clarice lispector - onisciência seletiva

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CLARICE LISPECTOR Laços de Família Esta obra, publicada originalmente em 1960, traz, como de costume, a análise da alma humana (principalmente da alma feminina), muito bem delineada pelas deliciosas e poéticas palavras de Clarice Lispector. Entretanto, é preciso tomar cuidado coma aparente facilidade de compreensão apresentada pelos contos, pois apesar de uma usar um vocabulário muito acessível, Clarice tem uma grande habilidade de investigar a fundo o ser humano, percebendo em seus dramas mais cotidianos as inquietudes que perpassam lhe a natureza, o que se nota claramente, por exemplo, em Ana, do conto “Amor”, dividida entre seus desejos, a família e a mesmice de seu casamento; ou que podemos ver na mulher de “O Búfalo” que tenta aprender a odiar com os animais. Como diz Lúcia Helena, estudiosa da obra de Clarice, “Neta coletânea de contos, as personagens sejam adultos ou adolescentes debatem-se nas cadeias de violência latente que podem emanar do círculo doméstico . Homens ou mulheres, os laços que unem são, em sua maioria, elos familiares ao mesmo tempo de afeto e de aprisionamento. DEVANEIO E EMBRIAGUEZ DUMA RAPARIGA Este texto é escrito em terceira pessoa por um narrador onisciente seletivo intruso, numa linguagem que lembra o português de Portugal, tanto na forma de organizar as frases, quanto nas expressões, o que diverge bastante da linguagem tradicional da autora. Uma mulher, de origem portuguesa, casada, mãe de família, costuma alcoolizar-se com freqüência e, às vezes, na companhia do marido. Nestas situações acaba por não distinguir a realidade da fantasia e chega a conversar consigo mesma ora elogiando-se, ora reprimindo-se:. Um amigo do marido convida-os para um jantar, no qual mais uma vez ela se embriaga e começa a não saber mais o que é real e o que não: “E se seu marido não estava borracho é que não queria faltar ao respeito ao negociante, e, cheio d’empenho e d’humildade, deixava-lhe, ao outro, o cantar de galo. O que assentava bem para a ocasião fina, mas lhe punha, a ela, uma dessas vontades de rir! Um desses desprezos!”. Cria insultos imaginários para uma mulher de chapéu, que ela pensa estar lá para humilhá-la, fantasia que o amigo que os convidou a está assediando com os pés por debaixo da mesa. De volta a casa começa a tecer planos para o que faria com a sua vida e com a sua casa nos próximos dias, logo que se recuperasse da bebedeira: “Que relaxada e preguiçosa que me saíste. Amanhã não, porque não estaria lá muito bem das pernas. Mas depois de amanhã aquela sua casa havia de ver: dar-lhe-ia um esfregaço com água e sabão que se lhe arrancariam as sujidades todas!”. Tudo não passa de planos, no entanto. Ela termina o dia observando a lua e comparando-a com a sua feiúra, a observação vira inveja e xingamento. “Então a grosseria explodiu-lhe em súbito amor: cadela, disse a rir.” Vale ressaltar que a embriaguez é e sempre será uma forma de fuga, os delírios, os devaneios são a ponte entre o mundo desejado e o real. Viver é dolorido diz a personagem e estar sã é uma dor muito maior. AMOR Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

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Onisciência Seletiva

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  • CLARICE LISPECTOR

    Laos de Famlia

    Esta obra, publicada originalmente em 1960, traz, como de costume, a anlise da alma humana

    (principalmente da alma feminina), muito bem delineada pelas deliciosas e poticas palavras de Clarice

    Lispector.

    Entretanto, preciso tomar cuidado coma aparente facilidade de compreenso apresentada

    pelos contos, pois apesar de uma usar um vocabulrio muito acessvel, Clarice tem uma grande

    habilidade de investigar a fundo o ser humano, percebendo em seus dramas mais cotidianos as

    inquietudes que perpassam lhe a natureza, o que se nota claramente, por exemplo, em Ana, do conto Amor, dividida entre seus desejos, a famlia e a mesmice de seu casamento; ou que podemos ver na mulher de O Bfalo que tenta aprender a odiar com os animais.

    Como diz Lcia Helena, estudiosa da obra de Clarice, Neta coletnea de contos, as

    personagens sejam adultos ou adolescentes debatem-se nas cadeias de violncia latente que podem emanar do crculo domstico . Homens ou mulheres, os laos que unem so, em sua maioria, elos

    familiares ao mesmo tempo de afeto e de aprisionamento.

    DEVANEIO E EMBRIAGUEZ DUMA RAPARIGA

    Este texto escrito em terceira pessoa por um narrador onisciente seletivo intruso, numa

    linguagem que lembra o portugus de Portugal, tanto na forma de organizar as frases, quanto nas

    expresses, o que diverge bastante da linguagem tradicional da autora.

    Uma mulher, de origem portuguesa, casada, me de famlia, costuma alcoolizar-se com

    freqncia e, s vezes, na companhia do marido. Nestas situaes acaba por no distinguir a realidade da

    fantasia e chega a conversar consigo mesma ora elogiando-se, ora reprimindo-se:.

    Um amigo do marido convida-os para um jantar, no qual mais uma vez ela se embriaga e

    comea a no saber mais o que real e o que no: E se seu marido no estava borracho que no queria faltar ao respeito ao negociante, e, cheio dempenho e dhumildade, deixava-lhe, ao outro, o cantar de galo. O que assentava bem para a ocasio fina, mas lhe punha, a ela, uma dessas vontades de

    rir! Um desses desprezos!. Cria insultos imaginrios para uma mulher de chapu, que ela pensa estar l para humilh-la, fantasia que o amigo que os convidou a est assediando com os ps por debaixo da

    mesa.

    De volta a casa comea a tecer planos para o que faria com a sua vida e com a sua casa nos

    prximos dias, logo que se recuperasse da bebedeira: Que relaxada e preguiosa que me saste. Amanh no, porque no estaria l muito bem das pernas. Mas depois de amanh aquela sua casa havia

    de ver: dar-lhe-ia um esfregao com gua e sabo que se lhe arrancariam as sujidades todas!. Tudo no passa de planos, no entanto. Ela termina o dia observando a lua e comparando-a com a sua feira, a

    observao vira inveja e xingamento. Ento a grosseria explodiu-lhe em sbito amor: cadela, disse a rir. Vale ressaltar que a embriaguez e sempre ser uma forma de fuga, os delrios, os devaneios so

    a ponte entre o mundo desejado e o real. Viver dolorido diz a personagem e estar s uma dor muito

    maior.

    AMOR

    Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tric, Ana subiu no bonde.

    Depositou o volume no colo e o bonde comeou a andar. Recostou-se ento no banco procurando

    conforto, num suspiro de meia satisfao.

  • Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho,

    exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaosa, o fogo

    enguiado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o

    vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a

    testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mo, no

    outras, mas essas apenas. E cresciam rvores. Crescia sua rpida conversa com o cobrador de luz,

    crescia a gua enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando

    com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifcio. Ana dava a tudo,

    tranqilamente, sua mo pequena e forte, sua corrente de vida.

    Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as rvores que plantara riam dela.

