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Clarisse : os frutos de uma história

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O Centro de Convivência Clarisse Ferraz Wey é hoje uma referência no atendimento a crianças em situação de vulnerabilidade. Neste livro você encontra a história desse Centro e algumas de suas práticas pedagógicas, contadas com ludicidade.

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Clarisse :os frutos de uma história

Realização 1 edição - São Paulo - 2014

Execução

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Caminhando juntos e Comunicando com histórias

Caminhando juntos e Comunicando com histórias

A Associação Pela Família (ASPF) é uma instituição formada por pessoas que acreditam na educação como ele-mento fundamental para a criação de um mundo justo, pacífico e solidário. A Associação desenvolve seu trabalho em unidades localizadas em São Paulo, atuando em duas frentes: Unidades Escolares, nas quais, além dos alunos pagantes, há também a concessão de bolsas de estudo, e Ações Socioassistenciais, onde são realizadas atividades educativas e culturais com crianças e adolescentes.

Nossas ações educacionais e sociais iniciaram-se no ano de 1929, pela ação conjunta de um grupo de operárias na periferia da cidade de São Paulo. Em 1943, foi constituída a Escola Nossa Senhora das Graças (ENSG) e, em 1956, a Associação Pela Família (ASPF), que é a mantenedora das nossas unidades escolares e das nossas ações socioassistenciais e culturais.

Em 1959, a ASPF adquiriu a Escola Nossa Senhora das Graças, e, ao longo dos anos, criou unidades socioassis-tenciais para o atendimento de crianças, jovens e adultos em situação de vulnerabilidade social. Os atuais Centros de Convivência Clarisse Ferraz Wey e Gracinha foram criados, espectivamente, em 1987 e 1992. Em 1996, nasce o Centro Educacional Colibri. As atividades de mais uma unidade escolar, a Nova Escola, iniciaram-se em 2004.

Clarisse: os frutos de uma história foi produzido como um trabalho coletivo entre a Associação Pela Família e a Ação e Contexto, trazendo como diferencial o uso das histórias como ferramenta de comunicação e transmissão de conhecimento.

O livro foi embasado pela História Oral, considerando a expertise da Ação e Contexto. Entendemos por His-tória Oral a interpretação da história por meio da escuta das pessoas e do registro de suas lembranças e experiên-cias. Assim, este livro é coletivo, na medida em que conta com a participação de pessoas que ao longo de mais de 25 anos de história atuaram na construção do Centro de Convivência Clarisse Ferraz Wey.

Acreditamos que instituições são feitas por pessoas, que sentem, sonham e são capazes de mudar a realidade no exercício de suas atividades cotidianas. Entendemos que comunicar com histórias é ser capaz de ouvir, cons-truir e comover. É reconhecer o potencial de conhecimento e transformação das narrativas pessoais e institucio-nais. Esperamos que este livro se converta em fonte de conhecimento e que você tenha uma ótima leitura.

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ÍndiceÍndice

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Solo Fértil A cidade de São Paulo

possui hoje mais de duas mil instituições filantrópicas, contan-

do-se somente as que atuam nas áreas de educação e assistência social. Se olharmos apenas para os números, esta poderia ser só mais uma singela casa localizada na periferia de São Paulo, e não teríamos a chance de co-nhecer sua história tão particular.

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Solo FértilSolo Fértil

Criado de uma iniciativa comunitária que nasceu nas ruas do bairro do Jardim Jaqueli-ne, o Centro de Convivência Clarisse Ferraz Wey, nos seus mais de 25 anos, exemplifica a trajetória de instituições do Terceiro Setor. Ao longo de sua história, ele teve o apoio da Ação Católica, um movimento da igreja ca-tólica, e profissionalizou-se como um serviço dedicado a pensar a criança de forma inte-gral e complementar às famílias, à escola e à comunidade.

Neste capítulo inicial, você vai tomar con-tato com a história das primeiras pessoas res-ponsáveis por erguer as estruturas dessa ini-ciativa, vai conhecer alguns dos protagonistas desta história e vislumbrar o surgimento de um trabalho que em sua base já tinha por va-lores acolher e educar.

No início da década de 1990, ainda em um momento de instabilidade e transição política, vemos o alvorecer do Terceiro Setor no Brasil atuando na educação não formal, de modo a suprir as carências que surgem da ausência de uma atuação efetiva do Estado. Do ponto de vista educacional, as crianças do bairro do Jardim Jaqueline apresentavam uma enorme dificuldade no processo de al-fabetização, o bairro carecia de uma estru-tura de urbanização, tendo de conviver lado a lado com um lixão a céu aberto, que anos mais tarde seria o Parque Raposo Tavares.

Esse momento histórico e político é apre-sentado por meio das falas das diversas per-sonagens desta história. Uma delas é Maria Marlene do Nascimento. Em sua narrativa nos deparamos com os movimentos migrató-rios para a cidade de São Paulo e a ocupa-ção do território de forma não planejada. Ela relata ainda as condições de existência dos primeiros moradores da comunidade do Ja-queline e conta como chegaram à concepção do Centro de Convivência a partir de uma demanda dos moradores e em parceria com a Associação Pela Família (ASPF).

Da ideia à construção efetiva do Clarisse, este capítulo conta ainda as primeiras ativida-des pedagógicas, apresenta a primeira direto-ra, Rosimeire Aparecida Moreira, e convida você a conhecer as primeiras práticas realiza-das na unidade por meio da exploração didá-tica: o Dicionário dos Bichos.

Aqui você vai conhecer a história da ori-gem de um bairro, vai entender como opera uma iniciativa comunitária, qual foi o papel da Igreja Católica no Terceiro Setor, e se você não conseguir ver nenhuma dessas coisas, terá viajado por uma história de pessoas apai-xonadas que doaram sua vida para a constru-ção de um espaço feito de sonhos e dedica-ção. Bem-vindo ao Jardim Jaqueline, e nossa porta de entrada dessa história é o Clarisse.

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Uma chácara e muitas famíliasQuando cheguei ao Jardim Jaqueline, em

1963, era um grande campo aberto que es-tava começando a ser ocupado. Toda família que chegava, o vizinho acolhia. Tinha um elo de amizade forte entre as primeiras famílias.

A região era afetada pela falta de estrutu-ra, principalmente pela presença de um ater-

ro sanitário, que ficava instalado onde hoje é o Parque Raposo Tavares. A falta de estrutura do bairro e das casas era ainda pior por conta do mau cheiro e da fumaça da queimada do lixo. Assim começou nossa comunidade.

Maria Marlene do Nascimento

Atuação comunitáriaNa década de 1970, constituímos um gru-

po de pessoas com o objetivo de atuar na co-munidade. Esse grupo se reuniu inicialmente na igreja Nossa Senhora de Fátima, com o apoio do padre Sérgio, na região do Ferrei-ra. Depois, com o apoio da igreja, passamos a ter um espaço no próprio Jardim Jaqueline, um barracão. Foi nessa igreja que conheci a Dona Clarisse Ferraz Wey: ela atuava nos clubes de mães de comunidades carentes, era um trabalho de cunho social que acontecia pela igreja.

A realidade das famílias na época era de grande quantidade de filhos, alto índice de infração e crime no bairro e um fluxo cons-tante de migrantes para a região. No barra-cão atuávamos como comunidade: quem sa-bia alguma coisa ensinava para o outro. Por exemplo, bordadeiras que vieram do Nordes-te, mulheres com maestria no tricô, repassa-vam seu conhecimento. A Dona Clarisse foi quem nos apresentou a Associação Pela Fa-mília (ASPF) e me convidou para ser associa-

da da instituição. Eu não imaginava os frutos dessa parceria.

Foi com a ASPF que novas pessoas se aproximaram do trabalho. A Stella (Maria Stella Scavazza) e a Romilda (Romilda Maria Sobral), que trabalhavam na Escola Nossa Senhora das Graças, vieram conhecer o bair-ro e trouxeram os alunos. Nossa realidade impressionava as pessoas que vinham de fora: um menino ia à escola de manhã e tinha que trazer o lápis e o caderno para servir o irmão que ia estudar à tarde. Diante dessa realida-de, houve uma mobilização dos associados da ASPF em torno da comunidade do Jardim Jaqueline.

Nós recebemos apoio na compra de ma-terial escolar para as crianças: foi a primeira vez que entrei numa loja para comprar um caderno. Recebíamos ainda um auxílio na produção de cestas básicas para o Natal, en-tre outras coisas.

Maria Marlene do Nascimento

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Um espaço para conviverNosso grupo de comunitários sempre foi muito unido. Em 1982, com a construção da igreja

no bairro, passamos a contar com um espaço de articulação. Nos encontros com as mães da comunidade, ficou clara a demanda por um espaço para as crianças fora do período escolar, quando as mães estavam trabalhando. Da união dos comunitários com a ASPF surgiu então a ideia de criar esse espaço.

As crianças começaram a ser atendidas nos fundos da igreja, enquanto começou a constru-ção do espaço. Foi preciso preparar o terreno e garantir as bases. Contamos com muita ajuda de todos nessa construção. A inauguração não podia ser diferente: a instituição homenageou a Dona Clarisse em reconhecimento ao seu trabalho e dedicação. O espaço foi batizado com o nome CEPEC - Centro de Participação Educativa e Comunitária Clarisse Ferraz Wey.

O Clarisse foi criado pensando o futuro do bairro, por isso fizemos uma pesquisa para iden-tificar as necessidades principais das famílias e percebemos que era necessário formar pessoas do próprio bairro para trabalhar como educadores. Foi assim que conhecemos a menina Dudé (Maria José do Nascimento), que depois dirigiu a unidade. Depois de inaugurado em 1987, a primeira diretora foi a Rose Moreira (Rosimeire Aparecida Moreira). Eu atuava como moni-tora apoiando o trabalho.

No início o foco era a alfabetização das crianças, que a escola sozinha não dava conta. A equipe de profissionais era muito dedicada, todos tiveram que estudar muito. Com o tempo e a convivência do grupo, ampliamos nosso conhecimento e entrosamento. Não havia um dia que saíssemos sem avaliar o resultado do trabalho, todo dia sentávamos para analisar nosso desempenho. Com esse espaço, a comunidade teve muitos ganhos, era um local acolhedor onde toda a criançada comparecia e opinava. O Clarisse ficou marcado como um espaço de formação, de debate, um lugar de referência mesmo para quem passou rápido por ele. Era um acolhimento muito íntegro, que cresceu com o tempo.

Maria Marlene do Nascimento

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O começoNo início não havia nada, era só um terreno, e o trabalho começou devagar. As visitas à

comunidade, a compra da casa. Eu era diretora e professora na Escola Nossa Senhora das Graças, que fazia parte da Associação Pela Família (ASPF). A Marlene foi uma das associadas da ASPF que nos apresentou o Jardim Jaqueline. Ela e o padre Sérgio foram um dos caminhos para a existência desse trabalho.

O trabalho do Clarisse começou pequeno com as crianças, muito calmo e bonito, era im-portante as pessoas se conhecerem, pois quando a gente se conhece estabelece um laço.

Foi difícil iniciar o trabalho, já que na época havia muita violência, o espaço foi invadido diversas vezes, ocorreram estragos, um período difícil. Aos poucos fomos sendo respeitados e integrados.

Esse período foi bom porque aprendemos com as crianças a trabalhar juntos, porque a gente também não sabia.

Laura Souza Pinto

Passos iniciaisNo começo, a ASPF participava levando lanche para as crianças. Fizemos um levantamen-

to na comunidade para descobrir o que faltava e como poderíamos ajudar. Depois de aplicar questionários, optamos por acolher as crianças num trabalho de reforço escolar.

A Dona Clarisse, atuante no grupo Ação Católica, conheceu a Marlene Nascimento no grupo de mães do Jardim Jaqueline. O grupo fazia crochê e materiais diversos, que eram ven-didos por elas próprias, em uma espécie de economia solidária. Nós tínhamos muitas crianças nas ruas do bairro e a Marlene levou essa questão para a ASPF. Foi quando começamos o atendimento das crianças ainda na igreja.

Eu trabalhei na montagem do Clarisse e o frequentava duas vezes por semana, fornecendo assistência pedagógica. Foi nessa época que a Rose assumiu a direção, mas ela acabou saindo. No entanto, a essência do trabalho estava lá e se mantém até hoje.

No primeiro momento tínhamos por ideia complementar a escola. O princípio básico do trabalho era aprender com a comunidade numa relação de complementaridade no ensinar e acolher, reconhecendo os potenciais dos jovens.

Maria Stella Scavazza

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Fez-se luzQuando terminei a faculdade, a Associação Pela Família (ASPF) me convidou para assumir

o Clarisse como diretora. Lembro que quando inaugurei oficialmente o espaço, ele ainda fun-cionava no salão da igreja. No começo eram muitas formações de qualidade, fazíamos cursos na Escola da Vila, tínhamos apoio de profissionais da Escola Nossa Senhora das Graças.

A gente fazia parcerias muito boas com a comunidade, com o posto de saúde, com a mar-cenaria, com a padaria – uma vez as crianças até foram fazer pão –, era uma integração muito boa. Com as escolas que as crianças frequentavam, a gente conversava sobre cada criança, era uma preocupação grande nessa fase garantir que elas apreendessem os conteúdos escolares. Para realizar esse acompanhamento das crianças, íamos também às casas. Como eu não era do bairro, aquilo me impressionava muito, as condições de vida daquelas famílias. Foi marcante vivenciar aquela realidade.

Quando começamos as atividades, fizemos um dicionário só com nomes de bichos: as crianças levavam animais para o Clarisse pra gente estudar, bichos que tinham nas casas. Aparecia cada animal que hoje em dia as pessoas nem acreditariam: de cabra a leão, a gente viu de tudo lá.

Nesses primeiros anos, uma história me marcou: eram três irmãos, o pai era gari e a mãe recolhia lixo para vender. A casa deles era um depósito. Eu me apaguei a esses meninos, eram crianças muito boas, muito batalhadoras. Dona Alda era a mãe deles, e me apaguei a ela tam-bém. Eu não tenho dúvida de que eles me ajudaram a permanecer no Clarisse, porque, apesar de todas as dificuldades, eu os cativei, foi minha primeira vitória, o primeiro resultado concreto do meu trabalho.

Rosimeire Aparecida Moreira

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Autoridade afetivaA presença de figuras masculinas na equipe ajudou muito no equilíbrio do trabalho. Eu me

lembro do Nelson, professor de Educação Física, ele era um negro de dois metros e parecia uma árvore de Natal, sempre com as crianças penduradas nele. O Eurico (Eurico Pereira do Nasci-mento) foi outra figura importante. “Você vai colocar um homem para trabalhar com crianças?”. Sim, era fundamental criar novas referências.

