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Ciência, Ética e Sustentabilidade DESAFIOS AO NOVO SÉCULO

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Ciência, Éticae Sustentabilidade

D E S A F I O S A O N O V O S É C U L O

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Edições UNESCO Brasil

Conselho EditorialJorge WertheinMaria Dulce de Almeida BorgesCélio da Cunha

Comitê para a Área de Ciências e Meio AmbienteCelso Salatino SchenkelBernardo Marcelo BrummerAry Mergulhão Filho

Assistente EditorialLarissa Vieira Leite

Ciência, ética e sustentabilidade / Marcel Bursztyn (org.). – 2. ed –São Paulo : Cortez ; Brasília, DF : UNESCO, 2001

Vários autores.ISBN 85-249-0783-5

1. Ciência – Aspectos sociais 2. Desenvolvimento sustentável 3.Ética social 4. Tecnologia – Aspectos sociais I. Bursztyn, Marcel.

01-1185 CDD-303.483

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:

1. Desenvolvimento sustentável : Ciência e ética : Mudanças sociais : Sociologia 303.483

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MARCEL BURSZTYN (Org.)

Argemiro Procópio Filho • Arminda E. Marques CamposEduardo Baumgratz Viotti • Elimar Pinheiro do NascimentoJenner Barretto Bastos Filho • Roberto dos S. Bartholo Jr.

Ciência, Éticae Sustentabilidade

D E S A F I O S A O N O V O S É C U L O

CDS - UnB

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CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADEMarcel Bursztyn (org.)

Capa: Edson FogaçaPreparação de originais: Liege MarucciRevisão: Maria de Lourdes de AlmeidaComposição: Dany Editora Ltda.Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro,assim como pelas opiniões aqui expressas, as quais não são necessariamentecompartilhadas pela UNESCO, nem são de sua responsabilidade.As denominações empregadas e a apresentação do material no decorrer desta obranão implicam a expressão de qualquer opinião que seja parte da UNESCO no que serefere à condição legal de qualquer país, território, cidade ou área, ou de suasautoridades, ou a delimitação de suas fronteiras ou divisas.

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorizaçãoexpressa da UNESCO e da Editora.

© UNESCO 2000

Direitos para esta ediçãoCORTEZ EDITORARua Bartira, 317 – Perdizes05009-000 – São Paulo – SPTel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290E-mail: [email protected]

Impresso no Brasil – outubro de 2001

UNESCOSAS – Quadra 5 Bloco H – Lote 6Ed. CNPq/IBICT/UNESCO – 9º andar70070-914 – Brasília-DF – BrasilTel.: (55 61) 321-3525Fax: (55 61) 322-4261E-mail: [email protected]

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .......................................................................... 7

INTRODUÇÃO — Ciência, Ética e Sustentabilidade:Desafios ao novo séculoMarcel Bursztyn ............................................................................. 9

CAPÍTULO 1 — O que é um Intelectual?Arminda Eugenia Marques Campos e Roberto S. Bartholo Jr. ...... 21

CAPÍTULO 2 — Solidão e Liberdade: Notas sobre acontemporaneidade de Wilhelm von HumboldtRoberto S. Bartholo Jr. .................................................................... 43

CAPÍTULO 3 — A Ciência Normal e a Educação sãoTendências Opostas?Jenner Barretto Bastos Filho ........................................................... 61

CAPÍTULO 4 — Educação e desenvolvimento nacontemporaneidade: dilema ou desafio?Elimar Pinheiro do Nascimento ...................................................... 95

CAPÍTULO 5 — Segurança Humana, Educação eSustentabilidadeArgemiro Procópio .......................................................................... 115

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6 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE

CAPÍTULO 6 — Ciência e Tecnologia para o DesenvolvimentoSustentável BrasileiroEduardo Baumgratz Viotti ............................................................. 143

CAPÍTULO 7 — Prudência e Utopismo: Ciência e Educaçãopara a SustentabilidadeRoberto S. Bartholo Jr. e Marcel Bursztyn ..................................... 159

SOBRE OS AUTORES ................................................................... 189

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APRESENTAÇÃO

O final do século XX deixou claro um conjunto de preo-cupações que devem orientar a conduta intelectual dos ci-entistas. Protagonistas de um formidável poder de modifi-car nosso mundo, os pesquisadores encarnam agora, maisdo que em qualquer outra época, um papel que representaao mesmo tempo a esperança da solução de problemas eimpasses e também o risco de que novos problemas e impassessurjam, como decorrência do próprio avanço da ciência.

A degradação do meio ambiente, que tem sido objetode alarmes há décadas, é, sem dúvida, um notável exemplode seqüelas da utilização de novos conhecimentos sem umaprévia consideração dos efeitos sobre as condições de vidano longo prazo. Os novos progressos no campo da genéticachamam a atenção, igualmente, para o imperativo de se es-tabelecer critérios de avaliação das conseqüências do uso deconhecimentos aplicados às técnicas.

A responsabilidade da elite científica é, portanto, umtema inevitável se quisermos encarar o desenvolvimento deforma sustentável. E, nesse sentido, há que se introduzir odebate sobre a ética, invocando sua função reguladora dascondutas científicas.

A presente obra reúne um conjunto de textos produzi-dos por pesquisadores universitários preocupados com esteinstigante desafio. Trata-se de estudos que contribuem, sob

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8 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE

diversos ângulos, para o aprofundamento do debate, no quala UNESCO se empenha por força de seu mandato.

Organizada pelo professor Marcel Bursztyn, do Cen-tro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade deBrasília — instituição parceira da UNESCO —, a obra tornapúblicas as reflexões de uma crescente comunidade de pes-quisadores que levantam críticas e apontam caminhos paraa revisão do papel da Universidade, da Ciência e das Políti-cas Públicas.

É nosso desejo que o produto desse esforço sirva parafomentar novas reflexões sobre as inter-relações entre trêsingredientes tão instigantes: ciência, ética e sustentabilidade.

Jorge WertheinRepresentante da UNESCO no Brasil

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INTRODUÇÃO

CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE:desafios ao novo século

Marcel Bursztyn

No limiar do século XXI, diante de um quadro demarcantes desafios a serem enfrentados, de problemas nãoresolvidos, de obstáculos criados pela própria ação do ho-mem, o papel da ciência é posto em evidência em todos osbalanços e análises prospectivas. Mesmo não sendo exata-mente o fim de uma era civilizatória ou de um grande cicloeconômico ou tecnológico, a ocasião — virada de século, demilênio — instiga reflexões sobre as grandes realizações ependências do período que se encerra.

Aliás, foi assim também ao final do século XIX. Na-quela época, os analistas e pensadores vislumbravam umfuturo promissor para a humanidade, tendo em vista oselementos e realizações que marcavam a realidade quevivenciavam: uma ampliação notável dos mecanismos deproteção social (políticas públicas de saúde, educação eprevidência); uma extensão dos direitos civis e de sufrá-

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10 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE

gio, incorporando parcelas da população até então mar-ginalizadas da cidadania; enfim, um período de paz e deprosperidade.

É evidente que o balanço do final do século XX revelauma grande frustração e acena com uma constrangedorapauta de pendências a serem encaradas.

O quadro a seguir esquematiza as visões para o futuronos dois momentos, permitindo uma comparação:

Fim do século XIX Fim do século XX

Expectativa geralpara o futuro

Otimismo Pessimismo

Papel da ciência eda tecnologia

Forte crença nacapacidade deresolução dos

problemas

Desencanto econsciência danecessidade de

precaução

Condições de vida Perspectiva debem-estar (welfare)

Um mal-estar peloagravamento de

carências

Instância reguladora Crescentemente oEstado

Crescentemente oMercado

Relação entre ospovos

Paz Guerras

Relações entregrupos sociais

Maior igualdade Maior desigualdade

Economia Forte crescimento Crescimento lento,estagnação

Progresso Promotor deriqueza

Causador deimpactos

ambientais

Mundo Interdependência(mercados) e

complementaridade

Globalização eexclusão de regiões

“desnecessárias”

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INTRODUÇÃO 11

O pessimismo geral em relação ao futuro guarda estreitarelação com o crescente grau de consciência de que a busca doprogresso, que se anunciava como vetor da construção de umautopia de bem-estar e felicidade, revelou-se como ameaça.

Nesse sentido, os recados que o século XX deixa para oseguinte, em termos do papel da ciência e da tecnologia,constituem um apelo por mudanças de conduta, resultadode pelo menos cinco categorias de impasses:

• A consciência das possibilidades reais de que a hu-manidade possa se autodestruir, pelo uso de seuspróprios engenhos (bombas, mudanças climáticas,degradação das condições ambientais).

• A consciência da finitude dos recursos naturais (a es-cassez de água é apenas a ponta de um grande iceberg).

• A consciência de que é preciso agir com cautela econsiderar os aspectos éticos da produção de conhe-cimentos científicos e, sobretudo, do desenvolvimen-to de tecnologias (a síndrome do aprendiz de feiticeiro).

• A consciência de que mesmo não tendo resolvido anecessária solidariedade entre grupos sociais e po-vos, é preciso que se considere também o princípioda solidariedade em relação a futuras gerações (a éti-ca da sustentabilidade).

• A consciência de que, na medida em que nossas so-ciedades vão ficando mais complexas, é preciso maisação reguladora, o que normalmente se dá pelo po-der público; hoje, com a crise do Estado, a regulaçãodeve se valer de novas regulamentações e de umacrescente contratualização entre atores sociais (códi-gos de conduta, sistemas de certificação).

Como bem assinalou Ivan Illich, referindo-se ao desen-canto em relação às promessas da Revolução Verde, “a taxade crescimento das frustrações excede muito à da produção”.1

1. Citado por André Gorz, Écologie et politique, Paris, Editions du Seuil, 1978,p. 65.

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Entretanto, se, por um lado, há fortes elementos queinspiram pessimismo, é relevante, por outro lado, assinalaraspectos que podem ser vistos como sinais de que há espa-ço para otimismo:

• a bomba demográfica foi desmontada;• o fim da guerra fria reduziu a corrida armamentista; e• as crises energética e de esgotamento de certos re-

cursos naturais estimulou o desenvolvimento de pro-cessos produtivos menos intensivos e perdulários nouso de matérias-primas e energia.

Para entender as lições deixadas pelo século XX para oXXI, é relevante buscar lições na história como base para, apartir do conhecimento dos impasses atuais, traçar linhasde conduta das atividades de produção de conhecimentoque estejam em sintonia com um horizonte civilizatório sus-tentável.

A tônica de todos os trabalhos que compõem a presen-te coletânea é a relação entre a ciência, as condicionanteséticas de sua produção e uso e o imperativo da conciliaçãoda busca de melhores condições materiais de subsistênciacom a necessidade de um desenvolvimento que seja susten-tável. Esse é o desafio expresso na Agenda 21, consenso polí-tico formal sobre o que é para ser feito e como devemos pro-ceder no novo século.

Na Universidade contemporânea, esse desafio tem seconfrontado com um modus operandi que nasceu e foi se de-senvolvendo em conformidade com os paradigmas que mar-caram nossa era industrial: produtivismo, hegemonia da ciên-cia sobre a natureza, especialização e disciplinaridade.

A aproximação da Universidade em relação aos ele-mentos contidos no tema desenvolvimento sustentável nãoé tão recente como a consagração do conceito, que é da se-gunda metade da década de 1980.

Pelo menos desde o pós-Segunda Guerra Mundial, temhavido notáveis reflexões sobre os limites éticos que con-

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INTRODUÇÃO 13

frontam com o desempenho científico, apontando para a fra-gilidade e as limitações da postura estritamente disciplinar.O físico Jacob Bronowsky, ativo pesquisador do ProjetoManhattan, que produziu a bomba jogada em Hiroshima, éprotagonista de um questionamento pioneiro e exemplar emrelação à responsabilidade dos cientistas quanto ao uso dosconhecimentos que ajudam a gerar. Numa época em queainda não se ouviam ponderações dessa natureza, chamoua atenção para o imperativo de se estabelecer limites éticosao desenvolvimento científico.

Nos rebeldes anos 1960, começam a proliferar alertas,vindos da Universidade, quanto à insensatez do modo comoo avassalador avanço das ciências vinha se transformandoem tecnologias e processos produtivos ameaçadores à pere-nidade da vida. Rachel Carson (Silent spring), nas ciênciasagrárias, e Garret Hardin (The tragedy of the commons), nabiologia, são expoentes representativos daquele momento.

Já nos anos 1970, a preocupação chega à ciência econô-mica, notadamente a partir do relatório de Denis Meadowsao Clube de Roma (The limits to growth).

De lá para cá, a sintonia da Universidade com temasassociados ao meio ambiente e à qualidade de vida das fu-turas gerações só tem crescido. Entretanto, a relação do meioacadêmico institucionalizado com esse tipo de tema é mui-to difícil. A organização departamentalizada valoriza as es-pecialidades e é avessa a visões interdisciplinares. Toda aestrutura de fomento, avaliação, reconhecimento e valida-ção de mérito das atividades de desenvolvimento científicoe tecnológico no meio acadêmico está orientada para os cor-tes das “áreas do conhecimento” e suas respectivas “disci-plinas”. E, por outro lado, também os pesquisadores foramse organizando em torno de associações corporativas disci-plinares.

Postular, hoje, a abertura de espaços institucionalizadospara a prática acadêmica interdisciplinar implica resgatar aherança recente de experiências relevantes (não falemos na

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velha Universidade generalista de outras épocas, que for-mava cientistas com visão de muito mais universalizada).Já há uns cinqüenta anos, incrustava-se no tecido acadêmi-co temas como o Planejamento, que é interdisciplinar pordefinição. Depois, veio o Desenvolvimento Regional e o Pla-nejamento Urbano.

A chegada do tema Meio Ambiente — base para oenfrentamento do desafio do Desenvolvimento Sustentável— à Universidade se dá a partir de contextos departamenta-lizados. Primeiro, foram os departamentos de biologia, dequímica e de engenharia sanitária. Mas, depois, a adesão aotema foi se espalhando pelos campi. O adjetivo ambientalcomeça a aparecer acoplado a várias disciplinas: engenha-ria ambiental, direito ambiental, educação ambiental, socio-logia ambiental, história ambiental, geologia, química..., alémde outras versões, como a agroecologia. Na biologia, a eco-logia vai se tornando um campo com grande destaque. Si-nal dos tempos!

É importante, entretanto, contextualizar o momento emque a preocupação ambiental se internaliza na Universida-de, em particular no Brasil. Pelo menos dois aspectos mere-cem, nesse sentido, ser destacados:

• o enraizamento institucional, corporativo e burocrá-tico do modelo disciplinar; e

• a avassaladora crise financeira, que compromete a ca-pacidade de surgimento de novos campos e que exa-cerba as disputas corporativas, rejeitando “novidades”.

Nesse sentido, ainda que pareça paradoxal, a preocupa-ção com o desenvolvimento sustentável cresce em importân-cia, mas não encontra um espaço institucional compatível.

E, para completar, as estruturas de apoio, fomento eavaliação também se mostram pouco permeáveis àinterdisciplinaridade. Operam por meio de cortes rigorosa-mente corporativos e os mais sinceros acenos no sentido dereconhecer a relevância da interdisciplinaridade têm se re-

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INTRODUÇÃO 15

sumido a uma arquitetura institucional, no máximomultidisciplinar.

Diante de impasses como esses, a comunidade científi-ca, interessada na prática interdisciplinar do ensino e dapesquisa voltados ao Meio Ambiente e Desenvolvimento,se depara com o seguinte desafio: fazer com que seja reco-nhecida a relevância, validar os esforços e legitimar os es-paços de trabalho, no interior do tecido universitário e fren-te às agências de apoio, fomento e avaliação.

Mas como operar esta estratégia, diante das dificulda-des burocráticas, culturais e materiais?

A resposta a essa questão passa por pelo menos quatrocategorias de consideração:

• É preciso deixar claro que os espaços de interdis-ciplinaridade não devem ser vistos como concor-rentes em relação aos departamentos: são comple-mentares.

• Há que se romper com preconceitos de cunho espe-cialista: a visão generalista e integradora não é umaqualidade menor; é um atributo necessário aoenfrentamento de problemas complexos.

• É relevante instituir instrumentos de avaliação e deapoio que sejam flexíveis e permeáveis às caracterís-ticas dos enfoques interdisciplinares.

• É fundamental que espaços interdisciplinares sirvamde foco às reflexões de fundo sobre o desenvolvimen-to da ciência e da tecnologia (tais como a transgeniae a bioética). E, aqui, um desafio particular se apre-senta: mesmo tendo sido um avanço em termos dedemocratização do processo decisório, o “julgamen-to dos pares” traz, em si, o risco da cumplicidade eda falta de visão crítica; agora, temos de pensar tam-bém no “julgamento dos ímpares”.

A presente obra foi organizada a fim de servir de sub-sídio à reflexão e ao debate sobre os rumos da organização

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da produção de conhecimentos científicos e tecnológicos,diante dos desafios éticos e operacionais que emergem doimperativo de se buscar um desenvolvimento que seja sus-tentável em todas as dimensões (econômica, social, políti-co-institucional, cultural, ecológica, territorial).

O texto O que é um intelectual?, de Arminda EugeniaMarques Campos e Roberto S. Bartholo Jr., destaca que osurgimento da Universidade foi acompanhado pelo desen-volvimento de uma nova concepção sobre a atividade depensar-ensinar, da qual não estava ausente a discussão so-bre os aspectos éticos. A Universidade foi vista, ao menospor parte dos universitários medievais, como o ambienteadequado para a vivência de uma ética justificada filosofica-mente, experimentada na comunicação de idéias, e para oaperfeiçoamento pessoal. O objetivo do texto, relembrando,é fornecer um tema de reflexão para iniciativas de pensarmodelos de universidade em que o estudo vise não aceitaros fatos como inalteráveis e adaptar-se permanentemente afatores externos, mas “aprender a aprender”, aprender arefletir e a partilhar idéias e descobertas.

O texto Solidão e liberdade: Notas sobre a contemporaneidadede Wilhelm von Humboldt, de Roberto S. Bartholo Jr., trata oprojeto de fundação da Universidade de Berlim, em 1809,proposto por Wilhelm von Humboldt, como um caso exem-plar, capaz de trazer ensinamentos para os rumos da Uni-versidade brasileira hoje.

Wilhelm von Humboldt responde ao desafio de man-ter-se fiel ao ideário iluminista, sem negar o enraizamentonuma identidade cultural nacional subjugada pelo triunfodas tropas napoleônicas. A modernidade, impulsionada pela“globalização” contemporânea, coloca desafios análogos. Oideário iluminista humboldtiano, de realizar uma formaçãoética da pessoa pela formação científica universitária, ga-nha uma marcante atualidade. Traduzi-lo criativamente parao nosso contexto, em que os poderes da tecnociência cres-cem numa aparentemente ilimitada espiral cumulativa, tor-na-se um notável desafio político-filosófico, e ignorá-lo pode

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INTRODUÇÃO 17

colocar em risco a própria sustentabilidade institucional daUniversidade como instrumento de organização da cultura.

Jenner Barretto Bastos Filho, em seu trabalho A ciêncianormal e a educação são tendências opostas?, parte do conflitoque se estabelece entre a ciência normal que segue o relatokuhniano acerca do desenvolvimento da ciência, de um lado,e, de outro, a educação.

O cientista “normal” de Kuhn tem um perfil tal queimplica uma aderência rígida a um paradigma. Esse fato ne-cessariamente envolve compromissos básicos, implícita e ex-plicitamente assumidos, que limitam severamente a crítica,principalmente aquela que se constitua numa violação des-ses compromissos assumidos pela comunidade praticantedo paradigma. A educação, e aqui se deseja a educação real-mente genuína e não o mero adestramento nem o simplestreinamento, tem como razão precípua justamente a crítica,o questionamento, a cidadania e a procura de autonomia.

O argumento desenvolvido no texto é o de que a solu-ção do conflito passa necessariamente pela questão da au-tonomia, entendida nas suas dimensões epistemológica, éticae política. Para tanto, é preciso uma radical reforma, tantodo pensamento quanto das atitudes éticas.

Em seu texto Educação e desenvolvimento na contempo-raneidade: dilema ou desafio?, Elimar Pinheiro do Nascimentoindaga sobre a natureza das relações entre educação e de-senvolvimento. Essas relações, tidas como tradicionais, apre-sentam mudanças no mundo de hoje, obrigando-nos a re-fletir sobre a pertinência das respostas tradicionais. Defi-nindo-as como de três naturezas (fator de mobilidade so-cial, fator de desenvolvimento econômico e introjeção dosvalores da nacionalidade), o texto avalia que essas respos-tas se mantêm atuais apenas na medida em que se observe acomplementaridade entre elas, sobretudo ao se consideraras transformações sociais que obrigam a uma reforma radi-cal da escola, sem a qual esta não poderá desempenhar seupapel. Para isso, sinaliza com o fato de todos os cenários

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mundiais apresentarem o aspecto comum da continuidadedas profundas mudanças tecnológicas em curso. Em segui-da, defende a idéia de que esta reforma é possível, depen-dendo apenas de decisão política. Conclui mostrando comoexperiências positivas ocorrem no Brasil, apresentando, comexemplo, o caso de Brasília durante o governo CristovamBuarque.

Conseqüências de fenômenos como a exclusão social ea ausência da educação como garantia do desenvolvimentosustentável são analisadas no texto Segurança humana, edu-cação e sustentabilidade, de Argemiro Procópio. As causas dodesordenamento ético e seus reflexos no desrespeito gene-ralizado aos direitos humanos, principalmente por meio dasbrutais desigualdades sociais, da corrupção e da violência,brotam nesta análise, que também enfoca o submundo dasdrogas ilícitas.

O texto desvenda razões e conseqüências das enormesdesigualdades no Brasil, apontando os riscos à segurançahumana.

Eduardo Baumgratz Viotti, em seu trabalho Ciência etecnologia para o desenvolvimento sustentável brasileiro, chamaa atenção para uma perspectiva diferente da relação entresustentabilidade, ética e ciência. Mostra como a difusão de-sigual das capacitações para produzir e utilizar a ciênciacondiciona profundamente a situação das nações. Indica quea busca do desenvolvimento sustentável em nações de in-dustrialização tardia, como o Brasil, irá requerer um esforçoextraordinário nesses países, com a realização de dois pro-cessos simultâneos de transformação histórica. Um é a su-peração de condições de miséria e desigualdade, o que, emgrande medida, já ocorreu em nações industrializadas. Ooutro é o redirecionamento do processo de desenvolvimen-to de acordo com a nova ética da sustentabilidade.

O artigo pode ser interpretado como um alerta para oslimites mais estreitos que as condições estruturais impõemàs nações de industrialização tardia. Os graus de liberdade

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INTRODUÇÃO 19

existentes para o exercício da nova ética da sustentabilidadeparecem muito mais estreitos nos casos daquelas nações. Asnações de industrialização tardia não participam dos mer-cados internacionais com produtos novos (sem concorren-tes) ou com produtos produzidos por tecnologias mais pro-dutivas que as dos concorrentes, como o fazem as naçõesindustrializadas. Por não terem como recorrer a esse tipo devantagens tecnológicas, a competitividade de nações, comoo Brasil, acaba sendo, em grande parte, dependente de pro-cessos que comprometem as condições de vida da popula-ção (atual e futura) ou que superexploram suas bases de re-cursos naturais.

Finalmente, o texto Prudência e utopismo: ciência e educa-ção para a sustentabilidade, de autoria de Roberto S. BartholoJr. e Marcel Bursztyn, enfoca o atual impasse ontológico dodesenvolvimento das ciências, processo estreitamente rela-cionado ao modo de organização do sistema educacionalvigente.

Desde os alertas de Malthus de que o crescimento ace-lerado da população estava em descompasso com a capaci-dade de se alimentar a todos, passando pela formidável re-volução produtiva que marcou o mundo desde então, atéchegar aos alertas neomalthusianos de que estaríamos amea-çados por uma bomba populacional, muita coisa mudou.

Mudou nosso modo de ver a natureza, agora transfor-mada em meio de produção; mudou nosso padrão deessencialidades materiais; mudou a capacidade destrutivados artefatos bélicos; mudou, qualitativa e quantitativa-mente, o ritmo de degradação ambiental; mudou o caráterda ciência, que fundamenta os avanços tecnológicos, o pro-gresso.

Diante de tais transformações, e de um aumento notá-vel nos riscos que corre a humanidade, o momento atualrecomenda uma revisão dos paradigmas que movem a bus-ca do progresso. A quase inesgotável capacidade criativados cientistas, mesmo quando direcionada ao desenvolvi-

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20 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE

mento de conhecimentos voltados ao bem-estar, vem pro-vocando efeitos colaterais (ex: poluição) e levantando dúvi-das e preocupações (ex: manipulações genéticas) que apon-tam para uma necessária prudência (princípio da precaução).O texto enfoca justamente o imperativo da ética como me-canismo de filtragem dos efeitos deletérios da busca do pro-gresso.

O papel do tecnólogo — aquele que transforma os co-nhecimentos científicos em usos econômicos — é crucial. Aidéia da precaução, hoje tão propalada diante dasimprevisíveis aplicações de modernos avanços na engenha-ria genética, já era uma preocupação de autores críticos hátrês décadas. Assim, como já advertia Paul Goodman, a for-mação acadêmica de um profissional que atue na aplicaçãode conhecimentos para o desenvolvimento de tecnologiasdeve conter elementos das ciências sociais, do direito, debelas-artes e da medicina, além das ciências naturais. Se-gundo o autor, “cabe aos tecnólogos, e não apenas às agên-cias governamentais reguladoras, preocupar-se com a se-gurança e pensar nas conseqüências remotas”, sendo capa-zes de avaliar criticamente os programas que lhes são da-dos a implementar.2

Utopia? O desenvolvimento sustentável é uma utopiapossível e sua construção é plausível: porque a crise atualdos paradigmas que movem o progresso industrialista au-toriza a ousadia de se pensar um outro modo de desenvol-vimento humano. A fórmula ainda não está elaborada. Comrenovada ética, a ciência pode cumprir um importante pa-pel nesse sentido. Por isso, como adverte Boaventura deSousa Santos, não disparem sobre o utopista!3

2. Decentralizing Power: Paul Goodman´s Social Criticism, obra organizada porTaylor Stoehr, Black Rose Books, Montreal, 1984, p. 88.

3. Boaventura de Souza Santos, Crítica da razão indolente: contra o desperdíciode experiência. São Paulo, Cortez, 2000.

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CAPÍTULO 1

O QUE É UM INTELECTUAL?Arminda Eugenia Marques Campos

Roberto S. Bartholo Jr.

Um lago evapora e, pouco a pouco, vai se esgotando. Masquando dois lagos estão unidos, eles não secam tão facil-mente, pois um alimenta o outro. O mesmo ocorre no campodo conhecimento. O saber deve ser uma força revigorante evitalizadora. Isso só é possível quando há um intercâmbioestimulante com amigos afins, em cuja companhia se possadebater e procurar aplicar as verdades da vida.

I-Ching: o livro das mutações, Hexagrama 58 — Ale-gria, comentário à imagem

Apresentação

As universidades surgidas na Europa do século XII fo-ram, em sua organização e em seus métodos de ensino, umacriação original dos latinos medievais1. A organização e os

1. Usa-se neste texto a expressão cristandade latina para referir-se ao terri-tório europeu medieval em que surgiram as primeiras universidades. Essa expres-são enfatiza a importância do cristianismo e da herança latina como principais

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conteúdos de seus currículos, no entanto, foram em boa parte“importados”, por meio de traduções para o latim de co-nhecimentos filosóficos e científicos greco-árabes2, com ostemas filosóficos aportados pelas traduções influenciando acaracterização de um novo tipo de homem, que terá, nasuniversidades, o domicílio do exercício de seu ofíciovocacional.3 É um evento pleno de conseqüências portado-ras de um futuro. Nosso futuro. O futuro de uma civilizaçãoque fez da ciência e da tecnologia a condição de possibilida-de de um novo mundo.

Os primórdios da universidade

Um traço importante na genealogia de nosso “NovoMundo” é a “linhagem” das instituições produtoras de co-nhecimento. Para isso, nossa atenção vai ser centrada nagenealogia das nascentes universidades no contexto da Eu-ropa Medieval cristianizada. A partir do século VII, aproxi-madamente, as atividades de ensino na cristandade latinamantinham-se, quase que em sua totalidade, sob a alçadada Igreja, em particular vinculadas a mosteiros4. A finalida-

denominadores comuns; recorda a existência de cristandades não-latinas; evitaa confusão que pode criar o termo Ocidente, uma vez que, durante boa parte doperíodo em questão, a parte mais ocidental do continente europeu era territóriomuçulmano; recorda que Europa era, então, uma idéia ainda em formação.

2. Conhecimentos com origem na Antigüidade grega, discutidos e desen-volvidos por pensadores do mundo islâmico e difundidos em árabe. Em termosfilosóficos, esses conhecimentos baseavam-se principalmente nas obras deAristóteles e seus comentadores. Os pensadores do mundo muçulmano maisimportantes para a absorção da filosofia aristotélica entre os latinos foram Farabi,Avicena e Averróis.

3. Para isso, serão utilizados, em particular: Domanski, 1996, De Libera,1991 e Le Goff, 1993.

4. A reduzida parcela letrada da população do período constituía-se, basica-mente, de clérigos7 — monges, em particular, porque a situação do clero secularera ainda mais difícil. O termo clérigo passava a significar “ao mesmo tempo ho-mem instruído e aquele que, pela tonsura, entrou para a Igreja” (Paul, 1973: 13);

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de do ensino não era mais, como no mundo romano, mantera uniformidade cultural nos diversos pontos do império epreparar para a vida pública, mas dotar a Igreja de membroscapacitados a preservar e compreender as Escrituras e textosdoutrinários e a participar da administração eclesiástica.

Cerca de quatro séculos mais tarde, com a revitalizaçãodas cidades, as escolas monásticas começaram a perder in-fluência em favor de escolas urbanas, ligadas a igrejas e acatedrais, em geral. Esse tipo de escola não surgiu no séculoXI; já existia, em alguns lugares, há bastante tempo. Nesseperíodo, no entanto, elas aumentaram em número, tama-nho e importância e passaram a ter maior continuidade. Esseaumento respondia à aguda consciência da necessidade deum clero secular melhor preparado, capaz de desempenhartarefas mais complexas e com uma compreensão mais pro-funda do próprio cristianismo, assim como ao crescenteengajamento, nos estudos, de pessoas sem interesse na car-reira eclesiástica.

Inicialmente, os professores das escolas episcopais cos-tumavam ser integrantes do capítulo da Igreja, mas o cresci-mento do número de interessados em aprender, em parti-cular no século XII, levou à necessidade de delegar parte doensino a pessoas externas ao capítulo. Esses “professoresagregados” ensinavam em dependências das igrejas ou ca-tedrais e, num momento posterior, puderam manter escolasindependentes, mediante a concessão de uma licença espe-cial, que seria chamada licentia docendi e que, a princípio, sótinha valor no território em que o outorgante havia até en-tão tido monopólio sobre o ensino. Surgiram, assim, váriasescolas sem vínculos diretos com uma igreja ou um capítu-lo, a partir da reunião entre professores e alunos interessa-dos em seu ensinamento, os quais eram, freqüentemente,responsáveis pela remuneração do professor e pelo paga-

a palavra “leigo” não deixaria mais de ser sinônimo de ignorante em algum grauou domínio.

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mento do que fosse necessário, como o aluguel do local ondeocorriam as aulas.

A próxima transformação no quadro da instrução foi areunião dos participantes no ensino em associações e a uniãodas escolas, que resultariam, no século XIII, nas universida-des.5 O estabelecimento dessas associações decorria não ape-nas do crescimento do número de professores e alunos, masprincipalmente da consciência crescente, entre eles, de queconstituíam um grupo particular e partilhavam necessida-des específicas. Decorria do surgimento e fortalecimento, emseu meio, de um espírito de corpo reforçado, com freqüên-cia, por eventos que despertavam reações coletivas. Nãoeram as escolas ou cursos que se reuniam: continuavam con-sistindo na reunião de um professor e seus alunos, com suaprópria forma de conduzir o ensino; continuavam, de certaforma, concorrentes; passavam a integrar uma “federação”.Eram as pessoas que se agrupavam, de modo similar às queestabeleceram outras associações típicas do ambiente urba-no da época, como as corporações de ofícios e as confrariasde mercadores. O objetivo era defender seus interesses ereivindicar o que julgavam ser suas prerrogativas, inclusiveno que dizia respeito à regulamentação do ensino e ao con-trole de abusos praticados por alunos ou professores.6 Aolongo do século XIII, essas corporações e a organização doensino foram sendo gradativamente regulamentados, dan-do origem a um novo tipo de instituição.

5. Na verdade, apenas no século XV o termo Universidade seria usado paradesignar o conjunto dos cursos, que era chamado studium, sendo o termouniversitas usado para designar as corporações de professores e alunos. Umstudium podia ser qualificado como generale. De início isso queria dizer apenasque era um lugar onde se ministrava um ensino superior, que recebia estudantesde qualquer parte e dispunha de um considerável número de professores. Maistarde, passou a designar centros de ensino que concediam licenças válidas emqualquer lugar. Cf. Rashdall (1936), v. 1, p. 2-24.

6. Os nomes recebidos por essas associações realçam a similaridade comoutras, típicas do ambiente urbano: “consortium, communitas e finalmenteuniversitas, que aparece apenas em 1221. Todos esses termos são aplicados àscorporações de ofícios, às confrarias religiosas e até mesmo aos habitantes de umquarteirão ou de uma cidade” (Paul, 1973: 284.)

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As “antepassadas” das universidades haviam manti-do, com poucas adaptações, o modelo de educação da Anti-güidade tardia romana, não apenas quanto a métodos, mastambém quanto a conteúdo, ainda que inicialmente seusprogramas se restringissem a uma parcela reduzida do con-teúdo original. Com o passar do tempo, essa parcela foi sen-do aumentada, nas escolas monásticas e episcopais, com abusca e o intercâmbio de textos na própria rede de bibliote-cas dos mosteiros. Isso levava à ampliação e ao aprofunda-mento das disciplinas ensinadas e a algumas tentativas, deinício tímidas, de retomar a modesta cultura filosófica dis-ponível como fonte de instrumentos de pesquisa e interpre-tação das Escrituras e da doutrina. Criava-se, com isso, umaexpectativa e uma demanda por mais textos.

A partir do século XII, o material disponível ampliou-se consideravelmente. Intensificou-se a exploração e a difu-são dos recursos disponíveis em latim e iniciou-se o movi-mento de tradução de textos, principalmente a partir do ára-be, nas regiões sendo tomadas aos muçulmanos (PenínsulaIbérica e Sicília). Grande parte dos conhecimentos filosófi-cos e científicos do legado grego havia sido traduzida parao árabe, estudada e desenvolvida por pensadores islâmicos.As traduções possibilitaram, assim, o encontro não só commaterial produzido por autores antigos7, mas também comos comentários e desdobramentos produzidos por pensa-dores do mundo islâmico.

A acolhida da filosofia

Os conhecimentos — nos ramos da filosofia, do direi-to, da medicina e de várias ciências — postos em circulação

7. Na verdade, esse material resultava de uma sucessão de traduções feitasa partir de línguas de estruturas bem diferentes, o que por vezes, o distanciava,bastante dos textos originais. Essa dificuldade levaria, principalmente no séculoXIII, a iniciativas de tradução para o latim a partir da língua original, o grego.

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pelos movimentos descritos anteriormente, foram de extre-ma importância para os integrantes das primeiras universi-dades. Coube a eles a tarefa de absorver esses conhecimen-tos, o que realizaram, por vezes, com avidez e em geral comsatisfação. Houve não apenas uma gradativa introdução denovos elementos nos programas de estudos8: as concepçõesde ciência e a sistematização das áreas do conhecimentooriundas do aristotelismo foram tomadas como base doscurrículos elaborados pelas universidades.

O acolhimento e a digestão desse corpo filosófico, comdestaque para o peripatetismo greco-árabe, foram realiza-dos, em graus e perspectivas diferentes, por integrantesdos cursos de artes liberais e de teologia. O primeiro eraum curso preparatório para os demais (teologia, medicinae direito), e seu programa, que anteriormente abrangera asartes liberais tradicionais do mundo antigo, modificou-se,ao longo do período de estabelecimento das universida-des, para enfatizar o estudo da filosofia, tomada, então,como sinônimo do aristotelismo recém-descoberto. Nocampo da teologia, houve a elaboração das grandes sínte-ses teológicas que caracterizaram o século XIII, produzi-das a partir da integração, da avaliação ou da rejeição deelementos da filosofia peripatética, que foi o grande im-pulso para sua produção.

Essas transformações não ocorreram sem divergênciase conflitos, que opuseram por vezes integrantes da faculda-de de artes e da faculdade de teologia ou de uns e outroscom a hierarquia da Igreja. Uma das divergências mais po-lêmicas diria respeito à teoria aristotélica sobre a alma, ointelecto e o processo de conhecimento. A interpretação des-sa teoria e de comentários a ela feitos por Averróis9, asso-ciada à de parte da ética aristotélica realizada por professo-

8. No caso dos estudos de medicina, talvez fosse melhor dizer que consti-tuíram integralmente o programa.

9. Pensador muçulmano do século XII, nascido em Córdoba, que, no campoda filosofia, dedicou-se a estudar o pensamento de Aristóteles e a explaná-lo.

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res da faculdade de artes10, levou a concepções bastante con-troversas. Afirmava que o intelecto seria único e separadodos indivíduos, não sendo forma substancial do corpo. Con-siderava, ao mesmo tempo, que o intelecto constituiria a por-ção fundamental e melhor do homem. A conseqüência quese podia tirar era a de que o mais nobre do ser humano nãoestaria ligado ao corpo, mas apenas agiria no indivíduo, sen-do único para toda a espécie humana. Era a chamada dou-trina do monopsiquismo, que negava a existência de almasimortais individuais, o que ia totalmente contra a antropo-logia cristã.11 Essa e outras teorias tidas como vinculadasem excesso, e em detrimento da verdade cristã, ao pensa-mento peripatético, sofreram várias censuras oficiais ao lon-go da segunda metade do século XIII.

Nas esquinas da cidade, novos horizontes da organização dacultura

Nas escolas monacais, as tarefas ligadas ao ensino nãoeram as únicas ocupações dos monges por elasresponsabilizados. Não eram valorizadas por si mesmas nemdefiniam vocações. Algo similar acontecia com os integran-tes do clero secular que ensinavam nas escolas catedrais.Para eles, também o ensino era uma tarefa entre outras.

A transformação mais notável ocorreu no século XII,nas escolas urbanas que então surgiam ou se fortaleciam.Nelas o ensino de conhecimentos profanos ganhava um es-paço maior, visando qualificar não apenas o clero, mas tam-bém leigos que desempenhariam funções fora da Igreja. O

10. A faculdade era o conjunto de escolas de uma mesma disciplina.11. Os “artistas” que levaram suas interpretações de Aristóteles ao ponto

de, ao menos aparentemente, divergir de doutrinas cristãs receberam, dos histo-riadores da filosofia, várias denominações: averroístas, aristotélicos heterodo-xos, aristotélicos radicais. Os mais conhecidos entre eles foram Siger de Brabantee Boécio de Dácia.

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próprio aumento da importância e do âmbito do ensino cria-va a necessidade de maior especialização e dedicação. Al-guns de seus professores começaram a se caracterizar espe-cificamente por suas atividades docentes e por sua qualifi-cação em executá-las, e a se profissionalizar, recebendo umaremuneração específica pelo ensino que proporcionavam.