    Quando nada mais precisava de sua fora, inquietava-se. No entanto sentia-se mais slida do que nunca,

    seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande

    tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artstico encaminhara-se h muito no

    sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e

    suplantara a ntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passvel de aperfeioamento, a cada

    coisa se emprestaria uma aparncia harmoniosa; a vida podia ser feita pela mo do homem.

    No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar

    perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele

    caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que

    tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doena de vida.

    Dela havia aos poucos emergido para descobrir que tambm sem a felicidade se vivia: abolindo-a,

    encontrara uma legio de pessoas, antes invisveis, que viviam como quem trabalha com persistncia, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance:

    uma exaltao perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportvel. Criara em troca

    algo enfim compreensvel, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

    Sua precauo reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia

    sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da famlia distribudo nas suas funes. Olhando os

    mveis limpos, seu corao se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida no havia lugar para que

    sentisse ternura pelo seu espanto ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saa ento para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da

    famlia revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianas vindas do colgio exigiam-na.

    Assim chegaria a noite, com sua tranqila vibrao. De manh acordaria aureolada pelos calmos

    deveres. Encontrava os mveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a

    ela mesma, fazia obscuramente parte das razes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente

    a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

    O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais mido soprava

    anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instvel. Ana respirou profundamente e uma grande

    aceitao deu a seu rosto um ar de mulher.

    O bonde se arrastava, em seguida estacava. At Humait tinha tempo de descansar. Foi ento que

    olhou para o homem parado no ponto.

    A diferena entre ele e os outros que ele estava realmente parado. De p, suas mos se

    mantinham avanadas. Era um cego.

    O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiana? Alguma coisa intranqila estava

    sucedendo. Ento ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

    Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmos viriam jantar o corao batia-lhe violento, espaado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que no nos v. Ele

    mascava goma na escurido. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigao fazia-

    o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impresso de uma mulher com dio. Mas continuava a olh-lo,

    cada vez mais inclinada o bonde deu uma arrancada sbita jogando-a desprevenida para trs, o pesado saco de tric despencou-se do colo, ruiu no cho Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

    Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava plida. Uma expresso de rosto,

    h muito no usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensvel. O moleque dos

  • jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas

    amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigao e avanava as

    mos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da

    rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

    Poucos instantes depois j no a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando

    goma ficara atrs para sempre. Mas o mal estava feito.

    A rede de tric era spera entre os dedos, no ntima como quando a tricotara. A rede perdera o

    sentido e estar num bonde era um fio partido; no sabia o que fazer com as compras no colo. E como

    uma estranha msica, o mundo recomeava ao redor. O mal estava feito. Por qu? Teria esquecido de

    que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam

    antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecvel... O mundo se

    tornara de novo um mal-estar. Vrios anos ruam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus

    prprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mnimo

    equilbrio tona da escurido e por um momento a falta de sentido deixava-as to livres que elas no sabiam para onde ir. Perceber uma ausncia de lei foi to sbito que Ana se agarrou ao banco da frente,

    como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que

    no o eram.

    O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as

    coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma fora e vozes mais

    altas. Na Rua Voluntrios da Ptria parecia prestes a rebentar uma revoluo, as grades dos esgotos

    estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura

    sofreguido. Em cada pessoa forte havia a ausncia de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na

    com o vigor que possuam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar,

    depressa. Na calada, uma mulher deu um empurro no filho! Dois namorados entrelaavam os dedos

    sorrindo... E o cego? Ana cara numa bondade extremamente dolorosa.

    Ela apaziguara to bem a vida, cuidara tanto para que esta no explodisse. Mantinha tudo em

    serena compreenso, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem

    usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao

    outro. E um cego mascando goma despedaava tudo isso. E atravs da piedade aparecia a Ana uma vida

    cheia de nusea doce, at a boca.

    S ento percebeu que h muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo

    a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas dbeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja

    de ovo. Por um momento no conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

    Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu corao batia de medo, ela procurava

    inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento

    mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pde localizar-

    se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portes do Jardim Botnico.

    Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. No havia ningum no Jardim.

    Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

    A vastido parecia acalm-la, o silncio regulava sua respirao. Ela adormecia dentro de si.

    De longe via a alia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

    Ao seu redor havia rudos serenos, cheiro de rvores, pequenas surpresas entre os cips. Todo o

    Jardim triturado pelos instantes j mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual

    estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande

    demais.

    Um movimento leve e ntimo a sobressaltou voltou-se rpida. Nada parecia se ter movido. Mas na alia central estava imvel um poderoso gato. Seus plos eram macios. Em novo andar silencioso,

    desapareceu.

    Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balanavam, as sombras vacilavam no cho. Um pardal

    ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter cado numa emboscada. Fazia-se no

    Jardim um trabalho secreto do qual ela comeava a se aperceber.

    Nas rvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no cho caroos secos cheios de

    circunvolues, como pequenos crebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com

    suavidade intensa rumorejavam as guas. No tronco da rvore pregavam-se as luxuosas patas de uma

  • aranha. A crueza do mundo era tranqila. O assassinato era profundo. E a morte no era o que

    pensvamos.

    Ao mesmo tempo que imaginrio era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dlias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abrao era macio,

    colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

    As rvores estavam carregadas, o mundo era to rico que apodrecia. Quando Ana pensou que

    havia crianas e homens grandes com fome, a nusea subiu-lhe garganta, como se ela estivesse grvida

    e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara at ele, estremecia nos primeiros

    passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitrias-rgias boiavam monstruosas. As pequenas flores

    espalhadas na relva no lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A

    decomposio era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabea rodeada por

    um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana

    mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era to bonito que ela teve medo do

    Inferno.

    Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os ps a terra

    estava fofa, Ana aspirava-a com delcia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

    Mas quando se lembrou das crianas, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma

    exclamao de dor. Agarrou o embrulho, avanou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria

    e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portes fechados, sacudia-os segurando a madeira spera. O vigia apareceu espantado de no a ter visto.

    Enquanto no chegou porta do edifcio, parecia beira de um desastre. Correu com a rede at o

    elevador, sua alma batia-lhe no peito o que sucedia? A piedade pelo cego era to violenta como uma nsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecvel, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande,

    quadrada, as maanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lmpada brilhava que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara at agora pareceu-lhe um modo

    moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e

    rosto igual ao seu, que corria e a abraava. Apertou-o com fora, com espanto. Protegia-se tremula.

    Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a

    aproximao da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraou o filho, quase a ponto de machuc-lo.

    Como se soubesse de um mal o cego ou o belo Jardim Botnico? agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demnio da f. A vida horrvel, disse-lhe baixo, faminta. O que faria

    se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela

    precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criana entre os braos, ouviu o seu

    choro assustado. Mame, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu corao crispou-se. No

    deixe mame te esquecer, disse-lhe. A criana mal sentiu o abrao se afrouxar, escapou e correu at a

    porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe

    ao rosto, esquentando-o.

    Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

    No havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a gua escapava.

    Estava diante da ostra. E no havia como no olh-la. De que tinha vergonha? que j no era mais

    piedade, no era s piedade: seu corao se enchera com a pior vontade de viver.