A educação tem essa alma feminina que é do cuidar, esse aspecto do prestar atenção no outro, zelar pela educação, pela afetividade, e eles deram equilíbrio ao trabalho. A gente discutia sobre a prática e cada um colocava o seu olhar, sempre em busca de uma solução. Nesse sentido, a re-ferência masculina no espaço era importante, rompia com a imagem agressiva, era a autoridade exercida com afetividade.

Ver o talento de cada um nesse começo foi fundamental. O Eurico tinha a questão da arte; a Bolla (Valnice Vieira Bolla), o teatro; o Nelson, a Educação Física. Tinha ainda a afetividade da Dudé e o Godói, um psicólogo que nos dava uma base para questões muito difíceis.

O Eurico tinha também a questão do trabalho manual, da marcenaria. Como no bairro ha-via muitas marcenarias, ele propôs construir brinquedos com as crianças. Nós montamos uma marcenaria completa nos fundos do Clarisse, o Eurico fez curso e se especializou. Ele fazia um carrinho de Fórmula 1 com um só cabo de vassoura, um carrinho que servia para as crianças brincarem, mas o próprio processo de aprendizagem de fazer o carrinho já era uma brincadeira.

Das educadoras, lembro da Isabel (Isabel Aparecida Prandina Baptista) trabalhando com máscaras, com bonecos, a Dudé trabalhava o português, e juntas elas criaram um teatro de circo. A Bel fez as camisetas e os cenários, a Bolla ensaiou o grupo, e os meninos construíram os personagens.

A Meuri (Meuri Monique Dias), que hoje em dia é educadora, na época era educanda do Clarisse e lembro que ela fez a bailarina. Era uma menina muito dedicada, cuidava dos irmãos, levava na escola, no posto de saúde, era uma mãe, e aquilo tudo era muita responsabilidade. Vê--la fazer o teatro foi libertador, ela viveu aquele sonho, a bailarina, tenho certeza de que aquilo alimentou seu espírito.

Rosimeire Aparecida Moreira

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O dia-a-dia Minha primeira experiência com educação foi no Clarisse, a gente tinha um projeto de inclusão

social com qualidade. Geralmente esse trabalho caminha para o assistencialismo, mas a Rose, que era diretora, sempre fez questão de dar um viés educativo para o trabalho. Era um projeto auda-cioso, foi uma experiência única que me ajudou muito quando virei professora de escola pública.

Nosso primeiro desafio foi estabelecer a parceria com a comunidade. A primeira coisa foi fazer contato com outras instituições para atender o bairro, criar laços e deixar de ser alguém estranho. A Rose no começo sofreu muita rejeição por ser uma pessoa de fora, tivemos que mostrar muita competência, foi muito duro esse começo, mas compõe o processo.

O novo às vezes vem para acrescentar, e a sacada foi colocar alguém que tinha uma visão peda-gógica na direção do trabalho. A Rose chegou para articular lideranças, e a tendência era trabalhar com monitores da própria comunidade. Mas a questão inicial era como conseguir referências em um espaço que ainda estava incipiente. O grupo tinha que ser mesclado para viver a diferença, tínhamos tanto pessoas de fora quanto do próprio bairro na equipe, era uma complementação de experiência e conhecimento.

Quando fizemos o Dicionário dos Bichos, um projeto voltado para estudar os animais e tra-balhar a alfabetização, estabelecemos vínculos com a casa das crianças, era um jeito de conhecer a situação do lar de cada um. As famílias criavam os animais mais inusitados em casa, uma delas tinha um filhote de leão. Bode, cachorro, porco, no Jaqueline tinha de tudo, então a gente trazia para estudar. Desse trabalho criamos um insetário e aproveitamos para estudar noções básicas de higiene nos lares.

Hoje como professora, mesmo longe do Clarisse, eu sonho para que ele continue a ser um espa-ço onde as crianças possam ter a alegria de aprender, brincar e conviver, e assim desenvolvam todo o seu potencial nesse lugar de aprendizagem para crianças e adultos

Isabel Aparecida Prandina Baptista

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Explorações didáticas 1:

Dicionário dos BichosO processo de alfabetização foi o primeiro grande desafio colocado para a equipe que

iniciou as atividades do Centro de Convivência Clarisse Ferraz Wey. Com a necessidade de complementar o trabalho escolar, os educadores na ocasião precisavam romper com o modelo de alfabetização das cartilhas e trazer para dentro do Centro de Convivência o repertório cul-tural da comunidade, por intermédio das crianças, estabelecendo um vínculo indireto com as famílias e conhecendo melhor seus lares.

Lá em CasaTodo indivíduo é portador de um repertório cultural, somos constituídos a partir das rela-

ções que estabelecemos com o mundo, com as pessoas e com o espaço. Essas referências são fundamentais na nossa formação, e parte significativa deste referencial tem origem no nosso lar, nossa habitação. A casa é nosso primeiro núcleo de relações sociais, é nela que interagimos com o outro pela primeira vez, formamos parte da nossa identidade nesse núcleo familiar e ex-perimentamos o contato com o mundo material e imaterial. É no lar que ouvimos as primeiras histórias de um passado no qual não estávamos vivos, temos contato com os temperos típicos que permearão toda nossa infância e iniciamos um processo de construção de nós mesmos.

Na década de 1990, o Jardim Jaqueline vivia um movimento de ocupação territorial não planejado, com problemas diversos, ausência de condições mínimas de sobrevivência, princi-palmente com relação às questões de higiene e saneamento básico. Paralelamente a esse fator, a escola à época não cumpria satisfatoriamente a situação de alfabetização das crianças.

Foi assim que surgiu o projeto Dicionário dos Bichos, que buscou identificar a situação de higiene das residências das crianças, mapeando seus animais domésticos e usando esse elemento do cotidiano dos educandos como fomento à experiência de alfabetização. A seguir narraremos passo a passo a experiência do Dicionário dos Bichos:

1 – Os Bichos e seus hábitos: Animais domésticos são comuns na formação das crian-ças, em geral há uma relação de cuidado que favorece o desenvolvimento emocional e social do indivíduo. No caso do Jardim Jaqueline da década de 1990, os educadores foram testemunha de todo o tipo de animal: bode, cachorro, gato, periquito, papagaio, porco, há até quem relate que um filhote de leão era criado por uma família da região. Ao identificar esses animais, os educadores trabalharam a alfabetização das crianças, revelando os hábitos dos bichos e atuando ativamente para que as crianças zelassem por um ambiente saudável e higiênico em suas residências, ensinando-os a cuidar e limpar seus animais

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2 – O Cotidiano na alfabetização: A experiência de alfabetização embasada em frases como “A babá lava o bebê” ou “A babá é boa” não fazia sentido na realidade dessas crianças. Ao experimentarem o cotidiano de suas vidas no ambiente de ensino, ocorre uma experiência de vislumbre da criança, que se sente reconhecida e valorizada, ela é a fonte da informação da sua própria experiência de alfabetização. Essa prática compõe o Clarisse como um ambiente de ensino mediado pelo respeito e reconhecimento mú-tuo dos repertórios culturais. Não é um discurso do tipo “nós aprendemos muito com as crianças”, é uma premissa da nossa prática pedagógica que aparece em diversos relatos ao longo deste livro.

Um Passo AlémO vínculo com o lar das crianças pode ocorrer de diversas formas. É importante experimen-

tar o vínculo não só através do aspecto material, por exemplo, com fotos e objetos significativos da vida do educando, mas também em seu âmbito imaterial, nas receitas de cozinha de família ou nos hábitos culturais. As possibilidades são quase infinitas e poderíamos fazer um Dicionário de Comidas ou de Objetos.

Esta experiência não precisa se limitar à faixa etária de alfabetização, ela pode percorrer de forma universal à experiência educacional de crianças a jovens e adultos. Em se tratando de ou-tras gerações, esse tipo de atividade pode ainda estimular o contato intergeracional dentro do lar. Convidar avôs e avós, tios e tias ou pais para comparecerem à escola e relatar suas brincadeiras de infância, ou mostrar seus objetos mais importantes é outra forma de chegar à residência das crianças e realizar uma prática educacional bem-sucedida. O mais importante é que essa relação com o cotidiano do educando seja sempre permeada por uma reflexão prévia e posterior que trabalhe o reconhecimento e até mesmo a ampliação do repertório cultural do educando.

Os outros?Não seria um ambiente educacional se não houvesse a partilha, que propicia uma experiên-

cia formativa e instrutiva. Conhecer o cotidiano do outro é uma forma de estabelecer relações fundadas pela identidade e alteridade, ou seja, eu tanto me reconheço como indivíduo perante o outro, como também sou capaz de reconhecê-lo. A experiência do Eu e do Outro permeia nossa vida desde o ambiente escolar, que é o primeiro ambiente, além da família, no qual tenho que conviver com o outro em um espaço público de igual para igual.

Por fim, o reconhecimento do outro dá-se pelo entendimento de sua identidade, que pode começar por seu animal de estimação, sua casa e seus ascendentes. No Clarisse nós realmente acreditamos na importância de semear a experiência do convívio por meio de experiências como essa, que marcam a história da nossa origem.

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C omo na natureza são mui-tos os elementos necessários para que uma semente ga-nhe vida e prospere, além

do tempo e do solo fértil, é necessário que os agentes que atuam sobre essa nova vida sejam dedicados e cuidado-sos no seu desenvolvimento. É preciso aquele tempo ao sol, regado de água e de vitaminas, sem contar as outras vi-das envolvidas que podem colaborar para facilitar o crescimento.

Germinarsementes

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Assim chegamos ao nosso segundo capí-tulo. Quando ainda com poucos anos de vida o Clarisse começa a assumir uma identidade que iria marcá-lo para o resto de sua vida, temos a presença de figuras importantes nesse período, temos as saídas à rua para, com a luz do sol, podermos brincar. Temos ainda a pre-sença das mães, pais e de toda a comunidade no interior do Clarisse, e quando foi preciso água, fomos até o litoral paulista tomar um banho de mar.

À nossa semente uniram-se diversas vita-minas potentes que ajudaram nosso desenvol-vimento. A vitamina que alimenta o Clarisse são seus educadores, a equipe de apoio e to-das as vidas que, de alguma forma, passam por este espaço.

Politicamente vivemos um dos períodos

mais difíceis de nossa história: crises econômi-cas em um Brasil ainda em transição levam--nos a estabelecer uma equipe de voluntários que, com garra, abraçou o trabalho e lutou limpando chão, fazendo comida e resistindo às intempéries do período.

Foi aqui que talvez tenhamos criado re-sistência para lutar contra qualquer tempo ruim, aprendemos ainda mais a importân-cia de sentar em roda e coser um minhocão enorme que parecia envolver-nos por inteiro, enquanto sentávamos ao som de boas histó-rias e das notícias do dia.

Germinação é esse momento que nos abrimos para o mundo sem qualquer garan-tia de sobrevida: éramos ainda pequenos e estávamos lutando para assumir uma identi-dade, um papel nessa história.

Germinar SementesGerminar sementes

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O minhocãoCheguei ao Clarisse em agosto de 1988,

um ano após a inauguração. Todo dia eu chegava meio-dia e a primeira atividade que realizávamos era a roda de conversa, onde falávamos sobre o bairro, contávamos histó-rias, falávamos da escola e assim por diante. Líamos uma notícia do dia e ali trocávamos ideias. Ainda não tinha a coisa da internet, não tínhamos computador.

Eu lembro que fazíamos tanto a roda de conversa no chão, que depois de seis, sete me-ses, criamos um jeito para as crianças senta-rem. Não tinha a ideia de cadeiras, porque elas ocupavam muito espaço das salas, e aí o que a gente fez? A gente construiu um gran-

de minhocão, uma grande almofada redonda que dava a volta na sala. A Rose, diretora, comprou o pano longo de lona, uma mãe

costurou e todas as crianças traziam espu-ma, até o dia que enchemos o minhocão e fizemos uma grande inauguração: o minho-cão virou parte da atividade. Daí pra frente, a gente não sentava mais no chão frio.

Naquela época, as crianças vinham almo-çadas e depois comiam o lanche para irem embora, e nós continuávamos até às cinco horas na produção dos relatórios do dia. O ano todo tudo ficava registrado, todas as ati-vidades. No final do ano, líamos todos os re-latórios para analisar o que precisava ser me-lhorado, era uma coisa muito bonita.

Eurico Pereira de Souza

Lápis, caneta e marcenariaNa programação da semana, sextas-feiras

era o dia mais legal, a gente fazia a roda e ia brincar no Parque Raposo Tavares. Perto das quatro horas, voltávamos e comíamos o lan-che.

Como o espaço do Clarisse era pequeno, nós também brincávamos na rua, com a con-dição de que fosse nas ruas sem saída, assim tínhamos o controle dos carros. No final da tarde, todos paravam para fazer a lição de casa da escola, com os educadores apoiando as crianças.

Eu também trabalhava muito com conta-ção de histórias, principalmente com os me-nores. Depois, com os maiores, fazíamos uma atividade específica: eu tinha o conhecimento de marcenaria, então combinei com a diretora de montarmos um estojo para cada criança, no improviso. Cada criança fez o seu desenho no estojo e todas ganharam um. Depois até chegamos a montar uma pequena marcenaria só para essas atividades..

Eurico Pereira de Souza

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O vizinho do ladoLogo que eu completei oito meses no Clarisse, tinham uns meninos espertos, como o Ed-

milson, que era muito inteligente e agitado. Eles chegavam ao Clarisse mais cedo e ficavam brincando aqui na porta. Do lado da igreja morava uma senhora e o marido, que tinha uma perua para vender cachorro-quente e refrigerante. O marido, sempre que chegava, tirava o carrinho de cachorro-quente e lavava ali na rua ao lado do Clarisse, e todas as crianças viam.

Um dia em que o Edmilson estava sumido, de repente reapareceu com outros amigui-nhos. O vizinho havia tirado o carrinho, onde tinha pão e refrigerante, e estavam lá os me-ninos com uma vara de bambu tentando puxar o refrigerante. Aí demos uma bronca e rimos muito. Aquele foi o tema de discussão no círculo que durou horas. Aí fomos lá falar com o homem, eles pediram desculpas e aprenderam que não era correto.

Eurico Pereira de Souza

Colônia de fériasQuando cheguei aqui, eu vim através do contato de um amigo que era padre. Ele tinha uma

colônia, um espaço para turistas em Peruíbe. Esse padre tinha um projeto que era receber gra-tuitamente crianças na praia no período das férias. E comecei a buzinar no ouvido da Rose, mas ela no começo tinha muita resistência, por uma questão de cautela. Quando a Dudé se tornou a diretora, era mais fácil, porque ela era moradora do bairro e topava tudo. Nós aprofundamos a relação com os pais, ficou mais fácil levar as crianças para a praia. Na primeira ida, tivemos a companhia de pais dos alunos, inclusive a Sônia (Sônia Regina Vasconcellos de Oliveira) e a Luzia (Luzia Salvina Ferreira) que não trabalhavam aqui ainda. A gente via filmes à noite e ia para a praia de dia. Foi uma experiência inesquecível.

