ciencia e experiencia nos descobrimentos portugueses

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Biblioteca BreveSRIE HISTRIA

CINCIA E EXPERINCIA NOS DESCOBRIMENTOS PORTUGUESES

Edio sob os auspcios do Comissariado para a XVII Exposio Europeia de Arte, Cincia e Cultura

Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento

Lisboa, 1983

CONSELHO DA EUROPA

COMISSO CONSULTIVA

FERNANDO NAMORA Escritor JOO DE FREITAS BRANCO Historiador e crtico musical JOS-AUGUSTO FRANA Prof. da Universidade Nova de Lisboa JOS BLANC DE PORTUGAL Escritor e Cientista HUMBERTO BAQUERO MORENO Prof. da Universidade do Porto JUSTINO MENDES DE ALMEIDA Doutor em Filologia Clssica pela Univ. de LisboaDIRECTOR DA PUBLICAO

LVARO SALEMA

LUS DE ALBUQUERQUE

Cincia e experincia nos descobrimentos portugueses

MINISTRIO DA EDUCAO

TtuloCincia e Experincia nos Descobrimentos Portugueses

Biblioteca Breve / Volume 73

1. edio 1983 Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da Educao Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa

Praa do Prncipe Real, 14-1., 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao reservados para todos os pases Tiragem

Diviso de Publicaes

6000 exemplares ____________________________________Coordenao geral

Beja Madeira ____________________________________Orientao grfica

Lus Correia ____________________________________Distribuio comercial

Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora Portugal ____________________________________Fotocomposio

Textype Artes Grficas, Lda. Rua da Atalaia, 18, 1. Esq. ____________________________________Impresso e acabamento

Oficinas Grficas de Veiga & Antunes, Lda.Minerva do Comrcio

Tr. da Oliveira Estrela, 4, 6, 10

NDICE

Pg.

I / ANTECEDENTES DA NUTICA DOS DESCOBRIMENTOS .......................................................................6 1. A nutica medieval........................................................................6 2. Carta-portulano, Marino de Tiro e a carta plana quadrada......................................................................................12 3. O que a navegao astronmica ............................................17 II / O SURTO DA CINCIA NUTICA ..........................................22 1. A navegao portuguesa pelo Atlntico ..................................22 2. A navegao pelo largo ..............................................................26 3. A soluo da comparao por alturas ......................................32 4. A determinao de latitudes ......................................................42 5. As observaes solares...............................................................52 III / PROGRESSOS DA CARTOGRAFIA .........................................59 1. Alguns aspectos da cartografia do sculo XV.........................59 2. A cartografia portuguesa do sculo XV...................................63 3. A escala de latitudes introduzida nas cartas ............................68 IV / O ALVORECER DA MENTALIDDADE CRTICA .............78 V / O CONHECIMENTO DA DECLINAO MAGNTICA ...................................................................................86 1. Retorno declinao magntica ...............................................86 2. Como se determinava a declinao magntica .......................93 3. Para que servia a declinao magntica .................................100 4. Alonso de Santa Cruz e o seu Livro das Longitudes........103 5. D. Joo de Castro e o magnetismo terrestre.........................111 CONCLUSO ...........................................................................................121 NOTAS .......................................................................................................124 BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA...................................................131

I / ANTECEDENTES DA NUTICA DOS DESCOBRIMENTOS

1. A nutica medieval Desde a Antiguidade que os homens do mar, responsveis pelo xito das navegaes, criaram o hbito de registar por escrito as indicaes consideradas importantes para assegurar o xito da viagem, caso viessem a repeti-la. Fazendo uma navegao quanto possvel costeira, esses primitivos apontamentos dos pilotos e navegadores, no obstante o seu grande interesse histrico, fornecem um pequeno nmero de dados. Lendo, por exemplo, o Priplo do Mar Eriteu 1, redigido em grego por autor desconhecido antes de iniciada a nossa era, verifica-se que esse texto aponta o nome dos principais portos do Mar Vermelho, indicando quase sempre a distncia (em estdios) que separa entre si dois ancoradouros consecutivos, e ainda algumas breves informaes sobre os habitantes (ictiofgios e agriofgios, por exemplo) que viviam nas terras circunvizinhas desses lugares martimos. Mas os esclarecimentos prestados so, na maioria dos casos, sucintos e imprecisos; certo que, excepcionalmente, podem descer a alguns pormenores de interesse, mas nunca apontam o rumo pelo qual o navio6

