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1 Cinderela vai ao baile James Alison 1 Madrid, junho de 2015 Apresentação para o congresso do Colloquium on Violence and Religion na Universidade de Saint Louis, Missouri, em 8 de julho de 2015. Introdução Preciso começar pedindo desculpas por meu título. Afinal, se Cinderela é a Esperança, isso supõe que a Fé e a Caridade são suas feiosas irmãs postiças. Porém, na verdade, as duas são bonitas, e nenhuma delas é invejosa. Eu sim- plesmente não consegui resistir à tentação de fazer uma aparição off-Bro- adway como fada madrinha. Mesmo assim, ainda que a varinha possa estar comigo esta noite, a mágica, como todos sabem, vem de René Girard. 1 Tradução de Pedro Sette-Câmara, a partir de originais em inglês e em espanhol, com revisão e adaptações do autor.

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    Cinderela vai ao baile

    James Alison1

    Madrid, junho de 2015

    Apresentação para o congresso do Colloquium on Violence and Religion

    na Universidade de Saint Louis, Missouri, em 8 de julho de 2015.

    Introdução Preciso começar pedindo desculpas por meu título. Afinal, se Cinderela é a

    Esperança, isso supõe que a Fé e a Caridade são suas feiosas irmãs postiças.

    Porém, na verdade, as duas são bonitas, e nenhuma delas é invejosa. Eu sim-

    plesmente não consegui resistir à tentação de fazer uma aparição off-Bro-

    adway como fada madrinha. Mesmo assim, ainda que a varinha possa estar

    comigo esta noite, a mágica, como todos sabem, vem de René Girard.

    1 Tradução de Pedro Sette-Câmara, a partir de originais em inglês e em espanhol, com revisão e adaptações do autor.

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    Grant me proporciona uma honra enorme ao convidar-me para falar da

    Esperança neste Colóquio, no qual somos convidados a ser construtivamente

    autocríticos em relação ao pensamento de René Girard e a nosso uso dele.

    Um dos comentários que ouvi com maior frequência sobre Rematar Clau-

    sewitz, o último livro de René, é que ele é muito apocalíptico em sua avalia-

    ção de para onde estamos indo, e das tendências subjacentes que estão

    operando; e que, em sua visão, o espaço para a esperança é bastante reduzi-

    do. O que vou tentar fazer esta noite é questionar não a primeira parte dessa

    avaliação, mas a segunda, de que há pouco espaço para a esperança. E isso

    não porque eu veja sinais ocultos da esperança espalhados pelas páginas do

    livro, mas porque acho que essa avaliação comete um erro categórico a res-

    peito da relação entre pensamento apocalíptico e esperança. O pensamento

    apocalíptico, ou catastrofista, envolve uma certa avaliação do futuro. A espe-

    rança é uma virtude teológica que qualifica o presente. A confusão entre os

    dois não ajuda nenhum deles, e, como espero mostrar, a antropologia mimé-

    tica de René nos oferece uma maneira excelente de compreender a segunda.

    O que eu espero ter feito ao final da apresentação é motivar uma reavaliação

    de nossa leitura de Rematar Clausewitz, que mencionarei poucas vezes, de

    modo que a relação entre esperança e trevas possa ser mais facilmente com-

    preendida.

    1. Três irmãs feias Muitos de nós vivemos com uma caracterização de cada uma das três virtu-

    des teologais — Fé, Esperança e Caridade —, carcomida por dentro por ao

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    menos um forte resíduo de uma imagem moderna e individualista do eu. O

    resultado é que, sem que consigamos evitar, acabamos vivendo uma carica-

    tura do que são essas virtudes. Assim, a fé torna-se uma posição ideológica

    contrária aos fatos, chamada crença, que uma chantagem emocional nos

    obriga a sustentar caso queiramos ser “salvos”. No que diz respeito à existên-

    cia de Deus e à existência de Jesus no mundo, você tem de lançar um fogue-

    te lunar para o vácuo. E, haja ou não haja alguma coisa lá, o fato de você estar

    preparado para lançar o foguete, e de tenazmente fornecer-lhe combustível

    emocional, é por algum motivo considerado digno de mérito.

    Em seguida, a Caridade aparece como uma enorme exigência à vontade

    para que se continue a pensar positivamente sobre os outros, e a agir gene-

    rosamente em relação a eles; principalmente em relação aos canalhas, quem

    quer que sejam, mesmo que você os deteste e desaprove praticamente tudo

    neles. Outra vez, é como se um certo esforço autopunitivo de forçar a si pró-

    prio a manter uma atitude positiva em relação àquilo de que você na verda-

    de não gosta fosse especialmente digno de mérito.

    A Esperança, então, torna-se um jeito educado de falar do pensamento

    positivo. Um modo de tentar olhar o lado bom da perda de qualquer expec-

    tativa firme de que alguma coisa boa possa acontecer com você: “Você real-

    mente acha que tem a mínima chance de ganhar um prêmio desses?” “Na

    verdade, não, mas vivo na esperança.” Como se a esperança fosse uma emis-

    são de anseios para o vazio: o que resta quando não há nenhuma expectativa

    real. Porém, isso não passa de uma pia ilusão do pensamento positivo, que

    tenta fazer da resignação uma virtude.