Eurico Pereira de Souza

Almoço em famíliaCom a Dudé na direção, começamos a fazer atividade com os pais. O foco nessa atividade

eram só os pais, porque as crianças já eram atendidas durante a semana, foi mais uma ação de aproximação das famílias. Houve uma atividade em que preparamos um grande almoço. Combinamos com as crianças que cada um tinha que colaborar para realizarmos essa atividade. Então, enquanto os pais estavam no Clarisse, cada uma das crianças ficou responsável pelas ati-vidades de casa. Foi um almoço que começou à uma hora e foi até oito horas da noite, tivemos música ao vivo e os pais ficaram até o fim.

Eurico Pereira de Souza

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O quintal de casaO meu contato maior com o Clarisse, como funcionária, foi no ano de 1993. O Clarisse já

era um espaço de referência, aberto à comunidade, então o grupo de jovens sempre estava pre-sente para promover eventos, seminários, era uma parceria constante com a comunidade nesse sentido. Tivemos grandes eventos com a juventude do bairro. Na época que fui trabalhar lá, a diretora era a Dudé, e ela participava das atividades com os jovens, sempre muito engajada.

O Clarisse teve uma época difícil por conta da crise econômica no país. Os pais precisaram se oferecer como voluntários para ajudar a manter a casa aberta, a Sônia veio trabalhar como voluntária: ela era mãe e o filho dela frequentava o Clarisse. A Dudé tinha isso de não deixar que o espaço fechasse, ela era uma guerreira.

Essa foi minha primeira experiência com criança maior, pois até então eu só tinha trabalhado na creche comunitária. O trabalho no início era de complementação escolar, ainda que diferen-ciada, lúdica. Nossa preocupação principal era ajudar no desenvolvimento escolar, um trabalho diretamente integrado à escola.

Eu gosto de dizer que o Clarisse é o quintal da casa das crianças, o lugar onde elas encontram alguém pra conversar, pra serem ouvidas, mesmo as mães tinham isso de ser ouvidas, de dividir. A gente fazia muitas festas, muitas reuniões com os grupos de mães.

Tínhamos as idas para Peruíbe, para as crianças era muito importante, e para nós educadores era um desafio. As atividades com os pais eram muito legais, mas o que me ensinou muito foi o olhar da equipe para as famílias e para as crianças: era um privilégio trabalhar com aquela equipe, sobretudo com a Dudé. Foi um diferencial para eu me apaixonar por essa profissão, o profissional da educação não formal.

O trabalho da Rose foi a base e a Dudé trabalhou com ela. Ela tinha a coisa da pedagogia do carismático. Já a Dudé tinha uma força que prevaleceu, ela conhecia as pessoas e suas neces-sidades. Quem trabalhou no Clarisse nessa época respira a Dudé, porque ela era presente nas paredes, no cheiro, e hoje na nossa memória. Ela é lembrada por essa paixão, um compromisso político-social que vinha de dentro dela, que fazia a diferença de forma contagiante. Crianças que são adultas hoje e passaram pelo Clarisse, têm essa memória da Dudé.

Isso era muito legal, tanto na bronca quanto na alegria, a gente era muito próximo e não conseguia esconder essa proximidade, esse carinho. A gente se ajudava muito.

Janete Rios Rocha

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Histórias de SuperaçãoUm fato que marcou muito toda equipe foi o de um menino que era adotado e fugiu de

casa. Toda a equipe se mobilizou para procurar por ele na Praça da Sé, depois do trabalho. Fo-mos até o centro e o encontramos dormindo debaixo de uma caixa de papelão. Conseguimos trazê-lo de volta, resgatar mesmo. Ele ficou um tempo morando com a Sônia, até conseguir restabelecer o vínculo com a família, e a Dudé sempre fazendo essa mediação. Ele fugiu outras vezes, ele fugia e ligava pra dizer que estava bem e pedia para não ser procurado.

Sabe, não acho que qualquer equipe faria isso, ser um diferencial na vida dessas crianças. Depois de muitos anos, eu soube que ele casou, se formou e foi morar no litoral. Isso faz valer a pena trabalhar com educação, nada paga isso, a experiência, a construção do conhecimento. As pessoas eram muito responsáveis, não trabalhavam só pelo salário, iam além disso, cada dia era desafiador, alegre, cada dia um aprendizado.

Havia famílias muito próximas e com necessidades específicas. Tinha a Dona Dora, que era avó de três crianças que estavam no Clarisse, ela era catadora, a mãe das crianças estava presa, e cada dia com as crianças era uma vitória. Com todas as necessidades que tinha, to-das as limitações, ela ajudava na limpeza, nos passeios; atuava como voluntária. Era ajudada também, mas nunca pediu nada de volta, era outra relação. Ela sempre dizia: “Por hoje eu já ganhei muito”.

O Clarisse tem uma história muito importante na comunidade, e tem que continuar o tra-balho com compromisso. O compromisso faz toda a diferença no trabalho, ele faz você buscar a transformação, a mudança. Meu desejo é esse: que ele continue fazendo a diferença.

Janete Rios Rocha

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Vocação EducadoraEm 1992, comecei a trabalhar como educadora, praticamente meu primeiro emprego, a

Sônia foi me buscar em casa, mas meu pai não queria me deixar trabalhar. Na época, estava na faculdade e ele queria que eu terminasse os estudos. Queria muito ter meu dinheiro, aí a Dudé me falou para fazer um teste durante três semanas, depois me chamou na sala e falou que gostou do meu trabalho. Aquela tinha sido minha primeira experiência com crianças. Muitas vezes deu vontade de desistir, porque tinha uma pressão por parte do meu pai. Desisti da faculdade, porque entendi que gostava de trabalhar com educação, e na época eu cursava Fatec na área de mecânica. Cheguei à conclusão de que não era aquilo que queria.

Trabalhei com a Dudé três anos, quando formamos uma grande equipe. Foram três anos de muito trabalho: de manhã sala de aula e à tarde escritório. Uma vivência muito boa, não só profissional. Hoje faz 18 anos que trabalho na creche da USP. Se eu estivesse no Clarisse hoje, teria 21 anos de casa, foi um tempo muito bom. No fim das contas, me formei em Letras e Pedagogia, graças ao trabalho que comecei no Clarisse.

Quando cheguei, o trabalho já era na casa atual, um espaço pequenininho, mas a gente sempre dava jeito, era uma turma que gostava de brincar na rua. Tinha também o chamado Parque do Lixão (Parque Raposo Tavares), além do Clube da Pedra do Jacaré, hoje Clube Escola.

Eu trabalhava com crianças de várias idades. Nesse período, nossa comunidade tinha um índice alto de violência, polícia toda hora, situações familiares complicadas, como crianças que sofriam agressão dentro de casa. Uma realidade de vida muito dura.

Ver o que virou o Clarisse hoje em dia, com sala de informática, salas bonitas e organizadas, houve um grande investimento ao longo dos anos, sem falar na importância do convênio com a prefeitura e a contínua dedicação da ASPF, dá orgulho fazer parte dessa história.

Nice (Marionice Gozzi)

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Aprender a aprenderNo Clarisse aprendi muito, lia os textos que a Dudé trazia, sem falar no aprendizado de

vida. Foi a minha base para entrar na USP, onde conheci Paulo Freire, onde ouvi pela primeira vez Gilberto Gil. Gostava bastante de criar e experimentar atividades diferenciadas, o Clarisse era um laboratório para todos os educadores, onde experimentávamos as situações mais ad-versas e encantadoras.

A gente brincava direto na rua. Era importantíssimo ocupar o espaço com brincadeiras, com festas. Todo final de mês os pais traziam pratos para jantar, e era interessante porque as mães vinham caprichadas, bonitas, arrumadas, era um evento grande, ia madrugada afora. Era uma união das famílias e éramos muito respeitados por todos. Quando viam a gente na comunidade, queriam que entrássemos nas casas para tomar um café.

O lado mais difícil de lidar era quando uma criança trazia alguma notícia triste sobre os pais, a figura das avós era muito presente, e tudo isso me chocava. Eu morava aqui, mas nunca tinha ido para dentro da favela, fiquei muito chocada. Hoje a situação está muito melhor. Não aguentava ver aquela situação, ficava muito triste, e a Dudé era quem orientava sobre como agir, como lidar com tudo. A gente tinha uma amizade para fora daqui, era muito gostoso, levávamos a relação para as casas. São laços que ficam para a vida da gente. Eu precisei estar nesse espaço para conseguir entender a vida, e entendi que às vezes uma pedrinha que você muda de lugar pode fazer diferença

Nice (Marionice Gozzi)

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Nossa segunda casaTrabalhei no Clarisse há muito tempo, em 1992. Eu dava aula na EJA (Educação de Jovens e

Adultos) em uma escola próxima, e por conta desse trabalho conheci a Dudé. Hoje sou professor de Matemática. Na época estava fazendo a faculdade. Saí do Clarisse quando a Maria do Car-mo (Maria do Carmo Risi Moreira de Azevedo) já era diretora. Comecei a dar aula no Estado e continuo até hoje. Tive muitos alunos na escola que foram crianças minhas no Clarisse. Foi muito legal porque vi pequenininho e depois encontrei na sala de aula.

Nos meus cinco anos de Clarisse, aprendi muita coisa, hoje trabalho com alunos maiores, começo a dar aula na quinta série, e muito do que aprendi aqui ainda uso na sala de aula, essa coisa gostosa de conversar e escutar. O Clarisse foi praticamente minha primeira experiência, tenho muita saudade, fiz grandes amigos, muitas crianças daquela época são pais e fui padrinho de casamento de alguns deles.

Pegamos uma época em que íamos para a colônia de férias em Peruíbe, a gente ia pra praia e a galera querendo escapar. Na época era eu e o Eurico no fundo do mar, cuidando para não dei-xar as crianças passarem. Eu morria de medo do mar, branquelo com aquele cabelão, esticado na água para proteger as crianças, uma cena muito engraçada.

O Clarisse tem uma participação muito importante na minha vida, desde molequinho queria trabalhar com educação e sempre quis cursar a faculdade de Matemática. Quando trabalhei no Clarisse, tive certeza disso. Ele pra mim tem essa conotação de família, mesmo longe me sinto parte. Aprendi a dar valor a esse contato, à proximidade.

Ricardo André Ferraz Pagano

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Um jeito diferenciadoSempre fiquei de manhã no escritório e com as turmas à tarde. A cada dia era uma ati-

vidade diferente. As crianças entravam e a gente fazia um círculo, que é do que mais tenho saudade, na minha época havia uma minhoca de almofada, o minhocão. Era uma delícia, juntava todo mundo, sentava e conversava. Aí eles tinham uma hora para fazer lição de casa; quem não tinha lição de casa, brincava, depois a gente descia para o lanche e começávamos a atividade em si. Na segunda era leitura: a gente lia, contava história, fazia empréstimo de livro. Na terça ia para o parque. Na quarta era reforço, e cada educador auxiliava a sua turma. Quinta era artes e na sexta íamos ao Parque Raposo. Não tinha essa tecnologia toda, era tudo feito à mão.

A gente brincava de muita coisa, a primeira que lembro era pega-pega. A verdade é que a gente também era um pouco criança quando estava com os educandos. O mais legal mesmo era ficar sem sapato e brincar no parque de queimada, todo mundo jogava.

Quando sobrava um tempo maior, a gente brincava de contar causos, as crianças pesquisa-vam com os pais e depois contavam pra gente. Esse dia de leitura me marcava muito, a gente passava a tarde lendo. Se eu não tivesse passado pelo Clarisse, não teria essa preocupação que tenho com os alunos hoje na sala de aula. Consigo ter uma relação muito diferente, mesmo com todo o contexto da sala de aula consigo ter uma postura que formei aqui no Clarisse. Te-nho 40 alunos e cada um é uma vida a ser cultivada.

Ricardo André Ferraz Pagano

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Gestos voluntáriosEu cresci no Jaqueline, a casa dos meus pais ainda está por ali. Eu vim para o Clarisse pelo progra-

ma de voluntariado e hoje entendo que a história do Clarisse e da comunidade se cruzam. Eu fazia parte do grupo de jovens, foi quando conheci a Dudé e o Clarisse.

Quando cheguei aqui pela primeira vez, a cozinha me surpreendeu: cada criança tinha seu talher e se servia sozinha, cada um é um cidadão, mesmo pequenino. Comecei a perceber nessas pequenas coisas que esse é um tipo de trabalho no qual eu acredito, que faz a diferença na sociedade.

Foram muitos trabalhos. Em um deles, fizemos uma semana de atividades para debater ideias. Na época usamos o espaço do Clarisse e trouxemos um professor para falar sobre drogas. Como agregou aquilo pra gente: era uma forma de atuar para mostrar a possibilidade de um mundo diferente.

Decidi, quando saí do Jaqueline, que iria fazer alguma coisa pelo bairro e comecei a comprar cestas básicas. Foi quando voltei a ter contato com o espaço. Começou pequeno e hoje a gente vem todo mês de outubro. O Clarisse me ajudou a lidar com as pessoas, me formou nesse sentido, é uma diferença na vida das pessoas.

Romildo Serafim

Audácia e paixãoA Dudé era uma pessoa audaciosa, mais que corajosa, ela sempre tinha ideias que eu achava es-

quisitas, uma delas foi fazer uma festa junina na rua, de noite! Imagine o que foi essa festa, com todo mundo participando. E eu ficava preocupada lá longe. Eu gostava muito da Dudé, foi uma pessoa que me encantou, ela me marcou muito.

O que existe de mais interessante é que ela nunca fazia o que era combinado. Por exemplo, em um determinado ano decidimos abrir uma porta a mais no Clarisse, e a Dudé fez um orçamento para ver quanto custava. Passado um tempo, a Dudé envia um orçamento um pouco mais caro, mas que foi aprovado. Quando cheguei no Clarisse, ela não só construiu a porta como fez também os banheiros. A Dudé era desse tipo, ela ia além, fazia mágica com pouco.

A Dudé era assim, ela estudou, terminou a faculdade e virou diretora muito jovem. E ficou doente, muito doente, demorou menos de um ano para perdemos ela. Todos sentimos muitíssimo, ela era uma pessoa muito boa, com grande coração e muita coragem, mas felizmente aquilo que ela fez no Clarisse foi como se tivesse plantado muitas sementes que brotaram: a Maria Elvira (Maria Elvira do Nascimento) a Meuri são das muitas pessoas que foram tocadas por elas.

Laura Souza Pinto

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Explorações didáticas 2:

Roda de ConversaUma das principais marcas das práticas pedagógicas realizadas no Clarisse é definitiva-

mente a Roda de Conversa. Num contexto socioeconômico onde as crianças tinham pouca voz e arcavam com grandes responsabilidades em seus lares, o espaço de diálogo entre iguais mostrou-se uma prática de muito sucesso. Todos os dias a Roda de Conversa abre as atividades e surpreende criando cada uma das vezes ao longo destes mais de vinte cinco anos, um espaço diferente.