A tendência à especialização e à profissionalização cres-ceria nas universidades, corporações formadas justamentepor pessoas caracterizadas por seus vínculos com o estudo,seja como professores seja como estudantes. A vida intelec-tual tornava-se um ofício, “pelo qual se é remunerado, e quetem suas técnicas, seu aprendizado e sua corporação” (Paul,1973: 276). Nelas a maior parte dos professores, ainda quepudessem desempenhar tarefas além das docentes, defi-niam-se por serem professores e especialistas. Além disso,boa parte do ensino tinha como finalidade exatamente pre-parar para ensinar. O desempenho de atividades docentesera uma das finalidades do aprendizado — além de ser umdos meios através do qual ocorria.

O reconhecimento da condição de especialistas ficavaexplícito, por exemplo, quando se buscava o conjunto dedoutores ou alguns entre eles, a fim de obter sua opinião —tida como fundada, como qualificada — sobre um determi-nado assunto. Isso acontecia em relação aos diversos cursosuniversitários — direito canônico ou romano, medicina, ar-tes ou teologia. Nesse último domínio, a transformação foimais notável, uma vez que o corpo de mestres em teologiapassou a ser reconhecido na Igreja como tendo autoridadepara elaborar doutrina em matéria de fé, o que deixava deser exclusividade dos concílios. Os universitários eram re-conhecidos como tendo um valor e uma função específicospara pelo menos parte da sociedade, em razão de seu co-nhecimento, de sua qualificação.

As escolas urbanas e suas sucessoras, as escolas uni-versitárias, tinham uma ligação bem maior do que as mo-násticas com o contexto em que se encontravam e suas ne-cessidades. O número de leigos entre os alunos cresceu, prin-

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cipalmente nas universidades. O ensino se ampliava, pro-porcionando formação de profissionais que exerceriam fun-ções fora da estrutura eclesiástica. Mesmo a Igreja passava ater necessidade de maior diversidade de quadros, por terganhado, nesse mesmo período, uma estrutura bastante cen-tralizada e complexa, com uma burocracia mais ampla.

Do clérigo ao intelectual

Foi em razão dessas ligações que Le Goff apontou osurgimento da figura do intelectual, como tipo sociológico,como um dos aspectos do desenvolvimento urbano e dastransformações econômicas, sociais e políticas ocorridas nascidades florescentes dos séculos XII e XIII. Escolheu o termointelectual, embora ele não fosse utilizado na época, princi-palmente com o sentido hoje corrente, por não encontrarentre os usados na época um que melhor conviesse paradiferenciá-lo do clérigo e designar “os que fazem do pensare do ensinar seu pensamento uma profissão”, caracteriza-dos pela “aliança entre a reflexão pessoal e sua difusão atra-vés do ensino” (Le Goff, 1993:18). Abelardo seria a primeiragrande figura de intelectual nitidamente distinta dos erudi-tos dos meios monásticos.

A existência do intelectual teria resultado da divisão detrabalho ocorrida nos ambientes urbanos. Seria mais um dosofícios especializados surgidos nesse período de “redescobertado homo faber”, em que o homem se afirmava “como um arte-são que transforma e cria” (Le Goff, 1993: 54):

“É como um artesão, como um profissional comparável aosdemais citadinos, que se sente o intelectual urbano do séculoXII. Sua função é o estudo e o ensino das artes liberais. Mas oque é uma arte? Não é uma ciência, é uma técnica. Arte é aespecialidade do professor, assim como o têm as suas o car-pinteiro ou o ferreiro. [...] Arte é toda atividade racional e justado espírito, aplicada tanto à produção de instrumentos mate-riais como intelectuais: é uma técnica inteligente do fazer. [...]Assim o intelectual é um artesão [...]” (Le Goff, 1993: 57).

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Além de artífice e produtor de conceitos, o intelectualseria ainda como um comerciante, fazendo circular idéiascomo aquele fazia circular mercadorias e sendo por isso re-munerado. “As cidades são centros de irradiação na circula-ção dos homens, tão plenas de idéias como de mercadorias,lugares de trocas, mercados e encruzilhadas do comérciointelectual” (Le Goff, 1993: 25).

Além disso, o intelectual teria consciência de suas pe-culiaridades e do papel a assumir: jamais, “antes da épocacontemporânea, esse meio foi tão bem delimitado, nem al-cançou mais nítida consciência de si mesmo que na IdadeMédia” (Le Goff, 1993: 18). Essa consciência se daria pelaidentificação com os ofícios, com sua função de profissionale de citadino. A formação das universidades espontâneas— associações de iguais, semelhantes em muitos aspectosàs corporações de ofícios ou às confrarias de mercadores —seria um sinal dessa consciência.

Jacques Le Goff (1993) vê, no entanto, o intelectual ra-pidamente trair a si mesmo, apesar da consciência de suascaracterísticas, por não saber vencer as ambigüidades emque se encontrava, por não se comprometer o suficiente coma consciência que tinha de si mesmo. O intelectual

“[...] que conquistou seu lugar na cidade se mostra entretan-to incapaz, face às alternativas que se abrem diante dele, deescolher as soluções do futuro. Dentro de uma série de crisesque se poderiam denominar de crescimento, e que são ossinais da maturidade, ele não sabe optar pelo rejuvenesci-mento, e se instala nas estruturas sociais e nos hábitos inte-lectuais nos quais submergirá” (Le Goff, 1993: 60).

Urbi et orbi

Comprometer-se adequadamente com “as soluçõesdo futuro” seria reforçar a identificação com os profissio-nais leigos burgueses (Le Goff, 1993: 64), ultrapassar as

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ambigüidades de sua situação, da corporação à qual per-tenciam. Le Goff (1993) ressalta as contradições da cor-poração universitária. A primeira delas seria seu carátereclesiástico: não se encontrou melhor meio de garantir aautonomia da nova associação senão reafirmando sua su-jeição à jurisdição eclesiástica. “Nascidos de um movi-mento que tendia à laicidade, eles pertenciam à Igreja,mesmo quando procuram institucionalmente sair dela”(Le Goff, 1993: 64).

Embora as escolas tenham se desenvolvido como maisuma instituição nova surgida nas cidades, a Universidade“ultrapassou o quadro urbano onde se formou”. Acorporação universitária não tinha, como as demais, “omonopólio sobre o mercado local. Sua área é a cristanda-de”. Ela tinha um caráter universal, internacional, por atrairestudantes de várias partes e, no caso das instituições maisimportantes, conceder uma licença válida em toda a parte.A defesa dos interesses de seus integrantes levava-a mesmo“a se opor — às vezes violentamente — aos citadinos, tantono plano econômico quanto no jurídico e político” (Le Goff,1993: 64).

Outra fonte de contradição seria as formas de subsistên-cia dos universitários. Nem todos os professores viviam desalários, pagos por seus alunos ou pelos poderes civis12. Boaparte deles, assim como dos alunos, viviam de benefícios ouprebendas, muitas vezes ligados a funções ou cargos sem ne-nhuma ligação com o ensino. As escolhas ocorriam em fun-ção das circunstâncias, das possibilidades existentes. Essa si-tuação ia contra a afirmação deliberada do intelectual “comoum trabalhador, como um produtor”. O afastamento do mun-

12. Uma solução que não foi adotada sem problemas. Teve de vencer a ten-dência, na Igreja, a considerar os ganhos obtidos pelos mestres com o ensinocomo ilícitos. Isso constituiria “venda da ciência” que, como um dom de Deus,não poderia ser comercializada. De forma análoga à ilegitimidade da usura,“comercialização do tempo”. Podia ainda ser considerada simonia, na medidaem que se considerava o ensino parte do ministério do clérigo.

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do dos demais trabalhadores, que iria minar “as bases da con-dição universitária” (Le Goff, 1993: 86), teria sido reforçadopela oposição entre trabalho manual e trabalho intelectualmantida pela escolástica. Além disso, a remuneração por “pri-vilégios” acentuava o caráter eclesiástico do ensino.

Os intelectuais teriam, pela incapacidade de ultrapas-sar essas contradições, reforçado a vinculação com a Igrejae o Estado, deixando de se tornar os “intelectuais orgâni-cos” das classes produtoras urbanas surgidas no mesmomovimento que eles.13

Ao fim dessa evolução profissional, social e institucional,havia um objetivo: o poder. Os intelectuais medievais nãoescapam ao esquema gramsciano, na verdade muito genéri-co, mas operacional. Em uma sociedade ideologicamente con-trolada muito de perto pela Igreja e politicamente cada vezmais enquadrada por uma dupla burocracia — a laica e aeclesiástica (...) —, os intelectuais da Idade Média são, antesde tudo, intelectuais “orgânicos”, fiéis servidores da Igreja edo Estado. As universidades se tornam cada vez mais celei-ros de “altos funcionários” (Le Goff, 1993: 9)

A perfeita felicidade

A perspectiva sociológica de consideração do surgi-mento dos intelectuais medievais, de que o livro Os intelec-

13. Os “intelectuais orgânicos” seriam os que cada “grupo social, nascen-do no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção eco-nômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico” e que lhe da-riam “homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campoeconômico, mas também no social e político”. As camadas de intelectuais, cria-das de modo orgânico pelos grupos sociais ao surgir, encontrariam “categoriasintelectuais preexistentes”, que seriam os intelectuais tradicionais. (Gramsci,1982: 3-5.)

Falei em “inspiração gramsciana” porque Le Goff utiliza as concepções deGramsci a respeito dos intelectuais com bastante liberdade, sem se prender rigo-rosamente aos critérios por ele buscados para definir os intelectuais.

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tuais na Idade Média, de Le Goff, é o principal marco, consi-dera esse fenômeno no quadro do fortalecimento das esco-las urbanas e da criação das universidades, em meio às trans-formações do meio urbano dos séculos XII e XIII. Vê o apa-recimento dos “profissionais do pensamento” em suas rela-ções com a instituição universitária que se estabelecia e or-ganizava e com a sociedade em que ela se instalou.

Nossa visão sobre esse fenômeno se enriquecerá se ana-lisarmos o nascimento do ideal intelectual, como propõe DeLibera em Penser au moyen âge. Sua posição é que “os inte-lectuais medievais afirmaram eles mesmos sua diferença” e“representaram eles mesmos sua singularidade, é essa re-presentação, essa consciência de si, essa ‘estima’, ou melhor,essa auto-avaliação que deve ser, no presente, estudada”.Em suma, devemos tentar “entender a reivindicação daintelectualidade como tal” (De Libera, 1991: 11).

Desde essa perspectiva, o aparecimento do intelectualmedieval se caracterizaria pelo ressurgimento de um idealético antigo, concorrente ao cristão. Isso teria ocorrido, emparticular, entre os aristotélicos radicais da faculdade de ar-tes da universidade de Paris, a partir das sétima e oitavadécadas do século XIII. Foram eles que mais buscaram umaidentidade própria, que os distinguisse dos modelos ante-riores de professores, qualificando-se como filósofos. Nãose quer dizer com isso que tal grupo tenha tido o monopólioda filosofia na universidade medieval. O pensamento filo-sófico não ficou restrito às faculdades de artes. Foi ampla-mente desenvolvido nas faculdades de teologia, não fazen-do sentido falar em oposição razão e fé em relação aos con-flitos intra-universitários do século XIII: pode-se falar, nomáximo, em modalidades diferentes de exercício da razão.

Os artistas heterodoxos parisienses desejaram se dis-tinguir atribuindo-se a si mesmos, explicitamente, uma iden-tidade por meio da exaltação da vida filosófica, como umnovo e diferenciado estilo de vida. “Esse movimento, quepodemos denominar ‘aristocratismo intelectualista’ nasceuda familiaridade com textos filosóficos greco-árabes, ao

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mesmo tempo que reativava certas postulações, certos de-sejos que eram buscados antes dele [Siger de Brabante], emparticular na época de Abelardo” (De Libera, 1991: 23).

No livro La philosophie, théorie ou manière de vivre? Lescontroverses de l’Antiquité à la Renaissance, Domanski destacaa tendência, entre os artistas heterodoxos parisienses, de seconsiderar a filosofia de maneira não apenas teórica, comoinstrumento conceitual, mas também como modo de vida.Um componente do aspecto prático da filosofia seria a ética,concebida não apenas como ciência, mas como “ética reali-zada, uma ciência dos costumes não apenas teórica, mas tam-bém ‘praticada’, encarnada por assim dizer, nos costumesdo filósofo, uma arte de viver exercida por si mesma”(Domanski, 1996: 11). O encontro entre a filosofia e o cris-tianismo teria conduzido a um questionamento do aspectoprático da filosofia, da ética realizada pelos filósofos(Domanski, 1996: 23-29). A cristianização da filosofia incluiua negação ou redução de sua vertente prática, uma vez quese considerava que o modo de viver perfeito era ditado pelopróprio cristianismo; a fonte da moral e da ética eram asverdades reveladas do Evangelho, cuja vivência integral devirtudes dependia da graça divina.

A tendência predominante, no século XII e na escolás-tica do século XIII, seria dar à filosofia um caráter simples-mente “teórico” e “científico”, de forma ainda mais radicalque no início do cristianismo: “o adepto da filosofia não erasenão um leitor e um comentador dos escritos de Aristóteles”(Domanski, 1996: 49-50). A tendência predominante era ade considerar que

“[...] o papel de um filósofo se limita a comentar, explicar e,eventualmente, desenvolver a verdade descoberta pela ra-zão natural e contida nos escritos de Aristóteles. [...] Desseponto de vista, os problemas éticos situam-se no mesmo pla-no que todos os demais e [...] a filosofia prática, como filoso-fia, logo, como pesquisa científica, não difere de modo al-gum de todos os outros ramos. Uma moralidade ativa, umaética praticada, tudo isso pertence a uma outra ordem”(Domanski, 1996: 50-51).

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Nesse quadro, a corrente dos artistas heterodoxosparisienses do século XIII seria uma das exceções ao movi-mento principal14, por atribuir “à filosofia uma autonomiacompleta, sem considerá-la como simples propedêutica àdoutrina cristã”, estando, portanto, “mais inclinada que asoutras correntes a aproveitar esses elementos metafilosóficosdo aristotelismo que se relacionavam com a vida filosóficacomo moral praticada” (Domanski, 1996: 70). Desde essaperspectiva o filósofo, vivendo conforme a natureza huma-na, seria o verdadeiro virtuoso, por ter condições de distin-guir corretamente as virtudes dos vícios. Nele, todas as fun-ções e ações inferiores estariam ordenadas “à função supre-ma e à ação mais elevada: isto é, a especulação sobre a ver-dade e sua fruição, em particular a verdade primeira”(Domanski, 1996: 72-73).

O legado peripatético árabe

O espírito racional de Aristóteles, suas concepções so-bre o conhecimento, sobre seus diferentes domínios e méto-dos, foram fundamentais para o surgimento da universida-de e a formulação do novo modelo de professor surgido nosmeios urbanos, para a consciência das peculiaridades dohomem dedicado de modo expresso à transmissão do co-nhecimento e para a valorização de sua ocupação.15

Mas devemos considerar que o ideal do filósofo na Ida-de Média não teria surgido sem legado dos peripatéticos domundo islâmico e sua leitura do aristotelismo, integradoraa concepções neoplatônicas. A contribuição dos autores mu-çulmanos foi fundamental para a formulação do ideal de

14. Outras exceções seriam Abelardo, por ter valorizado a ética praticadapelos filósofos pagãos, ainda que considerando que apenas a ética cristã realiza-da alcançaria a meta proposta pelos próprios filósofos; e Roger Bacon, por terconsiderado a ética filosófica o ramo mais nobre da filosofia, e por uma certavalorização do exemplo dos filósofos pagãos.

15. Cf. Lohr, 1992: 80-98.

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vida filosófica defendido pelos artistas parisienses da segun-da metade do século XIII. Segundo A. de Libera este idealentrelaçou dois motivos desenvolvidos por pensadoresislâmicos: a idéia de um crescimento progressivo do saber ea de uma ascese intelectual.

O primeiro motivo já se encontrava presente nos tex-tos de Al-Kindi. Inspirado em Aristóteles, mas também emprincípios islâmicos sobre o conhecimento, propunha a “tesede um crescimento do saber, de um progresso, de uma cons-trução gradual do pensamento e da sabedoria, implicandoo concurso de uma multidão de homens.” O segundo, seriaa “idéia ético-intelectual do destino do homem” (De Libera,1991: 140).

A visão do universo adotada pelos filósofos árabes16

definia

“[...] o ato de pensamento como um estado do universo inte-ligível, como um grau de unidade e de unificação da alma,que podia se intensificar à medida que se operavam a ‘conti-nuação’, a ‘conjunção’ da alma humana com a inteligênciaseparada que, na cosmologia peripatética, presidia os movi-mentos do mundo sublunar. O progresso, o crescimento dosaber, tinha desde então um sentido complexo, ao mesmotempo pessoal e transpessoal. O homem era considerado nãocomo sujeito pensante, mas como local do pensamento, lu-gar do inteligível” (De Libera, 1991: 141).

Os latinos medievais teriam aprendido com Al-Kindi eFarabi que

“[...] o pensamento podia ser um progresso cotidiano, umaassimilação progressiva, dito de outra forma, um trabalho e,em última análise, uma santificação. Os pensadores latinosaprendiam assim a considerar o exercício do pensamentocomo uma ascese, a ‘espiritualizar’ o ideal aristotélico dasabedoria contemplativa em uma espiritualidade do traba-

16. Com exceção de Averróis.

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lho intelectual. Ao aprender dos árabes em geral a existên-cia de uma ‘esperança filosófica’ [...], eles ascendiam à idéiade que havia lugar na terra para uma vida bem-aventurada,uma vida do pensamento, antecipando a visão beatífica pro-metida aos eleitos na pátria celeste.17

Deviam a eles assim “a idéia de que a atividade dopensamento é também um crescimento da alma no ser, tesenova que, proporcionando ao trabalho intelectual sua du-pla dimensão de labor e de contemplação, impunha umaredefinição do ideal da sabedoria” (De Libera, 1991: 140).E é certo que, embora essas influências fossem adquirir umtom mais radical entre os artistas heterodoxos, estavamtambém presentes entre outros pensadores, como AlbertoMagno18.

Intelectocratas

Os aristotélicos heterodoxos da faculdade de artes deParis sofrem censuras universitárias, as de 1277 em par-ticular, devido à sua pretensão de reviver um antigo idealético, próprio aos filósofos, no seio da corporação universi-tária. Agora, a “filosofia não era mais considerada abstrata-mente, como ‘vã curiosidade’ parasitando o espírito dos clé-rigos, mas concretamente, como um conjunto articulado dedecisões relativas ao mundo, ao lugar que nele ocupava ohomem e à ética daí extraída” (De Libera, 1991: 178). E osvalores que integravam esse ideal ético não se opunham,

17. De Libera, 1991: 141.A “esperança do filósofo” é uma expressão vinda de Averróis, que a tomou

de Farabi. O que o filósofo desejaria e aguardaria, nesta existência, seria a uniãocom o intelecto agente separado, um êxtase natural e cósmico. Ver De Libera,1991: 387, nota 42.

18. A teoria do intelecto adquirido proposta por santo Alberto Magno pos-tulava que o indivíduo conquistava, por seu trabalho e esforço, com a ajuda doEspírito Santo, sua própria essência, atualizando seu intelecto, dedicando-se auma vida de estudos.

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necessariamente, aos valores cristãos, mas de algum modocom eles concorriam por justificarem de modo diverso com-portamentos similares. Havia uma espécie de assimilaçãode temas da moral cristã para o domínio da filosofia, dan-do-lhes outra justificativa, assim como a transposição de te-mas filosóficos para terrenos diferentes daquele em que eramtratados em sua origem.

Assim, por exemplo, ao dar sentido filosófico à apolo-gia da castidade, Siger de Brabante argumentou utilizandoum tema aristotélico: o do egoísmo virtuoso. O egoísta vir-tuoso, sinônimo de filósofo, seria o que “se identifica com aparte mais nobre de si mesmo: o intelecto, o pensamento”,uma vez que cada “homem é seu próprio intelecto”. Ape-nas ele seria realmente livre e nobre, porque, ao “obedecerapenas às determinações de seu intelecto, obedece a si mes-mo”. Associada a essa concepção viria, então, a defesa de“uma nobreza do intelecto, superior à nobreza do sangue”,concepção que muito deve à idéia averroísta da elite filosó-fica.19 Em meio aos aristotélicos heterodoxos da Universi-dade de Paris, afirma-se um ideal “intelectocrata”, “uma eliteque deve sua dignidade não a privilégio ou condição hie-rárquica, mas a uma superioridade intelectual” (Lohr,1992: 91).

A idéia do egoísmo virtuoso seria também acompanha-da por outro aspecto da ética aristotélica: o da amizade vir-tuosa. Para chegar à

“[...] plenitude filosófica da vida individual, o homem deveser absolutamente ele mesmo, isto é, como vimos, “viver se-gundo o que há de melhor nele”: o pensamento. Esseengajamento intelectual é a decisão filosófica por excelência,o ato supremo de virtude. Ora, o homem não pode viver opensamento sem comunicação [...]. Tendo consciência de suaprópria bondade, o egoísta virtuoso tem necessidade de “par-ticipar também da consciência que seu amigo tem de sua

19. Cf. De Libera, 1991: 225-227; Lohr, 1992: 80-98.

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própria existência”. Necessita portanto de “viver com ele”,de ‘partilhar discussões e pensamentos’” (De Libera, 1991:239).

Além de uma “alternativa filosófica” ao ideal cristãoda castidade, apresentava-se assim também uma “alternati-va” à caridade cristã.

“A pretensão dos filósofos contemplativos a uma dignidadede vida igual às mais elevadas virtudes da vida monásticaimpunha um problema corporativo aos teólogos. [...] A idéiade uma corporação de egoístas — os magistri artium — sópodia causar embaraço à hierarquia eclesiástica. Era uma con-tradição de termos, mas uma contradição operativa, minan-do concretamente a universidade cristã. Ao eliminar a dis-tância entre mendicantes, seculares e leigos, a reivindicaçãodos “filósofos” apresentava um problema novo ao cristia-nismo: o do intelectual em meio cristão (De Libera, 1991: 237).

A utopia universitária

Um dos aspectos mais interessantes desse processo foio de que, ao fazer da Universidade o espaço em que se po-deria conduzir uma vida orientada para o ideal de atingir acontemplação intelectual, transformavam-na em utopia.Além disso, aqueles que postulavam a exaltação da vida fi-losófica transpunham para o espaço da Universidade — lu-gar de exercício de seu ofício — algo que, para os primeirosformuladores do ideal da contemplação, da sabedoriateorética, da amizade perfeita entre filósofos, só era compa-tível com o domínio do ócio. A vida universitária se confun-de com o ócio de Aristóteles, pois o estudo “é um tempopara a virtude egoísta e a amizade que ela demanda [...],considerada com os olhos de um “aristotélico”, a universi-dade medieval é antes de tudo um lugar e um laço de con-templação (De Libera, 1991: 240-241).

Na verdade, segundo essa concepção, a atividade dopensamento, o conhecimento, não deixava de ser um tra-

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balho, mas um trabalho capaz de liberar, à diferença da-quele que escravizaria o homem à matéria, o trabalho ser-vil. A relação entre sabedoria e conhecimento, entre con-templação e trabalho, é redefinida, e os intelectuais/filó-sofos são membros “de uma sociedade de homens reuni-dos para viver juntos uma moral, um trabalho e um ideal”(De Libera, 1997: 8). E a junção do ideal filosófico da “feli-cidade intelectual” com a ética corporativista transformaessa “felicidade” em profissão. É tendo em vista essa pos-sibilidade que fazem sentido as “interrupções de carrei-ra”, mediante as quais alguns mestres em artes escolhempermanecer na faculdade de artes, no que seria o estágiopreparatório para os demais cursos, apesar das dificulda-des materiais decorrentes dessa opção. Vários desses mes-tres “voluntariamente se eternizaram numa situação —um ‘estado’ (status) — do qual a pobreza e a ausência deperspectivas os devia normalmente afastar” (De Libera,1991: 12). Chegando a fazer propaganda da força dessasedução, eles:

“souberam lhe dar um slogan que expressava o término es-perado de uma carreira de professor e o fim desejado de umaascese intelectual: ibi statur, “aí permaneçamos”. Alcançadaa filosofia, deve-se manter nela; não há por que ir além dosabor (sapor) da sabedoria (sapientia)” (De Libera, 1991: 147).

Não é surpreendente que a retomada de concepçõesdo pensamento grego não tenha contribuído para apagar adistância entre trabalho manual e trabalho intelectual. O sur-preendente é terem, por outro lado, associado o caminho debusca da beatitude perfeita ao exercício de uma profissão; acorporação universitária ser vista como o lugar em que sepoderia conduzir uma vida “definida por um privilégio re-almente extraordinário: a possibilidade de abolir institucio-nalmente a distância que separa o otium do negotium”. Comouma estrutura social em que o “estudo é lazer” e “a vidapode ser inteiramente dedicada ao prazer da dificuldade”(De Libera, 1991: 242).

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Os aristotélicos heterodoxos postulam uma concepçãode nobreza que buscava distingui-la da nobreza tradicio-nal. Tratava-se não de uma nobreza de sangue, mas de umanobreza adquirida por um esforço pessoal: o “filósofo” seenobrecia por uma superioridade intelectual, em razão daescolha por viver segundo o intelecto e pela virtude a elacorrespondente, pois

“a filosofia se atesta na maneira de viver e de desejar. Aindaque insistindo em falar dos rigores de sua condição, os “po-bres mestres e estudantes da universidade de Paris” vivemcomo antigos aristocratas e cantam até os prazeres da absti-nência — ou, melhor dizendo, da abstenção — egoísta. Auniversidade é uma instituição de pobreza onde se ganha avida com dificuldades, mas é nesse lugar de miséria que segoza a alegria da emulação e do reconhecimento, o charmeda virtude” (De Libera, 1991: 242).

Tratava-se, em essência, do ideal de uma “aristocraciaintelectualista desinteressada”, deixando sua marca indelévelna vida universitária. Ainda que seja evidente que esse idealnão impediu uma evolução no sentido de uma integração dosprofessores universitários a classes privilegiadas ou de um com-prometimento do ensino com esses grupos.

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CAPÍTULO 2

SOLIDÃO E LIBERDADE:notas sobre a contemporaneidade de

Wilhelm von HumboldtRoberto S. Bartholo Jr.

para Helmut Schelsky

A Revolução Francesa introduziu no panorama histó-rico-cultural do Ocidente a tensão dinâmica de um“dualismo trágico” entre o individualismo radical dos “di-reitos humanos” e sua institucionalização na figura burguesado “cidadão”1. E esse contexto incide de modo marcantesobre a questão da Universidade e de seu lugar na organi-zação da cultura.

Wilhelm von Humboldt foi um pensador quevivenciou, do modo mais típico, a angústia dessa tensão di-nâmica como um verdadeiro dilema existencial. Seu con-

1. Para um aprofundamento, ver R. Haerdter, Der Mensch und der Staat,prefácio ao livro de W. v. Humboldt, Ideen zu einem Versuch die Grenzen derWirksamkeit des Staats zu bestimmen, Stuttgart, 1978.

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texto histórico-biográfico foi o da hegemonia do “despotis-mo esclarecido” em sua pátria, a Prússia, afetada fortemen-te pelo “terremoto político” da Revolução Francesa.

Aos 24 anos de idade, em 1792, Wilhelm demitiu-se docargo de funcionário público do governo prussiano. Comisso, visou mais que apenas o afastamento de uma funçãoque lhe parecia bloquear a criatividade. Colocava, diante desi, a possibilidade de realizar um verdadeiro “ajuste de con-tas” filosófico com o próprio Estado moderno, cuja emer-gência se desenhava nos horizontes do Iluminismo euro-peu. E foi isso que ele buscou expressar numa significativaobra, cujo longo e desajeitado título aponta nitidamente anatureza do problema: Idéias para uma tentativa de se determi-nar os limites da efetividade do Estado.

Toda a empatia de Wilhelm von Humboldt para com aRevolução Francesa ficava obscurecida pelo temor de que oideário iluminista incorporasse ao otimismo incondicionalde sua crença no progresso uma crença na onipotência dainstituição estatal. Em outras palavras: ele quer resgatar dohumanismo idealista uma noção de liberdade que não sedeixe sujeitar à perversão do terror totalitário. A liberdadeque Humboldt prega para a pessoa não é a liberdade doarbítrio individualista feito um fim em si mesmo. Ela é aliberdade como condição de possibilidade para a forma-ção da autonomia ética da pessoa. Com isso, fica recolocadaa questão ética no centro da questão política. E Humboldtconsegue expor o nervo do “dualismo trágico”: o risco deque o ideário iluminista se perverta na requisição de umanova forma de sacrifício ritual da pessoa em novas formasde servidão.

Para Humboldt, as leis do Estado não são, em si mes-mas, expressão da virtude. As prescrições do Estado mo-derno introduzem imposições ou hábitos de que as pessoas“esperem sempre mais ensinamento alheio, direção alheia,ajuda alheia do que elas próprias concebam caminhos alter-

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nativos”2. Sob o seu Império, o Estado passa a se igualar “auma multidão de ferramentas animadas e inanimadas, e nãouma multidão de forças ativas e sensíveis”3. Configura-se,assim, o sacrifício da autonomia ética da pessoa diante doaparato anônimo de controle. Emerge a existência massifi-cada, a serviço da operação eficiente de um dispositivo decontrole e diferenciação funcional. Nesse processo, aburocratização das estruturas modernas de poder é, paraHumboldt, a contrapartida organizacional da mecanização,impondo seu ritmo às atividades econômicas e políticas.

Para Wilhelm von Humboldt, a eliminação da forma-ção ética da pessoa na modernidade decorreria da perver-são da liberdade pela homogeneização e uniformização dassituações. Para ele, a liberdade de ação esvazia-se de con-teúdo existencial, quando se deixa sujeitar a uma pré-moldagem institucional, que elimina a diversidade de situ-ações com as quais as pessoas são confrontadas. Assim, areflexão humboldtiana remete à questão da educação cien-tífico-tecnológica e ao lugar da Universidade na organiza-ção da cultura.4 E essa remessa, no contexto político-univer-sitário alemão do início do século XIX, implica a considera-ção de quatro tendências predominantes. Eram elas:

1. A Universidade tradicional, corporativista, conser-vadora, dissociada de pesquisas empírico-sistemá-ticas, centrada na transmissão dogmática do conhe-cimento por meio de um sistema de ensino estático,uma espécie de “missa do intelecto”, que se recusa aincorporar um compromisso com o pragmatismoutilitarista.

2. O projeto pedagógico iluminista radical, que vê naatividade científica a fonte geradora de “conheci-

2. Ver W. v. Humboldt, op. cit. na nota 1, p. 32.3. Ver W. v. Humboldt, op. cit. na nota 1, p. 48.4. Para um aprofundamento, ver H. Schelsky, Einsamkeit und Freiheit. Idee

und Gestalt der deutschen Universität und ihrer Reformen, Reinbek bei Hamburg,1963.

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mentos úteis”, sistematizados em enciclopédias, quecodificam o saber científico-empírico tecnologica-mente instrumentalizável. A Universidade transmu-ta-se em escola científico-profissionalizante especia-lizada de nível superior, expressão maior de um sis-tema estatal integrado de ensino.

3. O projeto pedagógico iluminista reformista que com-partilha da ênfase utilitarista do Iluminismo radicalquanto ao dever-ser da prática científica, mas nãovê nas universidades apenas peças de museu a se-rem superadas pelo novo sistema estatal integradode ensino. O que se propõe é a busca de um “com-promisso pragmático”, que adapte aos novos impe-rativos uma instituição universitária reformada.

4. O projeto universitário humboldtiano exemplificadona fundação da Universidade de Berlim, que deveficar claro, não teve objetivo reformista. O que sevisou foi a criação de algo novo, que se diferencias-se tanto da universidade tradicional, como do pro-jeto utilitarista-iluminista.

Os planos para a criação da nova Universidade perma-neceram nas gavetas da burocracia estatal prussiana até aderrota da Prússia para os exércitos napoleônicos (1806-1807). Todos os territórios a oeste do Elba caíram sob domí-nio de Napoleão, e, com eles, diversas universidades comoas de Duisburg, Paderborn, Erlangen, Erfurt, Münster,Göttingen e Halle, a principal universidade reformista-iluminista. Nesse novo quadro, em 16 de agosto de 1809,Frederico Guilherme II assina o decreto de fundação da novaUniversidade de Berlim.

Wilhelm von Humboldt tem papel fundamental nestafundação. Ele vai moldar a idéia-diretriz de um novo proje-to universitário, em conformidade com o humanismo idea-lista de Schiller, Schelling e Fichte, a “formação ética da pes-soa através de uma ciência que se compreende a si mesma

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como filosofia”. Esta concepção, enraizada no idealismo fi-losófico alemão, busca pensar o contexto global da vida e domundo “como um produtivo pensar-se a si mesma da ver-dade em sua generalidade, que se liberta das autoridades efins imediatos do saber, para se constituir numa auto-refle-xão que reconstrói a totalidade do mundo como consciênciade princípios”5. Esse ideal vincula a atividade científica auma correspondência ética com a vida, de modo que, naspalavras de Fichte, “o filósofo possa ser o eticamente virtu-oso”.

Para a perspectiva humboldtiana a autonomia univer-sitária é o espaço institucional de uma “solidão e liberda-de”, que é também pressuposto para que se atinja aqueleponto “onde pensamento e realidade se encontram e volun-tariamente se transformam”6. São uma “solidão e liberda-de” dirigidas polemicamente contra um claro opositor, quenão é mais a “missa do intelecto” ministrada nas universi-dades tradicionais, mas sim a escola científico-profissiona-lizante especializada, de nível superior, em que a universi-dade iluminista escolarizada tendia a se constituir.

O projeto humboldtiano se afirma como espaçoinstitucional de uma formação ética da pessoa por uma ciên-cia que se compreende a si mesma como filosofia, e se afir-ma polemicamente contra a “cegueira auto-reflexiva” de umaUniversidade que se escolariza segundo critérios de utili-dade e especialização, fixados pela sociedade civil burgue-sa ou pela burocracia estatal. A palavra ética não é entendi-da na perspectiva humboldtiana como a mera expressãodogmática de um código de ação moralizante. Ela é sim aexpressão da busca de uma correspondência normativa davida, a permanente autoconstrução da pessoa, cuja autono-mia espiritual requer a “solidão e liberdade” como metáfo-ras da “destutelarização do intelecto”, condição de possibi-

5. Ver H. Schelsky, op. cit. na nota 4, p. 67.6. Palavras do discurso de W. v. Humboldt na Academia de Ciências de

Berlim, em janeiro de 1809, citado por H. Schelsky, op. cit. na nota 4, p. 9.

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lidade para toda ação apta a ter no mundo, segundo a ex-pressão de I. Kant, “o material do dever”. Agir eticamentefazendo do mundo o material do dever é para Humboldt ofim último da formação universitária estruturada para“metamorfosear tanto mundo quanto possível na própriapessoa [...] pela vinculação de nosso eu com o mundo paraas mais gerais, provocantes e livres relações”7.

Nesse ponto, interrompo o encadeamento desta expo-sição para uma breve polêmica comigo mesmo. Que senti-do pode ter minha insistência em afirmar a “contemporanei-dade” desse velho autor prussiano, cujo projeto universitá-rio, na Alemanha de hoje, subsiste apenas de modo frag-mentado e impotente? Lá, a reverência para com o projetouniversitário humboldtiano tornou-se um ritual oco e unâ-nime, não sendo pouco significativo que a extinta Alema-nha comunista tenha mantido, durante toda sua existência,o nome “Wilhelm von Humboldt Universität” para desig-nar a universidade de Berlim Oriental.

Passemos em revista alguns dos pressupostos básicosdessa imagem-diretriz ideal, por século e meio hegemônicaem meio aos povos germânicos:

1. A liberdade de ensino e aprendizagem de profes-sores e estudantes. Humboldt vincula, em seu “pla-no organizacional”, essa liberdade a uma diferenci-ação essencial: entre as escolas superiores e a Uni-versidade. Nas escolas, os docentes lá estão para osestudantes. Na Universidade, ambos estão conjunta-mente confrontados com a ciência pura. A liberdadede ambos é um privilégio diante de todas exigênciaspragmáticas da aprendizagem e da formação da pes-soa. Se hoje fôssemos aplicar, de modo estrito, os exi-gentes critérios humboldtianos, a imensa maioria das

7. Ver W. v. Humboldt, “Theorie der Bildung des Menschen”, in GesammelteSchriften, Academia Prussiana de Ciências, 1903, v. 1, p. 283-284, citado por H.Schelsky, op. cit. na nota 4, p. 81.

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universidades não seria mais que centros escolaresde formação profissional cientifizada. Um reconhe-cimento tão drástico não deve ofuscar, no entanto, ofato de que, mesmo nas universidades alemãs doséculo XIX, um enquadramento pleno nos critérioshumboltianos talvez só fosse observado nas facul-dades de filosofia.

2. A unidade de ensino e pesquisa. No tempo deHumboldt, essa exigência era de fato uma realida-de. Basta considerarmos que obras decisivas deFichte, Hegel e Schelling foram inicialmente produ-zidas como material de Vorlesungen (aulas expo-sitivas sob a forma de leituras em auditório). Hojeisto se revela uma impossibilidade, quando nos di-ferentes campos de conhecimento os problemas dapesquisa passam a ter como pré-condição de com-preensão um curso acadêmico completo. A fórmulahumboldtiana se esvazia de sentido e se reduz àquestão de se os pesquisadores, além de pesquisar,também não seriam os melhores professores, porterem melhores condições de “traduzir” pedagogi-camente os resultados das mais novas investigações.Uma questão que de modo algum se pode respon-der com um simples sim.

3. A unidade da ciência na filosofia. Este pressupostohumboldtiano já foi destruído faz tempo pelo pro-gresso das ciências realizado na especialização. Apretensão de sintetizar o conjunto do saber científi-co e de reduzi-lo a um denominador comum filosó-fico não é mais considerada, hoje, um legítimo obje-tivo de pesquisa da ciência moderna. Salvaguardara unidade da ciência, tarefa central no projetohumboldtiano, parece transformar-se em quixotes-ca batalha contra moinhos de vento, agora que a fi-losofia perdeu sua posição-chave no interior dos sa-beres universitários.

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4. A formação ética da pessoa pelo valor pedagógicoda ciência. Todo o anteriormente exposto solapa, de-cisivamente, as bases do pensamento nuclear da con-cepção de Universidade humboldtiana: Humboldtestava convicto de que uma praxe científica em “so-lidão e liberdade” assegurava uma conformaçãonormativa da vida, por ele designada “formação éticada pessoa na ciência”. A ciência que hoje ensinamosem nossas universidades não parece corresponder aisso. Atribuir-lhe uma “potência etizante” da vidaseria mais que uma enganosa ilusão, seria uma ver-dadeira empáfia. Mas se hoje a formação científicanão pode ser imediatamente identificável com uma“etização do caráter da pessoa”, tampouco devemosdesistir de toda e qualquer tentativa de dar ao vín-culo entre ciência e vida aquela efetividade queHumboldt queria associar à “idéia moral”. Hoje, con-frontados com uma cientifização “infinita” da praxis,podemos, pelo menos, não abrir mão da tentativade unir os efeitos da cientifização com as virtudesda cientificidade: modéstia, prudência, objetivida-de, crítica e autocrítica. Isso permanece partevinculante da pedagogia da razão “razoável”. E jus-tamente “razoável” por não pretender fazer daobjetivização do racional a única razão de ser de todarealidade.

