cisma 5: o avesso do hábito

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cisma

número 5:o avesso do hábito

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cismaISSN 2238-7013

idealizadores da cismaSofia NestrovskiTiago Bentivoglio

2014, ano III, número 5 reedição 2016

edição e revisãoAna Luísa RodriguesAntonio CastroBruna ThalenbergCaroline MicaeliaDanilo HorãIsabel FerreiraIsabela BenassiLucas Alves FerreiraMariana HolmsMilena VaralloPaulo Martins FilhoPedro KöberleSofia Nestrovski colaboradoresBernardo Dias CeccantiniGabriel ProvinzanoGuilherme TauilHenrique AmaralIvan Luis LopesFelipe Benjamin projeto gráfico e diagramaçãoLucas Blat

ilustração da capaEstela Miazzi

ilustraçõesDanilo Alves

fotografiasRenata ZNM Beatriz Morbach

notasAgradecemos a Reuben da Cunha Rocha pela permissão do uso de imagens de seu livro. Até o momento da publicação, não conseguimos encontrar os detentores dos direitos de publicação dos poemas de Chafic Maluf. Se alguém possuir informações a este respeito, pedimos gentilmente que nos informe.

Governo do Estado, Secretaria da Cultura, apresentam a revista cisma

[email protected]/revistacismawww.revistacisma.comwww.revistas.fflch.usp.br/cisma

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editorial

Alcançamos o nosso quinto número e com ele prosseguimos com a tentativa de fazer crítica literária e tradução. Aos poucos a identidade da cisma amadurece e a dinâmica de funcionamen-to da equipe, que é aberta e rotativa, rascunha suas pretensões.

O primeiro tema, “Tudo já foi dito”, era a inauguração de um novo espaço para o pensamento. Não tínhamos tão claro qual seria o seu caráter e como pretendíamos torná-lo vivo, mas havia o ímpeto, e sem ele, nada que construímos teria se iniciado. Com o andamento dos números seguintes, nos pegamos em uma bus-ca por um lugar não apenas novo, mas também diverso. Assim, o tema da terceira revista, “Quem de dentro de si não sai”, se cons-tituiu na tomada de consciência de que é preciso se desprender dos ambientes (institucionais ou não) a que estamos habituados.

Neste número, conseguimos ultrapassar algumas des-sas barreiras. Nunca antes havíamos recebido tantos textos, sendo a maioria de fora do curso de Letras e também fora da USP. Devido a isso, tivemos mais escolhas a fazer, e bons tex-tos foram deixados de fora. Nossa pretensão foi, então, nos de-bruçar sobre o avesso, abrir descampados para os autores que se arriscam, justamente porque sabemos o quanto falta espaço para estudar o que foge ao hábito, seja dentro ou fora da acade-mia. Sabemos que a cisma também não está livre dessa inércia acadêmica. Ainda falta coragem para ir além de alguns mode-los que o gênero da crítica literária consolidou, principalmen-te em São Paulo. Como disse Sérgio Vaz, na entrevista lança-da nesta edição, “a academia deveria ser mais generosa”, é essa nossa grande tentativa.

Na busca pelo novo, consolidamos pela primeira vez em nossa história ainda recente, uma edição com obras traduzidas do árabe, russo, japonês e latim – o espaço aqui é aberto a todas as línguas e incentiva o diálogo entre as diversas áreas da pes-quisa acadêmica. O poema de abertura deste número, “Chik, o adivinho de Abkar”, de Chafic Maluf, inicia uma trilha que se

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finalizará em “Mamãe foi não sei aonde”, de Valentin Raspútin: trilha de sumiços e de metades que, mesmo em fragmentos, consolidam sua totalidade. Ao longo da revista, ainda apre-sentamos uma tradução do soneto 19 de Shakespeare, em que a imagética clássica do período elisabetano é reinterpretada ao rés-do-chão da poesia brasileira. Procedimentos similares ocor-rem em Odisseia da tradução, que a define como um gênero os-cilante entre a crítica e a criação.

Apesar do canônico ter sido um elemento recorrente nos textos recebidos, as suas problemáticas enveredaram para ou-tros caminhos. Nos chamou a atenção a frequente figura de Penélope – a mesma da Odisseia – e sua ligação dialógica entre clássico e contemporâneo. Em Odisseia da espera, o aguardo de Penélope é revestido sob os poemas de Ana Martins Marques. Já suficientemente avesso foi Ovídio, em “Carta de Penélope a Ulisses”, primeira de suas Heroides, que inauguram a poe-sia epistolar e releem os mitos inteiramente sob a perspectiva das mulheres.

A fim de atar as pontas da nossa intenção inicial, integra-mos neste número uma resenha de As aventuras de cavaloDADA em + realidades q canais de TV, do poeta maranhense Reuben da Cunha Rocha, publicado em 2013, que procura se desprender da normatividade literária perante esses tempos de crise genera-lizada, percursos semelhantes aos do poeta Sérgio Vaz. Aqui a literatura marginalizada e periférica resiste aos parâmetros da academia, mostrando sua autoridade diante das suas necessi-dades específicas, o que pode ser um ponto de partida para a criação de seu próprio cânone. Um novo ciclo literário se inicia: talvez as hierarquias tenham se subvertido, talvez o avesso não seja mais o avesso. Mas isso já é tema pra outra discussão.

A todos, boa leitura, boa reflexão, boa ação.

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Chik, o adivinho de Abkar de Chafic Maluf, traduzido por Beatriz Negreiros

O Realismo íntimo de Tranströmer Enaiê Mariê Azambuja

Passos de uma outra dança: dinâmicas e enfrentamentosCaroline Micaelia

Penélope, a Odisseia da espera Gianni Paula de Mello

Primeira Heroide: de Penélope a Ulisses de Ovídio, traduzido por Henrique Barbosa

Não perder para a chuvade Kenji Miyazawa, traduzido por Jony Pupo

Louvor e crise da transitoriedade — Sobre a Montanha mágica de Thomas Mann, Felipe Catalani

A Odisseia da tradução: entre-lugaresGabriel Alonso Guimarães

soneto 19, de William Shakespeare, traduzido por Danilo Augusto de Athayde Fraga

"A gente quer que a metáfora se foda"Entrevista com Sérgio Vaz

Mamãe foi não sei aonde, de Valentin Raspútin, traduzido por Henrique Gomes Lucas Santos

colaboradores

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tradução

“Chik, o adivinho de Abkar”, de Chafic Maluf 1Beatriz Negreiros Gemignani

Abkar, de Chafic Maluf (1905-1976), é uma obra poética das mais representativas da literatura árabe produzida pelos imi-grantes árabes, em sua maioria sírios e libaneses, que vieram à América desde finais do século xix. Produzida substancial-mente nos Estados Unidos e no Brasil, essa literatura foi logo reconhecida pelos árabes como parte da literatura moderna produzida fora do mundo árabe, e, por isso, denominada adab almahjar, “a literatura da imigração”. Abkar é fruto dos poetas do Alandalus Aljadīd, “o Novo Alandalus”, nome que singula-rizou os poetas que atuaram no Brasil, especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro, os quais viam na experiência inovado-ra de seus versos uma retomada do esplendor da poesia árabe oriental do antigo Alandalus da península Ibérica. A obra foi pu-blicada em São Paulo em 1936, com seis cantos compostos por diversa quantidade de poemas e um prefácio abrangente que re-passa os mitos árabes pré-islâmicos, inseridos na mitologia uni-versal; teve, em 1949, uma segunda edição composta por doze cantos e com o estudo do prefácio mais aprimorado. Até onde sabemos, o livro foi traduzido para o francês, espanhol e portu-guês – sendo esta última tradução, feita no Brasil, uma adapta-

1 Este artigo é um desdobramento dos estudos de poesia e tradução do Grupo de Tradução de Poesia Árabe Contemporânea, em atividade na Universidade de São Paulo desde maio de 2012, sob coordenação do Prof. Dr. Michel Sleiman.

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ção livre de Judas Isgorogota com base numa declarada tradu-ção literal de Mussa Kuraiem.

Chafic Maluf resgata os mitos pré-islâmicos do mundo in-visível nessa obra em que o poeta viaja a Abkar, denominação pré-islâmica do mundo subterrâneo, terra obscura onde vivem os gênios, em árabe jinn, e outras criaturas, entidades incorpó-reas dotadas de poder mágico, às quais se atribuía todo tipo de intervenção benéfica ou maléfica na vida humana. Nessa fabu-lação do mundo invisível, os poetas são os senhores de Abkar: seus espíritos são inspirados pelos gênios, criaturas fantásticas capazes de levar o homem a uma refinada percepção da realida-de, que, ao final, propicia a poesia. O oitavo canto de Abkar, inti-tulado “A sabedoria dos adivinhos”, que aparece em sua segun-da edição de 1949, é composto por quatro poemas que tratam de duas famosas figuras mitológicas pré-islâmicas, os adivinhos Chik e Satih, os quais, segundo a tradição, nasceram no mes-mo dia. O primeiro é constituído de uma só metade de corpo, daí seu nome chik, que em árabe significa “metade”, tem um só olho, uma só perna, uma só mão; Satih, por outro lado, é descri-to como uma carne sem ossos. A título de reinserção da poesia de Chafic Maluf no cenário da produção poética em solo brasi-leiro, apresentamos a tradução dos dois poemas do mencionado canto dedicados ao adivinho Chik. Os poemas são escritos em árabe padrão e se caracterizam pelo uso do verso tradicional, composto de dois hemistíquios, com rima e métrica regulares.

MALŪF, CHAFĪQ. Abqar. 2.ed. São Paulo: Dār at.-T. abāca wa n-Našr al-cArabiyya, 1949. pp. 232-244.

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O adivinho Chik

Chik, o adivinho, é dotado de um aspectoQue o aprisiona, ele só, como quer o Criador Deus o cortou de cima a baixoE lhe concedeu viver na continuidade do corpoA Ele louva por lhe dar este jeito:Metade de rosto, uma só perna, uma só mão.A eternidade não lhe é senão frívola Os séculos não lhe são senão desperdícioQue em sua gruta se dissipamE se apagam na escuridão dos tempos....Ó mais sábio dos adivinhos no mundoQue nele instalou firmemente o medoMeu adivinho de Abkar, dá-me sabedoriaPara eu dispor nas demandas do amanhãDaqui a enviarei a todos os mortaisDisposta nas nuvens da abóboda celeste.Que a onda da predestinação me engula ouQue eu a escreva com fogo sobre a espuma.

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O discurso do adivinho Chik

Disse Chik: O senhor dos mortaisAo ver as tribos desapareceremNão me dotou de riquezasApenas de uma perna e uma mão...Ando aos saltos pelo chãoDeus me mostra o caminho corretoSe quiser subir ou descerSubo e desço a cada geração

O uno eterno não me prejudicou Ao me conceder só metade de corpoContinua a me guiar com Sua mãoDe duas não tenho necessidade Privou-me dos membros corrompidosE prosperaram os demais.Serão vantajosas duas mãos se umaDestrói o que a outra constrói?

Se não estiverem os dois olhos cheiosAmbos com uma sabedoria aberta

Mas ah! Um olho ilumina o outroSe nenhum estiver fechado

Falo com metade de língua e boca E nada que escapa me prejudica

Sei de minha longa experiência que nãoChego à sabedoria senão pelo silêncio

Uma parte do coração senteE a outra é como se fosse pedra

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Creio que a metade de fogoEra coração metade preto....Chik exaltou o Criador, e disse:Ó poeta, não tenha piedade de mim!Louvemos a Deus, o símbolo da perfeiçãoPois sem a imperfeição eu não seria perfeito.

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“[...] Permaneci em uma sala que continha todos os instantes –Um museu de borboletas.” 1

Tranströmer, Hemligheter på vägen (1958)

“What if reality (as perceived) were simply an extension of the self? Wouldn’t that color the way each individual experiences the world?”Mazzucchelli, Asterios Polyp (2011)

Em 1969, Tomas Tranströmer escreveu a respeito da própria poesia, de maneira a criar uma ética do fazer poético:

Meus poemas são locais de encontro. Sua intenção é estabele-cer uma conexão súbita entre os aspectos da realidade que as linguagens e culturas convencionais tendem a manter separa-das. Detalhes grandes e pequenos da paisagem se encontram, pessoas e culturas divididas juntam-se em uma obra de arte, a Natureza encontra a Indústria, e assim por diante. O que, à primeira vista, parece um confronto, revela uma conexão. Linguagens e culturas convencionais são necessárias quando se trata de lidar com o mundo objetivo, a fim de alcançar me-tas concretas e claramente definidas. Mas sabemos, por nossa própria experiência que aquelas são insuficientes nos momentos mais importantes da vida. Se nós permitimos que nos dominem

O Realismo íntimo de TranströmerEnaiê Mairê Azambuja

1 [Tradução minha] (...) Jag stod i ett rum som rymde alla ögonblick - / ett fjärilsmuseum.

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totalmente, estamos no caminho para o rompimento dos víncu-los e para a destruição. Considero a poesia um contra-ataque a tal desenvolvimento. Poemas são exercícios de meditação ativa, eles querem nos acordar, não nos pôr para dormir.2

A ética em questão é verificada na poesia de Tranströmer atra-vés de sua dicção e temática, bem como preocupações sociais, políticas e culturais que concernem à vida do poeta. Porém, tal ética vai além do universo social e cultural do autor. Ela abrange igualmente os leitores, que acabam por complementar a liber-dade vital da poesia.

Assim como se depreende que a poesia contemporânea oci-dental possa ser relacionada a expressões artísticas anteriores, constata-se que a poesia de Tranströmer tem elementos prove-nientes de movimentos como o Modernismo, o Expressionismo e o Surrealismo. Porém, essas relações são insuficientes para incluir o poeta sueco como um representante desses movimen-tos. Ao afirmar que seus poemas são “locais de encontro”, en-tendemos que a poesia de Tranströmer se caracteriza, principal-mente, pela associação entre o que é familiar e o que é estranho. Assim, há um elemento principal que identifica a poesia de Tranströmer aos movimentos artísticos supracitados e igual-mente os diferencia: uma imagística vivaz e cinemática.3

O poeta irlandês Seamus Heaney, que recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 1995, afirmou que “Tomas Tranströmer’s poetry permits us to be happily certain of our own uncertainties”.4 Heaney se refere ao conjunto de imagens contrastantes e/ou similares que tornam a poesia de Tranströmer o epicentro de uma epifania. Essas imagens transitam por entre espaços apa-rentemente contíguos de realidade: entre as responsabilidades do mundo social (ativo) e o convite a um mundo de realidade possivelmente metafísica (espiritual). Uma das características da poesia modernista europeia, a possibilidade da experiência espiritual sem qualquer doutrina religiosa, é uma das principais preocupações da poesia tranströmeriana. A exemplo disso, te-

2 [Tradução minha] Mina dikter är mötesplatser. De vill etablera en plötslig förbindelse mellan delar av verkligheten som de konventionella språken och synsätten brukar hålla isär. Små och stora detaljer i landskapet möts, skilda kulturer och människor strömmar samman i ett konstverk, naturen möter industrin osv. Det som ser ut som en konfrontation avslöjar ett samband. De konventionella språken och synsätten är nödvändiga när det gäller att handskas med världen, att nå avgränsade, konkreta mål. De konventionella språken och synsätten är nödvändiga när det gäller att handskas med världen, att nå avgränsade, konkreta mål. Men i de viktigaste ögonblicken i livet har vi ofta upplevt att de inte håller. Om de får dominera oss helt leder vägen mot kontaktlöshet och förstörelse. Poesin ser jag bl. a. som ett motdrag mot en sån utveckling. Dikterna är aktiva meditationer som inte vill söva utan väcka. (KARLSTRÖM, 1990, P. 7) 3 Por cinemática, entende-se a ação e a repercussão imagística da poesia, que abrange imagem e movimento.

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mos as estrofes do poema “Lamento”, de 1962, com suas repeti-ções gradativas:

He put the pen down. It lies there without moving.It lies there without moving in empty space.He put the pen down.

So much that can neither be written nor kept inside!His body is stiffened by something happening far awayThough the curious overnight bag beats like a heart.

Outside, the late spring.From the foliage a whistling—people or birds?And the cherry trees in bloom pat the heavytrucks on the way home.]

Weeks go by.Slowly night comes.Moths settle down on the pane:Small pale telegrams from the world.5 (Tradução de Robert Bly, 2001, Grifos meus).

Em “Lamento”, a realidade pessoal e material da primeira es-trofe, descrita por momentos bem definidos, é substituída, na última estrofe, pela realidade subjetiva do significado, conduzi-da por uma continuidade temporal.

A pluralização da realidade, alcançada por Tranströmer através de sua imagística, relaciona-se ao comentário do tra-dutor e poeta norte-americano Robert Bly, quando afirma no prefácio ao livro The Half-Finished Heaven, que as imagens em cada poema “come from widely separated sources in the psyche” (2001, p. 9).6 A poesia de Tranströmer envolve uma multiplici-dade de atos reconhecíveis da consciência, abrangendo tanto a percepção quanto a memória, tanto o vislumbre de um instan-

4 “A poesia de Tomas Tranströmer nos permite estar felizmente certos de nossas próprias incertezas.” (Tradução livre). 5 Todos os poemas em inglês citados nesta pesquisa foram traduzidos por Robert Bly.

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te como a aspiração à duração. Paralelamente a essas reflexões, Rainer Maria Rilke escreveu para seu tradutor polonês, Witold von Hulewicz, afirmando que “nós [poetas] somos as abelhas do invisível” (conferir a tradução feita em 2001 por Robert Bly do livro de Tranströmer The Half-Finished Heaven, p. 11). Sobre essa afirmação, Robert Bly comenta (Ibid., p. 11), “making honey from the invisible suggests that the artist remains close to his own earthly history, but moves as well toward the spiritual and the invisible”.7 Assim, o poeta apreende múltiplas realidades a partir do fazer poético. Um exemplo de ampliação da realidade na poesia de Tranströmer é seu poema em prosa “At Funchal” (Ibid., p. 64), em que as barreiras entre o mundo exterior banal e um submun-do misterioso (o mundo interior) são rompidas pela obra de arte; o mundo exterior encontra ressonância em outra dimensão de realidade, uma realidade íntima:

We walk in swirls of human beings, we are cuffed around kindly, among soft tyrannies, everyone chatters excitedly in the foreign tongue. "No man is an island." We gain strength from them, but also from ourselves. From what is inside that the other person can’t see. That which can only meet itself. The innermost paradox, the un-derground garage flowers, the vent toward the good dark. A drink that bubbles in an empty glass. An amplifier that magnifies silence. A path that grows over after every step. A book that can only be read in the dark. (Grifo meu)

A poesia de Tranströmer, entre outros elementos, caracteriza--se por tematizar a fragmentação e o isolamento do ser, a par-tir da inversão de papéis entre o ser e o meio, sendo este o su-jeito e aquele o objeto. Por razão dessa inversão, a poesia de Tranströmer é comumente referida por “epifânica”, em que a descoberta do ser é dada no instante e a partir do mundo natu-ral ou social.

Ao receber o prêmio Nobel de Literatura em 2011, Tranströmer foi anunciado como o poeta do “realismo ínti-

6 “Fazer mel do invisível sugere que o artista permaneça próximo à sua própria história terrena, mas se mova também através do espiritual e do invisível.” (Tradução livre). 7 “Upward into the Depths”, In: TRANSTÖMER, T. The Half-Finished Heaven, 2001.

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mo”.8 A expressão, que vem sendo utilizada nas artes plásti-cas, alcança uma unidade terminológica a partir da realização da força imagística do poeta sueco. Deve-se, porém, destacar o objetivo de seu uso para a análise da poesia de Tranströmer. Procuramos efetuar uma “volatilização” do termo, a fim de des-vinculá-lo de uma possível fundamentação cronológica, que acabaria por inseri-lo na configuração temporal dos movimen-tos literários. É certo que o “realismo íntimo”, criação que pro-cura definir a relação ser/coisa, que se faz presente na literatura e artes contemporâneas, contém ecos característicos de um pas-sado literário definido, já que este acaba por romper os limites da delimitação cronológica. A retomada desses ecos, ou seja, as raízes históricas do termo “realismo íntimo”, será assunto para estudos posteriores.

A procura por fontes que conceituassem e até mesmo anali-sassem o “realismo íntimo” nos rendeu escassos, mas singulares, resultados. Gerald Bruns, professor emérito da Universidade de Notre Dame, emprega o termo na qualidade de um constituin-te comum na caracterização da obscuridade da poesia moderna (em seu ensaio “The obscurity of modern poetry: An essay on inti-mate realism”). Ao citar uma entrevista realizada com William Carlos Williams, faz-se a seguinte questão: “o que é poesia?”. Ao que a resposta do poeta norte-americano é dada propriamente para esta pergunta: “o que pode ser considerado poesia?”. É bas-tante curioso que Williams apontasse para a dificuldade de com-preender o poema “(Im)c-a-t(mo)”, de e. e. cummings, que suge-re formações poéticas gráficas, mas acreditasse que uma simples lista de compras (o seu poema “Two Pendants: for the Ears”) pu-desse ser facilmente compreendido como matéria de poesia. Na concepção do poeta, “poetry is language charged with emotion. It’s words, rhythmically organized […]”9 (Ibid., p. 173). Muito além da concepção antiga de ainigma e da visão retórica tradicional, que considera a poesia o obscurecimento das coisas a partir de “pala-vras-enfeites”, Bruns analisa a poesia moderna pelo viés de um novo termo (o “realismo íntimo”) que, além de iluminar o estudo

8 Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/tomas-transtromer-poeta-do-realismo-intimo. Acesso em 26 de fev. 2012. 9 “Poesia é língua carregada de emoção. Suas palavras, ritmadamente organizadas...” (Tradução livre).