1 – “Como foi seu dia”: A roda de conversa consiste basicamente na reunião entre jo-vens e educadores sentados em roda, em uma situação na qual todos têm chance de se expressar com a garantia de que serão respeitados em sua individualidade. Muitas vezes, para estimular o início do diálogo, pode-se começar com uma dinâmica ou o apuramento de um tema de comum a todos. A roda ainda serve como um espaço de responsabilização dos educandos, na medida em que você pode valer-se deste espaço para apresentar, por exemplo, a rotina do dia em tom informal, mas convidando cada educando a assumir responsabilidades previamente determinadas. Você pode definir ajudantes para a aula ou responsáveis por auxiliar os colegas mais novos. Na prática cotidiana, os ajudantes são voluntários em cada turma, que se oferecem para auxiliar na execução das práticas educativas, eles são responsáveis, juntamente com o educador, por transmitir e preservar o conhecimento, funcionam como uma equipe de apoio que sempre se reveza dando aos jovens um senso de responsabilidade

2 – Dinâmica e brincadeiras de roda: A roda é uma invenção pré-histórica e remonta à nossa tradição do conhecimento oral. Foi em roda (círculos) que gerações transmiti-ram seus conhecimentos e que crianças aprenderam a brincar de ciranda. A roda é esse espaço para ouvir e ser ouvido, mas também para brincar e dar risadas, o importante é estimular a sociabilização e interação no grupo. São muitas as temáticas para uma roda, temas que podem ser trazidos através de brincadeiras, leituras, etc. A roda facilita a compreensão e entendimento, e o educador consegue visualizar o que o grupo já sabe e o que precisará planejar para a ampliação do conhecimento.

UMA JANELA PARA O HORIZONTE Como metodologia, o educador tem uma grande ferramenta para conhecer cada criança e

para dar significado ao trabalho do grupo. As conversas vão se desdobrando em causos, histó-rias, brincadeiras, leituras diversas, e a imaginação de cada criança e do grupo vai se abrindo como a janela para o horizonte. As dinâmicas e brincadeiras na roda proporcionam maior inte-ração entre o grupo, sendo um momento em que é exercitado o respeito com o outro na escuta,

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no cuidado de falar um de cada vez e de mostrar o que cada um quer e necessita. Assim, a roda é também responsabilidade do educador que, ao integrar o círculo, não pode se omitir ou valer--se de seu lugar de autoridade. Cabe a ele interagir, provocar, convidar e envolver cada criança. Criar elementos rituais na prática educativa é uma forma de criar elementos, símbolos, que por sua vez são mais facilmente incorporados e transmitidos por cada criança, cada educador.

um passo alémDiários: Foi a partir da prática da roda de conversa que surgiu no Clarisse a ideia de criar

diários escritos para todos os educando. A estratégia poderia funcionar igual como um blog digital de relatos diários. Este desdobramento é natural, na medida em que os educandos são estimulados a se expressarem, na roda. O que acaba acontecendo é que cada um fala sobre o que lhe incomoda, apresenta uma opinião, é o momento de voz do grupo. O diário, por sua vez, é um espaço de privacidade, tudo aquilo que o educando ainda tem dificuldade em orali-zar, ele pode registrar narrando suas passagens do dia a dia, dificuldades que eles têm em casa ou na escola, os medos e os sonhos. O diário é sempre devolvido ao educador, que tem a opor-tunidade de ler cada pensamento e assim estimular os jovens a se abrirem e externalizarem na roda seus sentimentos. Tudo isso cria no grupo um sentimento de cumplicidade e respeito mútuo, é uma relação lentamente construída.

De pai para FilhoRoda de História: A roda funciona como um elemento democrático para diversas faixas

etárias. Uma forma de promover a roda para além dos muros institucionais é convidar pessoas da comunidade que possam transmitir algum tipo de conhecimento para conversarem com os jovens. Essa experiência entre diferentes gerações foi marcante na produção do projeto de 25 anos do Clarisse, que usando a metodologia da roda de conversa e o potencial das crianças, pu-xou o fio da memória da comunidade e recuperou importantes elementos da sua própria histó-ria. Muito da função do educador é permitir que as crianças possam se conhecer e reconhecer. Nesse sentido, a roda de conversa é um espaço em que essas crianças podem refletir sobre si.

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Fincando RAÍZES N os períodos mais difí-

ceis de seu desenvol-vimento, uma planta finca raízes no solo em

busca de forças nos espaços mais re-motos, ela ganha espaço nos poucos vazios do solo, lutando para sobrevi-ver e encontrar água. Fincar raízes não é só um ato de sobrevivência, é também um ato de resistência dian-te das dificuldades.

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Fincando RAÍZESFincando RAÍZES

Neste capítulo da história, temos uma das perdas mais marcantes de nossa história intei-ra, quando morreu nossa educadora, direto-ra, amiga e conselheira, a Dudé, uma menina com garra que marcou a história do Clarisse de todas as formas. Mas como todo período de transição, foi dessa dor que nasceu a equi-pe que há quinze anos segue trabalhando no Clarisse, preservando e lutando por um so-nho que começou lá atrás.

Temos também neste capítulo a chegada de Maria do Carmo, que foi incentivada pela própria Dudé, quando era ainda voluntária, a seguir no caminho da educação. Foi quan-do uma nova equipe se consolidou dando ao trabalho novos ares e profissionalizando-o, a partir de um longo debate sobre o papel das políticas públicas nas iniciativas do Terceiro

Setor. Nasceu assim o convênio com a prefei-tura, que se tornou também uma parceira no desenvolvimento desse trabalho.

Ler as histórias desta equipe que tem mais de quinze anos a frente deste trabalho é com-preender uma trajetória de sucesso, possível apenas pelo constante aprendizado e crítica. Foi preciso errar, testar e até mesmo preservar as práticas da origem deste espaço. Ao fincar raízes, vemos uma história de consolidação com muita garra e luta.

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No mundo da educaçãoEu comecei na associação (ASPF) como

associada, mas com o tempo tive vontade de participar de outra forma do trabalho, foi quando passei a atuar como voluntária.

No início fazíamos um trabalho com as crianças, eu ia ao parque com as educadoras e crianças e brincávamos, jogávamos bola e queimada. Nesse meio tempo, comecei a tra-balhar com as mães, trouxe uma máquina de fazer massa de macarrão e fazia oficinas junto com elas. Preparávamos, comíamos e experi-mentávamos todo tipo de massas, foi um pe-ríodo muito gostoso.

O trabalho com as mães surgiu depois que fizemos visitas às casas das famílias, e para mim foi um impacto conhecer aquela reali-dade. O bairro ainda não tinha uma estrutu-ra urbana e as condições de vida eram tristes,

O meu primeiro contato no Clarisse foi com a Dudé, uma figura muito carismática, alguém que envolvia a todos. Lembro de ce-nas marcantes, como dar carona para ela na sexta-feira e ficarmos horas conversando so-bre educação: ela falava sobre Paulo Freire, um mundo fascinante que me era apresentan-do. Trocávamos ideias sobre a maternidade, a experiência como educadora. Ela era uma líder que trabalhava em função do coletivo, que tinha uma visão maior de mundo.

No final desse ano de voluntariado, fui convidada para dirigir o Clarisse; eu hesitei, por não ter formação na área da educação. A Dudé e a Laura foram fundamentais nesse momento, me incentivaram a dar esse passo. Elas diziam que a educação estava dentro de mim, era só uma questão de me dedicar a ela.

Maria do Carmo Risi Moreira de Azevedo

matéria-prima: abecedárioA função diretora é uma construção, eu

não sou diretora, eu estou diretora, e isso é um trabalho cotidiano. Tento estabelecer o diálo-go, aprendi isso com as mães. Quando a gen-te perdeu a Dudé de forma triste, não tinha como substituí-la, só restava continuar a partir do que já estava construído.

O começo do nosso trabalho foi marcado por uma dedicação à palavra, tivemos cursos e assessoria na área da linguagem. A gente via a criançada evoluir na alfabetização, era um problema comum no começo, algo que nos mobilizava. O trabalho com a alfabetização começou com a assessoria dos professores da Escola Nossa Senhora das Graças, que faz parte da ASPF. Lembro-me de uma senhora, que era professora de matemática aposentada, ela era um tipo único, Dona Antonieta. Todo

lugar aonde ela ia, levava uma mala, da qual tirava todo o tipo de coisa para ensinar ma-temática. Era muito gostoso ter pessoas como ela por perto.

Nós aprendemos a fugir da educação de cartilha e trabalhar o lúdico na palavra, explo-rávamos textos de diversas formas, teatraliza-dos, oralizados, o texto não terminava em si, virava fonte de produção para os nossos proje-tos. A palavra não era solta, ela era significada, tinha uma fantasia, personagens, enredos, e assim ampliamos o trabalho com a linguagem.

A leitura e o texto podem ser muito agradá-veis, se nós soubermos fascinar, e a gente fazia essa mágica acontecer com desenho, com ar-gila, com o concreto, mas sempre partindo da palavra como matéria-prima.

Maria do Carmo Risi Moreira de Azevedo

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Convênios e parceriasA grande mudança que tivemos durante o período que assumi como diretora foi a presença

do Estado no Terceiro Setor. Falávamos muito nisso porque, a princípio só havia a verba da ASPF para manter o Clarisse e a gente vivia em busca de novos parceiros. Desse debate surgi-ram os convênios com a prefeitura.

Foi um processo de mudança a respeito da importância das políticas públicas e da relação do Estado com o Terceiro Setor. Com o convênio da prefeitura, passamos a ter um olhar para as redes, para os parceiros e para as várias esferas do espaço público. Paralelamente a essa mudança, passamos a ter um trabalho mais organizado, por exemplo, na cozinha nos preocupamos em fornecer uma dieta balanceada para as crianças. Nessa época, a gente já reaproveitava os alimentos, produzíamos sucos verdes, era uma visão sustentável com comidas mais alternativas.

Tendo a palavra e a alfabetização como foco, além do convênio com a prefeitura favorecen-do o trabalho em redes, surgiu a parceria com a Escola Vianna Moog aqui do Jaqueline. Desde a época da Dudé já existia uma relação de proximidade para acompanhar as crianças em todo seu desenvolvimento na escola, e depois de muita conversa surgiu a parceria no formato de reforço escolar. A Anna Thereza (Anna Thereza Guolo dos Santos) foi a primeira profissional a assumir essa função de elo, depois quase todas as nossas educadoras passaram pela experiência de atuar dentro da escola. Era realmente uma proposta de trabalho complementar.

Maria do Carmo Risi Moreira de Azevedo42

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Lá do norteQuando cheguei ao Jaqueline, a gente vivia em uma casa pequena com um espaço grande,

era um sítio, tinha animal de criação, árvores, algumas plantações. Meus pais vieram para São Paulo porque a vida no Norte estava difícil, primeiro veio meu pai tentar a vida e depois ele trouxe toda a família. Na nossa infância não tinha brinquedo, a gente se divertia muito ao ar livre.

Meu pai trabalhou como pedreiro e em frigorífico, minha mãe fazia faxina em hospitais de noite. Eu e meus irmãos ficávamos sós o tempo inteiro, a gente brincava num morro enorme e, antes do meu pai chegar, a gente ia para casa. Éramos cinco irmãos e todos brincávamos juntos, a minha irmã mais velha, a Dudé, é quem coordenava a bagunça e a casa.

Eu acompanhei o Clarisse no início, porque a Dudé era do grupo de jovens, eles se reuniam para fazer atividades na igreja, dar catecismo, cantar e também atuavam na comunidade. A Dudé era uma pessoa fácil de fazer amizade, começou a trabalhar cedo e, através desse tra-balho, conheceu o grupo de jovens da igreja, onde ela formou mais amigos. Ela cativava as pessoas, no grupo eles pensavam muitas atividades e movimentavam a comunidade.

Na inauguração do Clarisse tinha muita criança, veio gente de fora, foi rezada uma missa, tudo muito bonito. Quando a Rose, a primeira diretora, saiu, a Dudé foi convidada a assumir, devido a todo o envolvimento dela com a comunidade. Ela estava terminando a faculdade e tinha paixão por esse trabalho, as pessoas gostavam dela, era um envolvimento natural por ser moradora do bairro. E assim ela começou como diretora.

Eu ingressei no Clarisse junto com a Maria do Carmo, já tinha um vínculo grande com o Clarisse pela minha irmã. Quando a Maria do Carmo chegou e a Dudé estava doente, ficou um vazio, acabei assumindo o trabalho nesse período de transição.

Maria Elvira do Nascimento

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mãe e voluntáriaNa década de 1990 tivemos uma crise: dos doze funcionários, o Clarisse foi para três e pas-

sou a ter a necessidade urgente de voluntários, para que não fechasse. Na época, a equipe era a Dudé, o Eurico e o seu José. Os pais vinham durante a semana e se revezavam para ajudar na limpeza e no preparo dos lanches. Foi assim, como voluntária, que comecei no Clarisse.

Os meus dois filhos mais velhos foram da primeira turma na inauguração. A Marlene, que era uma das responsáveis por procurar um espaço para começar o trabalho com as crianças, me procurou e perguntou se eu tinha interesse em inscrever meus filhos. Minha filha chegou até a trabalhar de auxiliar, porque antes, quando eles chegavam à quinta série, tinham que sair por conta da faixa etária, e minha filha e outras três meninas passaram a colaborar como auxiliares dos educadores.

Eu me lembro de ver meu filho correndo para fazer lição, só para poder ir logo para o Clarisse. Antes eu achava que as crianças iam para lá só para brincar, mas eu vim a entender que existem brincadeiras formativas, passei a ter consciência de que a brincadeira traz um ensinamento, um aprendizado, muitas vezes eles estão brincando e aprendendo matemática, exercitando a atenção.

Antes do Clarisse eu mal sabia cozinhar, não sabia nem fazer bolo. Meu primeiro bolo fiz aqui, foi uma nega-maluca. Eu tinha de fazer quatro formas de bolo, fiz duas e o fermento aca-bou, aí a Dudé falou para usar bicarbonato e usei: o bolo ficou bonito, mas na hora de comer, quem disse que alguém conseguia comer – ficou com gosto de sabão. Eu tinha colocado muito bicarbonato e acabei perdendo a mão.

Sônia Regina Vasconcellos de Oliveira

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colher e lápis nas mãosQuando a Maria do Carmo entrou, conseguimos o fogão semi-industrial e passamos a fazer

arroz, feijão e as coisas mudaram. Nós fomos incrementando a cozinha, aumentou o número de crianças e também de funcionários. Antigamente, quando tínhamos uma quantidade me-nor de crianças, eles ajudavam a lavar a louça, mas como hoje tem muita criança e a cozinha é pequena, não temos condições de fazer esse tipo de coisa.