    Bem, como creio ser evidente, esses três simulacros têm pouco ou nada a

    ver com as virtudes teologais em sua acepção tradicional. O que eu propo-

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    nho fazer com vocês esta noite é mostrar o quão mais claramente a Esperan-

    ça, junto com as outras virtudes, pode passar a ser vista como aquilo que é

    quando reimaginamos a antropologia por trás dela, seguindo o entendimen-

    to interdividual do desejo mimético como elaborado por René Girard, e de-

    senvolvido por Jean-Michel Oughourlian.

    2. O que é uma virtude teologal? Antes de entrarmos na parte teológica, o que é uma virtude? Uma virtude é

    uma disposição estável para o bem, que foi gerada em você pela sua respos-

    ta habitual a este ou a aquele conjunto de circunstâncias. Assim, uma pessoa

    corajosa é uma pessoa na qual a disposição estável de não permitir que suas

    ações sejam dominadas pelo medo diante do perigo tornou-se uma caracte-

    rística discernível sua, ajudando a definir quem essa pessoa realmente é. Isso

    em contraste com alguém que não sente medo (e portanto não avalia bem o

    perigo); ou com alguém que tem acessos ocasionais de fanfarronice de ori-

    gem química, que levam esse alguém a agir de modo imprudente; ou com

    alguém cujas ações, diante do perigo, são habitualmente dominadas pelo

    medo: um covarde.

    Como era de se esperar, as respostas habituais que se estabilizam em

    nós são, como René Girard sempre insistiu, aquelas a que somos induzidos

    pela imitação. Um bom modelo, se conseguirmos evitar rivalizar com ele, nos

    levará a adquirir as mesmas disposições estáveis que ele possui. Como todos

    sabemos, esse processo é árduo e precário, pois não é fácil manter uma dis-

    tância saudável de nossos modelos. À medida que nos aproximamos uns dos

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    outros, vamos passando da emulação para a rivalidade, como se a disposição

    estável em questão, e o elogio e o reconhecimento que a acompanham, fos-

    sem um bem escasso, que só podemos possuir às custas do nosso modelo.

    Espero que seja evidente, portanto, que uma virtude é algo relacional,

    parte do caminho, que começa fora de você, por meio da qual algo é produ-

    zido em você, tornando-se algo que é realmente você, e que portanto tem

    um efeito regular e objetivo na maneira como você se relaciona com os de-

    mais.

    Se é isso então que é uma virtude, o que significa uma “virtude teologal”?

    Bem, significa que o Outro que produz em nós a disposição estável em ques-

    tão é Deus. Naturalmente, se a sua psicologia é individualista, se nela o seu

    desejo começa em você, então isso necessariamente parecerá um tanto má-

    gico. Deus ilumina sua mente de algum jeito direto, talvez lançando raios, e

    assim você consegue “saber” alguma coisa que não é de jeito nenhum óbvia

    naturalmente; ou então Deus capacita você para uma espera resignada por

    um tesouro celeste que você mal consegue imaginar; ou então fortalece sua

    vontade para que você faça o que sabe que é certo nas suas relações com os

    outros, por mais doloroso e desagradável que isso venha a ser para eles ou

    para você. Porém, um entendimento mimético da psicologia em questão pro-

    duz ao mesmo tempo um quadro muito mais são e mais tradicional.

    Afinal, a Fé e a disposição estável produzida em você por Deus, que ve-

    razmente o persuade, por meio da presença da vida e da morte de Jesus, de

    que você é amado por Deus do modo como é. Por meio dessa persuasão, ao

    longo do tempo você se torna habitualmente capaz de relaxar naquele “ser

    conhecido por Deus do modo como você é com amor” e de viver sem medo

    da morte. Esse “ser conhecido por Deus do modo como você é com amor” já

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    é algo diante de quê a morte é impotente, pois para Deus conhecer alguém,

    amar esse alguém e manter essa pessoa na existência amortal são coisas in-

    separáveis, como Jesus tanto ensinou como demonstrou. Assim, na medida

    em que a disposição estável de “estar persuadido” passa a caracterizar você,

    você já começa a viver de modo amortal precisamente neste “ser mantido no

    conhecimento de ser amado por Aquele que desconhece a morte”.

    Por causa disso, o correlato emocional normal da fé é o relaxamento.

    Você não precisa forçar a crença no sentido de algo desconhecido. Antes, o

    esforço, a tensão e o trabalho ficam com Aquele que está tentando persuadir

    você a relaxar e ser conhecido como é. Apesar de todos os obstáculos da

    vergonha, da ignorância e da incapacidade de aceitar que você pode ser

    amado, Aquele está induzindo em você a disposição estável de estar persua-

    dido por Ele próprio; essa persuasão (ou fé — a palavra grega é a mesma) é

    em si dom de Deus em você. Esse dom está em você como um modo certo,

    publicamente reconhecível, de estar presente no mundo, e que incide sobre

    todos os seus relacionamentos.

    A caridade é a disposição estável por meio da qual Deus nos capacita a

    receber a nós próprios ao dar-nos. Novamente, costumamos achar que a ca-

    ridade envolve um exercício da vontade auto-iniciado por meio do qual de-

    vemos amar a Deus sobre todas as coisas e os próximos como a nós mesmos.

    E, quanto mais difícil e exigente isso for, melhor. Essa exigência muito rapida-

    mente faz de nós chantagistas emocionais de aparência generosa, controla-

    dos por todas as patologias do sacrifício de si que Girard tão bem iluminou.