devia ser encaminhado 2, como na Idade Mdia se leria nos textos anlogos; tal falta apenas significativa de que a navegao no se fazia nesse tempo por rumos geogrficos ou magnticos; o piloto impunha sua embarcao, como j ficou dito, uma derrota vista de costa, e isso dispensava qualquer tipo de orientao geogrfica, que se tornaria mais tarde indispensvel, quando tais condies se alteraram. H testemunhos suficientes, embora de diversas origens, de terem existido vrios textos deste tipo; eles constituem os mais antigos livros de nutica de que temos conhecimento, sendo de salientar que no h naqueles que nos chegaram em fragmentos ou integralmente outros dados suplementares que pudessem auxiliar o piloto na sua tarefa. Para citar um exemplo, direi que nenhum desses textos alude a qualquer determinao de latitude, que alis seria absolutamente intil para a arte de navegar a que se recorria; certo que se tem sustentado ter Pytheas de Marselha medido esta coordenada geogrfica umas quatro vezes nas suas deambulaes ocenicas, que o teriam levado at a ilha de Tule, s costas da Noruega e ao Bltico 3; Laguarda Trias estudou-as cuidadosamente, mas a verdade que tais pretendidas observaes foram todas feitas em terra e em lugares desconhecidos (apenas de uma delas se sabe que teve lugar em Marselha); o seu interesse para a nutica , por conseguinte, nulo ou muito longnquo 4. As navegaes mediterrnicas da Idade Mdia, seriam bastante mais exigentes medida que se intensificaram, e sobretudo depois que os pilotos comearam a utilizar a agulha marear; este acontecimento de que se no sabe exactamente a histria, verificou-se, o mais tardar, no decorrer do sculo XIII (embora existam em autores

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europeus referncias s propriedades da agulha magnetizada anteriores a essa data). Como consequncia dele, os priplos da Antiguidade, j ento chamados portulanos, passaram a acrescentar s distncias que separavam dois portos o rumo (magntico) que o piloto devia adoptar para se dirigir de um a outro. Dois outros aperfeioamentos da nutica aparecem tambm antes do sculo XV: a carta de navegar (a que modernamente se deu o nome de carta-portulano, por estar intimamente relacionada com os textos nuticos designados por portulanos) e a toleta ou raxon de marteloio. Quanto carta, e a despeito de muitas especulaes que em torno do seu traado tm sido feitas, continuo persuadido que ela de facto surgiu exclusivamente como desejo de dar expresso grfica aos portulanos; quer dizer que, em minha opinio, no seguiu qualquer sistema de representao matemtica, como muitos historiadores pretenderam, por vezes relacionando-a sobre o muito falado sistema de projeco de Marino de Tiro, de que no h notcias satisfatrias; um estudo atento das cartas deste tipo mostra, com efeito, que nelas se utilizaram os elementos que estavam escritos nos portulanos, e que foram transpostos para o desenho tal como hoje ainda se faz um levantamento topogrfico expedito, para representao de reas restritas; claro que, dada a extenso das reas representadas na carta portulano, ela apresentava-se geograficamente errada; mas cortada de linhas de rumos magnticos (inicialmente em nmeros de dezasseis, que foi dentro de pouco tempo duplicado), ou seja, exactamente os rumos seguidos pelos pilotos, adaptava-se perfeitamente nutica, quer dizer, estava nauticamente correcta. Tanto assim que os seus erros s

