setores, é
necessário trazer tal modernização para a segurança pública, a qual sofreu poucas
mudanças nas últimas décadas. De forma promissora apareceram as Câmeras
Policiais Individuais (Body-worn cameras), que são pequenas câmeras que podem
ser atreladas ao corpo do policial, trazendo assim uma forma imparcial de narrar os
fatos. Todavia, em razão de ser uma tecnologia tão recente, seus efeitos ainda não
são amplamente conhecidos, o que pode causar diversos problemas caso haja uma
apressada e desinformada implementação.
Assim, surge a importância de identificar os efeitos do emprego das câmeras
e buscar entender que benefícios e malefícios que serão proporcionados por sua
utilização, bem como entender como as câmeras afetam a psique de policiais e
cidadãos. Também, é necessário identificar os mecanismos psicológicos atrelados à
utilização de tal tecnologia e como funciona sua aplicação prática no cotidiano de um
policial.
Por fim, busca-se trazer duas discussões havidas na Suprema Corte dos
Estados Unidos da América, a primeira acerca do não compartilhamento de provas e
a segunda sobre a destruição ou extravio de provas por autoridades policiais e seu
valor como potenciais provas exculpatórias. A importância de tal discussão reside no
tratamento que foi dado para estes casos em relação à ausência de tais provas e os
impactos causados em um processo penal, o que afetará a abordagem de situações
onde não se há a presença de gravações.
10
2 ASPECTOS HISTÓRICOS, DEFINIÇÃO DOUTRINÁRIA E LEGISLAÇÃO
2.1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos evidenciou-se um crescimento na discussão a respeito da
segurança pública, sendo este um dos pontos mais debatidos quando se aborda os
deveres que o Estado tem para com o cidadão. Assim, em resposta à crescente
violência vivenciada cotidianamente, uma parte da população brasileira passou a
posicionar-se ansiando pelo aumento da punição penal,1 bem como de permitir um
embrutecimento da força policial.
A importância de se trabalhar polícia e segurança pública reside no fato de
que, estas são essenciais para a vida em sociedade, tanto quanto a economia ou a
educação, visto que, sem ordem pública, há um retorno a uma sociedade primitiva,
onde “o homem é o próprio lobo do homem”,2 não podendo ser ignorado que a
pacífica convivência em sociedade somente se estabelece através de regras, as
quais se tornam ineficazes sem que se tenha quem as execute.
Portanto, se faz necessário discutir a atividade policial per se, entendendo
seu funcionamento e seu papel em um Estado Democrático de Direito, os problemas
que enfrenta e as possíveis soluções para estes.
2.2 A POLÍCIA MILITAR
2.2.1 Conceito de Polícia
A polícia pode ser entendida como uma força organizada composta por
agentes públicos aos quais o Estado concedeu poderes — como o de efetuar
prisões e utilizar da força — com o objetivo de tutelar os bens jurídicos dos cidadãos
e evitar a prática de crimes, de forma a promover uma pacífica vida em sociedade.
Polícia é, então, a organização administrativa (vale dizer da polis, da civita,do Estado = sociedade politicamente organizada) que tem por atribuição
2 O inglês Thomas Hobbes (1588-1679) sustentou em sua obra “Leviatã”, que o ser humano éperverso e tende a entrar em conflito, necessitando-se de um Estado para permitir a convivência emsociedade, através da proteção da propriedade privada e punição daqueles que se desviam dasregras.
1 Como reflexos deste sentimento podemos citar os movimentos que pedem pela redução damaioridade penal ou pela aplicação da pena capital, mesmo que contrários às cláusulas pétreas denossa Constituição Federal.
11
impor limitações à liberdade (individual ou coletivo) na exata (mais, seráabuso) medida necessária à salvaguarda e manutenção da Ordem Pública[...].3
Assim, pode-se dizer que os policiais são agentes públicos incumbidos com a
função de manter a ordem dentro de uma sociedade, coibindo e combatendo a
prática de crimes através da execução das normas jurídicas impostas pelo Estado
ao jurisdicionado.
2.2.2 Surgimento da Polícia Militar no Brasil
Podemos traçar o surgimento da polícia no Brasil ao início do século XIX,
neste período as atividades econômicas exercidas nas cidades ainda não
apresentavam a mesma importância daquelas praticadas no campo.4 Este cenário
muda com a chegada de Dom João VI e a Corte portuguesa em 1808 — período em
que ocorreram diversas alterações administrativas e políticas —, havendo um
crescimento populacional, aumento das práticas comerciais e de negócios, e em
razão disto é criado o cargo de intendente-geral da Polícia da Corte e Estado do
Brasil e da Intendência Geral de Polícia no Brasil, os quais representavam um
esforço em estruturar uma racionalidade administrativa que buscava a garantia do
bem-estar físico da população. “Essa nova conjuntura fez com que as ações do
Estado dessem maior ênfase a questões como higiene, condições sanitárias das
cidades, disciplinarização do espaço urbano e segurança pública.”5
Em virtude de que a Guarda Real de Polícia de Lisboa permanecera em
Portugal, a Corte portuguesa, para garantir sua segurança e tranquilidade, criou,
através de decreto datado de 13 de maio de 1809, a Divisão Militar da Guarda Real
de Polícia do Rio de Janeiro que aderiu ao modelo de organização, trajes e armas
5 MEMÓRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA. Divisão da Guarda Real da Polícia doRio de Janeiro. [s. l.]: 2011. Disponível em:<http://mapa.an.gov.br/index.php/dicionario-periodo-colonial/169-divisao-militar-da-guarda-real-da-policia-1808-1821>. Acesso em: 8 de abril de 2020.
4 FERREIRA, Olavo Leonel. História do Brasil. 8. ed. São Paulo: Editora Ática, 1984. p. 126.
3 LAZZARINI, Álvaro. Estudos de direito administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2008 apud SOUSA, Reginaldo Canuto de; MORAIS, Maria do Socorro Almeida de. Polícia eSociedade: uma análise da história da segurança pública brasileira. V Jornada Internacional dePolíticas Públicas: Maranhão, 2011. p. 2. Disponível em:<http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2011/CdVjornada/JORNADA_EIXO_2011/PODER_VIOLENCIA_E_POLITICAS_PUBLICAS/POLICIA_E_SOCIEDADE_UMA_ANALISE_DA_HISTORIA_DA_SEGURANCA_PUBLICA_BRASILEIRA.pdf>. Acesso em 8 de abril de 2020.
12
da guarda portuguesa, formando, assim, no Brasil o gérmen do que viria a ser um
corpo policial organizado.6
2.2.3 A Corporação no Paraná
A chamada 5ª Comarca da Província de São Paulo, que hoje corresponde
aos territórios que constituem o Paraná, era, até meados de 1853, governada por
São Paulo. A colonização das terras paranaenses começou por volta do século XVII,
quando foi descoberto ouro a ser prospectado e, assim, as primeiras comunidades
foram surgindo na baía de Paranaguá e no planalto curitibano. Consta que em 1811
já aconteceram as primeiras manifestações de emancipação política em relação a
São Paulo, quando a Câmara de Paranaguá envia ao Príncipe regente Dom João
uma solicitação de autonomia, não se tendo notícia de que tenha sido respondida7.
As mudanças que se apossaram do Império nos anos seguintes, aliado a um
crescimento econômico não mais dependente da extração aurífera (como a criação
de animais e venda do mate), gerou um terreno fértil para o surgimento daqueles
que desejavam a emancipação da comarca.
Com a abdicação de D. Pedro I, em 07 abr 1831, o Brasil viveu uma formaanárquica e turbulenta, marcada por motins, revoltas e revoluções, que sótiveram fim 14 anos mais tarde, com a pacificação da Revolução Farroupilhapor Caxias, em Ponche Verde.Nem a Maioridade de D. Pedro II, em 1840 conseguira reunificar a famíliabrasileira, agitada por um sonho de Federação e República, estimulado peloAto Adicional de 21 ago 1834, que deu maior autonomia às províncias e fezdo Brasil uma monarquia federativa.Na época, o Exército foi colocado em segundo plano, passando-se a darmais valor à Guarda Nacional e às Polícias Militares, então criadas.8
Mas somente em 29 de agosto de 1853 que a ambição de separação da 5ª
Comarca da Província de São Paulo toma forma sob a aprovação da Lei n.º 704,
8 EXÉRCITO BRASILEIRO. A revolução liberal de São Paulo - 1842. [s. l.], [20--?]. Disponívelem:<https://www.eb.mil.br/patronos/-/asset_publisher/DJfoSfZcKPxu/content/a-revolucao-liberal-de-sao-paulo-1842>. Acesso em: 9 de abril de 2020.
7 BANESTADO - BANCO DO ESTADO DO PARANÁ. Gente nossa, coisas nossas: A emancipaçãopolítica do Paraná. Curitiba: Banestado, [1989?]. Disponível em:http://www.museuparanaense.pr.gov.br/arquivos/File/Banestado61anos/AemancipacaoPoliticadoParana.pdf. Acesso em: 09 de abril de 2020
6 AGÊNCIA SENADO. As polícias militares têm origem no século 19. Brasília, 2013. Disponívelem:<https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2013/11/25/policias-militares-tem-origem-no-seculo-19>Acesso em: 8 de abril de 2020.
13
nomeando-se como presidente da Província do Paraná Zacarias de Góes e
Vasconcellos. Empossado, Zacarias viu os reflexos do abandono da Comarca pelo
governo paulista, encontrando inúmeros problemas na infraestrutura, economia,
educação e segurança pública. Nomeou-se Antonio Manoel Fernandes Junior para o
cargo de Chefe de Polícia, o qual dividiu a província do Paraná em distritos
(nomeando autoridades para cada). Mesmo com as mudanças:
[…] [as] organizações policiais encarregadas da segurança não tinham forçasuficiente para implantar a ordem e não podiam sofrear os impulsoscriminosos dos bandos de foragidos que cometiam assaltos e praticavamdesordens desvairando a opinião pública.9
Assim, o Presidente da Província, Zacarias de Góes e Vasconcellos,
sanciona a Lei n.º 7 de 10 de agosto de 1854 que institui a Companhia da Força
Policial, que:
Subordinava-se diretamente ao Presidente da Província, única autoridadeque a poderia empregar na manutenção da ordem e no interesse datranquilidade pública, e que, tinha por dever atender às requisições dasautoridades policiais, para o fim de fazer efetivos as suas ordens.(...)Além de a sua criação ter sido alicerçada nas tradições seculares de“Assegurar a paz pública e auxiliar a justiça”, competia-lhe, de acordo com alegislação vigente, a prisão de criminosos, o patrulhamento e rondas nascidades, vilas e freguesias, estradas, além de outras diligências.10
Somente com a proclamação da República em 1889 que as forças policiais
passaram a receber a designação “militar” para identificá-las (sendo chamados a
partir de então de Corpos Militares de Polícia), e, com o advento da Constituição
Republicana de 1891, os Estados (não mais chamados de províncias em razão do
artigo 2º daquela Constituição11) passaram a gozar de maior autonomia, sendo-lhes
permitido organizar melhor seus efetivos policiais. Com a Constituição de 1946 foi
padronizada a nomenclatura “polícia militar”.
11 “Art 2º - Cada uma das antigas Províncias formará um Estado e o antigo Município Neutroconstituirá o Distrito Federal, continuando a ser a Capital da União, enquanto não se der execução aodisposto no artigo seguinte.” BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos EstadosUnidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ, 1891. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm>. Acesso em: 10 de abril de2020.
10 Id.
9 POLÍCIA MILITAR DO PARANÁ. Criação da Polícia Militar do Paraná. [Curitiba], [20--?].Disponível em: <http://www.pmpr.pr.gov.br/Pagina/Criacao-da-Policia-Militar-do-Parana>. Acesso em:8 de abril de 2020.
14
2.2.4 Polícia Administrativa e Polícia Judiciária
As forças policiais geralmente são classificadas entre polícia judiciária e
polícia administrativa, havendo diversos critérios para distinção. Um primeiro critério
seria o de atuação preventiva da polícia administrativa e repressiva da polícia
judiciária. Enquanto a polícia administrativa está diluída em diversos órgãos
(entidades de fiscalização, órgãos que atuam nas áreas da saúde, educação,
trabalho, previdência e assistência social, possuindo um caráter preventivo — atua
na área dos ilícitos administrativos, incidindo sobre bens, direitos ou atividades —, a
polícia judiciária tem um viés repressivo — quando há uma infração penal, sendo
regulamentada nos termos do direito processual penal e incidindo sobre pessoas.