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    Mesmo assim, uma antropologia sã, ou uma teologia sã, ou até qualquer

    pessoa que se lembre de 1 João 4, 102, sabe perfeitamente bem que é por

    termos sido amados primeiro que somos capazes de amar; e a presença do

    amor verdadeiro para com os outros na vida de uma pessoa é um sinal certo

    de que elas operam a partir de ser amada primeiro. A razão pela qual isso é

    importante é que “estar capacitado para receber a si próprio ao dar-se” é o

    modo como compartilhamos a vida de Deus. Pois, quanto a Deus, podemos

    dizer que seu ser mesmo consiste em dar-se a si próprio. Daí a abundância

    de tudo aquilo que é, e a absoluta discrição daquele que faz com que tudo

    exista. Assim, a Caridade é a disposição estável por meio da qual somos gra-

    dualmente induzidos por Jesus, o Crucificado e Ressurrecto (o ser humano

    que se recebeu plenamente por meio de sua auto-doação), a compartilhar a

    vida interior de Deus já nesta vida. E o correlato emocional que acompanha

    essa disposição é a Alegria.

    Bem, não faltam livros sobre as virtudes teologais da Fé e da Caridade. E

    isso em grande parte se deve, suspeito, porque tradicionalmente cada uma

    delas está associada a uma faculdade humana — o intelecto com a Fé, a von-

    tade com a Caridade — sobre a qual não há uma carência de discussão inteli-

    gente, por mais que essa discussão esteja enredada em pressupostos indivi-

    dualistas e mentalistas. Porém, vocês podem ficar surpresos ao saber que a

    faculdade humana tradicionalmente associada à virtude teologal da Esperan-

    ça é a memória. E é muito difícil encontrar bibliografia sobre a antropologia

    teológica da memória.

    2 “Nisto consiste o amor: não em termos nós amado a Deus, mas em ter-nos Ele amado, e envia-do o seu Filho para expiar nossos pecados.”

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    Assim, eu gostaria de sugerir, como definição inicial, e antes de passar a

    explorar o papel da memória, que a virtude teologal da Esperança é a dispo-

    sição estável por meio da qual permitimos que sejamos estirados, por uma

    plenitude aparentemente futura que vem sobre nós, a receber quem real-

    mente somos, ao mesmo tempo em que nosso passado é reformulado. Se o

    correlato emocional da Fé é o relaxamento, e, o da Caridade, a Alegria, então

    o correlato emocional da Esperança é um senso de que uma empolgante

    aventura o estira, com o entusiasmo rejuvenescedor que acompanha esse

    senso.

    3. Filiação / υἱοθεσία Porém, antes de passarmos a uma discussão detalhada da Esperança e da-

    quilo que lhe é específico, eu gostaria de fazer mais uma observação geral

    sobre por que as virtudes teologais são centrais para o cristianismo. E minha

    observação está associada à mesma crítica da visão deficiente e paralisante

    que parecemos considerar normal. Se a fé é uma pressão para manter um sis-

    tema de crenças contrário aos fatos, a esperança, um pensamento positivo

    dirigido para o vácuo, e a caridade, uma determinação obstinada de ser

    bom, então logo o único elemento importante que resta da Vida Cristã passa

    a ser a moral, pois este é o único elemento que tem qualquer impacto real

    em nossa vida cotidiana. Assim, se formos protestantes, a Bíblia se torna um

    livro de direito fundamental no que diz respeito à moral, e, se somos católi-

    cos, a Igreja se torna uma operação inquestionável de policiamento moral.

    Afinal, todo o resto — a fé, a graça, a liturgia, a oração, a vida do Espírito, a es-

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    perança e o paraíso — é vago demais, insubstancial demais para ter qualquer

    impacto em nossas vidas cotidianas.

    Bem, espero convencê-los de que isso não faz sentido. A Fé, a Esperança

    e a Caridade não são atrações secundárias, um tanto vagas e insubstanciais,

    sobre as quais é bonito informar-se, enquanto o que é sério — o aprendizado

    de comportamentos devidamente aprovados — acontece em outro lugar. Elas

    não são algo a mais, que acompanha a moral. Elas são as três dimensões es-

    truturantes, as três disposições estáveis daquilo que Paulo denomina huiothe-

    sía3, e que normalmente se traduz como “filiação”, “adoção como filhx”, ou

    “ser transformado em filhx”.4

    Observem por favor o que isso quer dizer: as virtudes teologais não es-

    tão num compartimento das nossas vidas, e, em outro, a moral ou questões

    de comportamento ético. Não, nossa filiação de Deus desdobra-se, estende-

    se em nossa vida na medida em que cada um de nós é induzido a ter as dis-

    posições estáveis de conhecer como somos conhecidos, e portanto relaxar;

    de sermos estirados para uma futura liberdade que já vem em nossa direção;

    e, à medida em que estas operam, de sermos capacitados a receber nós

    mesmos ao dar-nos, e portanto a compartilhar a vida de Deus. Essas disposi-

    ções estáveis induzidas em nós na verdade nos tornam aquilo que chegare-

    mos a ser, e, ao fazer isso, vemo-nos do lado de dentro da realidade da cria-

    ção, livres donos dela.