    J no sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se

    distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim

    Botnico, tranqilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia parte forte do mundo e que nome se deveria dar a sua misericrdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca

    seria apenas sua irm. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida

    porque nenhum pobre beberia gua nas suas mos ardentes. Ah! era mais fcil ser um santo que uma

    pessoa! Por Deus, pois no fora verdadeira a piedade que sondara no seu corao as guas mais

    profundas? Mas era uma piedade de leo.

    Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, tambm sabia por

    qu. A vida do Jardim Botnico chamava-a como um lobisomem chamado pelo luar. Oh! mas ela

    amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto no era com este sentimento que se iria a

  • uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada

    a preparar o jantar.

    Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno

    horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogo, onde descobriu a pequena aranha. Carregando

    a jarra para mudar a gua - havia o horror da flor se entregando lnguida e asquerosa s suas mos. O

    mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o p a formiga. O

    pequeno assassinato da formiga. O mnimo corpo tremia. As gotas d'gua caam na gua parada do

    tanque. Os besouros de vero. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa,

    lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o

    creme. Em torno da cabea, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite clida. Uma noite em

    que a piedade era to crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A f a quebrantava, o

    calor do forno ardia nos seus olhos.

    Depois o marido veio, vieram os irmos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmos.

    Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avio estremecia, ameaando no calor

    do cu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Tambm suas crianas ficaram acordadas,

    brincando no tapete com as outras. Era vero, seria intil obrig-las a dormir. Ana estava um pouco

    plida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas

    janelas. Eles rodeavam a mesa, a famlia. Cansados do dia, felizes em no discordar, to dispostos a no

    ver defeitos. Riam-se de tudo, com o corao bom e humano. As crianas cresciam admiravelmente em

    torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais

    fosse seu.

    Depois, quando todos foram embora e as crianas j estavam deitadas, ela era uma mulher bruta

    que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos

    seus dias? Quantos anos levaria at envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das

    crianas. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor sasse o mosquito, que as

    vitrias-rgias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botnico.

    Se fora um estouro do fogo, o fogo j teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a

    cozinha e deparando com o seu marido diante do caf derramado.

    O que foi?! gritou vibrando toda. Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

    No foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras. Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior ateno. Depois atraiu-a a si, em rpido

    afago.

    No quero que lhe acontea nada, nunca! disse ela. Deixe que pelo menos me acontea o fogo dar um estouro, respondeu ele sorrindo. Ela continuou sem fora nos seus braos. Hoje de tarde alguma coisa tranqila se rebentara, e na

    casa toda havia um tom humorstico, triste. hora de dormir, disse ele, tarde. Num gesto que no era

    seu, mas que pareceu natural, segurou a mo da mulher, levando-a consigo sem olhar para trs,

    afastando-a do perigo de viver.

    Acabara-se a vertigem de bondade.

    E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem

    nenhum mundo no corao. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do

    dia.

    Comentrios: O enredo deste conto psicolgico, portanto no importam as aes, mas o

    reflexo que as coisas do cotidiano tm sobre a personagem. Ao ver o cego, Ana tem uma epifania, pois

    apesar de no ver, ele parece feliz, enquanto ela no o , isto a faz rever sua vida. Entretanto ela opta por

    manter tudo como est, privilegiando a segurana do casamento.

  • UMA GALINHA Uma famlia formada de pai, me e filha resolveu matar num domingo qualquer uma galinha

    para o almoo. O animal que at ento estivera inerte, de sbito alou vo para o muro e de l para o

    quintal e o telhado do vizinho: Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vo, inchar o peito e, em dois ou trs lances, alcanar a murada do terrao.

    O rapaz da casa ao lado, lembrando-se de que tambm gostava de comer, saiu em perseguio do animal : Sozinha no mundo, sem pai nem me, ela corria, arfava, muda, concentrada, mas o rapaz acabou por apanh-la e devolv-la aos vizinhos.

    Depois da violncia da perseguio, a galinha acabou por colocar um ovo e sem que o bicho

    esperasse o gesto a salvou, pois a famlia, por iniciativa da filha e do pai resolveu poupar o animal, que

    passou a ser de estimao, enquanto a lembrana do fato manteve-se viva. At que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

    Como se pode ver, o conto uma metfora do comportamento humano. Um homem no uma

    galinha, portanto pode e deve alterar o seu prprio destino. O texto nos apresenta a fragilidade das

    decises humanas, que se transformam radicalmente como se nada e ningum sofresse as conseqncias

    de tal alterao. O animal entrou e saiu da vida da famlia por acaso e tudo voltou a ser o que era antes

    dele: o constante dilema entre o eterno e o efmero.

    A IMITAO DA ROSA

    De maneira absolutamente cruel Clarice discute nesse conto o poder do opressor sobre o

    oprimido, no caso uma opresso social. Laura era uma mulher que, desde de os tempos do colgio o Sacre Coeur -, padecia de um apegado desejo de ser correta, perfeitinha, organizada, chegando a irritar

    suas colegas pelo tanto de vezes que repetia a ordem em que iria praticar suas aes para chegar ao

    resultado pretendido.

    Tudo que ela queria na vida era ser perfeita para ser feliz e agradar os outros, j que de

    inteligncia fora pouco dotada, mas, segundo ela, de que servira inteligncia se ela havia nascido

    mulher, e uma mulher no precisa ser dotada de grande crebro, apenas ser mulher e fazer as coisas que

    nascera para fazer.

    A grande alegria de sua vida foi se casar com Armando, que a desprezava sempre, como todo

    homem deve fazer com sua esposa, claro que ele a deixava de lado com carinho, abandon-la sua prpria sorte nos lugares era uma forma de dizer que ele a amava.

    Hoje Laura est feliz porque voltou para casa do hospital, onde estava fazendo tratamento dos

    nervos e nesse perodo obrigou o marido a cuidar dela, o que no papel de homem. Ela teve um surto

    nervoso, mas j est boa e esfora-se para a voltar a ser a perfeitinha de sempre: Passara a ferro as camisas de Armando, fizera listas metdicas para o dia seguinte, calculara minuciosamente o que

    gastara de manh na feira, no parara na verdade uma instante seuqer. Pela manh, quando foi feira, comprou lindas rosas midas, mais por insistncia do feirante, mas comprou e era a primeira vez que

    tinha uma coisa linda s dela. Por isso no se achou merecedora e com muito pesar mandou-as a amiga

    Carlota, esposa de Joo, na casa de quem iriam jantar noite.

    Carlota era sua amiga desde o colgio, mas vivia implicando com seu jeito organizadinho.

    Carlota dava palpites e opinies para o marido, o que Laura achava um absurdo. Hoje ela quer apenas

    esperar o marido bonita com seu vestido marrom de gola creme, est to ansiosa que acaba exclamando

    voltou para o marido quando ele chegou, que, sem saber o porqu da atitude da mulher, ficou olhando-a surpresa, imaginando o que iria no seu corao, enquanto ela, calada, sofria pela ousadia que

    teve.

    Laura o exemplo da mulher subserviente que se desagrada para agradar aos outros e teve a

    sorte de casar com um homem que a quer exatamente assim. O mundo foi construdo para favorecer os homens e as mulheres que so educadas para servi-los e para aceitar isso como uma sina imutvel, e

    o pior: como um prmio sua existncia. Laura no s aceita como critica a amiga que encontrou para si

    um outro caminho.