Todavia, o caráter preventivo não impede que a polícia administrativa não exerça
atividades repressivas, sendo o mesmo verdadeiro no caso da polícia judiciária, que
pode atuar preventivamente.12
Outra forma de categorizar a atividade policial residiria na existência ou não
de um ilícito penal, uma vez que a atividade preventiva é regida por normas de
administrativas, não havendo impedimento que a atividade se torne repressiva ao se
detectar um ilícito penal, podendo inclusive ocorrer uma prisão.13
Apesar de boa parte da Doutrina de Direito Administrativo considerar a
Polícia Militar como inserta dentro da chamada polícia judiciária — que têm funções
distintas da polícia administrativa —, não há como se limitar nesta dicotomia,
podendo-se dizer que atualmente existe uma polícia de segurança pública, que
destina-se a preservar a segurança pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio. A polícia de segurança pública seria o gênero, sendo as polícias de
prevenção, repressão, investigação, fronteiras e a judiciária suas espécies.14
2.2.5 Polícia e Legislação
14 CEDANO, Sérgio. Poder de polícia e poder da polícia. Revista Trimestral de Direito Público -RTDP, ano 8, n. 53, p. 183, abr./ jun. 2013. Disponível em:https://www.forumconhecimento.com.br/periodico/156/20686/34460. Acesso em: 22 jan. 2021.
13 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 520; Álvaro Lazzarini,Estudos de Direito Administrativo, p. 203 apud CEDANO, Sérgio. Poder de polícia e poder da polícia.Revista Trimestral de Direito Público - RTDP, ano 8, n. 53, p. 183, abr./ jun. 2013. Disponível em:https://www.forumconhecimento.com.br/periodico/156/20686/34460. Acesso em: 22 jan. 2021.
12 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p.154.
15
A atividade policial está organizada no artigo 144 de nossa Constituição
Federal, onde reside a sua função como também a sua finalidade: preservar a
ordem pública e a incolumidade de forma a promover a segurança pública. Em
síntese, a Polícia Militar nada mais é do que uma extensão do Estado cujo objetivo
é, por meio de sua ostensividade — a distintiva aparência dos policiais militares
permite sua fácil identificação, trazendo segurança e materializando a presença do
Estado e da Lei — manter a ordem, coibir a prática de infrações e protegendo o
cidadão dos indivíduos que praticam delitos.15
Aos policiais é incumbida a tarefa de fazer o policiamento ostensivo (de
trânsito urbano e rodoviário, de florestas e mananciais), preservar a ordem pública,
executar atividades de defesa civil, prevenção e combate a incêndios, buscas,
salvamentos e socorros públicos, atuar preventivamente ou repressivamente em
caso de perturbação da ordem, exercer a polícia judiciária militar estadual, dentre
outras funções.
A Polícia Militar é, pois, a polícia de manutenção da ordem pública, como seextrai expressamente do ordenamento constitucional brasileiro, emconsonância com a realidade atual, pois é a força policial que, sem dúvidaalguma, está mais próxima da sociedade e que, portanto, demanda maiorabrangência na atuação policial. Atualmente utiliza-se a designação “políciacomunitária” ou “polícia-cidadã” para demonstrar os diversos setores deatuação da Polícia Militar, indo além da prevenção e repressão do ilícitopenal, ou seja, da polícia de segurança, que atua especificamente nocombate à criminalidade e perseguição dos delinquentes.Portanto, a missão primordial das Polícias Militares é a manutenção daordem pública em policiamento ostensivo, com elementos fardados, que,pela sua presença, como força de dissuasão, previnem ou reprimemmovimentos perturbadores da tranquilidade pública, impedindo atosindividuais ou coletivos que atentem contra a segurança interna, asatividades lícitas, os bens públicos ou particulares, a saúde e o bem-estardas populações e a vida dos cidadãos, mantendo a situação de garantia enormalidade que o Estado assegura, ou deve assegurar, a todos osmembros da sociedade.16
16 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo da Ordem Pública. Polícia de Manutenção daOrdem Pública e suas Atribuições. pp. 154-155 apud CEDANO, Sérgio. Poder de polícia e poderda polícia. Revista Trimestral de Direito Público - RTDP, ano 8, n. 53, p. 183, abr./ jun. 2013.Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/periodico/156/20686/34460. Acesso em: 22jan. 2021.
15 Convém lembrar que a Polícia Militar não tem como papel principal investigar, função delegada àPolícia Judiciária, mas pode, em caráter excepcional, fazê-lo quando se tratar de crime militar.
16
De acordo com a Constituição paranaense,17 o policial militar se trata de
servidor público estadual subordinado ao Governador do Estado do Paraná,
organizado nos moldes de hierarquia e disciplina, objetivando o cumprimento da lei e
mantendo a ordem pública (em conjunto com outros órgãos), lhe sendo privativo o
uso de uniforme militar, títulos e postos até coronel. Não é permitido, por força de lei,
a sindicalização e a entrada em greve, e, no caso de desempenhar suas funções,
também lhe é proibida a filiação com partido político.
Os militares estaduais possuem foro especial para julgamento de seus atos
que configurem infração militar, e, cometendo qualquer ação que seja considerada
contrária ao oficialato ou indignos a seu posto e hierarquia na corporação, ou ainda,
no caso de ser condenado pela justiça comum ou militar a pena privativa de
liberdade superior a dois anos, poderá perder seu cargo e posição hierárquica.
Quanto a legislação específica temos, no Estado do Paraná, o Decreto
Estadual n.º 7.339 de 08 de junho de 2010 (Aprova o Regulamento Interno e dos
Serviços Gerais da Polícia Militar do Paraná, Secretaria de Estado da Segurança
Pública-SESP), o Decreto Estadual n.º 9.040 de 15 de dezembro de 2010 (Cria a
Corregedoria-Geral da Polícia Militar do Estado Paraná), a Lei Estadual n.º 16.544
de 14 de julho de 2010 (que regulamenta o Processo Administrativo Disciplinar), e
por fim a Lei Estadual n.º 16.575 de 28 de setembro de 2010 (Dispõe que a Polícia
Militar do Estado do Paraná destina-se à preservação da ordem pública, à polícia
ostensiva, à execução de atividades de defesa civil, além de outras atribuições
previstas na legislação federal e estadual).
17 PARANÁ. Constituição (1989). Constituição do Estado do Paraná. Curitiba, PR, 1989. Disponívelem:<https://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/exibirAto.do?action=iniciarProcesso&codAto=9779&codItemAto=97592>. Acesso em: 12 de abril de 2020.
17
3 O USO DA TECNOLOGIA NO POLICIAMENTO
3.1 INTRODUÇÃO
Mesmo após todas as mudanças políticas e sociais que moldaram o Brasil
em sua forma atual, vê-se que houve poucas mudanças na Polícia Militar, permitindo
que se questione a obsolescência e eficácia do modelo atual.
Não há como ignorar a diversidade brasileira, nos aspectos positivos como a
nossa multiculturalidade, quanto nos negativos, como a tão presente estratificação
social. Por consequência, a percepção pública da Instituição policial é de que seja
uma das mais violentas,18 não sendo incomum a violação dos mais básicos direitos
humanos.19
Em apenas 5 (cinco) anos, a polícia brasileira matou tanto quanto aamericana em três décadas. 20
Em 2018, a cada quatro mortes cometidas pela polícia no Brasil, umaaconteceu no Rio de Janeiro. Das 1.075 vítimas no estado entre janeiro ejulho de 2019, 80% eram negras (percentual superior ao nacional, de 75%).O total corresponde ao dobro das mortes praticadas pela polícia dosEstados Unidos no mesmo período.21
Esta dura realidade só ressalta que nosso sistema policial necessita de
modificações basilares, mas diante da realidade brasileira hodierna, há de se
questionar a possibilidade de uma incisão tão profunda, que repare todos estes
pontos críticos que hoje maculam a atividade policial, sem que haja uma completa
reformulação ou reestruturação da polícia em si. A resposta está longe de ser
simples. Recentemente surgiram correntes que defendem a desmilitarização da
21 SOARES, J. A violência policial contra negros como política de Estado no Brasil. [S. l.], 2020.Disponível em: <https://p.dw.com/p/3dRMt >. Acesso em: 13 de junho de 2020.
20 CÂMARA, Olga. Polícia brasileira: a que mais mata e a que mais morre. Revista Jus Navigandi,ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5884, 11 ago. 2019. Disponível em:<https://jus.com.br/artigos/74146>. Acesso em: 13 junho 2020.
19 Cf. SOUZA, Adilson Paes de. A educação em direitos humanos na polícia militar. 2012.Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo,São Paulo, 2012. Disponível em:<https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2140/tde-27092012-093421/pt-br.php>. Acesso em: 10de junho de 2020.
18 Somente em 2019, 5.804 pessoas perderam a vida em decorrência das ações de policiais,representando um aumento em relação ao ano anterior. VELASCO, C.; GRANDIN, F.; REIS, T.Número de pessoas mortas pela polícia cresce no Brasil em 2019; assassinatos de policiaiscaem pela metade. [S. l.], 2020. Disponível em:<https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/04/16/numero-de-pessoas-mortas-pela-policia-cresce-no-brasil-em-2019-assassinatos-de-policiais-caem-pela-metade.ghtml>. Acesso em: 13 dejunho de 2020.
18
polícia, o que poderia resultar em um desmoronamento da hierarquia, não sendo
possível controlar e comandar o efetivo existente. Outra possibilidade seria integrar
as duas corporações,22 permitindo que ocorra um ciclo de investigação completo
(acompanhamento de um caso do início ao fim), mas isto poderia causar outra
miríade de problemas logísticos. Em quaisquer dos casos, uma reforma na polícia
depende de uma enorme e improvável movimentação política para tanto.
Na transição democrática, todas as instituições públicas e seusprocedimentos passaram por uma revisão e reajuste ao novo momento.Uma destas instituições, entretanto, acabou esquecida: a polícia. (...)Essa omissão condenou a polícia à reprodução inercial de seus hábitosatávicos: a violência arbitrária contra excluídos (particularmente pobres enegros), a tortura, a chantagem, a extorsão, a humilhação cotidiana e aineficiência no combate ao crime, sobretudo se os criminosos pertencemaltos escalões.23
Diante deste cenário desolador e pouco promissor, surge uma possível
solução, que consiste no emprego de câmeras presas ao corpo dos policiais,
conhecidas no inglês como body-worn camera (BWC) ou body-worn video (BWV).
Diversos países já empregam a tecnologia ou estão em fase de testes para
implementá-la, pois aparenta ser um grande passo em direção à transparência,
justiça e segurança.
3.2 AS BODY-WORN CAMERAS
3.2.1 Definição Técnica
As body-worn cameras (BWCs) podem ser definidas como pequenos
dispositivos móveis que capturam áudio e vídeo, permitindo o registro de tudo o que
um policial vê e escuta. Estes aparelhos podem ser afixados em várias partes do
corpo, como, por exemplo, na cabeça; capacete; óculos; em um bolso; ou no
distintivo. As body-worn cameras se apresentam como testemunhas imparciais,
23 SOARES, L. Novas políticas de segurança pública. Estudos Avançados, v. 17, n. 47, p. 75-96, 1abr. 2003. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9903>. Acesso em: 11 de junhode 2020.
22 Inclusive ocorrendo uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº 102/2011) que visava atingirtal fim.
19
havendo o potencial de usá-las tanto para facilitar na prova da ocorrência de um
crime, como para promover a responsabilidade e o profissionalismo policial.24
Tudo o que foi gravado pode ser posteriormente revisado ou examinado.Oficiais, individualmente, podem ser melhor responsabilizados à medida queas BWCs acentuam a necessidade de supervisão e reflexão sobre suaspróprias ações. (…)Por sua vez, uma maior transparência não apenas estimula os detentoresde poderem aderir aos protocolos, diretrizes e “melhores práticas” (…), mastambém cria um equilíbrio entre a narrativa do oficial e a narrativa dosuspeito sobre o mesmo evento. Sem evidências corroborantes (porexemplo, testemunhas ou evidências forenses), um reclamante teriadificuldade em provar, nos fóruns necessários, que houve uma má condutapolicial.25
Dessa forma, os pequenos dispositivos são facilmente integrados ao
uniforme, podendo filmar todas as ocorrências e situações onde tenha a presença
do policial, o que proporcionará a possibilidade de analisar tais fatos posteriormente
e com fidelidade ao ocorrido.
3.2.2 Utilização Internacional e Nacional
Primariamente, há o foco de seu uso durante uma ronda policial, entretanto
sua utilização é bem mais ampla, sendo BWCs empregadas por militares, bombeiros
e até profissionais da área médica.26 Apesar da relativa novidade da tecnologia no
cenário global, está sendo de pronto sendo defendida e aceita pela sociedade civil e
26 Amplamente divulgado na mídia está o caso onde a câmera montada em um capacete de umsoldado australiano captura o momento onde outro soldado atira e mata um civil afegão desarmado, oqual estava cooperando com as ordens dadas. Tal fato é considerado como crime de guerra eencontra-se sob investigação até o momento. Cf. Disponível em:<https://www.abc.net.au/news/2020-03-16/video-shows-afghan-man-shot-at-close-range-by-australian-sas/12028512>. Acesso em: 23 de janeiro de 2021.