    3 Por exemplo, em Romanos 8, 15, 23; em Gálatas 4, 5; em Efésios 1, 5. 4 N. do T.: Esta versão portuguesa baseia-se em dois originais produzidos pelo autor, um em in-

    glês, outro em espanhol. Neste ponto, o texto inglês foi obrigado a fazer uma longa digressão em busca de uma palavra que designasse a relação de filiação sem marcação de gênero. O tex-to espanhol pula a digressão e simplesmente adota o “x” como “desmarcador” de gênero, usan-do ” hijx”. Pareceu-me mais simples seguir o uso do texto espanhol.

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    Em outras palavras, essas disposições estáveis produzidas em nós por

    Deus estruturam o centro operativo desde o qual vivemos nossa filiação. As

    disposições são totalmente não-diretivas — elas não nos dizem o que fazer.

    Elas moldam a maneira como descobrimos por conta própria o que fazer. E

    aquilo que vamos querer fazer fluirá daquilo que vemos que nos tornamos. É

    por causa disso que não existe uma moral especificamente cristã. Existe ape-

    nas aquilo que é autenticamente bom para os seres humanos fazerem, como

    descoberto desde dentro por aqueles que estão no processo de tomar pos-

    se de tudo como filhxs de Deus.

    4. A vida como herdeiro / κληρονόμος Essencial para essa imagem de nós sermos estirados para a filiação por aqui-

    lo que chega a nós é a imagem do herdeiro, também usada por Paulo.5 Eu

    gostaria de demorar-me nessa imagem, porque ela nos ajuda a evitar uma

    das grandes dificuldades de qualquer discussão da esperança, que é a ten-

    dência de olhar a esperança como uma questão essencialmente subjetiva,

    uma forma de certeza ou de convicção interior, algo independente da reali-

    dade objetiva. Isso seria enganoso. O ponto essencial de ser herdeiro é que

    sua herança não é uma vaga esperança que pode ou não pode um dia che-

    gar a você, como ganhar na loteria. Antes, trata-se de uma expectativa inteira-

    mente realista que está se aproximando de você, assim como uma promessa

    5 Por exemplo, em Romanos 8, 17; mas também em Gálatas 3, 29; 4, 1, 7; e em Tito 3, 7.

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    se dirige para seu cumprimento, enquanto a pessoa de quem você é herdei-

    ro se aproxima da morte. E, a partir do momento em que essa pessoa morre,

    a herança é de fato inalteravelmente sua. Afinal, um testamento devidamente

    cumprido é uma promessa feita diante de testemunhas que é cumprida na

    morte e que não pode ser alterada postumamente.

    Assim, no momento em que minha mãe faleceu, alguns anos atrás, minha

    irmã, meu irmão e eu já éramos, segundo a lei, proprietários iguais de tudo

    que estava prometido em seu testamento. Na verdade, porém, um testamen-

    to demora a ser cumprido: não tínhamos acesso imediato àquilo que de fato

    já era nosso. Primeiro era preciso fazer o inventário, o que leva uma eternida-

    de. Em seguida, os tigres de dentes de sabre de Sua Majestade morderam

    40% do total, como manda a lei. Enfim, cerca de dezoito meses após a morte

    de minha mãe, o resto foi dividido da maneira especificada no testamento.

    Porém, minha relação com essa herança durante aquele intervalo de de-

    zoito meses não foi de fantasias, nem de anseios num vácuo. Algo que já era

    substancialmente meu segundo a lei pouco a pouco se aproximava de ser

    meu na prática, isto é, de estar à minha disposição. É bastante clara a diferen-

    ça entre, de um lado, o pensamento positivo, e, de outro, a expectativa obje-

    tiva. Pensamento positivo é o que fazemos ao jogar na loteria e fantasiarmos

    aquilo que faríamos no remotíssimo caso de ganharmos. A menos que seja-

    mos loucos, esse pensamento positivo não nos leva a alterar nosso modo de

    viver como se tivéssemos certeza de algo. A expectativa de uma herança, por

    outro lado, tem um efeito tangível em nós durante o período entre a promes-

    sa ser feita, a promessa ser formalmente cumprida na morte, e aquilo que

    nos foi prometido de fato passar à nossa posse.

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    Assim, à medida que a herança de minha mãe passava de promessa a

    fato formal e a algo disponível, ela produzia uma mudança em mim. Ela fazia

    com que eu pouco a pouco ajustasse meus planos, meu senso de possibili-

    dades etc. Ela já estava, alguns meses antes de efetivamente cair em minhas

    mãos, moldando-me por dentro, de modo que eu estivesse, de modo mais

    realista, à altura do privilégio da posse. Esse moldar-me por dentro começou

    pelo estiramento de minha imaginação, e gradualmente de meus hábitos e

    de meus relacionamentos, por exemplo com meus dois irmãos e com meu fi-

    lho, de minha confiança em relação a meus credores etc. No momento em

    que os dezoito meses chegaram ao fim, eu era um agente distinto daquele

    que tinha sido.

    Enfatizo tudo isso por ter a ver diretamente com o versículo provavel-

    mente mais famoso a respeito da esperança do Novo Testamento: Hebreus

    11, 1.

    A fé é a ὑπόστασις (literalmente: substância) das coisas que se espe-

    ra, a ἒλεγχος (literalmente: prova) das coisas não vistas.