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da relação entre as palavras e as coisas, é capaz de amplificar e transpor a inevitável categorização empreendida pela termino-logia literária:

I want to argue something like this: it is precisely in virtue of its obscurity that modern – or modernist – poetry comes down on the side of things precisely because it abides with them diffe-rently than we do in modernity, where modernity is the ratio-nalized world that can justify everything that exists by concep-tualizing it, bringing it under familiar descriptions, putting it to use, getting a return on investments in it, finding a place for it in some scheme of means and ends. I want to argue that the obscurity of modern poetry constitutes a species of realism – I will call it an "intimate realism" in contrast to formal or philoso-phical realisms that depend on correspondence theories, rules of reference, theories of description, or the conceptual logic of identity and difference. (Ibid., p. 175)

Mallarmé desenvolveu a tese de que a poesia é feita de palavras, não de ideias; um poema é feito de linguagem, não de elemen-tos que produzimos com a linguagem, como significados, con-ceitos, proposições sobre o mundo, narrativas ou expressões de sentimentos. Para Mallarmé, a poesia não pode ser definida por estes aspectos, pois ela não é mais um gênero que distingue. De forma semelhante, o poeta norte-americano William Carlos Williams cria, no poema “A sort of a song” (1944),10 o princípio--chave a que almejava o movimento Imagista na realização de sua poética: “no ideas, but in things”, ou seja, a poesia deveria compor-se de coisas, e não de conceitos. Tais coisas criam, em nossa mente, ideias visuais: nós formamos uma imagem da coi-sa. A poesia, enquanto dotada de imagens, seria, portanto, uma materialização da linguagem.

A poesia é um ato que nos aproxima da linguagem, de maneira a nos tornar coisas entre as coisas, e não apenas me-ros espectadores. Gerald Bruns menciona a distinção, estabele-

10 WILLIAMS, W. C. “The wedge”. In:______ . The collected poems of William Carlos Williams. Vol.2. Nova York: New Directions, 1986, p. 145. (“Let the snake wait under/ his weed and the writing/ be of words, slow and quick, sharp/ to strike, quiet to wait,/ sleepless./ – through metaphor to reconcile/ the people and the stones./ Compose. (No ideas/ but in things) Invent!/ Saxifrage is my flower that splits/ the rocks.”).

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cida por Emmanuel Levinas, entre a apreensão do mundo pela cognição e a apreensão pela sensibilidade. Bruns explica que, através da primeira, compreendemos as coisas por meio de con-ceitos; pela segunda, estamos expostos às mesmas coisas as-sim como a pele está exposta ao toque. A poesia entendida me-nos como um modo de expressão da própria personalidade da persona do que um modo de sensibilidade e, assim, menos um meio de ver um mundo e mais uma maneira de ser tocado por ele. De forma análoga, o poema “Romanesque arches” (1989), de Tomas Tranströmer, destaca a apreensão sensível da realidade através da aproximação entre o espaço físico, o espaço dos ob-jetos e o espaço íntimo da persona, de modo que o tempo que perpassa esses espaços é sempre percebido como estando “em aberto”, com uma totalidade que não se fecha, impossível de ser limitada:

Tourists have crowded into the half-dark of the enormousRomanesque church.

Vault opening behind vault and no perspective.A few candle flames flickered.An angel whose face I couldn’t see embraced meAnd his whisper went all through my body:"Don't be ashamed to be a human being, be proud!Inside you one vault after another opens endlessly.You'll never be complete, and that's as it should be."Tears blinded meAs we were herded out into the fiercely sunlit piazza,Together with Mr. and Mrs. Jones, Herr Tanaka and Signora

Sabatini;within each of them vault after vault opened endlessly.

Essa totalidade “inconclusa” é igualmente evidenciada no poe-ma “The Couple” (1962), em que o tempo cronológico é obscure-cido pela definição de um instante no tempo, instante que une o ser e o meio, o natural e o social, o espaço e o tempo:

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They turn the light off, and its white globe glows An instant and then dissolves, like a tablet In a glass of darkness. Then a rising. The hotel walls shoot up into heaven’s darkness.

Their movements have grown softer, and they sleep, But their most secret thoughts begin to meet Like two colors that meet and run together On the wet paper in a schoolboy's painting.

It is dark and silent. The city however has come nearer Tonight. With its windows turned off. Houses have come. They stand packed and waiting very near, A mob of people with blank faces.

Temos, então, uma condição de sensibilidade ao invés de cog-nição e representação. Por esse viés, visualizamos o “realismo íntimo”, de modo a, igualmente, formular-se uma ética da poe-sia, em que há a rejeição da desvinculação do ser com o objeto, e mais além, a própria desconstrução da relação hierárquica ser/objeto, pois, nos dizeres de Bruns:

Philosophy knows only the language of concepts; it sees our re-lationship with things on the model of disengaged observers of the passing show, or again on the model of technology, conver-ting things into power and production […] Poetry by contrast knows only the language of touch, where, Levinas says, "speech is contact," as in prophetic experience when one is invaded by God's voice and turned inside out like a cloak, or in ethical expe-rience when one is addressed by another person. (op. cit., p. 182)

A poesia concretiza sua própria ética ao nível da experiência que Levinas, segundo Bruns, chama de “proximidade” e que tem por objetivo restabelecer uma intimidade entre nós e as coisas, que o conhecimento e a tecnologia acabam por destruir. A tare-

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fa da poesia é libertar a singularidade das coisas de suas subor-dinações a categorias ou de suas transformações em conceitos perecíveis.

Tempo(s): a duração e o instante

O que é o tempo? Em algum momento de nossas vidas essa questão acabará por nos tirar o sono. Não foi diferente com Gaston Bachelard (1884-1962). Em seu livro L'Intuition de l'ins-tant (1932), Bachelard desenvolve a ideia fundamental da sua fi-losofia do tempo: a partir da conclusão do historiador francês Gaston Roupnel, de que a menor estrutura de tempo possível em história é o instante, o tempo, segundo o filósofo, “é uma realidade encerrada no instante e suspensa entre dois nadas” (Bachelard, A intuição do instante, p. 15). O instante é solidão, à medida que nos faz solitários, além de romper com nosso pas-sado. Nesse sentido, só podemos ter consciência do instante presente, pois ele é o “único domínio no qual se vivencia a rea-lidade” (Ibid., p. 16). Bachelard ainda salienta que o instante é de caráter descontínuo por excelência e, sendo suspenso “entre dois nadas”, “o tempo poderá sem dúvida renascer, mas primei-ro terá de morrer. Não poderá transportar seu ser de um instan-te para outro, a fim de fazer dele uma duração”. Aqui fica clara a intenção de Bachelard de realizar uma análise crítica a respei-to da concepção de tempo como duração, proposta pelo filósofo francês Henri Bergson (1859-1941).

Bachelard distingue a filosofia do instante, de Roupnel, da filosofia da duração, de Bergson, afirmando que

Para Bergson, a verdadeira realidade do tempo é sua duração; o instante é apenas uma abstração, desprovida de realidade. Ele é imposto do exterior pela inteligência, que só compreende o de-vir demarcando estados imóveis. [...]Para Roupnel, a verdadeira realidade do tempo é o instante; a duração é apenas uma construção, desprovida de realidade ab-

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soluta. Ela é feita do exterior, pela memória, potência de imagi-nação por excelência, que quer sonhar e reviver, mas não com-preender. (Ibid., pp. 26-27)

Ainda, Bachelard aponta que “a filosofia bergsoniana é uma fi-losofia da ação; a filosofia roupneliana é uma filosofia do ato” (p. 23). Uma ação, para Bergson, é sempre um desenrolar contínuo, uma duração sempre original e real. Já para Roupnel, um ato é uma decisão instantânea da qual se depreende a originalida-de. Ora, a vida nos aparece como o descontínuo dos atos. Como destaca Bachelard, “a vida não pode ser compreendida numa contemplação passiva; compreendê-la é mais que vivê-la, é efe-tivamente impulsioná-la” (p. 24) e, mais adiante, afirma que “cada ação, por simples que seja, rompe necessariamente a con-tinuidade do devir vital” (p. 25).

A duração bergsoniana é dada por uma multiplicidade de estados da consciência, sendo impossível fazer uma sepa-ração entre os estados presente e os anteriores, estabelecendo uma continuidade entre eles. O método intuitivo de Bergson, apresentado em seu livro Essai sur les données immédiates de la conscience (1889), propõe a teoria de que a duração é um dado imediato da consciência. Por sua vez, o método intuitivo desen-volvido por Roupnel, e aplicado por Bachelard, leva à afirmação de que é o instante que é apreendido como um dado imediato:

Apercebamo-nos, pois, de que a experiência imediata do tempo não é a experiência tão fugaz, tão difícil, tão complexa da dura-ção, mas a experiência displicente do instante, apreendido sem-pre como imóvel. [...] Lembramo-nos de ter sido – não, porém, de ter durado. (Ibid., p. 35)

Para Bachelard, ao contrário, a duração é, não um dado, mas uma obra (A dialética da duração, p. 74). Porém, poucos instan-tes são levados até a nossa consciência. Em um trecho belíssi-mo do L'Intuition de l'instant, Bachelard delineia a ideia de uma

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“consciência relativizada”, contra-argumentando a teoria da duração como dado imediato da consciência:

Quanto ao pensamento, é por lampejos irregulares que ele uti-liza a vida. Três filtragens através das quais muito poucos ins-tantes vêm à consciência! Sentimos então um surdo sofrimento quando saímos em busca dos instantes perdidos. Lembramo-nos daquelas horas ricas que se marcam ao compasso dos mil sons dos sinos de Páscoa, desses sinos da ressurreição cujas batidas não se contam porque todas elas contam, porque cada qual tem um eco em nossa alma desperta. [...] E sonhamos com uma hora divina que daria tudo. Não a hora plena, mas a hora completa. A hora em que todos os instantes do tempo seriam utilizados pela matéria, a hora em que todos os instantes realizados na maté-ria seriam utilizados pela vida, a hora em que todos os instantes vividos seriam sentidos, amados, pensados. A hora, por conse-guinte, em que a relatividade da consciência seria apagada, por-que a consciência seria a exata medida do tempo completo. (A intuição do instante, pp. 47-48)

No mesmo livro, Bachelard faz uma leitura da teoria da rela-tividade de Einstein, igualmente como fez Bergson em seu li-vro Durée et simultanéité: à propos de la théorie d'Einstein (1922). Bachelard afirma que a relatividade se dá no lapso de tempo para sistemas em movimento e que não se pode reduzir o ins-tante a apenas “dado da consciência”, pois a relatividade tem-poral sofre intervenções de condições físicas, entre outras. Bachelard também menciona que o instante, na doutrina de Einstein, permanece como absoluto e, sendo assim, passa a ser reconhecido, em seu estado sintético, como um ponto do espa-ço-tempo. Percebemos, na filosofia bachelardiana, a fusão entre as dimensões temporal e espacial, diferentemente da filosofia bergsoniana, que se apóia em uma noção pura de tempo não--espacializado. A respeito da duração, Bachelard cita Roupnel que diz que “o Espaço e o Tempo só nos parecem infinitos quan-

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do não existem” e, assim como Bacon já observara que “nada é mais vasto que as coisas vazias”, o filósofo afirma que “somente o nada é realmente contínuo” (Ibid., p. 39). Para aqueles que ten-tam entender Bachelard na esteira de um “bergsonismo frag-mentado”, o filósofo contra-argumenta:

Dir-nos-ão que o nada do tempo é precisamente o intervalo que separa os instantes verdadeiramente marcados por aconteci-mentos. Quererão fazer-nos dizer que esse intervalo é verdadei-ramente o tempo, o tempo vazio, o tempo sem acontecimentos, o tempo que dura, a duração que se prolonga, que se mede. Nós, porém, nos obstinaremos em afirmar que o tempo nada é se nada acontece, que a Eternidade antes da criação não tem sentido; que o nada não se mede, que ele não pode ter uma grandeza. (p. 39. Grifo meu)

No livro La dialectique de la durée (1936), Bachelard desenvolve uma dualidade temporal que se fundamenta pela ideia de que “o tempo é contínuo como possibilidade, como nada; e descon-tínuo como ser” (p. 31). A descontinuidade do tempo não é uma fragmentação da continuidade e, sim, a repetição de instantes, formando ritmos. É o que Bachelard chama de eterno recomeço. Esses ritmos caracterizam um tempo descontínuo, espacializa-do e em movimento.

A poesia, para Bachelard, é justamente formada por tais ritmos temporais: “é para construir um instante complexo, para atar, nesse instante, simultaneidades numerosas, que o poeta destrói a continuidade simples do tempo encadeado” (A intui-ção do instante, p. 94). A identidade da poesia se dá através de uma verticalidade do tempo, que é reconhecida por Bachelard como uma metafísica, sendo a poesia uma “metafísica instan-tânea”11 (Ibid., p. 93):

Em todo poema verdadeiro, podem-se, então, encontrar os ele-mentos de um tempo interrompido, de um tempo que não segue

11 “Instante poético e instante metafísico”, anexo do livro A intuição do instante (2010).

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a medida, de um tempo que chamaremos de vertical para dis-tingui-lo de um tempo comum que foge horizontalmente com a água do rio, com o vento que passa. [...] A meta é a verticalidade, a profundidade ou a altura; é o instante estabilizado em que as simultaneidades, ordenando-se, provam que o instante poético tem uma perspectiva metafísica. (p. 94)

O poeta funda uma imagística na verticalidade do tempo poé-tico, resultando em uma nova ordem temporal da linguagem e do mundo. “O tempo vertical eleva-se”, reflete Bachelard, e “a meia-noite, para quem sabe “ler” O corvo, nunca mais soa hori-zontalmente” (Ibid., p. 97). Os instantes verticalizados da ima-gística poética removem o ser da duração comum. O instante poético é, portanto, o tempo de emergência da imagem poética. As imagens poéticas possuem, para Bachelard, a característica de romper com os quadros sociais, fenomenais e vitais da du-ração, conquistando uma dialética própria, a dialética das cor-respondências, da ambiguidade. Para o filósofo, o tempo é uma ordem; o instante poético é, portanto, um sistema de simulta-neidades ordenadas. Por este viés, “o poeta é o guia natural do metafísico”, incumbido de compreender e realizar todas as po-tências de ligações instantâneas, “sem se deixar dividir pela dualidade filosófica grosseira do sujeito e do objeto” (Ibid., p. 100). O sentido da imagem é exposto, na filosofia de Bachelard, não somente à apreensão do poeta, mas sim, para a apreensão do leitor. A imagem poética repercute na alma do leitor e o des-perta para a criação poética. Por isso,

É necessário estar presente, presente à imagem no minuto da imagem: se há uma filosofia da poesia, ela deve nascer e renas-cer por ocasião de um verso dominante, na adesão total a uma imagem isolada, muito precisamente no próprio êxtase da novi-dade da imagem. (A poética do espaço, p. 1)

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O instante poético bachelardiano (e, também, a própria imagi-nação poética) segue os movimentos do devaneio, unindo meta-fisicamente o ser e o objeto, a alma e o universo.

Em seu livro La poétique de l'espace (1958), Bachelard afir-ma que “o poeta fala no limiar do ser” (Ibid., p. 2) e, assim sendo, faz-se necessário sentir a repercussão de uma imagem no ser a partir de uma fenomenologia da imaginação poética, pois

Só a fenomenologia – isto é, a consideração do início da imagem numa consciência individual – pode ajudar-nos a reconstituir a subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a força, o sen-tido da transubjetividade da imagem. [...] A imagem poética é, com efeito, essencialmente variacional. Não é, como o conceito, constitutiva. [...] Pede-se ao leitor de poemas que não encare a imagem como um objeto, mas que capte sua realidade especí-fica. Para isso é necessário associar sistematicamente o ato da consciência criadora ao produto mais fugaz da consciência: a imagem poética. (Ibid., p. 4)

A fenomenologia da imaginação de Bachelard refere-se a ima-gens poéticas que são como que arquétipos inerentes do ser e, portanto, além da realidade sensível e diferentes de simples metáforas. Essas imagens poéticas são “imagens não-vivi-das, imagens que a vida não prepara e que o poeta cria” (Ibid., p. 14), sendo, portanto, o ato poético desprovido de passado. É por meio dessa fenomenologia que Bachelard irá desenvolver as concepções de ressonância e repercussão, tão caras a sua filoso-fia da imaginação poética: “As ressonâncias dispersam-se nos diferentes planos de nossa vida no mundo; a repercussão con-vida-nos a um aprofundamento da nossa própria existência” (Ibid., p. 7). A repercussão é o estado extremo de assimilação da imagem poética pelo ser; a ele é concedida a criação poética. Ao mesmo tempo em que o poeta está no limiar do ser, ele tam-bém se encontra no limiar da própria linguagem. Neste senti-do, “a imagem poética proporciona uma das experiências mais

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simples de linguagem vivida” (Ibid., p. 12) e põe em ação toda a atividade linguística, remetendo-nos à origem do ser falante, pois este “está por inteiro numa imagem poética” (Ibid., p. 12). Segundo Bachelard, “a imagem torna-se um ser novo da nossa linguagem”, uma novidade não esperada pela cultura, tampou-co pela percepção. A imagem poética “é ao mesmo tempo um devir de expressão e um devir do nosso ser” (Ibid., pp. 7-8).

As imagens poéticas bachelardianas iluminam o estudo da poesia de Tomas Tranströmer. Tais imagens ampliam a apreen-são da realidade no instante, presente na linguagem poética. O poema “Track” (1958) é um exemplo peculiar da construção tranströmeriana da percepção da realidade:

2.AM.: moonlight. The train has stopped Out in a field. Far-off sparks of light from a town, Flickering coldly on the horizon.

As when a man goes so deep into his dreamHe will never remember that he was thereWhen he returns again to his room.

Or when a person goes so deep into a sicknessThat his days all become some flickering sparks, a swarm, Feeble and cold on the horizon.

The train is entirely motionless2 O’clock: strong moonlight, few stars.

O poema manifesta uma expansão do entendimento empírico, através de uma retomada da paisagem observada pela persona, de modo a fazê-la repercutir em sua alma. Porém, internalizan-do-se a paisagem, a persona faz uso de uma memória evocada primeiramente pela percepção (primeira estrofe) ou por meio do sonho e da doença (segunda e terceira estrofes)? Nesse momen-to, encontramos um impasse. A retomada da imagem da pai-

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sagem pela persona ocorre aos modos do devaneio poético ba-chelardiano, La poétique de la rêverie (1960), alheio à memória e encontrado “fora do tempo”, ou aos modos das imagens-lem-branças bergsonianas, Matière et mémoire (1896), mergulhadas na temporalidade interior? Acreditamos que, se a retomada da imagem da cidade, cujas luzes brilham no horizonte, for dada através da percepção, perde-se inevitavelmente a configuração do processo imagístico, a qual se revela como sendo a realização própria da imaginação. Podemos afirmar que, de acordo com nossa compreensão sobre o “realismo íntimo”, a persona reto-ma e internaliza a paisagem por meio do devaneio e, portanto, aniquilando a relação hierárquica entre sujeito e objeto. No poe-ma, o tempo é evocado por instantes, que ressoam no ser, aqui representado pela persona, e repercutem na alma de um poten-cial leitor.

No poema “A winter night” (1962), tanto o ser como o meio natural revelam linguagens que são dispostas num mesmo nível de valorização. A tempestade é, ao mesmo tempo, um objeto de análise e um agente de expressão, de “fala”:

The storm puts its lips to the houseAnd blows to make a sound.

I sleep restlessly, turn over, with closedEyes read the book of the storm.

But the child's eyes grow huge in the darkAnd the storm whimpers for the child.

Both love to see the swinging lamp.Both are halfway toward speech. (Grifo meu)

A criança, por sua vez, está em processo de desenvolver sua pró-pria fala (sair da “infância”), um progresso ínfimo perante a for-ça da linguagem, que atua sob diversas formas: a persona que, de olhos fechados, lê as linhas da tempestade; as mãos e as asas infantis da tempestade; os passos em silêncio:

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Storms have childlike hands and wings.The caravan bolts off toward Lapland

And the house senses the constellation of nailsHolding its walls together.

The night is quiet above our floor(Where all the died-away footsteps

Are lying like sunken leaves in a pond)But outside the night is wild!

Questionamo-nos sobre qual linguagem é matéria dessa poesia. Podemos dizer que a poesia de Tranströmer liberta as lingua-gens pertencentes às coisas, tornando-as agentes de expressão independentes, rompendo a barreira das metáforas. Parte do seu “realismo íntimo” efetua-se através da simbologia surrea-lista, que salvaguarda a linguagem como tema. Além disso, a poesia de Tranströmer é repleta de um expressionismo autos-suficiente, ou seja, confere expressão de sentido e liberdade de ação às coisas. Tal liberdade da expressão poética é alcançada quando as imagens são apresentadas com simplicidade, reve-lando a busca pelo absoluto na realização artística, através de um máximo esforço espiritual, assim como o descreve o cineas-ta russo Andrei Tarkovski, em seu livro Esculpir o tempo:

Toda criação artística luta pela simplicidade, pela expressão perfeitamente simples, o que implica chegar aos níveis mais dis-tantes e profundos da recriação da vida. Esse, porém, é o aspec-to mais doloroso do trabalho de criação: descobrir o caminho mais curto entre aquilo que se quer dizer ou expressar e sua re-produção definitiva na imagem consumada. (p. 133)

Finalmente, a simplicidade da imagística tranströmeriana é um alicerce para a configuração do esforço, por parte do artis-ta, em direção ao espiritual. A aspiração ao absoluto é, segundo Tarkovski, a força que impele o desenvolvimento da humanida-

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de. A partir dessa observação, o cineasta cita a ideia do realismo como estando ligada a esta força: “a arte é realista quando se empenha em expressar um ideal ético. O realismo é uma aspi-ração à verdade, e a verdade sempre é bela. Neste ponto, o esté-tico e o ético coincidem” (Ibid., pp. 133-134). É sob o viés da con-jugação entre ética e estética que relacionamos, neste ensaio, Tranströmer ao “realismo íntimo”.

BACHELARD, G. A dialética da duração. São Paulo: Ática, 1988.

______ . A intuição do instante. Campinas: Verus, 2010.

______ . A poética do espaço. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.

BRUNS, G. “The obscurity of modern poetry: An essay on intimate realism”. Revista Renascence, 2001, p. 173-190.

KARLSTROM, L. Tomas Tranströmer: En bibliografi. Stockholm: Norstedts Tryckeri, 1990.

TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. São Paulo: WMF Martins Martins Fontes, 2010.

TR ANSTÖMER, T. The Half-Finished Heaven. Trad. de Robert Bly, Graywolf Press, 2001.

