clara mafra-dados-jesus cristo senhor e salvador de cidade-imaginario crente e utopia política

Upload: luis-echegollen

Post on 27-Feb-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    1/31

    E m 19 de maro de 2004, um conhecido articulista do jornal de mai-or circulao em Rondnia,O Estado, chamou ateno para o de-creto do prefeito de Guajar-Mirim (RO), Cludio Pilon, que estipula-va no Artigo 62, 1o: Como ato proftico, fica declarado Jesus CristocomonicoSenhoreSalvadordacidade.Oprefeitojustificouseuato:1) na continuidade histrica do cristianismo na cidade; e 2) na supostasimilaridade de seu decreto com o de prefeitos anteriores, ao instituirdias santos e feriados.

    Como reao imediata, o articulista que assina com o codinome dendio Tabajara da Tribo Cariri ridicularizou o decreto, descrevendo-ocomo uma prola que deve ficar guardada em um museu de ima-gem,somegrafiaounacaixaFortedaCasadaMoeda.Oarticulista

    583

    *AprimeiraversodesteartigofoiescritaaquatromoscomCecliaMariz(ProgramadePs-GraduaoemCinciasSociaisPPCIS,daUniversidadedoEstadodoRiodeJanei-ro UERJ) e apresentada no Seminrio Temtico Republicanismo, Religio e Estado noBrasil Contemporneo, coordenado por Patrcia Birman e Joanildo Burity, no XXVIIIEncontro Anual da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Soci-ais Anpocs, de 26 a 30 de outubro de 2004, Caxambu. De l para c, o artigo sofreu umasrie de reajustes, inclusive, recebeu uma maior afinao conceitual, o que, ironicamen-te,noslevouanecessidadedeautoriaindividualizada.AgradeoainterlocuocomCe-clia, sem a qual o artigo no teria ganhado forma, e sua postura intelectualmente gene-rosa, no s neste estudo, mas tambm ao longo de nossa amizade. Agradeo ao Progra-madeApoioaNcleosdeExcelnciaPronex/ConselhoNacionaldeDesenvolvimento

    Cientfico e Tecnolgico CNPq, Movimentos Religiosos no Mundo Contemporneo,pelo financiamento de pesquisa.

    DADOS Revista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 49, no 3, 2006, pp. 583 a 613.

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica*

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    2/31

    julgou que o autor deveria estar em parafuso, lel da cuca ou, ain-da, sofrer de uma esquizofrenia incurvel. A exposio jocosa do po-ltico no parou por a: no dia seguinte, o jornalista apontou o aspectoinconstitucional do decreto, uma vez que este fere o direito da livre ex-

    presso religiosa e da separao entre Estado e religio. No terceirodia, o jornalista previu os transtornos do decreto na atualizao do sis-tema democrtico local: alm de este estabelecer que Jesus o nico se-nhor e salvador da cidade, auto-intitula-se, segundo o pargrafo VII,ato proftico irrevogvel e eterno. Neste sentido, argumenta o ndioCariri, no h como os outros cinco presumveis candidatos prefeitu-ra pleitear o direito de salvar a cidade do caos econmico, financeiro,administrativo, moral, educacional, da sade, do transporte, da segu-

    rana. Ningum disputaria o posto com o Filho de Deus, completao articulista (O Estado, coluna Ponto Final, 19, 20 e 21/3/2004).

    Nestes vrios revides do jornalista da capital ao prefeito do interior, oprimeiro procura desqualificar o segundo: porque o prefeito cometeuum ato desregrado, porque ele prprio uma pessoa que age fora darazo, e ainda porque o seu ato no est adequado s regras da demo-cracia moderna. Nestas vrias abordagens, o jornalista supe o estabe-lecimento de uma cumplicidade entre ele e o leitor atravs do aciona-

    mentodeumadistinoentreolugardeondeojornalistafalaasocie-dade educada de Rondnia, que sabe quais so os princpios que orde-nam o mundo e os constrangimentos que devem guiar as aes, distin-guindooracionaldoirracionaledescartvel.Outroolugardoprefei-toCludioPilon,queodomundodafabulao,dafantasia.Comestachave de leitura, o leitor dO Estadopode chegar concluso que huma diferena qualitativa entre os excessos jocosos e humorsticos doarticulista, que exerce tais liberdades estilsticas sem ferir uma certapercepo de realidade, e o ato do prefeito, que teria sido guiadopela cegueira da crena, ou seja, por uma opinio de ntima convic-o, mas cujo assentimento objetivamente insuficiente1.

    Naltimadcada,vriospesquisadoresseperguntam,comcertainsis-tncia, sobre o impacto da crescente presena pentecostal na poltica eno gerenciamento da coisa pblica no Brasil. Em trabalho clssico dePaul Freston (1993), aposta-se em uma linha de continuidade entre no-o de misso para o interior da denominao e o projeto poltico

    mais amplo. Assim, onde o projeto missionrio se afirma no papel re-novador e purificador do mundo secular atravs da instituio, comono caso da Igreja Universal do Reino de Deus, a atuao poltica estar

    584

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    3/31

    pautada na afirmao institucional. Em muitas outras denominaes,sooslderesqueencarnamoprojetoderenovaodomundo,apre-sentando-se como personas morais. Estas denominaes articulam anoo de misso idia de carisma, neste sentido, educam lderes que

    iro representar a viso de mundo crente aos de fora, inserindo-os edisputando espao na carreira poltica secular2.

    Machado (2003:302), ao acompanhar a atuao de polticos evangli-cos na Cmara Municipal e na Assemblia Legislativa 2001-04, concluique mais que reforar a forma tradicional de clientelismo brasileiro, arelaodidicaentrepatro-cliente,acrescentepresenadosevangli-cos na poltica local tem promovido uma combinao de diversas ex-

    presses de clientelismo.

    Oro (2003), recentemente, ao analisar a atuao da Igreja Universal doReino de Deus na poltica brasileira, prope uma renovao ampliadado campo da poltica, mas no necessariamente porque esta igrejaacrescenta questes de cunho religioso na poltica, mas mais exata-mente porque ela se apropria de instrumentos sociais como a mdia,para recriar, agilizar e facilitar a comunicao entre clero e multides,

    populao e elite. Neste sentido, Oro reitera a intensificao da forma-o de um tipo de Repblica em funo das alternativas sociais imple-mentadas por uma instituio religiosa. Birman (2003) desenvolve umargumento semelhante observando o impacto da Igreja Universal naformao do espao pblico tendo em vista a relao mdia, poltica esociedade.

    Diante deste esboo do debate sobre a inter-relao entre religio e po-ltica na academia brasileira, vale a pena perguntar se os encaminha-mentos analticos disponveis no pressupem uma correlao estreitademais entre os modelos republicano, democrata, neoliberal ou clien-telista de fazer poltica e as tendncias sociais minoritrias presentesnos movimentos religiosos. Recorrentemente, as anlises partem dedois ou mais termos dissonantes, mas que se encaminham para algu-ma conjugao entre religio e poltica, desembocando, por fim, emuma ressonncia ampliada. Ser que neste exerccio analtico no esta-mossilenciandosobreexperimentossociaismaisinstveis,improvisa-

    dos e dissonantes, e que so, nesta mesma medida, mais efetivos no co-tidiano da populao? Ou melhor, ser que o silncio dos pesquisado-res da religio sobre experimentos sociais como os de Guajar-Mirim

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    585

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    4/31

    no ratifica a suposio do jornalista ndio Tabajara de que aquele ex-perimento poltico nada mais que a atualizao de mera crena?

    Nesteartigo,pretendoinvestirnoconhecimentodascondiesdepro-

    duo desse imaginrio ou imaginao mais polimorfa, sob o custo de,estrategicamente, silenciar sobre as questes mais clssicas da sociolo-gia poltica. Em outras palavras, assumindo a incompletude de minhaanlise pois no discutirei o fazer poltico de Cludio Pilon no sen-tido estrito, a relao com seu eleitorado, com seus colegas e com seusopositores polticos, as suas estratgias de ratificao do seu lugar naelitepolticalocal,deter-me-eisobreoimaginrioquemobilizaopre-feito e que se expressa no decreto. Suponho, portanto, que existe uma

    provvel complementariedade entre a minha abordagem e as anterio-res, j sistematizadas nos modelos analticos republicano, democrti-co, neoliberal e clientelista. Falta, entretanto, ainda para uma possvelsoluo complementar, um investimento mais sistemtico no reconhe-cimento do valor simblico e sociolgico de eventos polticos que te-nham esta aparncia de mera crena.

    Neste artigo, adotarei o conceito de imaginao e fronteira imagi-nativa (Harris, 2004) para propor uma reviso e ampliao da discus-

    so entre choques de viso de mundo moderna/racionalista ou inte-lectualistaversusviso de mundo pr-moderna/encantada ou mtica.Na modernidade, haveria uma transformao cognitiva na viso demundo: o encantado e fantstico seriam considerados iluses e tende-riam a desaparecer na medida em que haveria uma subordinao dascosmologias s percepes mais pragmticas e funcionais do mundoda vida.

    Entre ns, esta dicotomia tem sido atualizada no compartilhamento deumcertomal-estardiantedospentecostais,temaquejvemsendodis-cutido por alguns autores (cf. Mariz, 1995; 1999). Freston, por exemplo,fazcitaesdepassagensnamdianasquaisospentecostaissoacusa-dos de incautos e incultos. Mafra (2001; 2002) e Giumbelli (2002)sublinham o preconceito que a Igreja Universal inspira na academia ena mdia. Embora esse mal-estar seja similar quele que qualquer visode mundo encantada gera no contraste com uma perspectiva raciona-lista, h distines quanto ao referente religioso: algo que bem pode-

    mos perceber quando comparamos o mal-estar pentecostal com o pro-vocado pelas religies afro-brasileiras. Provavelmente, isto tem a vercom caractersticas sociolgicas dos dois movimentos religiosos: en-

    586

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    5/31

    quantoosevanglicosdisputamporvisibilidadenomundopblico,asreligiosidades afro-brasileiras tendem a se afirmar como sociedade se-creta e a postular um relacionamento cordial com os poderes j estabe-lecidos.certoqueosevanglicosnoameaamoprojetodeformao

    de um Estado secular estrito senso no se busca a afirmao de umEstado religioso mas, ao contrrio da tradio religiosa cordial, plei-teiam lugares de direo, autoridade e poder no espao pblico (Bir-man e Leite, 2004).