  • FELIZ ANIVERSRIO

    Um narrador de terceira pessoa, onisciente seletivo, devassa o mundo interior de uma

    matriarca, do alto de seus 89 anos que, mais do que ningum, tem o poder avassalador de julgar a

    mediocridade da prole que ela criou.

    Uma famlia, muito a contra gosto, reuniu-se para a comemorao do aniversrio de 89 anos da

    matriarca: um filho no veio, no suportaria ter de encontrar os irmos, mas mandou a mulher, para no

    romper todos os laos; vieram a nora de Olaria, a nora de Ipanema, o filho Jos , o scio dele, Manoel, a

    vizinha, os netinhos. Mas quem pagou e preparou tudo, sem receber agradecimento, foi a filha Zilda,

    que morava com a velha e que a tinha preparado e colocado mesa : para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoo. Pusera-lhe desde ento a presilha em torno do pescoo e

    o broche, borrifara-lhe uma pouco de gua-de-colnia para disfarar aquele seu cheiro de guardado sentara-a mesa. E ela ali ficara: alheia a todos, ligada em tudo.

    Do fundo do seu silncio, a velha pensava o que teria feito para merecer uma famlia cretina e

    fraca como aquela e enojada cuspiu no cho, pediu vinho e despejou xingamentos para todos, recebeu o

    vinho, mas no bebeu, permaneceu inerte, apenas observando o que causou o mais profundo

    constrangimento na j pouco vontade reunio.

    O filho Jos ainda tentou um discurso, reduzido a um simples at o ano que vem. Todos foram

    saindo como de um pesadelo, alguns pensando que s no prximo ano deveriam se encontrar, outros

    sem saber se a velha duraria tanto e ela pensando simplesmente a que hora seria servido o jantar: Ser que hoje no vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistrio.

    Clarice, mais uma vez, denuncia a hipocrisia que rege as relaes familiares, os interesses que

    no atravessam os umbigos de cada um e a necessidade de manter uma farsa, que ningum entende bem

    porque deve ser mantida.

    A MENOR MULHER DO MUNDO

    Temos aqui alternncia entre um narrador observador onisciente e um narrador de viso com,

    que focaliza as personagens, vendo o mundo por sua tica. Marcel Pretre, um explorador francs, viaja

    at a frica, onde descobre uma tribo de pigmeus. Dentre estes encontra, no Congo central, o menor de

    todos: defrontou-se com uma mulher de apenas quarenta e cinco centmetros, madura, negra, calada. Escura como um macaco. Ela estava grvida. Denomina-a de Pequena Flor e passa a estudar sua tribo. Para alardear a descoberta, publica a foto daquele exemplar humano, que vive em rvores como os macacos, no jornal.

    Ento passamos a ver a reao de cada uma das pessoas que vem Pequena Flor estampada em

    tamanho natural: uns tm d, pois parece um bicho: mame, olha o retratinho dela, coitadinha! Olhe s como ela tristinha!; outros queriam-na em casa, assim pretinha e grvida servindo a mesa; uma mulher, aterrorizada com a desgraa, lembra-se de uma cozinheira que lhe contara que quando esta vivia

    no orfanato, as rfs, carentes de amor, esconderam das freiras a morte de uma menina, ento brincavam

    com a morta como se fosse uma boneca. Isto leva a mulher a pentear-se freneticamente e a querer

    arrumar o filho banguela: Obstinadamente enfeitava o filho desdentado com roupas finas, obstinadamente queria-o bem limpo, como se limpeza desse nfase auma superficialidade

    tranqilizadora; por fim, uma velhinha sentencia: Deus sabe o que faz. O conto nos revela a que ponto chega a crueldade humana e como perversa a necessidade de

    amar, vide a histria das rfs. Mais que nos outros contos deste livro, temos aqui uma fuso magistral

    entre poesia e prosa.

    O JANTAR

  • Um narrador eu-como-testemunha, dentro de um restaurante, passa todo o jantar investigando

    um velho, que, no texto, funciona como seu prprio alter-ego . Ele observa atentamente o velho a

    comer. Ambos no se conheciam, mas a brusquido e a dureza do velho chamaram a ateno do homem,

    que lhe vigiava cada gesto: O garom dispunha os pratos sobre a toalha. Mas o velho mantinha os olhos fechados.(...) agora, desperto, virava subitamente a carne de um lado e de outro, examinava-a com

    veemncia, a ponta da lngua aparecendo(...). At que o homem, extasiado, e sentindo certa nusea, percebeu no velho uma lgrima. Ento, no tocou mais no prato, enquanto o velho terminou a sua

    refeio, comeu a sobremesa, pagou a conta, deixou uma gorjeta para o garom e atravessou o salo,

    luminoso, desaparecendo. O observador medita: "eu sou um homem ainda."

    "Quando me traram ou assassinaram, quando algum foi embora para sempre, ou perdi o que de

    melhor me restava, ou quando soube que vou morrer eu no como. No sou ainda esta potncia, esta

    construo, esta ruiria. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue".

    A anlise minuciosa que feita pelo protagonista , na verdade, uma avaliao de si prprio, de

    seus medos, de suas angstias e de seu certo e amedrontador encontro com a velhice. O jantar, mais que

    de alimentos, era de uma pessoa pela outra.

    PRECIOSIDADE

    Um narrador de terceira pessoa, onisciente seletivo, intruso, devassa a vida de uma colegial,

    buscando no os medos das adolescentes, mas todo medo de se expor que ronda a alma humana. O

    medo de vencer-se, de descobrir-se. Uma adolescente, com um profundo complexo de inferioridade,

    assustada com tudo e com todos, mas, principalmente consigo mesma, pratica uma luta diria para ir

    escola e l permanecer chamando a menor ateno possvel. A sada de casa d-se todos os dias antes da

    famlia acordar, o caf rpido e o banho quase sempre inexiste. No caminho reza apenas para que no

    a notem.

    Numa de suas idas escola, talvez porque tivesse sado mais cedo que o habitual, encontrou

    dois rapazes, de novo torceu para que no a notassem: No, ela no estava sozinha. Com os olhos franzidos pela incredulidade no fim longnquo de sua rua, de dentro do vapor, viu dois homens. Dois

    rapazes vindo (...) Seu corao se espantou. Mas eles no s a viram, tocaram nela: Numa frao de segundo a tocaram como se a eles coubessem todos os sete mistrios. O trauma causou-lhe duas horas de atraso e muita reflexo no banheiro tentando descobrir quem era e, a muito custo, chegar concluso

    de que era alguma coisa. A experincia do dia tirou dela sua condio de preciosa e acendeu-lhe um frenesi.

    Essa histria vai para alm dessa menina e aponta para o temor da vida que todos ns trazemos

    no corao e o desejo que temos de que as pessoas leiam nossos pensamentos e rearranjem o mundo

    segundo o nosso prprio interesse.

    OS LAOS DE FAMLIA

    Narrado em terceira pessoa, mais uma vez com oniscincia seletiva, a histria denuncia as

    relaes familiares estveis, porm vazias. As convenes, casamento, maternidade, marido etc. acabam

    por se apresentarem como substitutos dos verdadeiros laos de famlia, que se espera deveriam ser construdos por afinidade, por amor e no por obrigao.