5. Culturalismo. Idéia fundamental para a concepçãohumboldtiana de universidade é que a vida espiri-tual da ciência repousa em si mesma, e que nessaautonomia como cultura deve ser promovida peloEstado. Contra o dirigismo protecionista do Iluminis-mo prussiano, Humboldt afirma a irredutível liber-dade da pesquisa e da formação da pessoa na ciên-cia. Mas essa concepção de uma ciência autônomaperante os poderes estatais, políticos e econômicosnão parece conseguir se sustentar. A contemporâ-nea “tecnociência” é um decisivo meio político de

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poder, um essencial meio econômico de produção.Ela de tal maneira se imbrica nas estruturas políti-cas e econômicas que se torna ilusório pretenderisolá-la como um fato circunscrito a um supostamen-te autônomo domínio da cultura.

6. Nacionalismo. Dimensão, hoje silenciada, da con-cepção universitária de Humboldt é a idéia nacio-nal. A universidade alemã dos séculos 19 e 20 não écompreensível sem ser referida ao fundamento po-lítico do nacionalismo. Ela partilhou essa idéia atéseu amargo fim no nacional-socialismo. Mas o pró-prio “nacionalismo universitário” humboldtianodeve ser visto no contexto de um “projeto” mais doque de uma realidade dada. Humboldt não preten-de com a fundação da Universidade de Berlim “omelhor para a Prússia”, e sim “o melhor para a Ale-manha”. Essa Alemanha era, então, “uma coisa po-liticamente ainda não existente”. E de certo modovivemos hoje um certo paralelismo entre um idealuniversitário, que se deslocava dos particularismosdos principados para um Estado nacional, e um novoideal universitário, que se desloca do Estado nacio-nal para o horizonte planetário. Por fim, é impor-tante apontar que, neste contexto, Humboldt uniu aexigência de uma ampliação do horizonte social daciência com a exigência de liberalidade e de supera-ção da tutela política das universidades. Em parti-cular, Humboldt criticou a proibição do estudo emuniversidades estrangeiras promulgada pelo rei daPrússia, expressando seu desejo de que fosse “for-malmente superada, pois ela colide com a liberali-dade que deve reinar em todas as coisas científicas”8.

Como reconhecer a importância desse vulto históricoque, em 1967, completaria 200 anos de nascimento? Será que

8. Ver H. Schelsky, op. cit. na nota 4, p. 94.

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temos de reconhecer a férrea contradição de, por um lado,louvar sua contribuição para o desenvolvimento da ciênciae da cultura na Alemanha moderna, e, por outro, dar “adeusa Humboldt” como condição do progresso da ciência e dacultura em nosso mundo de hoje?

Não é essa nossa posição.Mas nos parece, antes de mais nada, necessário reco-

nhecer que não nos interessam primordialmente as soluçõeshumboldtianas, em sua contingência histórica, corporifi-cadas numa forma institucional específica: um modelo uni-versitário.

O que nos interessa é o possível paralelismo históricodas tarefas diante das quais Humboldt se colocou e arriscouuma resposta, e aquelas diante das quais nos colocamos. E,também, o reconhecimento de que talvez a imagem-diretrizideal com que ele solucionou os problemas de seu tempo/espaço siga sendo um pertinente ponto de apoio para tenta-tivas de discernimento de problemas de nosso tempo/es-paço. Ou, expressos nos termos do idealismo alemão do sé-culo XIX: nossa questão é saber se somos capazes de reali-zar a idéia humboldtiana em novas formas institucionais.

A situação com que Humboldt se defronta em 1809 éuma em que o Estado e a sociedade do Iluminismo se incli-navam inteiramente, em nome do progresso econômico, téc-nico e social, para uma formação profissionalizante, prag-mática e cientifizada. O movimento em prol de um saberprático útil impulsiona a reforma da Universidade tradicio-nal, transformando-a numa escola superior especial paraformação profissional. Ao utilitarismo iluminista (hoje dirí-amos ao funcionalismo científico) contrapõe Humboldt umaprofundamento espiritual apoiado na referência ético-idealà ciência que cria uma nova Universidade. A imagem-dire-triz dessa Universidade funda-se numa decisão contra a ciên-cia pragmática e a favor da ciência pura. O surpreendente foique, precisamente por meio dessa decisão, a universidadegerou, no século XIX, um novo servidor público estatal aca-

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demicamente formado, com um perfil de competência e umaética profissional até então desconhecidos.

Hoje muito mudou. Mas continuamos defrontados comdois desafios: (1) a necessidade de formação profissional parauma camada cada vez mais ampla de empregos científico-técnicos; e (2) o aprofundamento da pesquisa voltada paraaplicações imediatas segundo critérios industriais de pro-dutividade nos campos da economia, da técnica e das ativi-dades militares. Diante desses desafios, a teoria contempo-rânea da sociologia do conhecimento, propondo oenquadramento da produção científica nos cânones da ra-cionalização do trabalho, ainda reconhece pelo menos umaquestão de sabor humboldtiano como estrategicamentenevrálgica: a “criatividade” dos pesquisadores, de certomodo a “última relíquia” de um grande projeto e o padrãoorganizacional com ela congruente.

No projeto universitário humboldtiano, professores eestudantes são pessoas em permanente aprimoramento devirtudes, não em simples acumulação quantitativa de co-nhecimentos. O decisivo não é o quanto alguém sabe/do-mina, mas sim que postura assume na permanente buscadas verdades. Não é em torno da “posse da verdade” que auniversidade deve se organizar como uma mera instituiçãoespecializada de ensino, mas em torno da busca de verda-des, como espaço institucional de aprendizagem. Aescolarização da Universidade pretende fazer da liberdadede ensino, e não da liberdade de aprendizagem, o cerne daquestão da autonomia universitária. Mas somente a liber-dade de aprendizagem é compatível com a perspectivahumboldtiana de uma “ciência com consciência”, para a qualo estudo não é a mera transmissão de saberes estruturados,mas sim um compartilhar de uma forma existencial, um seronde saberes se inserem. E o caminho para se compartilharesse ser é o diálogo socrático.

Humboldt via “a solidão e a liberdade” como as condi-ções de realização de sua universidade. Isto pode ser tradu-

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zido como os meios de realização do que Max Weber cha-mou de “a ciência como vocação”, ou, mais contemporanea-mente, nas palavras de um mestre que tive a alegria de co-nhecer, Helmut Schelsky: “a exigência de concentração, de-dicação integral, autodeterminação e responsabilidade nafixação de objetivos e aplicações da pesquisa universitáriapor parte de docentes e pesquisadores”.

Mas será possível e legítimo pretendermos hoje a “so-lidão e liberdade” humboldtianas? O entrelaçamento dapraxis científica com tecnologia, economia, sociedade, Esta-do, militar parece tornar tal pretensão uma impossibilida-de. No entanto eu gostaria de afirmar que essa aparente im-possibilidade não é um fato novo. Ela já existia em 1908.Diante desse “fato velho”, o “fato novo” foi o projeto uni-versitário de Humboldt. Assim, fazendo tardio eco aos mu-ros de 1968, podemos dizer: ser razoável (não apenas racio-nal) é tentar o impossível como horizonte da vocação, e serapenas racional é resignar-se ao cálculo utilitarista das con-seqüências de cursos alternativos de nossas ações.

Humboldt introduz uma nova relação entre a Univer-sidade (e com isso a ciência) e o Estado. A soluçãohumboldtiana assegurou a autonomia da ciência dentro doquadro hegemônico do sistema político do século XIX naPrússia. Hoje sua solução, fundada na autonomia da “cul-tura” com respeito ao “Estado”, revela-se insustentável. Aautonomia da Universidade contemporânea está imersa nocampo de tensões de forças políticas, econômicas e milita-res. Não está salvaguardada numa suposta autonomia dacultura. Assegurar a autonomia universitária pressupõe,hoje, a autocompreensão da ciência como força política,interlocutora ativa das instituições da sociedade civil, doEstado e da economia. Assim, num eco muito mais tardioainda aos esforços socráticos por salvar a “razoabilidade darazão” do naufrágio do relativismo sofista, podemos dizer:a ciência verdadeiramente livre é o conhecimento do Bemnuma contínua busca amorosa, que se traduz em compro-misso com a vida.

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Humboldt via a diferenciação da Universidade com res-peito às instituições “escolares” de ensino como um princí-pio fundamental. Parece que estamos agora diante da mes-ma tarefa. Mas a linha demarcatória deslocou-se para o in-terior da própria Universidade. O deserto da escolarizaçãocresce, tomando quase que inteiramente os espaços dos cur-sos de graduação. A “solidão e liberdade” humboldtianasparecem circunscrever-se a alguns espaços minguantes dapós-graduação em sentido estrito, dos cursos de mestrado(cada vez menos) e doutorado (poucos). Esses “oásis” nodeserto universitário são os campos férteis que nos restampara o florescimento daquela que talvez seja a mais esque-cida das exigências da idéia universitária de Humboldt: aunião da ciência com a Geselligkeit, uma velha palavra ale-mã em desuso que podemos, talvez, traduzir por “conviven-cialidade”, uma atividade conjunta não-condicionada pelaeficácia e sim fundada em livres-associações, afinidadeseletivas e fruição do prazer vocacional, elementos irre-dutíveis aos critérios utilitaristas da eficiência apenas ins-trumental.

A segunda metade do século XX assistiu a uma suces-são de transformações na estruturação das universidadescomo centros produtores e difusores de conhecimento. Umaestrutura gerencial matematicamente controlável foisuperposta, em nível planetário, às universidades “tradici-onais”. E essa estrutura se apóia sobre três elementos de base,transpostos de seu contexto originário norte-americano: odepartamento, o currículo e o campus. Sobre esse tripé se cons-truiu a “grande transformação transnacional” das universi-dades, que doravante devem se tornar “fábricas que repro-duzem o exato tipo de know-how necessitado pela civiliza-ção tecnológica”9. O resultado é uma sistemática desqualifi-cação dos conhecimentos das culturas regionais. Como apon-ta H. A. Steger, essa desqualificação é o inverso da qualifi-

9. Ver H. A. Steger, The University and Technological Independence, in H.A. Steger (ed.). Alternatives in Education, Munique, 1984, p. 554.

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cação profissional que prepara o indivíduo para desempe-nhar tarefas ‘superiores’: ela o prepara para tarefascrescentemente subordinadas e subalternas.

Os departamentos são as unidades operacionais das “uni-versidades/fábricas”. Os professores são as ferramentas-agentes de uma “linha de montagem” (o currículo), mas aomesmo tempo representam os produtos finais de tal linha.Na operacionalização departamental dos “currículos/linhas-de-montagem os estudantes são a matéria-prima a ser trans-formada, cujo estado futuro é espelhado diante deles nasfiguras dos professores, como “ferramentas preparadas paraproduzir cérebros para profissões específicas”10. Resulta da“grande transformação transnacional das universidades” a“desqualificação provincializante do intelecto”, adestradopara ser “algo utilizável exclusivamente para aquele fim parao qual a linha de montagem está ajustada”.11

O processo revela uma de suas facetas perversas, se con-siderarmos o sucateamento de cérebros descartáveis pelosempre mutável horizonte de “empregabilidade” das socie-dades industriais. É uma opção economicamente racional(ou seja, mais lucrativa) empregar um novo cérebro, treina-do segundo os últimos requisitos do progresso tecnológico,do que manter por tempo indeterminado empregado umcérebro obsoleto, ou arriscar-se a “reciclá-lo”. Soma-se a issoo fato de que os postos de trabalho para os cérebrosprestadores de serviços industrial-produtivamente úteis sãominguantes, se considerarmos a possibilidade de uma con-tínua transposição das funções rotinizadas para circuitoscibernéticos de controle informacional.

As idéias que vinculavam a formação profissional-uni-versitária com a formação ética da pessoa, identificando naeducação um verdadeiro processo de “transmutaçãoalquímica” da personalidade, parecem relíquias do passa-

10. Ver idem, p. 555.11. Ver idem, p. 555.

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do. Ou, numa imagem menos gentil, restos de um cadáverinsepulto. Mas como não nos deixam esquecer alguns pen-sadores “resistentes”, “na Europa do século XVIII (e antesdele), as escolas em todos os níveis eram estimadas como‘minas’ produzindo o ‘ouro da razão’”12. E esse ‘ouro da ra-zão’ era produzido pela superação da ingenuidade pré-cien-tífica, num processo gradual que devia necessariamente in-cluir em si a elevação ético-moral do aprendiz, a repressãode crenças irracionais patéticas e a preservação da coesãosocial.

Se quisermos atualizar essa proposição, devemos reco-nhecer que a ingenuidade que necessitamos hoje urgente-mente superar deixou de ser pré-científica. Ela se fundamen-ta na trivialização da tecnociência, popularizada pelas men-sagens “explicativas” ou “prospectivas” da media e pelasaplicações cotidianas, como uma estrutura existencial dereferência da vida moderna. Recuperar a possibilidade deuma elevação ético-moral do aprendiz requer suadestutelarização com respeito à “trivialização” do humanopela interface tecnológica13, a repressão da crença“salvacionista” nos poderes da tecnociência, e a prudente ezelosa preservação da sustentabilidade da síntese social deuma civilização científica.

Atualizar, para o mundo contemporâneo, a transmu-tação alquímica do “ouro da razão” requer desenvolver napessoa do aprendiz a aptidão para desvelar o jogo“trivializante” que se joga na “interface tecnológica”. Re-quer nomear seus agentes. Requer identificar quem são os“senhores da globalização contemporânea”. Quem perde equem ganha. E não fazer de um estado de coisas uma inelu-tável força do destino e, no exercício dessa confrontação éti-ca, “recordando a fórmula socrática, poderia ser dito quehoje, mais que nunca antes, a educação da pessoa necessita

12. Ver idem, p. 556.13. Para um aprofundamento, ver J. P. Dupuy e J. Robert, La Trahison de l’

Opulance, Paris, 1976.

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uma forma de ‘ironia tecnocientífica’, sem a qual a pessoanão seria capaz de sobreviver como um intelecto indepen-dente, mas seria ‘trivializado’, feito um cérebrodescartável”14.

É claro que as “reformas” em curso visando o aprimo-ramento do desempenho das universidades/fábricas visan-do uma integração competitiva no mundo da globalizaçãocontemporânea não promovem qualquer “ironia tecnocien-tífica”. Isso implicaria reconhecer e reafirmar uma primor-dial independência do conhecimento, sua autonomia comrespeito as imposições da “razão de mercado”, da “razão deEstado” ou qualquer eco ao “discurso da servidão voluntá-ria” (E. de la Boétie).

H. Lefèbvre15, em meio à Revolta de 1968, advertia aosportadores de uma certa miopia contestatória, de supostaraiz marxista, que a lógica formal não é uma mera formasuperestrutural, perecível junto com a “morte” de relaçõesestruturais da “base” econômica que a tenham engendrado.Em outras palavras, a lógica é indestrutível. E, como nosaponta H. A. Steger, a lógica “aparece em nossa civilizaçãocomo o modo estável de conhecimento. E essa natureza glo-bal e unitária do conhecimento é vitalizada pela pesquisa ea aplicação prática”16. Nesse contexto, a tarefa da produçãodo “ouro da razão” não pode ser confundida com irracio-nalismos diversos, que jogam fora a criança junto com a águasuja do banho. A “ouro da razão” está ali, onde a comuni-dade de intelectuais universitários ousa uma “reconstruçãodo conhecimento” expropriando seus expropriadores, e “issoé necessário para libertar o conhecimento de sua servidão,mas sem destruí-lo, num processo similar à restauração deum precioso quadro, transferindo-o de uma moldura paraoutra”17.

14. Ver H. A. Steger, op. cit. na nota 9, p. 556.15. Ver H. Lefèbvre, L’Irruption de Nanterre au Sommet, Paris, 1968.16. Ver H. A. Steger, op. cit. na nota 9, p. 557.17. Ver H. A. Steger, idem, p. 557.

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Atualizar o exemplo de Humboldt no Brasil hoje im-plica repensar a questão “ciência e universidade” desde ofundamento, e traduzir esse pensamento para uma soluçãoprópria, não para uma cópia anacrônica. É não se deixar“herodianizar”, vivendo como uma “elite intelectual” quetem apenas os pés na Palestina, mas a cabeça em Roma, eque tantas vezes traveste a “excelência acadêmica” na me-díocre mimésis de uma produção seriada de papers para re-vistas científicas de circulação internacional. Uma “elite in-telectual” desenraizada de seu povo, seu lugar, sua história.Somente o esforço por nos tornarmos o que somos pode fa-zer da herança universitária humboldtiana uma tarefa. E deHumboldt nosso contemporâneo.

Referências bibliográficas

DUPUY, J. P. & ROBERT, J. La Trahison de l’Opulance. Paris, PUF,1976.

HUMBOLDT, W.v. Ideen zu einem Versuch die Grenzen derWirksamkeit des Staats zu bestimmen. Stuttgart, Reclam Verlag,1978.

LEFÈBVRE, H. L’Irruption de Nanterre au Sommet. Paris, Anthropos,1968.

SCHELSKY, H. Einsamkeit und Freiheit. Idee und Gestalt der deutschenUniversität und ihrer Reformen. Reinbek bei Hamburg, RowohltTaschenbuch Verlag, 1963.

STEGER, H. A. (ed.) Alternatives in Education. Wilhelm Fink Verlag.Munique, 1984.

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CAPÍTULO 3

A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃOTENDÊNCIAS OPOSTAS?

Jenner Barretto Bastos Filho

Colocação do problema

Perguntamos se a ciência normal (Kuhn: 1975), por umlado, e a educação genuína, (Freire: 1999) por outro, se cons-tituem ou não em propensões antitéticas. A motivação paraeste questionamento é que, para a primeira, o cerne seria odogma, enquanto para a segunda, seria a crítica. Argumen-tamos que a superação deste difícil dilema passa, necessa-riamente, pela questão da autonomia, entendida nas suasdimensões epistemológica, ética e política. Somos conduzi-dos à conclusão segundo a qual a conquista da autonomiaconstitui enorme desafio, pois requer radical reforma tantodo pensamento quanto de atitudes éticas.

Em trabalho anterior (Bastos Filho: 2000a), discutimosa crítica popperiana (Popper: 1979) ao pensamento de Kuhne propusemos uma solução conciliatória sobre alguns as-pectos do desenvolvimento da ciência, que tanto aceitassequanto recusasse, parcialmente, as duas teses. Em outras

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palavras, tratava-se de uma solução conciliatória, na qual sereconhecia, em ambas, apenas parte da razão.

No presente trabalho, levantamos uma série de outrosquestionamentos, entre os quais, e principalmente, o queconstitui a pergunta do título. De fato, se concebermos a ciên-cia normal kuhniana como aquela praticada por uma comu-nidade que se atém a um paradigma que fornece soluçõesexemplares de problemas do tipo quebra-cabeça, essa co-munidade se concentrará dogmaticamente em problemasque somente a falta de destreza de seus praticantes impedi-ria de que alcançassem resultados que contribuíssem para oacréscimo do conhecimento (normal, é claro). Então, seriaforçoso concluir que, para a ciência normal kuhniana, talcomo muito bem colocou Lakatos, crítica seria maldição(Lakatos: 1979).

Por outro lado, se tomarmos o conjunto das tendênciasexpressas pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação),pelos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) e por umautor emblemático como Paulo Freire, podemos resumir que,grosso modo, o que se tem em mente é uma educação crítica,uma educação cidadã, em que as pessoas não sejam simples-mente decoradoras de fórmulas matemáticas, nem merasrepetidoras de cronologia sem a história correspondente,nem reprodutoras de conhecimentos sem o suficiente co-nhecimento de causa. Importa que sejam pessoas críticas,que saibam tomar iniciativa e propor soluções perante cir-cunstâncias novas e diferentes daquelas às quais se haviamhabituados. Enfim, que sejam pessoas para as quais a mal-dição não seria mais a crítica e sim o dogma.

O conflito, então, está posto. A ciência normal se ape-garia ao dogma, ou seja, à aderência estrita e praticamenteexclusiva ao paradigma dominante. A educação, por outrolado, se for genuína e não mero adestramento nem treina-mento, tem de ser necessariamente crítica.

Obviamente, alguém que, no seu processo educacio-nal, tenha sofrido ambas as influências, ou seja, por um lado,

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A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 63

uma concepção muito radical de ciência normal meramentecomo operação de limpeza, e, por outro, uma concepção deabertura e de estímulo à crítica, é forçoso concluir que esseindivíduo vive um grande conflito. Se for muito prático epragmático, poderá optar por uma inserção na ciência nor-mal sem grande drama de consciência. Mas se tiver umavocação transversal e, além disso, considerar a crítica comoo apanágio de qualquer atividade intelectual (ainda que re-conheça que a divisão rigorosa de trabalho é uma espéciede mal necessário para a eficiência do processo de acumula-ção), então, sem dúvida, o conflito será agudo.

No curso do presente trabalho, argumentamos que asolução do conflito ciência normal versus educação passa,necessariamente, pela questão da autonomia. Trataremosdesta importante questão segundo as dimensões epistemoló-gica, ética e política.

Conflitos de saberes têm sido examinados criticamen-te por diversos autores e sob diversos aspectos. Citaríamosduas abordagens recentes: a primeira delas está exposta numartigo recente (Mamone Capria: 1999), que trata do conflitode saberes entre médicos e pacientes, o qual se manifesta,por exemplo, na solicitação a esses últimos termos de con-sentimento livre e esclarecido em função de grave en-fermidade; a segunda, (Danhoni Neves: 1999) é exposta emum livro que traz uma crítica afiada ao ensino que apresen-ta os conteúdos científicos como destituídos de história eartificialmente linearizados, procedimento esse que leva osestudantes a uma gravíssima distorção da real prática his-tórica da ciência. O conflito se revela com todas as letras,pois é necessário manifestar o que realmente desejamos: (1)se queremos uma linearização extrema que, com o pretextodidático de simplificar, produz os efeitos negativos dedesconsiderar a história, fazer apologia triunfalista dagenialidade e restringir severamente o pensamento, apos-tando, assim, apenas na lógica da divisão de trabalho, a qualprepara mais rapidamente os estudantes para uma práticatrivial de ciência normal; (2) ou, em lugar disso, se quere-

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mos a educação realmente genuína, que prepara não ape-nas o cidadão, mas o ser humano integral.

No entanto, não queremos reduzir as possibilidadeseventuais de soluções do conflito apenas às duas alternati-vas acima expostas. No caso do ensino de ciências, somoscônscios da possibilidade de uma gama de soluções inter-mediárias, nas quais o movimento dialético conflito/conci-liação esteja presente. Em outras palavras, há muitasnuances, consubstanciadas pelas diferentes doses de com-parecimento concomitante das alternativas (1) e (2).

O presente trabalho tem como objetivo tratar de algunsaspectos desse importante dilema. Temos consciência daabrangência e das dificuldades suscitadas. Perguntaríamos,então, se seria possível e, em caso afirmativo, em que medi-da uma solução conciliatória de um dilema tão dilaceradorpara um espírito cognoscente.

Aspectos do conflito

Comecemos a colocação de um dos aspectos do confli-to entre as concepções de Kuhn e Popper com uma bela ci-tação de Lakatos:

“O seu [de Kuhn] principal problema também é a revoluçãocientífica. Mas ao passo que, de acordo com Popper, a ciênciaé ‘revolução permanente’ e a crítica é o cerne do empreendi-mento científico, de acordo com Kuhn a revolução é excep-cional e, na verdade, extracientífica, e a crítica em épocas‘normais’, é maldição” (Lakatos, 1979: 111).

Como se pode facilmente notar daquilo que acima foiargumentado, parece haver entre Kuhn e Popper um confli-to, de alguma maneira, análogo ao que existe entre aquelavisão radical de ciência normal e a educação. Mas a situaçãoé muito mais complexa do que sonha a nossa vã filosofia,pois se seguirmos ao pé da letra o relato de Kuhn para odesenvolvimento da ciência, como poderíamos acreditar que

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os cientistas praticantes da ciência normal, acostumados aodogma e à aderência restrita ao paradigma dominante, fos-sem capazes de, durante a crise causada por uma série deanomalias de que o paradigma dominante não pode darconta, passar a exercer a crítica? Em outras palavras, comopoderia alguém (e até mesmo uma comunidade) sempreacostumado a trabalhar com dogmas passar, de uma horapara outra, a exercer a crítica? Popper reconhece que, infe-lizmente, a ciência normal de Kuhn existe, mas deve ser com-batida. Numa interessante passagem, Popper escreve:

“A ciência ‘normal’, no sentido de Kuhn, existe. É a ativida-de do profissional não-revolucionário, ou melhor, não mui-to crítico: do estudioso da ciência que aceita o dogma domi-nante do dia; que não deseja contestá-lo; e que só aceita umanova teoria revolucionária quando quase toda a gente estápronta para aceitá-la — quando ela passa a estar na moda,como uma candidatura antecipadamente vitoriosa a que to-dos, ou quase todos, aderem. Resistir a uma nova moda exi-ge talvez tanta coragem quanto criar uma. Vocês talvez di-gam que, ao descrever desta maneira a ciência ‘normal’ deKuhn, eu o estou criticando implícita e sub-repticiamente.Afiançarei, portanto, mais uma vez que o que Kuhn descreveu existe,e precisa ser levado em consideração pelos historiadores da ciência.O fato de tratar-se de um fenômeno de que não gosto (por-que o considero perigoso para a ciência), ao passo que Kuhn,aparentemente, não desgosta dele (porque o considera ‘nor-mal’) é outro assunto; assunto, aliás, muitíssimo importan-te” [O grifo é nosso] (Popper, 1979: 64-65).

A citação continua com uma série de críticas importan-tes. Cremos que é de bom alvitre ainda citar algumas passa-gens instrutivas para os nossos propósitos neste trabalho.Popper continua a sua crítica e escreve:

“A meu ver, o cientista ‘normal’ tal como Kuhn o descreve, éuma pessoa da qual devemos ter pena. [...] O cientista ‘nor-mal’, a meu juízo, foi um mal ensinado. Acredito, e muitagente acredita como eu, que todo o ensino de nível universi-tário (e se possível de nível inferior) devia consistir em edu-

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car e estimular o aluno a utilizar o pensamento crítico. Ocientista “normal’, descrito por Kuhn, foi mal ensinado. Foiensinado com espírito dogmático: é uma vítima da doutri-nação. Aprendeu uma técnica que se pode aplicar sem queseja preciso perguntar a razão pela qual pode ser aplicada(sobretudo na mecânica quântica). [...] Para usarmos a ex-pressão de Kuhn, ele se contenta em resolver ‘enigmas’. Aescolha desse termo parece indicar que Kuhn deseja desta-car que não é um problema realmente fundamental o que ocientista ‘normal’ está preparado para enfrentar; é, antes, umproblema de rotina, um problema de aplicação do que seaprendeu” (Popper, 1979: 65).

As duas citações imediatamente acima são bastante cla-ras, e a leitura que delas podemos fazer é quase direta. Passe-mos, pois, a tecer algumas considerações sobre a citação an-terior de Lakatos. O que ele tem em mente, quando interpre-ta a concepção de Popper sobre o desenvolvimento da ciên-cia como uma tal do tipo revolução permanente, é que essa per-manência se baseia na necessidade de que sempre surjam, noprocesso do fazer ciência, conjecturas ousadas e audazes, ne-cessariamente acompanhadas de refutações austeras (ou ten-tativas de refutações), e tudo isso em nome de uma rigorosahonestidade intelectual na qual nenhum compromisso deveser mantido a não ser aquele da busca austera e incessante nocaminho da verdade. Segundo Popper, marxistas e psicana-listas ao tentarem, por meio de evasivas ad hoc, salvar as suasteorias, mostraram não possuir a suficiente austeridade e, porconseguinte, isso denotaria o caráter não-científico de seuspostulados. Popper considera que, para psicanalistas e mar-xistas, os compromissos menores e pouco nobres se sobrepu-jaram em relação ao único compromisso aceitável, que é o dabusca austera e incessante da verdade, ainda que nunca sepossa saber ao certo se essa foi ou não alcançada. Daí o cará-ter eternamente conjectural das nossas teorias. Assim, Lakatosinferiu que, para Popper, compromisso seria crime.

Não é preciso dizer que uma opinião assim tão radicalsuscitou um grande número de críticas, pois com tal relato a

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atividade científica (que evidentemente não é aquela dos ci-entistas mal-ensinados da ciência normal kuhniana) podeser quase identificada com a prática ou, pelo menos, comuma das possíveis práticas, a da honestidade intelectual.

— Ora, mas por que os cientistas, mais do que os ou-tros mortais comuns, praticariam conjecturas ousadas e refu-tações austeras com tanta honestidade intelectual?

Em um livro recentemente publicado (Bastos Filho:1999a), analisamos o problema sob um de seus possíveisaspectos. Na nossa opinião, esse tipo de “falseacionismo”(critério de refutabilidade) — o “falseacionismo” ingênuo— não é aplicável, pelo menos em larga escala, pois há asirremovíveis vicissitudes humanas que sempre levam o ci-entista a acreditar no aspecto eternamente válido de suascaras teorias; isso tem lugar por razões tanto internas quan-to externas, principalmente quando a exposição, de peitoaberto, à crítica (rigorosa austeridade das refutações) seriauma tendência oposta à necessária competição no seio doestablishment, a fim de que o cientista não se deixe sucum-bir.

Mas voltemos à questão segundo a qual, uma vez ad-mitido o relato kuhniano, como seria possível a uma comu-nidade acostumada com o dogma passar a exercer a crítica,em vista do surgimento de um número insuportavelmentegrande de anomalias. Ora, Popper reconhece que a ciêncianormal existe e que ela é praticada por gente dogmática,mal-ensinada, em relação à qual devemos ter pena devido àsua enorme pobreza de espírito. Trata-se, outrossim, de umfenômeno tanto perigoso quanto deprimente. No entanto, efelizmente, não existe apenas esse tipo de gente. Por isso,Popper escreve:

“Afirmo que entre o ‘cientista normal’ de Kuhn e o seu ‘cien-tista extraordinário’ há muitas gradações e é preciso que haja.Tome-se Boltzmann, por exemplo; haverá poucos cientistasmaiores do que ele. Dificilmente, porém, se pode dizer quesua grandeza consiste em haver ele preparado uma revolu-

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ção importante porque era, em extensão considerável, se-guidor de Maxwell. Mas estava tão longe de ser um ‘cientis-ta normal’ quanto se pode estar; lutador corajoso, resistiu àmoda imperante de seu tempo — moda que, a propósito, sóimperou no continente e teve pouco seguidores, naquelaépoca, na Inglaterra.” (Popper, 1979: 67)

Popper critica a divisão kuhniana entre “ciência nor-mal” (dogmática) e “ciência extraordinária” (crítica) e aduzo exemplo emblemático de Boltzmann, que não se adapta-ria a uma divisão estrita entre essas duas categoriaskuhnianas. Mais adiante, Popper, argumenta que o relato“kuhniano” de períodos normais regidos por um paradigma,seguido de outro de revoluções excepcionais, se adaptaria àastronomia mas não à evolução da teoria da matéria nem àevolução da teoria das ciências biológicas a partir de Darwine de Pasteur. Argumenta, ainda, Popper, e como um contra-exemplo ao relato de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciên-cia, que desde a antigüidade coexistiram sempre três tiposde teorias dominantes, que historicamente competiram en-tre si, a saber, as teorias atômicas, as teorias da continuida-de e, ainda, as teorias que tentavam combinar e conciliar asteorias dos dois primeiros tipos. Quanto ao aspecto dodogmatismo, Kuhn e Popper têm diferentes versões a respei-to do mérito da questão. Enquanto, para Kuhn, dogma éapanágio da ciência normal, pois somente assim os seus pra-ticantes se ateriam com a devida fé à disciplina paradigmá-tica em prol do acúmulo do conhecimento normal, paraPopper, embora a atividade científica genuína seja necessa-riamente crítica, devemos nos ater a uma pequena dose dedogmatismo, a fim de que não venhamos a nos entregar comdemasiada facilidade aos argumentos daqueles que defen-dem teorias rivais em relação às nossas: “Se nos sujeitarmosà crítica com demasiada facilidade, nunca descobriremosonde está a verdadeira força das nossas teorias”.

Vemos, portanto que, enquanto para Kuhn, o dogma éo cerne da ciência normal, para Popper é necessária umapequena dose de dogma, apenas como um mínimo de con-

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vicção necessária para o enfrentamento. Neste estágio, é in-teressante que o nosso estudo não se restrinja ao debate ape-nas no viés dos autores acima. É pois possível identificar,antes de Kuhn, pareceres muito críticos sobre a comunida-de científica e suas práticas. O parecer do filósofo espanholOrtega y Gasset, o qual chamou bastante a atenção do físicoSchrödinger, nos parece relevante no contexto da presentediscussão.

Sobre um parecer de Ortega y Gasset

Algumas décadas antes de Kuhn, o filósofo espanholOrtega y Gasset — o filósofo da razão vital — escreveu umlivro intitulado La rebelión de las masas, no qual encontra-seum primeiro capítulo de título sugestivo La barbarie del“especialismo”, cujo conteúdo revela-se muito crítico em re-lação a uma atitude alienante que colocaria em perigo a so-brevivência da verdadeira civilização. Vejamos, pois, as suaspalavras; Ortega descreve um “tipo de cientista sem prece-dentes na história”:

“Ele é uma pessoa que, de todas as coisas que alguém verda-deiramente educado deve saber, é familiar apenas com umaciência particular e mesmo assim, desta ciência, apenas umapequena parte é conhecida por ele, a qual é a que ele própriose encontra pesquisando. Ele chega ao ponto de proclamarcomo virtude o fato de não levar em conta tudo aquilo quese encontra fora do estreito domínio por ele cultivado, e acusacomo diletantismo a curiosidade que tem por objeto a sínte-se de todo o conhecimento. Isso chega a passar a idéia deque ele, isolado na estreiteza de seu campo de visão, real-mente é bem-sucedido na atividade de descobrir fatos no-vos e promover sua ciência (a qual ele dificilmente sabe) nadireção do pensamento humano integrado — o qual ele pró-prio ignora com total determinação. — Como algo assim foipossível e como isso continua a ser possível? Nós devere-mos sublinhar com ênfase o inusitado deste irrecusável fato:a ciência experimental tem progredido, em considerável

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extensão, pelo trabalho de pessoas extraordinariamente me-díocres e, até mesmo, abaixo da mediocridade” (Ortega yGasset apud Schrödinger, 1996: 110-111)1.

Vejamos algumas considerações sobre esta passagemde Ortega y Gasset. Ora, tendo em vista que La rebelión de lasmasas foi publicado pela primeira vez em 1930, é de se su-por que o cientista a que Ortega se refere seja o daquela épo-ca. No entanto, tendo em vista o exponencial crescimentonumérico das comunidades científicas dos países tanto cen-trais quanto periféricos, a situação parece ter se agravadosobremaneira, principalmente no período posterior ao dasegunda guerra mundial. A proliferação, até certo pontodesenfreada, de comunidades científicas em todas as partesdo mundo (tanto centrais quanto periféricas) nos colocadiante de severas perplexidades, principalmente se compa-rarmos a situação de então com a situação do século XVII, emesmo com a situação do século XIX, em que o número decientistas era significativamente menor. Cremos que a de-mocratização da atividade científica seja uma boa coisa, masnão a sua banalização, no sentido de uma radical degrada-ção do pensamento. Assistimos perplexos a duas propen-sões antitéticas: de um lado, uma proliferação diversificadorade comunidades científicas, o que é uma coisa salutar, poisenriquece e complexifica os problemas e com eles o própriopensamento; mas, de outro lado, assistimos a um fechamentoe a uma banalização de procedimentos e atitudes, que pare-cem não caminhar para um bom termo, na medida em quecontribuem para que partes e subpartes do saber não se co-muniquem entre si. O texto de Ortega suscita problemasmuito importantes como:

• Seriam os cientistas estreitíssimos, tais como os des-critos por Ortega, aqueles que integrariam o conhe-cimento?

• Em caso afirmativo, como isso seria possível?

1. O texto em português, que constitui a tradução desta citação a partir doinglês, é de nossa responsabilidade.

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• Seriam, pelo contrário, os cientistas extraordináriosaqueles que o fariam, com base na acumulação legadapelos cientistas estreitos?

• Não seriam os cientistas extraordinários capazes desuperar a mera acumulação, realizar a crítica e dar osalto de qualidade?

• Ou seria, ainda, uma “mão invisível” ordenadora,tal como a tão persuadida “mão invisível” do merca-do dos neoliberais?

Claro está que estas questões suscitam os problemasdas características sobre o desenvolvimento da ciência, ouseja, remetem para, entre outros, os estudos de história e defilosofia da ciência. Em alguma medida, essa tarefa conti-nuará a ser tratada nas próximas seções.

Das gradações entre o normal e o extraordinário

Admitamos, muito provisória e meramente, a título deexercício de reflexão, a fórmula supersimplificadora e alta-mente reducionista:

D + C = 1

em que D denota dogma e C denota crítica. Uma adoção des-se tipo parte do pressuposto de que dogma e crítica sejamcategorias perfeitamente definíveis e identificáveis, tais comoo são cara e coroa numa moeda. Para moedas não viciadas,as possibilidades são igualmente prováveis e, assim, a pro-babilidade “a priori” de que, em uma dada jogada, venha-mos a obter a possibilidade cara é de ˚, ou seja, de 50%, queé a mesma probabilidade “a priori” de que venhamos obter,em uma dada jogada, a possibilidade coroa. A probabilida-de “a priori” de que venhamos, numa dada jogada, obterindistintamente cara ou coroa é de ˚ + ˚ = 1, ou seja, de100%, uma vez que todo o universo de possibilidades se

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encontra contemplado. Aqui, naturalmente, não estamosconsiderando como integrante desse universo a hipóteseremotíssima de, numa dada jogada, a moeda cair em pé. Evi-dentemente, no caso da fórmula considerada, as duas “pos-sibilidades” não são, necessariamente, igualmente prová-veis. Em outras palavras, há infinitos pares de valores {D,C} obedecendo à fórmula. Aqui, 0 ≤ D ≤ 1 e 0 ≤ C ≤ 1. Nocaso de nossa fórmula acima, D e C não são categorias fáceisde se discernir no mesmo nível em que podemos fazer paracara e coroa, logo o pressuposto em que a fórmula se baseiajá se encontra em dificuldades; mas vamos esquecer, porenquanto, essa debilidade. Suponhamos grosseiramente quea ‘probabilidade’ de uma certa atitude científica, por exem-plo, obedeça à fórmula acima. Se {D = 0,01 e C = 0,99} (casoI), teremos o caso de alta probabilidade de atitude crítica e,por conseguinte, de baixa probabilidade de atitudedogmática. Se {D = 0,99 e C = 0,01} (caso II), teremos, pelocontrário, uma alta probabilidade de atitude dogmática e,conseqüentemente, uma baixa probabilidade de atitude crí-tica. Se {D = 0,50 e C = 0,50 } (caso III), teremos iguais proba-bilidades de atitude crítica e de atitude dogmática. Alémdos três casos listados acima, teremos uma gama infinita depossibilidades, tais como {D = 0,77 e C = 0,23}, {D = 0,14 e C= 0,86} etc.