    Central no desenvolvimento desta anlise, que no pretende se refugi-ar nas dicotomias, a noo deimaginaoproposta por Ingold (2000)que, como se v na seqncia, bem distinta da proposta por GastonBachelard (2000; 2001). Isto porque a imaginao, segundo Ingold, noest l, pronta, feito um esquema formal, para ser usada quando solici-tada, mas s existe na medida em que exercida:

    a) em consonncia com as atividades que as pessoas usualmente rea-lizam, com o modo como elas se situam no mundo e se relacionamcom o mundo e as outras pessoas, ou seja, suas habilidades. Nestesentido, a imaginao sustenta um certo grau de intencionalidadetanto quanto uma certa qualidade de ateno encorporada (em-bodiment) da pessoa;

    b) o exerccio da imaginao no supe uma projeo sobre a realida-de de uma forma anteriormente projetada, mas sim que a forma serevela (seja no plano, na estratgia, na representao) e ganha ter-mo medida que a atividade da imaginao se desenvolve. Nestesentido, no operarei com o pressuposto segundo o qual uma for-macontroladaetestadapelopensamentoparadepoisseatualizarna ao, nem com a oposio entre pensamento e ao, mas partireido princpio da reversibilidade da forma e do contedo (do pensa-

    mento e da ao) no processo de desenvolvimento da atividade;c) a principal decorrncia desta imbricao entre habilidade e imagi-

    nrio que a vida social levando em conta que os vrios atoresutilizam,cadaumaseumodo,osrecursosdeentornoparasesituare inter-relacionar , dificilmente se desenvolver como a atualiza-o de uma viso de mundo harmoniosa e sintonizada. Contudo,tambm no postulo o oposto: que os atores carregam mundos derepresentao distintos, sendo incapazes de reconhecer as ideolo-

    gias e crenas uns dos outros. Convivncia em um mundo com-partilhado, neste sentido, significa, isto sim, um exerccio de m-tuo aprendizado de habilidades, crenas, vises de mundo, que

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    587

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    6/31

    tendem a se refinar conjuntamente, porm, sempre permanecendoum pouco deslocadas e dissonantes umas em relao s outras.

    Um dos efeitos mais evidentes da aplicao desta noo de imaginrio

    para a anlise do caso Pilon a perspectiva que toda vida poltica, des-deamaisusualsejaelaorientadaporumaatuaojconhecidarepu-blicana, democrtica, populista ou clientelista, quanto o ato poltico dePilon, ao instituir o seu decreto , depende, em certo grau, de um exer-ccio de imaginao. Sem a imaginao, nenhum homem ou mulherpblicos conseguiria se afirmar no seu novo lugar, uma vez queele/a, no aprendizado da atuao poltica, obrigado/a a improvisarum caminho para alm do j conhecido. Este imaginrio, contudo, vaialm do convencional e institudo, no para estabelecer equivalncia

    com o descontrolado e inefvel, pois est no seu fundamento uma su-posio de duplo agenciamento, do imaginrio e da experincia en-corporada3.

    O aprofundamento do caso de Guajar-Mirim, especialmente porquese desenvolve em uma regio de recente adensamento populacional,portanto, refere-se a um contexto no qual as habilidades se desenvol-vem mais diretamente relacionadas com elementos da natureza, ouseja, as habilidades no esto to criticamente submetidas s transfor-maeseevoluestecnolgicas,comonosuniversosmaisindustriali-zados e urbanizados. Com isto, ganhamos a possibilidade de umaapreciao mais detida da relao entre encorporao das habilida-des, transformao sociopoltica do contexto e exerccio da imagina-o.

    Na segunda parte do artigo, retomo o caso Pilon procurando estabele-cer as possveis correspondncias entre o desenvolvimento das habili-

    dades do seu grupo de pertencimento, a interface que cria com demaisgrupos sociais (inclusive o Estado), e o decreto. Haver um ganho ana-lticoseconseguirmosrelerodecretotendoemvistaolequedeativida-des constituintes do mundo em que Pilon se socializou, ou seja, encon-trandocertaorganicidadeentrepensamento(imaginao)epercepode mundo4.

    PAISAGEM REGIONAL

    H toda uma literatura sobre a Regio Amaznica brasileira definin-do-a como rea de fronteira, debatendo os termos da definio ouquestionando a prpria definio (cf. Velho, 1979). Uma definio pro-

    588

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    7/31

    visria diria que fronteira : a) uma rea geogrfica esparsamente ha-bitada; b) uma rea dotada de instituies sociais relativamente fracase fragmentadas; c) uma rea com estruturas sociais e populaes im-perfeitamente integradas.

    Neste artigo, ainda que Rondnia, de um modo geral, e Guajar-Mi-rim, de um modo particular, corroborem vrias destas caractersticas,inclusive,oparadoxodeamplocrescimentoeconmiconasdcadasde1980e1990,juntocomoaumentodaviolncia(Haller etalii,2000),que-roiralmdestelimitetemtico.Parece-mequeexisteminmerassimi-laridades entre a caracterizao de rea de fronteira e certas condiesde vida na periferia das grandes cidades no Sudeste: so reas social-mente vulnerveis, com equipamento urbano precrio, receptoras demigrantes, com alta incidncia de violncia com uso de arma, com bai-xa presena do Estado e alta presena de evanglicos pentecostais.Mais adiante, voltarei ao ponto.

    Como primeira aproximao de Rondnia, bom lembrar que a regiofoi foco de projetos arriscados e aventureiros com um apelo desenvol-vimentista desde fins do sculos XIX, j na saga da construo da fer-rovia Madeira-Marmor, ou na expanso do Telgrafo por Rondon,nosmeadosdosanos1940(Oliveira,2000;Padovan,2004).Masfoicoma construo da BR 364, nas dcadas de 1970 e 1980, que a paisagem dolugar mudou definitivamente. Se formos atrs dos nmeros para cal-cular o impacto deste processo, devemos registrar que entre 1945 e1977 Rondnia contava com apenas dois municpios: Porto Velho e Gua-jar-Mirim. Nos anos 1990, os municpios multiplicaram-se, alcanan-do o nmero de 52. Cresceu tambm a populao residente, que em1960eradecercade70mil,nosanos1970,subiupara110milenosanos1980 atingiu a faixa dos 500 mil. Na dcada seguinte, este nmero du-

    plicou,ultrapassandoomilhodehabitantes.SegundooCenso2000,oEstado conta atualmente com 1.296.856 habitantes.

    Os nmeros tambm podem crescer para indicar decrscimo: este ocaso da rea ocupada pela floresta tropical. Em 1978, a rea desmatadaera de cerca de 420 mil hectares, ou seja, 1,76% do territrio. Em 1988,foram registrados 3 milhes de hectares desmatados, cerca de 12,57%,e, em 1999, esta rea atingiu os 5.683.675 hectares, ou seja, 23,82% darea do Estado.

    EstesdoisconjuntosdenmerosseencontramaolongodaBR364,pois nesta faixa que atravessa o Estado, ligando o Mato Grosso at Porto

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    589

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    8/31

    Velho e dali a Guajar-Mirim e Bolvia, onde foi fundada boa partedas novas cidades e onde o desmatamento se ratificou. O verde que ve-mos ao longo da BR das extensas fazendas pecuaristas, entremeadasdoverdeecinzadosdesmatamentosrecentes.OmarverdedaFloresta

    AmaznicacomquesonhamosquandonosdeslocamosparaaAmaz-niaLegalestdistante,boapartedasvezeslocaliza-senos20%doterri-trio que rea indgena legalizada.

    O caso que a topografia de transformao indicada pelos nmeros vaga,senosvoltarmosparaocampodasrelaessociaisconcretas.Nodia-a-dia, estas muitas transformaes significam e esto diferente-mente marcadas, conforme se seringueiro, ndio, garimpeiro, madei-

    reiro, agricultor, dona-de-casa, peo de fazenda, carpinteiro, profissio-nal liberal, comerciante, prostituta, engenheiro, mdico, representantedo Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria Incra ou daFundao Nacional do ndio Funai; se se de uma organizaono-governamental ONG representante dos sem-terra, dos ndiossur ou cinta larga, ou de uma agncia ecolgica alem; conforme sechegue como aventureiro solitrio ou com a famlia no pau-de-arara;segundo se imigre do Paran, So Paulo, Bahia ou do Cear; se o indiv-duo vem junto com a pastoral catlica, com os pomeranos luteranos,ou se foi convertido por alguma igreja pentecostal em uma cruzada deestrada. So muitas as formas de se engajar nesta histria. Esboarei,na seqncia, alguns modos de pertencimento a partir de pares de in-terlocutores:osndiosetrabalhadoresmanuais;osmadeireiroseosga-rimpeiros; os mdicos e os profissionais liberais.