    O versículo é ligeiramente confuso, pois, como observa ninguém menos do

    que o Papa Bento XVI6, ele elide a fé e a esperança. Mesmo assim, o versículo

    possui uma interpretação totalmente distinta quer estejamos falando de algo

    subjetivo ou de algo objetivo.

    Por exemplo, a clássica tradução de Ferreira de Almeida (revista e atuali-

    zada) dá um sentido subjetivo para ambas as palavras “hypostasis” e “elen-

    chos”: “Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos

    6 Ver Spe Salvi 2 e 7.

  • 13

    que se não veem.” Desse modo, a fé e a esperança são descritas como esta-

    dos subjetivos dentro de nós – certeza e convicção. A Bíblia de Jerusalém,

    por outro lado leva em conta a objetividade daquilo que é dito: “A fé é a ga-

    rantia antecipada do que se espera, a prova de realidades que não se veem.”

    O sentido que estou tentando evidenciar difere um pouco de ambas as

    traduções, e está muito mais próximo da seguinte paráfrase: “Agora, estar-

    mos persuadidos, por efetivamente render a substância daquilo que se espe-

    ra, faz de nós uma demonstração ou prova daquilo que não se vê”. É exata-

    mente neste último sentido que funciona a herança: com a morte do testa-

    dor, a herança prometida é substancialmente minha, mesmo que ainda não

    esteja e minha posse, e, por causa disso, eu agora já me encontro no proces-

    so de tornar-me uma demonstração pública visível, um sinal confiável do que

    está por vir. Quem eu sou está sendo objetivamente alterado à medida que a

    promessa de outra pessoa, que o desejo de alguém distinto, caminha para

    sua realização ao ser recebido por mim.

    5. O outro humano Outra perplexidade legada a nós pela visão individualista e mentalista do eu

    é que as virtudes teologais devem ser produzidas em nós diretamente por

    Deus, sem quaisquer intermediários humanos. Com isso, não apenas a espe-

    rança se torna um anseio no vazio, como toda a visão da esperança oferecida

    pelo Novo Testamento se torna incompreensível. O que é central na visão

    neo-testamentária da esperança é que a esperança foi aberta para nós de

    maneira definitiva, como possibilidade inteiramente nova, porque Jesus fez

  • 14

    algo. Em outras palavras, a esperança não brota magicamente em nós pela

    intervenção de um outro divino remoto. A esperança é produzida em nós, an-

    tropologicamente, assim como todas as outras virtudes, por outro ser huma-

    no. Foi o que Jesus fez no nível humano e antropológico que abriu para nós a

    possibilidade de ver algo disponível para nós pelo estiramento. Ele criou-a

    humanamente, e também seu atrativo, ao modelar o desejo de obtê-la, que

    recebemos ao emulá-lo.

    O que foi que ele fez? Primeiro, ele criou o contexto em que seu ir ao en-

    contro da morte poderia ser compreendido, mesmo que só de maneira pós-

    tuma, como um ato de generosidade obediente, não motivado pela morte,

    nem por medo ou por vergonha dela, nem por nossa impotência diante dela.

    Um ato que só pudesse ser realizado por alguém que não fosse, ele próprio,

    movido sob qualquer aspecto por essas forças. Um ato realizado portanto em

    sua plenitude, até suas últimas consequências. Por fim, sua ressurreição reve-

    lou que aquilo que ele tinha falado e feito tinha sido capacitados o tempo in-

    teiro pelo verdadeiro sentido de tudo que existe, de todo devir: uma abun-

    dante vida que se doa, inseparável da glória de Deus. Em outras palavras, sua

    ressurreição não foi um comentário post-mortem a uma vida bem vivida. Foi

    o sinal de que a brilhante efervescência da realidade, daquilo que na verda-

    de sempre tinha existido, tinha finalmente conseguido irromper de maneira

    definitiva em meio a uma vida e a uma cultura humanas desnaturadamente

    sombrias. Essa irrupção foi produzida por um ser humano que viveu concre-

    tamente, e que foi ao encontro da morte sem ser movido, nem determinado,

    nem assustado, nem submetido pela morte, nem por seus arautos de aparên-

    cia piedosa. Ao fazer isso, ele modelou criativamente a possibilidade de que

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    qualquer um de nós fosse contagiado por aquilo que ele pôs à solta no mun-

    do.

    Quero enfatizar isso, porque significa que aquilo que Jesus abriu para

    nós, aquilo que ele nos prometeu, e aquilo que ele realizou para nós ao ir ao

    encontro de sua morte, foi o acesso à plenitude da realidade amortal que a

    criação na verdade é. E é esse sentido do estiramento em nossa direção da

    plenitude daquilo que a criação realmente é, e de nosso ser estirados para

    além de nós mesmos e de sermos transformados em pessoas que estão à al-

    tura do privilégio de serem o herdeiro e o de dentro dela, que produz em

    nós a Esperança. Uma vez que se entenda que Jesus fez isso por nós, que ele

    foi o cumprimento da antiga promessa de Deus a nós, e que essa promessa

    foi cumprida em sua morte; assim, uma vez que o testador morra, a herança

    já está lá, e já começa a ser instanciada em nós à medida que somos induzi-

    dos à plena posse daquilo que ao mesmo tempo é nosso e ainda não é. Po-

    rém, o cerne da esperança é que ela está ligada à realidade. O “novo nasci-

    mento para uma esperança viva” de que fala 1 Pedro 1, 3 não é nem nunca

    foi uma realidade religiosa ou moral privada. Era, e é, um realinhamento de

    todo nosso modo de ser no sentido daquilo que realmente é, à medida que

    o que realmente é começa a manifestar-se em nós.