Ora, se tentarmos, grosso modo, interpretar essa gamainfinita de possibilidades como as possíveis gradações en-tre o normal e o extraordinário, diríamos que, a despeito des-sa enorme simplificação que encontra debilidades de ori-gem, o caso I seria mais afeito ao cientista extraordinário e ocaso II seria mais afeito ao cientista normal de baixa quali-dade. Dir-se-ia, ainda seguindo esta lógica tosca, que o casoIII seria o de um cientista, talvez, normal, de qualidade in-termediária, o qual conjugaria, em iguais doses, crítica edogma. Ora, é fácil de ver que um esquema como o descritoacima não pode se sustentar. Vejamos por que. Tomemos ocaso III. Ora, em lugar de classificarmos um cientista desteperfil como um cientista normal, de qualidade razoável, po-

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deríamos dizer que este perfil também se adapta a um cien-tista extraordinário, que tanto reúna doses relativamentealtas de dogmatismo (alta convicção de seu programa depesquisa científico a despeito de percalços), como doses re-lativamente altas de crítica. A questão é que, em uma fór-mula supersimplificadora como a que estamos consideran-do, não entram formidáveis ingredientes, como a imagina-ção e a criatividade. Decerto que a crítica ajuda tanto a imagi-nação quanto a criatividade; no entanto, crítica apenas nãobasta. Para a atividade científica, notadamente para aquelade boa qualidade, talvez imaginação e criatividade sejammais importantes do que crítica, o que não implica dizerque o papel da crítica não seja fundamental.

Mas vejamos o caso I. À primeira vista, tal como acimanos referimos, este caso se adaptaria a um cientista extraor-dinário, dado o alto valor para C (C = 0,99). Mas novamenteaqui nos encontramos em uma situação ambígua, pois estecaso pode se aplicar a um cientista “normal” (não tãokuhniano assim) que seria dotado de alta capacidade críticae de baixíssima capacidade dogmática, mas que, por limita-ções pessoais de imaginação e de criatividade, não pudessedar o salto que caracterizaria o trabalho extraordinário.

A discussão, até aqui, levou-nos ao resultado segundoo qual as variáveis imaginação e criatividade devem, necessa-riamente, ser levadas em conta.

Agora, vamos nos concentrar na seguinte questão:Se, no contexto de uma fórmula super simplificadora

como a escrita acima, já nos deparamos com a dificuldadede identificar uma linha demarcatória clara entre dogma ecrítica, o que diríamos se introduzíssemos imaginação ecriatividade no cômputo da “equação”?

Tudo indica que esse caminho não nos vai levar a mui-to longe. Mas essa discussão serviu para mostrar que as di-versas gradações que, segundo Popper, devem existir entreos cientistas normal e extraordinário de Kuhn, precisam ser

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vistas com maior abrangência, fazendo entrar em conside-ração categorias fundamentais, como imaginação e criatividade.

Outro argumento em prol da existência dessa gradaçãoé encontrada nos próprios perfis dos membros que compõema comunidade científica. De fato, no seio da comunidadecientífica são encontrados cientistas de praticamente todosos perfis. Vejamos alguns deles:

[P1] Há aqueles que, por decisão programática de car-reira, concentram-se no uso exclusivo de técnicas experimen-tais ou teóricas. No curso de suas respectivas atividades,jamais aparecem questionamentos sobre as bases conceituaisem que essas técnicas repousam, nem algum princípiosubjacente a essas técnicas. Com maior razão, cientistas desseperfil, com grande probabilidade, a não ser em certos casoscada vez mais raros de temperamento pessoal cordial,envidarão esforços que redundem em ações hostis em rela-ção àqueles que se interessem por questões políticas, edu-cacionais, históricas e epistemológicas. Cientistas desse perfilproduzem um grande número de papers em série e se orgu-lham de maneira apologética de suas respectivas especiali-zações.

[P2] Há um segundo tipo de cientista, cujo perfil é in-termediário: admite a crítica e também é suceptível de con-siderar questões mais abrangentes, transversais, multidisci-plinares e epistemológicas. No entanto, todo esse tipo deatividade é relegada ao estatuto de hobby, passatempo, ouentão é deixada para o período que sucederá a aposentado-ria, no qual as pressões de carreira terão se diluído sobre-maneira. O cientista deste perfil também se concentra, pordecisão programática de carreira, em resultados superespe-cializados, mas a qualidade de seu trabalho está moduladapor alguma dose de crítica, o que o distingue do cientista deperfil [P1], que apresenta comportamento absoluta e rigoro-samente acrítico.

[P3] Há um terceiro tipo de cientista que combina críti-ca aguda e altamente qualificada (às vezes até heresia de

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boa qualidade) com interesses de carreira, sendo esta, viade regra, profundamente conturbada por conflitos de ordensdiversas. Ainda que o talento de um cientista desse perfilpossa variar muitíssimo, um valor moral intrínseco, carac-terizado por uma coragem singular, o distinguirá dos de-mais descritos acima. Embora o valor intelectual de um cien-tista desse perfil seja muito variado, o que garantirá o seusucesso não se reduz simplesmente ao seu estrito méritoacadêmico nem à força de seus argumentos. As alianças ecorrelações políticas poderão lhe ser favoráveis, contráriasou, ainda, equilibradas, e isso terá papel fundamental naconsecução de seus objetivos.

[P4] Há o cientista criterioso (crítico), que trabalha se-riamente em questões bem mais restritas à sua ciência espe-cífica e que tem abertura para questões de outro viés, masque, por decisão programática de carreira, não se ocupa dequestões epistemológicas. É possível encontrar indivíduosdeste perfil com simpatias veladas ou, até mesmo, um pou-co mais do que simplesmente discretas, por questõesepistemológicas. É possível, ainda, encontrar nesse perfilatitudes não tão simpáticas em relação aos colegas que ado-taram tratar seriamente dos problemas filosóficos suscita-dos pela ciência, mas as eventuais hostilidades em relaçãoaos cientistas/filósofos são, via de regra, muito menos in-tensas do que aquelas dirigida aos cientistas/filósofos pe-los cientistas de perfil [P1]. Esta constatação é relevante, mashá exceções.

[P5] Há o cientista extraordinário. Criativo, imaginati-vo, revolucionário. Lança novas luzes e contribui decisiva-mente para o conhecimento. É uma categoria muitíssimomais rara, mas de grande importância.

Poderíamos, ainda, listar uma série de outros perfis quecombinem valor intelectual, correlação política, penetraçãoe participação nos órgãos financiadores, fator de sinergia aoagrupar quadros e formar pessoas para o ensino e para apesquisa, lideranças de vários tipos, fator desagregador,

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competição de programas de pesquisa, luta hegemônica, etc.No entanto, os perfis já listados até então nos satisfazem, nosentido de mostrar que essas gradações, de fato, necessaria-mente existem. Ademais, a situação ainda se torna mais com-plexa quando nos lembramos de que há diversas comuni-dades científicas de diferentes vocações, interesses e teoresque têm padrões muito específicos de avaliação do prestí-gio acadêmico. A instituição da ciência bem como a própriacomunidade que a produz constituem-se em fenômenos pordemais complexos, os quais não parecem ser dóceis aesquematizações supersimplificadoras. O surgimento de no-mes seminais e extraordinários é fruto de uma confluênciade fatores, e o termo, talvez, mais adequado para expressaresta confluência seja complexidade.

Alguns aspectos da questão da autonomia

Do que foi discutido na seção passada, tivemos umaidéia bastante panorâmica de alguns perfis possíveis de cien-tistas. Embora tenhamos traçado um quadro muito incom-pleto e esquemático, ficou claro que, daquilo que pudemosdepreender da descrição sobre possíveis gradações de per-fis científicos, não podemos aceitar que o dogma tenha deser necessariamente apanágio no seio do establishment cien-tífico. No entanto, Kuhn não deixa de ter parte da razão. Defato, os cientistas de perfil [P1] da seção passada constituemo grupo que mais se adapta à categoria de ciência normal debaixa qualidade. Esse grupo é numerosíssimo, talvez a gran-de maioria dos cientistas. Não obstante o fato de que essescientistas sejam “necessários” numa lógica perversa de meraacumulação e trabalho duro, eles, sem dúvida, constituemum perigo para a atividade racional sadia, no sentido deque, independentemente, apontaram e deram ênfase inte-lectuais como Ortega y Gasset e Popper.

Gostaríamos, agora, de deslocar o foco de nossa dis-cussão para o problema, necessariamente complexo, da

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autonomia. A título de mote, alguém uma vez nos disse quea estrutura da instituição científica hodierna, bem como devárias outras instâncias congêneres, é fortemente embasadanuma rígida hierarquia. Essa pessoa descreveu essa hierar-quia em termos bem-humorados, e até mesmo em formaanedótica, da seguinte maneira: os grandes chefes são aque-les que “dão esporro” nos chefes; os chefes são aqueles que“dão esporro” nos chefes menores; os chefes menores sãoaqueles que “dão esporro” nos pós-doutores, que, por suavez, “dão esporro” nos doutores, que por seu turno “dãoesporro” nos doutorandos, os quais “dão esporro” nos mes-tres, que “dão esporro” nos mestrandos, que por sua vez“dão esporro” nos bacharéis, que “dão esporro” nos licen-ciados ... e assim por diante. Note a ideologia sujacente doestablishment: a primazia conferida à pesquisa em relação aoensino, a qual será contextualizada no final da seção 6.

Este relato bem-humorado combina muitíssimo bemcom uma charge que tivemos oportunidade de ver afixadaem um mural de uma importante universidade brasileira.Tratava-se de alguns poucos búfalos que corriam desen-freadamente, seguidos cegamente por um número maior,seguidos cegamente por um número ainda mais numeroso,e assim sucessivamente. Os búfalos do pequeníssimo grupoda linha de frente perguntavam entre si: Será que eles sa-bem que nós não temos a mínima idéia de para onde va-mos?” A turma da linha de frente era indicada na chargecomo “orientadores”, o grupo intermediário como “douto-randos” e o grupo majoritário como “mestrandos”.

Se levarmos em conta tais descrições, ainda queanedóticas, mas nem por isso desprezíveis, diríamos que aestrutura hierárquica a que estão submetidas as comunida-des científicas de diferentes teores e índoles é tal que os cri-térios de liderança subjacentes, e que aqui transparecem comnitidez, são, em considerável medida, profundamente polí-ticos e, de uma forma específica, de política consubstanciadapela capacidade de “dar esporro” e de coagir e compelir su-bordinados a fim de que sejam asseclas empedernidos e se-

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quazes cegos. A propósito, não convém esquecer de que apolítica trata de poderes e de suas correlações. Em outraspalavras, o critério de liderança política (capacidade de “daresporro”) suplantaria a capacidade intelectual. Evidente-mente, a expressão “dar esporro” deve ser encarada meta-foricamente, mesmo porque se assim não fosse pessoas dig-nas e dotadas de auto-estima e que não queiram nem darnem levar esporro de quem quer que seja já estariam defini-tivamente inaptas para a prática da ciência, pelo menos den-tro de sua institucionalização. Tudo isso é especialmenteinstrutivo para mostrar que uma grande confluência de fa-tores de diversos teores, e não apenas o mérito científicorestrito, entram no cômputo desta complexa malha que de-finirá as lideranças e a estrutura hierárquica dentro de umadada comunidade científica.

No intuito de ilustrar a questão com o exemplo de umcientista extraordinário, tão extraordinário quanto os me-lhores cientistas puderam ser, citaríamos Einstein. Vejamosse Einstein pode ser visto como um grande chefe em umperfil de liderança que seja, a um só tempo, científico epolítico. David Lindley emitiu a esse respeito o seguinteparecer:

“Em virtude de seus interesses terem divergido largamenteda corrente principal da física, Einstein não gerou uma linhade seguidores intelectuais. Ele é reverenciado, mas diferen-temente de Niels Bohr, Wolfgang Pauli, Werner Heisenberge outros fundadores da física do século XX, ele nunca foiuma figura de orientador para pesquisadores de uma novageração” (Lindley, 1993: 3-4)2.

Isso combina com um parecer do próprio Einstein. Adespeito da grande e merecida admiração que praticamentetodas as pessoas sensatas tinham por ele, e da justa reve-rência que lhe prestavam, Einstein afirmou: “Aqui em

2. O texto em português, que constitui a tradução desta citação a partir doinglês, é de nossa responsabilidade.

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Princeton me consideram um velho maluco” (Born apudSelleri, 1986: 26)3.

Parte da marginalização sofrida por Einstein, por maisparadoxal que este termo soe aos menos avisados, deveu-seà sua crítica afiada à Escola de Copenhagen (Selleri: 1990).Numa carta escrita no dia 10 de abril de 1938 a seu amigoSolovine, Einstein critica severamente a atitude acrítica(dogmática) de grande parte da comunidade científica, aqual, a fim de estar sempre na moda, engoliria as maioresbarbaridades. Em relação à atitude modista daqueles queaceitaram dogmaticamente coisas como a “dissolução darealidade”, (Bastos Filho: 1999b), Einstein chegou acompará-los com cavalos. Vejamos, a propósito, o texto deEinstein:

“A necessidade de conceber a natureza como realidade ob-jetiva era tida como um preconceito obsoleto, enquanto a re-cusa de tal necessidade era declarada virtude pelos teóricosdos quanta. Os homens se mostravam mais suceptíveis deserem influenciados do que cavalos, e cada época é domina-da por uma moda, resultando disso que muitos não se dãoconta do tirano que os domina” (Einstein, 1993: 85)4

É exatamente contra uma tirania parecida que se ma-nifestaram Pascal (Pascal, 1988: 123-124) e Kant (Kant apudPopper, 1982: 204-205). Pascal, quando argumentou que adignidade do homem reside no pensamento, e Kant, quan-do interpretou o espírito do Iluminismo como aquele doSapere Aude. Kant (Kant apud Popper, 1982: 209) foi aindamais longe, quando reivindicou a necessidade da autono-mia até em uma situação extrema (Kant praticou aqui umexercício de ficção para levar adiante o seu raciocínio) emque o próprio Deus, em pessoa, aparecesse; ainda assim,

3. O texto em português, que constitui a tradução desta citação a partir dofrancês, é de nossa responsabilidade.

4. O texto em português, que constitui a tradução desta citação a partir doinglês, é de nossa responsabilidade.

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segundo Kant, isso não dispensaria a quem quer que seja dadecisão livre e autônoma (sentido kantiano) e digna (sentidopascaliano). Em colaboração com Erinalva Medeiros(Medeiros et al., 1999), mostramos tanto esses quanto ou-tros aspectos da autonomia, inclusive aquele segundo o qualtudo isso não pode se reduzir a decisões puramenteegocêntricas, pois o homem é livre e autônomo na medidaem que interage e se solidariza com os outros e, por conse-guinte, a autonomia somente pode ser vista nessa interação.A autonomia constitui-se numa importante categoriaconceitual e tem de ser vista em conjunto com uma partici-pação solidária, com a liberdade de expressão, com o exer-cício da auto-estima, com a educação e com a ética. A auto-nomia é um requisito ético fundamental para quem querque seja: o professor, o pesquisador, o cidadão, a esposa, oesposo, os filhos..., etc. De outra maneira, crítica e liberdadeseriam termos sem sentido.

Argumentando nesta linha, Paulo Freire escreveu o li-vro Pedagogia da autonomia com o subtítulo Saberes necessá-rios à prática educativa. No capítulo 2, intitulado Ensinar nãoé transferir conhecimento, Freire escreve:

“Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criaras possibilidades para a sua própria produção ou a sua cons-trução. Quando entro em uma sala de aula, devo estar sendoum ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dosalunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquietoem face da tarefa que tenho — a de ensinar e não a de trans-ferir conhecimento” (Freire, 1999: 52).

O que Freire pretendeu ressaltar com isso é que a prá-tica do ensinar jamais poderá ser reduzida a uma mera trans-ferência similar a de um registro de água que pode ser aber-to ou fechado a qualquer tempo. Essa crítica se assemelhaàquela que é feita aos empiristas empedernidos, que redu-zem o conhecimento às impressões registradas em uma ta-bula rasa. O ensino autêntico requer concepções de mundo,requer idéias tanto a priori quanto a posteriori, requer respei-

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to mútuo, liberdade de expressão, preservação e cultivo daauto-estima de todos os envolvidos no processo educacio-nal e princípios éticos que rejam a autonomia de cada um ede todo o grupo envolvido.

Na seção 2.3 do capítulo 2, Freire escreve: “O respeito àautonomia e à dignidade de cada um é um imperativo éticoe não um favor que podemos ou não conceder uns aos ou-tros” (Freire, 1999: 66).

E, mais adiante, Freire escreve:

“O professor que desrespeita a curiosidade do educando, oseu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, maisprecisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor queironiza o aluno, que o minimiza, que manda que “ele se po-nha em seu lugar” ao mais tênue sinal de rebeldia legítima,tanto quanto o professor que se exime do cumprimento deseu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se fur-ta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente àexperiência formadora do educando, transgride os princípiosfundamentais éticos de nossa existência” (Freire, 1999: 66).

Independentemente de a qual ensino Freire tenha sereferido (superior, médio ou primário), repare que tudo issocontrasta flagrantemente com a camisa-de-força que restrin-ge gravemente a concepção de mundo do cientista normalkuhniano. E, mais uma vez, o conflito se manifesta com to-das as letras.

Aspectos éticos e políticos da questão da autonomia

Poucas evidências empíricas são tão consensuais quan-to as discriminações que o ser humano tem exercido em re-lação ao próprio semelhante, que, nos casos mais dramáti-cos e também nos mais trágicos, chegam ao cúmulo de fazercom que o semelhante seja visto como dessemelhante, comoestranho à sua própria espécie. Trata-se de um problemagravíssimo. Houve épocas, contudo, em que se acreditou

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que a força da razão mudaria drasticamente essa perversatradição. No plano político, ou seja, no plano dos poderes ede suas correlações, à vontade absoluta do monarca (abso-lutismo), que se tornou emblemática por meio da expressãol’état c’est moi, foi contraposta uma nova correlação de po-deres na qual se propugnava, programaticamente, uma so-ciedade livre, fraterna e igualitária. No plano do espírito, aliberação das forças criativas da razão, interpretada por Kantcomo o Sapere Aude, se constituía na própria e genuína auto-nomia intelectual das pessoas. Evidentemente, a autonomiaintelectual e também a autonomia política não requerem,nem podem requerer, a ausência de qualquer influência. Sema tradição e, em certo sentido, sem a influência de váriastradições, nada somos e nada seremos. Portanto, a autono-mia não se constitui na recusa em ser tocado pela tradição,mesmo porque trata-se de uma coisa impossível. A autono-mia passa, sim, pela faculdade de adotar a tradição no queela tiver de justo ou de recusá-la, e principalmente demodificá-la no que ela tiver de injusto. Mahatma Gandhiparece ter captado esse espírito ao afiançar:

“Eu não quero que minha casa seja fechada com paredes portodos os lados, e que minhas janelas fiquem trancadas. Euquero que as culturas de todos os lugares soprem sobre mi-nha casa da forma mais livre possível. Mas eu também merecuso a ser carregado por qualquer uma delas” (Gandhi apudPerez de Cuéllar, 1997: 98).

Se o otimismo iluminista do final do século XVIII ge-rou tanto a esperança depositada no poder da ciência du-rante o século XIX, quanto a esperança otimista de trans-formação do ser humano por ocasião da revolução socia-lista russa na segunda década do século XX, agora, já naentrada do século XXI, essa esperança parece diluir-se.Apesar de tudo, é necessário manter acesa a chama da uto-pia, pois a função desta não é a sua plena realização — seassim fosse, não seria utopia —, mas sim prover condiçõesde espírito para trabalharmos incessantemente, com âni-

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mo sempre novo, por um mundo menos pior. Voltemos aoquadro de gravidade. As duas grandes Guerras Mundiaisocorridas no século XX, um sem-número de crimes he-diondos, como massacres, torturas, chacinas, campos deconcentração, racismo, guerras étnicas, guerras high tech,guerras neocolonialistas e imperialistas, entre outras ma-zelas, transformaram o século que ora finda em, talvez, omais sangrento de todos. Acrescente-se a isso a tendênciaa uma globalização perversa, caracterizada por umainterdependência das economias nacionais, por uma fortee crescente hegemonia do capital financeiro, por um avan-ço tecnológico altamente informatizado e robotizado quedispensa grandes contingentes de mão-de-obra. Disso re-sulta uma acentuada tendência ao desemprego; uma cres-cente concentração de renda em praticamente todo o mun-do; a marginalização de um continente quase inteiro (comoé o caso da África); a escravidão dos povos subdesenvolvi-dos pelos serviços da dívida externa; o enfraquecimentodos Estados nacionais; o aumento da pobreza e da miséria;o possível aumento das desigualdades regionais; a debili-tação dos vínculos federativos por causa da necessidadeimposta pelo modelo econômico perverso, adotado no sen-tido de estimular exportações em lugar de manter a soli-dariedade federativa por meio do mercado interno; o des-prezo pela educação e pela saúde; o desprezo pelos inte-resses dos pobres, etc. Pode-se acrescentar, ainda, o con-sumo intensivo dos recursos naturais solicitados por ummodelo econômico dominante dos países ricos e a enormedegradação causada aos meios de sustentação da vida (qua-lidade do ar, das águas, das terras), o que acarreta enormedegradação ambiental. Se compararmos esse espantosoquadro de horror com aquele descrito pelos relatos de FreiBartolomeu de las Casas (Bartolomeu de las Casas: 1996) edo próprio Cortez (Cortez, 1997), por ocasião da conquistada América espanhola na primeira metade do século XVI,podemos ver que, embora as formas de praticar a opressãosejam diferentes, o espírito exterminador de povos e do

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futuro das crianças continua sendo o mesmo. Quanto à ciên-cia e à tecnologia, podemos dizer que, se elas realmentecontribuíram para aliviar a canseira humana para aquelecontingente de incluídos socialmente, que utiliza aviões ecarros particulares, elas não foram capazes de contribuirdecisivamente para a erradicação da fome e da exclusãosocial no mundo. Muito pelo contrário, a alta tecnologiade hoje constitui um dos fatores de aumento do desempre-go e da concentração de renda, acarretando, por conseguin-te, um aumento da exclusão social. Evidentemente, isso nãoimplica que a alta tecnologia não deva ser usada nem queela não possa desempenhar um papel importante em umprograma de erradicação da pobreza, uma vez alteradasradicalmente as prioridades sociais e o modelo econômicoadotado. Este, certamente, é o caso do programa deerradicação da pobreza liderado por Cristovam Buarque(Buarque: 1999), o qual é baseado na bolsa escola. Esse pro-grama inverte a lógica economicista do modelo econômicodominante em curso. Em lugar de perguntar qual é o custoda erradicação da pobreza, dever-se-á perguntar pelo cus-to da manutenção dos privilégios. Trata-se de um progra-ma viável, que requer uma coalizão ética, necessariamentesuprapartidária, e que implique pilares para assegurar asua continuidade e sustentação, pois provavelmente de-manda mais de uma década ininterrupta de esforços. É umprojeto que, caso seja implantado, e esperamos que o seja,custará na ordem de 2% de um PIB como o brasileiro, hojeem torno de 900 bilhões de dólares, o que é perfeitamentecompatível com as dimensões da economia brasileira,principalmente tendo em vista os seus relevantes efeitossociais.

Mas vejamos agora como o establishment científico dofinal do século XX responde ao programa iluminista de li-beração de suas potencialidades criativas e ao exercício desua autonomia intelectual. A propósito, citaremos um textode um livro, publicado em 1956, sobre a situação dos Esta-dos Unidos. Embora seja o relato de um livro publicado há

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44 anos, e os números atuais sejam diferentes, a atualidadede seu teor qualitativo continua, aparentemente, a mesma.Seja, pois, o seguinte texto:

“Dos 4 bilhões de dólares que no momento se gastam compesquisas pelo governo, indústrias e universidades, somente150 milhões — menos de 4% — se destinam ao trabalho cria-dor. A maioria absoluta das pessoas envolvidas na pesquisa,além disso, deve trabalhar em equipes nas quais não possuemautonomia alguma, e somente uma fração insignificante estáem condições de fazer trabalho independente. Das 600.000pessoas engajadas em trabalho científico, calcula-se que nãomais que 5.000 tenham a liberdade de escolher os seus pró-prios problemas” (White Jr. apud Alves, 1987: 196).

Se já sabemos que a ciência, por si só, não é capaz decontribuir decisivamente para o programa de felicidade dospovos, deveremos, a julgar por este quadro deprimente des-crito por White Jr., ser forçados a concluir que a instituiçãoda ciência não propicia sequer a autonomia intelectual paramais de 99% do establishment. Em outras palavras, somenteum contingente que representa menos de 1% pode escolheros seus próprios temas, o que leva a crer que a instituiçãociência está repleta de cientistas normais do perfil [P1] des-crito na seção 4. Mas não convém perder o equilíbrio e emi-tir pareceres extremistas. A ciência alcança, apesar dos pe-sares, conquistas cognitivas de extraordinário valor. A si-tuação da segunda metade do século XX parece indicar, noentanto, que, em larga medida, os procedimentos e atitudesda grande maioria de cientistas se distancia sobremaneiradaquilo que se considera como a desejável e genuína atitu-de do educador. Em artigo recente (Bastos Filho: 2000b), ar-gumentamos que uma luta conseqüente por um mundo sus-tentável e justo deve afastar-se, igualmente, de duas atitu-des extremistas caracterizadas, por um lado, pela reaçãoneoromântica que representa uma hostilidade radical à ciên-cia e, por outro, na apologia triunfalista e cega da ciência.No primeiro caso, e na sua forma mais radical, essa hostili-

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dade vai até o ponto de negar, inclusive, o valor do pensa-mento científico. No segundo caso, essa apologia pode fa-vorecer o obscurecimento da crítica levando à reproduçãode valores que podem guardar uma semelhança com algomuito próximo da lógica subjacente ao modelo de desen-volvimento dominante caracterizado pela American way oflife, claramente insustentável, principalmente se conceber-mos um caso hipotético em que tal modelo fosse generali-zado para todo o mundo. E não esqueçamos que esse mode-lo é mantido devido à sustentação que lhe dá um aparatomilitar gigantesco, prática agressiva aos meios de sustenta-ção da vida em vários níveis, desde a enorme utilização deindústrias altamente consumidoras de energia até o seu po-derio destruidor no sentido estrito do termo. Tudo isso re-mete, mais uma vez, à questão da autonomia.

Vejamos um exemplo significativo para os nossos pro-pósitos. Celso Furtado (Furtado: 2000) nos conta que, emmeados do século XX, o paradigma econômico dominanteno Brasil era cultivado por pessoas em torno da liderançade Eugênio Gudim, o qual propugnava o pensamento eco-nômico inglês que seguia a ortodoxia liberal. Em 1947 foifundada a Revista Brasileira de Economia, da Fundação Getú-lio Vargas, no Rio de Janeiro, sob a direção de EugênioGudim e que basicamente se mantinha graças a traduçõesanglo-americanas. O pensamento rebelde, autônomo e he-rético (estamos falando de heresia de boa qualidade) encon-trava sérias dificuldades para se afirmar, pois a validaçãoque asseguraria o seu reconhecimento dependia de crité-rios que não o favoreciam, tais como a aceitação dos artigoscorrespondentes em revistas “classe A”. Muito provavel-mente, os referees dessas revistas não estavam minimamen-te propensos a dar aval e credibilidade a teorias econômicasrivais em relação àquelas afeitas ao paradigma dominante.Em 1950, Celso Furtado e colaboradores fundam a publica-ção Econômica Brasileira. Este evento, e talvez ainda commaior razão a CEPAL, constituíram marcos iniciais de for-

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mação de um pensamento econômico autônomo no Brasil enos outros países da América Latina. Mas demos a palavraao próprio Furtado:

“Cedo percebi que se me atrevesse a usar a imaginação,conflitaria com o establishment do saber econômico da épo-ca. [...] Que tenhamos nos revoltado e começado a usar aimaginação para pensar por conta própria é algo que não éfácil de explicar. Mas a verdade é que isso ocorreu no âmbi-to da América Latina: passamos a identificar os nossos pro-blemas e a elaborar um tratamento teórico dos mesmos. Ha-via uma realidade histórica latino-americana, e mais parti-cularmente brasileira a captar. A confiança em nós mesmospara dar esse salto tornou-se possível graças à emergênciada CEPAL no imediato pós-guerra. Mas não basta armar-sede instrumentos eficazes. Para atuar de forma consistenteno plano político, portanto, assumir a responsabilidade deinterferir num processo histórico, impõe-se ter compromis-sos éticos” (Furtado, 2000: 10).

E, mais adiante: “Nenhuma sociedade consegue livrar-se completamente da ação de heréticos, e nada tem maisimportância na história da humanidade do que a heresia”(Furtado, 2000: 12).

Estes depoimentos primorosos dizem respeito a uma du-pla procura de autonomia. A autonomia legítima do intelec-tual que pensa com a própria cabeça, no dizer que Furtadoatribui a Prebisch, (Furtado, 2000: 15) e a autonomia comoum compromisso com o Brasil e com a América Latina. Am-bos rigorosamente éticos. Essa, sem dúvida, não era uma ta-refa de pouca monta. Havia o confronto com interesses po-derosos, que defendiam idéias como a da economia “refle-xa”, da “vocação” essencialmente e exclusivamente agrícola,da manutenção de nossa dependência do mercado externopela exportação de produtos primários, às quais se contrapu-nham idéias diferentes, como a da defesa da industrializa-ção, do desenvolvimento do mercado interno, de uma expli-cação causal diversa para o fenômeno do subdesenvolvimen-

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to, etc. Contextualizando os nossos argumentos, podemosdizer, em suma, que as discriminações de gênero, raça, opçãosexual, condição periférica, condição regional que alguémpossa vir a sofrer, seguem todas uma lógica dominante per-versa que, no fundo, é a mesma que afeta o trabalho científi-co e o trabalho intelectual de maneira geral. A rebeldia con-tra os ditames do FMI, e a conseqüente adoção de um mode-lo autônomo, obedecem aos mesmos princípios unitários dasrebeldias à la Gandhi, à la Furtado, à la Buarque, à la Einstein,à la Freire e à moda de todos aqueles que querem ser donosde seu próprio destino. Consubstanciaríamos esta tese commais dois argumentos: o manifesto-proposta de Buarque re-quer uma mudança ética que aceitasse a regra da violação daisonomia nas escolas em função da realidade do mercado detrabalho (Buarque, 1999: 73), uma valorização e priorizaçãodas licenciaturas (Buarque, 1999: 82) e uma mudança ética naUniversidade brasileira que implicasse uma reorientação deseu esforço (Buarque, 1999: 81). Isso significa que o combateà pobreza requer uma valorização da educação que vai nadireção contrária ao atual recrutamento acrítico de quadrospara alimentar a ciência normal, consubstanciada na atualprimazia do bacharelado sobre a licenciatura. Isso, em outraspalavras, significa reorientar, de maneira drasticamente in-versa, os mecanismos de prestígio do trabalho acadêmico, oque, por sua vez, significa enorme desafio. A Educação au-têntica e uma ciência crítica e imaginativa constituem o bomcaminho tanto para a eliminação da pobreza quanto para aconquista da autonomia. Os desafios são enormes, e não po-demos dispensar as utopias. Faz-se mister uma grande refor-ma tanto da Universidade quanto do pensamento, no senti-do apontado por Morin (Morin: 1999).

Observações finais e conclusões

Do que discutimos aqui, transparece como notório ofato de alguém que tenha sofrido influências que constituem

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tendências opostas vive, ou pode viver, um conflito. Esteconflito pode ser resolvido de três maneiras: por uma opçãotraumática e corajosa, por acomodação, subserviente ou não,ou por uma espécie de convivência com o dilema corres-pondente.

O conflito se manifesta quando as pessoas são solicita-das a responder a situações que tanto envolvam críticas quan-to fortes convicções dogmáticas. Argumentamos que a ques-tão passa, necessariamente, pelo exercício da autonomia.

Não obstante a genialidade existir, o que pode serconsubstanciado por formidáveis, admiráveis e extraordi-nários feitos que enaltecem o espírito humano, a apologiatriunfalista e cega da genialidade, presente no ensino anti-histórico e artificialmente adulterado por linearizações gros-seiras, constitui manobra política que tem muito a ver coma força e a eficiência da ciência normal, principalmente da-quela do tipo bem rasteiro que denotamos por [P1].

Caracterizando o sistema dominante, há ingredientesexternos e internos e razões que podem ser explícitas, im-plícitas e até mesmo subliminares. Se nos for permitido dara palavra a um sujeito indeterminado que represente o sis-tema dominante, poderíamos ouvir algo assim: “Cientistasextraordinários como Galileu, Newton, Maxwell, Einstein,Pasteur, Darwin e Euclides são raríssimos, e somente gentedesse nível pode realizar contribuições de grande imagina-ção e criatividade seminais e fundamentais a ponto de ca-racterizar trabalho extraordinário. Você é qualquer um, logo,‘ponha-se no seu lugar’ e procure inserir-se na ciência nor-mal, simplesmente sendo um operário do saber. Contente-se em ser apenas mais um”.

Mas, como é fácil de ver, um parecer como o acima emi-tido pelo sujeito indeterminado que representa oestablishment dominante, que provê a formação de quadrospara o ensino e para a pesquisa, não seria o mesmo queemitiriam, por exemplo, Einstein, Pascal, Kant, Paulo Freire,entre muitos outros. Einstein consideraria deprimente ser

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mais suceptível a sugestões modistas do que os cavalos;Paulo Freire consideraria contrária à ética a castração dooutro, subjacente à própria prática rasteira de ciência nor-mal; Pascal consideraria indigno constranger o caniçopensante a renunciar, justamente, ao próprio apanágio de suadignidade, que é o seu pensamento; Kant, não dispensariao uso autônomo do pensamento nem mesmo no caso extre-mo em que Deus aparecesse em pessoa e se revelasse.

Mas o sujeito indeterminado poderia, ainda, contra-ata-car e dizer: “Há uma enorme distância entre a prática e aprédica e Einstein é Einstein. Ele pode fazer o trabalho ex-traordinário, mas de nada adiantariam os seus conselhospara quem não fosse capaz de realizar o trabalho extraordi-nário”. Neste exato momento, a manobra política doestablishment dominante se manifesta com toda a sua opres-são e perfídia. Mas, felizmente, há um erro fundamental nasconclusões do sujeito indeterminado. Esse erro tem conse-qüências perversas. Felizmente, pode ser apontado com todaprecisão. Vejamos como. Efetivamente, ser autônomo e crí-tico não significa fazer o mesmo que Einstein, ou fazer algodo mesmo nível de Einstein e de outros cientistas extraordi-nários. Autonomia requer, necessariamente, a autonomia decada um, o que significa a liberação das potencialidades crí-ticas, imaginativas e criativas de cada pessoa individualmen-te e/ou de grupos de pessoas em sinergia umas com as ou-tras. O que se reivindica é a autonomia com respeito àspotencialidades. E se o universo de possibilidades se encon-tra obstruído, que sejam envidados esforços para a suadesobstrução.

Se não admitirmos isso, estaremos assinando embaixoo atestado de que, com exceção de figuras extraordinárias,ninguém mais poderia ser crítico, imaginativo e criativo; nãoseria possível emitir juízos de valor sobre questões comple-xas nem ter aspirações legítimas de cidadania. Pensar e serfeliz é mais promissor do que simplesmente ser eficiente,principalmente se a lógica da eficiência é perversa.

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Agradecimentos

Agradecemos ao Professor Fernando Lang da Silveira(UFRGS) pelo envio do livro A crítica e o desenvolvimento daciência e à Professora Paula Yone Stroh (PRODEMA/UFAL)que, além da sugestão do livro de Morin, também nos suge-riu que enviássemos o presente trabalho ao Prof. MarcelBursztyn (CDS/UNB).

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A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 93

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CAPÍTULO 4

EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NACONTEMPORANEIDADE: dilema ou desafio?

Elimar Pinheiro do Nascimento

Introdução

O cartesianismo, apesar de vilipendiado aqui e acolá, éum método respeitável. Para alguns, desculpável. E, às ve-zes, útil. Neste caso, não é possível proceder de outra for-ma. Para abordar a relação entre estes os dois termos dotítulo — na contemporaneidade — é necessário proceder poretapas. No caso, isso significa:

• fundar as bases da questão;• descrever seus os termos integrantes; e,• concluir com algumas indicações ou sugestões.

Descartes, é conhecido, não tem muita guarida nos tró-picos. Por isso mesmo, a ordem da exposição não será rigo-rosamente a acima sugerida. Arriscaria ficar burocrática oudesinteressante para um leitor tropical como o brasileiro.

Para abordar o tema da relação entre educação e de-senvolvimento, na contemporaneidade, é necessário, mes-

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mo que rapidamente, iniciar por uma visita ao processo degestação de um e outro termo. Para usar um paradoxo, edu-cação e desenvolvimento são termos concebidos usualmen-te como distintos, mas sempre apresentados juntos. São,na verdade, dois fenômenos ou processos sociais pensa-dos articuladamente, um remetendo ao outro. Sem, no en-tanto, deixarem de terem as próprias identidades. Ambosnascem, ou são inventados, no interior daquilo que de-nominamos normalmente modernidade. A educação, talcomo a conhecemos hoje, e o desenvolvimento, tal comoo concebemos hodiernamente, são frutos da sociedademoderna. Em sociedades pretéritas estes dois termos nãorepresentavam temas ou problemas. Enfim, não eramobjeto de discussão. Simplesmente não existiam enquan-to questões, menos ainda de forma relacionada. Pode-secontra-argumentar que os gregos antigos pensaram a re-lação. Ledo engano. Esquece-se de que os termos eramoutros. A educação tinha uma concepção distinta, assimcomo a história. A educação, embora concebida de formaglobal, era uma questão de poucos: varões, livres e cita-dinos. E a noção de desenvolvimento, tal como a utiliza-mos hoje, era inexistente no pensamento e no dicionáriodos gregos antigos.

Uma sociedade apaixonada por si mesma

Uma das características centrais da sociedade moder-na é a sua auto-reflexividade, sinaliza Giddens.1 Esta é aúnica sociedade que tem a obsessão de pensar sobre si mes-ma. De se interrogar constantemente. Em grande parte pelotipo de saber que a constitui: as ciências humanas, uma in-venção moderna, cujos resultados os homens partilham,comentam, se interessam. E se alimentam em seu dia-a-dia.A sua finalidade não é conhecer os homens tais como eles

1. Anthony Giddens, As conseqüências da modernidade. São Paulo, Unesp, 1991.

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EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 97

são, mas como eles se representam, diria Foucault.2 Elas nãose cansam de perscrutar a sociedade, de inquirir os homense as mulheres sobre os seus desejos e satisfações, sobre seusprojetos e decepções, seus comportamentos e hábitos. Nãose cansam de querer conhecer as relações que os homensestabelecem — ou imaginam estabelecer — entre si e com anatureza. Não se fatigam em diferenciar as estruturas so-ciais, sinalizar a diversidade e as mudanças. Fixar a formacomo os homens as representam. E de tentar, permanente-mente, perscrutar seu futuro. No íntimo, somos eternos apai-xonados por nós mesmos. Em resumo, o que as ciênciashumanas fazem é se perguntar o que nós somos e para ondevamos, como a velha filosofia. Mas em outros termos. Comoutras expressões. Com mais modéstia. E sem esquecer oseu lado prático, que é o de tentar responder questões ba-nais: Onde e como podemos ganhar mais dinheiro? Ou ques-tões vitais, em certos momentos de nossas vidas, como: Quala melhor profissão ou o melhor curso a fazer? Ou questõesfundamentais quando assumimos responsabilidades públi-cas: Qual a melhor decisão? Quais as conseqüências destaou daquela decisão? As ciências humanas penetram e te-cem, conosco, o nosso cotidiano. São teorias que nascem denosso cotidiano e nele desaguam.

Como resultado dessa característica das ciências so-ciais, nasceu a reflexão sobre o desenvolvimento. Relaciona-da, inicialmente, ao Iluminismo, no século XVIII, e ao Positi-vismo e à sua ideologia do progresso, no século XIX. Nasociedade moderna, os homens se perguntam: Como e emque condições um país se desenvolve mais que outro? Emque consiste o desenvolvimento? Quais suas distinções emrelação ao simples crescimento? Por que os Estados Unidostornaram-se a maior potência econômica do mundo, enquan-to o Brasil, com dimensão e história tão próximas, não con-segue sair da posição de médio desenvolvimento, segundo

2. Michel Foucault, As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 1990.

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o último relatório do Desenvolvimento Humano divulgadopela ONU?