    As descries que seguem esto fundamentadas em dois conjuntos deentrevista(fitasevdeo)realizadasemduasestadiasemRondnia:emjaneiro e fevereiro de 2002, e em fevereiro de 20045. A sede dos traba-lhosfoiemCacoal,ondesedesenvolveuboapartedaobservaoparti-cipante e das entrevistas com 18 famlias de migrantes de baixa renda,um lder do Movimento dos Sem-Terra MST, dois lderes de ONGs,trs mdicos, uma prefeita, dois madeireiros, dois empresrios daagroindstria, uma professora universitria, um lder pentecostal deprojeo nacional. Algumas destas pessoas so residentes de Guaja-r-Mirim e de Porto Velho. O contato com os ndios foi esparso, com

    apenas uma visita a um acampamento na proximidade de Cacoal e auma aldeia suru. Algumas pessoas foram entrevistadas nos dois pe-rodos, outras, no.

    590

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    9/31

    1. ndios e trabalhadores manuais

    Certamente, os ndios guardam as marcas mais profundas da transfor-mao da paisagem de Rondnia. Em muitas naes, a populao di-

    minuiu de forma gritante nas ltimas dcadas (atualmente, temos no-tcia de algumas tribos que apresentam um crescimento demogrfico,em um contra-efeito da alta taxa de mortalidade das dcadas anterio-res). Freqentemente, esses povos tiveram suas terras invadidas, sa-queadas e expropriadas. Para assimilar a catstrofe, muitas tribos tmhojenosmitosumgrandedivisor:oanteseodepoisdachegadadoho-mem branco. No se trata do apocalipse cristo, mas est perto dele, seestivermos atentos aos sinais de destruio e horror.

    Na memria dos trabalhadores migrantes, daqueles que chegaram empau-de-arara, sem recurso nenhum no bolso, os ndios so refernciamarcante. Na memria agonstica daqueles primeiros anos, os n-dios impuseram respeito, pois agiamcomo nao quando ludibria-dos, desrespeitados, ameaados, sua resposta era coletiva e guerreira.J os brancos, so muitos os testemunhos neste sentido, eram todosdispersos,divididosentresi,prontosparatirarvantagemumdooutro,sempre com olho grande nos pertences do vizinho. Vizinho morto por

    ndio, por febre, perdido em garimpo, podia bem facilitar o acrscimodealgunshectaresnafazendaaolado,apenascomamudanasorratei-ra da cerca de fronteira.

    Na memria de muitos migrantes destes que chegaram empau-de-arara, que vieram na aventura e na coragem de um mundo ur-bano onde trabalhavam como pees de obra, serralheiros, carpintei-ros, faz-tudo, para se arriscar no meio rural, trazendo mulher e filhosna cangalha , os anos 1970 so os anos de criao de mundo. A refe-

    rncia religiosa faz sentido, pois, como veremos adiante, boa parte des-tes trabalhadores manuais, que continuam ocupando os estratos maisbaixos da sociedade rondonense, passam a ter uma clara adeso religi-osa 30 anos depois: boa parte deles se converte ao pentecostalismo.Rondnia hoje o estado brasileiro mais evanglico do pas, com 24%da populao6.

    OcolonoqueganhasseseupedaodeterranosProjetosdeIntegraoeColonizao (PICs) nos anos 1970, contaram os entrevistados, tinha

    que lutar para no viver sem roupa no meio do mato, feito ndio,pois era para o meio do mato, literalmente, que muitos deles erammandados, com sua esposa e muitos filhos7. Muitos relatos de mem-

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    591

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    10/31

    ria daqueles tempos so amargos. Por pouco, os trabalhares brancos,ex-operrios, ex-faxineiros, ex-ambulantes, ex-pees, continuavamdecentesenoviravambichonaempreitada.Asdoenastropicaissempreestavamporperto,esuahabilidadeparatiraracuradomato

    era nenhuma. O contraste com os ndios era grande: estes se moviamno entorno como se o mato e o descampando fosse a casa deles, tiravamda floresta a cura, sabiam encontrar naquela imensido verde as r-vores com a florao em curso, adivinhavam os passos dos animaisem sua caada. No contraste da habilidade indgena, os colonos sa-biam lidar com as grandes cidades, fazer um servio aqui, outro ali. Amata apresentava-se ao migrante trabalhador como um imenso obs-tculo.

    Esta perspectiva da floresta como obstculo, no decorreu apenas dainabilidade e do desconhecimento sobre como lidar com ela. Muitosdosgrandesprojetosdesenvolvimentistasincentivaramaperspectiva.Aposse da terra, repetiram os representantes dos rgos do governodurante anos, s estaria garantida mediante a derrubada do mato.Da a crena vigente ainda hoje que mato bom o mato no cho: sassim a riqueza entrava no do bolso do trabalhador, seja com a vendada madeira que cai, seja com a lavoura que cresce, muitas vezes abun-

    dante apenas na primeira ou segunda florada.Alguns ndios, como os suru com quem conversei, no escondem odesprezo pelos brancos. A seus olhos, os brancos tm os sentidosinvertidos, se comportam como animais diante de normas bsicas davida na floresta. Contudo, o que ato desprezvel para uns fonte dedivertimento para outros. A histria que segue, narrada por LourdesKemper, historiadora local autodidata, e registrada no meu dirio decampo, ilustra o ponto.

    Lnosidosdosanos70,apareceunocoraodeumdestespovoamen-tos ao longo da BR 364, que depois se transformou em cidade, dois ra-pazes carregando uma tipia. Pararam, descansaram no cho o quequer que estivesse na rede, e perguntaram aos outros que se encontra-vamnobar,sealgumqueriacomprarumaona.Umdosrapazestinhaperdido seu cachorro, morto pela ona, e agora, morta a ona, queriavend-la para comprar um outro cachorro.Naquele tempo, cachorro era de grande valia para o colono, explicou

    Lourdes, pois o animal anunciava o perigo quando se estava perdidona mata ou na lida na roa. Alm disso, muitos colonos no sabiam ca-ar sem cachorro, no que se chama caada a curso, habilidade muito

    592

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    11/31

    comum entre os ndios e os seringueiros. Segundo a Encliclopdia daFloresta, a caada a curso envolve uma busca, geralmente solitria,cujo sucesso depende muito da capacidade do caador identificar pe-gadas,fezeseoutrosvestgiosqueosanimaispossamdeixarpelocami-

    nho e de conhecer os sons que emitem e seus horrios de alimentao(Cunha e Almeida, 2002:318).No bar, ningum se interessou. Mais tarde, parada obrigatria de todocomerciante do lugar, apareceu no boteco o nico fotgrafo da regio.

    Jos Cardoso, olhando o animal, teve a brilhante idia de ganhar al-gunstrocadosfotografandoosclientesaoseulado.Aonamortasetor-nou,assim,obibeldosmigrantes.Osclienteschegaramspencas,an-siosos em se disporem em rodas no entorno do animal, ou ento, posan-

    do como aventureiros e caadores bem-sucedidos. Essas fotos, comooutras ao lado dos ndios, eram enviadas aos parentes que ficaram nascidades de origem, nos outros Estados, como recordao das aventuras

    bem-sucedidas em Rondnia.Lourdes conta que a ona morta foi objeto, durante trs dias, dosflashesdo fotgrafo. O comrcio imagtico em torno do animal morto s fin-dou quando a putrefao avanou e o fedor se tornou insuportvel.

    Para os povos da floresta, entenda-se ndios e seringueiros, toda esta

    histria da ona de Cacoal um acinte. Na sua perspectiva, aquelepovo brincou com algo que sagrado. O princpio do caador respei-tar a caa, tratando-a com uma etiqueta rigorosa: no se pode insul-t-la,sobpenadeenrascarocaador.Ocaadorenrascadoaque-le que repetidamente sai para a mata e no v a caa, ou que visto an-tesporela,doqueelaporele,ouqueerraotiro.Ocaadorenrascadono tira caa da mata.

    Lngua diferente, habilidades diferentes, caminhos habituais diferen-

    tes, interesses diferentes, cdigos de etiqueta diferentes. Outros mun-dos sagrados, outros horizontes de esperana, outras formas de proje-tar o mundo imaginado no mundo vivido. A mesma ona que fortalecea relao com parentes distantes ao referendar a idia de lugar exticode Rondnia vida que entra no ciclo de troca entre floresta, ndios esua tribo. Uma fronteira de imaginao (Harris, 2004) coloca-se en-tre brancos e ndios, no porque se manipule maquiavlica e intencio-nalmente planos e estratgias diferentes, mas porque o ato imaginadoestabelece continuidade com o mundo percebido.

    Descrevo aqui uma primeira fronteira imaginativa entre ndios ebrancos trabalhadores migrantes de baixa renda. Entre uns e outros, s

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    593

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    12/31

    vezes as fronteiras se mesclam, s vezes se intensificam; muitas vezesas habilidades de uns influenciam e so intercambiadas com as de ou-tros; no estranho que o medo de um se torne o horror de outro, ouqueaesperanadeumconfirmeamisriadeoutro.Noentanto,haven-

    do bons ou maus encontros, ndios e brancos continuam a se avistarquase cotidianamente pelas ruas e estradas no Estado de Rondnia.Estarocompartilhandoummesmoconjuntodereferenciais,umagre-gado cultural suficientemente denso, capaz de gerar uma mesma ima-gem de espao pblico?

    2. Garimpeiros e Madeireiros

    Neste primeiro contraste, entre ndios e trabalhadores manuais de bai-xa renda, procurei evidenciar como naqueles primeiros anos de apro-priao e reconhecimento do lugar a relao com as condies ecolgi-cas locais promoveu uma srie de ndulos de tenso e de compartilha-mento entre pessoas de grupos tnicos distintos. No foi coberta, poresta descrio, toda uma outra gama de relaes sociais e ecolgicasque dependem, mais intensamente, de uma interlocuo mais central edireta com atores externos, federais e internacionais. Quando nos vol-tamos para um outro grupo ocupacional estreitamente ligado hist-

    ria e folclore de Rondnia, o dos garimpeiros e dos madeireiros, esteplano de relaes no pode ser ignorado.