25 “Anything that has been recorded can be subsequently reviewed or scrutinized. Individual officersbecome more accountable as BWCs accentuate the need for oversight and reflection on their ownactions (Lumina, 2006; Reiner, 1993; Walsh & Conway, 2011). (...) In turn, greater transparency notonly primes power-holders to adhere to protocols, guidelines, and “best practice” (for the samereasons we alluded to earlier in the context of deterrence theory and self-awareness) but also createsan equilibrium between the account of the officer and the account of the suspect about the same event(see Frank, Smith, & Novak, 2005). Without corroborating evidence (e.g., bystanders testimonies,forensic evidence), a complainant would find it difficult to prove, in the necessary forums, that policemisconduct had, indeed, occurred (see J. Miller & Merrick, 2002).” ARIEL, Barak, et al. ContagiousAccountability: A Global Multisite Randomized Controlled Trial on the Effect of Police Body-WornCameras on Citizens’ Complaints Against the Police. [S. I.]: Criminal Justice and Behavior, vol. 44,nº. 2, p. 293-316, Fev. 2017, tradução nossa.
24 AISHWARIYA, A. et al. Body worn camera. [S. l.]: IOP Conference Series: Materials Science andEngineering, vol. 263, issue 5, 2017. Apud. WANG, Yufeng, et al. Security and privacy for bodycameras used in law enforcement, 2015 IEEE Conference on Communications and NetworkSecurity (CNS), Florença, Itália, p. 173-181, 2015.
20
figuras políticas, o que se traduz em várias forças policiais experimentando e
aderindo a esta tecnologia.
Estas câmeras estão se tornando cada vez mais comuns dentro do arsenal
de um policial, sendo que muitos dos departamentos policiais americanos adotam ou
consideram empregar body-worn cameras.27 No Canadá a cidade de Calgary,
Alberta, aderiu ao programa em 2012, justificando seu uso em cinco princípios
básicos: coletar evidências; melhorar a transparência, confiança pública e
segurança; aumentar o profissionalismo e a responsabilidade dos policiais; proteger
os policiais de acusações infundadas de má conduta e impedir a escalada de uma
situação (ou seja, as situações onde uma discussão verbal pode escalar para uma
agressão física).28 Os aparelhos também são adotados no estado australiano de
Queensland, que afirma existir menos gasto de tempo com “papelada”, o que
significa mais tempo em patrulha, uma melhor obtenção de evidências, uma menor
necessidade dos policiais usarem a força, mudança no comportamento das pessoas
nos incidentes, melhoria da conduta e profissionalismo policial, menos reclamações
contra a polícia e menos alegações de inocência durante procedimentos judiciais.29
Outro exemplo é a polícia da Renânia do Norte-Vestfália (mais populoso Estado
Alemão) que iniciou em 2017 um programa com câmeras visando refrear a
crescente violência contra policiais.30
Já em território brasileiro, a pioneira a utilizar a tecnologia foi a cidade de
São Paulo, onde se adota o termo “Câmera Operacional Portátil” (COP). O objetivo
do uso das COP não é de controlar os policiais, mas sim de gerar provas mais
robustas e reduzir a criminalidade, havendo expectativa de que até dezembro de
2023 todos os PMs das principais regiões do estado de São Paulo estejam portando
uma destas câmeras.31
31 EXAME. Fardas com câmera reduzem violência policial, mostram pesquisas. São Paulo, 2019.Disponível em:<https://exame.com/brasil/fardas-com-cameras-reduzem-violencia-policial-mostram-pesquisas/>.Acesso em: 10 de junho de 2020.
30 BLEIKER, Carla. Police in Germany’s most populous state will try body cameras. [S. l], 2017.Disponível em: <https://p.dw.com/p/2azxX>. Acesso em 23 de janeiro de 2021.
29 QUEENSLAND POLICE SERVICE. Body Worn Cameras. [S. l.], 2019. Disponível em:<https://www.police.qld.gov.au/initiatives/body-worn-cameras>. Acesso em: 31 de maio de 2020.
28 CALGARY POLICE SERVICE. Body Worn Camera. Calgary, [2018?]. Disponível em:<https://www.calgary.ca/cps/Pages/Body-Worn-Camera.aspx>. Acesso em: 31 de maio de 2020.
27 REAVES, Brian A. Local police departments, 2013: Equipment and technology. Washington,D.C.: Bureau of Justice Statistics (BJS), U. S. Department of Justice, Office of Justice Programs.
21
Ainda segundo a PMESP, com o implemento das câmeras, espera-se se
uma produção de provas documentais altamente confiáveis, havendo um aumento
palpável das denúncias contra acusados. Se prevê uma redução do uso da força em
razão do efeito apaziguador trazido pela câmera, acabando por impedir reclamações
e denúncias infundadas contra os policiais. Além disso, é provável que ocorra uma
melhor aplicação das práticas profissionais; aprimoramento do treinamento policial
em decorrência de poder analisar ocorrências reais; fortalecimento da disciplina
através da análise dos comportamentos inadequados e um aumento da
transparência e responsabilidade individual de cada agente.32
A Polícia Militar do Estado de Santa Catarina em parceria com o Tribunal de
Justiça catarinense, realizaram a compra de câmeras portáteis, adotando-se a
nomenclatura de “Câmeras Policiais Individuais” (CPI), que passarão a fazer parte
das equipes que compõem a 10ª Região de Polícia Militar.33 Destaca-se que o canal
oficial da PMSC no YouTube há, desde março de 2019, a série “PAPA MIKE SANTA
CATARINA” que reúne gravações de patrulhamentos e abordagens feitas pelos
militares sob o ponto de vista de suas câmeras.34
3.2.3 Body-Worn Cameras na Prática
Estes equipamentos têm a promessa e o potencial de revolucionar a polícia,
permitindo uma visão mais clara e imparcial dos acontecimentos, mas através da
análise de três casos selecionados poderemos avaliar o potencial da tecnologia,
bem como a volatilidade do cotidiano policial.
Terry Chanley foi morto após ser abordado pelo policial Mario Reid depois
que aquele atingiu um poste com seu veículo. Segundo a polícia de Evansville,
Indiana, EUA, os disparos ocorreram após a vítima, Terry Chanley, se negar a
fornecer seus documentos ao policial após a colisão com o poste. A vítima teria
então buscado por algo embaixo do banco de seu veículo, contrariando as ordens
34 OFICIAL, PMSC. Papa Mike SC, Youtube, 15 de maio de 2020. Disponível em:https://youtube.com/playlist?list=PLp0Gd4KvJ4kirO5f18xGUDswGfKxSNu50. Acesso em: 31 de maiode 2020
33 POLÍCIA MILITAR SANTA CATARINA. Tropa da 10ª RPM é capacitada para utilizar as câmeraspoliciais individuais. [S. l.], 2019. Disponível em:<https://www.pm.sc.gov.br/noticias/tropa-da-10-rpm-e-capacitada-para-utilizar-as-cameras-policiais-individuais>. Acesso em: 31 de maio de 2020.
32 POLÍCIA MILITAR DE SÃO PAULO. Vantagens do emprego de Câmeras OperacionaisPortáteis. [s. l.], [2017?]. Disponível em: <https://www.policiamilitar.sp.gov.br/COP/Index>. Acesso em22 de janeiro de 2021.
22
de parada emitidas pelo policial. Temendo uma possível reação do indivíduo, o
oficial Mario Reid afastou-se do veículo e sacou sua arma, ordenando que Terry
imediatamente mostrasse suas mãos, ordem novamente ignorada. Ato contínuo,
Terry retirou um objeto escuro e caminhou em direção do policial com ele em mãos,
apontando-o em direção do policial. De forma a proteger sua integridade e dos civis
presentes, o policial Mario efetuou um disparo contra o homem que pareceu
inabalado, continuando a avançar em sua direção, sendo necessário disparar uma
segunda e terceira vez. Terminado o incidente, descobriu-se que Terry estava
embriagado e o objeto que havia retirado de seu veículo era um martelo. A versão
relatada por uma testemunha confronta frontalmente a versão oficial, afirmando que
o policial havia injustamente atirado cerca de cinco vezes no peito da vítima, a qual
estava desarmada e com as mãos na cabeça.
Obviamente há uma grave contradição entre a palavra da testemunha e a do
policial, o que dificulta estabelecer a versão mais verossímil, porém, o policial estava
equipado com uma BWC que gravou todo o incidente. Nas imagens, pode-se ver
que além dos fatos terem ocorrido da forma narrada pelo policial, este acabou
caindo em prantos, tendo até mesmo dificuldade de chamar por apoio em
decorrência do estresse sofrido, conduta completamente oposta à versão do policial
que executou a sangue frio um homem desarmado e subjugado. Não havia como se
imaginar que uma mera abordagem, que somente era para checar a documentação
do condutor em um acidente, resultaria na utilização de força letal. O departamento
de polícia analisou as imagens da câmera do policial, ouviu outras três testemunhas
e vídeos feitos por pessoas que estavam no local, classificando as ações do policial
como “legais, justificadas e de forma razoável”.35
Neste caso, apesar de existir testemunhas, as imagens foram fundamentais
para esclarecer o ocorrido, demonstrando a perspectiva do agente da lei e
potencialmente evitando a instauração de um procedimento para apurar as
circunstâncias, apesar de existir uma narrativa que descreve de forma clara um
homicídio.
O segundo caso a ser estudado foi o do policial Quincy Smith da cidade de
Estill na Carolina do Sul, EUA, o qual trabalhava sozinho quando foi chamado para
35 COURIER PRESS. What we know about the Evansville police shooting that killed aWadesville man. Evansville, 2019. Disponível em:<https://www.courierpress.com/story/news/2019/10/29/evansville-police-shooting-indiana-terry-chanley-wadesville/2501991001/>. Acesso em 27 de março de 2020.
23
verificar uma ocorrência onde um indivíduo tentava apanhar alimentos em uma loja
de conveniência. Ao chegar no local conversou com testemunhas que deram uma
descrição do suspeito, que ainda estava nas redondezas. Ao localizar o homem, o
qual estava com uma mão no bolso e outra segurando um celular em sua orelha,
pediu para que ele parasse de falar ao celular e mostrasse ambas as mãos. O
indivíduo ignora o pedido mesmo com as ameaças do policial de usar um taser, e,
com um movimento brusco, o suspeito sacou uma pistola e dispara diversas vezes
no policial, que é atingido em ambos os braços que são instantaneamente
quebrados com o impacto dos projéteis, uma bala atingindo seu torso e alojando-se
em suas costas e um dos disparos atingindo uma veia em seu pescoço.36 Segundo o
promotor Duffie Stone que atuou no caso: “Se não fosse a graça de Deus e ótimos
médicos, este caso não seria somente um caso de [tentativa de] assassinato, mas
um caso de pena de morte [para o atirador]”.37
Um detalhe que chama a atenção é que apesar do departamento de polícia
não adotar BWCs, o policial portava um óculos com câmera, que comprou por conta
própria na internet, pois haviam-lhe contado que muitas pessoas contestavam
multas de trânsito e a câmera lhe daria uma segurança. Smith nunca imaginou que
tal câmera quase capturaria seu assassinato. As imagens foram posteriormente
usadas no julgamento do homem que efetuou os disparos, o qual foi condenado a
35 anos de prisão pelos crimes de tentativa de homicídio e porte irregular de arma
de fogo.38
Por fim, em Modesto, Califórnia, EUA, a polícia foi chamada para averiguar
uma chamada sobre um suspeito que afirmava ter comprado uma arma de fogo e
que teria feito ameaças contra sua irmã. Enquanto fazia as buscas com sua viatura,
o policial Joseph Lamantia avista o indivíduo — Trevor Seever —, desce do veículo
com sua arma em punho e de imediato dá a ordem de que o mesmo deite e, menos
38 FOX NEWS. Officer recalls near-fatal shooting captured by body cam in doc: ‘I did think I wasgoing to die’. [S. l.], 2018. Disponível em:<https://www.foxnews.com/entertainment/officer-recalls-near-fatal-shooting-captured-by-body-cam-in-doc-i-did-think-i-was-going-to-die>. Acesso em: 1 de junho de 2020.
37 If but not for the grace of God and some very good doctors, this would not only have been a murdercase, but a death penalty case. NEXSTAR BROADCASTING INC.. Hampton County man receives35-year sentence for shooting police officer. Savannah, 2017. Disponível em:<https://www.wsav.com/news/hampton-county-man-receives-35-year-sentence-for-shooting-police-officer/>. Acesso em: 1 de junho de 2020.
36 WASHINGTON POST. Police camera glasses capture the near-death shooting of an officer.Disponível em:<https://www.washingtonpost.com/news/morning-mix/wp/2017/08/11/tell-my-family-i-love-them-video-captures-a-near-death-shooting-of-a-police-officer/>. Acesso em: 31 de maio de 2020.
24
de um segundo depois, efetua quatro disparos a uma distância de aproximadamente
45 metros, o qual grita mas não aparenta ter sido alvejado. O policial avança mais
alguns metros e dá ordens de que o sujeito mostre suas mãos, o que é acatado por
Trevor que momentos depois abaixa uma de suas mãos, sendo alvo de mais tiros do
oficial, emitindo gritos de agonia. A vítima acabou não resistindo e faleceu no
hospital, não sendo encontrada arma de fogo em sua pessoa, sendo esta a quarta
pessoa morta pelo policial Lamantia,39 o que causou manifestações pedindo por
justiça.40
Em todos os casos o policial estava equipado com uma câmera portátil, a
qual foi instrumental para avaliar sua conduta e permitiu um julgamento sobre sua
conformidade com a lei, podendo ajudar a identificar o suspeito como também a
condená-lo com base em evidências robustas e inquestionáveis. Isto demonstra
essencialmente um único resultado: uma fonte imparcial dos fatos que pode narrar
com precisão o ocorrido sem qualquer tipo de influência ou corrupção.