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novíssimos

Passos de uma outra dança: dinâmicas e enfrentamentos Caroline Micaelia

“Mesmo c/ 3 dias de atraso, aLeitura do jornal permaneceDesinteressante. legalize aFruta que lambuza. abaixo aCópia autenticada.(Todo mundo sabe q) a viagemNo tempo está provada pelaQuantidade de cabeças doSéculo retrasado neste.”Reuben da Cunha Rocha

O que fica claro quando o poeta maranhense Reuben da Cunha Rocha elabora uma colocação provocatória e carregada de hu-mor ácido, como a do poema em questão, é que a despeito do que se supõe, a enxurrada de produtos culturais que reiteram descompassada e inconsequentemente os ilustres sucessos do passado, sem lhes atribuir uma nova oralidade que de fato dialo-gue com a produção contemporânea, volta e meia acaba se per-dendo em normas e esbarrando em muralhas através das quais só conseguem passar quando algo verdadeiramente propositivo

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as implode. As poéticas políticas e linguísticas trabalhadas por Reuben, em conjunto com o poema enquanto estrutura que por si só já é porta de entrada para um lugar de crise, ao estabelece-rem tensões de forma e conteúdo que só funcionam quando em relação com as instâncias de enunciação e coenunciação, pro-põem um outro lugar para pensar a poesia: um lugar no qual a voz e as dinâmicas da linguagem e da sociedade são elementos fundamentais.

Para os ouvidos dos leitores habituados ao cânone da poesia brasileira – e, me arriscaria a dizer, mesmo para os ouvidos dos devidamente familiarizados com a produção poética nacional dos últimos anos –, as primeiras impressões despertadas por As aventuras de cavaloDADA em + realidades q canais de TV (2013), livro de estreia de Reuben da Cunha Rocha, geram certo espan-to, logo substituído por uma sensação de estranheza, logo substi-tuída por uma espécie de reconhecimento. O leitor que embarca pela primeira vez nas aventuras de cavaloDADA percebe que a linguagem ali trabalhada, ainda que parecendo (e podendo facil-mente) escapar ao livro enquanto suporte, muito se assemelha a uma linguagem com a qual estamos bastante familiarizados: a escrita instantânea e concisa do ambiente digital.

Na contramão de uma possível facilitação à qual essa con-cisão e esse instantaneísmo possam ser atribuídos, a proposta do artista maranhense nos leva a pensar através dos meandros de uma teoria da linguagem que se coloca em diálogo constante com uma teoria da literatura, especialmente na medida em que parece se agarrar à necessidade de evitar a completa raciona-lidade, ou mesmo a codificação nas abordagens do discurso e nas consequências que tais abordagens levantam para a com-preensão dos mecanismos de funcionamento e ressignificação a partir dos quais a literatura e a própria linguagem se constroem. Mais do que isso, o que instiga no livro de Reuben é o modo como essa teoria se articula na construção dos poemas; a ma-neira pela qual o poeta, intuitiva ou conscientemente, faz a de-fesa da historicidade radical da linguagem, proposta por Henri

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Meschonnic,1 tendo como ponto de partida debates políticos atualíssimos – como a legalização da maconha, a ocupação dos espaços públicos, e o lugar da cultura urbana calcada nos ritmos do skate, do dub e do pixo –, debates travados nas grandes me-trópoles do país afora e enormemente impulsionados pelo im-pacto das já tão citadas Jornadas de junho de 2013.

Com toda sua urbanidade, As aventuras de cavaloDADA em + realidades q canais de TV chama a atenção pelo refinado traba-lho gráfico, pela temática combativa dos poemas e pelo exten-sivo trabalho com a linguagem; indicativos que configuram de maneira imediata um diálogo consonante em relação à contem-poraneidade, marcado por uma expressiva ruptura e localizado precisamente num ponto de eclosão, de embate, de crise. É des-se ponto conflituoso que Reuben levanta outros problemas e ou-tras possibilidades; e é através desse conflito, desse estado de crise, que sua poesia resiste às sujeições repetidamente impos-tas pela lógica do capital e pelos normativismos que custam a ser dissociados dos mecanismos de funcionamento da linguagem.

O livro do poeta maranhense configura uma ação direta sobre o espaço público: celebra a ocupação dos espaços da cida-de e as muitas alternativas para que a experiência no meio urba-no seja menos a culminância da barbárie capitalista do que uma orquestração envolta por outros ritmos e outros movimentos, orquestração carregada de uma pulsão de vida que extrapola a convencionalidade das relações, que dá vazão à multiplicidade e à subjetividade das gramáticas, que propulsiona a resistên-cia como saída efetiva do quadro vicioso no qual se encontram as dinâmicas das grandes metrópoles. Em um contexto como este, a poesia que configura essa ação não poderia ser outra que não a das ruas: uma poesia que vê as coisas de dentro, que não enuncia o mundo a partir de uma torre de marfim, mas no meio do furacão.

1 MESCHONNIC, Henri. Linguagem: ritmo e vida. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2006, p. 10.

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deve ser 1vírus no óleo da

batata frita q produz

a folclórica paranoia

homicida norteamericana

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Aberto por uma “Introdução ao skate”, o livro traz poemas cur-tos, bem humorados e ao mesmo tempo altamente críticos. O skatista passeia pelas páginas – tal como pela cidade – na cons-trução dos poemas, raciocinando o “espaço ocupado; ñ o espaço maquete”,2 desviando dos transeuntes e se apropriando do espa-ço público, bem como do espaço do livro. A temática do skate dá lugar a algumas “Anotações para uma teoria da maconha” que, como uma espécie de ode, perpassam muitos dos temas relacio-nados à cultura da erva. Se, por um lado, é feita uma reflexão sobre as reações que o uso de maconha causa no espaço público, sobre os efeitos entorpecentes (que Reuben chamará "alucinó-genos") responsáveis por trazer à tona uma relação sinestésica que amplifica a sensibilidade, por outro, há certamente uma re-lação de militância que cerca a temática da legalização. Apesar de não haver citações diretas às pautas dos movimentos libera-cionistas, os poemas parecem manter uma interlocução com tais discussões; não exatamente pelas descrições dos efeitos que a maconha produz, mas por lembrar que existe uma luta diária contra as convenções sociais e culturais, contra os “recortes mi-diáticos da realidade, o dinheiro coroado c// todas as malditas divindades fálicas”.3

Ao deslizar pelos caminhos de diversas temáticas, o poeta skatista encaminha o leitor para um “Teste de indeterminação induzida”, em que os poemas ganham o caráter de manuais de instrução ou mesmo de rastros; registros de happenings. O poe-ma modo-de-usar, ação poética no espaço – à qual Reuben cha-mará "experimento" –, ao dar instruções para uma experiência, parece ligar-se diretamente às ideias do artista francês Robert Filliou, que relacionam as práticas artísticas a uma espécie de jogo que pode ocorrer inclusive quando estas práticas não pas-sam de indicações, de projetos ainda não realizados. Em Filliou – como em Reuben –, o convite à participação é uma constante, isto porque a prática artística como meio de ação direta sobre o mundo almeja integrar todos os atos da vida com o fazer artísti-co. Na mesma medida em que levanta inúmeras questões a res-

2 ROCHA, Reuben da Cunha. As aventuras de cavaloDADA em + realidades q canais de TV. São Paulo: Randomia/Pitomba, 2013, p. 8. 3 ROCHA, Reuben da Cunha. As aventuras de cavaloDADA em + realidades q canais de TV. São Paulo: Randomia/Pitomba, 2013, p. 36.

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peito da obra de arte enquanto processo, uma tal aposta na efe-meridade mina as noções arraigadas que mantemos a respeito do que a arte é ou deveria ser.4

Entre a rua, a poesia, o skate, a maconha, a cidade, a polí-tica e a efemeridade das relações, permeia um dialeto que, mes-mo ligado a todos estes lugares de enunciação, condensa e ime-diatiza os atos de fala. A internet, enquanto lugar que estabelece outras temporalidades, faz com que a escrita se construa direta-mente a partir da oralidade, ou seja, a partir de um universo que entende todas as instâncias da enunciação como produção da língua viva,5 e que incorpora tais instâncias numa subjetivida-de. E, nesse sentido, se, como Meschonnic, pensarmos a língua, justamente, como organismo vivo, pautado por um processo de historicidade radical que ancora a linguagem nas transforma-ções e no funcionamento através dos quais os atos de fala a todo momento reconstroem e reinventam esta linguagem; se colo-carmos o ritmo como modo de funcionamento da linguagem, entendendo que a distinção entre linguagem falada e lingua-gem literária se dá, não em relação à natureza, mas à intensida-de com que o processo de historicidade radical se realiza; pode-ríamos pensar a configuração da escrita no âmbito da internet como um registro que chegaria relativamente perto de acompa-nhar de fato esta historicidade radical.6

Ao se utilizar do instanteneísmo e da concisão dessa aven-tura cyber-textual – se é que ela pode ser chamada desta forma – em associação com expressões vindas dos dialetos que regem as esferas do skate, do pixo, do lambe-lambe, da maconha, da internet, da cultura pop etc., Reuben reconhece a dinamicidade e a complexidade das engrenagens da linguagem e da própria sociedade. Do mesmo modo, ao trazer tais problemáticas so-cioculturais para um suporte como o livro – em que linguagens como pixos e montagens ressignificativas são chamados “ilus-trações” e a escrita deve seguir estritamente a norma chamada culta –, o poeta opera por dessacralização: subverte o lugar sa-grado do livro, trazendo o pixo para as páginas do livro e o livro

4 BIENAL INTERNACIONAL DE SÃO PAULO, 30., 2012, São Paulo. Robert Filliou. São Paulo: Fundação Bienal, 2012. 5 “Viva” aqui significa dinâmica, cheia de complexidades que se reconfiguram a todo momento 6 É claro que entraria aí uma reflexão sobre impossibilidade de registrar esse processo, o que levaria a questões a respeito das quais esta resenha não pretende tratar.

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para o espaço das ruas, onde as vozes confluem, rompendo com a normatividade exigida pelo beletrismo romântico.

Rupturas como essas, em que os poemas parecem querer se rebelar contra a página, pedindo outra coisa (outro tipo de pá-gina?), em que a experiência poética resiste à ordem capitalista pelo horror a qualquer situação na qual a experiência vital é em-pobrecida, em que se reconhece a linguagem como organismo vivo sujeito a constantes mutações e ressignificações; tais rup-turas, ao interferirem no quadro vicioso em que estamos inse-ridos, proclamam-se terminantemente contra a burocratização da vida e da linguagem. E é a partir dessas rupturas que aqui-lo que foi convencionalizado pela lógica econômica torna a ser questionado, nos lembrando de que, "na classificação geral de tudo o q é triste, o pensamento pobre perde p/ o pensamento conveniente".7

Configurando-se como uma verdadeira ode à cidade, à luta, à contemporaneidade, ao amor, e mais, à resistência, tan-to dos indivíduos quanto da poesia como uma curtição da lin-guagem, o primeiro livro de Reuben da Cunha Rocha mostra-se absolutamente fundamental sob a perspectiva da construção de um novo espaço de pensamento de poéticas contemporâneas. Ora, se de acordo com Marcos Siscar, em Poesia e crise (2010), a poesia brasileira dos últimos anos expressa “a necessidade de dar um passo na direção do seu (ter) lugar”, o livro do mara-nhense apresenta-se, precisamente, como possibilidade para o que este lugar pode vir a ser, ou mesmo para uma reconfigura-ção de um lugar que já exista, um deslugar onde a liberdade e a alegria da criação são os passos de uma nova dança.

MESCHONNIC, Henri. Linguagem: ritmo e vida. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2006.

ROCHA, Reuben da Cunha. As aventuras de cavaloDADA em + realidades q canais de TV. São Paulo: Randomia/Pitomba, 2013.

______ . Poesia ruim, poesia irrelevante? Revista Modo de usar e co. [online]. Edição 3. 2013. Disponível em: http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2013/06/poesia-inutil-poesia-irrelevante-por.html

SISCAR, Marcos. “A cisma da poesia brasileira”. In: Poesia e crise. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.

7 ROCHA, Reuben da Cunha. As aventuras de cavaloDADA em + realidades q canais de TV. São Paulo: Randomia/Pitomba, 2013. p. 69.

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Penélope, a odisseia da espera Gianni Paula de Mello

A figura de penélope e as metáforas implicadas na sua trajetória são umas das mais conhecidas do universo clássico. Associada a ela está a percepção da esposa “ideal”, não à toa aparece sem-pre adjetivada como fiel, virtuosa, sensata, prudente, paciente, crédula, persistente e aflita. A construção não é gratuita se con-siderarmos o papel da mulher no mundo grego, sobretudo em Esparta, de onde era originária. Lá, as representantes do sexo feminino eram identificadas “como a personificação de todas as virtudes conjugais” (segundo o Dicionário mítico-etimológico de Junito Brandão, 1991, p. 257).

Desta forma, a heroína indica um alinhamento doméstico e leal a ser seguido pelas mulheres, viés largamente explorado por estudiosos de gêneros, que empreenderam “uma verdadei-ra revisão dos mitos ou arquétipos femininos eleitos pela cultu-ra patriarcal e que cristalizaram determinadas imagens, passan-do agora a serem problematizados e ressignificados” (Ricardo Nonato Almeida de Abreu Silva, “Novas Penélopes: a rasura de um mito na literatura de autoria feminina”). Parece óbvio que, com as históricas conquistas de gênero, a postura ditada por Penélope seja tratada de forma crítica e sua exaltação seja rebati-da com alguma hostilidade. No entanto, se os estudos feministas tratam deste exemplo de forma prioritariamente política, à lite-ratura cabe não reduzir o mito, mas buscar o que existe nele que nos desestabiliza, sendo o aspecto da mulher (talvez) subjugada apenas um traço dessa narrativa.

Digo “talvez” para não sucumbir perante simplismos.

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No tocante à Guerra de Troia, por exemplo, a jovem empreen-de uma das “viagens de espera” mais longas dentre as esposas da época. Sua atitude era, para aquela sociedade, subversiva. “Embora não lhe seja concedido o direito sobre o próprio corpo, ela ousa negar-se a escolher novo consorte e ousa mais ainda a esperar, num tempo que já lhe é indevido” (Denise de Carvalho Dumith, em sua tese O mito de Penélope e sua retomada na lite-ratura Brasileira: Clarice Lispector e Nélida Piñon, 2012, p. 50).

No universo da literatura, a personagem mítica ganhou re-leituras e “rasuras” em forma de poesia e de prosa que exploram os três pilares da ação em que está envolvida: a espera, a tecedu-ra e o engodo. O primeiro está diretamente ligado à experiên-cia do tempo e à ausência de algo ou alguém, à indefinição e à imobilidade. Não necessariamente na contramão, mas buscan-do alguma saída, as variações de Penélope presentes na litera-tura moderna e contemporânea “parecem deslizar do lugar da espera, mesmo que esse movimento se constitua apenas como vontade ou, ainda, como autorreflexão de sua própria condição na sociedade” (Silva, op. cit.). O ato de aguardar, como mencio-namos antes, não reduzido à inércia ou obrigação, mas meta-morfoseado em reflexão ou escolha.

A dimensão do tear nos remete a um porvir, uma tentativa de tecer o tempo em direção a um destino menos penoso, mes-mo que este fosse a morte – era em uma mortalha que a heroína trabalhava, ainda que não a dela própria. Embora fosse toma-da como uma habilidade obrigatória às mulheres exemplares, a personagem se destacava pela sua aptidão e fez desse artesanato uma espécie de fuga do presente, dividida entre o nó do passa-do – a partida de Ulisses – e o acabamento final – o reencontro. O engodo, terceira ação característica, seria justamente o destecer – “por meio do ofício, retém o tempo entre seus dedos” (Dumith, op. cit., p. 57) –, percorrendo continuamente o caminho que leva do fio ao tecido e retornando do tecido ao fio. Ao desfazer o tra-balho, a tecelã cíclica controla sua história e adia sua decisão.

Poderíamos destacar alguns autores de língua portuguesa

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que se apropriaram das temáticas do mito de Penélope em suas obras, como Clarice Lispector, Marina Colasanti, Ivan Junqueira e Cecília Meireles. Sobre estes, no entanto, já temos alguma for-tuna crítica à disposição, inclusive com esse recorte de interes-se específico. Recentemente, o mito ganhou novos contornos na obra da poetisa mineira Ana Martins Marques. Autora dos livros A vida submarina (2009) e Da arte das armadilhas (2011), ela es-tabelece frequentes diálogos com a tradição, seja reportando ou-tros poetas, seja na própria forma literária ou ainda na atualiza-ção de antiquíssimos e perenes temas da subjetividade humana. O que, no entanto, não impede a afirmação de sua singularidade.

A casa, os objetos cotidianos e as banalidades domésticas são imagens recorrentes em seu trabalho. Diante de nós, reve-la-se uma ode ao mínimo e ao prosaico, típica da nossa literatu-ra desde o modernismo. Tal ambiente perigosamente familiar é visitado e revisitado por Ana Martins Marques; justamente por acreditarmos estar diante do conhecido, do previsível, do ames-trado, tornamos possível a surpresa provocada pelo enfrenta-mento do óbvio, pela atenção aos detalhes camuflados na roti-na. “Quem abre a torneira/ convida a entrar/ o lago/ o rio/ o mar” (Da arte das armadilhas, p. 18).

Seja naquilo que é revelado pelos cômodos da casa, nos há-bitos associados aos móveis ou na natureza dos pequenos uten-sílios, ela nos mostra a poesia e subjetividade na trivialidade que nos cerca, e é preciso ter olhos para ver. Ver as evidências da morte na fruteira. Os três ramos de metal nos garfos. Os brincos esquecidos em cima da cômoda. A pimenteira que nos devolve o sol de ontem.1

Ao extenso e salgado mundo d’água na fronteira com a areia – elemento que parece provocar verdadeiro fascínio em uma escritora não litorânea – também são dedicados muitos versos. Ela se questiona, inclusive, se perderia o mar, no caso de tê-lo por perto, como perde seus isqueiros e canetas, coisas ba-ratas e fáceis de encontrar.2

Ao fazer da morada e do mar temas cativos, Ana cultiva

1 Referência aos poemas “Fruteira”, “Talheres”, “Cômoda” e “Pimenteira” que fazem parte do livro Da arte das armadilhas. 2 Referência ao poema “À beira-mar” que faz parte do livro Da arte das armadilhas.

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dois territórios férteis e inesgotáveis: o do conhecido e o do des-conhecido. No entanto, ela não subestima a capacidade de troca desses universos e embaralha as duas categorias em seus poe-mas, nos quais notamos que os objetos domésticos são também estranhos, desobedientes; a casa se abre para o acaso, o tempo, a decomposição.

Essas imagens apontam ainda para uma oposição entre a aventura e o recolhimento, a partida e a espera. O que nos leva de volta à figura mitológica à qual pretendemos nos ater: a dedicada Penélope. Ela, espera. Ela, recolhimento. Ela, morada. Ulisses, o avesso: aventura, partida, mar. É importante destacar que a mitologia se faz presente em sua obra com outros personagens como Circe e Ícaro, retomadas e atualizadas à maneira da poeti-sa. Além disso, agarrada aos versos inspirados na rainha de Ítaca está sempre a insinuação de Ulisses, ainda que seu nome nunca apareça na série analisada: há ausência também na linguagem – mas quem muito se evita, se convive.3

Embora a heroína esteja presente em poemas das duas pu-blicações, nos ateremos apenas aos seis textos de A vida subma-rina que levam o seu nome como título. Acredita-se que tal re-corte propõe certa unicidade, apesar dos poemas “Penélope (I)” e “Penélope (II)” estarem alocados na seção do livro que cha-ma Exercícios para a noite e o dia, enquanto “Penélope (III)”, “Penélope (IV)”, “Penélope (V)” e “Penélope (VI)” estão na se-ção Caderno de caligrafia.

A morada e o mar

Os poemas mencionados anteriormente não aparecem agrupa-dos como uma série e, possivelmente, foram desenvolvidos em situações diversas. Não há padronização quanto à extensão, ao uso de rima, ao ritmo empregado ou à construção de imagens. Fica evidenciada uma heterogeneidade neste sentido, da qual podemos aferir apenas alguns pontos comuns. Um deles diz respeito a uma consideração feita por Antonio Candido sobre a

3 Referência a Grande sertão: veredas.

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poesia moderna e que parece se estender à contemporânea: “De modo geral, a poesia moderna se apoia mais no ritmo do que na rima, e esta aparece como vassala daquele” (O estudo analítico do poema, p. 62). Outro aspecto central na estruturação dos tex-tos da Ana Martins Marques é o interesse pela materialidade do poema, como se a poetisa enfrentasse a escrita como uma ati-vidade que, tal qual a pintura ou a escultura, cria um artefato.

No quesito temático, fica perceptível que o mitema central dos seus poemas é a espera, apesar da tecedura e do engodo apa-recerem atrelados. A grandiosidade de suas recriações talvez de-rive do foco na questão humana da experiência de Penélope, não havendo o intuito de usá-la prioritariamente como mote para confrontar a sociedade patriarcal – esse tipo de reflexão pode vir a reboque, mas não deve ser a “preocupação” do poema. W. H. Auden é ainda mais enfático em relação aos usos pragmáti-cos deste gênero quando diz que “a poesia nada faz acontecer” – máxima da qual a poetisa não discorda, mas pondera:

[...] a poesia nada faz acontecer; ela apenas acontece. De modo geral, acho que não procuramos a literatura para encontrar res-postas ou definir caminhos, não vamos buscar nela um manual de instruções [...], nem mesmo um conhecimento maior do mundo, mas talvez justamente a imagem da nossa incompreen-são, do nosso desejo, da nossa perplexidade. Por outro lado, a poesia de certo modo age na linguagem, o que significa que ela age de alguma forma no mundo; seu modo de agir, porém, é im-ponderável, muitas vezes ambivalente, quase sempre impercep-tível. (trecho de ensaio de minha autoria, “Como montar uma armadilha para os amantes”, publicado em 2012 no Suplemento Pernambuco)

Pensando com cautela, existe a “preocupação” do poema, o seu compromisso? Se sim, esta é dar forma literária a uma sensação. Se o sentimento é de revolta, é legítimo tentar dinamitar o que incomoda, mas este não é o caso de A vida submarina. Aqui, a

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inconformidade é íntima e sutil, os versos parecem querer plan-tar uma espécie de reconhecimento, esclarecimento ou descon-forto diante do heroísmo de Penélope, nunca destacado. Ela que tem os dois pés fincados “na véspera de não partir nunca”.4 A fi-delidade e a espera como suas missões árduas. E também para a rainha de Ítaca, “missão dada é missão cumprida”.