    Catarina filha de Severina , com quem desde pequena nunca teve uma boa relao, nunca

    foram me e filha como seria de se esperar. Severina mandava e a filha obedecia, mas parece,

    desagradando sempre a me. Catarina casou-se com Antnio e tambm ali no construiu uma vida, teve

    um filho, mas o marido, sempre indiferente, tomava a vida apenas para si: o sbado era seu, mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sbado.

    Genro e sogra no se entendiam tambm e Severina est indo embora depois de uma de suas

    longas visitas. Est sendo levada estao de trem pela filha, de txi. Pouco se falam por no terem

    assuntos comuns, apesar do estreito parentesco. Apenas se olham e a me sempre resmungando haver

    esquecido algo. Num sacolejo do txi o corpo das duas se toca firmemente, pela primeira vez: elas

    estranham, pois nunca tiveram tal intimidade. A filha sempre submissa nunca conseguiu direito livrar-se

  • da presena nefasta da me. Depois de lacunosa despedida na estao, Catarina descobriu-se forte e

    voltou decidida a construir com o filho a relao que no conseguira com a me e o marido.

    Entrou no apartamento decidida como nunca, foi at o quarto, encarou o filho, ouvindo pela

    primeira vez um mame despretensioso, como se nesse momento, forte como estava, ele a

    reconhecesse como tal. Tomou o filho pela mo, Vamos passear! Respondeu corando e pegando-o pela mo.

    Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! E bateu a porta do apartamento. Desceu pelo elevador e ganhou as ruas. O sbado era sempre de Antnio, mas no nesse que Catarina

    sara para aproveitar com o filho deixando o marido apenas com seu sbado e sua gripe.

    Antnio no entendia direito o que havia se passado com a mulher, mas teve medo de sua

    independncia. Pensou que na volta dela, depois do jantar, iriam ao cinema. Porque depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador.

    Esta histria, a exemplo de muitos outras da autora, revela que todo dia dia de comear uma

    vida nova e que ns somos responsveis pela construo de nosso prprio destino, ou seja, de felicidade

    ou no.

    COMEOS DE UMA FORTUNA

    Esta histria centra-se em preocupaes muito comuns dos adolescentes, como gerenciar a

    prpria vida. E mais, como projetam suas vidas futuras quando forem donos do prprio nariz. Prope

    que tentaro fazer o avesso dos pais, mas, com muita chance, acabaro por fazer as mesmas coisas.

    Artur um rapaz em transio da infncia para a adolescncia, ele imagina merecer um tratamento, que

    nem o pai , nem a me sabem qual , j que ora o tratam como criana, ora como mocinho.

    Sua grande dvida existencial no momento a necessidade de dinheiro, que ele j entende seja

    a mola do mundo, o elo das relaes: Eu tambm tenho as minhas preocupaes mas ningum liga.Quando digo que preciso de dinheiro parece que estou pedindo para jogar ou para beber!. Sofre por no receber o que acha devido dos pais, por ter de emprestar dos amigos, por no ter certeza de poder

    pagar as dvidas que contraiu, por no ter certeza do uso que se deve fazer do dinheiro quando se tem

    (guarda-se para ficar rico ou gasta-se aproveitando a vida? ), por no ter certeza se as mulheres se

    interessam mais pelos homens de dinheiro. Sofre um grande drama por emprestar dinheiro do amigo

    Carlinhos para levar Glorinha ao cinema e termina por questionar o pai sobre promissrias, sem receber

    resposta satisfatria: Promissrias, dizia o pai afastando o prato, assim: digamos que voc tenha uma dvida.

    O conto leva-nos apensar que h muita diferena entre o que queremos do mundo e o que o

    mundo pode nos dar e entre o que pensamos quando estamos fora de um problema e quando estamos

    dentro dele. No mais, a histria muito simples, perto das demais que este livro contm.

    MISTRIO EM SO CRISTVO

    Neste conto, podemos observar tendncias surrealistas. Clarice explora o subconsciente

    construindo uma simbologia complexa e difusa. A partir do prprio ttulo, verificamos, de certa forma, o

    carter velado do acontecimento. O caso se d numa noite de maio, em casa de uma famlia onde "as

    crianas tm ido diariamente escola, o pai mantm os negcios, a me trabalhou durante anos nos

    partos e na casa, a mocinha est se equilibrando na delicadeza de sua idade (19 anos), e a av atingiu um

    estado!". Nessa noite, aps cada um ir se deitar, seguindo os padres de uma vida sem graa, sem

    novidades, tem lugar o episdio: trs mascarados, um galo, um touro e um demnio, invadem o jardim

  • da casa para colher jacintos. Um jacinto para pregar na fantasia. O intuito dos trs no consumado porque descobrem o rosto da jovem olhando-os justamente quando haviam quebrado a haste de uma das

    flores. Nenhum dos quatro saberia quem era o castigo do outro. Os jacintos cada vez mais brancos na escurido. Paralisados eles se olhavam . Um galo, um touro, um demnio e um rosto de moa haviam desatado a maravilha do jardim...

    Algo aconteceu entre estas quatro criaturas, algo que as perturbou profundamente, algo que

    quebrou a rotina maadora de suas vidas comuns. No jardim, por instantes, os quatro se fixaram, e

    algum mistrio de no sei onde, se fez ou desfez. No entanto, era um toque perigoso para as quatro imagens . Pressentindo o perigo, os trs mascarados fogem e a moa grita. A famlia volta sua ateno e cuidados para a mocinha cuja nica expresso fora o grito, e, entre seus cabelos, apareceu um fio

    branco. Por instantes, a famlia, com exceo das crianas, se preocupa com o fato. De alguma forma o

    acontecimento os toca, e eles se tornam atentos e inquieto?. A mocinha j no vivia a perscrutar, e tudo aos poucos volta ao de sempre: ...a av, de novo pronta a se ofender, o pai e a me fatigados, as crianas insuportveis... . Tal como nos contos Os laos de famlia e Amor, onde a freada do txi e a arrancada do bonde representam momentos de tomada de conscincia, aqui, em O mistrio de So Cristvo, o momento crucial se d quando h o grito da moa, sinal de uma dor e de um espanto que se sucedem experincia

    mgica que interrompe o fluir montono dos dias sem sentido

    O CRIME DO PROFESSOR DE MATEMTICA

    Com um narrador de terceira pessoa, onisciente seletivo, Clarice faz uma devastadora viagem

    alma perturbada de uma pessoa que sabe de sua mediocridade pessoal, que tem conscincia de sua

    pequenez, de sua pouca habilidade em tomar decises, de seu medo de enfrentar a vida. Um professor

    encontrou na rua um co, desconhecido e morto, colocou-o dentro de um saco e props-se dar a ele um

    enterro digno, no alto de uma colina naquela manh de Domingo, e o fez, em nome de outro cachorro, o

    verdadeiro, que tinha sido dele em outra cidade e que ele havia abandonado: Ento ele se props a trabalhar. Pegou no cachorro duro e negro, depositou-o numa baixa do terreno. Mas, como se j tivesse

    feito muito, ps os culos, sentou-se ao lado do co e comeou a observar a paisagem. (...) O co era um

    pouco mais alto que o buraco cavado e depois de coberto com terra seria uma excrescncia apenas

    sensvel no planalto. Era assim precisamente que ele queria. Cobriu o co com terra e aplainou-a com as

    mos, sentindo com ateno e prazer sua forma nas palmas como se o alisasse vrias vezes. O enterro era uma espcie de tributo ao co perdido nas ruas de um outro lugar.