    Estes trabalhadores, brancos ou acaboclados, se orgulham de tercerta intimidade com a floresta, os rios, os hbitos dos animais, os cos-tumes dos ndios. Eles se distinguem dos migrantes que citei anterior-mente, pois, tendo vindo em levas anteriores, j incorporaram um co-nhecimento da paisagem humana e ecolgica do lugar. Boa parte de

    seu poder e prestgio gerado exatamente por este vnculo com a re-gio: so reconhecidos como pessoas experientes, que sabem entrar,circular, examinar, conhecer, nomear, explorar as riquezas do lugar.Cultivam usualmente um catolicismo de estrato popular, mantendo asfestas e as relaes de compadrio herdadas de outras geraes. Muitasvezes reconhecidos pelo olhar distante como simples aventureirosque se movimentam no territrio em busca da riqueza fcil, eles soisto e muito mais. Podemos afirmar que eles so o smbolo da frontei-ra em movimento (Velho, 1979).

    Foiumvelhogarimpeiroquemdeuumaimagemvivado modus vivendide seu grupo ocupacional: para ele, garimpeiro como formiga, onde

    594

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    13/31

    tem acar, diga-se, riqueza mineral, eles localizam e se amontoam.Noadiantabotarlei,montanha,polciaouterraindgenacomoobst-culo.Osgarimpeirosatravessamriosepontes,florestasinexploradasetribos perigosas, tudo em busca do minrio de aluvio ou da mina

    inexplorada.

    Cultivando esta auto-imagem, no estranho que os garimpeiros con-temahistriadaregioapartirdeumasucessodeexploraesdasri-quezas: em 1960, descobriu-se cassiterita de altssimo teor no cen-tro-oeste do estado. Isto atraiu uma leva de nordestinos, umamo-de-obra numerosa, trabalhando clandestinamente. Grupos mafi-osos exploraram os garimpeiros de forma desumana, o que chamou aateno das autoridades federais. Em 1962, esta explorao garantiuquase50%daproduonacionaldeestanho.Comadiminuiodasre-servasdecassiteritaeregulamentaesfederaisqueinibiamaexplora-o improvisada, no final dos anos 1970, os garimpeiros correram paraoutrolado,aexploraodoouro,quesedescobriuser,naregio,abun-dante e formado na base do aluvio (especialmente no rio Madeira).Uma extrao que dependia da explorao mecanizada, em dragas, fezcom que boa parte do trabalho de garimpo ocorresse com base na con-tratao de garimpeiros, que eram subempregados por patres com

    maior poder aquisitivo. Mais recentemente, no sculo XXI, a corrida sedeslocou para o garimpo de diamante, em uma mina com grande po-tencial,segundoostcnicoseengenheiros,aindaquelocalizadanaRe-servaRoosevelt,dosndioscintalarga,emEspigodoOeste,portanto,territrio de explorao do subsolo proibida. Tal como em situaes si-milares no passado recente, a entrada dos garimpeiros nesta explora-o envolveu acordos escusos, grupos mafiosos e uma chacina8.

    Dificilmente, como usualmente acontece com os dramas vividos pelosmigrantesmaishumildesaquidescritos,osciclosderiquezaepobrezados garimpeiros e madeireiros passa despercebido diante dos poderesnacionais e internacionais. Lidando com recursos naturais em uma l-gica que no de comedimento, madeireiros e garimpeiros atraempara si a ateno de outros cidados do mundo. Uma opinio pbli-ca cosmopolita tende a reconhecer nas atividades destes aventurei-ros risco para o conjunto da humanidade. Entre os garimpeiros e osmadeireiros, a palavra risco ganha outro significado: refere-se ao

    lado glamouroso de seu fazer, incerteza que move o homem em umadireoououtra,semsaberodestinocerto,aumapeloquechamaparao desconhecido, em um movimento herico que semelhante vida.

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    595

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    14/31

    Isto no quer dizer que garimpeiros e madeireiros descrevam o seu fa-zer como aventura, como freqentemente faz o citadino distante.Trata-se antes de uma habilidade, de um mundo em que cresceram ese fizeram gente, e que no os abandona mais.

    OrelatodeummadeireirodeCacoalilustrativodeste ethos ocupacio-nal: neto de madeireiros, ele entrou na lida da madeira aos 10 anos.Noaprendeualernemaescrever.VeioparaRondniacomoutrostrsirmos quando a explorao de madeira se tornou invivel no Paran.Deixou l o pai e a famlia ampliada. EmCacoal, montou com os irmosuma madeireira. Exploraram juntos o negcio at o comeo dos anos1990. A partir de ento, como a legislao s apertava, se desenten-

    deram. No incio, o abate proibido era apenas da castanheira, depoisincluiu o mogno e a cerejeira. Mais tarde a legislao passou a seguirplanos mais gerais, segundo o zoneamento socioeconmico-ecolgico,que estabelece exploraes diferenciais segundo a vocao do lugar.Oprincpiodalegislaoquereasjdesmatadas,comexploraoin-tensa de pecuria e agricultura, devem preservar certa porcentagemde terra com mata virgem ou com reflorestamento. J as reas aindainexploradas, que continuam verdes, devem preservar o mximo desua mata nativa.

    Na diviso da sociedade com os irmos, enquanto Edevair, o nosso en-trevistado, decidiu estabelecer sua nova madeireira recebendo apenasmadeira com nota fiscal, isto , legalizada, o que significa mais cara,uma vez que j est incorporado no seu valor um custo de negocia-o com os rgos competentes, os outros dois irmos seguiram ex-plorandoamadeiracrua,semnota.Nesteltimocaso,soosmadei-reiros que devem procurar regularizar a situao do produto extrado.

    Os riscos so maiores, assim como os lucros.

    A salvaguarda dos irmos de Edevair, isto ele sublinhou no seu relato, que um dos irmos muito sagaz em termos de legislao. Ele semovimenta bem entre os polticos locais, estaduais e federais, assimcomo, entre os funcionrios do estado. Alm de poltico, o irmo pro-prietrio de uma das poucas empresas que exploram o eco-turismo daregio um parque com lagos e piscinas, onde a classe mdia baixa ci-

    tadina faz a festa no fim de semana9. Uma funcionria do parque ga-rantiu para mim o que Edevair apenas sugeriu: se algum na cidadequiser derrubar um mogno ou uma castanheira, sabe que deve procu-

    596

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    15/31

    rarseupatro.elequemconheceocaminhodaspedraspararegulari -zar o abate da rvore, transformando o ilegal em legal.

    O madeireiro que se tornou eclogo sabe bem como se preservar entre

    as idas e vindas de uma legislao que parece despencar sobre a cabe-a dos extrativistas do lugar. Edevair, com uma formao um tantorestrita em termos de conhecimento formal, ao contrrio do irmo, sesente acossado e constrangido. Neto de madeireiros, ele desenvolveuumolharprecisoparaasextensesverdesdefloresta,sabendodiferen-ciar os tipos de madeira pela copa das rvores, a idade das rvores pelotronco,ostiposdefornecedoresemateirosdaregio.Noentanto,estashabilidades esto constantemente sob escrutnio, sendo questionadaspor uma opinio pblica distante e avessa. Acossado, Edevair se de-fendedenunciandoabanalidadedomal:sealegislaosobreaexplo-rao de recursos naturais fosse levada a srio, afirma, no haveriaumscidadodoEstadodeRondniaquedeixariadeserconsideradofora-da-lei.

    Para ficarmos dentro dos propsitos deste artigo, queremos chamarateno para o limiar em que se encontram estes profissionais: ao mes-mo tempo em que os trabalhadores extrativistas dominam uma habili-

    dade intrinsecamente ligada paisagem do lugar, central para a pre-servao de uma certa noo de ordem, riqueza e civilidade comparti-lhada regionalmente, eles esto no foco da observao de uma opiniopblicaedelegisladoresdistanteseavessos.Comisto,acabamseiden-tificando com uma noo perversa de cidadania: cidados passivos oufora-da-lei, vtimas de regras que no levam em conta o capital de co-nhecimento prtico elaborada e lentamente acumulado ao longo deuma jornada de vida. Mais grave ainda, o garimpeiro ou madeireiroque se d bem nesta relao esquizofrnica entre formuladores da lei,

    conluios e a sociedade local exatamente aquele que desenvolve umatrajetria de vida favorvel perpetuao da ciso.

    3. Mdicos e Profissionais Liberais

    Semcapitalsocialpreviamenteacumulado,dificilmentegarimpeirosemadeireirosconseguemseafirmarcomoelitepolticadolugar.Nades-crio anterior, devemos registrar a histria do irmo de Edevair como

    exceo. Mais freqentemente, a elite poltica e social local formadapor um outro grupo de migrantes, originalmente de famlia de classemdia do Sul e Sudeste que, formados em cursos universitrios e em

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    597

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    16/31

    incio de carreira ainda nos anos 1970, viram na migrao para o Cen-tro-Oeste e Rondnia uma oportunidade para se estabelecerem comohomens de bem e de posses. Entre estes profissionais, os mdicos ti-veram destaque.

    Nos vrios ciclos de colonizaoda Amaznia, um dos grandes obst-culos para o avano dos pioneiros, os soldados da borracha, osgarimpeiros,ospequenosagricultoresnoavanodaexploraodoter-ritrio e da floresta, foram as febres tropicais, em especial, a febre ama-rela. Enfticos, alguns entrevistados afirmam: Morria-se s dzias,naquelestemposdeorigem,nosanos70.Estasituaocaticadesa-depblicaatraiualgunsmdicos,que,comumcapitalinicialmaiorou

    menor,abriamseusconsultriosnospovoadosnomeiodonada.Emgeral, todo e qualquer profissional era bem-vindo, encontrando apoiodos raros agentes do estado que estivessem nas cercanias, que ofereci-am carros que funcionavam improvisadamente como ambulncia, ca-sas que funcionavam como ambulatrio, avies para buscar um ou ou-tro remdio nos estados vizinhos, terrenos para a construo de hospi-tais. Esperava-se que estes privilgios e benesses seduzissem o profis-sional migrante, fixando a mo-de-obra qualificada no lugar.