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vieram a ser notados pelos seus utilizadores quando a arte de navegar passou a recorrer a outros dados que entravam em conflito aberto com o traado da carta, como adiante direi. Os dois dados at aqui referidos saram da prtica dos pilotos; os portulanos correspondiam ao mais elementar cuidado de preservar experincia vivida, e no envolviam, de incio (na sua fase de priplos) mais do que o clculo estimado das distncias percorridas (com tendncia para arredondar os nmeros para as centenas, nos textos da Antiguidade) e a leitura, feita pela bssola, do rumo adoptado; o desenho da carta, embora exigisse j uma tcnica (e ficaram clebres as escolas mediterrnicas de Gnova, Veneza e Maiorca), no implicava mais do que alguns conhecimentos muito elementares de geometria. Segundo vrios autores o caso seria de ndole completamente diferente a respeito da toleta de marteloio. No importa aqui descrever com mincia este auxiliar da navegao, apresentado umas vezes atravs de um conjunto de enunciados e outras atravs de tabelas que os condensavam e talvez facilitassem o seu uso; bastar dizer que a toleta ensinava ao piloto o modo de regressar ao rumo directo entre dois pontos, quando por qualquer razo (vento contrrio, interposio de uma ilha, etc.) dele tivesse de se afastar, ensinando-lhe, ao mesmo tempo, qual o caminho que o navio avanara, apesar do desvio, que era obrigado a fazer em relao ao sentido do rumo inicial. Admite-se muitas vezes que tais tabelas, ou as regras correspondentes, teriam a sua origem em cogitaes do catalo Raimondo Lullo (sculos XIII-XIV), ideia a que se acrescenta com frequncia a suposio de que os nmeros registados nos enunciados ou nas tbuas

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derivaram de clculos trigonomtricos. Suponho que o trecho geralmente citado da sua Ars magna generalis et ultima 5 pode inculcar a ideia de toleta, muito embora ainda a esta no chegue; mas tambm penso que os valores em discusso possam ter sido obtidos por via grfica, procedimento em que os tcnicos medievais eram extremamente hbeis. A estes elementos da nutica da Idade Mdia falta apenas acrescentar um dado que se denomina o estabelecimento do porto. De facto, os navegadores dos sculos XIII-XIV fixavam a hora de praiamar no dia de lua-nova em dado porto (a isso se chamava estabelecimento do porto), e sabiam dessa hora inferir as horas das mars em dias subsequentes. Tambm neste caso, embora se conheam listas do estabelecimento para vrios portos (a mais antiga das quais data do sculo XIII), o seu conhecimento, muito importante para os pilotos, foi de incio muitas vezes facultado em forma de grfico, como se v na carta catal de Cresques (sculo XIV), hoje conservada na Biblioteca Nacional de Paris. Estes dados para a arte nutica andavam em geral dispersos; os pilotos ainda no tinham tomado a iniciativa de juntar num nico manuscrito as cartas de navegar a cadernos em que transcrevessem os portulanos e as poucas regras nuticas que aplicavam e acabamos de citar. certo que h vrias referncias dos sculos XIII-XIV a livros respeitantes arte de navegar; mas aquele que sobreviveu, intitulado Il Compasso da Navigare, da segunda metade do sculo XIII, inclui apenas portulanos; de outros que so referidos na documentao conhecida, como um Livro de Navegar que foi comprado por o rei de Arago 7, desconhece-se o contedo, mas de admitir que no se afastasse muito daquele texto italiano.

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Por outro lado, devo sublinhar que os dados dessa nutica praticada no Mediterrneo, e ao longo das costas atlnticas at o Canal da Mancha, ou mesmo, e mais tarde, at o Mar do Norte, era constituda por regras resultantes de observaes repetidas durante dezenas ou centenas de viagens, ao longo de muitos anos. Ressalvado porventura o caso da toleta de marteloio, que pode ter tido uma base em clculo trigonomtrico, (muito embora, repito, propenda a crer que teve origem grfica), todos os dados utilizados na arte de navegar dessa poca so consequncias directas da mesma prtica da navegao, ou seja, trata-se de conquistas a que gradual e progressivamente se chegava prestando ateno ao meio e s condies em que se navegava. Neste sentido, a nutica com que os Portugueses tiveram contacto j no decorrer de Trezentos mas, principalmente, durante o sculo imediato, quando arrancaram para a grande aventura dos Descobrimentos, no se pode afirmar que tivesse a mnima relacionao com qualquer Cincia (Astronomia ou Matemtica, por exemplo), salvo talvez o muito pouco que se pedia Geometria para facilitar o traado de cartas e dos grficos j referidos. Esses dados eram sem dvida consequncia da experincia acumulada por sucessivas geraes de pilotos, entendendo-se aqui a palavra experincia no sentido que j acima ficou claro: simples acumulao de informaes, obtida por sucessivas geraes, o que permitia, por ltimo, a seleco de regras ou de ensinamentos teis para os navegantes. Se existia j uma inteno de interrogar a natureza, o que inegvel, ela confinava-se aos aspectos relacionados com a tarefa que cumpria aos pilotos realizar (levar o navio ao porto de destino sem grandes contratempos), e no