    6. Criação e perdão Não que Jesus apenas tenha morrido e que sua ressurreição tenha revelado

    a vida eterna, ainda que isso tenha acontecido. Sua morte e sua ressurreição

    tiveram conteúdo: ele ocupou o lugar da vergonha, da degradação, da mal-

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    dição e da impotência, teve a sorte da vítima inocente expulsa pela reunião

    das forças de liderança cívicas e religiosas. E aceitou esse destino voluntária

    e generosamente. Isso significou que a presença de Jesus como vítima cruci-

    ficada e ressurrecta abre a nova criação não como um fato neutro, como se

    ele estivesse apenas revelando para nós a existência de um continente até

    então desconhecido. Antes, ele estava abrindo-a do único jeito como ela po-

    deria ser concebivelmente acessada por nós: por meio do perdão. É assim

    que a nova criação nos reforma e nos alinha consigo própria.

    Aquilo que chamamos de perdão dos pecados não é um decreto mora-

    lista promulgado por um vencedor magnânimo. O perdão dos pecados tor-

    nou-se possível porque Jesus ocupava o ponto zero daquilo que viabilizava a

    cultura humana — desconstruindo a partir de dentro do mecanismo vitimário

    constitutivo por meio do qual construímos e mantemos nossa maneira de vi-

    ver, e que configurou nossa humanidade e todas as nossas instituições.

    Por que isso é tão importante? Porque abrir a realidade daquilo que é

    sem ao mesmo tempo desconstruir-nos, e sem capacitar-nos para nos desen-

    redarmos da falsidade do que pensávamos daquilo, deixaria nossas imagina-

    ções ainda tão formadas por aquilo que achávamos que éramos, que sería-

    mos incapazes de ser estirados naquilo que estamos nos tornando. O perdão

    é o modo como descrevemos o modo como “aquilo que estarmos em vias

    de nos tornar” começa a desdobrar-se em nossas vidas, desprendendo-nos,

    deixando-nos livres daquilo que pensávamos que éramos. O fato de estar-

    mos pessoal e narrativamente envolvidos nesse processo é algo que costu-

    mamos perceber muito depois de esse perdão ter começado a manifestar-se

    em nossas vidas. Esse envolvimento narrativo vem quando somos enfim ca-

    pazes de reconhecer as maneiras como estávamos presos, e de consentir

  • 17

    num realinhamento de nosso ser que há muito nos empurrava para apropriá-

    lo dizendo a palavra “eu”. Como quando dizemos: “Eu peço desculpas”, ou

    “O que foi que eu fiz?”, ou “Por favor, me perdoe!”.

    Em outras palavras, absolutamente essencial para nosso entendimento

    da esperança é que ela nos alcança na forma de uma reestruturação da me-

    mória, e por meio dessa reestruturação. E acho que vale a pena pensar um

    pouco sobre isso.

    7. Memória A memória não é algo que eu possua. É a memória que permite que simples-

    mente exista um “eu”. Outra vez, a imagem individualista de quem somos nos

    engana, porque a memória tem uma história, e de fato é ela que possibilita a

    existência de animais históricos e narrativos como nós. Não sabemos quando

    o local físico, algo que simplesmente esteve onde esteve por muitos milhões

    de anos antes de existirmos, começou a adquirir sentido para nós — mas pa-

    rece seguro que os túmulos foram os primeiros lugares em sentido humano,

    e que a partir deles começamos a compreender o espaço, e a fazer dele algo

    a nossa imagem. Também não sabemos quando o movimento físico dos cor-

    pos, animados ou inanimados, algo que simplesmente aconteceu por mi-

    lhões e milhões de anos antes de existirmos, começou a adquirir sentido

    para nós, como tempo. Porém, parece seguro apostar que esse sentido esta-

    va relacionado com a maneira como o antes e o depois definitivos da morte

    ganharam sentido.

  • 18

    Existem muitas maneiras diferentes de descrever como esse macaco in-

    ventou-nos ao tropeçar numa relação com o lugar; como a repetição sem

    fim, levando a lugar nenhum, passou a ficar cheia de significado, levando tan-

    to a sons virando linguagem quanto a nós descobrindo a nós mesmos atra-

    vés do tempo. A natureza totalmente contingente de nosso ser descoberta

    pela união de tempo e lugar, e o ciclo de retroalimentação que isso inaugu-

    rou por meio de imitações e repetições cada vez mais significativas, levando

    a memória a começar a nos proporcionar uma narrativa, é parte de qualquer

    explicação da hominização. A de Girard tem pelo menos o valor de ser extra-

    ordinariamente parcimoniosa, pois o mecanismo da vítima aleatória que ele

    descreve, no qual macacos hipermiméticos esbarraram ao longo de centenas

    de milhares de anos, une exatamente as qualidades de repetição de gesto e

    de som que permitem que nossa invenção pelo tempo e pelo lugar fosse es-

    truturada desde dentro pelo sagrado, isto é, por aquilo que hoje vemos

    como distorções vitimárias.