3.3 VANTAGENS E DESVANTAGENS
Acredita-se que as body-worn cameras tragam inúmeros benefícios, como a
confiança do público e o profissionalismo do policial, já que qualquer ato praticado
pode ser avaliado.
Talvez seja de igual importância que as câmeras móveis podem agir emambos os lados da interação policia-público — o policial e o suspeito. Emoutras palavras, em razão que a câmera é utilizada por um dos atores natroca, esta vai atuar como um terceiro olho neutro, impactando a psique deambos os indivíduos. Portanto, é provável que as câmeras tenham um''efeito de autoconsciência'' que impediria tanto o policial de reagir com forçaexcessiva ou desnecessária, e acalmar o “comportamento agressivo” dosuspeito (ou impedir a polícia de assim interpretar aquela conduta).41
41 “Perhaps equally important is that mobile cameras can work on both sides of the police–publicinteraction—the police officer and the suspect. Put differently, because the camera is actually worn byone of the actors in the exchange, it acts as a neutral third eye, impacting both players’ psyches.Cameras are thus likely to have a ‘‘self-awareness effect’’ that would both deter the police officer fromreacting with excessive or unnecessary force, and cool down the ‘‘aggressive demeanor’’ of thesuspect (or deter the police from interpreting demeanor in this way).”. ARIEL, Barak; FARRAR, William
40 WINGO, Melanie. Family, friends call for arrest of Modesto police officer who shot, killed man.Modesto, 2021. Disponível em:<https://www.kcra.com/article/demonstrators-call-arrest-charges-modesto-police-officer/35170778>.Acesso em: 16 de fevereiro de 2021.
39 FOX40. Interim Police Chief Says Recent Shooting of Unarmed Man was Modesto Officer’sfourth fatality. Modesto, 2021. Disponível em:<https://fox40.com/news/local-news/interim-police-chief-says-recent-shooting-of-unarmed-man-was-modesto-officers-fourth-fatality/>. Acesso em: 16 de fevereiro de 2021.
25
Em termos gerais, acredita-se que o que motiva o indivíduo a atuar
conforme as regras seja a chamada deterrence theory ou teoria da dissuasão, que
preconiza que o ser humano ao estar ciente de que está sob observação e que
qualquer ato potencialmente ilegal ou ilegítimo que pratique possa gerar
repercussões e sanções graves, ele se sente dissuadido de agir daquela forma.
Como as câmeras são perceptíveis, esta sensação de autoconsciência dos
atos é elevada, e como, em tese, é mais provável a apreensão por má conduta,
hostilidade ou qualquer ato criminoso seja certeira, tanto o cidadão quanto o policial
buscam se conter.42
Outro termo de relevância para entender os efeitos da tecnologia é a
chamada procedural justice ou justeza procedimental em português. Este conceito,
em termos gerais, significa a percepção de uma pessoa em relação à forma com a
qual foi tratada por uma autoridade. Considerando que foi tratada de maneira justa
procedimentalmente, o indivíduo verá as autoridades como legítimas e as respeitará
mais, sendo mais provável que obedeça a lei e a autoridade mesmo que a decisão
seja desfavorável ou inconveniente.43
Com a onda de popularização da tecnologia, muitos estudos vêm sendo
feitos nos últimos anos com o objetivo de tentar mensurar os impactos causados.
Em razão da amplitude de estudos, não há como se abordar toda a literatura a
respeito, portanto serão analisados uma seleta gama de pesquisas.
3.3.1 Uso de Câmeras e Número de Queixas Contra Policiais
Foram usadas as queixas/reclamações como parâmetro pois podem ser
indicadores do nível de insatisfação de uma população com a polícia, pois —
geralmente — é necessário um forte atrito para que seja formalizada uma
reclamação. É notório que nem todas as interações que resultem em desgosto de
43 GOVERNMENT OF THE UNITED KINGDOM. Procedural Justice. [S. l.], 2019. Disponível em:<https://www.gov.uk/guidance/procedural-justice>. Acesso em 14 de jun. de 2020.
42 ARIEL, Barak, et al. The Deterrence Spectrum: Explaining Why Police Body-Worn Cameras ‘Work’or ‘Backfire’ in Aggressive Police–Public Encounters. Policing: A Journal of Policy and Practice,vol. 12, 1ª ed., p. 6-26, 2018. Disponível em:<https://academic.oup.com/policing/article-abstract/12/1/6/2965583?redirectedFrom=fulltext>. Acessoem: 14 de junho de 2020.
A.; SUTHERLAND, Alex. The Effect of Police Body-Worn Cameras on Use of Force and Citizens’Complaints Against the Police: A Randomized Controlled Trial. Journal of Quantitative Criminology.[S. l.], vol. 31, p. 509-535, 2015, tradução nossa.
26
um cidadão sejam reportadas, mas ainda uma parcela é registrada e pode
demonstrar o engajamento da polícia em manter boas relações com a população.
3.3.1.1 Experimento de Rialto e a Teoria da Dissuasão
Considerado como um dos pioneiros no estudo da área, o experimento de
Rialto foi o primeiro a realizar testes controlados e randomizados das câmeras
utilizadas por policiais.44 Neste experimento se buscou avaliar a quantidade de
incidentes onde foi necessário utilizar a força e o número de reclamações contra
policiais.
A localidade escolhida foi a cidade de Rialto, Califórnia, que conta uma
população de cerca de 100.000 habitantes e os testes se deram de forma aleatória,
havendo uma parcela dos policiais servindo como “controle” (não foram equipados
com câmeras) e outra como “tratamento” (equipados com as BWCs). Durante os 12
meses de testes, aleatoriamente eram escolhidos policiais para utilizarem as
body-worn cameras.
Ao final deste período se concluiu que os dados obtidos sugerem tanto uma
redução na quantidade de incidentes onde o policial teve de usar força (redução de
cerca de 50%), quanto no número de reclamações contra policiais (redução próxima
da marca de 90%).
Isto sugere a ocorrência da deterrence theory (teoria da intimidação ou
teoria da dissuasão), que apregoa que, quando um indivíduo tem, ciência de que
está sendo observado, a chance de aderir às normas sociais é maior ou há uma
redução na probabilidade de cometer algo que seja considerado errado, em razão
da noção de que aquelas ações terão uma repercussão negativa ou uma sanção.
Similarmente a observadores sencientes, espelhos ou até fotos de olhos, ascâmeras não apenas nos tornam continuamente conscientes do fato deestarmos sendo vigiados, mas também nos leva a obedecer. Se estivermoscientes que uma câmera de vídeo está gravando nossas ações, tambémpodemos nos tornar conscientes de que comportamentos inaceitáveis serãocapturados em filme, e essa detecção é percebida como certeira.45
45 “Much like sentient observers, mirrors, or even pictures of eyes, cameras not only make uscontinuously conscious of the fact that we are being watched, but also drive us to compliance. If webecome aware that a video-camera is recording our actions, we may also become more consciousthat unacceptable behaviors will be captured on film, and that detection is perceived as certain.”.ARIEL; FARRAR; SUTHERLAND. 2015, p. 516, tradução nossa.
44 ARIEL; FARRAR; SUTHERLAND, 2015, p. 510.
27
Desta forma se teoriza que a Teoria da Dissuasão esteja presente e
incentivando que os policiais e o suspeito ajam de uma forma menos violenta, uma
vez que ambos estão sujeitos a sanções em relação às ações que tiveram perante a
BWC.
3.3.1.2 Período pós-experimental em Rialto
Quatro anos após o experimento de Rialto, realizou-se um acompanhamento
para verificar se a implementação das câmeras resultou em efeitos persistentes ou
houve um desaparecimento destes.46 O escopo era verificar se o uso de BWCs
causa efeitos que perduram além do período de experimentação, ou, se decorrido
uma certa quantidade de tempo, a quantidade de queixas e/ou usos de forças vão
retornar à quantidade anterior aos testes.
Houve esta preocupação em verificar quais são os efeitos a longo prazo,
pela noção que possivelmente os policiais tinham boas atitudes “somente para as
câmeras”, mudando tal comportamento na ausência do pesquisador.
Os resultados identificam um aumento no número de prisões no período
pós-experimental, mas isto provavelmente está relacionado ao aumento de policiais
em atividade (um aumento de 54 para 88 policiais). Fora isto, os números se
mostraram estáveis, significando que, com a introdução dos equipamentos houve
uma queda drástica na taxa de queixas e usos de força e estes resultados se
mantêm mesmo depois de encerrado o período de observação.
Se os policiais de Rialto permaneceram sensíveis a serem observados porcâmeras, ou se mudaram a maneira como se comportam ao lidar commembros do público, ou se os membros do público se comportaram demaneira diferente com os policiais de Rialto, o resultado continua: umaredução nas interações entre a polícia e público que resultam em uso deforça e/ou nas reclamações que foram sustentadas. Não podemos definirquais caminhos de mudança que explicam por que os efeitos do tratamentopersistiram, no entanto, estritamente do ponto de vista político, asbody-worn cameras podem ter implicações duradouras para as forçaspoliciais e os cidadãos a quem servem.47
47 “Whether Rialto officers remained sensitive to being observed by cameras, or changed the way theybehave when dealing with members of the public, or members of the public behaved differently withRialto officers, the result is the same: a reduction in police–public interactions resulting in use of forceand/or complaints that was sustained. We cannot characterize the pathways of change that explainwhy the treatment effects persisted, however, strictly from a policy perspective, body-worn cameras
46 SUTHERLAND, Alex., et al. Post-experimental follow-ups — Fade-out versus persistence effects:The Rialto police body-worn camera experiment four years on. Journal of Criminal Justice. vol. 53,p. 110-116, 2017.
28
Isto remonta que existem efeitos que perduram por um longo prazo após a
implementação e utilização da tecnologia, o que se demonstra como algo
extremamente positivo, já que confirma a eficácia das câmeras e permitirá, nos
locais onde estão presentes, uma redução no uso da força e diminuição da
quantidade de queixas contra policiais.
3.3.1.3 Réplica do experimento de Rialto em escala global
Em virtude de que os resultados obtidos em Rialto não necessariamente se
materializam de forma global, em razão das próprias especificidades da cidade de
Rialto, Califórnia, houve a necessidade de se conduzir uma nova pesquisa em sete
cidades diferentes, de países distintos, para testar se haveria uma reprodução dos
resultados.48
A metodologia adotada foi, aleatoriamente, escolher policiais para serem
tanto controle (não equipados com os aparelhos) quanto experimento (utilizando as
câmeras). Aqueles que utilizavam câmeras tinham de deixá-las ligadas durante todo
seu expediente, informando as pessoas com quem tivessem contato que estavam
equipados de câmeras que gravariam a interação. Assim, os policiais não poderiam
decidir quando ligar ou desligar as câmeras, devendo ser gravada qualquer
comunicação com o público do começo ao fim, sendo desligadas somente durante o
deslocamento de um local a outro ou nos períodos de intervalo do policial. A única
exceção a esta regra seriam em casos específicos, previamente definidos, como
durante a comunicação com informantes, violência sexual grave ou grandes
eventos.
Nos sete locais de experimento, 1,539 queixas foram apresentadas contrapoliciais nos 12 meses anteriores ao estudo (M = 219.86; SD = 206.9), ou1.20 queixas por policial. O número de queixas apresentadas contra apolícia caiu no período pós-tratamento para 113 (M = 16.14; SD = 13.1), ou0.08 queixas por policial. Isto marca uma redução geral de 93% naincidência de queixas, replicando o encontrado no experimento de Rialto.49
49 “Across the seven experimental sites, 1,539 complaints were lodged against police officers in the 12months preceding the study (M = 219.86; SD = 206.9), or 1.20 complaints per officer. The number of
48 ARIEL, Barak, et al. Contagious Accountability: A Global Multisite Randomized Controlled Trial onthe Effect of Police Body-Worn Cameras on Citizens’ Complaints Against the Police. [S. I.]: CriminalJustice and Behavior, vol. 44, nº. 2, p. 293-316, 2017.
may have long-lasting implications for police forces and the citizens they serve.” SUTHERLAND, et al.,2017, p. 114, tradução nossa.
29
A obtenção dos mesmos resultados demonstra que o emprego de
body-worn câmeras pode trazer benefícios a outras organizações policiais, já que os
dados sugerem que o mero emprego da tecnologia representa uma significativa
queda nos comportamentos indesejados (tanto do agente da lei quanto daquele
suspeito de tê-la infringido).
No entanto, a redução do número de reclamações contra a polícia não se
traduz imediatamente em um aumento da confiança pública e na legitimação da
força policial. O que pode-se afirmar é que uma diminuição na quantia de queixas
significa uma importante mudança paradigmática, podendo se hipotetizar que, aos
poucos, em decorrência de uma melhor (ou maior) observância das regras pelas
autoridades, se verá a execução da Justiça de forma mais equânime.