De forma idêntica, nos interrogamos sobre a educação:Qual o papel que desempenha nas sociedades? Qual a suafunção como fator de desenvolvimento? Encontra-se atual-mente em declínio ou não?

É claro que as questões não são, assim, tão simples. Aspróprias noções básicas de desenvolvimento e educação sãomais complexas e múltiplas, possuem sentidos distintos.Conceitualmente podem ser abordadas de formas diferen-tes. Segundo a corrente do pensamento social que se consi-derar, desenvolvimento pode significar uma coisa ou outrae educação pode ter muitos significados. E, sobretudo, mui-tas justificativas e avaliações.3

Tem-se em conta, normalmente, que a educação é fun-damental para o desenvolvimento. Sem uma preparaçãoadequada de seus membros, uma comunidade não podeprogredir, se desenvolver. Sem uma educação de qualida-de, não tem como o indivíduo inserir-se favoravelmente nomercado de trabalho. Essas são idéias do senso comum. Aeducação cria condições indispensáveis ao desenvolvimen-to. Por sua vez, este obriga a que o processo de aprendiza-gem se modifique. Enfim, uma e outro podem desempenharpapéis vitais na relação, segundo as circunstâncias e o mo-mento. Mas, antes de nos afogarmos nas idéias comuns, valea pena perguntar um pouco sobre as suas bases, sobre a suagestão.

A escola como invenção da sociedade moderna

Não restam dúvidas de que a escola, como instrumen-to central de educação, tal como a conhecemos hoje, é uma

3. Ver, entre outros: Manfredo Berger, Educação e dependência. Rio de Janei-ro, Difel, 1977; Angelo Brocolli, Ideologia e educazione. Firenze, La nuova Italia,1974; Arnould Clausse, A relatividade educativa. Coimbra, Livraria Almedina, 1976.

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invenção da sociedade moderna. E sua definição maisconsensual pode ser assim expressa: espaço generalizadode socialização e transmissão de conhecimento, separadoda produção. É claro que ela é também o espaço de produ-ção de conhecimentos. Mas este aspecto é mais específico e,ao mesmo tempo, mais complicado. É preferível, pelo me-nos inicialmente, separá-lo.

Essa definição significa que apenas na sociedade mo-derna a educação passa a ter um espaço próprio e uma sepa-ração do processo produtivo. Antes, os conhecimentos eramtransmitidos no âmbito da família ou nas oficinas de traba-lho. Raramente, no interior das igrejas e dos monastérios. Nãoexistia a condição de estudante, mas a de filho e aprendiz.Salvo exceções: os filhos da aristocracia podiam ter precepto-res de música, de filosofia, língua, etc. Tinham, o que chama-ríamos hoje, aulas particulares. Portanto, não existia escolacomo espaço generalizado, para todos. Assim, o processo deaprendizagem era familiar e profissional, e os conhecimen-tos transmitidos dependiam do papel que o indivíduo espe-rava exercer, tanto social quanto profissionalmente. Por isso,não havia, com raras exceções, preocupação com a aprendi-zagem profissional das mulheres, normalmente pensadascomo agentes externos à produção. E muito menos com osescravos, destinados ao trabalho pesado e braçal.

Na sociedade moderna, aos poucos, foi ganhando cor-po a idéia de uma escolaridade de massa. Na passagem doséculo XIX para o XX, ou apenas neste século, como entrenós, a escola generalizou-se. Os argumentos para defendero direito da escolaridade para todos eram três:

• econômico: as novas formas de produção — basica-mente a industrialização — que nasciam no séculoXIX — necessitavam de um número crescente dehomens alfabetizados;

• político: o processo de construção dos direitos ine-rentes à moderna noção de cidadania requeria indi-víduos cônscios de seus deveres e direitos; e,

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• nacional: a escola foi um instrumento central na cons-trução da nacionalidade, na divulgação de uma lín-gua comum, de uma tradição, de uma identidade.Os indivíduos, para serem cidadãos e nacionais, ti-nham de conhecer, além de seus direitos e deveres,as leis e a história de seu país, suas tradições e costu-mes.

Estávamos, então, em plena época do nacionalismo,da urbanização e da industrialização. As cidades se torna-vam o centro da comunidade, administrativa, política, eco-nômica e culturalmente. A indústria tornava a forma maisavançada e mais rica de produção. As nações se constituíamem Estados, e estes assumiam os papéis de instrumento deregulação econômica, de segurança comunitária e dedefensoria dos direitos individuais. Época do nascedouroe da vitória do pensamento liberal contra o conservador,mas também da invenção da democracia universal. Não maisa grega, restrita e obrigatória. Mas geral e irrestrita. Épocada construção de direitos: civis, políticos e sociais. Da pro-clamação da lei única: “Todos os homens são iguais perantea lei”.

A generalização da escola nasce da modernidade. Mas,ao mesmo tempo, é construtora da sociedade moderna.

Três leituras interpretativas da escola

Outra forma de traduzir essas mesmas idéias pode serencontrada nas três leituras seguintes, que se tornaram lu-gar comum no pós-Segunda Guerra Mundial:

1. Instrumento de mobilidade social. É por meio daeducação que os pobres podem ascender socialmen-te, os indivíduos podem melhorar de vida, rompercom a pobreza, mudar de papéis e de status paraoutros considerados hierarquicamente superiorespela sociedade.

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2. Condição do crescimento econômico. A educaçãoqualifica a força de trabalho necessária ao processode crescimento econômico, tornando-se, assim, in-dispensável; os homens partilham a idéia comumde que quanto mais educado e profissionalmentequalificado é um povo, mais desenvolvido é o país.

3. Dever cidadão. A educação em massa não é apenasnecessária economicamente, nem serve apenas paraa ascensão social, é imprescindível para formar ci-dadãos: indivíduos revestidos de direitos com no-ção de pertencer a uma comunidade maior, à pátria.Esta “identidade das identidades”, que nos reúne atodos, independentemente de sexo, religião, cor, pro-fissão, riquezas ou time de futebol. Por isso, Vargasfecha as escolas alemãs e japonesas e obriga os fi-lhos dos imigrantes a freqüentar as escolas brasilei-ras. E os países europeus perseguem as línguas dedialetos locais.

A primeira leitura foi objeto de grandes discussões nasdécadas de 1960 e 1970. Uma corrente de intelectuais, nomundo inteiro, considerou-a como uma falácia. Nos termosmais correntes: a estrutura educacional servia apenas parareproduzir a alocação hierárquica dos indivíduos. Em lugarde permitir a sua ascensão, ensinava-lhes os seus lugares.Bourdieu, na França, e Luiz Antonio Cunha, entre nós, fo-ram dois dos maiores expoentes dessa leitura crítica do pa-pel da educação como instrumento de ascensão que os ame-ricanos, antes de outros, pregavam com o seu tradicionalpragmatismo e conhecida superficialidade.4

A segunda leitura — por longo tempo consensual —perdeu parte de sua força argumentativa por duas razõesrelacionadas ao processo recente de inovação tecnológica ereestruturação da produção. As mudanças marcantes na eco-

4. Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, A reprodução. Rio de Janeiro,Francisco Alves, 1975.

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nomia mundial, sobretudo a partir da década de 1980, mos-tram que a necessidade de força humana para a produção écada vez menor. A produção e a produtividade hoje nãonecessitam, para crescer, de aumento do contingente de for-ça de trabalho envolvido. Em alguns setores, como o auto-mobilístico, tem ocorrido uma exacerbação desse fenôme-no. O setor tem dispensado trabalhadores para garantir oaumento da produção e da produtividade. Um novo padrãotécnico-econômico, aparentemente, estaria em gestação, noqual a dispensabilidade crescente da força de trabalho seriaa característica mais marcante. Por outro lado, há maior exi-gência de qualificação para os trabalhadores de qualquer se-tor. Qualificação à qual o ensino básico não mais corres-ponde.5

Isso não significa que só terão lugar no mercado de tra-balho futuro — por exemplo, nos próximos 25 anos — tra-balhadores altamente qualificados. Não se trata disso. Asociedade moderna sempre se caracterizou pela convivên-cia de mercados de natureza distinta e níveis tecnológicosaltamente diferenciados. Haverá, durante muito tempo, lu-gar para trabalhadores com baixa ou média qualificação. Naagricultura. Na construção civil. Nos serviços de limpeza ede manutenção. Entre outros. Mas os postos de trabalho depouca qualificação serão cada vez em menor número, cadavez mais exigentes em escolaridade, a remuneração cada vezmais baixa, relativamente, e os direitos trabalhistas cada vezmais restritos, tendendo, simplesmente, a desaparecer emalguns lugares da Terra. Noutros, não haverá problemas,porque estes direitos nunca existiram.

No caso do Brasil, o número de trabalhadores fora doabrigo da lei, que já é a maioria, tenderá a crescer ainda mais.Ou melhor, a maioria dos trabalhadores estará sob o abrigode uma lei que não o protege, mas apenas ao capital.

5. Essa é uma longa discussão que tem seu início ainda na década de 1980 ereúne farta literatura a respeito. Ultimamente tem feito sucesso o trabalho deManuel Castells, A era da informação. São Paulo, Paz e Terra, 1998-1999, 3 v.

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A perda da força argumentativa que relaciona educa-ção e desenvolvimento é ainda maior entre os intelectuaisque acreditam na irreversibilidade das atuais tendênciaseconômicas e, mais, que crêem que o mundo do trabalho,tal como foi criado no século XIX, desaparecerá no séculoque se inicia.6

Necessidade x desnecessidade da educação de massa

Assim, duas interpretações persistem, convivem e sedigladiam na abordagem da relação educação e desenvol-vimento. A primeira afirma o tradicional: a educação demassa é condição indispensável ao desenvolvimento eco-nômico. A segunda afirma que a educação de massa não émais necessária, pois a produção moderna não necessita demais mão-de-obra. Necessita de menos, porém melhor. Todoo esforço que os organismos internacionais fazem atualmen-te no sentido da universalização da escola é apenas o sinto-ma da sua crescente desnecessidade econômica. No mundoatual, segundo esta interpretação, a função central da escolaseria outra, pertencente ao mundo do controle e da sociali-zação, e não mais da preparação para a produção.

Dessa forma, a terceira leitura ganhou relevância, e jus-tamente na medida em que a primeira e a segunda perdiamseu charme. Não no sentido de uma necessidade de intro-duzir o sentimento nacional, mas no sentido de introduzirnoções de civilidade e conformidade social.

Em face dessas três leituras há, de forma simples, duasposturas: a primeira afirma que elas são opostas, o que sig-nifica que cada pessoa teria de optar por uma delas; a se-gunda afirma que o caráter excludente entre elas é falso. Asduas proposições são conciliáveis.

6. Domenico de Masi, O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-indus-trial. Rio de Janeiro, José Olympio, 2000.

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O que predominou entre nós foi a primeira postura, ada exclusão. É possível pensar diferentemente e identificar,nas três leituras, uma certa complementaridade. Neste caso,é necessário explicar. Para isso, é preciso realizar uma di-gressão interessante e útil. Uma revista a velha discussãosobre a natureza da sociedade moderna.

A alma da modernidade

A sociedade moderna pode ser definida de diversas for-mas. Aqui quero enfatizar alguns poucos traços que, além decentrais, são relativamente consensuais. Em primeiro lugar,é uma sociedade revestida de mobilidade social, portanto,aberta. Não há uma cristalização institucionalizada. A igual-dade perante a lei é um imperativo essencial, sem o qual umasociedade não é reconhecida como moderna. Mesmo que nãoassuma formas claras de regime democrático. O poder políti-co é concebido como impessoal. Trata-se de um lugar e deuma função, que podem ser ocupados ou exercidos, teorica-mente, por qualquer membro da comunidade política. Su-pondo, portanto, a alternância do poder. Sobretudo que, nostempos modernos, democracia significa não apenas a expres-são da vontade da maioria, mas o respeito aos direitos funda-mentais da minoria. O Estado nacional é a forma de organi-zação, implicando noções de territorialidade e soberania. Oconflito é parte integrante e constituinte da sociedade, e elaconstrói e detém mecanismos que permitem sua resolução,extinguindo, assim, com a noção de exterioridade. O indiví-duo é o suporte básico da sociedade moderna, e aracionalidade sua forma superior de conhecimento. É por issoque a ciência é, sobretudo, uma invenção da modernidade.

As tensões da modernidade

Com essas características estruturantes, a sociedade mo-derna é atravessada por três ordens de tensão, entre outras:

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(1) a tensão entre o espaço da igualdade (política, democra-cia, cidadania) e o da desigualdade (mercado, legitimidadedos ganhos diferenciados); (2) a contradição entre o instru-mento pelo qual se gesta, o Estado Nação, implicando a de-finição de soberanias nacionais, e uma base econômica sus-tentada em um sistema vocacionado ao internacional; (3) atensão que constitui a sociedade moderna, referente ao pro-cesso de integração e exclusão social. Duas lógicas opostasque regem, em sua simultaneidade, o movimento de expan-são da sociedade moderna como invenção européia.7

Excluindo o fato de que essas características da socie-dade moderna sempre se realizaram de maneira imperfeitae restrita, alguns fenômenos recentes têm colocado em xe-que parte destes fundamentos, redefinindo-os. Cito três, atítulo de exemplificação.

O primeiro fenômeno é o de que a desigualdade socialtêm crescido de tal maneira que tende a redefinir, gradativa-mente, a concepção do espaço da igualdade, caso a tendên-cia persista e se agrave. Pois agora não só tem crescido emseu lugar tradicional, os países denominados antigamentesubdesenvolvidos, mas também em lugares novos, como ospaíses europeus e os Estados Unidos, embora este seja dis-tinto dos anteriores.8 A terceira onda de democratização,9

aparentemente, inicia o seu esgotamento. E não citamos aÁfrica, onde o espaço da igualdade mal chegou. Sem esque-cer que há sinais claros de “cansaço democrático” na Amé-rica Latina, embora pareçam passageiros. Porém, em vistada tradição latino-americana, é preferível não se arriscar.

7. Estas notas estão desenvolvidas em alguns de nossos trabalhos anterio-res, entre os quais: Globalização e exclusão social: fenômenos de uma nova crise damodernidade? In: Ladislau Dowbor et al., Desafios da globalização, Petrópolis, Vo-zes, 1997.

8. Os Estados Unidos sempre tiveram, neste século, um grau de desigualda-de social bem maior que o dos países da Europa Ocidental mais desenvolvidos.

9. Samuel Huntingon, A terceira onda: a democratização no final do século XX.São Paulo, Ática, 1994.

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O segundo fenômeno é o de que o processo deinternacionalização do sistema econômico, após um longorefluxo que durou mais de meio século — dos anos 1930 aos1960 — voltou a crescer neste final de século de forma sur-preendente. Este fenômeno, que terminou por ganhar onome de globalização, tem ameaçado a capacidade regula-dora dos Estados. Independentemente da ideologia corren-te de que os Estados nacionais não têm mais sentido. Aliás,uma grande bobagem, boa para ser vendida aos países po-bres ou emergentes, e seus “intelectuais papagaios”, comoprovavelmente diria o saudoso Darci Ribeiro.

O terceiro e último fenômeno, para ficarmos restritosaos principais: a lógica da exclusão social, aparentemente,tem prevalecido sobre a da integração. Pelo menos no mun-do ocidental. O que, a longo termo, não deixa de ser umaameaça aos fundamentos da modernidade.

Revisitando as interpretações sobre educação

Agora podemos retornar às três leituras da relação edu-cação e desenvolvimento, da seguinte forma:

1. A mobilidade social não é necessariamente indivi-dual, mas do conjunto da sociedade; a estrutura edu-cacional permite que um número crescente de indi-víduos acompanhe as mudanças estruturais, o des-locamento dos eixos da economia. Por exemplo, amaior concentração de trabalhadores, residindo nosetor primário no século XIX, movimenta-se, no iní-cio do século, para o secundário e, a partir de mea-dos deste, para o terciário. Simultaneamente, as mas-sas trabalhadoras deslocam-se do campo para os es-paços urbanos. E isso é possível porque vivemos emuma sociedade aberta. A mobilidade social, apesarde menor do que se propala, existe. É uma realida-de, embora menos intensa do que uma certa ideolo-gia pretende pregar. Porém, nos dias atuais, ela ten-

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de a se arrefecer com o crescimento da exclusão so-cial. E, na ausência da mobilidade social, a socieda-de moderna se extingue.

Com a “fossilização” ou o enrijecimento da mo-bilidade, a ruptura do círculo da pobreza torna-semais difícil e a escola perde parte de seu atrativo paraos setores sociais mais carentes. Soa estranha estaafirmação no Brasil, quando a universalização do en-sino fundamental parece ter sido, finalmente, obti-da, ou estar próxima, com a presença de 97% dascrianças entre 7 e 14 anos na escola. Esta afirmativa,constante de nossos últimos indicadores sociais, éverdadeira, mas a estatística nunca diz tudo. Inscri-ção, freqüência e aproveitamento são três fenôme-nos distintos. A defasagem escolar ainda é muitogrande no Brasil — apesar das mudanças que bus-cam impedir a repetência —, e a qualidade do ensi-no é sofrível. Além do mais, apenas cerca de 73%dos jovens encontram-se no ensino médio, e con-cluem o ensino superior pouco mais de 6%. É aindaum enorme funil a estrutura escolar brasileira.

A intervenção do Estado e a demanda pelo mer-cado de mais qualificação, em parte retiveram o pro-cesso de perda de centralidade da escola no âmbitodas populações mais pobres. A questão é: Por quan-to tempo?

2. O crescimento econômico requer uma qualificaçãodiferenciada e múltipla da força de trabalho, quantomais qualificado o trabalhador melhor será realiza-do o trabalho, não importa em qual setor, e a formade inserção é necessariamente diversa.10 Sob o pon-to de vista individual, recusar a educação de massaé desclassificar-se antes de a corrida começar. De-senvolvimento significa, necessariamente, mudan-

10. Claudio Salm, Escola e trabalho. São Paulo, Brasiliense, 1980.

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ças de padrão: de produção, de consumo, de cultu-ra, de valores... e instrumentos cada vez mais hábeispara permitir ao cidadão compreender e enfrentaressas mudanças, direcionando-as no sentido quemais desejar.

O problema consiste em saber até que ponto aescolaridade de massa é uma condição sine qua nonpara o crescimento econômico, e se este pode serrealizado com a exclusão de parte significativa dapopulação.

3. A educação como dever ético11 é evidente em si. Semela não há vida política, não há o espaço da igualda-de, nem o da gestão dos bens comuns. Não existiriaa democracia. Nem os direitos humanos, nem os di-reitos civis. Nem a sociedade moderna. Deste pontode vista, é um princípio constituinte da própriamodernidade, e abdicar dela seria o mesmo queabandonar o ideário iluminista, que se encontra nabase de nossa contemporaneidade.

A minha conclusão é que essas três leituras, antes deexcludentes, são, no fundo, complementares. E indispensá-veis.

Poderíamos nos perguntar agora por que não as reali-zamos. Por que não se dá a devida importância à educaçãocomo fator de mudança e mobilidade social, de integraçãonacional, de democratização da sociedade e de melhoria daqualidade de vida geral. E se não estaria em sua ausênciauma das razões maiores de nosso atraso, de nossa desigual-dade, de nossas mazelas enquanto país e povo. Hoje, na es-teira do relativo fracasso da escola, são as igrejas evangéli-cas que realizam o trabalho da introdução da civilidade noâmbito da população mais pobre.12

11. Ari Roitamn (org.). O desafio ético. Rio de Janeiro, Garamond, 2000.12. Bernardo Sorj, A nova sociedade brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 2000.

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O maior desafio da educação: antecipar o futuro

A educação de massa para as crianças e os jovens, hoje,significa construir as condições de um futuro sem exclusãosocial amanhã. Porém, transmitir conhecimento é pouco: agrande questão é operacionalizar informações numa dire-ção ética e solidária.

O maior desafio da educação, todavia, ainda não estáposto. Consiste em se perguntar se poderá, nos tempos pró-ximos, desempenhar o papel que tem, mal ou bem, realiza-do até hoje. Se as mudanças no interior da sociedade mo-derna não vão terminar por elitizar a educação e forçar ospobres a abandonar a escola, em troca de outras formas deascenção social, de outros modos de afirmação de identida-de, de outras maneiras de criação da auto-estima. Qualquerque seja o caso, de retorno da lógica da integração ou desupremacia da lógica da exclusão, a escola não tem condi-ções de desempenhar os papéis que tem desempenhado atéo momento, conservando sua atual forma. Pois com os no-vos meios de comunicação, a socialização se dá cada vezmais por outros mecanismos, e a apropriação dos conheci-mento se faz apenas parcialmente na escola. Em contra-partida, a escola, nos moldes existentes, torna-se cada vezmais anacrônica. O processo de globalização não é estranhoa esse crescente anacronismo, muito pelo contrário. Umareforma torna-se, assim, indispensável, diz Morin,13 entremuitos outros.

Uma reforma educacional implica, necessariamente,visualizar como será, provavelmente, o futuro. Afinal, é paraele que se dirige o esforço educacional dos adultos, mas, so-bretudo, a expressão madura das hoje crianças e adolescen-tes. Façamos, por isso, uma rápida navegação pelo futuro.

Os cenários são imagens de futuro plausíveis (ou dese-jáveis), montados a partir de hipóteses mais ou menos con-

13. Edgar Morin, Tête bien faite. Paris, Seuil, 1999.

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sistentes. Sob este ponto de vista, a literatura mundial espe-cífica tem-se concentrada em três cenários mundiais. Emboraos seus títulos variem muito de um autor para outro, elespodem ser assim denominados e descritos sumariamente:

1. O mundo global: Hegemonia unipolar, integração eco-nômica avançada, sistema de regulação internacio-nal eficiente, inovações tecnológicas aceleradas, im-pactos ambientais baixos mas persistentes, conflitose tensões regionais e maiores desigualdades sociais.

Nesse caso, o mundo será mais rico, mais diferencia-do, mais integrado, porém, mais desigual.

2. O reino dos blocos: Leve disputa hegemônica,integração econômica regional, débil sistema inter-nacional de regulação, inovações tecnológicas emmédio crescimento, redução da degradaçãoambiental e menores desigualdades sociais.

3. O império da fragmentação: Hegemonia em disputa,intensos conflitos regionais, reversão do movimen-to de integração econômica, instabilidade e crise fi-nanceiras, inovações tecnológicas em baixo cresci-mento, aumento da degradação ambiental e das de-sigualdades sociais.

O mundo será mais dividido, mais conflituoso, diferente, masmenos degradado e desigual.

O mundo será conflituoso, mais degradado, mais inseguro emais desigual.

As tendências de força que regem esses cenários são mais oumenos evidentes: reestruturação econômica; inovaçõestecnológicas; integração econômica mundial; sistema deregulação econômica; valor da conservação ambiental e aumen-to ou diminuição da desigualdade social.

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EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 111

Ora, se estas são as tendências de força do futuro quenos aguardam, não há como deixar de realizar uma profun-da reforma educacional, pois em todos os cenários as inova-ções persistirão, embora em ritmos diferenciados. Mudarradical e rapidamente não apenas a estrutura escolar, mastambém seus métodos de funcionamento. O que, em parte— mas apenas em parte, e muito timidamente —, o MECvêm tentando fazer ou sugerir, se bem não saibamos se pelobom caminho ou na boa direção.14

O consenso dos reformadores e a experiência de Brasília

Dois pontos são relativamente unânimes entre osreformadores nacionais ou internacionais:

a) a implantação de uma escola de qualidade e paratodos: não é mais possível termos crianças e jovenssem escola, como também em escolas que não ser-vem para nada; a escola tem que ser pensada, so-bretudo, como um espaço de ensino de linguagens,não de conteúdo — como pensar; como ter acessoàs fontes de informações realmente importantes;como operar eficientemente com informações dis-tintas e múltiplas; como criar, inventar, inovar;

b) o processo de aprendizagem profissional tem deser pensado como um espaço integrado, aberto eflexível.

O que nos conduz a uma conclusão: é indispensávelpensar a escola como um espaço generalizado socialmente,porém sem a anterior separação da produção. Centrada nalinguagem e no estudante, transformando o professor emum facilitador.

O governo Cristovam Buarque, no Distrito Federal,entre 1994 e 1998, é um exemplo singelo de como se pode

14. Essa seria, na verdade, uma outra e enorme discussão.

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caminhar nesse sentido. Em quatro anos de governo, foipossível construir, praticamente, uma sala de aula por diaútil. Recuperar os centros de treinamento e aperfeiçoamen-to docente. Quase que dobrar o salário dos professores.Aumentar o seu número em mais de 15%. Extinguir o cha-mado “turno da fome” — duas horas de aula justo no horá-rio do almoço, em que as crianças praticamente iam para aescola, comiam e voltavam. Iniciar uma experiência de jor-nada de seis horas diárias. Implantar, de forma pioneira, osProgramas Bolsa Escola e Poupança Escola.15 E iniciar a cri-ação de um projeto pedagógico novo.

Nada de extraordinário. Tudo muito simples e concre-to. E, sobretudo, factível dentro de orçamentos escassos,como são os do Estado, hoje, no Brasil. Como diz o povo: étudo uma questão de vontade política. Basta inverter as pri-oridades. Colocar o bem-estar da população, e sua forma-ção, na frente do pagamento dos juros, de dívidas poucoclaras e, sobretudo, tapar os ralos da corrupção, do super-faturamento.

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15. O professor Cristovam Buarque é o inventor da Bolsa Escola e da Pou-pança Escola. Consultar seu livro pioneiro: A revolução nas prioridades. SãoPaulo, Paz e Terra, 1995.

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CAPÍTULO 5

SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO ESUSTENTABILIDADE

Argemiro Procópio

Desordenamento ético

Com a natureza dando sinais de esgotamento e a de-sordem ecológico-social longe do seu fim, resta, na periferiamundial, pouquíssimo como elemento de troca nas relaçõescom os países centrais. Por tal razão, drogas ilícitas e espé-cies nobres roubadas das florestas tropicais constituem a der-radeira e sólida moeda de expressivo valor no intercâmbioentre os países globalizados e globalizadores. Quanto maislucrativo o negócio, maior o número de pessoas interessa-das nele! Nada reverte esta lógica capitalista.

A ausência da educação como garantia do desenvolvi-mento sustentável, a presença do poder judiciário tal comoele se apresenta no Brasil permite, pela morosidade de seusjuízes, o avanço da corrupção. Coze para a sociedade umcaldo político extremamente indigesto e danoso. Fragilizadosos valores éticos, a cultura da corrupção corrói tanto o Esta-do quanto a segurança humana. Destarte, a articulação apre-

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sentada nesta análise entre a falta de segurança, falta de edu-cação com ética e crescimento sem sustentabilidade.

É preciso diferenciar ética de moral. Para Srour,

“ética não se confunde com moral como induzem erronea-mente as expressões consagradas ‘ética católica’, ‘ética pro-testante’, ‘ética liberal’, ‘ética nazista’, ‘ética socialista’. En-quanto a moral tem uma base histórica, o estatuto da ética éretórico, corresponde a uma generalidade abstrata e formal.A ética estuda as morais e as moralidades, analisa as esco-lhas que os agentes fazem em situações concretas, verifica seas opções se conformam aos padrões sociais. Fica no mesmoplano ocupado pelas chamadas disciplinas sistemáticas. [...]Como disciplina teórica, a ética sempre fez parte da filosofiae sempre definiu seu objeto de estudo como sendo a moral, odever fazer, a qualificação do bem e do mal, a melhor formade agir coletivamente. A ética avalia então os costumes, acei-ta-os ou reprova-os, diz quais ações sociais são moralmenteválidas e quais não são”1.

Fenômenos como os da exclusão social e da insustenta-bilidade do desenvolvimento põem em xeque ações e o pró-prio papel do Estado na sua obrigação histórica de zelar pelasegurança humana, pela educação e pelos direitos da cidada-nia. Nesta reflexão, ações como essas transpassam caminhosatípicos: somatório dialógico entre valores como a ética, a jus-tiça e a questão ambiental, amarrando possibilidades paraum presente sustentável. Isto significa navegar em busca deriquezas explicativas novas, não apenas necessárias à exegeseda fenomenologia dos porquês da desordem social e da de-sordem ecológica, mas também para saber o como as coisasacontecem dentro e fora da globalização.

Nas idiossincrasias da ordem internacional, observa-seque a violência contra o homem e contra a natureza atingecom distintos impactos populações dos países que

1. Robert Henry Srour, Poder, cultura e ética nas organizações. Rio de Janeiro,Campus, 1998, p. 270-71.

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SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 117

globalizam e dos que são globalizados. Por exemplo, a maiorpotência mundial, os Estados Unidos da América, peloconsumismo de sua população é o país que, ecologicamentefalando, mais custa ao mundo. Nações da periferia mun-dial, amarradas pelas burocracias que deixam de incre-mentar as conhecidas alternativas de sustentabilidade, cor-rem igualmente perigo. No caso brasileiro, os privilégios desuas elites, a generalizada corrupção e a perversa distribui-ção da renda sob o patrocínio do próprio Estado, proporcio-nalmente tinge de sangue, mais que noutros países, a natu-reza e o tecido social da nação. Daí a degradação ambientalassociada à baixíssima qualidade de vida do povo. Daí tam-bém a violência. Tudo isso significa ameaça à democracia eà paz, porque fragiliza a unidade nacional, notadamente naregião amazônica. Fere a histórica força simbólica desta re-gião por causa da monumental negligência para com o socialque, por toda parte, mina as estruturas na qual estão assen-tadas as bases do Estado-Nação.

No calendário dos infortúnios da comunidade das na-ções, destacam-se as brutais desigualdades sociais, a faltade educação libertadora, o generalizado desrespeito aos di-reitos humanos, a degradação ambiental global e onarcotráfico, sustentado, em parte, pelo hedonismo e peloconsumismo. Os caminhos da busca do prazer a qualquerpreço são cúmplices da degradação ambiental, podendo le-var também ao abuso das drogas ilícitas.

A clandestinidade, robustecendo os negócios da eco-nomia das sombras, transforma o comércio ilegal de drogase de produtos roubados das florestas tropicais em instru-mento de enorme capacidade de destruição social e ecológi-ca. Fere e ameaça, inclusive, a ética do pacto social, em quese troca a liberdade pela segurança, razão de ser do Estadomoderno. Significa desafio crucial para as democraciashodiernas, em que até o acesso à justiça já é privilégio.2

2. Ver Norberto Bobbio, Locke e direito natural. Brasília. UnB, 1997.

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A academia percebeu que o fortalecimento doambientalismo e sua transformação em movimento históri-co mundial causa profundas ressonâncias nas relações in-ternacionais. Todavia, com o consumismo sempre a querermais, multiplica-se o descontentamento dos povos sob o jugohedonístico desta civilização. O panem et circenses, pão e cir-co de ontem, traduz-se, hoje, por drogas, descaso para comas verdadeiras causas da devastação ecológica e paixão pelopoder. É bom relembrar que os grupos sociais, com históri-ca prática de acumulação de bens e riquezas, são extrema-mente hedonistas.

No contexto do desordenamento ético, inclusive os di-reitos humanos são invocados para justificar decisões po-liticamente incorretas. Falta indignação pelas causas de in-fortúnio que assolam o mundo, inclusive a fome. Nessatrama de desgaste moral e ético, o combate às substânciasalucinógenas e a luta por um ambientalismo sadio trans-formam-se em cruzadas que, graças ao monumental po-der de corrupção das elites, costumam terminar menosservindo aos fins e mais aos meios. Que se considere, porexemplo, a alarmante indústria da guerra às drogas e anão menos pérfida indústria exploradora da desgraçaambiental.

O direito da ingerência

Tanto a “luta” contra as drogas quanto as indústriastransformadoras do caos ecológico em lucrativos negóciosapresentam-se oportunas no exercício da hegemonia políti-ca nas relações internacionais. A transnacionalidade do ca-ráter dessas políticas, engolindo continentes inteiros, porexemplo, a ação da Drug Enforcement Administration(DEA), surgida em 1973 no lugar do Federal Bureau ofNarcotics, e espalhando-se por quase toda a periferia mun-dial, rende frutos amargos. Aqui no Brasil, são colhidos noquintal da casa aberta da política, que subordina o Brasil

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SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 119

aos ditames da peleja antinarcótica globalizada sob a tutelados Estados Unidos da América.

Eivado de ambigüidades, o relançamento da discus-são sobre a questão das drogas ilícitas ocorreu também em1971, quando a Organização das Nações Unidas promoveu,em Viena, a Conferência sobre Substâncias Psicotrópicas,no apagar das luzes da guerra fria. Acompanhando o pro-cesso de coexistência pacífica, distensão ou deténte, a políti-ca internacional de repressão às drogas e as expressas preo-cupações dos países centrais, em relação à desordemambiental da periferia, cresceram. Infelizmente, em nadaaliviaram o peso do fardo do atrelamento dos povoslatino-americanos ao desigual sistema mundial de poder.

Na falta de um sistema educacional emancipador e cri-ativo, a costura do figurino usado no cenário da luta contraos alucinógenos segue, à risca, o velho modelo de seguran-ça hemisférica dos norte-americanos, cerzido pelas mãospreguiçosas da Organização dos Estados Americanos. Ali-nhava, principalmente, os países latino-americanos naterceirização da guerra contra as drogas segundo os dita-mes de Washington.

Tem faltado aos Estados Nacionais visão da força dolucro gerado pelos negócios do narcotráfico e da naturezacapitalista da devastação ecológica transnacional que trans-formaram a Amazônia no que é hoje. Há carência de perspi-cácia política e de conhecimento acerca da realidade dospovos, das manifestações materiais de suas atividades, in-clusive da corrupção. Urge também construir uma espéciede etnografia da destruição pertinente ao desrespeito à na-tureza e ao abuso das drogas. Tão grave quanto os péssimosresultados da acalentada militarização da luta contra os nar-cóticos é a morosidade na construção do processo educativo,junto aos programas ambientais, para conter o avanço dapoluição urbana e da carbonização das florestas.

Com o advento do direito de ingerência, do direito semfronteiras, estilhaçando como nunca o princípio da sobera-

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nia, segmentos da sociedade, notadamente as Forças Arma-das e a diplomacia dos Estados Nacionais do subcontinente,ocultam a gravidade do perigo da degradação ambiental edo narcotráfico como ameaças à segurança e à independên-cia nacional.3 Desnorteados, perdidos num mundo onde faltaa ética, os Estados tampouco dão-se conta do formidávelvetor da integração paralela das drogas em dimensãohemisférica. Fala-se muito e faz-se nada, seja para barrar aexpansão das áreas devastadas, seja para impedir o fortale-cimento do narcotráfico nas estruturas do poder político.

A comunidade das nações, em face do insucesso, sejada sustentabilidade das políticas públicas voltadas para omeio ambiente, seja do fiasco das estratégias antidrogas,sente, indefesa, os sintomas de suas fraquezas. Por conse-qüência, políticas dos Estados Nacionais, esquecidas daimportância do significado da educação como prevenção,dobram-se diante da impotência da contenção da devasta-ção ambiental no meio urbano e rural e do alastramento doconsumo abusivo de psicotrópicos.

O risco da contravenção vem tanto de dentro quantode fora. A ameaça corrosiva da corrupção nas Américas ageceleremente. As respostas do banditismo, em matéria dedinamismo, causam inveja às políticas oficiais de integração,mesmo porque, historicamente, as drogas mostraram-se efi-ciente instrumento e vetor de integração. Na ilegalidade, adroga proibida transformou-se instrumento da dominação,nunca deixando de manipular as armas da corrupção.

A história do papel da coca, da cocaína e do contraban-do das riquezas encontradas nas florestas ainda hoje per-manece ignorada pelos estudiosos da integração. A coca, nahistoriografia andina pré-colombiana, antecede realidadeshoje presenciadas do processo de integração continental.Principalmente nas últimas três décadas do século XX, o

3. Argemiro Procópio, O Brasil no mundo das drogas. 2. ed. Petrópolis, Vo-zes, 1999.

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comércio ilegal das pedras preciosas, do ouro, das madeirasnobres, de variados produtos do extrativismo vegetal e dasdrogas alucinógenas soube engordar as oligarquias, princi-palmente por meio da sustentação do custo de suas campa-nhas políticas e da caça aos votos conquistados pelo dinhei-ro fraudulento, em busca da tão cobiçada imunidade parla-mentar.

Os movimentos de integração se, em certo sentido,como no caso da União Européia e do Mercosul, contribuí-ram para o alargamento das fronteiras do mundo dos nar-cóticos, poderiam, da mesma forma, criar instrumentos co-letivos a favor da educação, com ações concertadas de me-lhor proteção à natureza e de eficaz combate às drogas. In-felizmente, não é isso o que se nota.

Vitalidade da corrupção

O banditismo formal, e parte expressiva dos herdeirosda oligarquia política latino-americana emergente, aindavivendo do contrabando e dos frutos da desastrosa explora-ção dos recursos naturais, possuem em suas mãos parteimportante dos negócios das drogas. A globalização dosnegócios relacionados à depredação da natureza e tambémao comércio de narcóticos leva a consensos e a estratégiascomuns. Obrigou numerosos donos do poder a arquivar tra-dicionais disputas e rivalidades em prol da ampliação deterritórios. Curvou-os diante da convergência de irreversívelrealidade: a da integração paralela das sociedades america-nas por meio dos negócios ilícitos.

Diante dessa verdade, nenhum governo nega que ocontrabando de drogas e das riquezas retiradas ilegalmenteda terra e dos rios provocam indimensionável circulação dedinheiro e de pessoas. Entre as três Américas, estima-se se-rem tais negócios responsáveis pelo fluxo de somasbilionárias. Entre outros exemplos, a movimentação de ca-pitais, o emprego de estratégias montadas pelo contraban-

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do de madeira e pelo narcotráfico, principalmente por meioda lavagem de dinheiro, incrementam o setor industrial,turístico, agropecuário, comercial, financeiro e da constru-ção civil. Esses setores testemunham vivamente os ilícitosatuando como vetor de integração econômica, com base noseguinte tripé: corrupção, violência e lucro. Trabalham atre-lados a uma economia informal de extrema vitalidade. Bran-queiam como ninguém o cobiçado dinheiro protegido peloEstado por meio das suas instituições bancárias. Para ospaíses consumidores ricos direciona-se o fluxo final do di-nheiro das drogas e das transnacionais. Estas últimas commaestria comercializam e transformam os produtos que bro-tam no corpo carbonizado das florestas e dos cerrados. Asoja é um exemplo entre tantos outros.4

A vitalidade da corrupção percebe-se em países ondevalores éticos e morais esmorecem e onde a cumplicidadedas elites no poder com o crime organizado sente-se de for-ma clara na poderosa economia informal, frutificando naineficiência da burocracia dos órgãos oficiais. Corrompejuízes, elege vereadores, deputados e senadores. O crimeorganizado soube criar estruturas de poder dentro do Esta-do, e parte das engrenagens da máquina estatal passou aser também sua.

No esquema da dualidade do bem e do mal, recria-se obode expiatório dos males hodiernos. Graças a isso, onarcotráfico e a devastação ambiental nas relações interna-cionais transformaram-se em disputados joguetes dos ins-trumentos de poder. Ninguém duvida de que o baixo preçopago aos tradicionais produtos oriundos do extrativismovegetal levou, por exemplo, a população rural amazônica aprocurar novas opções. A mineração de prata e estanho noPeru e Bolívia, bem como a garimpagem do ouro em váriospaíses da hiléia, souberam fazer crescer por anos uma mão-

4. Argemiro Procópio, Amazônia: ecologia e degradação social. São Paulo, Alfa-Ômega, 1992.

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de-obra para, finalmente, desová-la em etapas distintas donarcotráfico.