    Um dos efeitos perversos deste processo foi uma apropriao privadadacalamidadedapopulaoedoapoiopblico.Emvriosmunicpiosao longo da BR 364 encontramos dois ou trs hospitais nas principaisavenidas, e uma rede ampliada de consultrios mdicos, oftalmolgi-cos,decentrosdesade,declnicasestticas,disputandosuaslumin-riascomocomrciodeserviolocal.Vriosdosmdicosdasprimeiraslevas, alguns daqueles que no voltaram para o sul, tm hoje as me-lhores casas da cidade, compraram terras, tornaram-se pecuaristas eagricultores, diversificando seus negcios, muitas vezes, atuando si-multaneamente no campo da poltica.

    A forma como estes profissionais disponibilizaram o seu conhecimen-to para a populao local o que vem garantindo uma certa m-famaentre os regionais. Contam alguns de nossos entrevistados que muitosdestes senhores fizeram fortuna na base do escambo: um pequenoagricultor, um garimpeiro, vendo sua vida em perigo, no hesitava emtrocar seu terreno, sua vaca, sua pedra mais preciosa, pela consulta.

    Alguns mdicos somaram estes recursos com o de dois ou trs colegas,fundando hospitais privados. Para dar um impulso iniciativa empre-sarial,garantiamaconsultaapenasaopacientequeseinternassenoseu

    598

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    17/31

    hospital, no no do concorrente. Algumas vezes, a estratgia era utili-zar o nibus da prefeitura para circular pelo interior, acolhendo os do-entes que encontrassem, prometendo a cura se fossem internados nassuasinstalaes.Distantesdesuacasa,osdoentessesubmetiamaotra-

    tamento e aos custos abusivos dos servios includos, como remdios,transporte, cama e comida para dois o doente e seu acompanhante.Alm disso, a concorrncia entre os mdicos pouco seguia uma ticaprofissional. Se houvesse na cidade um profissional especializado notratamento de alguma molstia, mas fora do crculo restrito dos ami-gos, este era francamente ignorado no se mandava cliente para oinimigo.

    Aescassezdoprofissionaldesadenaregiopermitiuaexpansodes-te esprito aventureiro. Ao mesmo tempo, possibilitou que pessoassem nenhuma ou pouca formao alassem posies nobres, comoauxiliar de enfermagem, ajudante de dentista, secretrio da adminis-trao cargos que jamais poderiam sonhar em ocupar se estivessemnas cidades de origem no Sul, Sudeste e Nordeste. No caldo desta pre-cariedade geral, brotaram algumas situaes anedticas, como a quesegue, relatada por uma ex-enfermeira.

    Naqueles tempos, conta Edna, os mdicos trabalhavam incansavel-mente:diaenoite,noiteedia.Erampoucososprofissionaisnaregio,eas doenas eram muitas. Os pacientes geralmente chegavam quando amolstia j estava adiantada, quando alguma interveno drstica eranecessria. Praticamente inexistia medicina preventiva. Numa daque-las noites, quando Edna estava de planto, baixou no hospital um se-nhor que sentia muitas dores na barriga. O mdico diagnosticou pro-

    blema na vescula. Isto significava que tinha que operar. Como a luz dogerador da cidade acabava s 11 horas, a operao foi marcada para as10 da noite. Mas no deu outra: no meio da operao, acabou a luz. Asenfermeiras, um tanto transtornadas, improvisaram uma iluminaoem torno da mesa de operao a base de velas. Assim, mal ou bem, aoperao seguiu seu curso. O problema que, com aquela multido develas, os movimentos do mdico ficaram um tanto restritos: a cadanovo gesto, ele tinha que desviar de uma ou outra chama. Num deter-minado momento, uma vela caiu, e o fogo correu solto nos plos do dor-so do paciente. O paciente no viu nada, continuou dormindo profun-

    damente, completamente narcotizado. Foi um corre-corre entre as en-fermeiras e o mdico. Por fim, conseguiram apagar o fogo e a operaocompletou-se com relativo sucesso. No dia seguinte, o paciente, feliz,

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    599

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    18/31

    diziaqueestavasesentindomuitomelhor,semopnicodapontadadedor. Mas, intrigado, perguntava para as enfermeiras se a queima dosplos fazia parte do tratamento.

    Limitados pelas condies precrias locais a exercerem uma medicina,advocacia,engenhariageraiseimprovisadas,muitosdosprofissionaisliberais compensam a perda do usufruto da civilidade das grandesmetrpoles, inacessveis na regio, pelo acmulo de riqueza e diversi-ficao de atividades: comprando fazendas, criando gado, plantandocaf, entrando na poltica. Esta voracidade pela riqueza ganha um m-peto e abrangncia que a populao semi-analfabeta pouco entende,uma vez que o conhecimento formal da lei, em vez de servir para fazer

    do profissional um civilizador do lugar, garante uma trajetria tor-tuosanaqualaleipodeserburlada,osamigoscontempladoseoqueera pblico, se tornar privado.

    A falcia republicana

    Fizemosataquiumadescriosobreasrelaesentreparesdeprofis-sionais que, de certo modo, compartilham um mesmo ambiente ecol-

    gico, mas no necessariamente as mesmas habilidades e, conseqente-mente cultivam expectativas e impresses diferentes sobre seu entor-no.AtravsdestadescrioqueosleitoresmaisfamiliarizadoscomoEstadodeRondniadevemconsiderar,comrazo,umtantobreveees-quemtica , pretendi esboar uma imagem de um feixe de relaespossvel naquele contexto. Sem a pretenso de desenvolver uma des-crio densa e exaustiva do lugar, quis apenas demonstrar que, se es-toumereferindoaumcontextodistante,margemdoextico,does-tranho, de uma natureza exuberante, desconhecido para a maioriados leitores, mesmo ali, encontram-se evidncias de uma modernida-de experimentada nas reas mais desenvolvidas do pas.

    Tantolcomoc,aspessoasestoemconstantedeslocamento.ndiosetrabalhadores manuais, madeireiros, garimpeiros, representantes deONGs nacionais e internacionais, profissionais liberais, doutores e lei-gos, boa parte destas pessoas est em constante trnsito: vieram deuma aldeia, vo para outra, visitam cidades, se estabelecem nelas, mu-

    dam de endereo, constituem novas famlias, aprendem novas profis-ses, tornam-se desconhecidos, viram celebridades, constituem novasredes depertencimento.Raraahistriadevidadapessoaquenasceu

    600

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    19/31

    eviveunamesmacasa,semumtempodefugadofamiliar.Entreosen -trevistados, por sinal, no encontrei nenhum caso de sedentarismo.

    Nestes vrios deslocamentos, as habilidades aprendidas em um con-

    texto no so necessariamente abandonadas no outro. Leva-se junto ahabilidade, simplesmente porque ela est no corpo e na mente da pes-soa. A dificuldade da adaptao dos trabalhadores manuais das cida-des do Nordeste, Sul e Sudeste, como pequenos agricultores rodeadospor uma floresta abundante na Regio Norte, citada anteriormente,descreve a impossibilidade a que estou me referindo: a de trocar de ha-bilidade como se fosse uma roupa. Para continuar com o exemplo, atransferncia de habilidades mais parecida com o uso de um escafan-dro, que, quando vestido, no s permite mas exige que a pessoa circu-le e interaja em um ambiente de outra qualidade, trocando o ar pelagua.

    Outra proximidade: nos diversos centros urbanos, as diferenas entreos grupos sociais dificilmente so explicveis em termos de classe oude status,aindaqueasdiferenasdeclasseestatus estejampresentesnaconstituiodasrelaessociais.Asomadasvriastrajetriasprofissi-onais descritas anteriormente remete a certas tendncias de pertenci-mento social assim, na classe baixa, esto os trabalhadores manuais,em geral, de origem mais humilde e com baixa educao formal; os ga-rimpeiros, os madeireiros e lderes de ONGs esto mais prximos deuma classe mdia; os empresrios e profissionais liberais aproxi-mam-se da idia de elite local , mas esta remisso a classes e estratos sempre um pouco vaga e nebulosa. Nesta nossa modernidade, indiv-duos, como Cludio Pilon de origem humilde, com formao educa-cional precria, socializao pentecostal , podem simplesmente atra-vessar o conjunto das disposies usuais das relaes sociais, conquis-

    tando,comofez,olugarpolticodeprefeitoemumadasmaioresemaisantigas cidades do estado.

    Enfim, o que quero sublinhar nesta segunda aproximao com Rond-nia que a soma das desigualdades sociais no remete a um mapa or-ganizado em centro e periferia de um conjunto maior chamado socie-dade, mas antes descreve um feixe de possibilidades que sofrem reor-denamentos, modificaes, composies, perspectivas que diferemconforme as ressonncias, os cortes, os fluxos.

    Ora, esta percepo da modernidade vivida com muitos fluxos, in-fluncias de diferentes calibres, excesso de informao de toda ordem,

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    601

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    20/31

    pessoas desinformadas utilizando suportes socialmente nobres muitodiferentedaconcebidaportericosdaRepblica,quandoproje-taramosmodosdesuaatualizaosocial.AutorescomoT.H.Marshall,porexemplo,supunhamumcertoprolongamentodahistria,comum

    acmuloemcamadasdeexperincia,adensandoaprprianoodeci-dadania. Para Marshall, a Repblica seria o resultado de um processolongo e tumultuado, envolvendo uma certa cumplicidade entre hist-ria e lgica sociolgica. Nas suas palavras:

    Estarei fazendo o papel de socilogo tpico se comear dizendo quepretendo dividir o conceito de cidadania em trs partes. Mas a anlise, neste caso, ditada mais pela histria que pela lgica. Chamarei estas

    trs partes, ou elementos, de civil, poltica e social [...]. Nos velhos tem-pos,essestrsdireitosestavamfundidosnums.Osdireitosseconfun-diam porque as instituies estavam amalgamadas (Marshall,1967:63-64).