Ao mesmo tempo, BWCs provavelmente não são a panaceia para umproblema já profundamente enraizado como a legitimidade policial. Como aliteratura sugere, a correlação entre queixas e legitimidade não é forte, e éatualmente não tão claro até que extensão a prevalência de queixas dapopulação se correlaciona com a legitimidade policial em geral, além danossa suposição de que são uma procuração deste último. Mesmo no casoem que as BWCs levem a uma perfeita execução dos procedimentos — ummundo Tylerista ideal de uma completa implementação de justezaprocedimental50 (Tyler & Bies, 1990) — o que ocorre antes ou depois de umencontro ainda pode ser visto como injusto, racista, antiprofissional, oumalicioso.51
Outro resultado observado foi a redução no número de incidentes de uso da
força e de reclamações no grupo de controle, o que indicou aos pesquisadores que
51 “At the same time, BWCs are probably not the panacea for a deeply rooted issue such as policelegitimacy. As the literature suggests, the correlation between complaints and legitimacy is not strong,and it is presently not at all clear to what extent the prevalence of citizen complaints correlates withgeneral police legitimacy, beyond our assumption that they are a proxy of the latter. Even if BWCs canlead to perfectly executed police procedures — an ideal Tylerist world of 100% implementation ofprocedural fairness (Tyler & Bies, 1990) — what happens before or after the encounter might still beperceived as unfair, racist, unprofessional, or malicious.” ARIEL, Barak et al., Apud. Tom R. Tyler;Robert J. Bies. Beyond formal procedures: The interpersonal context of procedural justice. p.303, tradução nossa.
50 Justeza procedimental se trata de como o público vê o uso de poder pelas autoridades, podendo sedividir em quatro faces: dignidade e respeito, voz, imparcialidade de decisão e fidedignidade. ARIEL,Barak, et al. Using Wearable Technology to Increase Police Legitimacy in Uruguay: The Case ofBody-Worn Cameras. Law & Social Inquiry, Cambridge, vol. 45, 1ª ed., p. 52-80, 2020. Disponívelem:<https://www.cambridge.org/core/journals/law-and-social-inquiry/article/using-wearable-technology-to-increase-police-legitimacy-in-uruguay-the-case-of-bodyworn-cameras/0821D13156C686A9FC2556ACDAF81E91#fndtn-information>. Acesso em: 8 de junho de 2020.
complaints lodged against the police then dropped in the post treatment period to 113 (M = 16.14; SD= 13.1), or 0.08 complaints per officer (Table 2). This marks an overall reduction of 93% in theincidence of complaints, mimicking findings from the Rialto experiment.” ARIEL, Barak, et al., 2015, p.301, tradução nossa.
30
a repetida e sistemática exposição a um estímulo que provoca dissuasão (as
câmeras) aumentou a responsabilização, mesmo quando este estímulo
desapareceu.52 Também acreditam em um processo chamado contagious
accountability que pode ser entendido como uma “responsabilização” contagiosa,
entretanto o termo accountability é mais amplo do que a palavra responsabilização,
significando também a prestação de contas e a possibilidade de controle.
O comportamento esperado de um “oficial responsável” no local é exibiruma abordagem profissional, demonstrar justiça, dignidade e respeito paracom os membros do público - usando uma força proporcional somentequando necessário53
Diante dos resultados surge a pergunta: se as câmeras afetam mais os
policiais ou os cidadãos? Entendeu-se que o efeito foi maior na autoridade, pois os
dados demonstram que a mudança comportamental adquirida pela sensação de
observação (e consequente possibilidade de responsabilização) não se restringiu ao
grupo experimental, mas a todos os membros da força policial.
Este fenômeno significa que a noção dos policiais de que existem
dispositivos capazes de capturar transgressões de práticas éticas e profissionais —
mesmo quando tais dispositivos não estão em uso (a repetição de utilizar a câmera
e adequar sua conduta a presença dela) — causou tais efeitos em todos os
membros do departamento policial, o que se traduziu na prática à menos queixas
contra ambos os grupos (tratamento e controle).
3.3.2 Uruguai e o estudo sobre legitimação policial
Até o momento só se verificou os efeitos das BWCs durante a rotina de
policiamento cotidiano, sem se imiscuir em um ramo específico do policiamento,
ademais haver, como explicitado no início, a possibilidade de utilização das câmeras
portáteis nas mais variadas situações. O que nos traz ao estudo realizado no
Uruguai, que buscou detectar quais efeitos o uso da tecnologia causa na área do
policiamento de trânsito. Antes de se aprofundar no assunto, é importante definir o
53 “The expected behavior from an “accountable officer” at the scene is to exhibit a professionalapproach, to demonstrate fairness, dignity, and respect toward members of the public—using aproportional force only when necessary.” ARIEL, Barak et al. Using wearable technology to increasepolice legitimacy in Uruguay: the case of body-worn cameras. Law & Social Inquiry, v. 45, n. 1, p.52-80, 2020, tradução nossa.
52 ARIEL, Barak, et al., 2015, p. 305, tradução nossa.
31
que é Legitimação Policial, critério utilizado no estudo para auferir se há um aumento
na percepção de justeza procedimental.
3.3.2.1 Legitimação
As BWCs demonstraram tanto uma melhora no comportamento do policial e
do cidadão durante contatos, uma melhor coleta de evidências e servindo como
comentários ao treinamento policial (possibilidade de examinar e avaliar as atitudes
dos policiais). Mas e quanto à legitimação policial? Legitimação, geralmente, se trata
do poder de uma autoridade de emitir e fazer cumprir comandos. Pode se dividir em
três dimensões: consentimento (a autoridade é reconhecida como quem detém e
exerce poder), legalidade (limitação dos poderes através de normas e valores) e
valores compartilhados (identidade de objetivos e valores entre a sociedade e a
autoridade).54 Desta forma, a legitimidade compreende a legalidade da atuação
policial, o nível de segurança sentido pela população, se os procedimentos foram
aplicados de forma justa e se os resultados são percebidos como equânimes.55
Uma força policial legítima seria aquela que é obedecida não por medo, masporque exerce o poder de maneira adequada. De acordo com as dimensõespropostas por Beetham, a legitimidade da polícia seria, portanto, apercepção de que a polícia age de acordo com certas regras, que são justase justificáveis e que gera consentimento do público (Jackson e Bradford,2010).56
Portanto, o objetivo do estudo foi determinar se a utilização de câmeras
portáteis por policiais de trânsito se relaciona com um aumento da justeza
procedimental e em decorrência disto, melhorar a percepção de legitimidade policial.
3.3.2.2 Metodologia e resultados
Em colaboração com a polícia uruguaia, foi feito um estudo em escala
nacional para examinar as reações de cidadãos que foram parados tanto por
policiais utilizando ou não BWCs. Dos dezenove departamentos que compõem o
56 ZANETIC, op. cit., p. 159.55 ARIEL, Barak et al., 2020, p. 59.
54 ZANETIC, André et al. Legitimidade da polícia: segurança pública para além da dissuasão. Civitas- Revista de Ciências Sociais, [S. l.], v. 16, n. 4, p. 148-173, 2016. Disponível em:<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/24183>. Acesso em: 08 jun. 2020.
32
país, cinco regiões — que englobam áreas urbanas e rurais — da força nacional de
trânsito se voluntariaram a colaborar com o estudo.
Após a duração de, aproximadamente, um ano, nas cinco regiões
abrangidas, um total de 7.836 condutores foram multados. A utilização das câmeras
se deu de maneira diversa dos testes anteriores, pois durante um expediente todos
os policiais usavam (tratamento) ou nenhum usava (controle) câmeras, ao invés de
em um mesmo plantão uma quantidade de policiais usar e outra não. Isto permitiu
que em dias diferentes um mesmo policial possa estar inserido no grupo de
tratamento ou no grupo de controle. Os oficiais foram instruídos a manter suas
câmeras ligadas desde o início de cada abordagem, não havendo discricionariedade
em qual momento ligar os dispositivos. O equipamento utilizado também era
especial, as câmeras possuíam uma tela que mostrava o que estava sendo gravado
(permitindo que o condutor percebesse que estava sendo gravado), além dos
guardas emitirem um aviso verbal no início de cada interação, de modo a
conscientizar cada cidadão que ele estava sendo gravado. No caso do policial
aplicar uma multa, deveria constar na mesma o número da gravação de evidência
digital, bem como uma cópia deste número para controle interno.
Após cerca de trinta dias após serem multados, uma parcela dos condutores
foram entrevistados por uma companhia civil para determinar a experiência que
tiveram com os policiais através de uma série de perguntas. Estimou-se que, por
mês, aproximadamente seiscentos motoristas foram multados, sendo necessário,
para fins de amostragem, cerca de trezentos participantes no total, no entanto,
somente 217 se dispuseram a participar, dos quais 122 foram multados por policiais
“tratamento” e 95 por policiais “controle”.
A entrevista se deu em três partes, analisando primeiramente se quem
responderia às perguntas era o condutor e se ele se recordava do policial, havia
uma BWC e sua satisfação com a abordagem. Passado este ponto, através de
diversas questões se buscou examinar a percepção do motorista de justeza
procedimental, e em específico sua percepção de respeito, entonação,
imparcialidade e confiança. Ou seja, as questões tinham o objetivo de determinar se
o cidadão havia sentido-se tratado de forma justa e respeitosa e se o tratamento
recebido seria aquele dado a qualquer outra pessoa. Por fim, as últimas questões
eram somente para o grupo de pessoas abordadas por policiais que estavam
equipados com câmeras, sobre sua percepção delas.
33
Quanto aos resultados obtidos, no primeiro conjunto de questões (opinião
acerca do tratamento recebido) houve uma diferença perceptível, estatisticamente,
entre o grupo de condutores que foram abordados por policiais que usavam câmeras
em relação àqueles que foram abordados por policiais sem elas. Foi apontado que,
na ausência dos dispositivos, houve uma taxa maior de insatisfação dos cidadãos,
sendo afirmado por estes que os oficiais não lhes deram uma oportunidade de se
expressar. Ainda, em média, os condutores receberam melhor as decisões emitidas
por policiais equipados com BWCs em comparação às dos policiais sem o
equipamento.
Quanto à justeza procedimental, houve um aumento na percepção de que
os policiais que receberam as câmeras agiram com respeito e preocupação com o
bem-estar do condutor, demonstrando imparcialidade ou neutralidade em sua
tomada de decisões.
3.3.2.3 Conclusões
Os pesquisadores identificaram um aumento na percepção de justeza
procedimental no grupo abordado pelos policiais equipados com BWCs. Verificou-se
uma maior chance de os motoristas relatarem que se sentiram ouvidos antes da
tomada da decisão pelo oficial de trânsito, se sentiram tratados com respeito,
ocorrendo uma verdadeira preocupação com seu bem-estar e imparcialidade no
tratamento.
Também houve um aumento na percepção de justiça distributiva,57 mas não
na mesma proporção que a justeza procedimental. Existem evidências que as BWCs
aumentaram a sensação de segurança dos motoristas, uma vez que aqueles
abordados por policiais equipados com estes dispositivos relataram se sentir mais
seguros. No entanto, não foram encontradas quaisquer evidências que demonstrem
os efeitos da utilização das câmeras em práticas ilegais, não havendo dados de
estudos que tenham abordado especificamente se há algum impacto na corrupção e
pagamento de subornos.
57 A justiça distributiva se refere ao conceito aristotélico de igualdade e proporcionalidade baseadanas condições de cada indivíduo.
34
3.4 PONTOS NEGATIVOS
3.4.1 A Morte de George Floyd
A morte de George Floyd no fim de maio de 2020 teve repercussões nunca
antes vistas, surgindo manifestações pelo globo contra o racismo e a violência
policial. Os policiais que conduziram a abordagem estavam equipados de BWCs e
as mesmas estavam ligadas durante toda a sequência de eventos que levaram ao
óbito de Floyd. Havendo tantos estudos apontando os benefícios das câmeras,
surge a dúvida em relação à sua eficácia prática, uma vez que um cidadão morreu
depois de repetidos pedidos por ajuda e de uma pequena multidão reclamando da
condução da abordagem.
O que se pode perceber — principalmente entre aqueles que advogam pela
ampla utilização — é a crença de que os dispositivos por si só resolverão todos os
problemas existentes dentro das forças policiais. As câmeras têm o escopo de
angariar provas confiáveis e imparciais ao mesmo tempo em que desestimula
comportamentos impróprios, através da teoria da dissuasão, não tendo o objetivo ou
a capacidade de impedir a entrada de indivíduos violentos ou preconceituosos na
força policial. Também, contrário ao esperado, realizados estudos para mensurar se
havia mudanças na probabilidade de um policial ser atacado (verbal ou fisicamente),
identificou-se um aumento nos incidentes de uso de força e de agressões contra
policiais que estavam equipados com câmeras. Tal resultado contraria o
anteriormente exposto em relação à Teoria da Dissuasão e gera dúvidas em relação
à eficácia das BWCs como instrumentos de dissuasão. Portanto, entende-se que as
câmeras não oferecem uma resposta a todas as falhas existentes dentro da
execução da segurança pública, sendo necessário abordar tais problemas.