No Peru, na Venezuela e no Brasil, os garimpos de ouro,depois de anos de desordenada exploração, mostram-seexauridos. O contrabando de madeira, o cultivo, processa-mento e tráfico de drogas significaram, de uma forma ououtra, redentora opção para alguns segmentos dessas socie-dades atormentadas pelo desemprego.

A contravenção, na extremamente ativa economia in-formal, ilude no que toca à democratização das chances nomercado de trabalho para a população de baixa renda. Ocontrabando de produtos atrelados ao comércio das drogaspenaliza a sustentabilidade e as políticas públicas voltadaspara a questão ambiental, porque a indústria do ilegal noBrasil, possivelmente a mais modernizada e eficiente doOcidente, fere e lanceta as veias do Estado Nacional. Com ademocratização, o fosso social, inclusive aquele em tornodas concepções éticas, não diminuiu. Continua abismal.Aumenta igualmente graças ao admirável gigantismo daeconomia clandestina, da corrupção política e donarcotráfico. As elites, transformando os ganhos dos negó-cios paralelos em lucros seus, ao concentrar substantivovolume de riquezas fazem da exploração da natureza e daruína do homem pelas drogas sua lógica de poder.

Os negócios dos ilícitos, entrelaçados aos da devasta-ção ambiental, são perversidades do cotidiano do capitalis-mo globalizado. Na degradação humana, empurrada pelaviolência e pela corrupção generalizada, o narcotráfico temo mesmo sangue de outros negócios extremamente prejudi-ciais à sociedade. Todos, por sua força e penetração, indire-tamente amparam e desmoralizam o Estado.

Dentre as variadas formas de fragilização da socieda-de pelos entorpecentes, a utilização dos menores é das maiscruéis.5 O desprezo para com os bons costumes e para com

5. Argemiro Procópio (org.), Narcotráfico e Segurança Humana. São Paulo,LTr, 1999.

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valores éticos que se perpetuam na solidariedade humana;o descaso para com a educação; a degradação da natureza,que fere a qualidade de vida obstruindo virtudes de cida-dania; a mania de responsabilizar o Estado esquecendo-sede que o Estado somos todos nós; o “venha a nós e nuncaao vosso reino” jogam sociedades inteiras na solidão acom-panhada da cultura do vazio. Típica dessa civilização dosesmorecidos valores éticos, a cultura do vazio transformao homem em carrasco e vítima do destino comum sem fu-turo.

Negligência para com a educação

O narcotráfico recruta, notadamente no Brasil, expres-sivo contingente de adolescentes. Subverte a ordem inter-nacional vigente eliminadora da mão-de-obra do menor, queousa competir com a adulta no cenário de desemprego crô-nico do capitalismo da pós-modernidade. Em todo o país,alteia o consumo de drogas entre menores. Desgraçadamen-te, em nenhuma outra nação a distribuição de drogastornou-se rotineira e descaradamente presente em mãos deadolescentes. Isso explica parte dos porquês das cruéis esta-tísticas de assassinatos dos meninos e meninas. A socieda-de, negligente para com a vida, igualmente negligencia aeducação para o cidadão.

Precisamente na terra conhecida pelos especialistas porseu Estatuto da Criança e do Adolescente a favor da prote-ção dos menores, o crime ceifa vidas de crianças. Há de seressaltar que as drogas ilícitas e a degradação dos costumessustentados pela ética da solidariedade socializaram o uni-verso de suas vítimas. Atualmente, crianças tanto pobres edesamparadas, quanto ricas e bem alimentadas, respiram omesmo ar poluído. Ambas podem cair no inferno dos en-torpecentes. As análises do fenômeno dessas desgraças im-plicam a decomposição das diferenças. O descaso para coma educação, o desrespeito ao meio ambiente, a sede pelo lu-

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cro imediato explicam o descuido pela segurança humana.O menosprezo para com o bem comum corta o ethos da liga-ção homem-natureza.

O menino de rua, encarnando a figura do bandido, éequívoco estudado no livro Narcotráfico e segurança humana6

denuncia-se o envolvimento da juventude abastada em cri-mes relacionados às drogas.

O uso de drogas e a degradação ambiental são conse-qüências de políticas corruptoras ligadas à luta pelo contro-le do poder e de outras realidades. No mundo das políticaspúblicas voltadas para o meio ambiente, a distância entre asleis e a realidade é inconfundível. Sem perceber as contradi-ções sociais, perde-se a interpretação das causas da degra-dação ambiental e humana. Tampouco se alcança o enten-dimento da razão das coisas. Crianças e adultos entram nasgangues introduzindo-se nos negócios do narcotráfico, prin-cipalmente pelo dinheiro que significa status. Sentimentosde responsabilidade e de autoridade são atribuídos aos só-cios dessa seara do submundo do crime. A droga distribuí-da rende prestígio. Resumindo, droga na mão acaba comqualquer sentimento de exclusão. Possuir droga significa for-ça para o infrator. Tal poder nas ruas é marcado pela covar-dia das armas, cuja abundância transformou assassinatos eassaltos em rotina. Aí o cidadão, alvo fácil da violência, pas-sa a ignorar a democracia e o Estado, que lhe nega a prote-ção e a educação para a vida. A ausência do pacto social afavor da segurança humana é meio caminho em direção àvolta aos sistemas totalitários, de triste memória, hoje equi-vocadamente tidos como regimes da ordem e do progresso.

A tremenda despreocupação para com o social e paracom o ambiental, a falta de uma ética da solidariedade, afalta do acesso à educação e a perversa repartição da rendaconstituem a causa mortis das democracias periféricas, emque a vocação das elites do tudo para ter esquece a ética do

6. Argemiro Procópio, op. cit., 1999.

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ser. Aí aniquila-se, também por meio do consumismo, a qua-lidade ambiental para o viver das massas.

Tirar do papel, aplicar verdadeiras políticas públicas,primeiramente para a educação e para a sustentabilidadeda qualidade de vida, funciona como o antídoto contra adelinqüência e, por extensão, contra as drogas ilícitas. Aviolência do cotidiano mostra, como sempre, a parcialidadena aplicação do rigor das leis. Se a democracia no Brasil forestimada pelos resultados concretos até agora alcançados afavor da paz e da segurança pelo país afora, se comprovaráque aqui ela é mais miragem no deserto dos bons desejos edas boas intenções do que realidade apalpável.

Prejuízos éticos

Políticas antidrogas comparadas, por exemplo, às apli-cadas nos países islâmicos e nos Estados Unidos da Améri-ca, angariam variadas convergências. Apesar das ciladas dasdiferenças, em todos eles a “diabolização” dos entorpecen-tes encontra-se no cerne da estratégia de luta contra as dro-gas. Ambos tratam com castigos os estrangeiros pegos comsubstâncias ilícitas dentro de seus territórios.

Pelo fato de a cultura árabe ser berço do uso de algu-mas drogas alucinógenas, o Ocidente precisa aprender comas sociedades islâmicas seu ardor religioso contra o álcool,de todas as drogas a mais assassina. A divulgação de este-reótipos em nada auxilia. No islamismo, crianças e adoles-centes não são vítimas do erotismo e nem das drogas com aintensidade e freqüência conhecidos no Ocidente.

O descuido para com a educação nas escolas e fora de-las desacredita a possibilidade de convivência pacífica comas drogas, que existem há muito tempo, porém sem a domi-nação delas com a intensidade de hoje. Se poucos povosconseguiram escapar da poderosíssima influência culturaldo capitalismo das drogas, nenhum deles é tão vítima daviolência do narcotráfico como os países amazônicos. Entre

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estes, notadamente o Brasil e a Colômbia. Nesse contexto,anda quase impossível ter fé nas suas políticas governamen-tais antidrogas. Urge, então, alinhavar essas questões noestudo da cooperação nas relações internacionais. Há queferir a hipocrisia impedidora do diálogo franco sobre os te-mas da descriminalização ou da legalização, que soam qua-se como blasfêmia.

Sem o amplo uso do exercício da cidadania no debatesobre a degradação ambiental e sobre as drogas, ele se trans-forma em discussão epistemológica pobre, porque não con-segue ir além da visão do meramente convencionado entreo legal e o ilegal. A crise dos paradigmas envolvendo o es-quecimento da importância da educação, a falta de miseri-córdia ativa entre os povos, a inexistência de indignação éti-ca, a competição em lugar da solidariedade, tudo aumenta asede pelos narcóticos e pela degradação ambiental. Deixaclaro o grande equívoco de declarar guerra às drogas antesde declarar guerra às causas que levam ao consumo.

Nas relações internacionais, os debates sobre as subs-tâncias ilícitas, alimentados pela paranóica utopia da visãodo mundo sem entorpecentes, acompanham as péssimasnovidades dos resultados da fraquíssima cooperação inter-nacional e das malaplicadas políticas nacionais antidrogas.A sistemática teimosia pela recusa do diálogo sobre adescriminalização ou não dos alucinógenos fecha portas aoutras oportunidades; impede ataque frontal ao tipo de ca-pital que, em última instância, se beneficia dos negócios ilí-citos mantidos na clandestinidade, incluindo aí os relacio-nados à exploração predatória dos recursos naturais não-renováveis.

As perversas forças do narcotráfico e a impiedosa de-vastação da natureza destroem o homem, porque o capital,alimentado por elas, coloca o lucro antes dos valores e dosapelos à vida. A natureza hierarquizada da utilização dosganhos imediatos com a devastação florestal e com os en-torpecentes bem como a imperfeição das estratégias de com-

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bate ao narcotráfico expõem a debilidade das políticas pú-blicas, principalmente daquelas voltadas para a educação.

O capitalismo das drogas adapta-se aos diferentes re-gimes presentes no mundo globalizado das finanças. Cons-tata-se, ao final, que a globalização forçosamente rouba avitalidade do Estado Nacional porque, de certa forma, entremuitíssimas outras causas, igualmente beneficia-se do co-mércio dos ilícitos.

O aumento vertiginoso do consumo de entorpecentesdebita à conta da sociedade pesados prejuízos de ordem,inclusive, ética e moral. Cartéis, máfias e gangues ditam asordens, e suas leis são as acatadas. Na sociedade acostuma-da com a violência e com a corrupção, poucos corajosos mos-tram a ineficiência do proibitivo. Quase ninguém denuncia aimpotência das políticas de criminalização das drogas.

Desacompanhadas de cuidados especiais com a eqüi-tativa distribuição da renda, com a moral e a ética social, aspolíticas para o meio ambiente bem como aquelas para ocombate às drogas, na maioria dos Estados Nacionais, fruti-ficam bichadas. Em tal contexto, pode-se perfeitamente re-conhecer a necessidade da consciência coletiva na busca dadesobediência civil contra a ordem sustentadora da perver-sa distribuição da renda patrocinada pelo Estado, controla-do pelas elites corruptas. A denúncia do insucesso da re-pressão capitalista subdesenvolvida, abatendo pobres e ino-centando ricos, deve atrelar-se à permanente mobilizaçãocomunitária a favor dos direitos humanos como forma dedefesa contra a violência das drogas e do acúmulo ilícito deriquezas. O comprometimento, o envolvimento democráti-co e consciente da ciência e, principalmente, da educaçãona luta contra o narcotráfico, contra a injusta distribuiçãoda renda e pela sustentabilidade das políticas ambientaispoderão então deixar de ser um mero amontoado normativode boas intenções.

Ser contra a corrupção é saber trazer também respostasao controle sobre o tráfico de entorpecentes. Nascidas de

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uma interdependência de análises, críticas e observações,não se entende a degradação da educação e dos valores éti-cos sem sua inter-relação com o poder corruptivo das imu-nidades e dos privilégios.

O contrabando, o tráfico de armas, a corrupção políti-ca, a indústria da pirataria dos recursos naturais não-renováveis e a lavagem de dinheiro associam-se a variadasdimensões da economia e da vida política. Servem comoexemplo o mercado informal, a sonegação fiscal, abanalização da corrupção e, inclusive, os altos salários emconhecidos segmentos do serviço público no Brasil. No marda violência e miséria, representarão conjunto de peçasexplicativas da penetração da contravenção e da covardiacivil no tecido social. Redução de danos como parte de polí-ticas públicas voltadas para a educação não se limita a ar-ranjos cosméticos. Equivale a uma larga compreensão sobrea noção do valor da ética. Implica arquitetar o pacto socialenquanto ainda há tempo.

Pacto social

Em termos hobbesianos, o pacto é a troca da liberdadepela garantia de se poder viver em paz. Ninguém desmentea falta de segurança aportada pelo consumo abusivo dasdrogas ilícitas, que arrasa milhares e milhares de seres hu-manos. O Estado passa a imagem de fracasso se a educaçãoignorar como lidar com o fenômeno. A construção em tornoda frase Homo homini lupus7 — o homem lobo do homem —não tem como ser desígnio de realidade peremptória. A so-ciedade solidária, sem exclusão, transcende e desfaz afantasmagoria da perversidade inata do homem. O mesmose dá com a devastação ambiental, com o caos educacional ecom a problemática das drogas ilícitas, desventuras perfei-

7. Thomas Hobbes, O Leviatã, ou Matéria, forma de poder de um Estado eclesiás-tico e civil. São Paulo, Editora Nova Cultural, 1988.

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tamente superáveis porque o instinto de sobrevivência hu-mana é, por natureza, forte.

Na sabedoria da verdadeira solidariedade, residem aeducação libertadora com capacidade para o diálogo,8 atitu-des positivas e meios para a construção do pacto social comsoluções definitivas contra o abuso de drogas nocivas e con-tra a depredação dos recursos naturais. Recursos estes in-dispensáveis à sobrevivência da espécie.

Ao se falar sobre o pacto social proposto por Hobbes,vale relembrar a formação de sua nova razão ética. Para ojesuíta Henrique C. de Lima Vaz,

“as racionalidades éticas na modernidade conhecem, no seuponto de partida, uma revolução epistemológica tão profun-da quanto aquela da qual procederam as racionalidades cien-tíficas, vindo ambas a caracterizar os episódios iniciais naformação da razão moderna no século XVII e mostrando entresi uma homologia de estrutura que as torna reconhecíveiscom aspectos de um mesmo grande processo de transforma-ção da razão ocidental. Assim como Galileu foi o primeiroartífice reconhecido da nova razão científica, assim T. Hobbeso foi da nova razão ética. Fiel aos princípios do materialismomecanicista, Hobbes rejeita a teleologia do Bem, sobre a qualse fundava a Ética antiga, ao mesmo tempo em que o seunominalismo tornava inassimilável pelo seu pensamento oconceito de ‘natureza’. Desta sorte, a Ética hobbesiana é es-tritamente egoísta e utilitária, não sendo mais do que a trans-crição, no ‘pacto de sociedade’, do estado original do homemcomo indivíduo animal guiado pelos instintos daautoconservação e do domínio limitado apenas, no exercíciodo seu egoísmo fundamental, pelo temor da morte. A con-cepção hobbesiana da Ética reveste-se de uma significaçãoemblemática na gênese das nacionalidades éticas modernas,na medida em que mostra com inconfundível nitidez o cará-ter poético ou fabricador do conhecimento no domínio dosvalores éticos: Hobbes, com efeito, reconhece, como única ori-

8. Paulo Freire, Pedagogia do oprimido. Porto, Editora Afrontamento, 1975.

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ginalidade do homem, o ser o artífice da própria humanida-de. Por outro lado, reafirma-se em Hobbes a primazia do pólológico na estrutura da razão, ao propor ele a explicação doagir ético pelo método hipotético-dedutivo, segundo o mo-delo da geometria euclidiana. Assim, do mesmo modo comoa ciência moderna é galileiana na sua raiz, da qual nascemseus numerosos ramos, assim as racionalidades éticas mo-dernas prendem-se à raiz hobbesiana, da qual procedem suasduas ramificações maiores: o racionalismo e o empirismo.”9

Na sociedade hodierna, encarar as contravenções so-ciais com seriedade proporcional às desgraças por elasaportadas fere injustos direitos adquiridos pelas elites nopoder. Incomoda interesses econômicos e burocracias que,seguidas vezes, obstruem a sustentabilidade das políticaspúblicas. Por exemplo, a indústria da guerra às drogas e asindústrias do ambientalismo existem, no mundo inteiro, commilhares de organizações governamentais e não-governa-mentais vivendo do dinheiro público e privado, sem darrespostas satisfatórias. Isso demonstra a convivência per-missiva de burocracias com a ineficiência, ocasionando per-das irreversíveis. O proselitismo e o oportunismo castram acapacidade criadora da educação. Alargam as fronteiras dageopolítica da contravenção, da degradação humana e dadesgraça ambiental.

Educação na linha de frente

Em razão de constituir expressiva atividade de carátertransnacional, por seu enfrentamento ser objeto de políticasem nível de relações exteriores, a cooperação internacionalantidrogas deveria ser ativa e propositiva. No âmbito dasrelações internacionais, sua análise política reclama pesqui-sas sobre o papel das drogas no processo da integração pa-

9. Henrique Cláudio de Lima Vaz, Ética e a razão moderna. In: Ética navirada do milênio: busca do sentido da vida, 2. ed., São Paulo, LTr, 1999, p. 81-2.

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ralela. A comunidade científica, os educadores, os serviçosde inteligência e a diplomacia têm como dar atenção a estefenômeno. O recurso aos prolegômenos históricos da con-travenção e do contrabando lança luzes nos estudos sobreos passos do narcotráfico e suas estratégias.

A globalização da guerra contra as drogas, até o mo-mento, só tem feito a periferia sentir o efeito dos prejuízos enada dos benefícios. Os mentores da política interna e ex-terna de combate ao narcotráfico não enxergam isso. Fica,assim, difícil acreditar no sucesso das leis repressivas con-tra o consumo dos ilícitos. A toxicomania é tão velha quan-to o homem. Todavia, desde as inacabadas revoluções so-ciais dos anos 60, com o fortalecimento do hedonismo e doconsumismo, a sociedade internacional assiste passiva aorecrudescimento das drogas e aos atentados contra o meioambiente em diversos tabuleiros por todo o mundo.

Nos países amazônicos, a degradação ambiental e a con-centração de riquezas preparou o terreno às atividades donarcotráfico, presente, em escalas variadas, em todos seg-mentos sociais. Em razão das crescentes pressões e implica-ções do narcotráfico no plano da política externa, sucessi-vos governos ensaiam demonstrar maior preocupação. Istose faz tradicional e equivocadamente por meio da criaçãode novas leis, novos órgãos, novos cabides de emprego,novos tratados e convenções internacionais.

Até agora o Estado nem mostrou como usar a educa-ção, em todas as frentes de batalha, para enfrentar o desafiode formular um pensamento estratégico condizente com adupla e simultânea tendência de interiorização einternacionalização do narcotráfico. A preocupação com aquestão das substâncias alucinógenas internamente parecemenor que a preocupação com seus desdobramentos nasrelações internacionais. Idem para a questão ambiental. Porexemplo, de 1986 a 1998, o Brasil passou a ser signatário deacordos internacionais bilaterais sobre entorpecentes com17 países: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Cuba, Guiana,

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México, Peru, Paraguai, Suriname, Uruguai, Venezuela, Es-tados Unidos da América, Itália, Portugal, Reino Unido eRússia. As razões da ausência de três continentes inteirosnesta lista, África, Ásia e Oceania, não são fortuitas. Ou com-provam as limitações da dimensão internacional da diplo-macia antidrogas do Itamarati, extremamente atrelada aoeixo Estados Unidos — Europa, ou o resto do mundo eco-nomiza seu tempo, sabedor da distância entre o conteúdode tais acordos internacionais e sua prática.

As drogas e a questão ambiental, ambas centro de pre-ocupação de extensos segmentos da população, levaram osEstados Unidos da América a encarar a questão como umdesafio global e a desenvolver estratégias, forçando os alia-dos a uma tomada de posição. Todavia, sem a ajuda da edu-cação e da ética, a condenação pura e simples das drogasilícitas não resolve o problema. No enfrentamento donarcotráfico e da devastação das florestas, nota-se que osesforços diplomáticos e os termos operacionais encontradospelo Estado brasileiro até hoje não se configuram em ne-nhum tipo de instrumento efetivo para reversão ou altera-ção significativa do caos ecológico e do abuso das drogasilícitas no Brasil. Isso prova o profundo enraizamento dohábito do consumo de drogas espelhando o descuido paracom o homem.

Não se combate a destruição do homem e da naturezacom discursos. Desacompanhados de ação, caem no esque-cimento, inclusive aqueles proferidos, seja na Rio-92, sejana Primeira Reunião entre os Chefes de Estado e de Gover-no da América Latina e Caribe e da União Européia, comparticipação do Presidente da Comissão Européia, no Riode Janeiro, em finais de junho de 1999. Nesta Cimeira todosexpressaram o desejo de cumprir e de acompanhar os acor-dos da XX Sessão Extraordinária da Assembléia das NaçõesUnidas sobre Medidas Conjuntas para Enfrentar o Proble-ma das Drogas. Comprometeram-se a promover e a prote-ger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.Fortalecer a liberdade individual, congregar esforços para

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combater todas as formas de crime transnacional e ativida-des afins, como lavagem de dinheiro, tráfico de mulheres,de crianças e de migrantes, a fabricação e o comércio ilícitode armas de fogo, munições e materiais conexos.

A desigual repartição do pão

Pontos focais da política interna e externa de expressivonúmero de países, nem por isso se enfrenta o problema glo-bal do narcotráfico e da degradação ambiental com a serieda-de e o rigor que merecem, porque nas democracias da perife-ria as drogas e o contrabando de riquezas naturais transfor-mam-se em instrumento de poder ao corromper importan-tíssimos segmentos do judiciário, do executivo e do legislativo.

Vale repetir que a deterioração dos valores sociais, abanalização da violência e da exclusão, a fome pelo lucrofácil, o desleixo para com a educação, os intocáveis privilé-gios das elites, o menoscabao ético e o hedonismo fragilizama sociedade. Contribuem para o crescimento da erva dani-nha do crime organizado, que atua tanto nos negócios dasdrogas quanto nos da devastação florestal. Não menos im-portante, o testemunho da negligência e da inoperância doEstado aniquila o cumprimento de suas funções básicas, emmatéria de educação, de distribuição de renda e de segu-rança. A desigual repartição do pão, patrocinada pelo pró-prio Estado, germinou a semente da banalização dacorrupção. O aprendizado forçado, levando a sociedade aconviver em meio ambiente poluído e degradado, cheio decorrupção e de violência, é o mais grave de tudo. Enquantoo homem não estiver livre da algema dessa trama crimino-sa, a conjunção desses fatores gera condições propícias aoadensamento de problemas relativos ao desrespeito aos di-reitos humanos, ao consumo de substâncias ilícitas e àgravíssima depleção dos recursos naturais.

Nos espaços sociais em que a mão do narcotráfico ocupao lugar do Estado, distribuindo emprego e favores como

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pagamento por enterros, remédios, material escolar, comi-da, roupas e promovendo o lazer, apoucam-se as chancesde a sociedade libertar-se dos grilhões do crime organiza-do. Agora pode-se dizer o mesmo em relação à corrupção:onde ela existe, o Estado definha. Quanto maior a corrupção,menor a indignação refletida no número de denúncias con-tra irregularidades e descuidos ambientais.

O não envolvimento da educação com todas as suaspotencialidades na política antidrogas dificulta a associa-ção do debate sobre o narcotráfico com realidades igualmen-te importantes. Esconde os elos do mencionado fenômenosoldados a questões como a fragilidade democrática, a ex-clusão social, a desordem, a corrupção política, a má distri-buição de renda, a violência, o desrespeito aos direitos hu-manos, o crescimento sem sustentabilidade, a ingovernabili-dade, a degradação da justiça, o caos ambiental, o nepotismoe a corrupção. Enquanto esse somatório de irregularidadespermanecer tolerado, enquanto a discussão conservar-serestrita a níveis normativos, guiados por políticasepidérmicas, tudo continuará de mal a pior.

Tradicionalmente, não apenas o narcotráfico, mas tam-bém a degradação ambiental, com insistência são trabalha-dos em termos elementares, ou seja, como questão de res-ponsabilidade apenas estatal. Daí o oneroso equívoco dasautoridades governamentais ao perpetuar as rédeas do com-bate nacional às drogas e à destruição ambiental, em mãosde uma burocracia estatal pouco operativa. Em decorrên-cia, os tribunais, as casernas e as secretarias para o meioambiente acreditam ser os principais — senão exclusivos —instrumentos do Estado na resolução de problemas vin-culados às drogas e ao meio ambiente. O resultado dissotodos conhecemos. A legislação brasileira consagrou, nosanos 1970, um enfoque pautado na criminalização do con-sumo, com pouquíssima ênfase à prevenção e à contençãodo tráfico interno. As conseqüências disso ainda perduram.Pior é a constatação da inexistência, em todo esse período,de aplicação de políticas públicas articuladas, e o desuso da

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educação no enfrentamento do consumo abusivo das dro-gas ilícitas.

Equivocadamente, pensam os formuladores de políti-cas ser possível combater o quadro de devastação ambientale de proliferação do abuso de drogas, criando novas buro-cracias. A falta de vontade nacional e de coragem civil naluta em prol de educação para uma sociedade menos injus-ta e ambientalmente mais saudável favoreceu, sem dúvida,a penetração do narcotráfico e da degradação da natureza.No Brasil, a carência de moralidade leva o legislativo, o exe-cutivo e o judiciário a desmoronar sob o peso das regaliasde várias castas dos seus servidores. Quando o exemplo nãovem de cima, a democracia passa a ser aviltada e avacalhada.

Um mundo para todos

A geopolítica das drogas e a preocupação de um mun-do para todos coadjuvou o morticínio do princípio da sobe-rania, transfigurando as fronteiras nacionais mais em sím-bolo cartográfico do que realidade política. A integraçãopromovida pelo banditismo desde seu nascedouro ignora oprincípio da soberania bem como limites e marcos divisó-rios. A saída ilegal das riquezas, a poluição mercurial e ohistórico contrabando na América Latina brindam a trans-nacionalidade com ambientes extremamente propícios àcontravenção. O contrabando, alimenta secularmente, eli-tes e gerações de políticos no continente. Aí, com certeza,plantaram-se as raízes históricas da tolerância para com adegradação ambiental e do envolvimento das elites nos ne-gócios do narcotráfico.

Não importa onde, se na Europa, na América Latinaou nos Estados Unidos da América. Em quase todas as na-ções, inclusive naquelas em que a legislação ambientalaplica-se com determinação, os resultados não são de todosatisfatórios. Na questão da política antidrogas, costuma-seter a cópia de experiências desastradas de outros lugares.

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Isso basta na argumentação para a busca de soluções pró-prias. Por infortúnio, o Brasil está entre os últimos do mun-do no campo da distribuição de renda, da segurança e dejustiça. Neste país, por exemplo, justiça social ainda é sinô-nimo de distribuição de renda, o que aliás, entre nós sequercomeçou.

Na Europa e Ásia, o conceito de justiça social e de di-reitos humanos é profundamente mais radical: significa se-gurança, educação, saúde, qualidade de vida, do ar, da água,dos alimentos, acesso ao conhecimento, à informação, etc.Falta, aqui e alhures, a visão do conceito da inclusão em seusentido abrangente, aumentando o espaço de manobra dosDireitos de Terceira Geração e, com isso, usando a arma dacidadania, a arma da ética e a arma da educação em políti-cas públicas contra as drogas ilícitas e em prol dasustentabilidade de atividades econômicas que possam subs-tituir a lucratividade do narcotráfico.

A questão ambiental, os direitos humanos e o narco-tráfico inscreveram-se, com prioridade, na agenda diplomá-tica brasileira, defasados quase um quarto de século em re-lação à pauta diplomática dos países centrais. Em um paísonde privilégios injustos são garantidos pela própria CartaMagna, não sobram recursos para estender às maiorias oacesso à educação, à saúde e ao direito de viver em seguran-ça num meio ambiente limpo e seguro.

O desiderato de cadeira, como único representantelatino-americano no Conselho de Segurança da ONU,desacompanhado dos cuidados necessários em prol de ime-diatas e radicais reformas a favor da justiça social, dos direi-tos humanos pode não passar de sonho. Nada é tão urgentequanto o acesso da população aos benefícios da verdadeirademocracia. A segurança, a educação e a distribuição da ren-da são três deles. Isso, além de fomentar a respeitabilidadeinternacional pelo país, diminuiria o ritmo instável da exis-tência nacional nas desigualdades.

O narcotráfico à solta, os direitos humanos violados eo meio ambiente degradado, pela teoria do direito de inge-

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rência ou da soberania relativa, essa trilogia constitui espé-cie de rachadura profunda nas bases do Estado soberano eindependente. Vale como conclamação por soluções queviolam as fronteiras nacionais e os princípios clássicos dasoberania nacional. Sabedores de que as tormentas de hoje,a favor da violabilidade fronteiriça bafejam fortes, paísescomo o Brasil, em lugar de contramurar suas posiçõesimplementando políticas públicas eficientes em prol dasustentabilidade ambiental e em prol da sinergia de recur-sos na luta contra as drogas, acomodam-se na ilusão confor-mista de que a criação de novas burocracias resolverá o pro-blema.

A ação policial-militar internacional antidrogas passouda teoria para a prática princípios intervencionistasgradativamente incorporados ao direito internacional. Omesmo poderá ocorrer na Amazônia e seu meio ambiente.Por tal razão, a aplicação universal dos princípios dos direi-tos humanos, a preservação das florestas tropicais e a guer-ra sem fronteiras contra o narcotráfico se sobrepõe à sobera-nia dos Estados Nacionais. Conscientes disso, o podercastrense e a diplomacia brasileira seguidas vezes sentem-se desamparados no seu relacionamento internacional.

Reconfiguração das políticas educacionais

O narcotráfico e o meio ambiente vistos como questãosupranacional obrigam o poder executivo no Brasil a atrelarsua política externa a interesses dos Estados Unidos daAmérica. Leva o Estado a mostrar presença com os paísesamazônicos e parceiros do Mercosul. Lembra a urgência dotratamento de duas questões: a das drogas nos espaços so-ciais transfronteiriços e a da questão da destruição das flo-restas tropicais na Amazônia. Em respeito a isso, merece par-ticular atenção o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA),firmado em Brasília em julho de 1978 pelos representantesdos governos da Bolívia, do Brasil, da Colômbia, do Equa-

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dor, da Guiana, do Peru, do Suriname e da Venezuela. OTCA assistiu de braços cruzados ao abalo pelo narcotráfico,pela devastação florestal da mútua confiança entre seusmembros. A segurança e a confiança significaram, no pas-sado, a base maior de apoio da convivência entre os paísesamazônicos. O mencionado tratado prestou-se a praticamen-te nada, nem mesmo a uma política de resultados para con-ter a poluição dos rios amazônicos, as queimadas ou fomen-tar política de cooperação ao combate dos ilícitos nos espa-ços sociais transfronteiriços amazônicos. Por isso, uma covarasa espera o caixão desta iniciativa diplomática natimorta.

O Tratado de Cooperação Amazônica é exemplo, nasrelações internacionais, a ser evitado. Em sua substituição,estuda-se a criação da Organização do Tratado de Coopera-ção Amazônica, prevendo secretaria permanente com fun-cionamento em Brasília. Essa futura organização terá forçasimbólica de ser o primeiro organismo internacional comsede na capital brasileira. Seu perigo, antes mesmo de nas-cer, é o de não se transformar de fato em uma agência dedesenvolvimento, integração e cooperação entre os seusmembros.

O debate sobre a questão ambiental e as drogas no es-paço amazônico cedo ou tarde levará à importantíssimareconfiguração contemporânea das formas das políticas edu-cacionais e do significado da segurança democráticahemisférica. Sabe-se ser impossível a proteção do meio am-biente, da democracia bem como a luta contra os cartéis dasdrogas em países cheios de desigualdades sociais, ampara-das na corrupção dos privilégios adquiridos, que deseducama sociedade e são protegidas por leis injustas, criadas pelaselites no poder em seu próprio benefício.

Os conceitos de sustentabilidade e de segurança hu-mana fabricados pelo capitalismo desenvolvido, depois daqueda do muro de Berlim, recordam fraquezas das antigasdoutrinas de contenção nestes novos tempos em que os ini-migos famosos são as drogas ilícitas, o terrorismo e a des-

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truição ambiental. Mostra perfeitamente as limitações daeducação para o desenvolvimento nos tempos doglobalismo. Expõe a incompetência transnacionalizada daspolíticas antidrogas. A globalização da ilegalidade das dro-gas caminha paralelamente à globalização do crime organi-zado. Os países globalizados arcam com os danos e com oônus do fiasco da guerra às drogas terceirizada pelosglobalizadores. O paradoxal é que as políticas antidrogas eas políticas de proteção ambiental, pela Terra inteira, cons-tituem patrimônio do monopólio dos Estados Nacionais. Sãoencaradas como razão de Estado e de segurança nacional.Arquitetam-se sob as luzes do que existe de mais arcaicodentro do realismo, mesmo sendo fenômenos brisantes daglobalização. Daí os seus equívocos. O hibridismo da in-terpretação globalista com os tropeços explicativos em facedo velho que não morreu e do novo que não nasceu, consi-derando a larga tradição transnacional das drogas e dosproblemas ambientais, pena em suas promessas eluci-dativas.

Em termos de políticas ambientais e antidrogas, nenhu-ma desvencilhou-se totalmente do oneroso fardo da in-fluência do Estado. Neste sentido, é necessário aplaudir aajuda conceitual da teoria marxista, que recusa ver o EstadoNacional como ator principal da sociedade. Para Marx, oEstado é marionete, fantoche nas mãos de grupos dominan-tes. Sendo assim, o narcotráfico e a devastação florestal, queabrem, com as queimadas, espaço para a pecuária de corte epara as monoculturas de exportação, precisam ser vistos tam-bém como Marktpreise und Marktewert, Surplusprofit. Em re-sumo, mercado de preço, de valor e mais-valia.

Sabe-se que o fim da bipolaridade, por certo tempo,precipitou principalmente a academia a dar as costas paraas interpretações marxistas. Os holofotes da opinião públi-ca internacional centraram-se em novos temas, como o des-respeito aos direitos humanos, a degradação ambiental e onarcotráfico. Infelizmente, a educação continuou esquecidae a experiência de todos estes anos evidencia que o dinheiro

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SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 141

do contribuinte é jogado fora na compra de remédios falsoscontra a degradação ambiental e o narcotráfico.

A chave do sucesso do crime organizado, amparadopela omissão do Estado operando contra o meio ambienteou com as drogas ilícitas, consiste em acompanhar com ra-pidez a sagacidade do capitalismo, misturando os negóciosilícitos à economia formal. Os laboratórios para o refino dedrogas, não importa onde, comprovam a esperteza sem li-mites dos narcotraficantes. A transnacionalização das eco-nomias, a globalização aportada pelos países globalizadorese o desemprego misturaram gente especializada local à quechega de fora, recriando conhecimentos necessários a prati-camente todas as etapas do narcotráfico. As estratégias mos-tradas pelo comércio de drogas no sentido de impedir odesabastecimento necessário nas etapas de refino e a logísticado contrabando de madeira nobres são exemplares. Osinsumos químicos essenciais à elaboração da heroína, qua-se os mesmos destinados à fabricação da cocaína, proces-sam-se menos em indústrias localizadas nas cidades brasi-leiras e mais no exterior, em quase metade nos Estados Uni-dos. Atualmente, parte do refino da cocaína e da heroínadesloca-se para dentro de conglomerados urbanos, geran-do situações novas. Paradoxalmente, também os produtos,como a madeira e a soja, extraídos da Amazônia com enor-mes e irreparáveis custos ambientais, terminam nos paísescentrais, notadamente entre os que mais expressam pre-ocupações para com os problemas do meio ambiente na pe-riferia mundial. Isso significa que poucas esperanças resta-rão se profundas reformas não forem efetuadas nas relaçõesde troca entre os desenvolvidos e os subdesenvolvidos.10 Du-rante décadas, as velhas doutrinas de defensão impregui-naram-se de vícios políticos e sociais. Todo esse arcabouçoimpede desmentir o caráter epidérmico das preocupaçõespara com a educação, a ética e a segurança humana. O di-

10. Argemiro Procópio (coord.), Ecoprotecionismo: comércio internacional, agri-cultura e meio ambiente. Brasília, BIRD/IPEA, 1994.

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vórcio do crescimento econômico com a justiça ampara aperversa distribuição da renda. O deixar de mobilizar osrecursos educacionais em todas as regiões numa constantevigília cívica contra as desigualdades e contra a destruiçãoda vida comprova o quão distante ainda está a opção pelasustentabilidade por meio de educação e da ética.

Referências bibliográficas

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CAPÍTULO 6

CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA ODESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL BRASILEIRO*

Eduardo Baumgratz Viotti

Introdução: A herança de um estilo de desenvolvimento

O desenvolvimento foi a idéia força que mobilizou as na-ções capitalistas pobres no pós-guerra. A grande maioriadas políticas e teorias de desenvolvimento identificaram aindustrialização como a via da superação da pobreza e dosubdesenvolvimento. Tal identificação é resultado do en-tendimento de que a industrialização era o veículo da in-corporação acelerada do progresso técnico ao processo pro-dutivo e, portanto, da contínua elevação da produtividadedo trabalho e da renda.

O esforço de uma nação para industrializar-se no iní-cio do processo de surgimento e consolidação da indústriano mundo é, contudo, completamente diferente daquele por

* Esse documento foi escrito como um subsídio para a elaboração do capí-tulo Ciência e Tecnologia e Desenvolvimento Sustentável da Agenda 21 Brasilei-ra, Projeto MMA/PNUD BRA/94/016.

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que passa uma nação quando já existem outras competindonos mercados mundiais de produtos industriais.

O Brasil é um desses casos de industrialização retardatá-ria, ou seja, é uma economia cujo processo de industrializa-ção ocorre em um momento em que existe um setor indus-trial consolidado em outras partes do mundo, o qual atendeàs necessidades de manufaturas dos mercados internacio-nais, inclusive de seu mercado doméstico. Essa característi-ca marca profundamente a natureza de seu processo demudança técnica e seu próprio estilo de desenvolvimento.

Contrariamente ao que ocorreu nas economias hoje in-dustrializadas, o Brasil não pôde e não pode contar com avantagem de competir nos mercados (nacionais e interna-cionais) com produtos inovadores (e que, por isso, não têmconcorrentes) ou produzidos por tecnologias inovadoras (e,portanto, mais produtivas ou eficientes do que as utilizadaspelos concorrentes).

A competitividade das economias industrializadas é ba-seada no emprego de tecnologias inovadoras e, por isso,essas economias são adequadamente caracterizadas comoSistemas Nacionais de Inovação. Economias retardatárias comoa do Brasil, no entanto, baseiam seu sistema de mudançatécnica na absorção e no aperfeiçoamento de inovações ge-radas nas economias industrializadas e, por isso, são me-lhor caracterizadas como Sistemas Nacionais de AprendizadoTecnológico (Viotti: 1997). O fato de os processos de mudan-ça técnica das economias retardatárias serem basicamenterestritos ao aprendizado tecnológico limita profundamentea competitividade de seus produtos industriais.

Essa condição estrutural obriga as economias retarda-tárias a recorrer a formas especiais de compensação pela in-ferioridade das tecnologias que empregam em seu esforçode industrialização. Em outras palavras, para viabilizar seusprocessos de industrialização, tais economias necessitam en-contrar mecanismos que compensem a falta de competitivi-dade tecnológica de seus produtos manufaturados.