Ana Martins destina sua atenção para os efeitos e os signi-ficados da espera, tenta pensar o tipo de rotina imposta por uma falta. No entanto, não explora a experiência definitiva, como a da morte, que obriga uma adaptação permanente, mas a expec-tativa de reverter uma ausência. Nesse sentido, Barthes vai de-fender a necessidade de uma manipulação do vazio como estra-tégia de suportá-lo:

A ausência torna-se uma prática ativa, um atarefamento (que impede de fazer qualquer outra coisa); cria-se uma ficção com múltiplos papeis (dúvidas, recriminações, desejos, melanco-lias). Essa encenação linguageira afasta a morte do outro: um momento brevíssimo, dizem, separa o tempo em que a criança ainda crê que a mãe está ausente e o tempo em que já crê morta. Manipular a ausência é alongar esse momento, retardar tanto quanto possível o instante em que o outro poderia resvalar se-camente da ausência para a morte. (Fragmentos de um discurso amoroso, p. 39)

Passando ao primeiro poema, diria que uma leitura ligeira leva-ria à conclusão de que estamos diante de um jogo de oposição en-tre a vivência do dia e da noite, mas é importante nos determos à forma e às palavras com singular atenção. No caso desta criação, temos cinco estrofes de dois versos cada, como vemos a seguir:

O que o dia teceA noite esquece.

O que o dia traça

4 Referência ao poema “Na véspera”, escrito por Fernando Pessoa e assinado com o heterônimo Álvaro de Campos.

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A noite esgarça.

De dia, tramas,De noite, traças.

De dia, sedas,De noite, perdas.

De dia, malhas,De noite, falhas.

Estamos, de alguma forma, diante da rotina da tecelã que es-pera. O ritmo e a distribuição das tônicas contínuas e marcadas nos mesmos pontos dão uma impressão de movimentos repeti-tivos, de vai e volta. Em cada par de versos, o segundo rebate o primeiro, como se a fúria da noite respondesse ao esforço do dia. Da terceira à quinta estrofe, os versos do dia passam a ser meno-res (três sílabas) enquanto os da noite continuam com quatro sí-labas. Distraída pelas atividades da tecelagem, dias que passam mais rápidos, enquanto as noites solitárias se mantêm.

As homofonias no final de cada verso apontam para o im-bricamento entre o diurno e o noturno, insinuando uma ligação entre as ações do dia e da noite. A poetisa parece procurar novos termos para dar a dimensão da engrenagem tecer/destecer, que vai além de um jogo de contrários: tece/esquece; traça/esgarça; tramas/traças; sedas/perdas; malhas/falhas. Na primeira par-te, sempre a presença de uma ação produtiva (tece, traça) e as imagens dos tecidos (sedas, malhas), matéria-prima de sua pró-pria vida, o que sustenta a sua espera.

Nos paralelos, a noite apresentada como lugar da instabi-lidade. Primeiramente, propícia ao alento, pois se pode aban-donar por algumas horas os pensamentos sobre a ausência e a pressão social pelo novo casamento – a rotina incômoda ador-mece. Como afirmou Barthes, “o amante que não esquece algu-mas vezes morre por excesso, cansaço e tensão de memória” (op.

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cit., p. 37). Os versos subsequentes, no entanto, lembram que é também a noite que “esgarça”, horário das “traças”, das “per-das”. O mesmo recolhimento que viabiliza o consolo, por outro lado, pode intensificar o cenário da solidão, da decomposição do tempo, e possibilitar – quando não exigir – as fugas e “falhas” in-viáveis sob o olhar atento da manhã.

Um diálogo é possível com o poema “Penélope (II)”, de es-trutura bastante diversa, mas que evidencia a interdependência das ações diurnas e noturnas:

A trama do diaNa urdidura da noiteOu a trama da noiteNa urdidura do diaEnquanto teço:A fidelidade por um fio.

Os quatro versos iniciais estruturam-se em um jogo simétrico entre dia/noite e trama/urdidura. Enquanto a primeira dupla é vista como oposta, a segunda tem sentidos comuns. São pala-vras que não só estão ligadas à tecedura, mas também carregam o significado de uma sucessão de ações – enredo – e ainda o de armação (este último mais comum em relação à palavra trama). O jogo de palavras inicial parece re-velar o andar em círculos forjado pela personagem: tecer e destecer como retroalimenta-ção de um ofício ad infinitum; uma autocondenação à condição de Sísifo, mas com a esperança de que o trabalho tenha fim.

Os dois últimos versos entregam a condição de fragilida-de em que se encontrava Penélope, sustentada por um segre-do. O novo matrimônio protelado pelo engodo, o risco corrido. Literalmente, levar ao artesanato dos fios a possibilidade de tudo continuar como está: à espera de Odisseu. O poema ainda nos faz pensar que ele também, longe de Ítaca, enfrenta, de dia, as tramas urdidas pela noite e, à noite, as urdidas pelo dia. A fi-delidade de Ulisses navegando em alto mar, entre ilhas de Circe

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e Calipso, e enquanto Penélope tece, parece ganhar tempo para o herói.

Em “Penélope (III)”, chegamos a um retrato mais enxuto, dois versos que parecem atuar como uma fotografia instantânea:

De dia dedais.Na noite ninguém.

Em termos sonoros, o poema é marcado pelas aliterações, a re-corrência da labiodental “d”, no primeiro verso, e da nasal “n”, no segundo. Além disso, o primeiro tem as suas palavras cen-trais “dia” e “dedais” formada pela vogal aberta “a”, enquanto o segundo traz “noite” e “ninguém”, palavras com vogais mais fe-chadas como “i” e mesmo a letra “o”. Decorre desse arranjo dos sons a impressão de um primeiro verso mais contundente, mais forte, enquanto o último tem um efeito remoedor, de murmúrio.

Além disso, arriscando um exercício de interpretação, po-deríamos pensar nos dedais como o elemento de proteção presen-te durante a tecedura, enquanto no trabalho de destecer, assim como em toda a sua experiência noturna, a heroína estava des-protegida. Mais uma vez, a noite aparece como elemento de ins-tabilidade e vulnerabilidade.

Saindo da ordem do livro, me permito antecipar a leitura do “Penélope (VI)” justamente por este também ser um poe-ma curto e impactante. Sutilmente iconoclasta, ele nos diz o seguinte:

E então se sentamLado a ladoPara que ela lhe narreA odisseia da espera.

Acostumados a vislumbrar Ulisses como o personagem que possui uma história para contar, somos convidados pela poeti-sa a experimentar um ângulo diferente neste que me parece o

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poema mais intrigante da série. Talvez a impressão se dê menos pela sofisticação formal e mais pelo leque de reflexões que ele proporciona.

No conhecido ensaio “O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, Walter Benjamin define o viajante como um dos protótipos do narrador, aquele que, por percorrer partes diversas do mundo, traz na bagagem relatos de interesse coletivo para partilhar. Defende também o morador que nunca saiu de seu lugar de origem como o maior conhecedor da tradição do local, por isso, apesar de estar no outro extremo da experiência, equi-valeria em repertório de histórias.

Apesar de Penélope corresponder ao perfil “daquele que permanece”, o caráter doméstico das mulheres da época invia-biliza que ela se encaixe em tal modelo de narrador. No entanto, ela parece metaforizar com precisão o perfil do escritor moderno, aquele que justamente se estabelece a partir da crise da narrativa tradicional. A própria Ana Martins já estabelece uma ponte nes-te sentido, ao falar do que a inquieta em relação à personagem:

Acho que o que me atrai na figura de Penélope é a revelação de que a espera também é um trabalho, cotidianamente feito e des-feito. Isso tem a ver com a espera amorosa – no livro Fragmentos de um discurso amoroso, Barthes define o enamorado como aque-le que espera –, mas tem também a ver com a leitura e com a escri-ta, com o texto como uma viagem que se faz em repouso. (apud Denise de Carvalho Dumith. O mito de Penélope e sua retomada na literatura Brasileira: Clarice Lispector e Nélida Piñon, p. 17)

Em entrevista ao jornal literário Rascunho, quando questiona-da sobre as condições ideais para escrever, a poetisa respondeu: “Solidão. Silêncio. Café. E tempo”. Mais adiante, quando soli-citada que complementasse a frase “Quando a inspiração não vem...”, ela juntou “faço anotações, leio, retomo textos antigos. E espero. Esperar é parte da escrita também”. Ora, por essas descrições, somos levados a pensar que alguns criadores con-

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temporâneos se impõem certa rotina “penelopiana” (solidão, tempo, espera).

Imagina-se que uma “odisseia da espera”, tal qual a lite-ratura moderna e contemporânea, é menos calcada em ações e mais em subjetividade; formada, possivelmente, por fluxos de consciência, divagações, sentimentos que preencheram e dis-traíram vinte anos. O exercício de tear e desmanchar uma mor-talha, de tear e desmanchar pensamentos, de tear e desmanchar sensações; a odisseia de quem não saiu do lugar, pois, citando mais uma vez a obra de Barthes, “a espera é um encantamen-to: recebi a ordem de não me mexer” (Fragmentos de um discurso amoroso, p. 165).Vemos, na série, como a poetisa coloca Ulisses em função da

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história de Penélope e não o contrário, como é mais costumeiro. Novamente, notamos o revigoramento do mito e as evidências de sua força e resistência, sem a necessidade de deslizar para um discurso que dita ou condena comportamentos.

Os poemas “Penélope (IV)” e “Penélope (V)” possuem um tom de ressentimento e desgaste mais explícito. Neles, é expos-ta a dimensão da transformação que o tempo operou na heroína. Vejamos o primeiro:

E ela não disseJá não te pertençoHá muito entreguei meu coração ao sossegoEnquanto seu coração balançava em viagemEnquanto eu me consumiaEntre os panos da noiteVocê percorria distâncias insuspeitadasCorpos encantados de mulheres com cujas línguasEstranhas eu poderia tecer uma mortalhaDa nossa língua comum.E ela não disseNo início ainda pensei em vocêPrimeiro como quem visita em lembrança a praia infânciaE então como quem recorda o amplo verãoE depois como quem esquece.E ela também não disseA solidão pode ter muitas formas,Tantas quantas são as terras estrangeiras,E ela é sempre hospitaleira.

“E ela não disse”, “E ela não disse”, “E ela também não disse”. Um canto do que foi silenciado, é preciso dar voz à personagem para poder acessar justamente o que está guardado na sua odis-seia. A aprendizagem da solidão metamorfoseada em versos confessionais do que não foi confessado. A aprendizagem do sossego e da consumição “entre os panos da noite”. O conforto

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de aprender a conviver com uma ausência, de se acostumar com a vida sem o alguém que se aguarda – das mais dolorosas cons-tatações entre os amantes: é possível ao outro seguir sem mim.

“A solidão pode ter muitas formas.” Este verso nos leva de volta à associação entre Penélope e a escrita, a experiência do abandono como fonte criativa inesgotável, como vivência elástica que aglutina muitas formas de sentir. “E ela é sempre hospitaleira.” Mais uma vez, Ana Martins aproxima Penélope e Ulisses pela diferença, as situações distintas em que estavam envolvidos eram igualmente penosas e exigiam enfrentamen-tos e conformações. O poema, neste caso, sugere a adaptação e o apaziguamento conquistado a seu preço.

“Penélope (V)”, finalmente, retoma vários recursos já uti-lizados e traz para o centro, mais uma vez, a espera. Aqui, lança--se luz sobre as expectativas, as fantasias de uma volta que não se concretizava, só restando, mais uma vez, a manutenção do tempo e da esperança.

A viagem pela espera É sem retorno.Quantas vezes a noite teceuA mortalha do dia,Quantas vezes o dia Desteceu sua mortalha? Quantas vezes ensaiei o retorno –O rito dos risos,Espelho tenro, cabelos trançados, Casa salgada, coração veloz?A espera é a flor que eu consigo. Água do mar, vinho tinto – o mesmo copo.

Do lugar de solidão e, possivelmente, autonomia para o qual Penélope foi levada – sem sair de Ítaca – talvez seja impossível re-tornar. Como voltar ao que era antes? A mulher exemplar pode seguir cumprindo o seu papel perante a sociedade, mas não há

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BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2003.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Vol. I, São Paulo: Brasiliense, 1994.

BR ANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. Vol. II, 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 1991.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas, 2006.

DUMITH, Denise de Carvalho. O mito de Penélope e sua retomada na literatura Brasileira: Clarice Lispector e Nélida Piñon. 2012. Tese (Doutorado em Estudos de Literatura) – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2012.

MARQUES, Ana Martins. A vida submarina. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.

______ . Da arte das armadilhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

______ . Uma coisa pequena, fugaz. Rascunho. 2012. Disponível em: <http://rascunho.gazetadopovo.com.br/uma-coisa-pequena-fugaz/>. Acesso em: 1 jun. 2014.

MELO, Gianni Paula de. “Como montar uma armadilha para os amantes”. Suplemento Pernambuco. 2012. Disponível em: <http://www.suplementopernambuco.com.br/index.php/component/content/article/5-perfil/535-como-montar-uma-armadilha-para-os-amantes-.html>. Acesso em: 1 jun. 2014.

SILVA, Ricardo Nonato Almeida de Abreu. “Novas Penélopes: a rasura de um mito na literatura de autoria feminina”. In: Seminário nacional mulher e literatura, 14., 2011, Brasília, 2011.

como ignorar a provação atravessada, os anseios e desejos res-pondidos com frustrações – o ensaio do retorno por duas décadas. “Quantas vezes a noite teceu/ a mortalha do dia,/ quantas vezes o dia/ desteceu sua mortalha?” Aqui, vemos invertida a prática da personagem: a noite tece e o dia destece. Mais uma vez, a poe-ta nos propõe uma perturbação. Seria a estratégia de espera a pró-pria condenação da heroína? E se Penélope tivesse preferido não ser aquela que espera? Os enamorados, no entanto, parecem já ter o seu verso de ordem: A espera é a flor que eu consigo.

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tradução

“Primeira Heroide: De Penélope a Ulisses”,1 de OvídioHenrique Barbosa

A ti manda esta, ó lento Ulisses, tua PenélopeNão quero que respondas, vem tu mesmo!Jaz certamente Troia, rival das dânaas moças,Príamo não vale tanto ou toda Troia.Quisera eu, quando a frota espartana atacou,Que fora o adúltero arrojado ao mar.Não jazeria eu, fria, neste deserto catre,Nem maldiria a lerdeza dos dias.Nem, querendo enganar a vastidão da noite,Mãos viúvas cansaria à pênsil teia.Quando não temi perigos mais vis que a vida?O amor é pleno de ansiosos medos.Troianos contra ti, violentos, entrevia;Perdia a cor ao som do hectóreo nome.Se Antíloco narravam, por seu rival morto,Antíloco era agora o nosso medo.Se o Menotida, sob armas falsas, caísse,Carpia o insucesso dos engenhos.Com sangue, Tlepolemo amorna a lícia flecha:Novo problema é a morte do Heraclida.

1 Esta tradução baseia-se no texto consolidado apresentado no livro Ovid: Heroides and Amores (1914), The Loeb Classical Library, Londres: William Heinemann. Para discussão sobre a consolidação do texto consultar a página 5 da obra acima referida. [N.T.]

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Por fim, cada vencido nas tendas aqueiasSobregelava o peito da que ama.Mas o justo deus bem cuidou do puro amorIncólume o que em cinzas verteu Troia.Argivos chefes volvem, fumo nos altares;Butim de alhures posto aos deuses pátrios.Noivinhas dão graças por seus salvos maridosQue cantam o troico victo destino.Se assombram retos velhos, meninas ansiosas,Da boca de um que narra pende a noiva.E outro, à mesa posta, conta duras batalhasCom pouco vinho pinta toda Pérgamo:“Ali o Simoís, acolá terra SigeiaAqui a torre de Príamo velho.Ali a tenda Eácida, ali a de Ulisses;Aqui assustou cavalos Héctor morto”.Ao filho teu lançado a procurar-te, o velhoNestor tudo reconta; e ele a mim.Reconta Reso e Dólon, mortos pela espada:A este o dolo, àquele o sono, trai.Ousado és – tu que esqueces mais e mais dos teus! – Tomar de assalto, à noite, as tendas troicasE, com a ajuda de um, abater ali todos!Porém, cuidava antes lembrar de mim.Tremeu de medo meu seio, até me contaremDe ti, vitorioso, em trácios cavalos.De que me servem, desmontadas por teus braçosÍlion e sua muralha que hoje é chão,Se permaneço como quando Troia havia:Meu homem numa ausência tão sem fim?A todos destruída, só a mim Pérgamo segueOnde ara, como um boi, seu vencedor.É hoje roça o que era Troia, terra gordaDe sangue Frígio, boa colheita à foice.O arado toca heroicos ossos insepultos,

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Oculta a erva ruinosos lares.Ausente o campeão, e nem me é dado saberPor que demora ou onde, cruel, se esconde!Quem quer que volva à costa, estrangeira nauParte após mil perguntas sobre ti,E o que a ti leva, caso te veja, é esta cartaA ser-te entregue, por dedos meus feita.A Pilos enviamos, terras do antigo Néstor,Incerta notícia nos manda Pilos.A Esparta enviamos; da verdade não sabiam.Que terras habitas? Onde demoras?Melhor seria se intactos os febos muros;Que ódio – Volúvel! – destes votos meus!Saberia onde lutas, só à guerra meu medo,Seria igual lamento ao de outros tantos.Ignoro o que temo – daí, louca, temo tudo,Por ampla área estende-se minha ânsia.Quer estejam em mar ou terra tais perigos,É de se suspeitar tão longa espera.Tola, temo que – de própria vontade – possasSer cativo de um amor estrangeiro.Talvez tu narres de quão rude esposa tens,Versada só em trabalhar a lã.Errada esteja, e nada seja esta denúncia:Que, livre a voltar, queira estar ausente!Do viúvo leito meu pai Icário comandaQue eu desça, e reprova imensa demora.Que reprove – tua sou, tua devo ser chamada;Sempre serei Penélope, a de Ulisses.Mesmo eles abrandam minha lealdade e castasPreces: seu próprio desmando atenua.Dulíquios, Sâmios, aqueles da alta Zaquintos:Contra mim luxurioso estouro de homens.Reinam teu castelo sem ninguém que os detenhaMeu coração, tua riqueza arrasados.

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Que devo a ti dizer de Pisandro, Políbio,Médon cruel, e das ávidas mãosDe Eurímaco, Antínoo, e de outros que alimentasDaquilo que com sangue conquistastes?Irus mendigo, e o que às bocas leva o gadoÀ tua ruína apõem vergonha máxima.Três somos, e inaptos à guerra: fraca esposa;Laertes velho; Telêmaco jovemQue quase de mim traiçoeiramente tiradoFoi ao preparar, contra todos, viagem.Rogo aos deuses que, como é a ordem das coisas,Meus olhos ele feche, e os teus!Assim rogam o pastor dos bois e a velha ama,E o fiel guarda da pocilga imunda.Mas nem Laertes, cujas armas são inúteis,Pode impor sua regra aos adversários,Telêmaco, se vive, chega à forte idade;Mas para agora requer pátrio auxílio.Nem posso eu daqui repelir os inimigosVem rápido ao teu porto e ao teu altar!Tens um filho – que, oro, sempre tenhas – quem, novo,Devias ter instruído às pátrias artes.Vê teu pai: para que possas fechar-lhe os olhos,Suspende o dia do destino último.Decerto eu que, quando foste, era menina,Ainda que voltes logo: serei velha.

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Publius Ovidius NasoI. Penelope Vlixi

Haec tua Penelope lento tibi mittit, UlixeNil mihi rescribas attinet: ipse veni!

Troia iacet certe, Danais invisa puellis;Vix Priamus tanti totaque Troia fuit.

O utinam tum, cum Lacedaemona classe petebat,Obrutus insanis esset adulter aquis!

Non ego deserto iacuissem frigida lecto,Nec quererer tardos ire relicta dies;

Nec mihi quaerenti spatiosam fallere noctemLassaret viduas pendula tela manus.

Quando ego non timui graviora pericula veris?Res est solliciti plena timoris amor.

In te fingebam violentos Troas ituros;Nomine in Hectoreo pallida semper eram.

Sive quis Antilochum narrabat ab hoste revictum,Antilochus nostri causa timoris erat;

Sive Menoetiaden falsis cecidisse sub armis,Flebam successu posse carere dolos.

Sanguine Tlepolemus Lyciam tepefecerat hastam;Tlepolemi leto cura novata mea est.

Denique, quisquis erat castris iugulatus Achivis,Frigidius glacie pectus amantis erat.

Sed bene consuluit casto deus aequus amori.Versa est in cineres sospite Troia viro.

Argolici rediere duces, altaria fumant;Ponitur ad patrios barbara praeda deos.

Grata ferunt nymphae pro salvis dona maritis;Illi victa suis Troica fata canunt.

Mirantur iustique senes trepidaeque puellae;Narrantis coniunx pendet ab ore viri.

Atque aliquis posita monstrat fera proelia mensa,Pingit et exiguo Pergama tota mero:

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‘Hac ibat Simois; haec est Sigeia tellus;Hic steterat Priami regia celsa senis.

Illic Aeacides, illic tendebat Ulixes;Hic lacer admissos terruit Hector equos.’

Omnia namque tuo senior te quaerere missoRettulerat nato Nestor, at ille mihi.

Rettulit et ferro Rhesumque Dolonaque caesos,Utque sit hic somno proditus, ille dolo.

Ausus es – o nimium nimiumque oblite tuorum! –Thracia nocturno tangere castra dolo

Totque simul mactare viros, adiutus ab uno!At bene cautus eras et memor ante mei!

Usque metu micuere sinus, dum victor amicumDictus es Ismariis isse per agmen equis.

Sed mihi quid prodest vestris disiecta lacertisIlios et, murus quod fuit, esse solum,

Si maneo, qualis Troia durante manebam,Virque mihi dempto fine carendus abest?

Diruta sunt aliis, uni mihi Pergama restant,Incola captivo quae bove victor arat.

Iam seges est, ubi Troia fuit, resecandaque falceLuxuriat Phrygio sanguine pinguis humus;

Semisepulta virum curvis feriuntur aratrisOssa, ruinosas occulit herba domos.