3.4.2 Aumento nos Incidentes de Agressão Contra Policiais
Em termos gerais, a utilização de BWCs diminuiu a quantidade de incidentes
de agressões contra policiais (tanto no grupo equipado, quanto no grupo de controle)
em 61%; diminuiu, em média, a quantidade de reclamações em 93%; reduziu o uso
de força em até 50%; minorou a quantidade de prisões e aumentou a cooperação
com a força policial, mas observou-se que aqueles que estavam equipados com
35
BWCs sofrem mais agressões do que os que não estavam.58 Isto significa que a
probabilidade de um policial equipado com o dispositivo ser agredido é 37% maior
do que um que não está equipado. Uma explicação para este fato seria uma
“over-deterrence” (excesso de dissuasão), ou seja, em razão da consciência que
quaisquer descomedimentos e transgressões em sua conduta, os policiais
sentiam-se desencorajados de agir em função de possíveis sanções que podem vir
a sofrer, mesmo quando a aplicação de força era necessária. Tal excesso em
comedimento por parte do policial pode aparentar uma “fraqueza” para o suspeito,
que pode vê-la como uma brecha para agir, resultando em uma maior taxa de
resistências e agressões.
Outra razão seria que, como cada parte da abordagem fica gravada, muitas
vezes o oficial deixa de emitir comandos verbais (com ou sem palavras ofensivas),
ou os emite de forma mais branda, que é uma das etapas no uso progressivo de
força (use of force continuum), sendo necessário utilizar a força em casos que
poderiam ser resolvidos apenas com comandos verbais. O uso progressivo de força
é composto por seis níveis: presença policial; comandos verbais; controle de
contato; controle físico; táticas defensivas não-letais; e a força letal.
5.1. NÍVEL 1 – PRESENÇA FÍSICA(...)5.2. NÍVEL 2 - VERBALIZAÇÃOBaseia–se na ampla variedade de habilidades de comunicação por parte dovigilante, capitalizando a aceitação geral que a população tem daautoridade. É utilizada em conjunto com a presença física do vigilante epode usualmente alcançar os resultados desejados.(...)O conteúdo da mensagem é muito importante. A escolha correta daspalavras, bem como a intensidade empregada, traduz com precisão aeficácia da intervenção. Assegurado desta postura, o vigilante terá maischances de alcançar o seu objetivo.As palavras-chave na aplicação da lei serão NEGOCIAÇÃO, MEDIAÇÃO,PERSUASÃO e RESOLUÇÃO DE CONFLITOS.Uma atenção especial deve ser dada à linguagem, muitos acreditam que,utilizando uma linguagem vulgar, chula e ameaçadora, desencorajam aresistência do suspeito. Diálogos dessa natureza causam espanto edemonstram falta de profissionalismo. O que se busca ao realizar averbalização é a redução do uso da força e o controle do suspeito(...)5.3. NÍVEL 3 - CONTROLE DE CONTATO OU CONTROLE DE MÃOSLIVRES
58 BARAK, Ariel et al. Paradoxical effects of self-awareness of being observed: testing the effect ofpolice body-worn cameras on assaults and aggression against officers. Journal of ExperimentalCriminology, [S. l.], vol. 14, 1ª ed., p. 19–47, 2018. Disponível em:<https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs11292-017-9311-5>. Acesso em: 10 de junho de 2020.
36
Trata–se do emprego de habilidades de contato físico por parte do vigilante,para atingir o controle da situação. Isto se dará quando se esgotarem aspossibilidades de verbalização devido ao agravamento da atitude docontendor (indivíduo conflitante).59
Assim, conclui-se que o efeito de observação causado pelas câmeras — o
qual afeta mais os policiais do que os cidadãos — pode trazer consequências
negativas em razão do excesso de dissuasão.
3.4.3 Forças Policiais Especializadas
Ademais os resultados sejam em sua grande maioria positivos para o uso de
câmeras móveis nas forças policiais comuns, as forças especializadas (e. g.
investigadores, Special Weapons And Tactics (SWAT), polícia com cães, grupo
anti-gangues e anti-crime) são encarregadas de missões muito singulares, tendo
um treinamento diferente, o que torna sua interação com o público distinta, criando
responsabilidades particulares para estas forças. Não se pode transpor as
body-worn cameras para estes grupos especializados esperando que se ocorra os
mesmos resultados obtidos com os policiais que tenham a função precípua de
patrulha.60 Apesar disto, os benefícios que as câmeras trazem são parecidos aos
obtidos pelas forças policiais comuns, sendo afirmado pelas unidades especiais que:
[...] os BWCs são ferramentas valiosas porque oferecem benefíciosprobatórios, documentam o comportamento criminoso dos cidadãos,protegem os policiais contra queixas falsas, ajudam na elaboração derelatórios mais precisos e alguns [policiais] mencionaram que isso faz comque os cidadãos se comportem de maneira mais civilizada.61
Outro ponto que foi destacado é que há a necessidade de se desenvolver
políticas sobre o uso de BWCs específicas para cada unidade de acordo com as
61 Specialty unit officers believed BWCs are valuable tools because they offer evidentiary benefits,document citizens’ criminal behavior, protect officers against false complaints, assist with moreaccurate report writing, and a few mentioned that it causes citizens to behave more civilly. Ibid, 2018,p. 142, 2020, tradução nossa.
60 GAUB, Janne E.; TODAK, Natalie; WHITE, Michael D. One Size Doesn’t Fit All: The Deployment ofPolice Body-Worn Cameras to Specialty Units. International Criminal Justice Review, vol. 30, 2ªed., p. 136-155, 2020. Disponível em:<https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1057567718789237>. Acesso em: 10 de junho de 2020.
59 POLÍCIA FEDERAL. Curso de Extensão em Equipamentos Não Letais I (CENL-I). [S. l.], 2009,pgs. 9 e 10. Disponível em: <http://www.pf.gov.br/servicos-pf/seguranca-privada/legislacao-normas-e-orientacoes/manual-do-vigilante/manual-do-vigilante/Caderno%20Didatico%20CENL%20I.pdf/view>. Acesso em: 12 de junho de2020. (grifos nossos e no original).
37
suas necessidades ou que certas unidades específicas não usem. Isso se dá uma
vez que certas unidades são treinadas para utilizar tipos diferentes ou mais intensos
de força, que podem ser mal interpretados por um cidadão que não tenha
conhecimento da situação ou da natureza da atividade daquele policial (certas
atitudes podem aparentar ser desumanas ou excessivas para um olho não
treinado).62
Há a necessidade de se discutir a percepção de que a falta de gravação
possa significar que o fato nunca ocorreu ou ocorreu de forma diferente, como se a
palavra do policial não tivesse nenhum valor ou que esteja omitindo algo (afetando
principalmente aquelas forças que lidam com grandes períodos de inatividade e
repentinamente são chamados ao serviço, nem sempre tendo tempo hábil para ligar
sua câmera no momento necessário ou até mesmo se olvidando de fazê-lo).
As gravações podem causar um problema nas unidades de investigação em
razão do excesso de informações, sendo inviável analisar cada hora de gravação no
momento de montar um caso, devendo haver um balanço entre querer ver todos os
fatos gravados e a impossibilidade de assistir diversas horas de vídeo. Não há como
se deixar de lado que em razão da natureza desta atividade, testemunhas,
informantes e cidadãos em geral podem vir a ter receio de compartilhar informações
diante da câmera.
Por outro lado, algumas unidades encontraram formas novas de utilizar as
câmeras dentro das unidades especializadas, com alguns investigadores usando as
imagens para identificar suspeitos ou rever o desenrolar dos fatos antes de conduzir
um interrogatório. Negociadores usaram as câmeras como forma de se comunicar
com indivíduos que não permitiam a aproximação de oficiais ou utilizar a gravação
nos casos onde não é possível impedir um suicídio, demonstrando que houve
incessantes tentativas, evitando quaisquer processos na esfera civil por uma “má
vontade” do negociador. A unidade com cães reconheceu que é muito mais fácil
comprovar que as notificações necessárias foram feitas, informando ao suspeito de
que haviam policiais e que portavam cães, bem como os vários comandos verbais
62 Um negociador, pode, por exemplo, empregar táticas com o objetivo de tentar esgotaremocionalmente um indivíduo, provocando-o de modo a abalar seu emocional, facilitando umacontenção. De outro vértice, as unidades que empregam cachorros são treinadas para utilizarcomandos físicos que podem aparentar um abuso físico ou maus-tratos ao animal, sendo práticascomuns no treinamento do animal.
38
para que o suspeito obedeça antes de os cães serem efetivamente liberados,
evitando ações judiciais.
Em certas ocasiões não equipar certas unidades é a melhor opção uma vez
que, por exemplo, a SWAT utiliza técnicas avançadas que não podem ser vistas pelo
público, caso contrário perdem a sua eficácia ao serem usadas em seu desfavor.
Outro ponto foi que as unidades com cães demonstraram preocupação das
gravações serem usadas por criminosos para descobrirem as fraquezas dos cães e
técnicas para enfrentá-los ou até mesmo como esconder-se deles.
Em resumo, BWCs podem ser vantajosas para grupos policiais
especializados, mas desde que ocorra uma adaptação da tecnologia para as
necessidades e especificidades de cada, não podendo ser de imediato implantada
naqueles grupos, isto se for possível e recomendada sua incorporação. Nas forças
policiais comuns também deve se dar atenção e treinamento para a adaptação à
tecnologia, de modo a torná-las mais efetivas durante o cotidiano, evitando um
autopoliciamento muito severo.
3.5 A GRAVAÇÃO COMO PROVA
O resultado da gravação pode ser crucial como elemento de prova, pois se
feita corretamente, pode convencer estreme de dúvidas até os fatos mais
controversos, uma vez que oferece uma visão imparcial do ponto de vista de um dos
principais atores, o policial. No entanto, surgem diversas questões em relação à
confiabilidade das câmeras, possibilidade de exclusão ou adulteração das imagens e
sons captados, e por fim, se a ausência de gravação, por si só, invalidaria a palavra
do policial. Importante definir em qual momento a câmera deve começar a gravar e
se terá o policial controle sobre este momento, se toda e qualquer situação poderá
ser gravada, se tais gravações serão tornadas públicas.
3.5.1 Confiabilidade e Segurança das Gravações
Para manter a segurança das gravações e impedir a adulteração, as
fabricantes vêm empregando criptografia como método de segurança, o que
significa passar os dados por um programa que codifica os dados, impedindo sua
leitura e modificação. Algumas empresas também disponibilizam em suas câmeras a
39
funcionalidade de automaticamente enviar as gravações aos servidores da polícia,
não havendo possibilidade de corrupção nas filmagens. Ainda, a responsabilidade
do policial é de apenas iniciar a gravação, mesmo havendo dúvida sobre a
necessidade, não tendo poder ou acesso para copiar, duplicar, editar, apagar ou
qualquer outra ação.63
3.5.2 Valor da Gravação Como Prova
Poder-se-ia fazer a comparação das gravações com aquelas capturadas por
uma câmera de segurança, ao trazerem uma maior segurança ao recontar o
desenvolver dos fatos por sua imparcialidade e verossimilhança. Mas, em um
sistema processual penal como o brasileiro, onde não mais existe um valor
intrínseco a cada tipo de prova (oposto ao sistema da prova tarifada), em que lugar
essas gravações devem ficar? Não há como considerá-las como verdades
absolutas, apesar do manifesto destaque a este tipo de prova justamente por sua
isenção, no entanto ainda deverá ser analisado todo o contexto, uma vez que o que
deve motivar a decisão do juiz não é a fidedignidade de cada prova, mas o
convencimento que trazem ao julgador. Outro ponto relevante é que este tipo de
prova será colhida na fase pré-processual, não podendo uma condenação se basear
somente nesses fatos, uma vez que não passaram pelo crivo do contraditório e da
ampla defesa.
A grande questão reside não na presença de provas durante um processo
penal, mas em sua ausência. Como a ausência de uma gravação afetará o livre
convencimento do juiz é algo que não há como se responder, mas certamente
causará algum grau de desconfiança. Seguramente o que pode-se afirmar é que a
palavra do policial não pode ser ignorada, pois ademais poder ter algum interesse
subjetivo em alterar os fatos, isto deve ser entendido como exceção e não como
norma, uma vez que o sistema legal pátrio presume a inocência como regra.
3.5.3 Início e Fim da Gravação
63 POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. Regras de emprego das COP. [s. l.], [s. d.].Disponível em: <https://www.policiamilitar.sp.gov.br/COP/Index#/regras-de-uso>. Acesso em: 22 dejan. de 2021.