    Depois de realizado o ato de purificao, vm sua cabea as lembranas do outro, das brincadeiras, do desejo de no lhe dar carne para que ele no ficasse feroz, do nome, Jos, que lhe fora

    dado para que ele tivesse uma alma. O que mais atormentava o professor, no entanto, era a constante

    observao do animal sobre ele: Ns nos compreendamos demais, tu com o nome humano que te dei, eu com o nome que me deste e que nunca pronunciaste seno com o olhar insistente. O homem tinha agora a certeza de que no era ele quem possua o animal, mas o contrrio.

    Depois de todas as reflexes, chega concluso de que aquele enterro em nada mudaria o que

    ele fizera e desenterra o falso co e renova o seu crime para sempre. Desce o morro e volta para casa, para o seio de sua famlia.

    O professor, na verdade, no cometeu nenhum crime, no sentido penal do termo, mas o crime

    de ser inerte em relao s coisas da vida, de poder ter sido algum de posio na vida e nunca ter tido

    coragem de assumir uma posio segura, firme. Seu crime foi sua vida plida, sombreada, mais deriva

    do que ao sabor dos ventos.

    O BFALO

  • Mas era primavera. At o leo lambeu a testa glabra da leoa. Os dois animais louros. A mulher

    desviou os olhos da jaula, onde s o cheiro quente lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim

    Zoolgico. Depois o leo passeou enjubado e tranqilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas

    estendidas a cabea de uma esfinge. "Mas isso amor, amor de novo", revoltou-se a mulher tentando

    encontrar-se com o prprio dio mas era primavera e dois lees se tinham amado. Com os punhos nos

    bolsos do casaco, olhou em torno de si, rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechadas. Continuou

    a andar. Os olhos estavam to concentrados na procura que sua vista s vezes se escurecia num sono, e

    ento ela se refazia como na frescura de uma cova.

    Mas a girafa era uma virgem de tranas recm-cortadas. Com a tola inocncia do que grande e

    leve e sem culpa. A mulher do casaco marrom desviou os olhos, doente, doente. Sem conseguir diante da area girafa pousada, diante daquele silencioso pssaro sem asas sem conseguir encontrar dentro de si o ponto pior de sua doena, o ponto mais doente, o ponto de dio, ela que fora ao Jardim

    Zoolgico para adoecer. Mas no diante da girafa que mais era paisagem que um ente. No diante

    daquela carne que se distrara em altura e distncia, a girafa quase verde. Procurou outros animais,

    tentava aprender com eles a odiar. O hipoptamo, o hipoptamo mido. O rolo rolio de carne, carne

    redonda e muda esperando outra carne rolia e muda. No. Pois havia tal amor humilde em se manter

    apenas carne, tal doce martrio em no saber pensar.

    Mas era primavera, e, apertando o punho no bolso do casaco, ela mataria aqueles macacos em

    levitao pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com olhar

    resignado de amor, e a outra macaca dando de mamar. Ela os mataria com quinze secas balas: os dentes

    da mulher se apertaram at o maxilar doer. A nudez dos macacos. O mundo que no via perigo em ser

    nu. Ela mataria a nudez dos macacos. Um macaco tambm a olhou segurando as grades, os braos

    descarnados abertos em crucifixo, o peito pelado exposto sem orgulho. Mas no era no peito que ela

    mataria, era entre os olhos do macaco que ela mataria, era entre aqueles olhos que a olhavam sem

    pestanejar. De repente a mulher desviou o rosto: que os olhos do macaco tinham um vu branco

    gelatinoso cobrindo a pupila, nos olhos a doura da doena, era um macaco velho a mulher desviou o rosto, trancando entre os dentes um sentimento que ela no viera buscar, apressou os passos, ainda

    voltou a cabea espantada para o macaco de braos abertos: ele continuava a olhar para a frente. "Oh

    no, no isso", pensou. E enquanto fugia, disse: "Deus, me ensine somente a odiar."

    "Eu te odeio", disse ela para um homem cujo crime nico era o de no am-la. "Eu te odeio", disse

    muito apressada. Mas no sabia sequer como se fazia. Como cavar na terra at encontrar a gua negra,

    como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma? Andou pelo Jardim Zoolgico entre

    mes e crianas. Mas o elefante suportava o prprio peso. Aquele elefante inteiro a quem fora dado com

    uma simples pata esmagar. Mas que no esmagava. Aquela potncia que no entanto se deixaria

    docilmente conduzir a um circo, elefante de crianas. E os olhos, numa bondade de velho, presos dentro

    da grande carne herdada. O elefante oriental. Tambm a primavera oriental, e tudo nascendo, tudo

    escorrendo pelo riacho.

    A mulher ento experimentou o camelo. O camelo em trapos, corcunda, mastigando a si prprio,

    entregue ao processo de conhecer a comida. Ela se sentiu fraca e cansada, h dois dias mal comia. Os

    grandes clios empoeirados do camelo sobre olhos que se tinham dedicado pacincia de um artesanato

    interno. A pacincia, a pacincia, a pacincia, s isso ela encontrava na primavera ao vento. Lgrimas

    encheram os olhos da mulher, lgrimas que no correram, presas dentro da pacincia de sua carne

    herdada. Somente o cheiro de poeira do camelo vinha de encontro ao que ela viera: ao dio seco, no a

    lgrimas. Aproximou-se das barras do cercado, aspirou o p daquele tapete velho onde sangue cinzento

    circulava, procurou a tepidez impura, o prazer percorreu suas costas at o mal-estar, mas no ainda o

    mal-estar que ela viera buscar. No estmago contraiu-se em clica de fome a vontade de matar. Mas no

    o camelo de estopa. "Oh Deus, quem ser meu par neste mundo?"

    Ento foi sozinha ter a sua violncia. No pequeno parque de diverses do Jardim Zoolgico

    esperou meditativa na fila de namorados pela sua vez de se sentar no carro da montanha-russa.

    E ali estava agora sentada, quieta no casaco marrom. O banco ainda parado, a maquinaria da

    montanha-russa ainda parada. Separada de todos no seu banco, parecia estar sentada numa Igreja. Os

    olhos baixos viam o cho entre os trilhos. O cho onde simplesmente por amor amor, amor, no o

  • amor! onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas de um verde leve to tonto que a fez desviar os olhos em suplcio de tentao. A brisa arrepiou-lhe os cabelos da nuca, ela estremeceu recusando, em

    tentao recusando, sempre to mais fcil amar.