Já houve época em que as crianças só comiam aqui, eram tempos mais difíceis, mas as coi-sas melhoraram muito. Até hoje acho que não sei cozinhar, mas faço tudo com muito carinho, não faço só por fazer, e procuro fazer o melhor possível, até peguei gosto para cozinhar em casa para a minha família. Foi aprender a cozinhar com carinho que tudo mudou, até pararam de reclamar da minha comida em casa. Aqui no Clarisse voltei a estudar, mas no começo eu ainda estava bem desanimada, minha filha foi comigo e fez minha inscrição: terminei a quinta série, depois fiz o fundamental completo e o segundo grau. Hoje cheguei ao curso técnico no SENAC.

Eu me surpreendi muito comigo mesma, ainda tenho dificuldade de memorizar as coisas, mas o mais importante é que me dedico muito, estudo porque isso me ajuda no dia a dia, muitas coisas a gente passa a aplicar no trabalho. E pensar que este trabalho começou nos fundos da igreja e hoje é essa casa toda. Se eu não estivesse no Clarisse, não teria aprendido a cozinhar, não teria começado a estudar, não consigo imaginar nem a mim, nem ao bairro, sem o Clarisse.

Hoje não sou só dona de casa, sou mãe, alfabetizada, tenho amigos, concluí meus estudos e, se tudo der certo, serei em breve uma Técnica em Nutrição. Se não fosse o apoio que tenho aqui, eu não conseguiria nada.

Sônia Regina Vasconcellos de Oliveira

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Page 46: Clarisse: os frutos de uma história

herança Foi difícil no começo, tinha uma comparação implícita entre o meu trabalho e o da Dudé,

eu era muito testada. Até então, eu só tinha trabalhado em berçário. Quando entrei na sala, vi que não sabia de nada, eu ensaiava, planejava e quando começava não conseguia! Não tive uma fase de estágio, cheguei e já tive que assumir a turma. O primeiro dia foi um trauma, ne-nhuma criança queria fazer nada por conta da saída da educadora, é impressionante o vínculo que eles criam com as equipes, por isso eles agem dessa forma para demonstrar a insatisfação com a mudança.

Depois de um ano de todo esse fluxo, a equipe realmente estabilizou, começamos a assentar o trabalho. Ao longo desse período, vi que era fundamental estudar e trocar muita informação com os educadores. Muito do nosso trabalho se baseia na troca, aprendi muito com a Janete e o Ricardo, que me ajudavam com os relatórios, com os planejamentos, eles foram essenciais.

A Maria do Carmo sempre exigiu os estudos, mas confesso que os maiores aprendizados que a gente tem no Clarisse são humanos, a experiência de troca na equipe é muito grande, sempre tem mais a aprender. Os planejamentos eram realizados em duplas, eu sentava com o Ricardo, era um momento observar pontos de vista distintos, de alguém com mais experiência. Eu pedia muito a opinião dos outros educadores, porque eles conheciam as crianças, era uma experiência de construção coletiva.

Depois dessa primeira fase de chegada e organização do Clarisse, veio o convênio com a prefeitura, que trouxe mudanças significativas em relação ao modelo de administração e ges-tão do espaço

Maria Elvira do Nascimento

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Dia a diaQuando comecei a trabalhar, estávamos com um projeto que estudava a linguagem através

de autores da literatura. Nós estávamos estudando a Clarice Lispector, então por meio da pro-dução textual de autores, nesse caso a Clarice, desenvolvíamos atividades de artes, de leitura, escrita, dramatizávamos as histórias, tudo passava pela palavra, pelo texto.

Nós decidíamos nas equipes os autores que seriam estudados nos projetos, tudo era escrito e relatado nos cadernos dos projetos. Eu escrevia muito, adorava fazer o planejamento e os relatórios, era a hora de refletirmos sobre nosso trabalho.

A demanda de crianças sempre foi muito grande ao longo de todos esses anos. Chegamos a ter três períodos de turmas, para tentar atender uma maior quantidade de crianças, mas com isso tivemos uma perda significativa de qualidade que não justificava esse ganho em quantida-de. E optamos por voltar a atender dois períodos, para assim garantir a qualidade.

Sempre fiquei com a turma dos maiores, até essa liberdade a gente tem no nosso trabalho. Como educadores, precisamos ter empatia pela turma, pela faixa etária. Oos maiores colocam questões, eles questionam a todo momento, isso sempre me estimulou muito.

Maria Elvira do Nascimento

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Page 48: Clarisse: os frutos de uma história

primeiras palavrasNa Associação Pela Família, entrei em 1998 em um projeto no Vianna Moog, com alfabe-

tização de crianças que tinham dificuldade na aprendizagem.

No Vianna foi meu primeiro contato com as crianças do Jaqueline, e era muito diferente do que eu estava habituada. Foi uma experiência muito rica, mas tinha que ficar me preparando o tempo inteiro para dar conta, não sabia como fazer, tinha reunião no Clarisse uma ou duas vezes por semana com a Maria do Carmo.

Lembro a primeira vez que uma das crianças que eu atendia chegou para mim e disse: “Professora, consegui ler”. Foi a primeira vez que me senti educadora, era algo tão alegre, ela se chamava Daiane, foi uma coisa muito especial.

O que eu ganhava no Clarisse era bem menos do que eu recebia na escola particular onde trabalhava o outro meio período, e na mesma época as duas propuseram aumentar a carga horária. Escolhi ficar no Clarisse, pela identificação com o trabalho. A primeira impressão que tive do Clarisse foi de uma casa muito apertada, ao mesmo tempo as pessoas foram muito acolhedoras e muito simpáticas: duas impressões contraditórias.

Quem me apresentou o Jaqueline foi a Janete, que na época era orientadora. Ela foi abrindo as portas do Jaqueline. Teve um projeto de visita familiar e participei, foi o que fez eu me apro-ximar da região, não só das crianças, mas entender como elas viviam. Nunca tinha entrado no Jaqueline, era um mundo diferente. Tem uma história que lembro de vez em quando. Entrei no Jaqueline para fazer a visita e fomos perguntando onde era a casa da pessoa, e disseram que era depois da ponte. Imagina que minha referência de ponte era Cidade Universitária, ponte do Jaguaré, e aí cheguei era uma pinguelinha. Assim fui conhecendo esse outro mundo, essa proximidade de você estar o tempo inteiro em contato, saber do outro, estar ali junto. Sinto que no Jaqueline ainda se preserva essa vivência comunitária.

Anna Thereza Guolo dos Santos

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Reforço no ViannaEntrei em 2002 e acho que saí em 2009, quando entraram os projetos com as psicopeda-

gogas. Trabalhei durante sete anos no Vianna Moog atendendo crianças desde a primeira até a quinta série, fazendo o trabalho de reforço de duas a três vezes por semana. Aprendi muita coisa com eles, lógico que a gente ensina, mas também aprende. Era gostoso porque a turma era pequena, a gente brincava bastante, e do jeito que a gente brincava, também aprendia.

Todo dia tinha uma coisa engraçada, todo o dia era diferente. O trabalho no Vianna era uma oportunidade de tentar atender crianças que não conseguiam vagas aqui no Clarisse. Eu ficava no máximo uma hora com as crianças, quarenta minutos de atividade e vinte minutos de brincadeira. Na escola, eu percebia a diferença que o Clarisse fazia na formação das crianças.

Os melhores momentos eram os encontros com as outras unidades e as reuniões de equipe, sem falar no reconhecimento da evolução dos alunos, era muito satisfatório. O que eu faço hoje, profissionalmente, vem muito do que aprendi no Clarisse, eu pratico inclusive com os meus filhos o que aprendi aqui.

Eu aceitaria com certeza voltar a trabalhar aqui. Nos outros lugares, a visão que se tem do Clarisse é de excelência, ainda que o espaço físico seja pequeno. A escola, as famílias, eles veem o retorno que tem nas crianças, tanto é que ficamos no Vianna mais de dez anos com essa parceria.

Tínhamos um resultado muito grande, a gente conseguia ver o resultado do trabalho nas crianças, no dia a dia. O ambiente do Clarisse é muito acolhedor, agradável, só falta um espaço físico maior.

Ana Carolina Cardoso

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como coração de mãeQuando comecei a trabalhar com o Clarisse, aqui no serviço de proteção básica do Centro

de Referência de Assistência Social (CRAS) Butantã, me surpreendi com a qualidade dos ser-viços ofertados pela equipe.

Apesar do espaço físico limitado da casa onde o Clarisse está instalado, ele desenvolve um trabalho socioeducativo com ênfase não só nas crianças, mas na comunidade do Jardim Jaqueline, com uma metodologia que usa instrumentais muito criativos, participativos e que otimizam ao máximo os espaços existentes na comunidade.

As atividades ali desenvolvidas são marcantes, com resultados positivos e na busca da aqui-sição do conhecimento e respeito de cada criança, adolescente e das famílias do bairro. E isso só é possível por conta do corpo de funcionários, os educadores, que nós chamamos de tra-balhadores sociais, exercem o trabalho com uma responsabilidade que é visível para qualquer um. Nossa função no CRAS Butantã é acompanhar esse trabalho, supervisionando e garan-tindo as condições mínimas para seu desenvolvimento.

A surpresa que o Clarisse traz é poder fazer uma rede de parceiros viva, uma rede quente no Jaqueline. A gente percebe que na falta da amplitude da residência, a equipe procura ocu-par os espaços públicos, eles vão ao Parque Raposo, fecham uma rua inteira para fazer suas atividades, então, quando a gente fala que o espaço físico limitado não é motivo para não fazer ações, a gente vê isso concretizado nas ações, eles lidam muito bem com esse espaço.

Às vezes não basta atuar individualmente, é necessário somar esforços, olhando as crianças de forma integral, debatendo as questões relativas à saúde, à família e também à educação, para garantir que o trabalho do dia a dia tenha uma visão maior.

A parceria entre a esfera pública e as ONGs é fundamental para garantir que o Estado tenha um braço de atuação que alcance a todos. A importância disso é garantir que o trabalho chegue às pessoas nos bairros que carecem de serviços públicos, por meio dessa parceria. O papel do Estado aqui, através do CRAS, é supervisionar e garantir a qualidade do serviço com avaliações cotidianas.

O que sempre comento que me surpreende no serviço da Associação Pela Família é a pos-sibilidade que todos os educadores, no desenvolvimento de suas atividades, têm de trabalhar muito a questão lúdica e cultural. Nesses três anos foram muitas atividades boas, acho que assim a grande riqueza é o uso de diversas linguagens e formas para a realização de atividades e ações no campo sociocultural.

O que mais me deixa satisfeita e feliz é encontrar cada criança no centro de convivência, a política está aqui para atender os usuários, crianças e adolescentes, sendo tratados com a qualidade do serviço e tendo seus direitos defendidos. O sentido de uma política publica são seus usuários.

Roseli Yoko

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Explorações didáticas 3:

O Direito à PalavraNa sua origem, o espaço do Clarisse tinha uma questão fundamental para sanar: o alto

índice de analfabetização, entre as crianças, na comunidade do Jardim Jaqueline. Em sua essência, ele preserva ao longo de toda sua história este elemento fundamental, a preocupa-ção com a palavra. Ao firmar o convênio com a prefeitura, o Clarisse viveu o momento de se redescobrir em sua essência, seus educadores passaram por diversas formações oferecidas ora pela Associação Pela Família, ora pela própria prefeitura. Era preciso repensar as práticas de alfabetização, era necessário contextualizar a palavra, assim nasceu a Cadeira do Autor, uma prática que procura pensar a alfabetização de forma dinâmica, trabalhando a palavra em seu contexto e em seus múltiplos sentidos.

Leitura que fascina Na Cadeira do Autor, o principal objetivo é ampliar a percepção que as crianças têm da pa-

lavra, trabalhando-a de forma lúdica, múltipla e integral. O começo do nosso trabalho se dá na leitura e investigação de autores da literatura, em geral a atividade é mais fluida se o educador define previamente o autor a ser trabalhado. No Clarisse, uma de nossas experiências mais mar-cantes foi trabalhar com Clarice Lispector. Esta autora em questão servirá de insumo e de base para o desenvolvimento das mais diversas atividades.

No primeiro momento, é importante trabalhar a leitura no seu espaço de ensino, o educador pode ser o mediador da leitura, introduzindo o livro e apresentando o contexto que abarca a obra e o autor. É possível ainda dividir a leitura em grupos ou realizá-la coletivamente na sala. Como dito antes, esse autor ou obra literária servirá como elemento catalisador, disparador das atividades posteriores; é importante trabalhar o fascínio na leitura, o processo da leitura deve ser realizado de forma a conquistar os leitores.

Cadeira do AutorUma das possíveis estratégias após a leitura é a produção de textos autorais pelos educando,

de forma a exercer a escrita a partir da inspiração com a leitura. No caso da Cadeira do Autor, o objetivo é promover a construção coletiva.

O primeiro passo é convidar um dos educandos a apresentar seu texto, ou seja, a sentar na Cadeira do Autor. É importante colocar uma cadeira em destaque para que se se sinta com autoria, protagonista. As outras crianças ficam em semicírculo, podendo assim ter uma visuali-zação do texto que está sendo ampliado, formando assim um cenário em que todos possam se sentir escritores e contribuindo com o colega.

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O autor apresenta seu texto para o grupo e então começa a prática coletiva. Feita a leitura do texto, o educador vai à lousa ou Flip-Chart mediar a relação entre o público e o autor. As crianças começam a fazer perguntas para o autor, perguntas para que ele reflita sobre escrita para ampliar a história, trazer novos personagens, criar ou mudar o conflito da história, per-ceber a importância de uma coerência e estruturação de texto, trazendo novos elementos para sua história. É importante que a mediação das perguntas se faça presente, para que não vire uma sessão de comentários puramente. O objetivo das perguntas deve ser colaborar para o aprofundamento da história.

À medida que as perguntas são respondidas oralmente pelo autor, o educador toma nota, escrevendo na lousa ou no Flip-Chart. Ao final da atividade, o autor reescreve seu texto com os elementos ampliados durante a entrevista e, terminado, ele reapresenta para todos o resultado aumentado e melhorado.

Um Passo AlémAo propormos que a palavra seja o cerne da sua atividade, são muitos os desdobramentos

que poderíamos apresentar e que vão além da Cadeira do Autor: você pode tomar textos autorais como objeto da sua prática e propor atividades coletivas, após a leitura e escrita. Um dos melhores exemplos é a dramatização de textos, uma atividade que cativa os aluno. Na dramatização de textos, pode-se propor o teatro de forma clássica com diálogos e personagens, realizar um teatro de bonecos ou ainda valer-se da tradição popular com o teatro de sombras.

São muitas as possibilidades que significam e tornam concreta a palavra, atividades artís-ticas de pintura, uso de linguagens tecnológicas como a produção de podcasts, stopmotion e outros diversos exemplos.