Victor abes, nec scire mihi, quae causa morandi,Aut in quo lateas ferreus orbe, licet!

Quisquis ad haec vertit peregrinam litora puppim,Ille mihi de te multa rogatus abit,

Quamque tibi reddat, si te modo viderit usquam,Traditur huic digitis charta notata meis.

Nos Pylon, antiqui Neleia Nestoris arva,Misimus; incerta est fama remissa Pylo.

Misimus et Sparten; Sparte quoque nescia veri.Quas habitas terras, aut ubi lentus abes?

Utilius starent etiamnunc moenia Phoebi –

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Irascor votis, heu, levis ipsa meis!Scirem ubi pugnares, et tantum bella timerem,

Et mea cum multis iuncta querela foret. Quid timeam, ignoro – timeo tamen omnia demens,

Et patet in curas area lata meas.Quaecumque aequor habet, quaecumque pericula tellus,

Tam longae causas suspicor esse morae.Haec ego dum stulte metuo, quae vestra libido est,

Esse peregrino captus amore potes.Forsitan et narres, quam sit tibi rustica coniunx,

Quae tantum lanas non sinat esse rudes.Fallar, et hoc crimen tenues vanescat in auras,

Neve, revertendi liber, abesse velis! Me pater Icarius viduo discedere lecto

Cogit et immensas increpat usque moras.Increpet usque licet – tua sum, tua dicar oportet;

Penelope coniunx semper Ulixis ero.Ille tamen pietate mea precibusque pudicis

Frangitur et vires temperat ipse suas.Dulichii Samiique et quos tulit alta Zacynthos,

Turba ruunt in me luxuriosa proci,Inque tua regnant nullis prohibentibus aula;

Viscera nostra, tuae dilacerantur opes.Quid tibi Pisandrum Polybumque Medontaque dirum

Eurymachique avidas Antinoique manusAtque alios referam, quos omnis turpiter absens

Ipse tuo partis sanguine rebus alis?Irus egens pecorisque Melanthius actor edendi

Ultimus accedunt in tua damna pudor.Tres sumus inbelles numero, sine viribus uxor

Laertesque senex Telemachusque puer.Ille per insidias paene est mihi nuper ademptus,

Dum parat invitis omnibus ire Pylon.Di, precor, hoc iubeant, ut euntibus ordine fatis

Ille meos oculos conprimat, ille tuos!

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Hac faciunt custosque boum longaevaque nutrix,Tertius inmundae cura fidelis harae;

Sed neque Laertes, ut qui sit inutilis armis,Hostibus in mediis regna tenere potest –

Telemacho veniet, vivat modo, fortior aetas;Nunc erat auxiliis illa tuenda patris –

Nec mihi sunt vires inimicos pellere tectis.Tu citius venias, portus et ara tuis!

Est tibi sitque, precor, natus, qui mollibus annisIn patrias artes erudiendus erat.

Respice Laerten; ut tu sua lumina condas,Extremum fati sustinet ille diem.

Certe ego, quae fueram te discedente puella,Protinus ut venias, facta videbor anus.

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tradução

“Não perder para a chuva”, de Kenji MiyazawaJony Pupo

Kenji Miyazawa nasceu em 1886, filho de um abastado penho-rista, numa cidade bem pequena e rural do Japão (Hanamaki, prefeitura de Iwate). Desde jovem, diz-se que Kenji incomoda-va-se muito com o fato da riqueza de sua família provir da extor-são das famílias agricultoras de sua região. Estudou agricultura e geologia, e foi um fervoroso praticante de Budismo.

Mudou-se para Tokyo, após desavenças com a família. Foi professor de ciência da agricultura. Escreveu contos de fadas, histórias para crianças e poemas, tendo publicado o seu primei-ro livro por conta própria, Chūmon no Ōi Ryōriten (algo como O restaurante de vários pedidos).

De 1926 até o ano de sua morte, em 1933, dedicou-se a me-lhorar a qualidade de vida das pessoas de sua terra natal, em Iwate. Implantou novas técnicas de agricultura, e iniciou uma espécie de Associação de Agricultores, onde dava aulas de agro-nomia, mas também havia diversas atividades culturais, como música e teatro.

Ame ni mo makezu é provavelmente o seu poema mais fa-moso, tendo se tornado um hino de inspiração para o Japão após o tsunami de 2011.

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Não perder para a chuva

Não perder para a chuvaNão perder para o ventoNão perder para a neveNem para o calor do verãoManter um corpo forteSem apegos nem ganânciasNunca se irritarEstar sempre rindo silenciosamentePor dia, comer arroz integralCom missôE um pouco de legumesEm todas as coisasColocar-se por últimoOuvir tudo e ver tudo EntenderE não esquecerViver num pequeno casebreCom telhado de palhaÀ sombra dos pinheirosDa florestaSe ao leste houverUma criança doenteIr até ela e tratá-laSe à oeste houverUma mãe cansadaIr até ela e ajudá-laSe ao sul houverAlguém à beira da morteIr e dizer que não é preciso medoSe ao norte houverBrigas e desavençasDizer que parem, tamanhaTolice

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Na seca, derramar lágrimasNos verões frios, vagar pensativo Chamado por todosCabeça-de-ventoNão sendo louvadoNem corrompidoTal pessoa Eu quero me tornar

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"Ame ni mo makezu"

雨ニモマケズ風ニモマケズ雪ニモ夏ノ暑サニモマケヌ丈夫ナカラダヲモチ慾ハナク決シテ瞋ラズイツモシヅカニワラッテイル一日ニ玄米四合ト味噌ト少シノ野菜ヲタベアラユルコトヲジブンヲカンジョウニ入レズニヨクミキキシワカリソシテワスレズ野原ノ松ノ林ノ蔭ノ小サナ萱ブキノ小屋ニイテ東ニ病気ノ子供アレバ行ツテ看病シテヤリ西ニツカレタ母アレバ行ツテソノ稲ノ束ヲ負ヒ南ニ死ニソウナ人アレバ行ツテコワガラナクテモイイトイイ北ニケンカヤソショウガアレバツマラナイカラヤメロトイイヒデリノトキハナミダヲナガシサムサノナツハオロオロアルキミンナニデクノボウトヨバレホメラレモセズクニモサレズソウイウモノニワタシハナリタイ

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transliteração

Ame ni mo makezuKaze ni mo makezuYuki ni mo natsu no atsusa ni mo makenuJōbu na karada wo mochiYoku wa nakuKesshite ikarazuItsu mo shizuka ni waratte iruIchi nichi ni genmai yon gō toMiso to sukoshi no yasai wo tabeArayuru koto woJibun wo kanjō ni irezu niYoku mikiki shi wakariSoshite wasurezuNohara no matsu no hayashi no kage noChiisa na kayabuki no koya ni iteHigashi ni byōki no kodomo arebaItte kanbyō shite yariNishi ni tsukareta haha arebaItte sono ine no taba wo oiMinami ni shinisō na hito arebaItte kowagaranakute mo ii to iiKita ni kenka ya soshō ga arebaTsumaranai kara yamero to iiHideri no toki wa namida wo nagashiSamusa no natsu wa oro-oro arukiMinna ni deku-no-bō to yobareHomerare mo sezuKu ni mo sarezuSō iu mono niWatashi wa naritai

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Louvor e crise da transitoriedade Sobre A montanha mágica de Thomas MannFelipe Catalani

“Hoje, tais reflexões [sobre o progresso]Culminam na consideração sobre se a humanidadeSerá capaz de evitar a catástrofe.”Theodor Adorno, “Progresso”

Com o perdão da Crítica imanente, que, com justiça, exige que se parta do objeto analisado, gostaria de analisar alguns aspec-tos do romance A montanha mágica, de Mann, começando com um comentário sobre (mais precisamente, uma citação de) um outro texto seu – a saber, um ensaio de 1952 intitulado “Louvor à transitoriedade”. A razão disto logo veremos.

Thomas Mann inicia seu ensaio declarando que o que ele considera mais importante é a transitoriedade, pois:

ela é a alma do ser, é aquilo que proporciona a toda vida, valor, dignidade e interesse, pois ela cria o tempo – e tempo é, pelo me-nos potencialmente, a dádiva mais alta e a mais útil, aparentada em sua essência com, idêntica mesmo a todo criativo e ativo, a toda vivacidade, a todo querer e aspiração, a todo aperfeiçoa-mento, a todo progresso para o mais sublime e o melhor. Onde não há transitoriedade, princípio e fim, nascimento e morte, não há tempo, – e a falta de tempo é o nada estagnado, tão bom e tão ruim como o desinteressante absoluto.

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À primeira vista poder-se-ia dizer que isso são observações de um heracliteano extemporâneo com pitadas positivistas de ideologia do progresso. Mas tal reflexão sobre o tempo ilumina o (e é também iluminada pelo) romance em questão, que, mais de vinte anos antes da elaboração do ensaio, refletia sobre uma transitoriedade agonizante, um tempo em suspenso. Uma ques-tão significativa para nós seria: que tempo é este?

Nosso herói prosaico e ordinário, Hans Castorp, herdeiro e aspirante ao trabalho de engenheiro naval, pretende fazer uma visita a seu primo Joachim Ziemssen no sanatório de doenças pulmonares de Davos-Platz nos Alpes suíços. A visita, que segun-do seu planejamento duraria três semanas, acaba se estendendo por sete anos. A recomendação de que Castorp não retorne para “as planícies lá em baixo” e permaneça “lá em cima” parte do médico-diretor, que, nunca tendo conhecido alguém saudável na vida, possui um incrível afã internador, fazendo lembrar as descrições foucaultianas das grandes internações do hôpital gé-néral de Paris, que no século xviii chegou a “abrigar” um por cento da população parisiense, entre leprosos, loucos, crimino-sos e vagabundos. A diferença entre o hôpital général parisiense e o nosso sanatório em Davos-Platz é que, se em um era inter-nado basicamente o lumpesinato urbano de Paris, excluídos da dinâmica (e, por conseguinte, do tempo) social do trabalho, da civilidade, e da saúde mental e física, no outro é a aristocracia e a alta burguesia europeia, um pouco decadentes, que estão in-ternados, doentes, e reclusos da transitoriedade de “lá de bai-xo”. Ali em cima, o espírito europeu se torna paciente, e a aris-tocracia convalescente assume ares românticos, principalmente se levarmos em conta a simbologia da tuberculose na tradição do romantismo.1 De todo modo, o tempo-espaço da montanha aparece como totalmente alienado do tempo-espaço da planície.

Tanto o leitor como a personagem principal possuem uma experiência do tempo que se transforma ao longo do romance, ao longo da aclimatação na montanha mágica. O narrador, em seu “propósito”, já convida o leitor ao tempo demorado da nar-

1 “Thomas Mann não poderia ter escolhido um cenário mais apropriado para sua grande crítica do espírito europeu que um sanatório; não só porque o espírito europeu torna-se um paciente, mas sobretudo porque espírito e doença são aliados tradicionalmente românticos.” (Tradução livre) HELLER, Erich. Thomas Mann. Der ironische Deutsche. Frankfurt am Main: SuhrkampVerlag, 1959, p. 236. 2 Esta observação sobre a formalização do tempo no romance e os dois planos temporais foi feita na dissertação de mestrado de Menegaldo Augusto da Silva Rodrigues, intitulada A representação do tempo no romance Der Zauberberg de Thomas Mann. Este, por sua vez, atribui a análise a Günther Müller e à retomada feita por Paul Ricoeur em Tempo e narrativa, e também por Benedito Nunes em O tempo da narrativa. Entretanto, apesar de filosoficamente sensível em muitos aspectos, esta linha de análise parece carecer de um esforço de reflexão histórica sobre o condicionamento social do tempo.

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ração porvir, que é também, objetivamente, a demora da leitura de um romance de setecentas e cinquenta páginas. Se, no início do livro, a narração toma uma boa centena de páginas para o primeiro dia de Castorp, o tempo narrativo se dilui na repetição, no hábito, na mesmice que é o ambiente do romance, de forma que o tempo passa a voar – tão rápido como se não passasse – de modo a criar formalmente uma distinção entre o tempo narrado [erzählte Zeit] e o tempo dedicado à narrativa, ou o tempo-de--narrar [Erzählzeit].2 E assim se passam os meses, as estações, os anos. A suspensão do tempo é sentida como a descrição de hábitos que o nosso herói passa a adotar:

Quando voltaram ao quarto de Hans Castorp, depois do almo-ço, já se encontrava ali, sobre uma cadeira, o embrulho dos co-bertores; e nesse dia o jovem serviu-se deles pela primeira vez. Joachim, que já estava habituado a isso, ensinou-lhe a arte de agasalhar-se que todos exerciam ali em cima e os recém-che-gados tinham de aprender. Os cobertores deviam ser estendi-dos, um após outro, sobre a cadeira de repouso, de maneira que um bom pedaço deles sobrasse no lugar dos pés. A seguir, a pes-soa estendia-se na cadeira e começava a envolver-se no cober-tor superior, primeiro de um lado, a todo o comprimento, até as axilas, depois na parte de baixo, por cima dos pés, o que reque-ria que a pessoa se soerguesse, se inclinasse para a frente e apa-nhasse ambas as camadas da extremidade dobrada, e por fim do outro lado, sendo importante ajustar cuidadosamente a pon-ta dupla da referida extremidade às bordas da cadeira, a fim de conseguir um máximo de regularidade. (p. 108)

A narração desse ato ritualizado, e de muitos outros dos primei-ros dias de Hans Castorp, não será repetida, pois ele será igual ao longo de todos os outros dias dos sete anos que se seguirão. “Quando um dia é como todos, todos são como um só.” (p. 111). A variação no espaço e no tempo não acontece, é o “nada estag-nado” e o “desinteressante absoluto” do hábito regular que pre-

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domina no romance. O próprio narrador nos conduz a esta refle-xão, ao mostrar que “os anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo tempo e voam” (p. 110). A magia da mon-tanha mágica [Zauberberg] é a suspensão dos acontecimentos, a repetição como um feitiço [Zauber]. A montanha é mágica, ou enfeitiçada, de modo que seu tempo seja circular, um tempo não histórico, mas próximo do tempo mítico, um tempo imensu-rável. Em dado momento, Hans Castorp abdica até mesmo do uso do relógio de pulso. O tempo retilíneo do progresso, assim como o tempo abstrato e mensurável do trabalho e da ativida-de, é o tempo “lá de baixo”, da planície, onde a renda dos “lá de cima” continua a render, de modo que as remessas de dinheiro são continuamente enviadas para a montanha. Ora, o condicio-namento desse tempo suspenso e mágico não deixa de ser algo sócio-histórico e sedimentado na posição de classe das persona-gens da montanha mágica; um condicionamento, digamos as-sim, pouco mágico, e muito pelo contrário, que não deixa de ser evidenciado pelo narrador. Entre aristocratas russos, um notá-vel burguês italiano, um magnata holandês e até mesmo uma princesa egípcia, não há quem esteja envolvido no mundo do trabalho, que é o mundo necessariamente marcado pelo relógio de ponteiro e de ponto.

Não que a estadia em Davos do nosso herói em nada heroi-co seja completamente tediosa. Há, por exemplo, uma aventura amorosa, mas que é prescindível para a estrutura do romance – uma aventura que não configura nenhum destino significante do herói e que possui uma ligação frouxa com o enredo.3 Ao lon-go do romance, não há acontecimentos propriamente ditos (com a exceção do final, quando o tempo é acelerado – retomaremos o final mais adiante), e sim pequenos episódios narrados por um narrador frio e irônico. A morte é apresentada com indiferen-ça, e, por vezes, com uma comicidade forçada, quase intragável, apesar dela mesma ser um dos temas centrais do romance, as-sumindo inclusive suas feições metafísicas em relação à forma

3 Espero não forçar a mão, mas já forçando, ao fazer uma analogia (um pouco anacrônica) com a análise que Lukács faz da corrida de cavalos em Naná de Zola: “[...] esta descrição, com todo o seu virtuosismo, não passa de uma digressão no interior do romance. Os acontecimentos da corrida são apenas frouxamente ligados ao enredo e poderiam facilmente ser suprimidos, já que sua ligação com o todo consiste apenas no fato de que um dos muitos amantes passageiros de Naná se arruinou em consequência da descoberta da negociata”. LUKÁCS, Georg, “Narrar ou descrever? Uma discussão sobre naturalismo e formalismo”. In: Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010. 4 “Sterben ist physisch, der Tod metaphysisch.” (Morrer é físico, a morte, metafísica. [Tradução livre]) Esta passagem encontra-se num texto de Alfred Schmidt, de temática um pouco distante do nosso objeto: “Adornos Spätwerk: Übergang zum Materialismus als Rettung des Nichtidentischen”.

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física do morrer.4 Joachim, um personagem central e, por que não dizê-lo, querido pelo leitor, morre sem nenhuma cerimônia:

Às seis da tarde foi tomado por uma mania bizarra: com a mão direita, cujo pulso estava guarnecido de uma pulseira de ouro, esfregou várias vezes a colcha, à altura dos quadris, e a seguir, ao retirá-la, ergueu-a e fez um gesto de quem ajunta ou recolhe alguma coisa.Às sete horas morreu. (p. 561)

A descrição dos cadáveres que descem a montanha na pista de bobsleigh também não carece de banalidade, seguido pelo riso de Castorp. Diversas cenas que envolvem morte ou doença são acompanhadas de risos descabidos de algum personagem. O tom irônico destrói qualquer possibilidade de espírito trágico que a morte poderia evocar. Ironicamente ou não, Hans Castorp se rebela, a certa altura, contra a maneira como parte do Sanatório e as pessoas que ali habitam (e quem sabe, como ele mesmo e o próprio narrador) lidam com a morte, pois os óbitos que ali ocorrem são sempre ocultados como se não aconteces-sem, de forma que a normalidade da rotina sem transitoriedade seja preservada. Afinal, a morte é a expressão maior da transito-riedade da vida, ela mesma um grande acontecimento. O dese-jo de Castorp de encarar a morte, de moralizar-se, faz parte das contratendências de sua aclimatação na montanha, que durante longo período parece não se realizar de modo pleno, e por outro lado configura uma trajetória do herói que se sensibiliza e se es-piritualiza, fazendo d’A montanha mágica um romance na tradi-ção do romance de formação.5

Parece-me que o mundo e a vida foram feitos de sorte que deve-ríamos andar sempre de preto, com uma golilha engomada em lugar do colarinho, e manter uns com os outros relações graves, reservadas e formalistas, recordando-nos da morte. Gostaria que assim fosse. Acho que isso corresponde à moral. (p. 306)

5 Como observa Erich Heller no seu já citado Zauberberg-Gespräch, diálogo settembriniano sobre A montanha mágica, se no Wilhelm Meisterde de Goethe o herói passa de um gênio a um membro útil da sociedade, Hans Castorp passa de membro útil da sociedade a gênio. O professor Jorge de Almeida (que ministrou um curso sobre crise do romance, que deu origem a este ensaio) interpreta A montanha mágica como um romance de formação negativa, no qual o herói aparece já formado, pronto para encarar o mundo (do trabalho), e é deformado ao longo do romance, atingindo com isso simultaneamente uma outra formação.

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A música também o sensibiliza em dado momento. Isto, porém, acontece diante de um equipamento de última geração da épo-ca que é o toca-discos.6 O romantismo que surge é trabalhado por Thomas Mann sempre em chave crítica e irônica; afinal a Europa do início do século xx está à beira de sua desintegra-ção. O horizonte civilizatório e humanizador do Progresso per-de sentido – e esta carência de sentido dá o sentido do roman-ce. O tempo em suspenso é o tempo do impasse que antecede a Grande Guerra, o acontecimento que dará sentido à vida e dire-ção ao tempo, numa dimensão catastrófica. Os discursos apolo-géticos do Ocidente de Settembrini, o iluminista italiano, eram em vão e não puderam convencer. No final do livro já se cons-tata: “O progresso? Meu Deus podia-se compará-lo ao famoso caso do enfermo que estava sempre a mudar de posição porque esperava encontrar algum alívio nisso. Um desejo não confessa-do, mas muito difundido, secretamente, o de ver rebentar uma guerra era a expressão deste estado” (p. 722).

Nas últimas páginas do livro, a montanha mágica é no-meada enquanto tal, pela primeira vez, após o enunciado do tí-tulo, como se isso fosse a saída do seu encanto para o aconteci-mento que retoma o tempo, lembrando o quanto dele passou, e agora acelerado pelo trovão, “o trovão que fez explodir a mon-tanha mágica e pôs na rua o nosso sonhador adormecido.” (p. 742). Todos os convalescentes que estavam ali a esperar a “cura definitiva” antes de descer se precipitam e se locomovem no es-paço de forma, literalmente, acelerada: “De cinco mil pés de al-tura, os seus habitantes precipitavam-se de cabeça para baixo em direção à planície onde os aguardava a prova, suspensos dos estribos do comboiozinho tomado de assalto, deixando atrás de si, se assim fosse necessário, as bagagens que atulhavam os cais da estação” (p. 745). As últimas quatro páginas são um tur-bilhão narrativo, um encadeamento veloz de ações e descrições do campo de guerra no qual se perde de vista o nosso herói, cujo destino desconhecemos – vislumbramos sua imagem ao longe, cantarolando (!) sem pensamentos, escapando da morte. Mas,

6 Ainda o texto de Heller.

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afinal, o que importa não é ele, e sim sua história. E eis que a formação do nosso herói não poderá salvá-lo, fazendo dela uma formação em vão. O narrador se despede dele, e lhe deixa sua mensagem cruel:

Certas aventuras da carne e do espírito, que educaram a tua simplicidade permitiram-te vencer no domínio do espírito aqui-lo a que não escaparás certamente no domínio da carne. (p. 749)

A transitoriedade, justamente o que Thomas Mann julga o mais importante, criador de todo o ser, promessa do progresso, apa-rece como a tragédia. A resolução da crise da transitoriedade não é resolução alguma, pois a retomada do tempo histórico e a saída do “nada estagnado” não conduz ao “criativo e ativo”, à “vivacidade” e ao “aperfeiçoamento”, mas à destruição total e à morte. O “elogio/louvor” (Lob) da transitoriedade é possível no romance como uma promessa (embora duvidosa e quase kitsch) de que algo surgirá após a queda na barbárie:

Será que dessa festa da morte, dessa perniciosa febre que incen-deia à nossa volta o Céu desta noite chuvosa, também o amor surgirá um dia? (p. 749)

ADORNO, Theodor. “Progresso”. In: Palavras e sinais: modelos críticos 2. Trad. Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995.