    O sentido de sermos estirados pela memória para uma realidade maior

    do que aquela que conhecíamos multiplicou-se ao longo dos milênios, à me-

    dida que a repetição ritual criou monumentos, os quais por si começaram a

    estirar ainda mais nossas memórias, pois começamos a viver com a evidência

    de um passado maior do que o nosso tempo de vida, maior do que a vida de

    vinte, de trinta e depois de cerca de quarenta anos para a qual memórias vi-

    vas de acontecimentos específicos permanecem disponíveis. A diferença

    causada nisso pelos primeiros arranhões do letramento — provavelmente um

    mecanismo de contabilidade, o que significa um meio de medir e de estimar

    as dívidas, o que significa um meio de adiar a vingança — é parte daquilo que

    produz os indutores e mantenedores, enormemente sutis e complexos, da-

  • 19

    quilo que chamamos de cultura, e que formam cada um de nós desde den-

    tro.

    Assim, o fato é que cada um de nós possui uma memória induzida em

    nós à medida que somos estirados a imitar gestos e sons, e que o floresci-

    mento de uma memória saudável é a capacidade de seu portador de com-

    partilhar e de negociar narrativamente seus relacionamentos com o “nós”

    que engendrou aquele “eu” em particular. A memória é o modo como a reali-

    dade humana e narrativa nos estira para dentro dela própria.

    Espero que vocês consigam perceber então por que o perdão é essenci-

    al tanto para a virtude da esperança quanto para nosso estiramento para

    dentro da realidade. A esperança é a maneira como a narrativa de Deus vem

    a ser vivida em nossas vidas como realidade humana estável. É como, se vo-

    cês quiserem, Deus, que é alheio ao tempo, faz amizade com a narrativa hu-

    mana estruturada pelo tempo. E a narrativa de Deus é a do eu de Deus como

    humano entregando-se a si mesmo à morte como nossa vítima, ocupando o

    lugar da vergonha, da perda, da destruição, do medo, da maldição e da fata-

    lidade, para que possamos vir a gozar da presença de Deus. Essa narrativa

    humana de autodoação não é simplesmente um ato de “perdão” por malcria-

    ções passadas. É o reestruturamento desde dentro de nosso processo de ho-

    minização.

    Se a imitação e a repetição ficaram impregnadas do mecanismo vitimá-

    rio, então em todas as tentativas humanas de ser, nós, e qualquer uma das

    nossas culturas, ou agrupamentos, está violentamente aferrado ao ser, para

    que possamos associar-nos a um eu, a uma identidade, a um pertencer. Po-

    rém, a vítima que se doa, por ter-se tornado uma fonte sempre viva de per-

    dão, desconstrói o tempo e o espaço, de modo que nenhum deles estrutura

  • 20

    nosso ser e nosso pertencer da mesma maneira. Se começo como alguém

    que imitou, que repetiu e que assim aferrou-se a si mesmo ao ser, então mi-

    nha capacidade de imaginar quem posso tornar-me será ditada por aquilo

    em que me fundi por meio de participação enfática. Se, contudo, estou sen-

    do estirado para receber meu ser de um “ainda não” que se debruça sobre

    mim, então parte desse ser estirado consiste em meu ser capacitar-se para

    soltar-se das maneiras pelas quais até então estive atado, determinando e li-

    mitando meu ser.

    8. Presença Se vocês me acompanharem mais um pouco, acredito que verão como é im-

    portante entender que nem a Esperança é algo que diz respeito principal-

    mente ao futuro, nem a Memória é algo que diz respeito principalmente ao

    passado. Qualquer um pode entender isso com grande facilidade. Imagine-

    mos que estamos envolvidos em algo, que somos, por exemplo, astecas em

    Tenochtitlán, e, por algum tempo, isso define quem fomos e somos, e molda

    o tipo de futuro que podemos imaginar. Depois acontece algo deveras ines-

    perado, como por exemplo a chegada de espanhóis e de cavalos, que não

    teríamos conseguido imaginar, e que altera toda a nossa relação com o pas-

    sado, de modo que começamos a contar uma história totalmente diferente a

    respeito do que estávamos fazendo no passado, antes de essa coisa inespe-

    rada acontecer. Algo que estava num futuro desconhecido no passado altera

    radicalmente o passado que era passado, fazendo com que a qualidade do

    nosso presente, com que aquilo que hoje somos — por exemplo, mexicanos

  • 21

    contemporâneos — seja muito diferente. Quanto mais definitiva for a mudan-

    ça do futuro, mais definitiva é a alteração do passado. Não, claro, dos fatos

    empíricos, mas de todo o conjunto das relações humanas, que por si dão aos

    fatos empíricos seu sentido no presente.

    Porém, o que isso significa é que a memória não é determinada pelo pas-

    sado. A memória é o modo como o futuro aparente estrutura o presente ao

    narrar o passado. E isso também significa que a Esperança, em princípio, não

    diz respeito ao futuro. Ela é a qualidade do presente que se torna disponível

    por sermos estirados pelo “ainda não” que se debruça sobre nós. E isso me

    parece algo deveras vital. Nem o passado nem o futuro existem. Somente o

    presente existe. É a esperança que capacita a memória para que permita que

    vivamos com um presente rico, porque esse presente rico é o único acesso a

    Deus que temos.

    Já é uma aventura extraordinária e fortuita que esse macaco tenha inven-

    tado a si mesmo como habitante autoquestionador do tempo e do espaço.