Para ReFletirUm texto não é só um conjunto de palavras, é um universo em si, a soma das expectativas

e visões de seu autor ou seus autores. A leitura e o texto podem ser fascinantes, se soubermos ir além das práticas óbvias e consagradas; é preciso valer-se de seu referencial humano e cultural. Se você tem facilidade com música, use-a; se suas habilidades manuais são mais aguçadas, faça o mesmo: o importante nesta exploração didática é que o texto não termine em si, mas sim que permeie os sonhos de seus educandos

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Mar de histórias F

oram vinte e cinco anos até a construção da equipe atual, que está junta há mais de

15 anos no Clarisse. Nesse período, a equipe alcançou maturidade e entrosa-mento, e aprendeu a trabalhar fazendo uso da autonomia e potencializando a estrutura de projetos, o que permite todo ano renovar as práticas pedagó-gicas a partir de uma concepção de educação que prima pelo acolhimento, pela dedicação às atividades de forma-ção e pelo debate constante e reflexivo.

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Mar de histórias

A atuação do Clarisse caminha num sen-tido educativo, trazendo para dentro de suas paredes atividades de caráter lúdico e as he-ranças culturais dos jovens e da comunidade. A instituição ainda cumpre um papel de ex-pansão das fronteiras, levando as crianças e os pais para conhecer os equipamentos públicos de cultura à disposição da população, garan-tindo o acesso a estas pessoas e revelando a elas diferentes mundos e possibilidades.

Os educadores hoje são referência no bairro e cumprem com um papel de inspi-ração, pois na sua maioria eles também são moradores da região, que cruzam diariamen-te os seus caminhos com o das crianças e pais, momentos estes, aliás, em que são abraçados e reconhecidos por todos com alegria.

Hoje, o Jardim Jaqueline é um bairro ur-banizado que recebeu muitas melhorias, se comparado ao começo dessa história, mas o bairro ainda é o lar de famílias que passam por dificuldades, que vão de questões de mo-radia, saneamento, até o desemprego. Ques-tões pelas quais hoje são capazes de reivindi-car e debater como um grupo, uma comuni-dade de fato.

Neste capítulo, você vai conhecer a trajetória de alguns dos educadores que fazem o trabalho acontecer. Em uma constituição que já extrapo-la uma década, a equipe é composta pela soma de diferentes competências: temos a Tia Luzia, nossa tia de coração; o carinho e acolhimento da Mônica; a história de superação e de fanta-sia da Meuri; a eterna professora de informática do bairro, a Gisele; e nossa mais recém-chega-da e entusiasta educadora, Patrícia. Nosso time de primeira, que começou a ser apresentado no capítulo anterior, conta aqui como é o dia a dia e os desafios de ser educador. Solange, a crechei-ra que aprendeu a trabalhar com a juventude e hoje voltou a trabalhar nas creches, também dá seu depoimento. Alguns segredos e muita paixão compõem falas emocionadas, que uma vez mais nos convidam a passear pela história.

No século XXI, das tecnologias de distân-cia, da comunicação remota, da experiência virtual, o segredo do nosso sucesso é tato, é toque, é riso e brincadeira. Somos olhos nos olhos com a comunidade, com as crianças, e na nossa equipe aprendemos que o diálogo é o único caminho de mão dupla. Ele não é uma estrada cinza sem volta, é cercado de flores de afeto e está sempre em movimento.

Mar de histórias

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A vida que fantasiaCom cinco anos de idade eu vim morar

no Jaqueline, meu pai e minha mãe mora-vam de aluguel, a gente morou um tempão assim. A casa era pequena, tinha uma cami-nha de solteiro, uma cozinha apertadinha e eu dormia com meu irmão pequeno. Como minha mãe trabalhava muito, ela tinha dois empregos, a gente ficava muito solto. Lem-bro de pular o muro de casa, brincar nas vielas, ir até o rio, que antes era limpo e tinha uma bica de água pura onde a gente brincava de ir buscar água. A gente brinca-va muito de criar e inventar, usava caixa de papelão, barro, tudo isso na rua.

Entrei no Clarisse quando tinha oito anos. A gente tinha uma passagem de aces-so direto à igreja, nos fundos havia também uma marcenaria que a gente usava com o Eurico. E dentro da casa a gente ficava mais na parte de baixo, onde tínhamos os grupos que faziam as atividades; pintura, costura, artes. Nessa época, a gente tinha uma rotina com a roda de conversa, depois a atividade do dia, havia filmes, não tinha muita escrita, mas muita coisa manual para fazer, a gente tinha também o momento de brincar.

Das atividades do Clarisse, me lembro da-quelas que eu gostava muito: o teatro, que eu amava fazer, artes, coisas que me proporcio-navam alegria. O teatro apareceu para mim através de um projeto cuja temática era o cir-co, a lona, os palhaços, os artistas. Foi quando chegou a Bola, professora de Teatro, e o gru-po dos educandos pediu para ela montar uma peça temática. Nós começamos a escrever e pesquisar a história do circo, ensaiar a for-ma de apresentação da peça, as falas, e como nessa época eu fazia balé, queria ser a baila-rina. Foi um momento marcante porque foi quando comecei a me soltar e me relacionar mais com os outros, meu mundo foi expan-dindo através da fantasia, era uma chance de ir além da minha realidade.

Quando eu era pequena, brincava mui-to de escolinha com meus irmãos, e ao lon-go dos anos com os professores marcantes que tive, fui sendo incentivada. Essas pesso-as me fizeram querer ser professora e esse caminho me levou ao magistério. Estagiei em escolas públicas e particulares, mas em nenhuma delas consegui exercer aquele fas-cínio, eu queria ir além.

Meuri Monique Dias

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Sensível às artesQuando terminei o magistério, uma amiga que trabalhava na ASPF comentou que eles pre-

cisavam de educadores, mandei um currículo e fui selecionada. Fiz a entrevista e, quando estava indo embora, vi um quadro que tinha o nome do Clarisse. Falei que tinha sido criada lá e na hora ela contou que eles precisavam de uma educadora, e perguntou se eu queria tentar. Foi aí que a Maria do Carmo me chamou para fazer a entrevista e estou aqui até hoje.

Entrei no lugar de outra educadora. Era uma turma do primeiro ano, um começo difícil, primeiro pela troca de educador, depois pelas diferenças no jeito de trabalhar, é um processo de muita conversa. Nesse período, tínhamos também muitas formações e me lembro de algumas: uma com um professor de Português, que nos ensinou a trabalhar a palavra de forma lúdica, por exemplo, cantar poesia, produzir linguagem visual a partir da palavra; tivemos também uma ca-pacitação de informática com apoio externo, onde ganhamos computadores para os educandos, foram muitos aprendizados.

O primeiro projeto do qual participei como educadora foi o Tirando de Letra: eu ficava com um grupo de alfabetização na Escola Vianna Moog. Teve um projeto sobre sexualidade que fiz com alguns adolescentes recém-saídos do Clarisse, entre 14-15 anos. Teve ainda o projeto do Cordel, em que trabalhamos com xilogravura e montamos livretos de cordel. Quase todos os meus projetos acabam herdando a minha característica como educadora, que é uma sensibilida-de ao mundo das artes. No Tirando de Letra a gente trabalhava com a alfabetização a partir da música “Casa”, do Toquinho. Fizemos uma casa com caixas e trouxemos móveis montados com sucata, assim a gente trabalhava a escrita e a leitura de forma dinâmica.

Tenho uma sensibilidade maior para a faixa etária dos menores, eles têm um mundo de fascínio, do imaginário que me encanta. Tudo para os menores ainda é uma novidade, há uma surpresa a cada dia, eles são sinceros ao expressar as vontades e opiniões. Como educadores, eles exigem que estejamos ligados ao mundo, trazendo sempre reflexões e desafios que os levem além de suas limitações, eles exigem uma conquista diária.

Foi como educadora que fui ao cinema aos 22 anos pela primeira vez, uma descoberta ma-ravilhosa, fiquei encantada por aquele mundo. Descobri um infinito que cabia dentro de uma pequena sala. Em cada passeio que fiz com o Clarisse, descobri realidades diversas.

Meuri Monique Dias

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Tia de coraçãoTrabalho há 16 anos no Clarisse, sou auxiliar de cozinha e moradora do Jardim Jaqueline.

Meus quatro filhos passaram por aqui na época da inauguração, foram do primeiro grupo a participar. Nessa época, a rua era de barro, não tinha posto de saúde, nem iluminação, essa comunidade era bem menor, e o parque ainda era um lixão.

Como mãe, lembro que meus filhos faziam muita doação, as mães contribuíam com alimentos. Lembro uma vez em que meu filho caçula pegou escondidos dois litros de óleo para doar, é algo que eu não esqueço. Aquela doação era muito importante para ele, mesmo fazendo falta na nossa casa.

Hoje, Tia Luzia é meu apelido carinhoso, muita coisa mudou na minha vida, o Clarisse me abriu um leque de oportunidades. Eu nunca tinha ido a um cinema, a uma exposição de arte. Nós conhecemos o Sítio do Picapau Amarelo, que eu achava que só existia na televisão. Abriu minha mente para eu voltar a estudar. Antes eu não sabia ligar um computador, e aqui aprendi a mexer graças à diretora Maria do Carmo e às minhas professoras.

Muita coisa mudou. Com esse trabalho, tive a oportunidade de ter coisas novas na minha casa, antes eu só tinha coisas usadas, tinha desejo de adquirir uma coisa nova, consegui com-prar minha cama, meu fogão, minha geladeira, são muitas coisas.

Sabe, sempre fui muito tímida, tinha dificuldade em dizer coisas importantes, e através da Associação concluí meus estudos, conheci o mundo. É um trabalho apaixonante e lindo que faz bem para as crianças e para os pais, eles confiam em nós e sabem que seus filhos estão sendo cuidados.

Luzia Salvina Ferreira

O mundo digitalQuando eu fazia catequese, comecei a trabalhar como voluntária na Casa da Criança, onde

auxiliávamos nos serviços gerais e interagíamos com as crianças fazendo brincadeiras. Na Casa da Criança, tive meu primeiro contato com informática no projeto Acessa São Paulo, participei de uma capacitação e durante cinco anos atuei aprendendo e ensinando informática. Era uma chance de interagir com toda a comunidade, todo o bairro.

Ensinar informática naquela época era uma novidade, pois era tudo muito caro, todo mundo queria aprender a mexer com informática. Era uma carência, não tinha essa quantidade de lan house que tem hoje. Às vezes estou na rua e as pessoas me encontram e contam que aprenderam a mexer no computador comigo.

Foi minha experiência na Casa da Criança que me fez chegar ao Clarisse, um lugar que até então eu só conhecia pelo nome, sabia onde era a casa onde ele ficava instalado. Olhando de fora, achava que era só uma casa, não imaginava que construiria uma vida inteira ali.

Gisele Xavier da Costa

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Informática que formaQuando você coloca uma criança pela primeira vez no computador, ela sonha. Já o adulto tem

medo. Eu via pessoas que sentavam na frente do computador e tinham medo de ligar, porque acha-vam que iam quebrar. Nós fomos aprendendo a desenvolver estratégias para ensinar os adultos a mexerem no computador. Eu procurava unir os jovens que tinham mais experiências, com os adultos que tinham mais dificuldade. Isso foi em 2006, nosso primeiro projeto de informática no Clarisse.

Hoje dou aula de informática para as crianças e cuido de uma parte de gestão e organização do espaço. Nós temos que cumprir nosso papel, que é ajudar a formar cidadãos. As crianças entram aqui de um jeito e saem diferentes, ninguém chega aqui vazio. A gente carrega uma cultura e as crianças são assim: trazem novidade, conhecimento de mundo, curiosidade, informações que adquirem lá fora e que aqui elas têm a chance de problematizar e debater. É uma chance de se formar culturalmente e ainda ser criança. O Clarisse atua ainda na mobilização dos pais, da comunidade, para que sejam críticos quanto à realidade, à necessidade de reivindicar seus direitos. Nosso principal desafio é estar mais integrado a toda comunidade, não só aos pais.

Gisele Xavier da Costa

A turma da MônicaSempre morei no Jardim Jaqueline. Antes, minha casa era um barraco e aos poucos foi

mudando: ela era de madeira e o chão de barro, mas com o tempo fomos construindo. Antes havia muito mato, pé de cana, barro e muitas brincadeiras na rua. Quando nasci, ainda não tinha luz, não tínhamos acesso a ônibus ou asfalto, aos poucos o bairro foi modificando.

Comecei a trabalhar no Clarisse e me surpreendi ao ter contato com o mundo das crianças. No começo eu ficava mais na recepção, aos poucos fui para as aulas e passei a ter contato com elas. É um prazer trabalhar com elas, um aprendizado cotidiano. As crianças ensinam muitas coisas: às vezes não sabemos uma brincadeira e elas ensinam pouco a pouco com paciência, é uma relação muito boa.

No começo estranhei um pouco a Roda de Conversa, mas fui aprendendo que era um es-paço de escuta e formação de opinião. A gente não está acostumado a ser questionado sobre nossa opinião ou sentimentos, e na Roda de Conversa a gente fala sobre o dia a dia, é um momento importante porque na roda é possível interagir com o outro de forma consciente.

Dentre as experiências que mais me marcaram, ir ao teatro foi uma das principais. Eu nunca tinha conhecido um teatro e nós vimos Os Saltimbancos. Achei espetacular aquele momento. É uma chance de conhecer culturas diferentes, de ir além do nosso espaço comum.

No Clarisse nós temos a chance de criar vínculos com cada criança, elas são consideradas na sua particularidade. Eu como assistente tenho que levar o que tenho de bom dentro do meu universo e dividir. É um espaço fundamental de aprendizado. Pode ver que as crianças correm pela rua para vir para cá, elas vêm felizes.

Monica Conceição dos Santos Campos

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De mãe crecheira à educadoraMeu primeiro trabalho foi como professora nas creches comunitárias. Nós íamos de casa em

casa, nas mães crecheiras, ensinar as crianças. Nessa época não tinham creches da prefeitura. Era diferente de hoje, tínhamos que nos adequar a cada casa, a cada situação.

O Clarisse surgiu na mesma época das mães crecheiras, e a gente, por trabalhar na creche, acabava se relacionando com a equipe do Clarisse. Eu tinha contato com a Dudé, trocávamos muito conhecimento, estávamos todos começando no mundo da educação. Todos os jovens nessa época acabaram estreitando as relações pela igreja, conhecíamos as famílias uns dos outros e tínhamos chance de atuar na comunidade. Quando entrei na creche, de fato passei a fazer parte do grupo de jovens, um grupo pequeno, mas com um trabalho consistente.

A Dudé era uma pessoa que resplandecia alegria, ela conseguia passar o que sentia em rela-ção à profissão, era um sentimento que eu admirava muito por ser verdadeiro, natural. Ela se do-ava por aquilo em que acreditava, ela é um modelo de vida para muitas pessoas. Por ter a relação com as crianças e com os pais, ela começou a ser uma liderança muito naturalmente. Naquela época não havia recurso do governo e as coisas eram muito difíceis.