HELLER, Erich. Thomas Mann. Der ironische Deutsche. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1959.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; 34, 2000.

______ . “Narrar ou descrever? Uma discussão sobre naturalismo e formalismo”. In: Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad. Herbert Caro. Lisboa: Edição “Livros do Brasil”, 1957.

______ . Ensaios. Org: Anatol Rosenfeld. Trad: Natan Zins. São Paulo: Perspectiva, 1998.

SCHMIDT, Alfred. “Adornos Spätwerk: Übergang zum Materialismus als Rettung des Nichtidentischen”. In: Emanzipation als Versöhnung. Org: Alfred Schmidt. Frankfurt am Main: Neue Kritik Verlag, 2002.

SILVA RODRIGUES, Menegaldo Augusto. A representação do tempo no romance Der Zauberberg de Thomas Mann. Dissertação de mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009.

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A Odisseia da tradução: entre-lugares1

Gabriel Alonso Guimarães

Haroldo de Campos, no Post Scriptum de Deus e o Diabo no Fausto de Goethe, retoma uma afirmação do crítico Hugh Kenner em relação ao primeiro dos Cantos poundianos. Segundo Kenner, a ida de Odisseu ao Hades – retraduzida por Pound – seria uma “neat metaphor for translation” [clara metáfora para a tradu-ção] (Tradução minha). Campos tece três linhas de comentá-rios a essa formulação e não desenvolve a metáfora; deixa para que outros a traduzam. É o que proponho fazer neste artigo. Parto, para tal empreitada, de uma tradução específica, escolhi-da por gosto pessoal: a Odisseia segundo Carlos Alberto Nunes, e só nela me baseio. Minha intenção não é ler Homero, mas lê--lo – para usar a frase de Borges – “através das experiências” de seu Menard.

No canto XI da Odisseia, o herói narra aos feácios como ele partira rumo ao Hades para obter de Tirésias, o adivinho teba-no, as informações necessárias à sua volta para Ítaca. Com o au-xílio de Circe, navegara até a cidade dos Cimérios, no limite do Oceano, aonde o Sol não chega, e de lá seguira até o inferno. O que devia fazer era abrir um fosso na rocha, sacrificar uma ove-lha e um carneiro e derramar o sangue no buraco aberto. Com esse atrativo, convocaria os espíritos dos antepassados, que, es-quecidos da vida terrena, só por meio do sangue podiam recupe-rar sua memória e contar sua história.

Em seu pequeno comentário, Haroldo de Campos refere-se

1 Agradeço às professoras e tradutoras Susana K. Lages e Giovana Cordeiro C. de Mello pelos comentários tecidos ao texto.

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somente ao sacrifício das ovelhas. Para ele, essa é uma metáfo-ra da “tradução como transfusão”, i.e., como infusão de vida no original e também, ironicamente, como “nutrimento do tradu-tor” (Deus e o Diabo no Fausto de Goethe, p. 208). Há, entretanto, muito a se explorar nesses duzentos primeiros versos. Vejamos.

Odisseu deve invocar os espíritos em cima de uma rocha no rio Aqueronte para onde confluem os rios Piriflegetonte e Cocito – este, por sua vez, um braço do Estige (X, 513-515). É in-teressante que, de todos os cinco rios do Hades, só um não se faz presente: o Lete, rio do esquecimento. Se, por um lado, os au-tores da Antiguidade afirmam que da sua água bebem os mor-tos para esquecer a vida anterior e renascer em novos corpos (Harald Weinrich. Lete: Arte e crítica do esquecimento, p. 24), por outro, é por meio do sangue derramado no fosso que elas recu-peram sua memória e dizem “a verdade inconcussa” (XI, 148).

A tradução é um entre-lugar. O tradutor – na figura de Odisseu – deve convocar espíritos num lugar de con-fluência de línguas. Essas almas sem memória são como os inúmeros textos da cultura de partida: não só o texto a traduzir, mas todos os “co-, con-, extra-, para-, pré-, inter- e sub-textos” (João Barrento. O Poço de Babel. Para uma poética da tradução literária, p. 85) que a ele se ligam e que o constituem. As almas dos antepassados “inumeráveis, à volta do fosso, com grande alarido/ correm de todos os lados” (XI, 42-43), sedentas pelo sangue de vida, tanto quanto os textos buscam sua língua de chegada, a possibilidade de “renascer em um novo corpo”.

Naturalmente, essa não é uma boa situação para o tradu-tor. “O pálido Medo me tolhe” (XI, 43), diz o herói. Esse medo, ou melhor, essa angústia, é a angústia da interpretação. O tradu-tor precisa lidar, também como o escritor, com uma infinidade de referências textuais que se cruzam na sua tradição e na do outro (Susana Kampff Lages, Walter Benjamin: tradução e me-lancolia, p. 72). Não só isso: é obrigado a fazer escolhas de in-terpretação – e, por consequência, a encarar a possibilidade de perdas – e deve se conformar com a impossibilidade de tudo

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traduzir, por conta das idiossincrasias próprias de cada cultu-ra. “O texto original dele se afasta para assombrá-lo, no duplo sentido da palavra: funciona como uma sombra em relação a ele e amedronta-o, enchendo-o de angústia” (Ibid., p. 72). As almas dos textos mortos, desejosas dessa reencarnação psicografada que é a tradução, são a causa da melancolia no tradutor, esse ser meditativo [Grübler, brooder] que cava [gräbt] na folha de pa-pel e na solidão do quarto o fosso para o sangue-sêmen [breed] linguístico.2

Com a metáfora do escavar [ausgraben], estamos no ter-ritório de intersecção entre memória e tradução. Segundo Aleida Assmann, essa é uma das metáforas espaciais da me-mória, que, tomada por Freud do contexto da arqueologia, “sa-lienta a participação criativa da (re)construção no trabalho da recordação cumprido pela psicanálise” (Espaços da recorda-ção: Formas e transformações da memória cultural, p. 175. Grifo meu.). O trabalho do tradutor é – primeiramente – arqueológi-co: “a tradução de poesia [é] como uma forma especial de ar-queologia do texto: temos de remontar às origens para voltar a dar forma a um texto dado” (Barrento, op. cit., p. 99). Voltar às origens para encontrar a “forma semiótica oculta no original” (Campos, op. cit., p. 208) e, num esforço criativo, re-produzi-la.

Além disso, é um trabalho de rememoração, de recorda-ção. Ao tradutor cabe dar vida corporal, na língua de chegada, à “sombra de sonho” (XI, 222) dos originais esquecidos – ou, no caso de uma primeira tradução, nunca lembrados. Se, “quando a vida se acaba,/ [...] os tendões de prender já deixaram as carnes e os ossos” (XI, 218-219) e a alma, sem ossatura, esvoaça sem se lembrar de si, por sua vez, quando o tradutor dá seu sangue ao texto, ele pode dizer: “conheceu-me no mesmo momento” (XI, 153), i.e. recuperou sua memória.

O texto, tal como o espírito sem corpo, não tem vida e me-mória por si: sua existência dá-se na leitura, seja naquela “ori-ginal” – quando o texto nasce e está preso ao seu contexto pela carne – sejam naquelas posteriores – quando o tradutor, leitor

2 Cf. sobre a origem etimológica de Grübler, prefácio de Jeanne Marie Gagnebin em LAGES (2007, p. 14); sobre a relação entre eros e linguagem. (Cf. STEINER, 1998, p. 39.)

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modelar, leitor forte, fá-lo renascer, com novas lembranças e novos sentidos, num outro corpo-contexto.3 A letra sem corpo, como a alma de Anticleia, mãe de Odisseu, é “qual sombra fuga-ce,/ ou mesmo sonho” (XI, 207-208), que causa dor e “tristeza indizível” (XI, 212) em sua intangibilidade e incompreensibili-dade – no duplo sentido de não ser compreendida, presa no abra-ço amoroso4 e de não ser entendida, de não ter sentido.5

A figura de Anticleia é importante para a leitura que aqui se propõe. Na conversa com Odisseu, fica-se claro que ambos não possuem conhecimentos acerca da história um do outro. Tendo partido rumo a Troia, Odisseu não sabe o que é da mãe, da espo-sa e do filho (XI, 170-179). Anticleia, por sua vez, não sabe dos acontecimentos posteriores à Guerra, nem do que vivenciou o fi-lho (XI, 160-162). É essa uma dimensão central da tradução: a troca de memórias. O tradutor resgata um texto passado, carre-gado de lembranças e de leituras, e o lê por meio das suas pró-prias e as de sua cultura. O texto resultante é um palimpsesto, sedimentado de interpretações. Como diz Pierre Menard em re-lação ao seu Quixote, “não transcorreram em vão trezentos anos, carregados de complexíssimos fatos” (Jorge Luis Borges, “Pierre Menard, autor do Quixote”, p. 60). A História faz crescer o texto original nas suas traduções.

Essa dimensão da troca de experiências e do alargamento cultural contrasta com “a tentação [...] de um puro fechamento sobre si” (BERMAN, 2002, p. 74), i.e. da exclusão de toda co-municação tradutória, tal como se vê na ilha dos Ciclopes. Esses seres brutos vivem numa situação quase inumana, isolados em uma ilha, “sem que dos demais o destino lhe[s] importe” (IX, 115), sem leis e religião (IX, 112; 189) e de maneira agreste (IX, 113). Não cultivam o solo, que, interessantemente, “não é ruim, mas capaz de gerar toda sorte de frutos” (IX, 131).

Há riqueza no solo fértil de toda língua – ainda nas mais ilhadas –, riqueza que espera o movimento da tradução para ser liberada e comunicada. “Arrancado de seu solo, o poema cor-re o risco de perder seu frescor. Mas o tradutor o coloca na taça

3 Por detrás do conceito de leitor forte, está a teoria de Bloom (1975), segundo a qual o que está no cerne da poesia moderna é a influência poética – geradora de angústia – entre poetas fortes. Todo poeta tardio opera um revisionismo criativo e desviante em relação ao(s) precursor(es) como forma de sobrevivência literária. Sem o desvio, ele não se divide do seu Pai Poético e sucumbe debaixo do peso “de uma tradição muito enriquecida para precisar de qualquer coisa a mais” (BLOOM, 1975, p. 21. Tradução minha). A implicação dessa teoria da desleitura para o pensamento sobre a tradução foi já deslumbrada por Campos (1981, p. 208): “a tradução/ transcriação é uma de suas figuras exponenciais [i.e. da angústia da influência]”. 4 O abraço amoroso de Odisseu em Anticleia – como o do tradutor no texto-a-traduzir – faz lembrar a expressão de Benjamin – “conformar-se amorosamente” (BENJAMIN, 2012, p. 115) – com a qual ele caracteriza o movimento, na tradução, de proximidade ao modo de visar do original.

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fresca de sua própria língua e ele floresce de novo, como se ain-da estivesse sobre o solo materno” (Antoine Berman, A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica, p. 122). E de tal modo é importante esse reflorescer enriquecedor – tan-to para o texto “original”, quanto para a cultura de chegada – que, antes de invocar as almas, nas libações, Odisseu deve pro-meter “às cabeças exangues dos mortos/ de, quando em Ítaca, em casa, uma vaca imolar-lhes estéril/ a de melhor aparência, queimando preciosos objetos” (XI, 29. Grifos meus.). Aos mor-tos exangues, i.e. sem sangue – aos textos sem forma, ainda não reescritos – o tradutor deve prometer uma vida de fartura na lín-gua de chegada, nessa Ítaca tão difícil de ser alcançada, em re-lação à qual o tradutor, como diz Paul de Man (“‘Conclusions’ Walter Benjamin’s ‘The Task of the Translator’”, p. 37), também está alienado.

No que diz respeito a Anticleia, é ela a representação por excelência do texto traduzido. Sua morte, diz ela, foi causada pelos “cuidados, ilustre Odisseu, por tua causa, e a saudade” (XI, 202. Grifo meu.). A tradução é uma operação fatal: “não pertence à vida do original – o original já está morto –, mas [...] à pós-vida do original, assim assumindo e confirmando a [sua] morte” (Paul de Man, op. cit., p. 38. Tradução minha.).

Essa morte do texto-fonte, significada e operada no ato translatório, é uma morte de saudade: o texto quer ser traduzido e, por isso, “morre” simbolicamente, na ânsia por essa passa-gem para o estágio mais definitivo da pervivência. De lá, não po-derá ser retirado sem se converter, ele próprio, no “original” de suas versões. A tradução, nesse movimento por sobre a diferen-ça, representa, por sua vez, “aquela ‘grande saudade’ em dire-ção à complementariedade e à integração das línguas” (Haroldo de Campos, op. cit., 1984, p. 6. Grifo meu.) na língua pura.

A ideia de movimento translatório, uma passagem da morte para a (sobre)vida, uma passagem de uma língua a ou-tra, também se faz presente no texto de Homero. Odisseu, na sua tentativa de chegar a Ítaca, sua terra natal, da qual partiu

5 O sentido de um texto, não custa lembrar, não é dado no texto nem por um leitor, mas é inferido a partir de um conjunto de interesses, pressuposições, etc., ao qual Fish (1980) dá o nome de comunidade interpretativa. É somente em situação – en-carnado – que um texto pode fazer sentido.

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para a conquista do Outro (Troia) – e lembremos: a tradução é sempre um movimento domesticador, apropriador! (Lawrence Venuti, The Translator’s Invisibility: A History of Translation, p. 18) – deve passar pelo Hades. “É preciso que empreendas, pri-meiro, outra viagem” (X, 490), diz Circe ao herói. A tradução, como experiência e como Bildung,6 “é viagem, Reise, ou migra-ção, Wanderung”, e viagem rumo ao terreno dos mortos. “Stirb und werde!”, escreveu Goethe no poema Selige Sehnsucht [Beata Saudade]: morra e se torne!

Para uma obra ser culta (gebildet), afirma Friedrich Schlegel, faz-se necessária, “como na educação de um jovem inglês, a grande viagem [le grand tour]” (SCHLEGEL, 1964, p. 60, apud BERMAN, 2002, p. 88). O tradutor deve descer até os Infernos – ad īnferōs –, i.e., até o lugar mais baixo, penetrando no texto, revolvendo suas entranhas, para interpretá-lo e dar nova forma a ele. E esse seu lugar – porque o lugar do tradutor é entre os textos mortos da outra língua e os textos ainda não nascidos da própria – não é facilmente acessível.7 “É difícil aos vivos olhar estes quadros” (XI, 156. Grifos meus.), diz Anticleia ao filho. “Há, de permeio, cachoeiras enormes e rios violentos,/ a come-çar pelo Oceano, que nunca jamais ninguém pôde/ a vau trans-por, mas somente provido de nau bem construída” (XI, 157-159), continua.

Esses obstáculos vencidos por Odisseu são como as vá-rias competências demandadas do tradutor – todas um modo de olhar, e olhar num lugar onde não há luz do Sol (XI, 14-18). Competência linguística, competência especializada, compe-tência cultural, competência translatória propriamente dita, como elenca Barrento (op. cit., p. 22). São exigências que trans-formam o tradutor em um “herói de uma hermenêutica tex-tual” (Lages, op. cit., p. 68), atacado por fortes dores melancó-licas e por um “complexo de inferioridade” (Ibid., p. 69. Grifo meu.) frente ao original.

6 Bildung: “esta palavra significa tanto “formação” como “cultura”, possuindo portanto in nuce um duplo movimento: a Formação só pode se dar através da saída de si – traumática, mas ao mesmo tempo originária do Eu –; daí o culto romântico da Viagem, da busca do eu no confronto com o outro; daí também o culto romântico da tradução [...]. Mas na tradução já está implicado o movimento seguinte: o da volta à Pátria, à língua-pátria, onde encontramos o sentido da Bildung como cultura.” (SELIGMANN-SILVA, 1997, p. 161). 7 De Man (1985, pp. 37-38), comentando o texto benjaminiano, atenta para o jogo – próprio da tradução – entre “aquela maturação póstuma da palavra estrangeira, e [...] as dores do parto de sua própria palavra” (BENJAMIN, 2012, p. 108). O autor afirma que a tradução opera e revela a morte do original (daí a maturação póstuma), e que, por essa razão, essas dores de parto (birth pangs) são também dores de morte (death pangs).

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Ninguém jamais chega aonde chega o tradutor. Ele é o leitor por excelência do texto-a-traduzir e domina tanto a própria palavra quanto a do outro. Não é de se estranhar que Odisseu – esse pro-tótipo de tradutor – seja chamado por Circe de “Odisseu enge-nhoso” (X, 401). Ele é engenhoso – o que é certamente influên-cia de sua protetora Palas Atena – não só por sua esperteza, mas também porque é hábil com as palavras. Afinal, ele consegue não só uma promessa da feiticeira, como também, na ilha dos Ciclopes, escapa da morte certa enganando Polifemo com um recurso linguístico.

No canto IX, o herói vê-se preso na caverna do ciclo-pe. Elabora uma estratégia de fuga: chama-se a si mesmo de “Ninguém”, dizendo-o a Polifemo, e depois o fere no olho. O gigante grita por ajuda e, quando os vizinhos acodem, diz-lhes que “Ninguém quer matar-me” (IX, 408). Esse manejo ambí-guo da linguagem, entre a vida e a morte, só o possui o tradutor. Entretanto, isso não lhe garante reconhecimento social. Pelo contrário, é uma figura de quem se exige, tradicionalmente, in-visibilidade, transparência, neutralidade (Venuti, op. cit.). Quem escreve? Não o tradutor (Odisseu, Carlos Alberto Nunes), mas Ninguém – ou melhor, o Autor.

Outra personagem que merece considerações é a deusa Circe. Também ela é um protótipo do tradutor. Sua habilidade é o domínio dos phármaka, das drogas: “Circe que todas as plan-tas conhece” (X, 276). Aos companheiros de Odisseu que a ela chegam, dá a feiticeira uma bebida “que logo da pátria os fizesse esquecidos” (X, 236) e que os transforma em porcos. Do mesmo modo, a pedido do herói, ela consegue desfazer o encanto, essa metamorfose do esquecimento, a qual, provocando uma altera-ção física, ainda assim faz conservar “a consciência anterior” (X, 240). E, quando os amigos voltam à antiga forma, já estão “de conspecto mais jovem/ com mais bonita aparência e estatu-ra maior de ser vista” (X, 395-396. Grifo meu.).

Não há que negar, nesse trecho, a dimensão do rejuvenes-cimento implicada no ato translatório: o texto original – envelhe-

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cido pelo tempo – ganha, na passagem a outra língua, aspectos novos, no duplo sentido de diferentes e de recentes. Toda língua que traduz é fresca, está na flor da idade, fértil como uma mu-lher grávida (e na iminência do parto!). Vai-se no caminho con-trário ao de Herder: “Uma língua, antes da tradução, é seme-lhante a uma jovem virgem que ainda não tenha tido comércio com um homem [...]; ela ainda está pura [...]” (Johan Gottfried Herder, Fragmente über die Bildung einer Sprache, p. 199, apud Berman, op. cit., p. 74). Como afirma Berman, “é necessário fa-lar aqui de utopia, visto que o destino da virgem é evidentemen-te se tornar mulher [...] o destino do botão é se tornar flor, depois fruto” (Ibid., p. 74).

Voltando, entretanto, à primeira metamorfose, os compa-nheiros de Odisseu perdem sua forma física, mas conservam sua inteligência humana. Nos moldes tradicionais, é como a mudança de forma com manutenção do sentido. Mas há que se atentar para o esquecimento operado previamente à transfor-mação. Circe quer fazer os companheiros esquecidos de sua pá-tria e consegue efetivamente, na medida em que Odisseu per-manece em seus braços por um ano (X, 467), sem se lembrar da esposa e da volta a Ítaca.

Por um lado, esse esquecimento é a ameaça constante da impossibilidade da volta à língua-pátria, i.e., de se ficar preso no outro e não se encontrarem “soluções de chegada”. A tradução é uma operação ameaçada pelas próprias diferenças que a engen-dram. Não só na ilha Eeia, mas também em outro momento da viagem, Odisseu enfrenta os perigos da desmemória: no meio dos lotófagos, uma comunidade que, fechada em seu próprio vício – a flor de Lótus –, vive esquecida do mundo e da história. Uma comunidade que não traduz.

Por outro lado, o esquecer é fundamental à tradução. Weinrich (Lete: Arte e crítica do esquecimento, p. 38) afirma que o vinho, “precioso dom dos deuses e particularmente de Dionísio (em latim, Baco)”, foi desde os gregos uma “droga” associada à arte de esquecer. Se a tradução, segundo Campos (op. cit., p.

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181), caracteriza-se por uma “pulsão dionisíaca” que “dissol-ve a diamantização apolínea do texto original já pré-formado numa nova festa sígnica”, então há que se considerar a dimen-são de apagamento de memória que está implicada no processo translatório. O tradutor, aquele que resgata, ou melhor, confere a memória perdida ao original, é o mesmo que deve borrar essa ligação, dizendo: “isto não é Homero, é Carlos Alberto Nunes in-vestido (ou disfarçado) de Homero”. Afinal, nenhuma tradução é o texto-outro, mas quer funcionar apesar dele e no lugar dele (an der Stelle des andern).8 Übersetzen ist absetzen. Transpor é depor.

Interessantemente, a divindade Lete, que dá nome ao rio do Hades, contrapõe-se a Mnemósine, deusa da memória e mãe das musas. Lete provém da linhagem da Noite (Weinrich, op. cit., p. 24) e é filha da Discórdia. O Esquecimento nasce da escuridão e da discórdia babélica entre as línguas. O tradutor trabalha sob o signo do Esquecimento, no submundo escuro do Hades, aonde a luz do Sol não chega, mas sua vocação é, ao mesmo tempo, su-perar as diferenças linguísticas e culturais. O poeta, pelo contrá-rio, invoca Calíope, filha da Memória e, com seu auxílio, fala a Verdade. A-létheia: não-esquecimento.