    Para Marshall, a histria e a sociologia se fazem cmplices justamenteporque j nas primeiras e ansiosas buscas de cidadania, ainda nas ten-ses e disputas do incio do sculo XII, havia uma remisso, ainda que

    vaga, a componentes distintos: os direitos civis, os polticos e os sociais.A confuso de percepodas vrias camadas de cidadania seria apenasum engano inicial, fruto da indistino primordial, prpria do comeode toda criao. Dito de outro modo, o artefato da cidadania, quandopressionado adequadamente, deve colocar para fora o plano de reali-zao que j est dentro dela. Na seqncia, Marshall mais explcitoquanto a este potencial de artefato da cidadania:

    Acidadaniaumstatusconcedidoquelesquesomembrosintegraisde uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status so iguaiscom respeito aos direitos e obrigaes pertinentes ao status. No h ne-nhum princpio universal que determine que estes direitos e obriga-es sero, mas as sociedades nas quais a cidadania uma instituioemdesenvolvimentocriamumaimagemdeumacidadaniaidealemre-lao qual o sucesso pode ser medido e em relao qual a aspiraopode ser dirigida [...]. A classe social, por outro lado, um sistema dedesigualdade. E esta tambm, como a cidadania, pode estar baseada

    num conjunto de ideais, crenas e valores. , portanto, compreensvelque se espere que o impacto da cidadania sobre a classe social tome aforma de um conflito entre princpios opostos(idem:76).

    602

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    21/31

    Como uma alavanca, a cidadania de Marshall um ttulo destatusquepodeservirparaprojetarindivduosdeclassessubalternasparacondi-es de dignidade e respeito e indivduos de classes privilegiadas paraatitudes de submisso, freando aspiraes de privilgios usuais entre

    as classes abastadas. Como uma alavanca, a cidadania de Marshallpode ter impacto sobre a sociedade, isto porque Marshall enxerga suasociedade como uma totalidade com centro e periferia, com lugares de-siguaisrazoavelmenteestabilizados.Naformulaodesteterico,aci-dadania um artefato constituidor da Repblica, porque au-to-explicativaemseuuso,ouseja,associedadesnasquaisacidadania uma instituio em desenvolvimento criam uma imagem de uma ci-dadania ideal em relao qual o sucesso pode ser medido e em rela-

    o qual a aspirao pode ser dirigida (idem).Mas como fazer quando pessoas como Cludio Pilon se apropriam deum artefato to poderoso como a cidadania descrita por Marshall?Cludio Pilon, ao fazer uso de seu direito poltico, como legislador, ela-borou um decreto que dificilmente pode ser descrito como alavancacidad.Oprefeitoparecenosaberlerasinstruesouoplanoderea-lizao da cidadania, atualizando-a, quando o faz, no como artefato,mascomomero instrumento,ouseja,umadereoqueensinaoquereali-

    za quando acionado. Para se entender melhor esta diferena, vou reto-mar o decreto:

    Art. 1o Como ato Proftico, fica declarado Jesus Cristo como nicoSenhor e Salvador da cidade de Guajar-Mirim; I Consagrar a cidadedeGuajar-MirimaoserviodoSenhor,paraaglria,ahonra,olouvoreopoderdeJesusCristo;IIRenunciartodaalianaeobrarealizadanopassado, de prostituio, impureza, lascvia, feitiarias, inimizades,pobreza, misria, cimes, iras, discrdias, dissenses, faces, runas,

    homicdios, trficos e drogas; III Quebrar todas as maldies de Gua-jar-Mirim; IV Declarar que Guajar-Mirim recebe hoje a uno doamor, prosperidade, riqueza, alegria, paz, longanimidade, unidade,

    bno, multiplicao, frutificao e poder que emana de Jesus Cristo;V Declarar que a cidade de Guajar-Mirim pertence a Jesus Cristo; VI Revogar todas as disposies em contrrio; VII Tornar este Ato Pro-ftico irrevogvel e eterno (O Estado, 19/3/2004).

    A terminologia do decreto pentecostal: a lei descrita como ato pro-

    ftico. Seu objetivo no dividir bens ou restaurar desigualda-des, como faria a alavanca cidad ou um manifesto poltico, mas de-clarar Jesus Cristo como Senhor e Salvador da cidade. Sua vocao

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    603

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    22/31

    moral: o decreto se apresenta como um cobertor que lanado sobre acomunidade a fim de separar aqueles que praticam prostituio, impu-reza, lascvia, feitiarias, inimizades, pobreza, misria, cimes, iras, discr-

    dias, dissenses, faces, runas, homicdios, trficos e drogas e de atrair

    paraavidadacidadeaquelesquebuscam a uno do amor, prosperidade,riqueza, alegria, paz, longanimidade, unidade, bno, multiplicao, frutifi-

    cao e poder de Jesus Cristo.

    Menos que dividir ou acusar, como faria um manifesto poltico parti-drio, o decreto de Pilon se alimenta dautopia da conclamao dos cida-dos de Guajar-Mirim em torno de um pacto de civilidade.Nestepacto,olegislador nomeia aquilo que seria embrutecedor, brbaro e selvagempara a grande maioria dos seres humanos prostituio, impureza, fei-tiarias, misria, trfico , males estes que partem da ao individual cime, discrdia, lascvia, faces, runas ; mas que influenciam e de-nigremoconjuntodacidade.Aindaqueestesmalesestejamnohomemindividual, e permaneam latentes no seu interior depois do pacto, odecreto demanda que, ativamente, cada indivduo renuncie ao seuexerccio e produo sem lanar mo, no mesmo movimento, de umatrajetriaindividualdiferenciada.Nosentidoinverso,oindivduoqueadere ao pacto moral torna-se um cidado da nova cidade, ou seja, de

    uma cidade destinada prosperidade porque seus cidados tiveramumaposturaativaderennciaselvageriaeaomundobrbaro. A civi-lidade, assim, mantida no atravs da criao de uma equivalncia geral en-

    tre os cidados, como supe o pacto republicano, mas atravs da afirmao de

    uma dinmica interna capaz de produzir e sustentar suas diferenas.

    Para retomar nosso argumento, da continuidade entre desenvolvi-mentodehabilidadeeexercciodaimaginao,importantesublinharqueanfasemoralestdeacordocomolugarsocialdePilon:umapes-soa de origem humilde, com parca educao formal, socializado nomeio pentecostal10. No universo dos trabalhadores manuais, tal comoprocuramos descrever anteriormente, a manuteno do lao de confi-ana fundamental para o sucesso da empreitada. Vrios dos migran-tes trabalhadores de baixa renda que chegaram em Rondnia nos anos1970 tiveram que enfrentar, na sua adaptao ao lugar, o problema desomar tcnicas e habilidades de origem regional e cultural diferencia-das, integrando-as em diferentes atividades de cooperao. Nesta

    adaptaoparaaconsecuodeumatocooperativo,fundamentalsa-ber se o interlocutor erra por inabilidade, desateno ou sagacidade.Dificilmente um grupo de trabalho encontra a sincronia de elaborao,

    604

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    23/31

    algo que envolve imaginao, disposio, previso de atos, kinestese,sem aderir a algum pacto moral que se refira vida prtica.

    O decreto, alm disso, no nomeia substantivamente o meio para a re-

    forma ou transformao social que busca. No h qualquer meno sdesigualdades de raa, gnero, idade, riqueza, educao, poder polti-co que se quer suplantar. No h previso do alcance de nenhuma dastrs etapas da cidadania de Marshall, seja a civil, a social ou a poltica.Nesta sua indefinio, o decreto salvaguarda o valor das trajetrias in-dividuais. Diremos mais, no universo dos trabalhadores manuais deondePilonvem,emqueasoportunidadesdetrabalhovariamconstan-temente, conhecer e ser conhecido fundamental. Neste sentido, pre-servar uma identidade diferenciada um modo de ganhar visibilidadeem uma rede de conhecidos com habilidades similares.

    OdecretoescritoporPilonnoatualiza,comoumaalavanca,acidada-nia que seria potencialmente aguardada como ideal dos cidados ron-donenses. Nas mos do prefeito, o que seria um artefato decidadaniasetorna um instrumento desencarnado que ele preenche segundo suaimaginao. Pilon usa seu direito como homem poltico para realizaruma lei que o homlogo de um manifesto pentecostal. Ou seja, ele ig-nora o conhecimento formal sobre as normas de desenvolvimento eatualizao da Repblica, mas preserva o que aprendeu no seu grupodesocializaocomoomaisimportante:opactomoraleasalvaguardadas diferenas individuais11.

    Ainda que o decreto de Pilon no se tenha efetivado por ferir a Consti-tuio pois exclui da cidade as pessoas com outros credos que no odele esperamos que este, ao menos, tenha permitido que esclarecs-semos uma certa falcia republicana. Na falcia republicana su-

    pe-se, como fez Marshall, que existe uma continuidade entre desen-volvimento histrico e lgica sociolgica, como se o andar do tempocumprisse uma misso de diferenciao e de formao de um mundoem camadas. Mais que isto, neste encaminhamento de idias espera-seque certas reas geogrficas do pas, como Rondnia, estejam aguar-dando seu momento de subir na carruagem da histria,quando, enfim,pessoas como Pilon no existam ou sejam contidas antes de cometeratos absurdos.