    Mas de repente foi aquele vo de vsceras, aquela parada de um corao que se surpreende no ar,

    aquele espanto, a fria vitoriosa com que o banco a precipitava no nada e imediatamente a soerguia

    como uma boneca de saia levantada, o profundo ressentimento com que ela se tornou mecnica, o corpo

    automaticamente alegre o grito das namoradas! seu olhar ferido pela grande surpresa, a ofensa, "faziam dela o que queriam", a grande ofensa o grito das namoradas! a enorme perplexidade de estar espasmodicamente brincando faziam dela o que queriam, de repente sua candura exposta. Quantos

    minutos? os minutos de um grito prolongado de trem na curva, e a alegria de um novo mergulho no ar

    insultando-a com um pontap, ela danando descompassada ao vento, danando apressada, quisesse ou

    no quisesse o corpo sacudia-se como o de quem ri, aquela sensao de morte s gargalhadas, morte

    sem aviso de quem no rasgou antes os papis da gaveta, no a morte dos outros, a sua, sempre a sua.

    Ela que poderia ter aproveitado o grito dos outros para dar seu urro de lamento, ela se esqueceu, ela s

    teve espanto.

    E agora este silncio tambm sbito. Estavam de volta terra, a maquinaria de novo inteiramente

    parada.

    Plida, jogada fora de uma Igreja, olhou a terra imvel de onde partira e aonde de novo fora

    entregue. Ajeitou as saias com recato. No olhava para ningum. Contrita como no dia em que no meio

    de todo o mundo tudo o que tinha na bolsa cara no cho e tudo o que tivera valor enquanto secreto na

    bolsa, ao ser exposto na poeira da rua, revelara a mesquinharia de uma vida ntima de precaues: p de

    arroz, recibo, caneta-tinteiro, ela recolhendo no meio-fio os andaimes de sua vida. Levantou-se do banco

    estonteada como se estivesse se sacudindo de um atropelamento. Embora ningum prestasse ateno,

    alisou de novo a saia, fazia o possvel para que no percebessem que estava fraca e difamada, protegia

    com altivez os ossos quebrados. Mas o cu lhe rodava no estmago vazio; a terra, que subia e descia a

    seus olhos, ficava por momentos distante, a terra que sempre to difcil. Por um momento a mulher

    quis, num cansao de choro mudo, estender a mo para a terra difcil: sua mo se estendeu como a de

    um aleijado pedindo. Mas como se tivesse engolido o vcuo, o corao surpreendido.

    S isso? S isto. Da violncia, s isto.

    Recomeou a andar em direo aos bichos. O quebranto da montanha-russa deixara-a suave. No

    conseguiu ir muito adiante: teve que apoiar a testa na grade de uma jaula, exausta, a respirao curta e

    leve. De dentro da jaula o quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada. Nunca poderia odiar o

    quati que no silncio de um corpo indagante a olhava. Perturbada, desviou os olhos da ingenuidade do

    quati. O quati curioso lhe fazendo uma pergunta como uma criana pergunta. E ela desviando os olhos,

    escondendo dele a sua misso mortal. A testa estava to encostada s grades que por um instante lhe

    pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava.

    A jaula era sempre do lado onde ela estava: deu um gemido que pareceu vir da sola dos ps.

    Depois outro gemido.

    Ento, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa, a vontade de matar seus olhos molharam-se gratos e negros numa quase felicidade, no era o dio ainda, por enquanto

    apenas a vontade atormentada de dio como um desejo, a promessa do desabrochamento cruel, um

    tormento como de amor, a vontade de dio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fmea rejeitada

    espiritualizara-se na grande esperana. Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ter o seu

    prprio dio? o dio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela no alcanava? Onde aprender a

    odiar para no morrer de amor? E com quem? O mundo de primavera, o mundo das bestas que na

    primavera se cristianizam em patas que arranham mas no di... oh no mais esse mundo! no mais esse

    perfume, no esse arfar cansado, no mais esse perdo em tudo o que um dia vai morrer como se fora

    para dar-se. Nunca o perdo, se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma s vez que fosse, sua vida

    estaria perdida deu um gemido spero e curto, o quati sobressaltou-se enjaulada olhou em torno de si, e como no era pessoa em quem prestassem ateno, encolheu-se como uma velha assassina

    solitria, uma criana passou correndo sem v-la.

    Recomeou ento a andar, agora apquenada, dura, os punhos de novo fortificados nos bolsos, a

    assassina incgnita, e tudo estava preso no seu peito. No peito que s sabia resignar-se, que s sabia

    suportar, s sabia pedir perdo, s sabia perdoar, que s aprendera a ter a doura da infelicidade, e s

  • aprendera a amar, a amar, a amar. Imaginar que talvez nunca experimentasse o dio de que sempre fora

    feito o seu perdo, fez seu corao gemer sem pudor, ela comeou a andar to depressa que parecia ter

    encontrado um sbito destino. Quase corria, os sapatos a desequilibravam, e davam-lhe uma fragilidade

    de corpo que de novo a reduzia a fmea de presa, os passos tomaram mecanicamente o desespero

    implorante dos delicados, ela que no passava de uma delicada. Mas, pudesse tirar os sapatos, poderia

    evitar a alegria de andar descala? Como no amar o cho em que se pisa? Gemeu de novo, parou diante

    das barras de um cercado, encostou o rosto quente no enferrujado frio do ferro. De olhos profundamente

    fechados procurava enterrar a cara entre a dureza das grades, a cara tentava uma passagem impossvel

    entre barras estreitas, assim como antes vira o macaco recm-nascido buscar na cegueira da fome o peito

    da macaca. Um conforto passageiro veio-lhe do modo como as grades pareceram odi-la opondo-lhe a

    resistncia de um ferro gelado.

    Abriu os olhos devagar. Os olhos vindos de sua prpria escurido nada viram na desmaiada luz da

    tarde. Ficou respirando. Aos poucos recomeou a enxergar, aos poucos as formas foram se

    solidificando, ela cansada, esmagada pela doura de um cansao. Sua cabea ergueu-se em indagao

    para as rvores de brotos nascendo, os olhos viram as pequenas nuvens brancas. Sem esperana, ouviu a

    leveza de um riacho. Abaixou de novo a cabea e ficou olhando o bfalo ao longe. Dentro de um casaco

    marrom, respirando sem interesse, ningum interessado nela, ela no interessada em ningum.

    Certa paz enfim. A brisa mexendo nos cabelos da testa como nos de pessoa recm-morta, de testa

    ainda suada. Olhando com iseno aquele grande terreno seco rodeado de grades altas, o terreno do

    bfalo. O bfalo negro estava imvel no fundo do terreno. Depois passeou ao longe com os quadris

    estreitos, os quadris concentrados. O pescoo mais grosso que as ilhargas contradas. Visto de frente, a

    grande cabea mais larga que o corpo impedia a viso do resto do corpo, como uma cabea decepada. E

    na cabea os cornos. De longe ele passeava devagar com seu torso. Era um bfalo negro. To preto que

    distancia a cara no tinha traos. Sobre o negror a alvura erguida dos cornos.

    A mulher talvez fosse embora mas o silncio era bom no cair da tarde.

    E no silncio do cercado, os passos vagarosos, a poeira seca sob os cascos secos. De longe, no seu

    calmo passeio, o bfalo negro olhou-a um instante. No instante seguinte, a mulher de novo viu apenas o

    duro msculo do corpo. Talvez no a tivesse olhado. No podia saber, porque das trevas da cabea ela

    s distinguia os contornos. Mas de novo ele pareceu t-la visto ou sentido.