No canto XI, Odisseu conversa – depois da profecia de Tirésias e do diálogo com a mãe Anticleia – com outros heróis e personagens famosas da antiguidade, entre os quais Aquiles e Agamémnon. Bebendo do sangue, eles recuperam a memória e garantem sua fama (kléos) por meio das histórias que contam. Ao fim, surgem as sombras “de heróis falecidos nos tempos re-motos” (XI, 629) e, junto a elas, “grande número de almas de mortos” (XI, 632), de modo que Odisseu é novamente tolhido pelo “pálido Medo”, medo também de ver aparecer “a cabeça de Górgona, o monstro terrível” (XI, 634). Nesse momento, o herói parte do Hades.

A angústia, igualmente, se apodera do tradutor, quando deve enfrentar os arquitextos, aqueles fundadores da cultura e, tal como os espíritos dos “priscos varões” (XI, 630), advindos de tempos remotos. São os textos sagrados ou consagrados, como

8 Esse funcionar no lugar do outro – não mais ao invés dele (anstatt des andern) – caracterizaria o terceiro e mais elevado período da tradução para Goethe. (Cf. GOETHE, 2010, pp. 32-33.)

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a Bíblia, o próprio Homero, Shakespeare etc. O tradutor sente um medo absoluto de ver-se petrificado – como que pela ação da Górgona –, imobilizado ante a presença e a força do original e sua multiforme herança. Há que ter muita coragem para, ao con-trário de Odisseu, não fugir, mas encarar face a face a Medusa.

Não se pode negar que a tradução é uma atividade de força, de investimento – e revestimento – criativo.9 Ao contrário do que pensa o senso comum, trata-se de um trabalho muito comple-xo, que envolve vários tipos de conhecimento, mas nem por isso melancolicamente impossível. Uma atividade altamente ilumi-nadora – ou, conforme Haroldo de Campos, luci-ferina. Afinal, as traduções de um texto geram lastro hermenêutico, de tal for-ma que se pode dizer que elas formam “uma língua superior a si mesma[s]” (Walter Benjamin, “A tarefa do tradutor”, p. 111), que são superiores ao próprio original. Uma língua que fala o Mesmo pelo Outro, entre a lembrança revivente e o esquecimento mor-tífero, entre a lembrança fatal e o esquecimento vivífico.

9 Sobre o revestimento, diz Benjamin (2012, p. 111) que “na tradução, a língua recobre seu teor [i.e. do original] em amplas pregas, como um manto real”.

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tradução

Soneto 19, de William ShakespeareDanilo Augusto de Athayde Fraga

Devoração, oh tempo, arrancar as garras do leãoServir a própria ninhada à terra desoladaExtinguir as presas dentro da boca do cãoConsumir em sangue o eterno fogo de arribação!Com teu trote seguem alegrias e pesarRealizas tudo que queres, bailarino fugazSobre a vastidão do mundo, teu gentil apagar,Porém te vedo este crime mais mordazNão, não caves no rosto do meu amadoAs horas perdidas, nem tua pena antigaNenhuma cova tatues, deixa-o imaculadoPois é em sua beleza que todos se avivam

E apesar de teus piores feitos, velhaco,Viverá jovem nesses versos meu amado

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Devouring time, blunt thou the lion’s paws,And make the earth devour her own sweet brood;Pluck the keen teeth from the fierce tiger’s jaws,And burn the long-lived phoenix in her blood; Make glad and sorry seasons as thou fleet And do whate’er thou wilt, swift-footed Time, To the wide world and all her fading sweets; But I forbid thee one most heinous crime: O, carve not with thy hours my love’s fair brow,Nor draw no lines there with thine antique pen; Him in thy course untainted do allow For beauty’s pattern to succeeding men.

Yet, do thy worst, old Time: despite thy wrong,My love shall in my verse ever live young.

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Toda quarta-feira, às 20h30, o Sarau da Cooperifa acontece no Bar do Zé Batidão, distrito Jardim Ângela, zona Sul de São Paulo. Criado pelo poeta Sérgio Vaz há treze anos, o sarau foi um dos primeiros encontros de poesia da região e teve importante papel, influenciando muitos outros que hoje se espalham pelas periferias paulistanas. A equipe da cisma foi lá, no dia dezessete de julho, tomar uma cerveja com ele e ouvir pessoas de quinze a noventa anos declamarem poesia e serem aplaudidas por uma casa lotada.

O que é o Sarau da Cooperifa?

O Sarau da Cooperifa é um movimento cultural que transformou um bar em centro cultural, e que há treze anos realiza um sarau de poesia dentro da comunidade. Ele levou as

pessoas ao hábito de ouvir e falar poesia e, motivados por isso, muita gente começou a ler, começou a se interessar por poesia, por literatura. O Sarau da Cooperifa é quando a poesia desce do pedestal e beija os pés da comunidade. As pessoas vêm aqui depois de adorar um deus chamado trabalho, recitam poesia, ouvem as pessoas falarem poesia. Como vocês podem ver, as pessoas sentam juntas; então refundamos a poesia aqui da quebrada, e refundamos a amizade também, porque a gente é obrigado a sentar junto, é obrigado a ver o próximo. O Sarau da Cooperifa vai muito além de um encontro de poesia, é um encontro de pessoas que se transformaram em cidadãos, e esses cidadãos escrevem poesia e ouvem poesia.

entrevista

Sérgio Vaz: “A gente quer que a metáfora se foda”

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O que significa esse espaço e essa possibilidade que as pessoas têm de se apresentar?

Na verdade as pessoas aqui sempre estiveram aqui, o bar para nós é o nosso centro cultural, sempre foi. Nós só o ressignificamos. Porque as pessoas se encontram aqui depois do trabalho para tomar uma saideira, para falar do jogo de futebol, se reúnem aqui para ouvir um negócio do asfalto, da rua... quer dizer, o bar sempre foi um lugar de encontro das pessoas, assim como é na classe média, né? Happy hour, um almoço para discutir negócios – e aqui também sempre foi sobre isso. O que mudou foi o conceito do bar, as pessoas vinham aqui somente para desabafar, agora elas têm o propósito de vir aqui encontrar os amigos e falar poesia. Então virou a nossa ágora, nossa arena de batalha. A gente era nosso lugar: Parque Santo Antônio, Jardim São Luís, Jardim Ângela, lugares que já foram considerados uns dos mais violentos do mundo. A gente que tinha vergonha de morar aqui, tinha que mentir que não morava aqui para arrumar emprego, e hoje enche o peito para falar que mora onde tem o Sarau da Cooperifa. Então é uma injeção de ânimo, de autoestima tremenda na nossa comunidade.

E para aquelas pessoas que vêm de fora, que não moram aqui por perto, mas que vêm declamar poesia, o que você acha que mudou na vida delas quando perceberam que fazer poesia era possível, e que elas teriam um espaço para ser ouvidas?

A Cooperifa só deu oportunidade, porque escrever todo mundo escreve, duvido que alguém não tenha alguma coisa escrita: um desabafo, um diário… No Facebook a pessoa está escrevendo uma crônica, né? Nunca se escreveu tanto como se escreve hoje. Talvez não direcionado para literatura, mas se escreve. Só que as pessoas começaram a tirar as coisas da gaveta para mostrar para outras, porque é difícil colocar em um livro, é difícil alguém ir ao livro, comprar um livro dessa pessoa, mas aqui é fácil alguém ouvi-la. Então a gente está refundando aquela coisa dos griôs, de sentar em volta da fogueira e de contar história. E cada poema aqui é a história da pessoa. Ou de amor, ou de tragédia, é a história da pessoa. Isso sempre existiu, só estava morto dentro de nós.

No seu primeiro livro, publicado em 88, você diz que houve uma época em que você não dizia que fazia poesia, porque isso não era encarado muito bem – era “coisa de “‘viado’ ou de ‘maluco’”. E hoje, é coisa de quem?

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Na verdade não era encarado muito bem por todos os preconceitos; primeiro porque em 88 – eu cresci aqui – a gente estava no auge da brutalidade, do machismo, de qualquer coisa que fere a dignidade humana do cidadão. Eu jogava futebol de várzea, então você dizia que fazia poesia? Poesia era uma coisa de fresco... Ou era uma coisa de lunático. Não tinha uma ideia de que a poesia era também uma coisa poderosa, uma ferramenta para se defender, para atacar, para se expressar. Por mais que a gente lesse – eu leio desde criança – a gente não tinha noção dessa força da literatura. Então agora tem um outro significado, o ser poeta hoje é uma coisa poderosa. Porque a gente também fez uma coisa que é maravilhosa, a gente fez a formação para o cara entender o que a gente está falando. Essa literatura que a gente faz é poderosa nesse sentido, a gente formou um público para ser ouvido, para ser lido.

"A poesia [é] uma coisa poderosa, uma ferramenta para se defender, para atacar, para se expressar"

Como você vê a relação entre a literatura que é produzida e estudada na academia e a que é produzida na periferia?

Olha, eu acho que essa coisa feita na academia é uma coisa formal e também maravilhosa. A nossa tem uma história por trás, não dá para fazer um poema pelo poema. O rapper não faz uma música pela música. A gente está falando de coisas que a academia não quer falar mais: a fome, o racismo, a violência policial, a pobreza, o ensino público de péssima qualidade. A gente está falando disso, das nossas urgências. Quando você ouve uma música da bossa nova: “dia de luz/ festa de sol/ e o barquinho a deslizar/ no macio azul do mar” é maravilhoso, mas a gente não vê o barquinho deslizar, né? Não vê o macio azul do mar. Não sei se é o Manuel Bandeira ou o Oswald que fala assim: “é lindo não sei o quê/ mas o que eu vejo é o beco” – a gente escreve sobre a nossa vida, sobre as nossas tragédias, escreve para se vingar do passado, escreve para prometer um futuro. Então é diferente dessa literatura da academia, que é uma coisa que pode brincar com a palavra, que pode sacralizar a metáfora. A gente ainda não está nesse nível, a gente quer que a metáfora se foda. A gente não está muito preocupado com ponto e vírgula, se tem crase ou menos

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crase... A gente não sabe se é poesia, não sabe se é literatura, a gente quer fazer, e ninguém pode impedir a gente de fazer.

Por que o título Antropofagia periférica no seu livro?

A Cooperifa foi inspirada indiretamente na antropofagia da Semana de Arte Moderna, eles canibalizaram a cultura que veio da Europa e regurgitaram a cultura do Brasil. A gente fez a mesma coisa: pegou a cultura que vinha do centro, canibalizou, e está regurgitando de forma periférica. Isso aqui é uma exposição [aponta para os quadros expostos nas paredes do bar], não é? No centro teria um espaço para isso, teria uma galeria, mas a gente não tem... Essa é a antropofagia, pegar o que o centro nos impõe, o que a mídia nos impõe, o que a mídia te obriga a ouvir, te obriga a assistir, só que a gente pega tudo isso e regurgita do nosso jeito, com nosso linguajar, nossa ginga, nossa forma de falar, da nossa cor.

Você acha que deveria existir um termo diferente para designar aquilo que é feito, consagrado e aceito na academia, e a poesia que vocês fazem aqui no Sarau?

Eu acho que sim, são duas coisas diferentes. O que é literatura grega? Feita pelos gregos. O que é literatura romana? O que é literatura periférica? Feita por gente que mora na periferia.

Então você chama de literatura periférica?

Eu gosto desse termo, porque ele me identifica, diz de onde eu sou. Assim como literatura negra, feita pelos negros. E são coisas diferentes. Aí o cara fala “ah, mas eu moro em Alphaville, posso fazer literatura periférica?” Pode, mas não vai ficar bom! Eu não posso proibir ninguém de fazer, mas assim como se eu fizer literatura grega, não seria genuíno. Quando eu falo da fome do Nordeste, eu falo como um poeta solidário, não como poeta nordestino. Existe nele uma dor que eu não vou sentir. Assim como quando escrevo sobre a Palestina, é uma solidariedade, mas um palestino escrever sobre aquilo é outra coisa. E quando eu escrevo da periferia é a minha dor, é a minha vivência, a minha história, é difícil para outra pessoa captar isso.

Mas você acha que existem pontos em comum?

Eu acho a literatura acadêmica maravilhosa, mas ela vai para um lugar

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que eu não quero ir. O Ferreira Gullar há muito tempo escreveu “só é justo cantar quando seu canto arrasta consigo pessoas e coisas que não têm voz”. Eu quero escrever sobre isso, sobre nós, sobre as pessoas que têm voz, mas não são ouvidas. Eu acho que a nossa poesia fala dessa gente, dessas coisas.

Então você acredita que a poesia tem uma força política também?

Não sei se tem que ter, mas para mim, sim. De onde eu venho, eu não posso me omitir politicamente.

E você acha que a academia não dá espaço para isso?

É o que eu digo, os acadêmicos são pessoas que tiveram oportunidade de estudar, de fazer TCC, mestrado, graduação, doutorado. É maravilhoso, eles têm o poder de estraçalhar a língua. Eles têm esse dever. Ótimo. A gente não tem isso, esse poder. A gente não conhece o ditongo crescente, eu não conheço o ditongo crescente, eu não sei quando ele cresce, quando ele diminui. E eu não sei quando objeto é direto, e quando ele é indireto. Então eu sou livre.

Mas precisaria saber?

Eu gostaria de saber. Ainda que eu escrevesse do jeito que eu escrevo, eu gostaria de saber, porque eu acho que a função do Estado é gerar cultura, gerar educação. Eu acho que a gente tem o direito de aprender a língua portuguesa na sua forma mais culta e dialetar do jeito que quiser. Eu não falo desse jeito porque eu quero, eu falo desse jeito porque eu não tive oportunidade. E não estou reclamando, mas eles também não podem reclamar de eu falar desse jeito, não me deram essa oportunidade.

Você disse que quem está na academia tem o poder de estraçalhar a língua, mas vocês também têm esse poder, não?

Sim, do nosso jeito. Só que eles têm uma outra forma, eles estudaram, têm livraria. A gente está fazendo uma coisa que é soprar no ouvido das pessoas... É muito mais mágico. Esperar as pessoas chegarem na livraria demora um pouco, né?

Por que é mágico?

Sabe por que é mágico? Porque é a nossa primeira vez. Toda primeira vez é melhor. É o nosso primeiro livro, o nosso primeiro sarau, é o nosso primeiro

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teatro, nosso primeiro cinema; quem faz as coisas pela primeira vez faz com tesão. Então eu acho que a academia está fazendo isso há mais de cem anos. Há quinhentos anos, eles iam nos teatros e tal, então eles já estão acostumados com isso, para nós é a primeira vez. Para muita gente aqui é o primeiro livro. Nós temos o Cinema na Laje, temos gente com sessenta anos que foi ao cinema pela primeira vez aqui... Então imagina a força que o cinema tem para essa pessoa.

Você já se viu no meio desse embate entre literatura periférica e literatura acadêmica? Já sofreu algum preconceito?

Preconceito existe em qualquer lugar, né? As pessoas desqualificam às vezes. Às vezes eu estou numa roda e falam “então gente, esse aqui é um escritor da periferia, então vamos fazer as perguntas”, sabe? Às vezes eu estou em um debate e o cara me pergunta sobre drogas, sobre crime, aí um outro cara fala de literatura, aí “ah, você sabe quem matou o MC da Leste?”. Como se a gente morasse numa grande senzala, eles acham que a gente mora nem uma grande taba, né? E nunca é para falar dos livros que eu li, e eu li muito livro, eu leio muito livro, mas nunca é.

O que te faz escrever um poema?

A dor, cara, a tristeza. Eu escrevo para me vingar do passado. Eu escrevo sobre dor, sobre o cárcere da tristeza, eu não tenho alegria em escrever. Escrever, para mim, dói. Dói muito, eu não gostaria de ser poeta. Não vejo isso como um ponto positivo. Hoje ser poeta para mim é uma coisa legal porque eu sou um cara vagabundo e ser vagabundo, falar que você é poeta, é a mesma coisa [risos]. Mas quando eu escrevo, quando eu vejo um texto, cara, eu tenho que ver onde está minha alma ali. Independente do que está escrito, se é bom ou se é ruim, se é cômico ou se é trágico, eu escrevo para me vingar do passado. Então assim, não vejo glamour nenhum, não sou um cara que acorda de manhã e fala “puta, eu sou poeta”.

"Independente do que está escrito, se é bom ou se é ruim, se é cômico ou se é trágico, eu escrevo para me vingar do passado"

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E quais são as grandes referências para você?

Eu amo o Pablo Neruda. Leminski, Quintana, Clarice Lispector é leitura diária. Gosto muito dos escritores latinos, García Lorca. Já li poesia francesa como Paul Valéry, Rimbaud, Charles Baudelaire, mas não disse muita coisa para mim. Gosto dos beatniks, gosto dessa coisa maldita, Bukowski, Kerouac. E tem fases, né? É que nem como tem uma época que você quer ouvir MPB, uma que você quer ouvir blues, outra que quer ouvir rap, então eu sou um cara de lua artística.

E em que fase você está agora?

Eu estou na fase de ouvir os autores novos, eu li o Cristovão Tezza, li agora o Barba ensopada de sangue, do Daniel Galera, e eu li um livro chamado A vida financeira dos poetas, Jess Walter. Estou querendo me abrir um pouco para essas coisas novas que tão acontecendo, esses caras da Vila Madalena, como dizem por aí, essa turma nova. São uns caras que eu curto muito, como o Marçal Aquino, o Marcelino Freire – eles estão sempre por aqui [no Sarau].

Tem algum autor em especial que você acha que foi sua grande influência?

Ah, o Neruda. Porra, o cara usou a poesia para influenciar o mundo! Influenciar pessoas, lutar contra uma ditadura! Imaginar que na Segunda Grande Guerra encontravam soldados mortos que tinham livro dele na bolsa... Tinha arma, tinha ração e tinha um livro do Neruda. Um cara que conheceu o Che Guevara, que conheceu o Mao Tsé-Tung... Um cara do mundo, né? Porra, bicho! Imagine eu, esse zé mané da periferia, em um microcosmos, sete bilhões de pessoas e eu mal conheço a minha rua. Se você assistir ao documentário Utopia e barbárie do Silvio Tendler, quando ele [Neruda] morre estão proibidos de fazer homenagens para ele, e a polícia está lá, e de repente um cara começa a recitar um poema dele e todo mundo recita no funeral, enfrentando a polícia, porra, caralho! É foda, né, cara? É muito melhor do que ver o David Luiz jogar! [risos]

Você acha que existe uma cultura periférica ou várias culturas da periferia?

Cultura de periferia para mim é o futebol de várzea, é o pipa, é o samba na laje. São culturas que a gente tem desde sempre, eu acho que isso que é a nossa cultura. São os bares black, né, cara? Essa forma de se encontrar

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para conversar no boteco, para falar de futebol. Imagina que todo dia o cara desce do trabalho e vem aqui para falar mal do governo – é uma cultura, né? Agora tem a arte, o que a gente faz é arte, a poesia nunca foi uma cultura nossa, como o samba... A gente está sempre sambando de alguma forma. O rap tem trinta anos, e já é uma cultura assimilada na periferia. Goste ou não, o sertanejo, o forró, eu acho que isso para nós é a cultura Agora a gente está introduzindo a poesia. Esse quadro na parede é novo para nós, o sarau é novo para nós.

Você disse que não sabe se o que vocês fazem aqui é poesia. Por que não?

Olha, a gente está escrevendo sobre a vida, né? A gente ainda não sabe se está conseguindo dominar a palavra. Mas a palavra não dominou a gente, a gente está escrevendo coisas que as pessoas não querem mais escrever. Por exemplo, uma dona de casa escrever um texto, para quem que ela pede autorização? Para ninguém! É Brasília que autoriza a gente a escrever? Não – a gente escreve. Então a gente não sabe o que está fazendo, são as pessoas que estão dizendo que a gente está fazendo isso ou aquilo. A gente está escrevendo sobre nossas dores, sobre nossas cores, nossos

lugares, nossas tragédias, a gente não sabe se é poesia, pode ser que seja algo além da poesia, algo além da literatura.

Tipo o quê?

Tipo, sei lá, estar vivo, lutar para ser feliz. Porque lutar a gente luta, mas a gente colocou o ser feliz junto. O que é diferente de lutar, lutar, lutar, e não querer ser feliz. Lutar para comprar uma casa, lutar para fugir do aluguel, lutar para comprar um carro... não, a gente quer lutar e ser feliz. Quer celebrar também. O que a gente está fazendo aqui é celebrar a palavra, comungar a palavra.

Depois desses treze anos, depois de enfrentar a dificuldade de poder falar que você escrevia poesia, como você se sente hoje vendo este bar lotado toda quarta-feira, vindo um monte de gente de fora para conhecer esse trabalho?

Eu acho que eu estou pagando uma dívida com a minha comunidade, porque tudo o que acontece no país, de uma forma ou de outra, uma favela, um esgoto, uma violência, a gente tem a ver com isso. Por mais que a gente não assuma, a gente tem essa responsabilidade. Eu sinto que eu estou retornando à comunidade o que ela

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me deu. Hoje eu sou um cara que as pessoas conhecem, eu acho que eu sou mais conhecido no meu bairro do que o Paulo Coelho. Talvez não no Brasil, é lógico, mas no meu bairro, sim. E isso não é arrogância, é um fato. Eu sou mais conhecido do que o Mia Couto aqui no meu bairro. Que nem hoje, na feira, eram cinco bananas por dez reais, o cara me viu e falou “pô, dá mais uma pro Sérgio” [risos]. Eu fiz uma palestra numa escola, já há algum tempo, aí outro dia eu estava no mercado com a minha esposa e um moleque estava entregando panfleto, eu peguei o panfleto dele e ele falou “ah, obrigado, Sérgio”, eu falei “você me conhece?”, e ele “você já foi na minha escola!”. Então você imaginar que pode ser reconhecido pelas pessoas mais simples, nos lugares mais simples, para mim é tudo. Eu estou feliz por isso, por representar alguma coisa para essas pessoas, nesse lugar, não em outro lugar. Por exemplo, ontem eu estava em um bate papo com os meninos jovens e aprendizes do Taboão, meninos da periferia. Eu já estive na Flip, eu já estive ano passado em Berlim, esse ano eu fui para Itália, já fui para Londres, as pessoas te reconhecem de um outro jeito. Aqui é diferente. Aqui eu não sou ninguém a mais, sou só um cara que faz poesia, um cara que acham que é legal – esse cara é legal, ele está sempre representando a quebrada, e nada mais

do que isso. E isso é importante, para que eu também nunca esqueça de onde eu sou, o que eu faço, e da onde eu venho.

A realidade das escolas que você visitou é bem diferente da realidade das universidades. Você acha que na academia existe um espaço para conviver com o que vocês fazem aqui?