    Neste artigo, argumento que talvez Pilon veja mais claramente a mo-dernidadequens,poispercebequeoseudireitopolticonovemcomuma bula sobre como deve ser usado, que o modo mais plausvel de

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    605

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    24/31

    us-loenvolveoexercciodaimaginao,algoquenosupeumapro-jeo sobre a realidade de uma forma anteriormente projetada, mas en-volve uma forma que se revela (seja no plano, na estratgia, na repre-sentao)eganhatermomedidaqueaatividadedaimaginaosede-

    senvolve. Neste desdobramento da imaginao, a habilidade encor-porada guia a ao na mesma medida em que ensina uma certa quali-dade de ateno.

    CONSIDERAES FINAIS

    Ao longo do artigo, argumentei que decretos como o do prefeito Clu-dio Pilon escandalizam especialmente porque tendemos a perceber o

    movimento de ampliao e de maior acessibilidade do Estado e seusinstrumentos em uma Repblica, como se isto fosse resultado de umdesdobramento lgico e coerente da histria. Mais e mais pessoasusando a alavanca da cidadania implicaria em um uso mais cuida-doso e diferenciado de suas potencialidades, constituindo, ao fim deum processo com muitas pontas e rumando na mesma direo, umaRepblica mais abrangente, consistente e ntegra. Este pressuposto fa-laciosopermanece,mesmocomumatradiohistoriogrficaforteafir-mando o contrrio (cf. Carvalho, 1987).

    Procurei destacar, ao longo do artigo, que o decreto de Pilon no umresqucio dos velhos tempos nem prova de uma posio residual eatrasada que nos liga a uma pr-modernidade que se perde no passa-do, como gostaria o seu opositor local, ndio Tabajara. Sugeri, pelo con-trrio,queodecretofazpartedeumusocontemporneoedesencarna-do dos instrumentos da Repblica, por sujeitos capazes de habitar omundo segundo habilidades determinadas. Algumas outras situaesajudaro a compreender melhor a pretenso de generalidade do argu-mento.

    No tenho muitas informaes, mas sintomtico que, conforme le-vantamos no site CLIC-RO (http://www.portal364.com/m5.asp?cod_noticia=7549&cod_pagina=962), ainda em 2005, o vereador de PortoVelho, Jos Wildes (Partido dos Trabalhadores PT), props na Cma-ra de Porto Velho um ato proftico declarando Jesus Cristo como ni-co senhor e salvador da cidade. Os companheiro e vereadores evang-

    licos, Valter Arajo (Partido Progressista PP) e Ted Wilson (Partidoda Frente Liberal PFL), apoiaram a proposta. Parece, portanto, que oato de Pilon se multiplicou. Sero estes dois casos indicaes suficien-

    606

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    25/31

    tes de que o problema da vida poltica regional de Rondnia, onde aRepblica no estaria plenamente constituda?

    A resposta ser negativa se levarmos em conta as situaes que encon-tramos no Rio de Janeiro e Volta Redonda. No incio do ano 2000, al-guns jornais em circulao no Rio de Janeiro noticiaram amplamente ainaugurao de um monumento em homenagem cultura negra. Aobra dividiu a cidade. Evanglicos e catlicos colocaram-se contra adeciso do prefeito, Paulo Conde, de colocar a escultura Exu dos Ven-tos, do artista plstico baiano Mrio Cravo, na confluncia da LinhaAmarela e Linha Vermelha. Declaraes do arcebispo do Rio de Janei-ro, Dom Eugnio Salles, desaprovando a escultura foram publicadas

    por diversos jornais12. O protesto dos evanglicos, contudo, foi maiscontundente, pois para eles este monumento seria responsvel portoda sorte de desgraa que viria a acontecer na encruzilhada. Para di-minuir os efeitos negativos, os evanglicos realizaram protestos comrituais de exorcismo no entorno do monumento. Alguns polticosevanglicos, vereadores e deputados, propuseram projetos contra aempresaqueadministravaaLinhaAmarela,casoelainsistissenacolo-cao da obra. Na imaginao destes evanglicos, os argumentos doartista de que sua escultura era puramente artstica ou os do prefeito,que assim queria homenagear os descendentes de cultura negra e noreverenciar uma entidade religiosa, no faziam nem fazem sentido al-gum.

    Recentemente tive notcia de um outro protesto de evanglicos, destavez em Volta Redonda, quando uma escultura em homenagem a Zum-bi dos Palmares foi confundida com a de Exu dos Ventos por um pas-tor missionrio. Entrevistado sobre o problema, o pastor Wilson dosAnjos, Presidente do Conselho de Pastores de Volta Redonda, teriaafirmado, segundo o jornal local, Dirio de Volta (site www.diarioonline.com.br), que no era correto colocar um monumento de uma religioespecficaemumespaopblico.Ecompletavadizendo:umaques-to de espiritualidade. Quando, em um primeiro momento, Wilsondefende a laicidade do espao pblico, parece estar em sintonia comuma imaginao republicana, compartilhando seus pressupostos. Masno momento seguinte, ao justificar sua posio pela espiritualidade,

    demonstra estar em sintonia com uma imaginao no compartilhadapelo jornalista que coloca a palavra entre aspas , tampouco por pol-ticos opositores locais.

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    607

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    26/31

    O que temos nestes vrios exemplos so embates similares ao de Pilon,que envolvem fronteiras de imaginao diferenciadas e que deman-dam um improviso na interao. Algumas pessoas redigem decretos,outras contestam as leis, umas homenageiam uma etnia com um sm-

    bolo religioso, outras se opem ao smbolo, umas se candidatam a ve-reador, outras so objeto de investigao pblica. Todas estas, e muitasoutras, so aes possveis dentro do escopo de possibilidades de umaRepblica. O que reprovvel nestas aes ou tentativas de agncia que, estabelecida a legitimidade do sujeito poltico em prop-la, sejacontestada sua atuao antes mesmo do ato, porque sua imaginaoseria mais polimorfa que a admitida pela Repblica.

    Talvez a cultura poltica estabelecida no Brasil continue a identificar a

    Repblica como uma donzela zelosa (Carvalho, 2005). Espera-se, con-tudo, que nestes tempos de uma modernidade marcada pelo fluxo,pela multiplicidade de atividades, pela profuso de cdigos dispon-veis, esta mesma Repblica se submeta aos experimentos um poucosem jeito que cidados implementam a partir dos instrumentos queoferece. At onde tenho notcia, os atores polticos dos exemplos ante-rioressempreseaproximaramdaRepblicacomumaposturaproposi-tiva, no para contest-la13, mas para us-la. No entanto, o conheci-

    mento das possibilidades e da lgica dos instrumentos de cidadaniaqueconseguemacessarsempreumtantovagoeindeterminado.Parair um pouco alm desta nebulosidade, eles tm que utilizar os instru-mentose,aofazeristo,modificam,reduzem,estendemeatmesmore-criam a si mesmos e a prpria Repblica.

    (Recebido para publicao em novembro de 2005)(Verso definitiva em setembro de 2006)

    608

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    27/31

    NOTAS

    1. Sigo aqui a definio de crena do dicionrio Aurlio (Ferreira, 1986), que diz o se-guinte:[dolat.medievalcredentia]s.f.1.atoouefeitodecrer.2.freligiosa.3.aquilo

    que se cr, que objeto de crena. 4. convico ntima. 5.opinio adotada com f econvico: crenas polticas. 6. Filos. Forma de assentimento que se d s verdadesde f, que objetivamente insuficiente, embora subjetivamente se imponha comgrande evidncia.

    2. Esta posio talvez se reproduza em todas as religies ticas. Observamos isto naproposta catlica da Democracia Crist e mesmo na Teologia da Libertao, ao pro-curar educar os seus lderes, propondo que compartilhem uma nova tica.

    3. Ao estabelecer esta clara correlao entre imaginrio e encorporao (embodiment),Ingold sugere que mesmo o ldico tem seu reconhecimento estabelecido por certosperceptos formados na e com a experincia localizada. No limite, a bruxa vista pelocampons escocs diferentedaquela vislumbrada pelo portugus residente em Sal-vador. O imaginado leva em conta a capacidade de ateno e de relao de mundoque aquela pessoa desenvolveu ao longo de sua jornada de vida. Mais especifica-mente,enquantooutrosautoressublinhamoaspectoideolgicoourepresentacionaldeste processo, Ingold acentua o aspecto de conhecimento encorporado.

    4. Em OQueijoeosVermes ,CarloGinzburg(1987)exploraasidiossincrasiasdeumacos-mogonia exuberante e prolfera criada por um herege do sculo XVI, Menocchio. Oestudo de caso parece similar com o trabalhado aqui. A aproximao que Ginzburgfaz ao imaginrio, porm, envolve a reconstruo da articulao entre subjetividade

    domoleiro,asfontespopulareseeruditasdaculturadapocaeosregistrosdaInqui-sio. Minha perspectiva analtica outra, basicamente porque no reconheo o de-creto como uma expresso da singularidade subjetiva de Cludio Pilon. Como ve-remos adiante, o decreto segue de um modo muito preciso os pressupostos de umacosmologia pentecostal e um campo de habilidades determinado. Por isso, dareipouca ateno reconstruo da trajetria pessoal de Pilon, privilegiando a recons-truo de certas tendncias coletivas no contexto e sua articulao em feixe.

    5. O Pronex/CNPq Movimentos Religiosos no Mundo Contemporneo financiou asduas viagens e estadias.

    6. interessante notar que, ainda segundo o censo de 2000, os municpios de Guaja-r-MirimePortoVelho,exatamenteosmunicpiosmaisantigosdaregio,eramrela-tivamente menos evanglicos (constituam l8,83% e 23,34% da populao de cadaum, respectivamente).