    A mulher aprumou um pouco a cabea, recuou-a ligeiramente em desconfiana. Mantendo o corpo

    imvel, a cabea recuada, ela esperou.

    E mais uma vez o bfalo pareceu not-la.

    Como se ela no tivesse suportado sentir o que sentira, desviou subitamente o rosto e olhou uma

    rvore. Seu corao no bateu no peito, o corao batia oco entre o estmago e os intestinos.

    O bfalo deu outra volta lenta. A poeira. A mulher apertou os dentes, o rosto todo doeu um pouco.

    O bfalo com o torso preto. No entardecer luminoso era um corpo enegrecido de tranqila raiva, a

    mulher suspirou devagar. Uma coisa branca espalhara-se dentro dela, branca como papel, fraca como

    papel, intensa como uma brancura. A morte zumbia nos seus ouvidos. Novos passos do bfalo

    trouxeram-na a si mesma e, em novo longo suspiro, ela voltou tona. No sabia onde estivera. Estava

    de p, muito dbil, emergida daquela coisa branca e remota onde estivera.

    E de onde olhou de novo o bfalo.

    O bfalo agora maior. O bfalo negro. Ah, disse de repente com uma dor. O bfalo de costas para

    ela, imvel. O rosto esbranquiado da mulher no sabia como cham-lo. Ah! disse provocando-o. Ah!

    disse ela. Seu rosto estava coberto de mortal brancura, o rosto subitamente emagrecido era de pureza e

    venerao. Ah! instigou-o com os dentes apertados. Mas de costas para ela, o bfalo inteiramente

    imvel.

    Apanhou uma pedra no cho e jogou para dentro do cercado. A imobilidade do torso, mais negra

    ainda se aquietou: a pedra rolou intil.

    Ah! disse sacudindo as barras. Aquela coisa branca se espalhava dentro dela, viscosa como uma

    saliva. O bfalo de costas.

    Ah, disse. Mas dessa vez porque dentro dela escorria enfim um primeiro fio de sangue negro.

    O primeiro instante foi de dor. Como se para que escorresse este sangue se tivesse contrado o

    mundo. Ficou parada, ouvindo pingar como numa grota aquele primeiro leo amargo, a fmea

    desprezada. Sua fora ainda estava presa entre barras, mas uma coisa incompreensvel e quente, enfim

  • incompreensvel, acontecia, uma coisa como uma alegria sentida na boca. Ento o bfalo voltou-se para

    ela.

    O bfalo voltou-se, imobilizou-se, e distncia encarou-a.

    Eu te amo, disse ela ento com dio para o homem cujo grande crime impunvel era o de no

    quer-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao bfalo.

    Enfim provocado, o grande bfalo aproximou-se sem pressa.

    Ele se aproximava, a poeira erguia-se. A mulher esperou de braos pendidos ao longo do casaco.

    Devagar ele se aproximava. Ela no recuou um s passo. At que ele chegou s grades e ali parou. L

    estavam o bfalo e a mulher, frente frente. Ela no olhou a cara, nem a boca, nem os cornos. Olhou

    seus olhos.

    E os olhos do bfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez to funda foi trocada que a

    mulher se entorpeceu dormente. De p, em sono profundo. Olhos pequenos e vermelhos a olhavam. Os

    olhos do bfalo. A mulher tonteou surpreendida, lentamente meneava a cabea. O bfalo calmo.

    Lentamente a mulher meneava a cabea, espantada com o dio com que o bfalo, tranqilo de dio, a

    olhava. Quase inocentada, meneando uma cabea incrdula, a boca entreaberta. Inocente, curiosa,

    entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingnua, num suspiro de

    sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mtuo assassinato. Presa como se sua mo se tivesse

    grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiada ao

    longo das grades. Em to lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o cu inteiro e

    um bfalo.

    Comentrios: De novo nesse conto temos um narrador onisciente seletivo, investigando a alma

    de uma mulher perturbada pela impossibilidade de ser feliz no amor, j que o homem que ela amava no

    a queria. A busca do dio resultou em frustrao maior, j que animais no odeiam ( o dio um

    atributo humano ), e alm do mais era primavera, o tempo do acasalamento para os bichos. preciso

    reparar que o conto j comea com esse aviso ao iniciar com a adversativa mas. Ao encontrar um bfalo, ela encontrou-se a si, este animal talvez tenha o olhar mais triste do que todos os outros, a sua

    queda deveu-se a esse encontro inesperadamente revelador.

    Quadro para fixao conto-personagem

    Conto Personagens

    Devaneios e embriaguez

    duma rapariga

    Mulher: portuguesa, gosta de beber e d vexames quando est bbada.

    Marido: descrito como um fraco, que age de acordo com o que os

    outros querem.

    Amor Ana: mulher simples, dona de casa, que resolve repensar sua vida a partir

    da viso de um cego que masca chicletes.

    Uma galinha Pai, me, menina: compem a famlia que deseja matar a galinha, mas

    terminam por apiedar-se dela.

    A imitao da rosa Laura: mulher metdica, esposa subserviente, que vive a vida de acordo

    com o que os outros querem.

    Carlota: amiga de Laura desde os tempos de colgio, o oposto dela:

    ambiciosa, sorridente e cheia de auto-estima.

    Armando: marido de Laura, o tpico homem acomodado e machista.

    Feliz aniversrio Matriarca: a aniversariante e sofre ao ver os filhos inescrupulosos que

    criara.

    Zilda: a filha que cuida da matriarca por imposio dos irmos.

    A menor mulher do mundo Marcel Pretre: explorador que descobre Pequena Flor

    Pequena Flor: pigmia de 45 cm, grvida, que desperta o xtase em

    todos que a observam, revelando tambm seu lado mau.

    O jantar Narrador: moo que observa o velho e que rev por meio disso.

    Velho: alheio a tudo, come desastrado, enquanto observado.

  • Preciosidade Garota: jovem insegura, tmida, que teme ter contato direto com as

    pessoas.

    Rapazes: tocam-na sem querer e despertam nela uma crise

    Os laos de Famlia Catarina: mulher que tivera sempre relaes familiares complicadas,

    principalmente com a me.

    Severina: me de Catarina, como um estranha para a filha

    Antnio: marido de Catarina, o tpico machista.

    Comeos de uma fortuna Artur: adolescente preocupado com as relaes financeiras atuais e

    futuras.

    Carlinhos: amigo para quem Artur deve dinheiro

    Mistrio em So Cristvo Moa: tem 19 anos e , uma noite, surpreende rapazes no jardim da casa.

    Rapazes: so trs e foram ali para roubar jacintos, criam o estranhamento

    do conto.

    O crime do professor de

    matemtica

    Professor: homem atormentado que tenta se redimir de um erro do

    passado.

    Co: encontrado morto, veiculo para remisso.

    Jos: antigo co do professor a vtima do crime cometido.

    O bfalo Mulher: fora ao zoolgico para aprendera odiar, mas s encontrara amor.

    Bfalo: proporciona mulher a viso de si mesma e de sua tristeza.