Eu acho que a academia deve ser mais generosa. Em vez de ficar preocupado com como a gente escreve, e o que escreve, devia entender que a gente não teve nada e que escreve! A gente está fazendo pessoas simples lerem e escreverem, coisa que a academia não está fazendo, a não ser que a pessoa vá até a universidade. Qual escritor do universo acadêmico quer vir numa escola pública? Quer vir em um bar? Ao passo que, se eu for ao universo acadêmico fazer uma palestra, eles não querem me pagar, porque eles acham que eu estou contribuindo intelectualmente... Quer dizer, numa escola que o cara cobra três mil reais de mensalidade, ele não quer me pagar para me ouvir, porque ele acha que está fazendo um favor para mim.

Toda semana eu vou numa escola pública falar de literatura, falar de

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poesia, contribuir com a minha poesia. Aí sim: gente que precisa. E a academia não quer contribuir com nada, ficam esperando leitor na livraria; o leitor daqui não vai na livraria. Eu quero falar minha poesia para você em qualquer lugar. Não muda nada na minha vida gostarem ou não da minha poesia. Eu também não escrevo para isso, para ganhar prêmio, nem nada. Eu quero viver, caralho. Eu estou na história do meu bairro, isso eu posso arrogar, eu não vou ser humilde no meu bairro. Eu contribuo com o meu bairro, assim como pessoas anônimas também contribuem. Eu sou um cara que ficou famoso porque eu sou um artista, mas tem gente muito mais fodida do que eu que faz muito mais coisa no bairro e que está anônima.

Quais são os livros que você publicou?

Eu publiquei Subindo a ladeira mora a noite, A margem do vento, Pensamentos vadios, A poesia dos deuses inferiores, Colecionador de pedras, Cooperifa: antropofagia periférica, Literatura, pão

e poesia e, agora, o Flores de alvenaria, que sai este ano. Vinte e cinco anos de poesia, em novembro.

Já sabe como vai ser o lançamento?

Ainda não, mas vai ser uma coisa bem de maloqueiro mesmo. Meu primeiro lançamento foi aqui, nessa rua de baixo. Eu nem sabia como era lançamento de livro, a gente fez salada de maionese com frango frito. É isso, é antropofagia, né? Firmou?

A cisma agradece à jornalista Giulia Afiune pela colaboração na entrevista.

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tradução

“Mamãe foi não sei aonde”, de Valentin RaspútinHenrique Gomes Lucas Santos

A vida no campo sempre esteve presente na literatura russa.Contudo, sua caracterização foi constantemente ofuscada pe-las diferentes ideologias que dominaram os períodos da histó-ria russa. Durante o século XIX, os camponeses eram retrata-dos pelo ponto de vista dos aristocratas e da inteliguentsia, e o papel que representavam perante a sociedade era questionado, envolvido por diferentes opiniões. Com a instauração do Estado soviético e, mais à frente, com o realismo socialista em vigor na literatura, a representação da vida rural passou a configurar-se em uma exaltação ao novo estilo de vida soviético.

Após a Segunda guerra mundial e a coletivização das ter-ras estabelecida pelo Primeiro plano quinquenal, além do êxodo rural cada vez mais frequente e o desenvolvimento desenfreado dos setores de indústria e energia, a vida no campo já não era a mesma, desestabilizava-se. Com a morte de Stálin em 1953, e o degelo de Kruschov em fins de 1950, a censura aos poucos tornou-se menos rígida. Durante esse período, crescia um mo-vimento literário formado por escritores nascidos e crescidos nas zonas rurais, cuja ideia principal era denunciar os proble-mas presentes na vida rural, no kolkhoz (abreviação russa para “fazenda coletiva”), na moral e nos costumes dos camponeses,

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às vezes lançando críticas muito sutis ao regime do Partido. O clamor pelo retorno às tradições perdidas ao longo do período soviético e as profundas descrições do cotidiano e dos anseios dos camponeses tornam-se então importantes aspectos que ca-racterizam o movimento. Dentre os seus escritores mais reno-mados está Valentin Raspútin.

Valentin Grigorievitch Raspútin nasceu em 15 de março de 1937 no distrito de Ust-Uda, na região siberiana de Irkutsk, na Rússia. Sua obra é composta por contos e novelas, além de ensaios acerca da vida e da natureza da Sibéria. Seus textos de ficção são fortemente marcados pelo estilo de vida rural, por conflitos entre gerações, personagens infantis, a guerra, a des-truição da natureza, e o retorno às tradições, diretamente liga-das à imagem ou da mãe, da avó, ou de uma matriarca.

O texto abaixo foi traduzido do livro de contos Vek jiví – Vek liubí (em russo Век живи - век люби), de 1982, e não está presente na última edição da obra reunida do autor, em quatro tomos, de 2007.

Mamãe foi não sei aonde

O garotinho abriu os olhos e viu uma mosca se arrastando pelo teto. Ele piscou e se pôs a observar para onde ela se arrastava.

A mosca se deslocava para o lado em que estava a janela. Corria sem parar, e com muita rapidez.

O garotinho achou que ela estava correndo por um cami-nho, e esperou para ver se não viria mais alguma, para se certi-ficar de que aquilo era realmente um caminho. Mas não havia mais moscas. Na verdade havia, mas não corriam pelo teto, e o garotinho logo perdeu o interesse por elas. Ergueu-se na cama e gritou:

— Mamãe, acordei!Ninguém respondeu.— Mamãe! – ele chamou. — Que bom menino! Eu acordei.Silêncio.

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O garotinho esperou, mas só o silêncio permaneceu.Então ele pulou da cama e correu descalço até a sala. Ela

estava vazia. Em seguida, olhou para a poltrona, para a mesa, para a estante de livros, mas não havia ninguém por perto; esta-vam ali simplesmente ocupando espaço.

O garotinho correu para a cozinha e depois para o banhei-ro. Ali também não havia ninguém escondido.

— Mamãe! – gritou o garotinho.O silêncio absorveu seu grito e imediatamente retraiu-se.

Sem acreditar nele, o garotinho tornou a correr para o seu quar-to, deixando no chão de cimento queimado marcas de calcanha-res e dedos descalços, que evaporavam e desvaneciam.

— Mamãe, – disse o garotinho, tão calmo quanto era possí-vel – acordei, e você não está aqui.

Silêncio.— Você não está aqui, não é mesmo? – perguntou ele.Tinha o rosto tenso, à espera de uma resposta. Virava-o

para todos os lados, mas a resposta não chegava. E o garotinho começou a chorar.

Chorando, foi até a porta e tentou abri-la. A porta não ce-dia. Então, ele bateu com a mão, depois chutou com o pé descal-ço, machucou o pé e chorou ainda mais alto.

Ficou de pé no meio da sala, lágrimas quentes e volumo-sas escorriam-lhe dos olhos e caíam no chão. Depois, ainda chorando, se sentou.

Tudo em redor escutava-o, e o silêncio continuava.Esperava dali a pouco ouvir passos atrás de si, mas não ha-

via nada, e ele não conseguia se acalmar de jeito nenhum.Isso se deu por muito tempo; mas quanto, ele não sabia.No fim das contas, deitou-se no chão e passou a chorar dei-

tado. Ficou tão cansado que já nem sentia a si mesmo, nem per-cebia que estava chorando. Aquele choro era tão natural quanto respirar, e já não o obedecia. Pelo contrário, era mais forte que ele.

E de repente o garotinho sentiu que havia alguém na sala.

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Levantou rapidamente e olhou em volta. A sensação que o força-ra a se levantar não passava, e o garotinho correu para o quarto, depois para a cozinha e o banheiro. Ninguém apareceu.

Soluçando, o garotinho voltou e cobriu os olhos com as mãos. Depois tirou as mãos e olhou ao redor mais uma vez. Na sala nada havia mudado. A cadeira estava vazia, a mesa perma-necia solitária, na estante de livros, como sempre, havia livros, mas suas capas coloridas pareciam tristes e opacas. O garotinho começou a pensar.

— Não vou mais chorar, – disse a si mesmo. – Mamãe che-gará, e que bom menino eu serei.

Foi até a cama e enxugou com o cobertor o rosto molha-do de lágrimas. Em seguida, sem se apressar, como se estivesse passeando, contornou tudo o que tinha no apartamento. E veio--lhe à mente uma ideia brilhante.

— Mamãe, – disse ele em voz baixa. — Quero o penico.Ele não queria o penico, mas se sua mãe estivesse em casa,

isto a faria correr imediatamente até ele. —Ma-mãe, – repetiu ele.Ela não estava em casa, agora ele percebia isso

definitivamente.Era preciso fazer alguma coisa. “Começo a brincar agora,

e a mamãe chega”, achou. Foi até o canto onde estavam todos os seus brinquedos e pegou a lebre. A lebre era sua favorita. Uma de suas pernas tinha descolado, o papai várias vezes quis colar essa perna, mas ele não concordava de modo algum. Não havia por quê gostar de uma lebre com duas pernas, então ela ficou com uma só, e a segunda andava em algum lugar por ali, e agora tinha uma vida própria.

— Vamos brincar, lebrezinha, – propôs o garotinho.A lebre concordou em silêncio.— Você está doente, está com a perninha machucada, e

agora vou tratar de você.O garotinho deitou a lebre na cama, pegou um prego e en-

fiou na barriga da lebre, aplicando uma injeção.

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A lebre estava acostumada às injeções e de modo nenhum se opunha a elas.

O garotinho ficou pensativo, e depois, como que se lem-brando de algo, afastou-se da cama e passou a observar a sala. Ali nada havia mudado, e o silêncio, como antes, continuava a se balançar lentamente de um canto ao outro.

Suspirando, o garotinho voltou para a cama e olhou para a lebre. Ela estava deitada tranquilamente sobre o travesseiro.

— Não, assim não, – disse o garotinho. — Agora eu serei a lebre e você um garotinho pequeno. Você vai tratar de mim.

Pôs a lebre na cadeira e se deitou na cama, encolheu uma perna sob o corpo e começou a chorar.

Sentada na cadeira, a lebre olhava-o surpresa com seus grandes olhos azuis.

— Sou uma lebrezinha, e estou com a perninha machuca-da, – explicou o garotinho.

A lebre ficou calada.— Lebrezinha, – perguntou ele em seguida, — aonde foi a

mamãe?A lebre não respondeu.— Você não estava dormindo, você sabe, diga, aonde foi a

mamãe? – exigiu o garotinho, segurando a lebre na mão.A lebre ficou calada.O garotinho esqueceu que antes era ele que sempre fala-

va pela lebre, representando os dois papéis, e agora exigia uma resposta a sério. Esqueceu que a lebre era apenas um brinque-do entre os brinquedos – entre os cubos que só se encaixavam um ao outro quando alguém os encaixava, entre os carros que só andavam quando alguém os conduzia, entre os animais que só rugiam e conversavam quando alguém rugia e falava por eles.

Esqueceu tudo, esse garotinho.— Fale, fale! – exigiu ele.A lebre permanecia calada.O garotinho a atirou ao chão, saltou da cama e, lançando-

-se sobre a lebre, começou a chutá-la.

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A lebre rolava pelo chão, saltitava, girava, e o garotinho também saltitava e girava em torno dela e não parava de repetir: “fale, fale, fale!” – mas a lebre não respondia e não podia escapar dele, porque tinha apenas uma perna. E o garotinho de repente enten-deu isso. Ele parou. Ficou em pé e viu como a lebre, com o rosto afundado no chão, chorava em voz baixa. E ele ouviu esse choro. Inclinou-se sobre a lebre, ergueu-a e disse com um ar de culpado:

— Não sei aonde a mamãe foi.E súbito pareceu ao garotinho que alguém subia as escadas.— Mamãe! – ele gritava, lançando-se à porta, mas tropeçou

na cadeira e caiu. Ergueu-se, apurando o ouvido, mas não havia ninguém do outro lado da porta. E então, novamente, o garoti-nho começou a chorar. Chorou de dor e solidão. O que era a dor, ele já sabia. Com a solidão, era a primeira vez que se deparava.

(1965)

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Мама куда-то ушла

Мальчишка открыл глаза и увидел ползающую по потолку муху. Он поморгал и сталсмотреть, куда она ползет.

Муха двигалась в ту сторону, где было окно. Она бе-жала не останавливаясь, иполучалось это у нее очень быстро.

Мальчишка решил, что она бежит по дороге, и стал ждать, не поползет ли за ней еще одна, чтобы удостове-риться, действительно ли это дорога. Но больше мух не было. Они, правда, были, но по потолку не бегали, и маль-чишка быстро потерял к ним интерес. Он приподнялся в кровати и крикнул:

- Мама, я проснулся!Никто ему не ответил.- Мама! - позвал он. - Я молодец, я проснулся.Тишина.Мальчишка подождал, но тишина не прошла.Тогда он спрыгнул с кровати и босиком побежал в

большую комнату. Она была пуста. Он посмотрел по оче-реди на кресло, на стол, на книжные полки, но возле них никого не было. Они стояли просто так, занимая место.

Мальчишка бросился на кухню, потом в ванную - там тоже никто не прятался.

- Мама! - крикнул мальчишка.Тишина вобрала в себя его крик и сразу сомкнулась.

Мальчишка, не поверив ей, снова бросился в свою комна-ту, оставляя от босых пяток и пальцев на крашеном полу следы, которые растворялись и исчезали.

- Мама, - как можно спокойнее сказал мальчишка, - я проснулся, а тебя нету.

Молчание.- Тебя нету, да? - спросил он.Его лицо напряглось в ожидании ответа, он повора-

чивал его во все стороны, но ответ не пришел, и мальчиш-

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ка заплакал.Плача, он пошел к двери и стал ее дергать. Дверь не

поддавалась. Тогда он ударил ее ладонью, потом ткнул бо-сой ногой, зашиб ногу и заплакал еще громче.

Он стоял посреди комнаты, и крупные теплые сле-зы выкатывались из его глаз и падали на крашеный пол. Потом, не переставая плакать, он сел.

Все вокруг прислушивалось к нему, и все молчало.Он ждал, что вот-вот за его спиной послышатся

шаги, но их все не было, и он никак не мог успокоиться.Это продолжалось долго, а сколько, он не знал.В конце концов он лег на пол и стал плакать лежа.

Он так устал, что перестал чувствовать себя, и уже не понимал, что плачет. Этот плач был так же естествен, как дыхание, и уже не подчинялся ему. Наоборот, он был сильнее его.

И вдруг мальчишке показалось, что в комнате кто-то есть.

Он быстро вскочил на ноги и стал осматриваться. Ощущение, заставившее его подняться, не проходило, и мальчишка побежал в другую комнату, потом в кухню и ванную. Там никто не появился.

Всхлипывая, мальчишка вернулся и закрыл ладоня-ми глаза. Потом он убрал ладони и еще раз осмотрелся. В комнате ничего не изменилось. Кресло пустовало, стол стоял один, на книжных полках, как всегда, были книги, но их разноцветные корешки смотрели грустно и слепо. Мальчишка задумался.

- Я больше не буду плакать, - сказал он себе. - Придет мама, я буду молодец.

Он пошел к кровати и одеялом вытер свое заплакан-ное лицо. Затем неторопливо, словно прогуливаясь, он обошел все, что было у них в квартире. И тут ему в голову пришла блестящая мысль.

- Мама, - негромко сказал он, - я хочу на горшок.

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Он не хотел на горшок, но это было то, что заставило бы мать, будь она дома, тотчас броситься к нему.

- Ма-ма, - повторил он.Ее не было дома, теперь он понял это окончательно.Надо было что-то делать. "Я сейчас поиграю, и

мама придет", - решил он. Он пошел в угол, где были все его игрушки, и взял зайца. Заяц был его любимцем. У него от-клеилась одна нога, отец несколько раз предлагал маль-чишке приклеить эту ногу, но тот никак не соглашался. С двумя ногами зайца любить было бы не за что, так он и оставался с одной, а вторая валялась где-то здесь же и теперь существовала сама по себе.

- Давай играть, зайка, - предложил мальчишка.Заяц молча согласился.- Ты больной, у тебя ножка болит, я тебя сейчас буду

лечить.Мальчишка положил зайца на кровать, достал гвоз-

дь и ткнул им зайца в живот, делая укол.Заяц к уколам привык и никак на них не отзывался.Мальчишка задумался, потом, словно что-то вспом-

нив, отошел от кровати и заглянул в большую комнату. Там ничего не изменилось, и тишина по-прежнему все так же медленно раскачивалась из угла в угол.

Мальчишка, вздохнув, вернулся к кровати и посмо-трел на зайца. Тот спокойно лежал на подушке.

- Нет, не так, - сказал мальчишка. - Теперь я буду за-йкой, а ты маленьким мальчиком. Ты будешь меня лечить.

Он посадил зайца на стул, а сам лег в кровать, под-жал под себя одну ногу и заплакал.

Заяц, сидя на стуле, удивленно смотрел на него свои-ми большими голубыми глазами.

- Я зайка, у меня ножка болит, - объяснил ему мальчишка.

Заяц молчал.- Зайка, - спросил он потом, - куда ушла мама?

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Заяц не ответил.- Ты не спал, ты знаешь, говори, куда ушла мама? -

потребовал мальчишка и взял зайца в руки.Заяц молчал.Мальчишка забыл, что раньше он сам всегда отве-

чал за зайца, выступая сразу в двух ролях, и теперь все-рьез требовал от него ответа. Он забыл, что заяц был только игрушкой среди игрушек - среди кубиков, которые становились друг на друга, только когда их ставили, сре-ди машин, которые шли, только когда их вели, среди зве-рей, которые рычали и разговаривали, только когда за них кто-нибудь рычал и отвечал.

Он обо всем забыл, этот мальчишка.- Говори, говори! - требовал он.Заяц продолжал молчать.Мальчишка швырнул его на пол, спрыгнул с кровати

и, бросившись на зайца, стал его пинать.Заяц катался по полу, подскакивал, крутился, и маль-

чишка тоже подскакивал и крутился вокруг него и все по-вторял: "Говори, говори, говори!" - но заяц не отвечал и не мог от него никуда убежать, потому что он был с одной ногой. И мальчишка вдруг понял это. Он остановился. Он стоял и смотрел, как заяц, уткнувшись лицом в пол, без-звучно плачет. И он услышал этот плач. Он наклонился над зайцем, развел руками и виновато сказал:

- Мама куда-то ушла.И вдруг мальчишке показалось, что по лестнице кто-

то поднимается.- Мама! - закричал он, бросаясь к двери, но запнулся

о кресло и упал. Он поднялся, прислушиваясь, но за дверью никого не было. И тогда мальчишка снова заплакал. Он плакал от боли и одиночества. Что такое боль, он уже знал. С одиночеством он встретился впервые.

(1965)

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Beatriz Morbach faz vídeo e cadernos. graduada em artes pela ufpa.

Beatriz Negreiros Gemignani é formada em Letras – Português e Árabe pela USP, tendo realizado intercâmbio na Universidade Paris VIII Vincennes – Saint-Denis, em 2011. É membro do Grupo de tradução de poesia árabe contemporânea e da Tarjama – Escola de tradutores de literatura árabe moderna.

Caroline Micaelia é graduanda em Letras – Português e Francês, na USP. Traduziu poetas argentinos contemporâneos como Anuar Cichero, Alexis Comamala e Javier Martínez Ramacciotti, publicados em cordel no "Primer Sarau: fiesta de lectura y vino" (2014), em Córdoba, Argentina. Atualmente, preocupa-se com difusão de poesia brasileira – especialmente a contemporânea – e pesquisa o Crise de vers, de Stéphane Mallarmé.

Danilo Augusto de Athayde Fraga nasceu em Salvador em 1990 e é poeta, ensaísta, professor e tradutor. Publicou os livros Poemas (2014, edição do autor), Sonhos e outros sonos (2005, Luripress), Canto para a morte de Mandela (2013, Ritmo Zero) e Zumbi (Coisa Edições, 2014). É bacharel em Humanidades pela

UFBA e, atualmente, cursa Letras na mesma instituição e trabalha em seu novo livro: Estar na grama.

Enaiê Mairê Della Torre Azambuja nasceu em Curitiba e, em 2012, formou-se em Letras pela UFPR, onde teve como tese de conclusão de curso o texto publicado na cisma. Atualmente, cursa o Mestrado em Literatura inglesa na Universidade de Estocolmo. Foi coeditora do blog-revista Sinuosa e seu livro de traduções de poemas de Tranströmer, Pequenos telegramas pálidos do mundo, está no prelo pela Companhia das Letras.

Felipe Catalani é estudante de Filosofia na USP e pesquisa atualmente Theodor Adorno sob orientação do professor Vladimir Safatle.

Gabriel Alonso é recém-graduado em Letras – Português e Alemão pela UFF. Desenvolveu, com financiamento da mesma universidade, dois anos de pesquisa sobre a tradução da obra poética de Heinrich Heine no Brasil, sob a orientação da professora Susana K. Lages.

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colaboradores

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Gianni Paula de Mello é jornalista e estudante de graduação em Letras (Licenciatura em língua portuguesa) na UFPE.

Giulia Afiune se formou em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, cursa Ciências Sociais na USP, e é repórter da Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

Henrique Barbosa é bacharel em Relações Internacionais pela UnB e membro da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. É aluno admitido na Graduate School of International Relations and Pacific Studies, University of California, San Diego. Estudou Latim na UnB.

Henrique Gomes Lucas Santos é graduando em Letras – Português e Russo pela USP. Faz Iniciação Científica de tradução de análise de alguns contos de Valentin Raspútin com a Professora Maria de Fátima Bianchi e bolsa da Reitoria da USP.

Danilo Alves tem 20 anos, é baiano de Poções mas vive em São Paulo desde criança. Se interessa por poesia, ilustração, pão de batata e outras coisas.

Jony Pupo nasceu João Pedro Tuccori Pupo, filho de Ciça e Xico. Formou-

se em Letras – Japonês pela Unesp de Assis, através da qual recebeu, em 2012, uma bolsa para estudar durante um ano na Universidade de Tenri, em Tenri, província de Nara, Japão. Escreve poemas desde o colegial, relaciona-se com música desde bebê. Atualmente reside em São Paulo, onde ensina língua japonesa, faz parte do projeto musical Shandala e também atua como instrutor de Aikido.

Renata ZNM caminha e fotografa. Vive entre Belém e Sao Paulo.

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