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A competitividade inicial dos produtos industriais daseconomias retardatárias pode basear-se nos baixos preçoslocais de mão-de-obra e de matérias-primas, na exploração(predatória ou não) de seus recursos naturais e, ainda, naproteção ou subsídio estatal. Contudo, essas vantagens com-parativas não são suficientes para assegurar o avanço doprocesso de industrialização, assim como não o são paragarantir uma verdadeira e sustentada competitividade.

A vantagem representada pela abundância relativa dematérias-primas é, em certo sentido, ilusória. Só será efetivase as matérias-primas forem vendidas para a indústria locala preços mais baixos do que os predominantes no mercadointernacional. Isso somente ocorre quando seus produtoressão induzidos pelo Estado a fazê-lo.

Apesar de os baixos salários representarem uma van-tagem comparativa no início do processo de industrializa-ção, a competitividade das economias retardatárias, a longoprazo, jamais poderá estar apoiada simplesmente nessa van-tagem. Quatro razões fundamentais suportam essa conclu-são. A primeira é que os salários tendem a subir com o avançodo processo de industrialização. A segunda é que o naturalavanço tecnológico, nos demais países, certamente elevaráa produtividade do trabalho naquelas economias, reduzin-do ou eliminando assim a vantagem representada pelos bai-xos salários. A terceira razão é que as indústrias intensivasem mão-de-obra estão sempre se deslocando para países comsalários mais baixos. A última e mais importante é que nãovale a pena (ou seja, não contribui para o desenvolvimento)participar de uma competição que será vencida pelo paísque pagar os mais baixos salários. Em síntese, ter uma es-tratégia de competitividade que se baseia essencialmenteem baixos salários é competir pela miséria, não pelo desen-volvimento.

A necessária concessão de proteção ou subsídio à in-dústria nascente pelo Estado tampouco será eficaz ou sus-tentável a longo prazo se a absorção de capacidade de pro-

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dução industrial não estiver associada a um eficaz esforçotecnológico que assegure a progressiva elevação da produ-tividade da indústria local.

As formas de compensação da falta de competitividadetecnológica dos produtos industriais das economias retar-datárias analisadas acima asseguram, de forma direta, ape-nas a competitividade espúria a esses produtos. Ganhos decompetitividade são considerados espúrios quando são al-cançados à custa da redução das condições de vida da po-pulação (atual ou futura) ou da exploração predatória dosrecursos naturais.

Somente a competitividade autêntica é compatível com oefetivo desenvolvimento a médio e longo prazos. Ganhosde competitividade autêntica só podem ser obtidos por in-termédio da efetiva elevação da produtividade ou da quali-dade da produção nacional.1

A única forma de assegurar ganhos de competitividadeautêntica é o desenvolvimento de um esforço tecnológicoeficaz por parte das economias retardatárias. O esforçotecnológico dessas economias é, contudo, limitado pela na-tureza de seus sistemas nacionais de mudança técnica.

Existem três formas básicas de mudança técnica: a inova-ção, a absorção de inovações e o aperfeiçoamento de inovações (asquais, na perspectiva neoschumpeteriana convencional,corresponderiam de maneira imprecisa aos conceitos de ino-vação, difusão e inovação incremental).

Os sistemas nacionais de mudança técnica característi-cos das economias industrializadas — os Sistemas Nacionais deInovação — incorporam, além da simples capacitação paraproduzir (isto é, da capacidade de absorver tecnologiaspreexistentes necessárias para produzir), as capacitaçõestecnológicas para aperfeiçoar as tecnologias absorvidas epara inovar criando novas tecnologias. Essas nações seguem

1. Os conceitos de competitividade espúria e autêntica foram formulados porFajnzylber (1988).

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uma estratégia tecnológica que conjuga o esforço de domi-nar o processo de produção com um esforço deliberado e bem-sucedido de domínio sobre o processo de produção de tecnologias.

As economias retardatárias, contudo, seguem uma es-tratégia tecnológica que objetiva essencialmente a absorçãode capacitação para produzir produtos manufaturados. Inicial-mente, seus sistemas de mudança técnica — Sistemas Nacio-nais de Aprendizado Tecnológico — desenvolvem apenas acapacitação para absorver tecnologias geradas em outrospaíses. Essa capacitação é melhorada, de forma natural, comsimples aquisição de experiência (em termos de tempo evolume) de produção — learning-by-doing. Contudo, o de-senvolvimento de uma efetiva capacitação de aperfeiçoa-mento das tecnologias absorvidas só é adquirida como re-sultado de um esforço tecnológico deliberado.

As economias retardatárias que desenvolveram sim-plesmente a capacitação tecnológica para produzir podemser caracterizadas como Sistemas Nacionais de AprendizadoTecnológico Passivo. Sua reprodução econômica depende es-sencialmente de mecanismos que proporcionem ganhos decompetitividade não-tecnológicos (espúrios) para seus pro-dutos. As economias retardatárias que conseguem conjugarseu esforço de capacitação para produzir com um esforçodeliberado e bem-sucedido para dominar e aperfeiçoar atecnologia de produção absorvida são mais bem caracteri-zadas como Sistemas Nacionais de Aprendizado TecnológicoAtivo. Tais economias podem reduzir significativamente suadependência de mecanismos que assegurem competitivi-dade espúria para seus produtos.

A incorporação, pelos sistemas de aprendizadotecnológico, de capacitação para aperfeiçoar as tecnologiasabsorvidas representa um passo decisivo de economias re-tardatárias em direção à redução de sua dependência de me-canismos que asseguram ganhos espúrios de competitividade.

A competitividade das economias retardatárias, cujossistemas de mudança técnica limitam-se ao simples apren-

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dizado passivo depende permanentemente dos baixos oudeclinantes salários reais de seus trabalhadores, da explora-ção predatória de seus recursos naturais ou dos mecanis-mos de proteção ou subsídio estatal.

Assim, uma importante parte das condições parti-cularmente perversas — pobreza, miséria, desigualdade edegradação ambiental —, características da maioria dos pro-cessos de desenvolvimento de economias retardatárias, éconseqüência da falta de um sistema de mudança técnicaque assegure uma competitividade autêntica para seus pro-dutos. Em outras palavras, essas economias não consegui-riam sobreviver se não pudessem extrair competitividade daexploração predatória de seus recursos naturais e humanos.

O aprendizado passivo e a competitividade espúria po-dem não ser, contudo, mera fatalidade dos processos de in-dustrialização retardatária. Podem constituir-se, na verda-de, em uma etapa inicial de um processo mais longo de trans-formação de sistemas nacionais de mudança técnica. Paraisso, essa etapa inicial precisa ser sucedida por uma trajetó-ria de aprendizado tecnológico ativo. Na verdade, é essalógica que justifica políticas de proteção e apoio à indústrianascente.

Assim, a superação das condições perversas associa-das à competitividade espúria característica da maioria dosprocessos de desenvolvimento retardatário inicia-se com aconstrução de um deliberado e consistente esforçotecnológico, voltado para a superação dos limites do apren-dizado passivo. Esse primeiro passo — a adoção de umaestratégia tecnológica de aprendizado ativo — constitui-se,também, em um passo necessário (mas não suficiente) paraalcançar uma estratégia efetivamente inovadora, que é aúnica que efetivamente assegura o predomínio dacompetitividade autêntica.

O Sistema Nacional de Aprendizado Tecnológico bra-sileiro é, de forma geral, um caso claro de sistema de apren-dizado passivo e, por isso, não é capaz de assegurar um

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mínimo de competitividade tecnológica para a maioria deseus produtos. Por isso, precisa continuar a basear grandeparte de sua competitividade em salários aviltados, na pro-teção ou subsídio estatal e na exploração predatória de seusrecursos naturais. Isso porque carece do vetor de dinamis-mo representado pela capacitação tecnológica para aperfei-çoar as inovações absorvidas, além da óbvia carência dacapacitação para inovar.

Vale a pena chamar a atenção, aqui, para um fato es-treitamente relacionado à natureza passiva de nosso siste-ma de aprendizado tecnológico: os baixíssimos níveis médiosde educação dos trabalhadores brasileiros. Tais níveis educacio-nais certamente constituem uma das causas da passividadede nosso sistema de mudança técnica. Foram, contudo, tam-bém funcionais para um sistema de mudança técnica queconseguia viabilizar a reprodução da economia com a sim-ples absorção da capacidade de produzir. Nessas condições,um padrão elevado de educação da massa dos trabalhado-res é supérfluo.

Um elevado nível educacional dos trabalhadores é devital importância, contudo, para sistemas ativos de apren-dizado tecnológico, como o de algumas economias do lesteasiático. Nesse caso, o nível educacional dos operários é fa-tor-chave da economia, na medida em que esses sistemastambém dependem do aperfeiçoamento das inovações ab-sorvidas. Grande parte desse aperfeiçoamento deriva dire-tamente do que ocorre no “chão das fábricas”, onde a quali-ficação dos operários é vital para a capacidade de o sistemaaperfeiçoar as tecnologias de produção absorvidas.

Ao lado do baixo nível educacional médio da popula-ção brasileira, outra característica estrutural do sistema demudança técnica brasileiro merece ser destacada aqui: a qua-lificação relativamente elevada de seu subsistema de produção deconhecimento científico. A base de recursos humanos elaboratoriais para pesquisa e desenvolvimento existente noBrasil é relativamente boa, mas parece funcionar de manei-ra desvinculada das necessidades do processo produtivo.

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A natureza excepcional da desvinculação indicada aci-ma pode ser percebida pela análise dos dados que apare-cem na Tabela. A contribuição brasileira para a produçãocientífica mundial (inferida pelo número de publicações debrasileiros indexadas no Science Citation Index) é vinte vezessuperior a sua contribuição para a produção tecnológicamundial (inferida pelo número de patentes concedidas nosEUA a residentes no Brasil). A situação brasileira não en-contra paralelo em nenhum dos outros oito países que apa-recem naquela tabela. A relação existente entre ospercentuais de publicações e o de patentes é, no caso brasi-leiro, doze vezes mais elevada do que a média da mesmarelação para os demais países.

Essa situação de desequilíbrio indica a ocorrência deum certo grau de alienação entre a capacidade brasileira deproduzir conhecimentos científicos e as necessidades de co-nhecimentos tecnológicas requeridas pelo processo produ-tivo. O fato de a base científica brasileira, de qualidade rela-tivamente elevada, corresponder a uma produção tecno-lógica relativamente insignificante, está, também, relacio-nado às características básicas do sistema de mudança téc-nica brasileiro.

Tabela: Participação Percentual de Países Selecionados no Total Mundial deArtigos Científicos e no Número de Patentes Concedidas nos EUA

1993

Fontes: Science Citation Index e Science and Engineering Indicators, 1996, National Science Board(US Government Printing Office, 1996), citado em CCT Atividades, MCT/CCT,Brasília, 1998.

Notas: (*) Percentagem do número total de artigos publicados em periódicos indexadospelo Science Citation Index que são de autores do país correspondente. (**)Percentagem do número total de patentes concedidas pelo US Patent Office aresidentes do país correspondente.

Brasil EUA R. Unido Alemanha França Itália Israel Coréia Japão

Publicações*(A) 1.26 33.6 7.52 6.71 5.23 2.93 1.03 1.03 8.84

Patentes 0.06 54.13 2.33 7.01 2.96 1.31 0.32 0.79 22.67Concedidas**(B)

A/B 20.00 0.62 3.22 0.96 1.76 2.22 3.13 1.26 0.39

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CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL BRASILEIRO 151

A primeira característica básica é a de que a inovação (aforma de mudança técnica que maior potencial tem para be-neficiar-se do avanço do conhecimento científico) é um fenô-meno essencialmente estranho a esse sistema. Em outras pa-lavras, o sistema brasileiro é, como anteriormente indicado,essencialmente um sistema de aprendizado tecnológico, e nãoum sistema de inovação. A segunda característica é a de queesse sistema de aprendizado tecnológico é basicamente denatureza passiva, isto é, o esforço tecnológico da maioria dasempresas líderes concentrou-se basicamente na simples assi-milação de capacitação para produzir.

Com exceção de algumas poucas empresas líderes (es-pecialmente empresas de origem estatal) que têm estratégiaativa de aprendizado tecnológico, e algumas, raras, que che-gam a ser inovadoras, a maioria das empresas não necessitourealizar, durante o período de industrialização, um esforçotecnológico significativo para assegurar sua competitividade.

O Brasil é um caso de economia retardatária que teveum grande êxito em seu processo de absorção de capacidadede produzir manufaturas. Conseguiu implantar um enormeparque industrial, que conta com um nível de diversificação,complexidade e integração alcançado por pouquíssimos paí-ses no mundo. Esse processo de industrialização foi o princi-pal responsável pelo fato de o Brasil ter sido o país que maiscresceu em todo o mundo entre 1900 e 1980.

Contudo, esse expressivo processo de industrializaçãofoi insuficiente para assegurar o desenvolvimento econô-mico como previam as antigas teorias de desenvolvimento.Fracassou em seu objetivo de assegurar níveis relativamen-te igualitários de um padrão de vida elevado e crescentepara sua população. Mostrou-se incapaz de manter seu di-namismo, isto é, seu crescimento, a partir de fins da décadade 70. Não reduziu, antes agravou, a desigualdade da dis-tribuição da renda nacional, além de não ter sido capaz deeliminar a miséria. Mostrou-se, ademais, pouco responsá-vel do ponto de vista ambiental.

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Um conjunto complexo de fatores está relacionado a essaherança do estilo brasileiro de desenvolvimento. No entanto,a incapacidade de gerar uma dinâmica própria de desenvol-vimento tecnológico e, conseqüentemente, de elevação da pro-dutividade e competitividade (autêntica) dos bens e serviçosbrasileiros, está na raiz de muitos daqueles problemas.

Durante os anos 1990, o Brasil abandonou as políticasdesenvolvimentistas ou industrializantes que foram, em par-te, responsáveis pelos problemas referidos acima. Desmon-taram-se as políticas industrial e tecnológica.2 Passou-se abuscar, de acordo com a nova doutrina neoliberal hegemô-nica, a abertura e a desregulamentação dos mercados inter-nos e externos. Com isso, esperava-se, entre outras coisas,fazer com que a pressão competitiva, aumentada pela aber-tura do mercado interno para produtos e capitais externos,mudasse o padrão tecnológico das empresas e a próprianatureza do sistema de mudança técnica brasileiro.

A expectativa de sucesso dessa estratégia parte do pres-suposto de que, em paralelo à globalização dos mercadosde produtos e capitais, estaria ocorrendo um processo deglobalização tecnológica, isto é, uma dispersão internacio-nal do processo de produção e emprego de inovações. Porisso, a abertura dos mercados brasileiros criaria as condi-ções necessárias para que o país pudesse beneficiar-se des-se processo de redução das diferenças dos sistemas nacio-nais de mudança técnica.

As melhores evidências, contudo, não corroboram a su-posição da existência de um fenômeno generalizado deglobalização tecnológica.3 Parecem indicar até mesmo a pro-babilidade da ocorrência do contrário, isto é, da existênciade um processo de especialização e diferenciação crescen-tes dos sistemas de mudança técnica das nações, conse-

2. As grandes linhas da política de C&T brasileira nos anos 1990 podem servistas em Viotti, 1998a.

3. Ver a esse respeito Archibugi e Michie (1995), Lastres (1995 e 1997), Patele Vega (1997), Patel e Pavitt (1995 e 1998) e Viotti (1998b).

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qüência do processo de globalização em geral. Há indica-ções de que a globalização esteja, particularmente no que serefere ao processo de inovação estrito senso, contribuindopara a consolidação de ilhas nacionais de competência, cer-cadas por oceanos de nações sem competência para inovar.

Portanto, não é possível crer que a simples inserção daeconomia brasileira nos mercados internacionais globali-zados representará uma solução natural para o problemade seu baixo nível de desenvolvimento tecnológico. A pres-são competitiva dos mercados abertos não parece ser, isola-damente, suficiente para mudar a natureza do sistema demudança técnica brasileiro.

Obviamente, também não é possível sustentar a visãoingenuamente otimista de que a liberalização da economiapoderá ser responsável pela superação do padrão perversode distribuição de renda característico do Brasil. Apesar deessa política poder contribuir para a redução da iniqüidadena distribuição de renda pelo combate à inflação e ao prote-cionismo, existem sérias razões para crer que outros vetoresdo processo de concentração estejam sendo introduzidos oureforçados por ela. Um forte indício é o fato de as políticasneoliberais estarem contribuindo para o aumento das desi-gualdades sociais até mesmo em países como os EstadosUnidos e o Reino Unido.

Portanto, não há razão para continuar a crer que a me-lhor política é a não-política, como propõe a doutrina econô-mica hoje dominante. Muito tempo já foi perdido na fé deque a solução dos problemas brasileiros viria do simplesdesmonte das políticas desenvolvimentistas e da conseqüen-te liberação das forças e potencialidades do livre mercado.

C&T para o desenvolvimento sustentável brasileiro

O desenvolvimento que se almejou durante grandeparte do século XX não foi alcançado pelo Brasil, comotampouco o foi pela maior parte das outras nações pobres.

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Tomou-se consciência, ademais, da insustentabilidade doestilo de desenvolvimento das nações ricas e da impossibi-lidade de sua universalização. Nesse contexto, surge, nosfins do século XX, uma nova idéia força que está progressi-vamente mobilizando as nações: o desenvolvimento sustentá-vel. Um novo estilo de desenvolvimento que tem como metaa busca da sustentabilidade social e humana capaz de sersolidária com a biosfera. A sociedade brasileira, em conso-nância com esse movimento universal, também busca cons-truir esse novo estilo de desenvolvimento.

O antigo estilo de desenvolvimento brasileiro já se en-contrava comprometido pelas enormes limitações de nossoprocesso de geração e absorção de conhecimentos científi-cos e tecnológicos. A meta muito mais ambiciosa, represen-tada pelo desenvolvimento sustentável, reforça de maneiramais profunda a necessidade de transformação daquele pro-cesso. Tal transformação deverá ser o objeto de uma nova etambém ambiciosa política de ciência e tecnologia.

A construção dessa nova política precisa não só supe-rar as limitações que a herança do velho estilo de desenvol-vimento nos deixou como, também, construir as bases téc-nicas e científicas necessárias à sustentabilidade social, eco-lógica, econômica, espacial, política e cultural.

A construção de um novo sistema nacional de mudan-ça técnica que viabilize processos produtivos cada vez maisadequados a todas aquelas dimensões da sustentabilidadedeve ser o principal objetivo da nova política de C&T.

A eficácia da política voltada para a construção dessenovo sistema de mudança técnica depende do reconheci-mento de que o Brasil é atualmente um Sistema Nacional deAprendizado Tecnológico Passivo e que, portanto, a ênfaseinicial da política tecnológica deve ser voltada para a mu-dança da natureza desse aprendizado. Em outras palavras,há um enorme esforço inicial a ser empreendido para me-lhorar nossa capacitação para absorver e aperfeiçoartecnologias.

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CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL BRASILEIRO 155

A generalização de uma estratégia ativa de aprendiza-do tecnológico é uma base necessária, mas não suficiente,para a criação de condições férteis para que a inovação (istoé, a fabricação de produtos ou o emprego de processos quesejam novos em termos mundiais) assuma a liderança doprocesso de mudança técnica das empresas brasileiras. Ape-sar disso, a inovação pode vir a assumir um papel relevante— em determinadas áreas, setores ou empresas — antes dacriação daquela base. Por isso, a inovação — em determina-das áreas, setores ou empresas — deve ser buscada em pa-ralelo ao esforço de generalização da estratégia de aprendi-zado ativo.

Nesta parte do trabalho foram apresentadas brevemen-te as características fundamentais do processo de mudançatécnica predominante no Brasil, além dos novos requerimen-tos impostos pelo projeto de desenvolvimento sustentável.Com base na compreensão daquelas características estrutu-rais e desses requerimentos, é possível destacar algumasdiretrizes básicas que devem orientar a construção da novapolítica tecnológica brasileira.

• O objetivo maior da política é transformar o proces-so de mudança técnica das empresas (isto é, institui-ções — públicas, privadas e não-governamentais —que produzem bens e serviços). O estímulo à reali-zação de esforço tecnológico diretamente, por partedas empresas, e em cooperação com elas é a chavedessa transformação.

• O estímulo à constituição de grandes grupos empre-sariais nacionais, com massa crítica para desenvol-ver e coordenar esforços tecnológicos e para trans-formarem-se em global players, é condição importan-te para a viabilização de bases para um esforço ver-dadeiramente inovador.

• A concessão de estímulos ao esforço tecnológico dasempresas deve exigir contrapartidas efetivas em ter-mos de performance tecnológica de produtividade,

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qualidade, competitividade, impacto ambiental esocial. A ênfase dos critérios de seleção de empresasou projetos a serem apoiados deve ser deslocada dossimples critérios de enquadramento a priori, para ascontrapartidas, os resultados. O sistemas de avalia-ção devem ser rigorosos e ter como objetivo, além deinformar a política, servir de base para a punição ouo estímulo das empresas ou instituições apoiadas.

• A concessão de benefícios vinculados às demais po-líticas (inclusive as concessões de serviços públicos)também deve requerer contrapartidas de esforçostecnológicos que elevem o grau de sustentabilidadedos empreendimentos.

• A construção de sistemas ou programas de extensãotecnológica voltada para a elevação do padrão tecno-lógico médio e para a redução de sua heterogenei-dade e, em particular, para a elevação da eficiênciaenergética e ecológica das empresas, deve passar aconstituir uma das prioridades da política de C&T.

• A existência de políticas industrial, agrícola, comer-cial e regional articuladas com a política tecnológicaé requisito vital para a eficácia desta última.

• As enormes diferenças existentes entre as tecnologias,as bases técnicas dos setores produtivos e das regiões,ao lado da limitação de recursos disponíveis, impõema necessidade de que a política tecnológica seja sele-tiva e defina prioridades claras de intervenção portemática tecnológica, por setores produtivos e porregiões.

• Um esforço de reconversão das bases de com-petitividade dos setores com maior competitividadeé necessário. Produtos como soja, óleo de soja, café,suco de laranja, papel e celulose, minério de ferro,alumínio e produtos siderúrgicos competem nosmercados internacionais basicamente comocommodities. São produtos que, de uma maneira ge-

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ral, agregam pouco valor, a base de sua competiti-vidade é o preço e, por isso, os custos salariais pre-cisam ser reduzidos. São também muito vulnerá-veis às flutuações dos mercados e geralmente ge-ram grande stress ambiental. É preciso desenvolverum esforço coordenado de desenvolvimento de ni-chos de mercado para a superação dessas limitaçõestípicas das commodities, transformando-as emspecialties.

• A universalização, com qualidade, do ensino de pri-meiro e segundo graus, em conjunto com a conces-são de estímulos ao treinamento on the job associadoà redução da rotatividade da mão-de-obra, é de vitalimportância. O esforço educacional precisa, contu-do, estar articulado com políticas que gerem empre-gos qualificados. Na ausência de mercado de traba-lho, os investimentos em educação podem ser des-perdiçados e o país pode transformar-se em expor-tador líquido de mão-de-obra educada, como de-monstra a história de alguns países e de algumas clas-ses de profissionais brasileiros.

• A preservação, o aperfeiçoamento e o estímulo àintegração das instituições de pesquisa e desenvol-vimento e de formação de recursos humanos, espe-cialmente das universidades, no esforço de desen-volvimento sustentável é fundamental.

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CAPÍTULO 7

PRUDÊNCIA E UTOPISMO:Ciência e Educação para a Sustentabilidade

Roberto S. Bartholo Jr.Marcel Bursztyn

Um mundo novo

Ao publicar seu Essay on the Principle of Population, nofinal do século XVIII Thomas Malthus lançava um alerta deque a aceleração do crescimento da população estava emdescompasso com um mais lento ritmo de crescimento dasoportunidades de subsistência. Essa visão pessimista foi umamarca da expectativa de futuro naquele momento. Mas, noséculo XIX, as ciências e as técnicas evoluíram de tal manei-ra, que permitiram superar limitações impostas pela natu-reza: mecanização das lavouras, correção de solos, encurta-mento de distâncias com as ferrovias e a navegação a vapor.E o pessimismo malthusiano se viu desprovido de corrobo-ração pelos fatos.

Um século depois das revoluções política e produtivado século XVIII, e já como efeito dos seus resultados positi-vos e negativos, uma nova onda de transformações se fez

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sentir, sobretudo nos países mais avançados de então. Elaincidiu principalmente sobre a generalização de políticaspúblicas de natureza social, com destaque para a seguridadee a educação. Esta última, que até então se circunscrevia acírculos restritos das elites, com profundo elo de dependên-cia com a religião, adquire um status público e laico, tornan-do-se objeto de crescente universalização.

Prevalecia, no meio da educação e das ciências, umavisão de mundo laical, pragmática e, sobretudo, utilitária.Coerentes com o espírito produtivista da civilização indus-trial e inspirados em notáveis avanços científicos etecnológicos, que possibilitavam gigantesca e surpreenden-te transformação da natureza em meio de produção, cien-tistas e educadores passavam a desenvolver uma firme cren-ça nas virtudes da criatividade humana. Desde então, a vi-são da utopia passa a ser a de um processo de construçãoempreendido pelo próprio engenho humano.

Ao contrário dos valores anteriores, que possuíam pro-fundo conteúdo sobrenatural e mítico, a civilização indus-trial adota uma cosmovisão antropomórfica, racional, pre-visível.

O balanço do século XIX revela uma expectativa otimis-ta de futuro. Uma grande crença nas possibilidades da ciên-cia, uma confiança na ampliação das nascentes políticas so-ciais e nos efeitos da universalização da educação caracteri-zaram uma visão de futuro otimista. A utopia, na virada parao século atual, era focada sobre a prosperidade material e apossibilidade distributivista e socializante de seus frutos.

O século XX foi testemunha da acelerada corridaprodutivista, que alimenta e é alimentada por outra corri-da, a do avanço das ciências e das técnicas. E o ritmo deavanço é tão forte que o mundo conhece crises de superpro-dução, como foi o caso da grande depressão norte-america-na de 1929 a 1933.

Também no mundo da ciência e da tecnologia, começaa haver uma progressiva especialização, que exige profis-

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sionais de competência cada vez mais especializada, em cam-pos do saber cada vez mais restritos e delimitados. Essemovimento se dá de par com uma também grande especia-lização no campo da educação. Do ensino universalista, clás-sico e abrangente, típico do início do século atual, passamosà segmentação e especialização, preparando jovens para ummercado de trabalho compartimentado e restrito. Com isso,ganhamos em eficiência (no que se afere com indicadoresmensuráveis). Mas perdemos o rumo. São cada vez maisopacos os objetivos e fins maiores de tal esforço. Perdemosa visão de conjunto. E, mais grave, o espírito crítico e a cons-ciência da necessidade, da utilidade e, principalmente, dasimplicações do uso de cada saber específico, ao ser encaixa-do em um mosaico mais ampliado de saberes

A tendência recente aumentou ainda mais o grau deespecialização das ciências e da educação, radicalizando asconseqüências indesejáveis da perda de referência da rela-ção entre meios e fins. Já nem sabemos muito bem aondequeremos chegar. Só sabemos que a ciência nos conduz aum mundo novo, cuja conformação previsível começa a nosinspirar preocupação.

A perplexidade e indignação de Jacob Bronowski (1972e 1978), que se reflete em várias de suas obras, é um bomexemplo disso. Membro ativo do Projeto Manhattan, queviabilizou a bomba atômica que encerrou de forma dramá-tica a Segunda Guerra Mundial em seu front, no Japão, aquelefísico confessou, mais tarde, seu “desconhecimento” quan-to às implicações de seus estudos, em física atômica, em ter-mos de utilização destrutiva. Foi um dos primeiros cientis-tas a advertir que a humanidade chegara a um ponto talque, doravante, seria capaz de influir diretamente no futu-ro, como se o homem tivesse usurpado o papel de Deus.

A busca do desenvolvimento

O mundo ocidental moderno tem buscado orientar racio-nalmente suas decisões políticas e econômicas, no sentido de

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promover um processo de evolução dos negócios que asse-gure trajetórias de pouco risco e de grande rentabilidade.

No feudalismo, as mudanças eram lentas e indesejá-veis. Ocorriam muito mais como resultado de fenômenosexternos e imprevistos. Como nos informa o Dicionário PetitRobert, o uso do termo desenvolvimento associado à econo-mia de regiões ou países passa a se dar na segunda metadedo século XVIII. Somente com a industrialização, começa ahaver uma preocupação com a promoção de condições paraa expansão e reprodução das atividades econômicas. É oinício da busca do crescimento dos sistemas econômicos, dodinamismo e do “progresso”, em escala global. Nesse pro-cesso, as estruturas de funcionamento do poder público vãose tornando cada vez mais complexas e especializadas, re-fletindo uma crescente responsabilidade do Estado na ges-tão do sistema econômico, na promoção das condições dapaz social interna, na garantia das relações exteriores, naconstrução do futuro.

Torna-se evidente, já no século passado, a importânciade se viabilizar a promoção de políticas que fundamentemum desenvolvimento de longo prazo, minimizando avulnerabilidade às vicissitudes de fatores restritivos inde-sejáveis.

O século XX é marcado pela hegemonia das nações maisavançadas economicamente, no panorama mundial, numcontexto de guerras e de revoluções. O fomento ao cresci-mento econômico se apóia em maciços investimentos emciência e tecnologia, acoplados à construção de formidáveissistemas de “defesa” nacional. Paralelamente, os sistemasde educação paulatinamente adaptam-se às exigênciasespecializadas do mercado de trabalho.

No quadro posterior à Segunda Guerra Mundial, osanos 1950 testemunham a emergência de um pensamentocrítico aos efeitos negativos do crescimento econômico, emtermos de justiça social e de empobrecimento relativo dealguns países e regiões. Um dos primeiros economistas a

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lançar este alerta foi o sueco Gunnar Myrdal (Prêmio Nobelde Economia de 1974), que chamou a atenção para o “ciclovicioso da pobreza”, que se produzia como corolário dopadrão de crescimento econômico vigente.

Na América Latina, a CEPAL (Comissão Econômicapara a América Latina da ONU) produz interpretações eanálises a partir de critérios e enfoques autóctones, diferen-ciando conceitualmente crescimento, como expansão quan-titativa da economia, e desenvolvimento, como mudança qua-litativa positiva, envolvendo distribuição de renda e avan-ços sociais. Para transformar o crescimento em desenvolvi-mento, seria preciso planejar, ou seja, intervir no sistemaeconômico, promovendo atividades estrategicamenteidentificadas como motrizes e, eventualmente, condicio-nando ou inibindo outras, tidas como provocadoras devulnerabilidades.

Foi um importante passo em dois sentidos: o da identi-ficação do Estado como elemento de coordenação e promo-ção, e o da introdução do fator qualitativo de natureza so-cial na análise econômica. Os anos 1960 e 1970 mostraramuma franca adoção do planejamento. Em todo o mundo, in-clusive com apoio de organismos internacionais1, prolifera-ram agências e programas governamentais voltadas à pro-moção do desenvolvimento econômico, em escala nacionale regional.

Mas dois tipos de problemas ocorreram: uma excessi-va valorização da razão econômica, com preocupaçãoimediatista e uma negligência da dimensão sociocultural e

1. Babai (1992) assinala que a ação do Banco Mundial pode ser dividida emtrês grandes períodos: no primeiro, que vai da época da sua fundação, no pós-Segunda Guerra Mundial, até 1960, sua atuação segue uma forte tendência emfavor das forças de mercado; no segundo, que vigora nas décadas de 1960 e1970, suas operações se inclinam para o fortalecimento da atividade estatal naseconomias em desenvolvimento; no terceiro, o desencanto com o papel do Esta-do repercute em ações desestatizantes e neoliberais. Vale ressaltar que em seuRelatório Anual de 1997, o BIRD volta a expressar vivo interesse no papel do Esta-do enquanto promotor do desenvolvimento.

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institucional. O planejamento, em países com fragilidadepolítico-institucional, derrapou em vários aspectos funda-mentais, perdendo legitimidade social, credibilidade e, fi-nalmente, saiu do eixo das decisões econômicas para setornar essencialmente objeto de estratégias políticas (nosentido de politics e, não mais, de policy). Os planos passa-ram a ser adotados principalmente como instrumentos deretórica política. A idéia de construção do futuro — de Pro-jetos Nacionais — perdeu espaço para expedientes mes-quinhos e retrógrados, vinculados a interesses patrimo-nialistas.

Nesse contexto, o eixo das políticas de “desenvolvimen-to” passou a se subordinar ao imediatismo da gestão pura-mente contábil das finanças públicas, como resultante lastbut not least das pressões advindas do engajamento no siste-ma financeiro internacional.

Na vertente das políticas sociais, evidentemente, há umnotável retrocesso, que traduz a perda de prioridade de açõesestratégicas portadoras de oportunidades no futuro, comoas vinculadas aos domínios da saúde e educação.

Crise dos Estados e crise do conhecimento

Nenhum país do mundo conseguiu se desenvolver semantes ter empreendido um esforço notável em matéria deeducação. As nações ricas de hoje nem sempre são territóriosricos em recursos naturais, mas assumiram com determina-ção que a base da riqueza é uma população instruída. A re-ação das oligarquias arcaicas em relação à universalizaçãoda educação não é um fenômeno isolado. O debate na Euro-pa, nos anos 1870, foi acalorado, com setores conservadoresalertando para os riscos políticos da alfabetização dos tra-balhadores paralelamente à ampliação do direito de sufrá-gio. Mas prevaleceu o princípio de que não se constrói umanação próspera sem uma população educada (Hobsbawm:1987).

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Os aparelhos de Estado tiveram de se modernizar paraassumir a responsabilidade dessa nova função. Foram sur-gindo instituições públicas que se encarregavam de regu-lamentar e operacionalizar a ação educacional. Esta é, ali-ás, a lógica do crescimento das estruturas estatais: ao ad-quirir novas responsabilidades, o Estado amplia suas di-mensões, agregando para si novas funções. Assim, porexemplo, prover educação não foi uma novidade da Ale-manha de Bismarck. A novidade foi torná-la pública e uni-versal.

Os anos 1980 selaram um consenso em escala mundial.A crise dos Estados se fazia sentir em toda parte, impondo anecessidade de se conceber novas formas de ação do poderpúblico. Evidentemente essa “crise do Estado” assume ca-racterísticas bem particulares em cada lugar. Assim, nospaíses onde as funções de promoção do bem-estar socialforam minimamente atingidas (o Welfare State), a crise temnatureza fiscal e reflete uma insatisfação com a falta de pers-pectivas do poder público para salvaguardar tais conquis-tas diante da massificação do desemprego. No caso da Amé-rica Latina, a crise assume uma grave dimensão fiscal, emanifesta a saturação da legitimidade de um Estado queresiste em mudar suas raízes patrimonialistas.

A presente “crise do Estado” é também uma crise dasutopias, que expressa desencanto e perda de confiança nofuturo, bem como do “modo de desenvolvimento”,incidindo sobre os próprios paradigmas do desenvolvimentoque, centrado na utopia econômico-consumista, produziufantásticos desperdício, desigualdade e degradação. Muitasforam as experiências traumáticas e advertências, tanto pelolado das ciências (como foi o caso de Bronowski), quantopelo lado das práticas sociais (movimentos pacifistas, femi-nistas, de defesa dos consumidores e ambientalistas), e mui-tas foram as catástrofes científico-tecnológicas (caso deMinamata, Seveso, Bophal e Tchernobyl). Ficou evidente queas expectativas utópicas estavam desfocadas. Era precisoencontrar novos rumos.

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O novo horizonte aberto pelo princípio “sustentabili-dade” vai de encontro a essa carência2. A lógica do desen-volvimento necessita ser subordinada aos imperativos deuma modernidade ética, não apenas uma modernidade téc-nica. E essa ética necessita dar resposta a novos desafios.Não se trata mais de encontrar termos relacionais equâni-mes para um “contrato social” firmado em condições de re-ciprocidade e simetria. Trata-se de enquadrar eticamenterelações de poder assimétricas e, no limite, unilaterais e não-recíprocas. Esse é notoriamente o caso da vulnerabilidadedas condições futuras de vida com respeito a decisões e in-tervenções realizadas hoje na realidade. Outro aspecto de-cisivo é a necessidade de se considerar o enquadramentoético de processo irreversíveis, ou seja, quando não nos épossível corrigir amanhã os efeitos indesejáveis de cursosde ação desencadeados hoje.

A idéia tradicional de um “contrato” inter pares comofundamento da ética fracassa aqui. A sustentabilidade de-manda uma nova concepção: um “pacto” entre desiguais ediversos, como se pode caracterizar de modo exemplar nadimensão temporal “futurista”, ou seja, é preciso hoje asse-gurar a qualidade de vida das gerações futuras.

O princípio “sustentabilidade”

Se a ética destina-se à ordenação e regulação do poderde agir, as ameaças engendradas pelo poder científico-tecnológico crescem num “vácuo ético”, diante do qual HansJonas (1979) propõe o reconhecimento da vigência de um

2. Já na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, realizada emEstocolmo, em 1972, surgira o conceito de Eco-desenvolvimento. Para a UnitedNations Conference on Enviroment and Development (RIO-92), o novo conceitocunhado foi o de Desenvolvimento Sustentável, produto dos trabalhos da Comis-são Brundtland, que serviu de referência à elaboração da Agenda 21, que consti-tui o maior compromisso internacional até agora obtido, materializando as prio-ridades para o próximo século.

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novo “princípio responsabilidade” que tenha no mandamen-to “que exista uma humanidade!” seu imperativo categóri-co. A idéia de direitos e deveres fundados na simetria dareciprocidade “contratual” inter pares fracassa aqui, pois aresponsabilidade do dever-existir se refere, em sua dimen-são temporal futura, ao ainda-não-existente. Essa é uma ques-tão primordial para que possamos impor à modernidadecontemporânea o reconhecimento de “um dever-ser objetivoe, com isso, poder-se-ia deduzir um compromisso de pre-servação do ser, uma responsabilidade pelo ser” (Jonas, 1979:102).

A condição de existência da responsabilidade é o po-der causal do agente relativamente às conseqüências de seusatos. Essa responsabilização ainda é apenas formal. Sua di-mensão propriamente ético-moral surge com a tomada departido do sentimento pelo bem em si, inerente à coisa emseu finalismo próprio, e “como ele comove o sentir e enver-gonha o egoísmo do poder” (Jonas, 1979: 175).

A proposta de Hans Jonas é fundamentar umamodernidade ética apta a restringir a capacidade humanade agir como um destruidor da auto-afirmação do ser, ex-pressa na perenização da vida. Desde uma tal perspectiva,podemos conceber o desenvolvimento sustentável comouma proposta que tem em seu horizonte uma modernidadeética, não apenas uma modernidade técnica. Pois o princípio“sustentabilidade” implica incorporar ao horizonte da in-tervenção transformadora do “mundo da necessidade” ocompromisso com a perenização da vida.

Isso requer um acervo de conhecimentos e de habilida-des de ação para a implementação de processos tecnicamenteviáveis e eticamente desejáveis. Tal acervo constitui o con-junto das tecnologias da sustentabilidade, que podem ser ca-racterizadas como “saberes e habilidades de perenização davida”, que se traduzem em ordenações sistematizadas demodos diferenciados de interação (i.e. processos de produ-ção e circulação do produto, modos de organização social,padrões de ganho e processamento de informações etc.).

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As tecnologias da sustentabilidade expressam sua per-tença à modernidade ética por terem no princípio “sustenta-bilidade” sua métrica, e não serem veículos de uma preten-samente irrestrita “liberdade de escolha de cursos de ação”.As implicações para a racionalidade econômica fundada nomercado como instância diretiva são claras. As políticas dasustentabilidade não se fundam em considerações “intraeco-nômicas”, mas num necessário enraizamento dos critérioseconômicos em diretrizes normativas exteriores à simples“economicidade”.