Voltei a frequentar o Clarisse quando fiz o curso do CLICK, de informática, com a Gisele, isso foi muitos anos depois da creche. Eu não entendia nada de informática, e muito do que sei aprendi com a Gisele. Entrar lá depois de tantos anos era como viajar no tempo, ir para quando o Clarisse ainda era um espaço em formação, com tudo muito incipiente, bagunçado. Então, quando entrei para ter aula de informática, ficava lembrando o tempo da Dudé. A casa, mesmo sendo a mesma, era bem diferente de antes, agora o Clarisse era um legítimo morador do bairro, com raízes fincadas na comunidade.

Solange de Oliveira Lima Costa

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Eu entrei para substituir uma educadora que havia engravidado. Comecei fazendo meio período e fui me apegando ao trabalho. Quando cheguei eu tinha um medo tremendo de tra-balhar com os jovens, era a única faixa etária que eu tinha restrições. Me lembro de um amigo que falava para eu transformar esse pavor, esse medo, em uma solução, no meu próprio cami-nho. Eu tinha que achar o meu jeito de lidar com aqueles meninos. No começo, as primeiras aulas são as mais difíceis, é complicado substituir um educador no meio do caminho, há um apego natural àquela figura. Você só ganha as crianças quando elas te conhecem, e é nessa hora que você cria empatia e o trabalho se desenvolve.

Como educadora, gosto muito do que faço, respeito muito cada um que entra em contato comigo. A criança ou o adolescente está sempre buscando alguma coisa no educador. Se ele te xinga e você revida da mesma forma, você perde o respeito dele. O que aprendi nessa relação é que o fundamental é exercer o respeito, sem perder a relação de carinho. A bronca não di-minui o fato de gostarmos das crianças.

Diferente da escola, que tem de desenvolver um determinado currículo e toda uma parte burocrática, o Clarisse te dá liberdade de criar as próprias aulas, a gente trabalha em cima de projetos, tem autonomia para conduzir e criar aulas e conteúdos da forma que considerarmos mais adequada a cada turma. Essa liberdade que temos como educadores permite que exerci-temos de forma mais fácil a conquista das crianças pelo fascínio, pelo encantamento.

No começo de todo ano, o grupo do Clarisse define um projeto a ser desenvolvido, tiramos temas comuns a toda unidade e compartilhamos as primeiras ideias e impressões das turmas. A partir daí, cada educador é responsável por adequar as práticas aos seus grupos. Eu, por exemplo, sempre procurei expandir o horizonte de conhecimento dos jovens a partir da escuta deles próprios, ou seja, ao mesmo tempo tinha o reconhecimento da herança cultural dos jo-vens e o compartilhamento de novas experiências. Eu procurava, em cada criança, os temas, as curiosidades, para então explorar na sala. Elas gostam de participar e isso que legitima nosso trabalho. A gente tem a chance de identificar os vários talentos individuais dos jovens por ser um espaço de cumplicidade, eles têm chance para trabalhar seus talentos. A gente consegue identificar que uma criança tem jeito para dança, a outra para música ou para arte. São talen-tos que a gente descobre no cotidiano, e como educadores temos que convidá-las a sonhar e reconhecer os próprios talentos, que muitas vezes são invisíveis a elas.

O Clarisse foi um salto na minha vida profissional, tive muito investimento acadêmico, es-tudos, formações, aprendizados de gestão e administração, e principalmente a capacidade de ter superado o temor da faixa etária dos jovens. Hoje enfrento qualquer coisa, minha sensação é que nada pode me parar, e foram os jovens que me deram isso, todas as inseguranças que eu tinha eles me ajudaram a superar.

Solange de Oliveira Lima Costa

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Centro de ConvivênciaComecei trabalhando em creche porque adorava trabalhar com bebês, não tinha vontade

de trabalhar com crianças maiores. Cada criança tem seu tempo e seu modo, mudar as fai-xas etárias exige um amadurecimento do profissional para se adaptar às diversas idades. Dos quatro aos seis anos, tudo que a gente faz é referência para as crianças. Eu lembro a primeira vez que entrei em uma sala de aula: eu ficava olhando como a outra colega trabalhava e fui buscar a formação no magistério. A gente busca entender o que atrai as crianças e tem uma preocupação constante em usar o lúdico na formação.

Na educação não formal, a gente sempre trabalha com projetos, é um exercício de escuta. Não adianta impor uma ideia pronta para as turmas, é necessário atiçar a curiosidade, tratar de temas que sejam interessantes para os jovens. Eles trazem muitas sugestões e reflexões. Não adianta querer trabalhar cidadania, se eles têm uma necessidade de falar sobre sexualidade, por exemplo. É necessário criar sinergias que partam da curiosidade dos jovens.

Quando vim para o Clarisse, achei muito organizado, um lugar pequeno onde tudo estava organizado. Cheguei numa época de férias, as crianças estavam todas tranquilas fazendo suas atividades, um ambiente super cativante.

Patrícia Ramos

Page 65: Clarisse: os frutos de uma história

Os MaioresTrabalhar com crianças mais velhas requer paciência, eles te testam diariamente. Quando

cheguei, estava começando o projeto dos 25 anos do Clarisse, e foi um privilégio participar.

O que me identifica como educadora é o diálogo, trabalho muito com pesquisa e procuro estimular a autonomia e o trabalho em equipe. Neste ano construímos o projeto sobre as trilhas sonoras: ele veio da avalição que fizemos com a turma no ano passado. Fomos para além do conceito da música, exploramos o verbo Trilhar, percorrer caminhos.

Nesse projeto, começamos explorando a história do cinema e da tecnologia que ele en-volve, houve o momento da pesquisa e depois da apresentação. A minha função nessa dinâ-mica é estimular a curiosidade, colocar questões para a turma. No meio das atividades, por exemplo, surgiram várias questões que acabaram norteando o trabalho.

Também reservamos um tempo aqui para que os educandos brinquem, porque a gente percebe que eles muitas vezes não têm espaço para ser criança, por isso para nós é muito im-portante reservar um tempo para que brinquem. É uma chance de usar o imaginário. Eles, adolescentes, têm a chance de brincar de casinha, com bonecos, é uma alegria vê-los ali.

Para mim, os centros de convivência ensinam de forma diferenciada. Temos uma liber-dade criativa aqui em relação à escola, não há uma estrutura hierárquica do conhecer ou do aprender, eu não sou a figura central na sala de aula. O grande diferencial do Clarisse é o ambiente de acolhida, talvez por conta do espaço, ou pelo vínculo com o bairro, é uma diferença que faz com que todos valorizem o trabalho, as crianças aderem ao trabalho por-que vivem aqui.

Como profissional, cresci ao ter que produzir relatórios, refletir sobre as ações com as turmas, criar indicadores, escrever e reler. Essa cobrança acaba trazendo um crescimento profissional. Registramos todo o desenvolvimento do trabalho: do início aos resultados obti-dos. Nosso desafio hoje é crescer fisicamente, e quem sabe atender mais crianças.

Patrícia Ramos

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Explorações didáticas 4:

Um olhar para o brincarO projeto Brincando e Aprendendo marcou um período da história do Clarisse ao eviden-

ciar a necessidade de práticas lúdicas que tivessem as crianças como protagonistas. A proposta iniciada em 2007 teve por foco trabalhar com o resgate de brincadeiras. A partir de pesquisas, foi possível notar que as crianças brincam de fato muito pouco, e os espaços públicos ou insti-tuições educacionais, como escolas, não proporcionam esses momentos.

Do Brincar ao AprenderToda brincadeira pode ter uma intenção, pode ser mediada e até trazer uma reflexão, é um

exercício de mudança do olhar, da perspectiva. Primeiro, é importante pensar o envolvimento das crianças: elas devem ser sempre os agentes da ação, para que se proporcione uma experi-ência de empoderamento.

É fundamental identificar entre as crianças os lugares e tipos de brincadeiras. É comum identificar em maior quantidade brincadeiras que envolvam contato físico, “lutinhas” e o uso de equipamentos eletrônicos. Com esse primeiro levantamento da realidade das crianças, é possível propor algumas atividades, para estabelecer novos critérios na seleção das brincadei-ras, pensando de forma educacional e proporcionando um novo repertório cultural:

1 “Você brincava do quê?”: Pesquisar brincadeiras é um exercício de fascinação, os envolvidos têm a chance de refletir suas próprias experiências e resgatar do passado práticas que ficaram esquecidas no cotidiano. O educador pode partir do seu próprio repertório cultural, brincadeiras mais antigas como amarelinha ou cinco marias, para então convidar as crianças a entrevistarem seus pais e avós na descoberta de novas ve-lhas brincadeiras. Quanto mais pessoas da comunidade forem envolvidas na pesquisa, maior o repertório de brincadeiras.

2 É hora de adaptar: Feita a pesquisa, é possível pensar adaptações dessas brinca-deiras ao tempo e espaço da sua realidade. Por exemplo, a dama humana é uma adapta-ção do jogo clássico a uma realidade mais dinâmica com as crianças, onde elas próprias experimentam o jogo de forma coletiva e vivencial. Um exemplo inverso é adaptar a amarelinha a um tabuleiro móvel, facilitando seu transporte para qualquer lugar, ou ainda usar material reciclável para a construção de jogos – um jogo da memória com tampas de pizza, por exemplo, é mais fácil de ser armazenado em pilhas. O mais inte-ressante aqui é a contribuição das crianças nessa construção concreta da brincadeira, construir juntos até chegar aos objetivos. É importante que eles também participem na definição das regras das brincadeiras, que podem ser adaptadas e proporcionam uma experiência de formação efetiva. Os resultados são vários, e como há maior organização do grupo na construção de regras, há conflitos construtivos que exigem combinações entre as crianças no decorrer das brincadeiras: é uma negociação do conflito.

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Um passo AlémBrincadeiras no Mundo: Na fase da pesquisa e da construção, é possível propor

um passo para além do previsto. Esta atividade consiste na investigação de brincadeiras iguais pelo mundo. Por exemplo: joga-se amarelinha na África? Se sim, como? Essa pesquisa desper-ta a curiosidade das crianças de diversas formas e enriquece seu repertório cultural. É uma forma de colocar-se diante outras formas de percepção do mundo. Assim como o exemplo da amarelinha, muitos outros podem ser descobertos: jogos de tabuleiro pelo mundo, brinquedos artesanais, e assim por diante. Essa atividade é uma forma de aprimorar a pesquisa para ir além do proposto anteriormente.

É hora de brincar!Pesquisa feita, brinquedos montados, é hora de viver a brincadeira. Procure romper com

as segmentações de gênero e idade, estimule as crianças a experimentarem o fantástico, o faz de conta. As novas brincadeiras criadas durante o projeto talvez precisem ser revisitadas e rea-valiadas, algumas regras podem ter sido mal estipuladas e alguns jogos podem não funcionar.

O objetivo principal é que as crianças sejam capazes de brincar a partir de suas capaci-dades criativas, sem necessariamente um suporte anterior à ação, sem videogames ou outros equipamentos eletrônicos. A ação de brincar pode ser expandida para vários lugares, para os lares e para as próprias famílias. Dê a chance para que as crianças possam itinerar com suas criações, estimule essa troca e trânsito de atividades, permita que elas levem os jogos para a escola, para suas casas e para a rua. Só com esse livre trânsito de experiência e ideias o projeto estará concretizado. São experiências simples que permitem trazer a família e os círculos so-ciais próximos das crianças para a reflexão e vivência pedagógica.

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Meninos e Pássaros T

udo começa com uma semente, a gen-te coloca bastante água, a árvore cres-

ce, dá frutos e todo mundo come. Desses frutos vêm mais sementes e você tem de espalhar essa semente, dessa espécie rara de árvore chama-da Clarisse.

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Quem rega a árvore são as crianças, mas todo mundo come desses frutos. Cada pai que vem em uma reunião com os educado-res, cada técnico, educador ou oficineiro que conhece essas crianças, todos são responsáveis por plantar mais árvores, essa é a maior lição dessa história, nós aprendemos a multiplicar.

Este não é o último capítulo desta história, talvez esse seja o princípio. Aqui você vai ver a magia desse ciclo virtuoso nos relatos de pais e educandos. Conhecemos enfim os grandes protagonistas dessas histórias, as pessoas que dão sentido a toda essa trajetória. Hoje dois são os nossos desafios como um centro socio-cultural que trabalha educação não formal: alcançar mais famílias e comunicar nossa prática, não porque ela é a melhor prática educacional, mas porque acreditamos real-

mente que ao longo do tempo aprendemos a importância dos detalhes na formação – o bom-dia, os olhos nos olhos, a escuta, a roda de conversa.

Essas histórias são o motivo maior de nos-sa alegria, o sentido do nosso trabalho, o re-sultado concreto de uma trajetória que todo dia recomeça nos arredores do Jardim Jaque-line. É como disse uma de nossas mães: “O Clarisse é uma semente que caiu dentro do bairro, trazendo uma árvore bem grande. O bairro evoluiu muito também graças a este es-paço, que aprendeu a ensinar a comunidade e as crianças”.

Meninos e PássarosMeninos e Pássaros

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Minha ligação com o Clarisse começou com a minha filha Lidia em 2008, uma época em que realmente precisava de ajuda. Uma das minhas filhas estava passando por um tratamento de saúde. O Clarisse é um espaço onde meus filhos são recebidos, um lugar que me serviu e ainda serve de apoio, que me aju-da, é como uma outra casa, além da escola e do nosso lar.

Os educadores têm um jeito particular de lidar com as crianças, de educar. Como mãe, tento fazer o melhor dentro do meu limite, mas aprendemos muito com os educadores. Cada um dos meus filhos passou por um pro-cesso de crescimento próprio. O Luiz apren-deu a ser mais paciente, estabeleceu novos li-mites de comportamento. Antes eu fazia tudo que meus filhos pediam, para não chorar, fazia a vontade deles. Hoje, com os educa-

dores, aprendi a ser mãe de forma diferente, foi um desenvolvimento que veio com os anos ao longo dos quais meus filhos frequentaram o Clarisse.

As notas dos meus filhos na escola são óti-mas, eles têm uma habilidade em se relacio-nar com as outras pessoas. A Alana, minha filha mais nova, entrou no Prezinho sabendo ler, eu a vejo como uma mocinha, madura, estudiosa, ela é extremamente dedicada aos espaços de estudo.

O Clarisse continua sendo uma porta para mim, uma oportunidade para minha família. Da cozinheira à diretora, só tenho a agrade-cer cada um, minha vontade era poder con-tribuir tanto quanto gostaria para mostrar minha gratidão.

Mãe do Luiz, da Lidia e da Alana

O último trabalho do meu filho no Claris-se foi sobre o corpo humano. Ele não falava nada em casa, até que um dia contou que faria uma apresentação e eu não deveria ficar preo-cupada. Quando cheguei aqui, minha Nossa Senhora, ele começou a falar sobre o corpo humano, sobre sexualidade, mas de forma ma-dura, todos arrumados expondo e apresentan-do. Fiquei impressionada porque ele era muito tímido, ele fez com uma maturidade sem pre-cedente.