    7. Havia um incentivo de formao de famlias grandes entre os pequenos agricultores.Nos critrios de distribuio de terras pelo INCRA, um deles era o homem casado,com 5 a 10 filhos. Implicitamente, o programa de Reforma Agrria dos anos 1970 e1980 incentivava o casamento e a formao de famlias numerosas.

    8. Em abril de 2004, foram mortos 29 garimpeiros que trabalhavam de maneira irregu-lar na Reserva Roosevelt por golpes de bordunas, flechadas e tiros. Em 9 de outubro

    do mesmo ano, Apoema Meirelles, o sertanista que fez o primeiro contato com os n-dios cinta larga nos anos 1960, e que era contrrio explorao de diamantes na Re-serva Roosevelt, foi morto com dois tiros ao sair de um caixa eletrnico em Porto Ve-

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    609

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    28/31

    lho, por um adolescente de classe mdia. Os dois casos so expresses do alto ndicede criminalidade e violncia da regio (O Globo, 11/10/2004:5).

    9. A classe mdia e mdia alta possui, em geral, stios nas cercanias da cidade, onde fa-miliares e amigos se renem em torno da piscina e do aude. Menos acessveis, estasfamlias procuram no se misturar com os inmeros visitantes que invadem o par-que no fim de semana.

    10. Sintoma desta posio marginal de Pilon na arena poltica local foi sua cassao emmarode2005,apsreeleio.Quemtomouoassentodaprefeitura,naseqncia,foiDed de Melo, segundo colocado no pleito, e no a vice e o presidente da Cmara devereadores, como rege a legislao. Os dois ltimos eram aliados polticos de Pilon.A cassao se baseou em prtica de abuso econmico, pois Pilon incluiu na lista defuncionrios pblicos da prefeitura um advogado e um radialista no concursados.Os dois trabalharam na campanha que reelegeu o prefeito. Esta prtica irregularmas rotineira na poltica brasileira, pois significa uma retribuio de favor e de-

    monstrao de prestgio (Bezerra, 1999). Enquanto este crime era exemplarmentedisciplinado em Guajar-Mirim, a imprensa nacional divulgava as fitas que o gover-nador de Rondnia, Ivo Cassol (Partido da Social Democracia Brasileira PSDB),gravou com imagens dos deputados estaduais pedindo mesada em dinheiro e fa-vores ao governador (maio de 2005).

    11. Vale lembrar, novamente, que o Estado de Rondnia aquele com maior porcenta-gemdeevanglicosemsuapopulao,com24%,sendoqueamaioriadestesevang-licos pentecostal, das denominaes Assemblia de Deus e Igreja Congregacional(Censo 2000).

    12. Em sua monografia de concluso de curso de Cincias Sociais da UERJ, intitulada

    Exu dos Ventos: religio afro-brasileira na mdia, Maria Clara F. Baltar (2004) ma-peia este debate a partir de notcias doJornal do Brasil,O Globo,ExtraeO Dia.

    13. So vrias as indicaes de que o temor do avano do fundamentalismo no interiordas vrias tendncias evanglicas no Brasil tem pouco fundamento. Mais especifica-mente, no se tem indcio de qualquer tendncia da proposta de formao de umEstado Religioso por parte deste segmento (cf. Burity e Machado, 2006).

    610

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    29/31

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BACHELARD, Gaston. (2000),A Potica do Espao. So Paulo. Martins Fontes.

    . (2001),O Ar e os Sonhos. So Paulo, Martins Fontes.

    BALTAR, Maria Clara. (2004), Exu dos Ventos: Religio Afro-Brasileira na Mdia. Mono-grafia, Bacharelado em Cincias Sociais, UERJ.

    BEZERRA, Marcos Otvio. (1999),Em Nome das Bases. Poltica, Favor e Dependncia Pes-soal. Rio de Janeiro, Relume-Dumar.

    BIRMAN, Patrcia. (2003), Imagens Religiosas e Projetos para Futuro, in P. Birman(org.), Religio e Espao Pblico. So Paulo, Attar Editorial.

    eLEITE,MrciaPereira.(2004),OqueAconteceucomoAntigoMaiorPasCatli-co do Mundo?,inL. Bethell (org.),Brasil Fardo do Passado, Promessa do Futuro. Riode Janeiro, Civilizao Brasileira.

    BURITY, Joanildo e MACHADO, Maria das Dores C. (2006), Evanglicos, Poltica e Poder.Recife, Fundao Jos Bonifcio.

    CARVALHO, Jos Murilo. (1987), Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a Repblica que NoFoi. So Paulo, Companhia das Letras.

    . (2005),A Formao das Almas O Imaginrio da Repblica no Brasil. So Paulo, Com-panhia das Letras.

    CUNHA,ManuelaC.C.eALMEIDA,MauroB.(orgs.).(2002), Enciclopdia da Floresta OAlto Juru: Prticas e Conhecimentos das Populaes.SoPaulo,CompanhiadasLetras.

    FERREIRA,AurlioBuarquedeHolanda.(1986), Novo Dicionrio Aurlio de LnguaPortu-guesa(2a ed.). Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

    FRESTON, Paul. (1993), Protestantes e Poltica no Brasil: Da Constituinte ao Impeach-ment. Tese de Doutorado em Sociologia, Campinas, IFCH/Unicamp.

    GINZBURG, Carlo. (1987),O Queijo e os Vermes O Cotidiano e as Idias de um Moleiro Per-seguido pela Inquisio. So Paulo, Companhia das Letras.

    GIUMBELLI, Emerson. (2002),O Fim da Religio. So Paulo, Attar Editorial.

    HALLER, A. O., TORRECILHA, R. S., HALLER M. C. P. e TOURINHO, M. M. (2000), Os

    Nveis de Desenvolvimento da Populao da Amaznia Brasileira 1970 e 1980.Histria, Cincias, Sade Manguinhos, vol. VI, suplemento especial, pp. 941-974.

    HARRIS, Mark. (2004), Two Expositions on the Work of the Imagination. Comunicaoapresentadano12o FrumdePesquisa,naXXIVReuniodaAssociaoBrasileiradeAntropologia ABA, Recife, 12-18 de junho. Manuscrito.

    INGOLD, Tim. (2000),The Perception of Environment. London, Routledge.

    KEMPER, Lourdes. (2004),Cacoal: Sua Histria, sua Gente. Goinia, Grafopel.

    MACHADO, Maria das Dores Campos. (2003), Existe um Estilo Evanglico de FazerPoltica?,in P. Birman (org.), Religio e Espao Pblico. So Paulo, Attar Editorial.

    MAFRA, Clara. (2001),Os Evanglicos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

    . (2002),Na Posse da Palavra. Lisboa, Imprensa de Cincias Sociais.

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica

    611

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    30/31

    MARIZ, Ceclia. (1995), El Debate en torno del Pentecostalismo Autnomo en Brasil.Sociedad y Religin, vol.13, pp. 21-32.

    . (1999), ATeologia da Batalha Espiritual: Uma Reviso da Bibliografia. BIB Re-vista Brasileira de Informao Bibliogrfica em Cincias Sociais, no 47, 1o semestre, pp.

    5-94.MARSHALL,T.H.(1967), Cidadania, Classe Social e Status.RiodeJaneiro,JorgeZaharEd.

    OLIVEIRA,OvdioAmliode.(2000), Assim Rondnia .PortoVelho,DinmicaEditora.

    PADOVAN, Adenilson. (2004), Religio e Cotidiano na Cidade de Alto Paraso (Rondnia) .So Paulo, Editora Annablume.

    ORO, Ari. (2003), A Poltica da Igreja Universal e seus Reflexos nos Campos Religioso ePoltico Brasileiros.Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol. 18, no 53, pp. 53-69.

    VELHO, Otvio. (1979),Capitalismo Autoritrio e Campesinato (Um Estudo Comparativo apartir da Fronteira em Movimento). So Paulo, Difel/Difuso Ed.

    ABSTRACTJesus Christ, the Towns Lord and Savior: Pentecostal Imagination andPolitical Utopia

    The author discusses a municipal ordinance signed by the obscure mayor of atown in Rondnia State, Brazil, whereby he declares Jesus Christ the townsonlyLordandSavior,inordertoexplainsomeofthetensionsexperiencedbyacountry with a Republican political system undergoing the expansion of itsdemocratic life. The argument is that the mayor, like more and morecontemporary citizens, accesses the foundations for exercising the Republicwithout necessarily knowing their internal logical or historical development.On the other hand, neophytes grasp the Republican armamentarium with a

    vague and indeterminate meaning that is filled according to an imaginationshaped byembodiedskills.

    Key words:Pentecostal imagination; political utopia; formation of skills

    612

    Clara Mafra

  • 7/25/2019 Clara Mafra-Dados-Jesus Cristo Senhor e Salvador de Cidade-Imaginario Crente e Utopia Poltica

    31/31

    RSUMJsus Christ Seigneur et Sauveur de la Ville Imaginaire Croyant etUtopie Politique

    Danscetarticle,onretrouveundcretprsentparunmaireobscurd'unevillede Rondnia (Brsil) qui dclare Jsus Christ comme seul Seigneur et Sauveurde la ville, pour expliquer quelques tensions vcues dans un pays rpublicainquivitunlargissementdesaviedmocratique.Onprtendquelemaire,ainsique d'autres concitoyens, lorsqu'ils se servent des instruments d'exercice dupouvoir rpublicain, n'ont pas connaissance de la logique interne ni dudveloppement historique de ces instruments. D'autre part, les nophytess'approprient des instruments rpublicains anims par des sentiments flous etindtermins, qui se traduisent par une imagination travaille selon desaptitudesinfuses.

    Mots-cl: imaginaire croyant; utopie politique; formation d'aptitudes

    Jesus Cristo Senhor e Salvador da Cidade Imaginrio Crente e Utopia Poltica