40
Uma quantidade de câmeras possui a função de “gravação pré-evento”,
significando que de 30 segundos a 2 minutos antes do botão de gravação ser
pressionado, a câmera já está gravando. Isto funciona da seguinte maneira: a
câmera grava continuamente e repetidamente 30 segundos em um pequeno
compartimento de sua memória e quando o botão é pressionado iniciando a
gravação, este intervalo de tempo anterior também é salvo em conjunto com o resto
da gravação. Estes segundos podem ser cruciais para demonstrar, um ataque ao
policial que justificasse o uso de força, o qual poderia não ter sido capturado por
uma demora em pressionar o botão de gravar.64
A polícia de Dorset na Inglaterra afirma que as câmeras não ficarão sempre
ligadas, somente sendo utilizadas para capturar casos específicos — ou onde exista
a necessidade — como nos casos onde ocorra a abordagem de indivíduos,
abordagem de veículos, entrada em imóveis para realizar uma prisão, busca em
instalações, terrenos ou veículos, ou em casos críticos, como o uso de força por um
cidadão contra outro ou contra propriedade, quando se suspeite violência doméstica
ou condições análogas à escravidão.65 Como pioneira e provável parâmetro
nacional, a PMESP afirma que a gravação se inicia com a iniciativa do policial de
acordo com normas internas que regulam tanto o momento, quanto em quais
ocorrências e as sanções disciplinares caso haja descumprimento.66
Outra questão que deve ser muito discutida antes da implementação de
qualquer política pública de utilização de BWCs é o momento em que elas serão
ligadas. Em todos os testes conduzidos o policial não tinha discricionariedade para
escolher quando ligar e desligar a câmera, mas um problema mais sério reside nos
incidentes onde a câmera havia sido ligada, mas depois desligada ou silenciada.
As BWCs precisam permanecer ligadas por todo o contato entre a polícia eo público, do início ao fim, e como um método de corroborar a lógica dequalquer ação que o policial tenha tomado para lidar com a situação. Emtermos da teoria da dissuasão, a “ameaça crível” de apreensão é elevadaatravés de total transparência, na medida em que os reclamantes agora têm
66 POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. Regras de emprego das COP. [s. l.], [s. d.].Disponível em: <https://www.policiamilitar.sp.gov.br/COP/Index#/regras-de-uso>. Acesso em: 22 dejaneiro de 2021.
65 DORSET POLICE. Body worn video. [S. l.], [2020?]. Disponível em:<https://www.dorset.police.uk/news-information/body-worn-video/frequently-asked-questions/>.Acesso em: 8 de junho de 2020.
64 OLIVEIRA, Caroline Z. Caught on Bodycam Video: Exploring Issues of Preservation, Privacy,and Access. 2018. Tese de Doutorado. New York University, tradução nossa. p. 17-18.
41
as evidências necessárias para apoiar sua alegação de que foram ofendidospelo policial (e, novamente, vice-versa).67
Neste sentido, em 2018 ocorreram diversas manifestações populares
revoltadas com a morte de Stephon Clark durante uma perseguição policial, após os
policiais confundirem seu celular com uma arma de fogo. Com a chegada de mais
policiais e do superior, houve a instrução de impedir que as BWCs captassem áudio
enquanto conversavam, gerando questionamentos a respeito da possibilidade de se
silenciar os dispositivos.68 Ainda, há de se estabelecer quais serão as políticas de
armazenamento das imagens, uma vez que a destruição de uma gravação que
potencialmente possa ser útil para a defesa de um acusado pode representar um
grave problema para o sistema judicial.
Considerando que haja a destruição de um arquivo que contenha uma
interação entre o suspeito e policial, pode-se exigir que o Estado forneça as imagens
se esta gravação representar uma importante tese defensiva, em especial nos casos
de revisão criminal? O Estado está sujeito a pagar uma indenização ou
compensação se houver o extravio ou destruição das gravações? Estas são
perguntas cujas respostas não são facilmente obtidas, dependendo de uma análise
mais aprofundada no tema. Com o crescente acúmulo de filmagens, em breve os
departamentos policiais se verão soterrados de filmagens e sem uma clara e
eficiente forma de categorizá-los, muito brevemente se verá a perda ou destruição
acidental de importantes provas.
O processo de revisão e categorização de imagens das câmeras usadas nocorpo também apresenta desafios logísticos para as forças policiais. Osvídeos são normalmente rotulados ou "marcados" como "comprovativo" ou"não probatório" no final do turno de cada policial. O vídeo é categorizadoainda mais pelo incidente específico que documenta, que pode estar sujeitoàs regras probatórias do estado para filmagens de um determinado tipo.Essas tags são importantes, pois as políticas de retenção de vídeo dosdepartamentos de polícia geralmente exigem diferentes períodos dearmazenamento para imagens comprobatórias e não comprobatórias.Devido às muitas horas de filmagem geradas a partir de um grande
68 JOHN, P. S., ‘Hey, mute’: After they shot Stephon Clark, officers cut their audio. And that addsto the outcry. Sacramento, 2018. Disponível em:<https://www.latimes.com/local/lanow/la-me-stephon-clark-video-mute-20180331-story.html>. Acessoem: 13 de jun. de 2020.
67 “BWCs need to stay on for the entire police–public contact, from start to finish, and as a method ofcorroborating the rationale for any action that the officer has taken to deal with the situation. Indeterrence theory terms, the “credible threat” of apprehension is elevated through completetransparency, to the extent that complainants now have the necessary evidence to support their claimthat they have been wronged by the officer (and, again, vice versa).” ARIEL, Barak, et al., 2015, p.305, tradução nossa.
42
programa de câmera usadas no corpo, esse processo impõe custosadministrativos significativos e consome tempo para os policiais.69
Manter as gravações é custoso, podendo se afirmar que somente o custo de
armazenar horas de gravação seja mais oneroso do que a compra dos dispositivos,
em razão do vasto espaço consumido por um destes arquivos. Outro fator que pode
variar o tamanho dos arquivos gravados — e subsequentemente seu custo —, é a
qualidade da imagem e a quantidade de quadros por segundo capturados. Diante
deste problema, onde nem todos os municípios terão verbas e estrutura para
armazenar tanta informação, o problema com a destruição ou extravio de gravações
se torna particularmente preocupante, pois será frequente.
3.5.4 Os Casos Brady e Youngblood
A Suprema Corte americana já decidiu sobre a ausência de provas em dois
casos distintos, sendo relevante determinar se o fato é materialmente exculpatório
ou se somente é potencialmente útil ao réu. Tal entendimento surgiu após a decisão
em dois casos paradigmáticos: Brady e Youngblood, sendo no primeiro discutido o
dever governamental de manter e divulgar evidências exculpatórias aos réus
criminais, enquanto no segundo define um alto padrão de má fé do réu.
Em Brady v. Maryland (Brady v. Maryland, 373 U.S. 83, 87 de 1963)
discutiu-se a obrigação Estatal em divulgar e reter evidências, uma vez que tal dever
tem sua origem no princípio do devido processo legal. In casu se decidiu que a falha
em apresentar provas que sejam favoráveis ao réu e ao mesmo tempo relevante
para a culpa ou punição é uma violação do devido processo legal. Para determinar
se há uma violação ao princípio constitucional, o acusado deverá demonstrar que
provas favoráveis ao seu caso lhe foram negadas e isto ocasionou um prejuízo.
Assim, será feito o juízo sobre a capacidade exculpatória da evidência retida com
base na probabilidade de que a sentença teria sido outro caso os materiais fossem
69 “The process of reviewing and categorizing body-worn camera footage also presents logisticalchallenges for police forces. Videos are typically labeled, or “tagged,” as “evidentiary” or“non-evidentiary” at the end of each officer’s shift. Video is further categorized by the specific incidentit documents, which may be subject to state evidentiary rules for footage of a certain type. These tagsare important, as video retention policies of police departments typically require different storage timeperiods for evidentiary and non evidentiary footage. Due to the many hours of video footage generatedfrom a large body-worn camera program, this process imposes significant administrative costs and istime consuming for officers.” BARBOUR, Bradley X. Big budget productions with limited release: Videoretention issues with body-worn cameras. Fordham L. Rev., v. 85, p. 1745, 2016, tradução nossa.
43
divulgados. Nestes casos não será necessário demonstrar a má fé do promotor em
não fornecer tais evidências.70
Já em Arizona v. Youngblood (Arizona v. Youngblood, 488 U.S. 51, 58, de
1988) analisa os efeitos da perda ou destruição de evidências e sua importância
para o caso em discussão, onde somente se pode especular acerca da
favorabilidade das evidências perdidas.
Durante o caso de estupro de uma criança, a polícia não refrigerou asroupas da criança que continham sêmen de seu agressor, o que impediucriminologistas de testá-las para ajudar a identificar o perpetrador. Depoisque o réu foi condenado, o Tribunal de Apelações do Arizona anulou adecisão, sob o fundamento de que o Estado se desfez indevidamente deprovas potencialmente exculpatórias e violou os direitos do réu ao devidoprocesso legal.71
A Suprema Corte americana, no entanto, decidiu que é necessário o réu
demonstrar má fé por parte da polícia, sendo que o erro em não preservar material
potencialmente útil não é uma violação ao devido processo legal.
Em Youngblood, o Tribunal distinguiu [do precedente] Brady, constatandoque o caso anterior dizia respeito a evidências "materialmenteexculpatórias" para o réu, enquanto as evidências em Youngblood eramapenas "potencialmente úteis" para o réu.72
Nos anos que se seguiram, acabou sendo percebido uma grande dificuldade
em demonstrar a má fé na preservação de provas em razão de manuseio
imprudente ou negligente das evidências.73
Os tribunais devem expandir a proteção de suas constituições estaduaiscontra a destruição de provas ou devem interpretar Youngblood parapermitir que sejam feitas instruções de falta de provas nos casos em que háausência de má-fé, mas nos quais o efeito da destruição de provas ésignificativo o suficiente para influenciar fundamentalmente a justiça de umjulgamento. Os Estados também devem estabelecer estatutos que regulemos períodos de tempo em que as filmagens das câmeras são armazenadas
73 Ibid., p. 1739.
72 “In Youngblood, the Court distinguished Brady, finding that the earlier case concerned evidence thatwas “materially exculpatory” to a defendant,whereas the evidence in Youngblood was only “potentiallyuseful” to the defendant.” Ibid., p. 1738.
71 “In a case concerning the rape of a child, the police did not refrigerate the child’s clothing containinghis assailant’s semen, which prevented criminologists from testing it to help identify the perpetrator.87After the defendant was convicted, the Arizona Court of Appeals overruled the lower court’s decision,on the grounds that the state improperly disposed of potentially exculpatory evidence and violated thedefendant’s due process rights.” BARBOUR, Bradley X. 2016, p. 1738, tradução nossa.
70 BARBOUR, Bradley X. Big budget productions with limited release: Video retention issues withbody-worn cameras. Fordham L. Rev., v. 85, p. 1737, 2016.
44
para evitar a probabilidade de que o conteúdo probatório seja destruídoantes que o vídeo possa ser utilizado em julgamentos criminais.74
Ainda neste sentido, nos Estados Unidos, não há uma unificação em relação
às políticas públicas de preservação e armazenamento dos vídeos, variando
vastamente de um departamento policial a outro. Isso resultou que muitas vezes não
foram fornecidas as filmagens, mesmo quando a requisição partia da vítima. A falta
de uma norma geral sobre a preservação dos vídeos e os entendimentos proferidos
em Brady e Youngblood causam receio em relação às filmagens de BWCs, pois não
se sabe qual será a posição dos tribunais frente a ausência ou não
compartilhamento destas provas, o que é potencialmente perigoso ao réu.
Corroborando com tal apontamento, em 2017 foram analisadas 105 mortes
causadas por policiais usando BWCs, sendo que em 40 casos não houve a
divulgação das imagens. Nos casos onde as ocorrências foram tornadas públicas:
em 27% ocorreu nos primeiros sete dias; em 10% foram em até trinta dias; 25% das
imagens só foram disponibilizadas depois de 30 dias e em 38% dos incidentes não
foram liberadas as imagens.75 Dessa forma, mesmo existindo uma câmera durante
um incidente, a publicização das imagens muitas vezes não é alcançada, o oposto
do esperado pela implementação de tais tecnologias.76
3.5.4 Publicidade e Privacidade
Quanto à privacidade, ainda é um tópico a ser debatido pois todo e cada
cidadão tem o direito fundamental à privacidade e a gravação indiscriminada pode
oferecer um risco ou uma afronta a este direito. No cenário atual, é compreendido
que o policial é quem decidirá quando ligar sua câmera, desde que exista a
necessidade, e se possível anunciará para qualquer indivíduo presente que está
76 MATSAKIS, Louise. Body Cameras haven’t stopped police brutality. Here's why. [S. l.], 2020.Disponível em: <https://www.wired.com/story/body-cameras-stopped-police-brutality-george-floyd/>.Acesso em: 23 de fevereiro de 2021.
75 BOGEN, Miranda. What happens to body cam footage after fatal police shootings? [s. l.], 2018.Disponível em:<https://medium.com/equal-future/what-happens-to-body-cam-footage-after-fatal-police-shootings-7759606c5b20>. Acesso em: 29 de abril de 2021.
74 “Courts should expand protections against the destruction of evidence in their state constitutions orshould interpret Youngblood to allow for missing-evidence instructions in cases where there is anabsence of bad faith but in which the effect of the destruction of evidence is significant enough tofundamentally influence the fairness of a trial. States should also establish statutes regulating the timeperiods in which body-worn camera footage is stored to prevent the likelihood that evidentiary footagewill be destroyed before the video can be utilized in criminal trials.”. Ibid., p. 17550,, tradução nossa.