Quando a criança cresce, se ela não tem uma estrutura ou a capacidade de se manifes-tar, ela não é ninguém. Aqui no Clarisse ela tem a chance de se expressar, apresentar os tra-

balhos. Eles aprendem disciplina, respeito, tra-tamento ao semelhante. Como mãe, aprendo com o problema do filho, porque no Clarisse eu era orientada, cooperava, via a necessidade do meu filho, não só para criticá-lo, mas para construir com ele. Sentei muitas vezes com as mães em reunião e vi que aqui era um espaço de construção e aprendizagem, onde os pais podiam liberar sua angústia. Eu não sabia, mas descobri que aqui eu contava com pessoas que podiam me ajudar, e me ajudaram a crescer e ver as coisas de outra forma.

Mãe do Douglas

De portas abertas

Uma FilosofIa de partilha

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Exercício da paternidadeMinha presença como pai na formação do meu filho é marcada pelo Clarisse. Nesse pro-

cesso, aprendi a importância desse espaço para o meu filho: a união, o espírito de equipe, a passagem familiar.

O encontro com os pais é muito importante, nos ajuda a crescer, a nos localizarmos, é um trabalho estruturado, e isso favorece muito o desenvolvimento das crianças. Nesses encontros dos pais, tanto eu quanto minha esposa temos a chance de aprender, é o lugar onde nossa ami-zade se estende aos amigos e pais das crianças, como um desenrolar de laços.

Em relação ao meu filho, aprendi a escutar mais, deixei de ser tão impaciente, melhorei como pai, aprendi a dialogar mais, a perceber o comportamento dele. Cada dia que passa reconheço no meu filho coisas novas, isso me ajuda a crescer como pai, como filho e principal-mente como homem.

Uma das coisas que me fez mudar foi o próprio amadurecimento do meu filho, que passou a ser mais responsável, eu cobrava muito dele para ser um homem. Eu tive criação militar, meus pais eram muito rigorosos comigo, então vim de um crescimento assim e repassei auto-maticamente para ele. Hoje vejo que não vale a pena ser assim, muitas vezes eu dava tapa, era estourado, não criava ele como a criança que ele é. Hoje eu converso muito, dialogo, mostro a realidade.

A mudança que houve com o Adelmo e o tipo do ambiente onde ele convive fez ele mudar a forma de ver a realidade. A mãe dele antes era mais retraída, hoje ela se abriu, aprendeu a educar de uma forma mais clara, mudou a responsabilidade. Ela também procura ser mais afetiva. O Adelmo antes tinha uma relação mais dura com ela, mas hoje ele nos respeita da mesma forma. Hoje meu filho fala comigo de forma mais aberta, percebo que ele se sente mais seguro. Vou sentir falta quando ele sair daqui, porque vou ter de encontrar outras coisas para suprir essa necessidade, para prosseguir na formação dele.

Pai do Adelmo

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AcolhidosDouglas foi o meu primeiro filho a participar do Clarisse, ele era apaixonado pelo espaço.

Aqui não só as crianças e adolescentes são acolhidos, nós pais aprendemos a lidar com nossos próprios filhos, passamos a ter um maior entendimento que vem dos educadores. Todos apren-demos a nos relacionar em comunidade.

Eu recordo muitas atividades dos pais em parceria com as crianças e comunidades, que ain-da contam com o apoio de equipes complementares, psicólogos, nutricionistas. Por exemplo, lembro do projeto ECOAR, que tratou das questões do lixo no nosso espaço de convivência. Ao longo destes anos também tivemos trabalhos artesanais com as mães, visitamos outras As-sociações e, principalmente, tivemos a chance de conhece melhor nossos filhos. Essa relação se estende pelos espaços do bairro: frequentávamos o Parque e com isso passamos a reivindicar melhorias para ele, a população passou a exigir seus direitos. No caso do parque, começou pequeno, como um novo balanço ou um banheiro melhor. Era uma consciência que vinha dia a dia.

A meu ver, o Clarisse investe na reeducação da comunidade. Como resultado, vemos as mo-vimentações de grupos, a reivindicação por melhorias. Fomos instruídos e construímos parce-rias com entidades e organizações na comunidade, isso tudo através das crianças e educadores que cumprem com uma função de semear conhecimento.

Mãe do Douglas

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Pílula de sabedoriaQuando eu vim pela primeira vez para o Clarisse, ele parecia bem menor. Hoje em dia,

trocaram móveis e trouxeram novos brinquedos pra gente. O que mais gosto de fazer aqui é assistir filme, quando a gente tem a chance de ouvir o silêncio.

Richard, 8 anos

Nossos frutosAs condições precárias de moradia do nosso bairro sempre foram um fator de mobilização.

Lembro quando a Petrobras estabeleceu parcerias para tentar melhorar o espaço do duto pró-ximo às casas, era uma situação bem grave. O Clarisse acabou atuando como um dos principais espaços onde foram mostrados os riscos oferecidos pela presença desses dutos. Foram realizadas ações de limpeza e paisagismo, tivemos exibição de vídeos, com isso passamos a olhar de forma diferente para a questão dos dutos e aprendemos a evitar um problema maior no futuro.

Muitos dos frutos do Clarisse são emocionais. Um dos mais marcantes foi o coral. Quando a gente juntou as mães para fazer o coral, foi uma forma de mostrar que elas também tinham um talento e que aqui elas não eram só mães que vinham em reuniões e acompanhavam os filhos. Tinham uma chance de demonstrar alguma coisa ao sair de dentro de casa. Também trabalha-mos com os amigos do bairro do Jardim Jaqueline, fazíamos artesanato junto das mães. Até hoje tenho os presentes que ganhei aqui. Houve um dia para as crianças, em que elas foram para o Ibirapuera, “Teu Sonho Meu Sonho”, quando meu filho ganhou uma bicicleta, que guardo com carinho até hoje.

Têm ainda as festas juninas, algumas aqui na rua em frente ao Clarisse. Tivemos também no Parque Raposo e na Rua Clevelândia do Norte. Tivemos também a festa do Minha Rua, Meu Boi. O Clarisse proporciona muitas coisas boas para a comunidade em si, para as crianças, para os moradores, para o bairro. A contribuição do Clarisse é de crescimento, com isso passamos a valorizar mais o bairro. Quem não conhece o Clarisse, pergunta o que é, e a gente sabe explicar: é um Centro Educacional!

Mãe do Douglas

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Um ouvido no mundoComecei a vir para o Clarisse com 9 anos, faz quatro anos. Comecei na turma dos maio-

res. Nós chegamos, almoçamos, escovamos os dentes e fazemos a atividade, temos a roda de conversa, onde falamos sobre a escola e o dia a dia, fazemos uma dinâmica e começamos a atividade. Na roda de conversa, falamos tudo que sentimos vontade e somos ouvidos. É uma chance de expressar o que a gente sente, e eu sinto falta de ser ouvido no mundo.

Cada ano, participamos de um projeto, eu participei de quatro. O primeiro foi o Minha Rua, Minha Casa. Saímos pelo bairro tirando fotos e escrevemos frases em camisetas, na frente delas desenhávamos a foto que fizemos. As fotos eram para mostrar nossa casa e a rua. Foi assim que aprendi que tinha que cuidar da rua como se fosse minha casa.

Depois tivemos o Brincando e Aprendendo, onde a gente trabalhou criando brinquedos, e tinha brinquedo que eu nem sabia que existia! No ano passado teve o projeto de 25 anos do Clarisse, onde aprendemos coisas que nem imaginava. Você sabia que o Clarisse começou na igreja? É, eu descobri nesse projeto, ele era um espaço bem pequeno.

Eu gosto de muita coisa no Clarisse: da comida, das atividades, tem muita coisa diferente aqui, a gente pode conversar com o educador e com os amigos enquanto faz as atividades, os educadores se importam se a gente aprende ou não, eles estão sempre próximos da gente. Quando entrei aqui com 9 anos, tinha dificuldade em ler, hoje com 14 anos muita coisa mu-dou, tenho minha namorada, aprendi muitas coisas diferentes, hoje eu sonho.

Kevin, 14 anos75

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Um gesto, um sorrisoEEu gosto de morar aqui no bairro porque tenho amigos de verdade, apesar das pessoas

perigosas. Tem o parquinho, que é cheio de árvores, nosso lugar de brincar. A primeira vez que entrei no Clarisse me lembro da Mônica, que trabalha aqui, me levando para lavar as mãos. Sentei numa mesa e as meninas falavam comigo, me senti importante, como numa entrevista.

Aqui a gente tem chance de inventar muita coisa, agora estamos inventando a Casa do Terror, mas antes criamos hospital, restaurante, até casinha. Brincando e convivendo a gen-te aprende a não maltratar o amigo, a usar palavras bonitas, aqui a gente estuda e pode ser criança.

Tem uma coisa aqui no Clarisse que é muito especial: os educadores são mais atenciosos, sempre quando a gente chega é recebido com um sorriso e um gesto de boa-tarde, falta isso em outros lugares.

Isabela, 11 anos

Como vai, tudo bem?Eu entrei no Clarisse em 2006, não sabia nada sobre o que acontecia aqui dentro, ouvia as

pessoas falarem que era um centro, mas não entendia. No começo eu achava chato, por medo, hoje me sinto à vontade para participar de qualquer coisa.

No Clarisse temos atividades, não lição. Venho para cá animada, mesmo quando tem algo triste na minha vida. Se na escola nós temos dez professores, aqui eu tenho um educador que sabe meu nome e todo dia pergunta se estou bem.

Nesses sete anos que estou aqui, o que mais aprendi foi a conviver com as pessoas, ter contato com o diferente, respeitando-o. Aprendi a ter amor sem ter vergonha, aqui a gente é unido com os amigos como uma família, tem muita proximidade com a educadora e toda a equipe, é uma atenção diferenciada. Eu sonho ficar no Clarisse mais tempo, sei que isso não vai acontecer, porque agora completo a idade limite para estar aqui. É uma pena, porque que-ria poder ficar aqui durante anos e ter muitas histórias para contar, não queria guardar essas histórias só para mim.

Danieli, 14 anos

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Bom dia!Eu entrei pelo portão e quando os educadores falaram que ia começar a atividade, fiquei procu-

rando minha carteira, não imaginava que existia outra forma de aprender que não sentado e sozinho na carteira, mas aqui é diferente, sentamos em roda! Enquanto na escola a gente passa a maior parte do tempo sentado, aqui a gente brinca, fica em pé, interage. Se eu pudesse mudar a escola, levava isso para lá, quem dera o Clarisse tivesse o tamanho que tem a escola.

Uma das primeiras atividades que fiz foi com mosaicos, estávamos na época com o projeto Mi-nha Rua, Minha Casa, a gente falava sobre o bairro, queria tentar melhorar a vida nele. Teve um projeto que durou dois anos, foi o Brincando e Aprendendo, a gente fazia vários brinquedos, pé de lata, boneco de pano, telefone sem fio e jogo da amarelinha de vários lugares, como a amarelinha africana. Eu aprendi que a gente passa pouco tempo brincando, fica mais sentado assistindo televi-são, mexendo no computador, e com as brincadeiras aprendemos alternativas para não ficar sentado dentro de casa.

Uma das coisas que eu mais gosto é chegar ao Clarisse e ser recebido com um bom-dia. A gente tá tão acostumado a não ser notado, que acha normal não dar bom-dia. No primeiro dia que cheguei, a professora Solange (Solange de Oliveira Lima Costa) disse que se lembrava de mim na creche, eu acho tão especial ser lembrado desse jeito, faz a gente se sentir especial.

Victor, 13 anos

Um lugar no mundoO nosso bairro não é um lugar fácil, tem dias complicados, mas temos espaços de lazer, tem a

feira, as escolas, o parque. Sabe, me sinto bem quando estou aqui, acho que aqui é o meu lugar!

No Clarisse posso me expressar e ao mesmo tempo dizer o que não me agrada, o que acho erra-do, posso reivindicar. Principalmente na roda de conversa, onde tenho chance de ouvir meus amigos falarem sobre mim ou sobre o mundo e posso dar minha opinião. Nós somos tratados com respeito e também com carinho. Aprendi muita coisa aqui, a maior lição de vida que aprendi é que, se eu res-peito alguém, tenho direito a ser respeitada. Aos poucos entendi que as pessoas que passam por aqui têm uma lembrança boa, muita gente que não está aqui gostaria de estar, eu aprendi que o Clarisse marca a vida das pessoas.

Giovana, 13 anos

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CréditosIdealização:

Associação Pela Família -Centro de Convivência Clarisse Ferraz Wey

Execução:Ação & Contexto e Associação Pela Família

Coordenação e Edição:Gustavo Ribeiro Sanchez

Organização:Anna Thereza Guolo dos Santos

Gleice Silva AraújoMaria do Carmo Risi Moreira de Azevedo

Maria Elvira do Nascimento

Revisão:Agnaldo Alves de Oliveira

Thiago Majolo

Projeto Gráfico:Renato Neves

Diagramação:Murilo Abarca

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Conselhos

Conselho DiretorPresidente: Claudio Damasceno Junior Vice-presidente: Alcino Junqueira Bastos Secretário: Magno José Vilela

Conselho FiscalDiretor: Paulo Brito Moreira de AzevedoSecretária: Guilhermina Paula Santos Suplente: Marcelo de Oliveira Monteiro Diniz Junqueira

Conselho ConsultivoDiretor: Walter BarelliSecretária: Maria Cecília Coutinho de ArrudaSuplente: Francisco Augusto Carmil Catão

Gestão

Núcleo AdministrativoCoordenadora de Administração Corporativa:Dulce Cristina Beserra Lima Coordenadora de Ação Social: Anna Thereza Guolo dos SantosCoordenador de Desenvolvimento Pedagógico Institucional:Antonio Barbosa Pacheco Junior

Centro de Convivência Clarisse Ferraz Wey

DiretoraMaria do Carmo Risi Moreira de Azevedo

Equipe PedagógicaAna Paula Santos OdriaMaria Elvira do Nascimento PereiraMeuri Monique DiasMonica Conceição dos Santos CamposPatrícia Pereira Ramos

Equipe de ApoioAnderson Tales e SilvaFrancisca das Chagas Gomes AraujoLuzia Salvina FerreiraPaulo Edson Martins JúniorSônia Regina Vasconcellos de Oliveira

Ficha TécnicaAssociação Pela Família

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Ação & Contexto

Direção de ConteúdoThiago Majolo

Direção de CriaçãoGustavo Ribeiro Sanchez

Direção de ProduçãoLeide Maia

Direção de ArteRenato Neves

DesignerMurilo AbarcaPoliana Santos Pracuch

FotografiaEstúdio Z9À Margem

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Mantenedora Unidades Escolares Unidades Socioassistenciais