O sentido da modernidade, uma excursão filosófica

Pensar o princípio “sustentabilidade” como fundamen-to de uma modernidade ética requer um exercício prévio:explicitar nossa compreensão do sentido de modernidade.

Etimologicamente, a palavra modernidade provém doadvérbio latino modo, que tem o significado de recentemente,há pouco tempo. Segundo o dicionário Petit Robert, o adjeti-vo moderno já se faz presente no francês medieval desde oséculo XIV, enquanto o substantivo modernidade data demeados do século XIX. Conforme colocação iluminadora deHenrique Cláudio de Lima Vaz, o conceito de modernidade“aparece ligado ao próprio conceito de filosofia, de sorte ase poder afirmar uma equivalência conceitual entremodernidade e filosofia: toda modernidade é filosófica outoda filosofia é expressão de uma modernidade que nela sereconhece como tal” (Vaz, 1992: 85).

Esta tese, apresentada de modo tão sintético, demandaalguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, é preciso ter emmente que a emergência do sentido da modernidade requeruma decisiva ruptura na representação do tempo: ela preci-sa esvaziar-se da estrutura mítico-simbólica da repetição e“migrar”, abandonando o porto da lógica do idêntico parafazer nova morada na dialética do idêntico e do diferente. Aquestão nevrálgica é a emergência da ousadia do filosofar,

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que se aventura a desqualificar a autoridade inerente aoantigo.

Com o exercício da razão crítica, o discurso filosóficooutorga ao tempo presente uma nova dignidade, atribuin-do ao agora e ao atual uma novidade qualitativa. Somenteassim a modernidade pode se instaurar como modo de lei-tura do tempo. Como nos aponta Henrique Cláudio de LimaVaz, as civilizações que desconhecem a filosofia não conhe-cem uma leitura moderna de seu tempo, pois não incorremna grande ousadia de julgar seu passado a partir de seu pre-sente.

Aos olhos de Aristóteles, a physis e o ethos são formasprimeiras de presença do ser. Sendo que o ethos “rompe coma sucessão do mesmo que caracteriza a physis como domínioda necessidade, com o advento do diferente no espaço daliberdade aberto pela praxis” (Vaz, 1986: 11).

O termo ethos é a transliteração de duas palavras gre-gas diversas: a primeira é ethos com letra inicial eta, e a se-gunda é ethos com letra inicial épsilon.

O ethos-eta designa a morada do homem no mundocomo um ser biocultural. Uma morada que lhe fornece abri-go e proteção e condições materiais e imateriais de sobrevi-vência. O reino da necessidade da physis é rompido pela ins-tauração do ethos-eta, como um espaço de liberdadeconstruído e incessantemente reconstruído.

O ethos-épsilon, por sua vez, designa o comportamentohumano que ocorre repetidas vezes, como um hábito cultu-ralmente adquirido e não devido a uma necessidade daphysis. Expressa-se assim uma oposição entre o que é “habi-tual” e o que é “natural”. Desse modo o ethos-épsilon se refe-re à possibilidade de uma disposição permanente do agentehumano para agir de acordo com a realização do bem.

Temos, em síntese, duas proposições:• ethos-eta como costume histórico-socialmente dado é

princípio normativo dos atos que configuram o ethos-épsilon como hábito; e

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• a práxis é a mediadora dos momentos constitutivosdo ethos.

Desse modo, como diz Henrique Cláudio de Lima Vaz:“a ação ética procede do ethos como do seu princípio e a eleretorna como a seu fim realizado na forma do existir virtuo-so” (Vaz, 1986: 16). Esse movimento circular do ethos-eta eethos-épsilon se realiza num processo educativo tanto indi-vidual como social. Não estando fundado pelo determinismoda necessidade, o movimento do ethos indo da universali-dade do costume à singularidade da ação eticamente boa, élivre e traz em si a possibilidade do conflito.

Os primeiros esforços construtivos da nova ciência doethos, a ética, se focam na reflexão sobre a lei.

A emergência da polis democrática impõe umaexplicitação do ethos como lei. A dike (Justiça) será a fonte delegitimidade de todo nomos (lei) e, assim “o justo (dikaion)pode ser definido como predicado da ação do verdadeirocidadão” (Vaz, 1986: 49). Em inconciliável oposição a issoestarão as manifestações da marca indelével do homem in-justo: a desmesura (hybris), como ambição de poder(pleonexia), de ter (philargyria) e de aparecer (hyperephania).O justo traz, em si, o selo da medida (metron), fundamentoracional da ética, edificada por Platão como a ciência da açãosegundo a virtude (arete).

A ética se edifica como crítica radical da noção de des-tino, entrelaçando inteligência e liberdade no vínculo vir-tuoso com o bem.

A revolução científica moderna vincula o logos teóricoao logos técnico, de modo inconcebível para a Antigüidadeclássica. Aos olhos dessa última, tal movimento equivaleriaà pretensão do logos humano de reivindicar para si o lugarde Demiurgo que Platão reservava ao Artífice Divino. O logosantigo repousava sobre uma physis que se oferecia imedia-tamente aos sentidos, e cuja ordenação era paradigmáticapara a ciência do ethos. O novo logos instaura o domínio da

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verdade experimental, de cunho intrinsecamente lógico, porser estruturalmente matemática.

O que está em processo é a edificação de uma novaNatureza, intrinsecamente referida ao fazer humano, quetoma o lugar da antiga physis. E a questão do universalismoético conhece novas problematizações com a “planetariza-ção” da cultura técnico-científica. Enquanto a ciência platô-nica se reconhece como uma ontologia do bem, a ciênciamoderna supõe metodologicamente a distinção entre fato evalor, e se reconhece como eticamente neutra, permanecen-do em relação estritamente extrínseca com a esfera do bem.

Hans Jonas (1979) afirma que a ciência moderna e anova práxis em que ela se imbrica exigem a fundação de umanova ética. Paralelamente, cresce, junto com o desenvolvi-mento avassalador das potencialidades da tecnociência, umniilismo ético. A tecnociência contemporânea está constru-indo um novo espaço. O dilema é se haverá um ethos abertoàs dimensões desse novo espaço. Ou, na ausência disso, seo niilismo ético abrirá ao homem uma possibilidade de so-breviver fora da morada do ethos, lançado num espaço semfronteiras.

Ética e responsabilidade

Para a prática do princípio “sustentabilidade”, o con-ceito-chave é o de “fins”, sem o que perderiam sentido “nor-mas” e “valores objetivos”. O “imperativo da sustentabi-lidade” não nos deixa esquecer que a economia está assen-tada sobre o fato primordial biológico de que vivemos pormetabolismo e somos “criaturas de necessidade”. A “neces-sidade” é algo que a existência orgânica quer incondicio-nalmente, para metabolicamente continuar sendo. Suprirnecessidades pertence à autoafirmação da vida. O lema “va-mos comer e beber hoje, pois amanhã estaremos mortos”pode ser significativo para mortais sem futuro. Mas paramortais com futuro, que conhecem o encadeamento de nas-

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cimentos e mortes, o reconhecimento da responsabilidadepela perenização da vida, fundada no fato elementar da re-produção é tão constitutivo da economia como o é o interes-se próprio, fundado no metabolismo. É assim que a respon-sabilidade por outros e o interesse próprio podem entrela-çar-se na atividade econômica.

Nossa questão central não é a de uma ética futura, ouseja, uma ética a se configurar num ponto a ser ainda atingi-do do tempo, mas sim uma ética que hoje se preocupa comas conseqüências de nossos atos para com gerações futuras.Uma ética que não se fundamenta num contrato inter pares,pois ela se refere a relações radicalmente assimétricas: asgerações futuras são vulneráveis a nossos atos, mas a recí-proca não é verdadeira.

A caducidade de uma ética que se pretenda fundar nocontrato inter pares abre uma situação de urgência crítica:nosso atos na era da globalização da ciência e tecnologiaatingem um limiar de poderes nunca antes conhecidos. Es-ses novos poderes implicam uma nova responsabilidade,que por sua vez para ser exercida requer conhecimento.

Esse conhecimento diz respeito tanto ao campo das cau-salidades físicas como das finalidades humanas. A ética dasustentabilidade tem uma perspectiva “futurista” e se apóiasobre uma “futurologia” (isto é, uma projeção científico-tecnologicamente informada de cenários aos quais as açõespresentes podem conduzir). Nesse contexto, Hans Jonas(1992) nos coloca diante da questão nevrálgica: a futurologiados cenários desejados é conhecida como utopia; mas afuturologia da advertência nós ainda precisamos aprender,para o autocontrole de nossos poderes desenfreados. E elasomente pode advertir aqueles que, além da ciência das cau-sas e efeitos, também sustentam uma imagem do homemque lhes impõe valores mais altos e limites/freios aoirrestrito exercício de tais poderes.

O dever precisa ser consentido, isto é, percebido e sen-tido como um valor a ser afirmado, para poder encontrarseguimento nos atos. A fundamentação de nossos atos tem

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natureza diversa. Ela pode ser enraizada no metabolismovital. Assim, se “explica” a verdade da sentença: nós deve-mos comer, pois somos constitutivamente seres que conti-nuam em existência devido a um processo contínuo de “re-lação e troca” com o meio circundante. Diversa é a naturezada verdade da sentença: nós devemos comer para trabalhar, anecessidade de trabalhar é condicionada situacionalmente:fatores culturais, econômicos etc. podem invalidar o vínculoque se quer aqui estabelecer.

A fundamentação ontológica de uma proposiçãocorresponde portanto ao “recurso a uma qualidade que per-tence inseparavelmente ao ser da coisa” (Jonas, 1992: 129),como os processos metabólicos ao organismo. A questãocrítica, nesse contexto, é a possibilidade de haver uma fun-damentação ontológica para a ética ou, de modo mais curtoe claro: será possível uma fundamentação ontológica para oconceito de responsabilidade e para o direito a exigi-la de nos-sos atos.

Hans Jonas responde afirmativamente a essa questãodizendo que “o homem nos é o único ser conhecido quepode ter responsabilidade. Na medida em que ele a podeter, ele a tem. A capacidade de responsabilidade significa jáa colocação sob seu imperativo: o próprio poder leva consi-go o dever” (Jonas, 1992: 130). A capacidade de responsabi-lidade é uma capacidade ética, que repousa sobre “a apti-dão ontológica do homem de escolher entre alternativas deação com saber e vontade. Responsabilidade é, portanto,complementar à liberdade” (Jonas, 1992: 131).

Posso ser responsabilizado pelas conseqüências demeus atos na medida em que afetem algum ente, que se tor-na, então, objeto de minha responsabilidade. E isso só temsignificância ética se a simples existência desse ente é em siafirmação de um valor. Um ser valorativamente indiferente(com relação ao qual posso, arbitrariamente, ter uma res-ponsabilidade total ou nula) é insignificante como objeto deminha responsabilidade.

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A primeira coisa que a apreensão de um ser não indife-rente valorativamente requer de mim é que ele me importeem seu direito a afirmar o bem de existir. E em termos con-cretos isso pressupõe (i) a vulnerabilidade do existir do ser e(ii) a possibilidade dela ser atingida por meu poder de agir(quer isso venha ocorrer por acaso ou por minha escolhadeliberada). A dimensão de nosso poder determina o quan-to podemos afetar a realidade. E com o crescimento do po-der cresce a responsabilidade.

Como situa Hans Jonas, “a ampliação do poder é tam-bém a ampliação de seus efeitos no futuro” (Jonas, 1992: 133).Em conseqüência disso, a responsabilidade que temos so-mente poderá ser efetivamente exercida se formos pruden-tes, apoiando nossos atos em estudos criteriosos dos impac-tos de nossos cursos de ação, formulando modelos capazesde aumentar nossa capacidade preditiva com recurso a si-mulações prospectivas. É imperativo que consigamos

“1. maximizar o conhecimento das conseqüências de nossosatos, com vistas a como eles podem determinar e ameaçar asorte futura do homem, e 2. à luz desse conhecimento, i.e. doinédito novo que poderia ser, elaborar um conhecimento da-quilo que deve ou não deve ser, daquilo a ser permitido ouevitado: enfim, e de modo positivo: um conhecimento do bem,do que o homem deve ser, para o que certamente ajuda umavisão do que não deve ser, mas aparece, por primeira vez,como possível” (Jonas, 1992: 134).

O primeiro desses saberes é um saber objetivo-científi-co-técnico, fundado na explicitação de vínculos causaisconfiguradores de tendências. O segundo desses saberes éético-valorativo. Eles são a régua e o compasso da formula-ção das futurologias da advertência e, como tais, ferramen-tas da modernidade ética da sustentabilidade.

Um elemento de base dessa modernidade ética é, por-tanto, o mandamento da informação máxima sobre as con-seqüências dos diversos cursos de ação. Isso implica umvasto campo de pesquisa a ser apoiado e desenvolvido, con-

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tribuindo decisivamente para confrontar o exercício dospoderes correntes com a síntese de suas razoavelmentepresumíveis conseqüências futuras.

Um segundo elemento de base é uma antropologia fi-losófica apta a nos dizer o que é o bem do homem, seu dever-ser. Hans Jonas afirma ser esse saber necessário para queesse bem não seja sacrificado pelo desenvolvimentotecnológico (Jonas, 1998: 135).

Essa antropologia filosófica pode se apoiar na metafísicae na história. Na história conhecemos o que o homem podeser, de melhor e de pior. E esse conhecimento pode nos aju-dar a aprender que não podemos pretender tentar mais queassegurar-lhe a possibilidade do bem. A metafísica pode nosensinar o fundamento do dever-ser do homem e afirmar umveto ao suicídio da espécie, impondo à humanidade o reco-nhecimento do dever de uma determinada qualidade devida, hoje ameaçada pelo cego “progredir” da modernidadetécnica.

No cerne da questão está o convite para tomarmos comoponto de partida da metafísica necessária a afirmativa já an-teriormente apresentada de que o homem nos é o único serconhecido que pode ter responsabilidade. Essa possibilida-de é uma característica essencial do ser humano. Nela reco-nhecemos intuitivamente um valor, que não vem apenas seagregar aos valores da vida, mas que potencializa os ante-cedentes valores do ser. E os atuais portadores da responsa-bilidade reconhecem como seu dever assegurar a existênciados futuros. Mas não só isso. Reconhecem também comoseu dever zelar pelas condições desse existir, desse assim-ser. Pois o como se existe pode ser incompatível com o fun-damento e razão do existir. Diversas antiutopias, nas linhasdo Admirável mundo novo de Aldous Huxley, desenham ce-nários desse tipo, que o horizonte de expectativas e o espa-ço de experiências da modernidade técnica trazem ameaça-doramente em seu seio.

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Riscos e oportunidades

Os poderes de intervenção abertos pelas modernas ciên-cia e tecnologia têm, nesse contexto, um caráter paradoxal,que nos evoca os versos de Hölderlin:

lá onde está o perigo,ali também cresce a salvação.

As modernas ciência e tecnologia são simultaneamen-te causa dos males e meio de evitá-los. Não mais a naturezanos amedronta, mas sim nossos poderes de intervenção so-bre ela. Parafraseando Descartes, vemo-nos diante do para-doxal imperativo de virmos a ser “mestres e possuidores”dos poderes humanos de intervenção.

A partir da Revolução Francesa e da Revolução Indus-trial, engendra-se no campo civilizatório europeu ocidentalum novo contexto institucional, que vai abrir progressiva-mente o espaço para o reconhecimento das modernas ciên-cias e tecnologias como potências ordenadoras da coesãosocial (Salomon: 1973). O processo civilizatório industrialmoderno vai vinculando a administração da res publica àcapacidade de intervenção científico-tecnológica, que reali-za no campo da gestão, programação, controle e previsãosua simbiose mais íntima com as estruturas de poder do Es-tado e do mercado.

Este processo tem duas faces:1. um pragmatismo utilitarista identifica saber e poder,

dissolvendo a diferenciação entre a explicação e ocontrole dos fenômenos da Natureza, reduzida auma storehouse of matters (F. Bacon), livremente dis-ponível para a instrumentalização humana; e

2. o “mito da máquina” se constitui em paradigmaorganizacional da sociedade (Mumford: 1967), coma idéia da “administração das coisas” servindo debase para uma ordenação “neutra” e “despolitizan-te” das relações hierárquicas, expressas e legitima-

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PRUDÊNCIA E UTOPISMO 177

das sob a forma de uma “diferenciação funcional”requerida por critérios de eficiência instrumental.

Ivan Illich (apud Steger, 1984: 43) aponta para a“contraprodutividade” de instituições-chave da cultura in-dustrial moderna como indicativa do fracasso do sistemaem realizar seus próprios e explícitos propósitos. Aracionalidade instrumental autonomizada se constitui comoum fim em si mesma, engendrando uma “paralisia ético-política das relações sócio-comunitárias”. A sociedade dei-xa de ser campo de expressão para atos criativos de pessoasaptas a uma autocondução ética de suas vidas.

Dentro da tradição cultural do Ocidente, o Humanismoe o Iluminismo abrem campo para uma importante altera-ção do ideal do homem culto. A aquisição de cultura deixade ser identificada com uma autoconstrução ética da exis-tência através da religião. A ciência e a arte passam a se cons-tituir em caminhos autônomos para a formação ética da pes-soa. O ideal humanista-iluminista expressa uma posturadiante da vida a ser constituída mediante uma atividadeespiritual autônoma, capaz de realizar uma superaçãodialética da educação religiosa popular. Isso se expressa demodo agudo nos versos de J. W. Goethe:

quem possui ciência e artetem também religiãoquem ambas não possuitem religião

A aquisição de cultura científica e artística é caminhode autonomia ética. E a Universidade, tal como concebidapor Wilhelm von Humboldt, tem o papel de servir de insti-tuição viabilizadora desse processo (Schelsky: 1963). O pro-cesso civilizatório industrial contemporâneo destruiu ascondições de possibilidade do projeto originalhumboldtiano. No lugar da educação popular religiosa tra-dicional, surge uma nova educação “cientificizada” popu-

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lar, vinculada ao positivismo industrialista moderno. Atecnociência se transforma em re-ligio de um mundo artifi-cial, que impregna, molda e formata a vida cotidiana dosindivíduos. Nesse novo contexto, o projeto humanista-iluminista precisa ser atualizado, focando-se na superaçãodialética dessa nova re-ligio. Hanns-Albert Steger (1978) ex-pressa o novo imperativo mediante uma atualização dosversos de J. W. Goethe:

quem possui capacidade de confrontação ética com amodernidadetem também ciência e tecnologiaquem esta capacidade não possuitem ciência e tecnologia

No âmago da atualização está o reconhecimento da ne-cessidade de se superar o laissez-faire científico-tecnológicopela vigência de uma ética da responsabilidade. O próprioMax Weber (1967) reconhece que nenhuma ciência é isentade pré-condições. E uma pré-condição básica é que seu pro-duto seja algo valioso de ser conhecido. Valoração prévia àlabor científica em sentido estrito, pois os objetos de conhe-cimento são sempre vinculados a contextos de interesse quenão são, em si, tematizados pela pesquisa. Para Max Weber,existem sempre diversos “deuses” a serviço dos quais a prá-tica científica pode ser desenvolvida. É em função de qual“deus” é seguido que se fixam as respostas sobre o que ébom de ser conhecido, determinando-se assim o conteúdoda ciência. A questão de se a contemporânea ciência em atosegue o “deus” verdadeiro ou um falso não é passível deresposta científica.

Ela pode apenas ser colocada filosoficamente, etematizada no contexto da modernidade ética. No cerne damodernidade ética do princípio da “sustentabilidade” estáo reconhecimento de limites, impostos pelos primados daalteridade e da vulnerabilidade. A partir da ultrapassagemde limites de tolerância da Natureza e do tecido social, o

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desenvolvimento sofre uma degeneração “contraprodutiva”,fruto da falsa pretensão metafísica de se constituir num sis-tema fechado que se basta a si mesmo. Nesse quadro, o homoindustrialis se vê então reduzido “à situação de um capi-tão, cujo navio é tão fortemente construído de aço e ferro,que a agulha de sua bússola somente aponta para a massade ferro do navio, e não mais para o Norte” (Heisenberg,1979: 22).

Ilustração científico-tecnológica e identidade cultural

O mundo contemporâneo da chamada “globalização”vive uma época de grandes transformações e graves desi-gualdades. Isso fica evidenciado se considerarmos ospreocupantes indicadores da situação da educação:

the number of out-of-school children increased from anestimated 90 million in 1985 to 110 million in 1990, beforedeclining to about 83 million in 1995. Each year, millions ofstudents leave primary school, often with fragile literacyskills and no vocational training of any kind. The schoolexperience of many children in the developing world isrelatively brief and unsatisfactory. Among the mostconsistent relationships in demography is the inverserelationship between education of women and fertility. Only66 per cent of primary school-age girls and 72 per cent ofboys pursue their studies as far as grade 5. Indeed, manystudents drop out between the first and second grade, havingacquired not even the most basic elements of an education.High rates of repetition also slow the progress of learningand increase the cost of education in developing countries.By one estimate, 16 per cent of education budgets indeveloping countries is consumed by the cost of repetitionin the first four grades of primary school alone (Unesco: 1999).

Uma das características fundamentais de um Estadofuturo fundado na sustentabilidade é que a população decada país tenha uma identidade culturalmente enraizada e

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cientificamente “ilustrada”. Isso coloca a necessidade deações estratégicas no âmbito da educação e da cultura. Nocampo educacional, o objetivo mínimo é a erradicação doanalfabetismo em todo o mundo, como requisito do objeti-vo maior de se capacitar a população a ter acesso à informa-ção. No campo cultural, o objetivo é o enraizamento, na po-pulação, da herança de sua própria história, de modo a ofe-recer-lhe a possibilidade de afirmar sua identidade em meioa um mundo em acelerado processo de mudança.

No novo século XXI, o conceito de alfabetização deve-rá ampliar-se, incorporando características que vão além dahabilidade de ler e escrever. O “alfabetizado”, daqui parafrente, deverá também estar apto a ter acesso a toda a amplagama de mecanismos de informação e habilidades técnicasque o permita participar da vida cotidiana da sociedade eter acesso ao cada vez mais restrito e seletivo mercado detrabalho. Isso implica, em primeira instância, saber manejare se valer dos recursos da informática.

Um grande desafio para as políticas públicas deuniversalização da educação deste novo conceito de alfabe-tização é a difícil compatibilização dos aspectos de naturezaglobalizante — que permitam situar o contexto da vida lo-cal de comunidades ainda pouco integradas ao mundoglobalizado — com os imperativos de se assegurar a inte-gridade das identidades e idiossincrasias culturais locais.

As tecnologias da sustentabilidade

A conscientização da população para a importância es-tratégica da sustentabilidade é questão que permeia todasas áreas da Agenda 21. O eixo da argumentação que se se-gue está fundamentado no conteúdo expresso pela Agenda21, reconhecida como uma das mais importantes pautas dealertas e prioridades de ação para o próximo século.

É imperativo que se busque uma reorientação do ensi-no no sentido do desenvolvimento sustentável, uma pro-

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moção do treinamento para as “tecnologias da sustentabili-dade” e uma elevação da consciência pública cidadã. Osprojetos pedagógicos difusores do princípio “sustentabili-dade” devem necessariamente incorporar uma dimensãoética, vinculante de saberes, valores, atitudes, técnicas e com-portamentos que favoreçam a participação pública efetivanas tomadas de decisão. É importante enfatizar o princípioda delegação de poderes, responsabilidades e recursos emnível mais apropriado e dar preferência para a responsabili-dade e controle locais sobre as atividades de conscientização.

Os países e as organizações regionais e internacionaisdevem desenvolver suas próprias prioridades e prazos paraimplementação, em conformidade com suas necessidades,políticas e programas, estabelecendo os meios de utilizaçãodas modernas tecnologias de comunicação para chegar efi-cazmente ao público, promovendo o emprego de métodosinterativos de multimídia e integrando métodos avançadoscom os meios de comunicação populares.

As diversas associações profissionais nacionais devemser incentivadas a desenvolver e revisar seus códigos de éti-ca e conduta, para fortalecer as conexões e o compromissocom a sustentabilidade, permitindo a incorporação de co-nhecimentos e informações sobre a implementação do de-senvolvimento sustentável em todas as etapas da tomadade decisões e formulação de políticas, fazendo de cada pes-soa usuário e provedor de informação (incluindo dados esistematizações de experiências).

A necessidade de informação surge em todos os níveis— internacional, nacional, regional e local — requerendo,como um postulado de justiça e eficiência, a redução dasdiferenças em matéria de dados e a melhoria da disponibili-dade da informação para os diferentes agentes sociais. De-vem ser fortalecidos os mecanismos nacionais e internacio-nais de processamento e intercâmbio de informação e deassistência técnica conexa, a fim de assegurar uma disponi-bilidade efetiva e eqüitativa da informação, sujeita à salva-

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guarda da soberania nacional e direitos de propriedade in-telectual pertinentes.

As “tecnologias da sustentabilidade” são tecnologiasde processos e produtos, não se configurando como unida-des isoladas, mas sistemas totais, que incluem conhecimen-tos técnico-científicos, procedimentos, bens e serviços e equi-pamentos, assim como procedimentos de organização emanejo, devendo ser compatíveis com as prioridadessocioeconômicas, culturais e ambientais nacionalmente de-terminadas. O acesso às “tecnologias da sustentabilidade”pode ser facilitado por processos cooperativos em nível in-ternacional e regional, que requerem uma “massa crítica”de capacitação para pesquisa e desenvolvimento, apta aincorparar o acervo de conhecimentos e habilidades das“tecnologias da sustentabilidade” de modo adaptativo e ino-vador à cultura nacional e local. Tem importância estratégi-ca o estabelecimento de redes de colaboração de grupos depesquisa e desenvolvimento em nível internacional, nacio-nal e regional.

As “tecnologias da sustentabilidade” têm uma fortebase científica. A pesquisa científica serve de elemento dearticulação e apoio no estabelecimento e realização de me-tas do desenvolvimento sustentável, constantementereavaliando e promovendo padrões menos intensivos de uti-lização de recursos. Mas diante da ameaça de irreversibili-dades indesejáveis e no contexto de sistemas complexos, nãoplenamente compreensíveis, a falta de conhecimentos cien-tíficos não pode ser desculpa para se postergar a adoção demedidas preventivas, e a prudência é uma das virtudes car-deais da cientificidade. A base científica não deve servir deargumento para um otimismo ingênuo, apoiado na crençailusória de sempre ser possível corrigir amanhã eventuaisfalhas de hoje.

O desenvolvimento sustentável exige assumir perspecti-vas de longo prazo, numa visão de futuro em que a incerte-za e a surpresa se fazem presentes. A estratégia de ação deve

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sempre buscar assegurar uma razoável gama de opções parahaver uma desejável flexibilidade de resposta. Isso requer ofortalecimento da base científica e de pesquisa, a prudenteinteração entre as ciências e a tomada de decisões, e a valo-rização de conhecimentos autóctones e locais, com os diver-sos países identificando em nível nacional suas necessida-des e prioridades no contexto das atividades internacionaisde pesquisa. Com os conhecimentos científicos adquiridostambém servindo de apoio para a realização de avaliaçõesprospectivas.

Tem prioridade estratégica para o desenvolvimento sus-tentável o fortalecimento da capacitação científica nacional,incentivando as atividades de pesquisa e desenvolvimentocom vistas a uma maior utilização de seus resultados nosdiferentes setores produtivos. Isso requer um conjunto deações no âmbito do ensino, treinamento e capacitação derecursos humanos, apoiadas tanto nos conhecimentos tra-dicionais e locais da sustentabilidade como nos avanços damodernas “tecnologias da sustentabilidade”. Este processodeve estar articulado com o fortalecimento da infra-estrutu-ra científica de escolas, universidades e instituições de pes-quisa, e a implantação de bancos de dados científicos etecnológicos no plano nacional, que alimentem redes regio-nais de informação.

Tem grande importância estratégica para o desenvol-vimento sustentável a melhoria da comunicação e coopera-ção entre a comunidade científica e tecnológica, ostomadores de decisões políticas e o público. Decisões emconsonância com o princípio “sustentabilidade” são deci-sões éticas, que contribuem para a manutenção e aperfeiçoa-mento de sistemas de sustentação da vida. O fortalecimentode códigos de conduta e diretrizes para a comunidade cien-tífica e tecnológica contribui decisivamente para a consci-ência ambiental e o desenvolvimento sustentável. Para que se-jam eficazes no processo de tomada de decisões, esses prin-cípios, códigos de conduta e diretrizes, devem, não apenas,ser produto de um acordo interior à comunidade científica

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e tecnológica, mas também receber o reconhecimento de todaa sociedade.

Redesenhando o utopismo

Vivemos uma transição crítica (Hobsbawm: 1994). Ofim do milênio se associa a uma crise de paradigmas e auma radical transformação na base tecnológica da civiliza-ção moderna “globalizada”. Acumulam-se os estudos quese pretendem formuladores de sínteses globais, previsões,cenários, agendas e avaliações que podem servir de pontespara o redesenho da utopia. E, em nosso fin de siècle, surgetambém toda uma série de trabalhos que apresentam possí-veis rupturas com tendências do tipo cul-de-sacs: Fim da his-tória (Fukuyama: 1992), Fim do trabalho (Rifkin: 1995), Fimda ciência (Horgan: 1996).

Mas as cartilhas da renovação também são muitas, acomeçar pela Agenda 21. E seguindo uma conduta poucousual entre acadêmicos, J. K. Galbraith (1996) lançou recen-temente a obra The Good Society: The Humane Agenda, que oinsere no seleto grupo de intelectuais engajados em proje-tos de sociedade3. Nela são pautados temas como desenvol-vimento, meio ambiente e educação.

Podemos observar que os marcos iniciais do redesenhodos caminhos do utopismo estão apontados. Cabe agoratrilhá-los. E, para isso, algumas recomendações parecem per-tinentes:

• As estratégias de mudança não podem ser objeto deações imediatistas, nem seus resultados colhidos acurto prazo. Deve-se ter em mente que os investi-mentos que os países hoje desenvolvidos fizeram noâmbito da educação e do desenvolvimento científico

3. Merece referência, nesse caso, o estudo pioneiro de Tinbergen et al. (1977),além do Relatório Meadows et al. (1972).

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PRUDÊNCIA E UTOPISMO 185

e tecnológico têm o prazo de maturação de pelo me-nos uma geração.

• Os projetos nacionais de metamorfose da identida-de cultural devem ser gradualistas. Rupturas radicais“instantâneas e totais” revelam-se carentes desustentabilidade institucional. Sem continuidade ecredibilidade nas instituições, a legitimidade e aefetividade dos processos de transformação ficamcomprometidas.

• O princípio “sustentabilidade” como fundamento deuma modernidade ética precisa resgatar a lógica doser, superando a moldagem que a lógica do ter ao lon-go do século XX imprimiu tanto à educação quantoao desenvolvimento da pesquisa e da ciência etecnologia.

• As mazelas da globalização, tais como desemprego, ex-clusão social e anulação de culturas locais, são um de-safio a ser enfrentado por uma modernidade ética,fundada no princípio “sustentabilidade”, que afirmea pluralidade e diversidade como valores positivos.

• A educação deve estar em sintonia com novosparadigmas. Não mais voltada à formação de cultu-ras e mentalidades que levem a um futuro utilitarista,especializado e condenado aos efeitos perversos dodesemprego, das guerras e da degradação ambiental.

Apelo à prudência: um caso exemplar

O triunfo do industrialismo na última virada de séculotrouxe consigo a hegemonia de dois conjuntos de expectati-vas. Havia, por um lado, uma grande certeza de que umciclo de redução das desigualdades sociais, resultado depolíticas públicas de proteção social, conduziria o mundo auma situação de maior justiça social: a sociedade afluenteera o espelho do futuro de toda a humanidade. Esse cenário

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186 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE

otimista tinha por suporte um notável desenvolvimento daciência e das técnicas nas décadas precedentes, que alimen-tava a crença na possibilidade de que um irrestrito avançodo conhecimento e do engenho humano seriam capazes desolucionar impasses, corrigir distorções e anular “efeitosexternos” indesejáveis.

Os amargos fatos da vida (guerras, “limpezas étnicas”,desigualdades exacerbadas, corrida armamentista, despo-tismos, desastres ecológicos etc.) que acompanharam o “lon-go século XX” frustraram tais expectativas, e revelaram aingenuidade desse otimismo. O caminho da humanidadeseguiu a perigosa trajetória que se orienta muito mais pelabusca de uma modernidade técnica do que de uma modernidadeética.

Dentro de tal cenário, o império da lógica econômica so-bre a lógica da sustentabilidade transformou nosso século emum imenso laboratório de operações de risco. Nenhum ou-tro período da história foi tão sangrento (cf. Hobsbawm:[1994], o equivalente a 10% dos 1,9 bilhões de habitantes doplaneta em 1900 morreram em guerras ao longo do século).Nunca o contraste entre abundância e penúria entre povosfoi tão grande; e nem a ciência foi tão necessária para a reso-lução de problemas criados pelo próprio avanço das técni-cas. Deparamo-nos com a desconcertante situação que jáhavia sido alertada por Herrera (1984): vivemos sob o riscode uma “crise da espécie”. Precisamos conviver com a pos-sibilidade de destruir a biosfera por atos humanos, e nãoapenas sob a forma do holocausto nuclear exacerbado pelacorrida armamentista. É urgente incorporar uma redefiniçãodos balizamentos éticos de nossos atos produtivo-destrutivos. A “cega” incorporação aos sistemas produti-vos de novos avanços tecnológicos, sem a prudente avalia-ção de seus riscos, pode transformar o alerta de Herrera emprofecia, e os cenários sombrios das antiutopias de ficçãocientífica em ingênuas antevisões, se confrontados com arealidade dos fatos.

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PRUDÊNCIA E UTOPISMO 187

O avanço das tecnologias de manipulação genéticaconstitui importante pano de fundo para a atual temporadade balanço do século XX e de cenários para o próximo. Comohá 100 anos atrás, o progresso é anunciado como redentor.E a prudência parece ser nossa virtude mais necessária.

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188 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE

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SOBRE OS AUTORES

Argemiro Procópio Filho. Nascido em Varginha, MG, em1949. Doutor em Sociologia pela Universidade de Berlim,Alemanha. Pós-graduado no Instituto de Estudos dos Paí-ses em Desenvolvimento da Universidade Católica deLouvain, Bélgica. Professor Titular por concurso público doDepartamento de Relações Internacionais da Universidadede Brasília. Autor de: Amazônia, ecologia e degradação social,Alfa-Ômega; O Brasil no mundo das drogas, Vozes; Narcotráficoe segurança humana, Ltr.

Arminda Eugenia Marques Campos. Nascida no Rio de Ja-neiro, RJ, em 1961. Graduou-se em Engenharia Civil na UFRJ(1983). Obteve os graus de mestre (1991) e doutora (1997)em Ciências em Engenharia de Produção na COPPE/UFRJ.Trabalha como coordenadora de projetos no Fundo Brasi-leiro para a Biodiversidade, estando ainda associada a pro-jetos do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento So-cial do Programa de Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ. Tem interesse em história e filosofia da educação edas ciências.

Eduardo Baumgratz Viotti. Nascido em Belo Horizonte, MG,em 1952, é graduado em economia pela Universidade Fede-ral de Minas Gerais (1975); mestre em economia pela Uni-

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190 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE

versidade de Brasília (1979) e doutor pela The New SchoolUniversity, New York, EUA (1997). É Consultor Legislativodo Senado Federal para Políticas de Ciência e Tecnologia ede Meio Ambiente. É também professor do Mestrado emPolítica e Gestão de C&T, Centro de Desenvolvimento Sus-tentável da Universidade de Brasília. Foi ConsultorLegislativo da Câmara dos Deputados; Chefe da Divisão dePlanos de C&T do Ministério da Ciência e Tecnologia; Co-ordenador de Desenvolvimento Industrial do CNPq e As-sessor da Coordenação de Estudos Especiais do Conselhode Desenvolvimento Industrial do Ministério da Indústria edo Comércio.

Elimar Pinheiro do Nascimento. Nascido no Recife, PE, em1947, é doutor em sociologia pela Universidade René Des-cartes, Paris (1982). Fez pós-doutoramento na Ecole desHautes Études en Sciences Sociales, com Alain Touraine(1992). Trabalhou na Europa como documentarista e editorda revista do SEUL (1972/1976) e, em Moçambique, no Mi-nistério de Educação e na Universidade Eduardo Mondlane(1976/1979). No Brasil, foi professor nas universidades fe-derais da Paraíba (1980-1983), Pernambuco (1985-1987) e,desde 1987, leciona na Universidade de Brasília, no Depar-tamento de Sociologia e no Centro de DesenvolvimentoSustentável. Foi diretor do Centro de Estudos Josué de Cas-tro do Recife e vice-presidente da Associação dos Sociólo-gos de Pernambuco. Trabalhou no governo CristovamBuarque (DF) como chefe de sua assessoria especial, respon-sável por Ciência e Tecnologia, e Secretário-adjunto de Co-municação. É autor de vários livros e artigos.

Jenner Barretto Bastos Filho. Nascido em Salvador, BA, em1949, é bacharel em física pela Universidade Federal da Bahia(1971), mestre em física pela Unicamp (1975) e doutor emfísica teórica pela Eidgenössische Technische Hochschule-Zürich, Suíça (1982). Foi professor da Universidade Federalda Bahia (1976-1978) e, desde 1983, é Professor do Departa-

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SOBRE OS AUTORES 191

mento de Física da Universidade Federal de Alagoas. A partirda fundação do Programa de Pós-graduação em Desenvol-vimento e Meio Ambiente (Mestrado do PRODEMA/UFAL)em 1997, tem ministrado a disciplina Lógica e Crítica da In-vestigação Científica. Desde 1997, é vice-coordenador doPRODEMA/UFAL. É membro do Comitê de Bioética e Éti-ca em Pesquisa da UFAL. Tem um estágio pós-doutoral naUniversidade de Bari/Itália/1993. Tem trabalhos publica-dos no Brasil e no exterior em física, ensino de ciências, his-tória e filosofia da ciência. Presentemente, estuda desenvol-vimento e meio ambiente.

Marcel Bursztyn. Nascido no Rio de Janeiro, RJ, em 1951, égraduado em Economia (1973) e mestre em PlanejamentoUrbano e Regional (1976) pela Universidade Federal do Riode Janeiro. Na University of Edinburgh, Escócia, obteve oDiploma in Planning Studies (1977). É doutor em Desenvol-vimento Econômico e Social pela Université de Paris I(Sorbonne), 1982, e em Ciências Econômicas pela Universitéde Picardie, na França, 1988. Foi professor das universida-des federais do Rio de Janeiro e da Paraíba e da Universitéde Paris I (Sorbonne). Desde 1992, leciona no Departamentode Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e, a partirde 1996, é coordenador de pós-graduação do Centro de De-senvolvimento Sustentável da mesma universidade. Ocupouvários postos na administração pública federal e do DistritoFederal (governo Cristovam Buarque). É autor de vários li-vros e artigos.

Roberto dos S. Bartholo Jr. Nascido no Rio de Janeiro, RJ,em 1951, é graduado em Economia pela Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Teologia pela Universi-dade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). É Mestre emCiências em Modelos Matemáticos aplicados à Engenhariade Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro(COPPE/UFRJ) (1976), e Doutor pela Faculdade de Econo-mia e Ciências Sociais da Universidade Erlangen-Nürnberg,

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192 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE

na Alemanha (1981), onde defendeu a tese Homo Industrialis,um questionamento dos fundamentos ético-econômicos damodernidade contemporânea. É professor da Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro onde criou o Laboratório deTecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS). É autor de vá-rios livros e artigos.

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