45
sendo captado áudio e vídeo. Ao se analisar a publicidade, considerando este direito
à privacidade, não é indicado que toda e qualquer gravação seja tornada pública, já
que pode expor desnecessariamente certos cidadãos ou atrapalhar uma
investigação que ainda está em curso. Caso totalmente contrário seria o daquele
indivíduo que foi gravado por uma câmera policial e deseja ter acesso, o que não
pode ser impedido, porém, tais informações devem ser requisitadas e emitidas
somente através da comprovação da identidade do requerente, não havendo a
obrigação de se fornecer informações sobre fatos ainda sob investigação.77
Ponto que merece destaque ao se falar de publicidade é que a profissão
policial lida com casos muito delicados, muitas vezes encontrando pessoas em
situação vulnerável ou humilhante. Neste ponto que se enxerga outro reforço à ideia
de necessidade de que as gravações sejam mantidas em sigilo, pois seria uma
grave violação ao direito pessoal da vítima se uma destas informações fosse vazada
ao público ou até mesmo viralizada. Em São Paulo, a falta de legislação específica
sobre a coleta de imagens e sons pelas câmeras portáteis causa preocupação, lá
sendo adotada a lei que regula a privacidade de provas jurídicas, não sendo
permitido que a pessoa abordada possa escolher não ser gravada, até em situações
onde a discrição é desejada, como ocorrências dentro do domicílio. Também há a
preocupação com a privacidade do policial, já que será o mais afetado pela
utilização, mas como a tecnologia ainda é novidade no Brasil, estas questões ainda
não estão bem definidas em nosso cenário político-jurídico.78
3.5.5 Gravação como Treinamento
Uma aplicação muito promissora se apresenta na forma de treinamento,
uma vez que a rotina de um policial pode ser caótica, se deparando com as mais
inesperadas e delicadas, exigindo atitudes que nem todos os agentes estão
78 AGÊNCIA O GLOBO. Fardas com câmeras reduzem violência policial, mostram pesquisas.Disponível em:<https://exame.com/brasil/fardas-com-cameras-reduzem-violencia-policial-mostram-pesquisas/>.Acesso em: 03 de maio de 2021.
77 Há de se considerar em que período e em qual ponto que a gravação será feita, há uma diferençaentre uma gravação que ocorra em decorrência de uma abordagem na rua e que venha a instaurarum Inquérito Policial do que uma ocorrida após ordem judicial de busca e apreensão. Isto éimportante especialmente dentro do inquérito uma vez que o investigado somente pode obterinformações pertinentes a si com a aprovação do delegado, uma vez que não prejudique os atos deinvestigação, em razão de não haver as garantias do contraditório e ampla defesa que umprocedimento judicial preceita.
46
preparados para tomar. Assim, verifica-se nesta tecnologia uma importante
ferramenta de aprendizado, pois da mesma forma que pode ser analisada a
legalidade da atitude, também pode ser apreciada sua conduta e corrigida nos
pontos necessários.
Finalmente, alguns oficiais de unidades especializadas descreveramaplicações únicas de treinamento com BWCs. Isso foi mais comum nacidade de Tempe do que em Spokane. Muitas unidades assistem vídeosdurante o treinamento. Por exemplo, algumas unidades mostram imagenspara recrutas e novos oficiais designados para suas unidades parademonstrar sucessos e fracassos, quedas, curvas, manobras e táticas. Elestambém analisam os vídeos como em grupo ou esquadrão para avaliar eanalisar de forma crítica seu desempenho.(...)A unidade de gangues em Tempe disse que pendurou um BWC na parededurante o treinamento para permitir que os oficiais revissem seudesempenho pessoal posteriormente. Uma policial relatou estar chocadadepois de ver quanto tempo levou para ela sacar a arma. Além dotreinamento da unidade, os policiais disseram que veem suas própriasimagens gravadas no trabalho para melhoria pessoal.79
O potencial educacional não pode ser ignorado uma vez que se trata de
ferramenta bastante útil aos policiais, principalmente aqueles que recém saíram das
academias de formação e ainda não estão habituados à profissão. Uma melhor
profissionalização da polícia resulta em um melhor atendimento à população,
mitigando a quantidade de “maus encontros” que podem comprometer as interações
com a comunidade.
Um benefício que ignoramos, mas que deve ser observado de perto nofuturo, é o "potencial de treinamento" dos vídeos capturados pelas BWCs.Os policiais de Rialto fizeram download de suas próprias imagens para versuas interações cotidianas. Assim como na cirurgia, futebol ou atuação, asimagens gravadas pelas câmeras policiais podem ser usadas para "treinar"os policiais sobre como eles se comportam. Prevemos que no futuro ostreinamentos policiais irão incorporar sessões individuais nas quais oficiaissubalternos treinam com suas próprias imagens, sobre conduta policial epotencialmente melhorar seu comportamento ao lidar com suspeitos,vítimas e testemunhas. Os benefícios associados a uma abordagem tãoimpactante do treinamento por meio de treinamento digital, baseado em
79 “Finally, a few specialty unit officers described unique BWC training applications. This was morecommon in Tempe than in Spokane. Many units view videos in training. For example, a few units showfootage to recruits and new officers assigned to their units to demonstrate successes and failures,falls, turns, maneuvers, and tactics. They will also review videos as a group or squad to assess andcritically review performance. (...) The gang unit in Tempe said they have hung a BWC on the wallduring training to allow officers to review their performance afterward. One officer reported beingshocked after seeing how long it took for her to draw her gun. In addition to unit training, officers saidthey view their own footage recorded on the job for personal improvement.” GAUB; TODAK; WHITE;2020, p. 145, tradução nossa.
47
evidências, para justiça processual, justiça distributiva e conduta policial emgeral, deve ser uma área de investigações futuras.80
Ainda é incerto qual rumo esta tecnologia tomará, mas é inegável as
vantagens que pode trazer ao treinamento de um policial, ainda mais se
considerarmos que nem todo indivíduo está preparado para suportar situações de
extremo estresse como as quais um agente de segurança pode vir a presenciar e
participar. Como o General de Brigada e historiador americano Samuel Lyman
Antwood Marshall narra em seu livro “Men against fire: the problem of Battle
Command”, o qual foi escrito durante e após a Segunda Guerra Mundial com base
nos depoimentos de soldados de infantaria, nem todo soldado estava disposto a
pegar em armas e atirar contra o inimigo, com poucos efetivamente aceitando a
carga moral e emocional que matar traz. Agora se tratando de um policial, o mesmo
não sabe quem e onde encontrará um adversário que pode vir a tirar sua vida, tendo
de tomar decisões rápidas que podem significar a vida e a morte, muitos tendo
crises emocionais após um confronto. Afinal, se é natural matar, por que os homens
têm que treinar para aprender como fazê-lo?81
81 “If it’s natural to kill, how come men have to go into training to learn how?” frase de Joan Baez,tradução nossa.
80 “One benefit which we have overlooked but should be closely observed in the future is the ‘‘trainingpotential’’ of body-worn-videos. Rialto officers downloaded their own footage in order to view theirinteractions on a routine basis. Much like surgery, football or acting, the footage recorded by policebody worn-videos can be used to ‘‘coach’’ police officers, about how they conduct themselves. Weenvisage future police training to incorporate one-on-one sessions in which junior officers train withtheir own footage,about police conduct and potentially improve their demeanor when dealing withsuspects, victims and witnesses. The benefits associated with such an impactful evidence-basedapproach to training through digital coaching, for procedural justice, distributive justice and policeconduct more generally, should be an area of future investigations.” ARIEL, Barak; FARRAR, WilliamA.; SUTHERLAND, Alex. The effect of police body-worn cameras on use of force and citizens’complaints against the police: A randomized controlled trial. Journal of quantitative criminology, v.31, n. 3, p. 509-535, 2015.
48
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A vantagem da tecnologia é causar uma reforma no funcionamento da
polícia, passando de um modelo onde o policial é visto como uma autoridade que
tem poderes quase ilimitados para um aplicador da lei obrigado a segui-la. Isto pode
ter efeitos positivos e negativos, os quais podem ser mitigados ou até extirpados se
houver uma criação ponderada de políticas públicas, onde seja considerada a
especificidade de cada região e unidade policial. Não deixa de ser uma alternativa à
desmilitarização e fusão das polícias militar e civil, as quais apesar de terem mais
efeitos a longo prazo exigem um nível de cooperação política que dificilmente será
alcançado sem um grande apoio popular. Em outras palavras, significa que as
BWCs apresentam uma solução de curto prazo (que também pode ter efeitos
duradouros) para os problemas de legitimação e profissionalismo das forças policiais
sem necessitar de mudanças muito profundas em suas estruturas.
Certamente que a melhor opção seria que houvesse uma motivação
intrínseca das autoridades em agir de forma justa, mas é um fenômeno conhecido
que os detentores de poder nem sempre estão preocupados com a moralidade de
suas ações. O que as câmeras oferecem é um contorno a este problema, trazendo a
capacidade de responsabilização das autoridades que se desviam das condutas
esperadas e desejadas pela sociedade. No entanto, está longe de ser a melhor
solução, uma vez que não muda o comportamento do policial, apenas o registra. O
efeito mais proeminente das câmeras é que protegerá os policiais de acusações
infundadas e permitirá a narrativa acurada dos fatos, mas causará enormes
dificuldades burocráticas e econômicas.
O custo não reside tanto no valor intrínseco das câmeras (apesar de serem
caras por si só), mas no armazenamento das informações capturadas — tal custo
podendo ser amortecido pelas despesas judiciais evitadas. Também não há como se
olvidar que é necessário prover o devido treinamento e cuidado para que sejam
mantidas as gravações, pois em delegacias de menor porte e menos financiadas, a
chance de ocorrer a danificação das imagens é grande, seja em razão da falta de
habilidade técnica para armazenar ou a própria inexistência de estrutura para
armazenar tantas informações.
Há de se ter em mente que dois tipos de custos ainda não estão
completamente definidos, primeiro ainda não se sabe quais são os custos efetivos,
49
diretos ou indiretos, de armazenar, compartilhar e gerir toda gama de informações
que será coletada, pois mesmo que uma minoria dos incidentes seja evidenciário ou
probatório, em pouco tempo haverá um tremendo acúmulo de informações. Licenças
de produto, espaço de armazenamento, segurança e manutenção podem significar
custos altíssimos que ainda não estão evidentes. Segundo, ainda não há uma
resposta definitiva para o que acontece na ausência de gravações durante casos
criminais. Dentro de um procedimento judicial a palavra do policial, apesar de nem
sempre ser verídica, carrega um peso especial se comparada às outras
testemunhas, pois muitas vezes é ele quem está presente na cena de um crime,
podendo identificar sujeitos e descrever suas ações. Mas será que as câmeras
impactarão a credibilidade do policial nos casos onde não houver evidências
digitais? É uma possibilidade, uma vez que se dará uma grande importância à
capacidade probatória de uma gravação, deixando-se um pouco de lado o agente da
lei. Este é um fenômeno que ainda necessita de análise pois pode rapidamente se
tornar um grande malefício aos policiais, que podem vir a perder sua legitimação nos
casos onde (por um motivo qualquer) não estava presente uma body-worn camera.
É inegável o problema de legitimação no Brasil, a desconfiança e
incredulidade no sistema causam que muitos cidadãos e até comunidades inteiras
(principalmente aquelas de baixo nível socioeconômico ou ocupadas por minorias)
sintam-se compelidos a buscar a justiça com as próprias mãos em vez de
recorrerem a órgãos governamentais. Como visto, o uso da tecnologia pode
melhorar a percepção pública da polícia, o que resulta em uma maior legitimação, a
qual, por sua vez, é extremamente benéfica para a convivência pacífica com uma
comunidade. Em termos gerais, a utilização da tecnologia no policiamento significa
um importante passo, pois aumentam a cooperação com a autoridade, reduzem a
quantidade de agressões, queixas e prisões, aumentando a eficiência do sistema
legal com uma maior robustez probatória. É uma forma relativamente barata de
trazer legitimação a uma força que tanto necessita.
Apesar dos benefícios que serão trazidos com a propagação das câmeras
policiais, também eleva-se a preocupação com a privacidade pois a tecnologia não
para de evoluir a cada instante, tornando-se cada vez mais comum softwares de
reconhecimento facial, os quais podem aparentar à primeira vista uma evolução
nunca antes vista no policiamento. Se mal utilizada, a tecnologia de reconhecimento
facial (a qual já vem sendo implementada em alguns modelos de body-worn camera)
50
pode representar o fim de diversas liberdades individuais, com o Estado
monitorando cada cidadão a todo o tempo. Muito semelhante ao cenário distópico
envisionado por George Orwells em seu livro “1984”, onde um líder totalitário
chamado de “Big Brother” controla cada aspecto da vida dos cidadãos através de
suas “teletelas”, que são instrumentos capazes de gravar e monitorar qualquer
transgressão contrária à ideologia do “líder supremo”.
51
REFERÊNCIAS
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