    Ainda mais extraordinário que Deus, em quem não há tempo nem espaço,

    tenha optado por adentrar nosso mundo narrativo, de modo a fazer desses

    elementos potencialmente fúteis e sem sentido a possibilidade de estarmos

    presentes, com um senso rico o bastante de presença e de consciência, efeti-

    vamente capazes de gozar Deus.

    É por isso que, aliás, é enormemente importante que entendamos que,

    naquilo que os católicos verdadeiramente chamam, mas com temor e reve-

    rência, de sacrifício da Missa, não estamos repetindo um sacrifício. Repeti-lo

    significaria que a morte de Jesus não tinha desconstruído a identidade cap-

    turada pela repetição do tempo definido em contraste com a morte. Antes, o

    que acontece é que, como a morte de Jesus abriu para nós a Esperança, tra-

  • 22

    zendo um fim ao sacrifício, a realidade deliberada e historicamente aberta da

    Nova Criação está simplesmente presente, atraindo-nos ansiosamente, rees-

    truturando-nos desde dentro para que estejamos verdadeiramente presentes

    como seres humanos capazes de participar numa Presença Real que, em

    princípio, está muito além de cada um de nós.

    9. Paciência Eu gostaria de concluir esta fala considerando a relação entre Esperança e

    Paciência, já que no modelo “pensamento positivo” da esperança, a paciên-

    cia torna-se uma disposição estável não muito edificante — um verniz passivo-

    agressivo de bondade enquanto nos sentimos impotentes diante de coisas

    que são erradas e nocivas: outra vez, a resignação travestida de virtude. Po-

    rém, esse tipo de resignação é filho não da esperança, mas do desespero!

    Mesmo assim, se a antropologia teológica que tentei apresentar para vo-

    cês tem algum valor, então a relação entre esperança e paciência é inteira-

    mente diferente, e muito mais criativa, porque é o sentido do real vindo na

    sua direção e alinhando você com ele que possibilita que você suporte as tri-

    bulações sem ser reativo a elas. Sem permitir que elas o derrubem. E parte

    da maravilha disso é que o tempo se abre. Se você não tem esperança, fica

    constantemente à mercê daquilo que acontece, e é portanto amplamente re-

    ativo. A esperança, por outro lado, é aquilo que permite que você se demore,

    em meio às tribulações, fazendo o que você quer fazer, e assim forje quem

    você está se tornando. E é esse “ser capaz de demorar-se” e não entrar em

    pânico que leva ao surgimento do espírito criativo, tecnológico e científico.

  • 23

    Em outras palavras, a paciência, em vez de ser uma forma de resignação, é a

    disposição estável, a verdadeira filha da Esperança, de uma certa despreocu-

    pação pragmática e realista diante de obstáculos reais que existem, capaci-

    tando seu portador a habitar o tempo presente de maneira criativa. Não há

    nela nada de vitimário nem de auto-indulgente.

    Confio, além de tudo, que vocês podem entender melhor agora porque

    comecei distinguindo entre a leitura apocalíptica da realidade feita por Gi-

    rard em Rematar Clausewitz e a virtude teologal da esperança. Todos conhe-

    cemos abordagens rosadas da realidade, que marcam uma incapacidade

    profunda, ou indisposição, de encarar o quão difíceis e perigosos somos uns

    para os outros e para nossa biosfera. É muito fácil para nós pressentir que

    esta ou aquela expressão de otimismo marcam um profundo desespero. Mas

    só a pessoa que foi estirada pela esperança a uma atitude habitualmente pa-

    ciente em relação a tudo que há que é capaz de postar-se ao lado do deses-

    pero, avaliá-lo com precisão, e não ser dominado por ele. Que um de nós te-

    nha sido estirado, lenta e pacientemente, até ser capaz de ficar ao lado do

    coração das trevas, e mesmo assim não ficar escandalizado com ele, é um

    dos sinais mais seguros da operação da virtude teologal da esperança.

    Bibliografia resumida (A data é da publicação original, não da tradução, quando disponível.)

    J. Pieper, On Hope, 1935

    W. Lynch, Images of Hope, 1965

    J. Ratzinger, Eschatology: Death and Eternal Life, 1977

  • 24

    J. Assmann, Cultural Memory and Early Civilization, 1992

    Bento XVI, Spe Salvi, 2007

    R. Girard, Rematar Clausewitz, 2007

    D. Turner, Julian of Norwich, Theologian, 2011

    J-M. Oughourlian, The Puppet of Desire, 1982; Notre troisième cerveau,

    2013.

    http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20071130_spe-salvi.htmlhttp://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20071130_spe-salvi.htmlhttp://erealizacoes.com.br/produto/rematar-clausewitz-alem-da-guerra---dialogos-com-benoit-chantrehttp://erealizacoes.com.br/produto/rematar-clausewitz-alem-da-guerra---dialogos-com-benoit-chantrehttp://erealizacoes.com.br/produto/rematar-clausewitz-alem-da-guerra---dialogos-com-benoit-chantrehttp://erealizacoes.com.br/produto/rematar-clausewitz-alem-da-guerra---dialogos-com-benoit-chantrehttp://erealizacoes.com.br/produto/rematar-clausewitz-alem-da-guerra---dialogos-com-benoit-chantre