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ambicionava certamente rasgar horizontes para alm desses limites. E nem o recurso a ensinamentos muito simples de Astronomia de posio, a fim de se determinarem a bordo latitudes, como tm pretendido alguns autores, foi necessrio; a nutica que praticavam dispensava em absoluto o conhecimento de tal coordenada geogrfica, que alis nenhum portulano regista nem qualquer carta aponta. Temos assim que a arte de navegar recebida pelos Portugueses era no verdadeiro sentido da palavra uma arte. Traduzia-se em procedimentos prticos com fundamento em utenslios muito simples: a carta, a bssola, um par de compassos para marcar o ponto na carta, e algumas regras avulsas que o contacto de sculos com o mar, e com a manobra de arribar ou largar de um porto, tinham levado a um estado de satisfatrio aperfeioamento. 2. Carta-portulano, Marino de Tiro e a carta plana quadrada De todo o material da arte nutica medieval que venho de referir, tem sido a carta-portulano a mais sujeita a especulaes nos ltimos cem anos. evidente que a carta-portulano consequncia de uma repetida experincia de navegar, traduzindo, como j ficou dito, a transcrio grfica das indicaes dos roteiros, aperfeioados ao longo de muitas dezenas, se no centenas de anos. Todavia, no se pode deixar de sublinhar que se usa aqui a palavra experincia no sentido de prtica repetida, e que, por outro lado, o desenho da carta-portulano no implica de modo algum,12

a nosso ver, qualquer mais ou menos complicado sistema de representao plana da esfera, problema por demais transcendente para os desenhadores das escolas cartogrficas mediterrnicas medievais. No h dvida que esse problema da representao plana da esfera terrestre preocupou alguns sbios da Antiguidade, com especial relevo para Cludio Ptolomeu que, na sua obra denominada Cosmografia (hoje mais conhecida por Geografia), dedica espao relativamente extenso ao assunto. No entanto, por um lado, tudo indica que essa justamente clebre obra do gegrafo alexandrino ainda no era conhecida na Itlia no sculo XIII, quando se desenharam os primeiros portulanos, visto que o conhecimento no ocidente do original grego, e a sua imediata traduo para latim, datam s do primeiro quartel do sculo XV; e por outro lado, est fora de dvida que as solues apresentadas por Ptolomeu para o problema nada tm a ver com o carcter topogrfico da carta-portulano. Passando em claro sobre outras hipteses a respeito da origem da carta-portulano, todas inconsistentes e facilmente contraditveis, detenhamo-nos naquela que tem sido mais ardorosamente defendida. Muitos historiadores da cartografia, e entre ns com relevo especial para Armando Corteso 8, consideraram que a carta-portulano fosse descendente directa da representao que teria sido proposta por Marino de Tiro (c. 70-130 A.C.). A exposio de Marino sobre o caso pode considerar-se irremediavelmente perdida, e s conhecida atravs de vagas referncias indirectas, entre as quais avulta a de Ptolomeu. Contudo, para os defensores de tal dependncia, o conhecimento do texto do cartgrafo e gegrafo de Tiro teria chegado, por vias que

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nunca foram claramente explicadas, aos marinheiros do Mediterrneo, supondo alguns que os rabes, e em especial al-Edrisi, fossem os intermedirios. Admitiu-se at que os navegadores dos mais recuados tempos j tivessem ao seu dispor cartas para navegar, e que todas elas descendessem da chamada projeco de Marino. Para os historiadores que seguiram esta corrente de suposies era absolutamente inadmissvel que os priplos, escritos nesses tempos antigos, no andassem acompanhados de cartas que os ilustrassem; o sbio Nordenskild, perante o chamado priplo de Scilax, no recuou em admitir que as instrues nele contidas serviram possivelmente como texto explanatrio de um mapa ou carta do Mar Mediterrneo e do Mar Negro 9. Em reforo da tese da influncia de Marino na cartografia nutica medieval, publicou recentemente o historiador Rolando Laguarda Trias um desenvolvido estudo em que sustenta existir uma carta-portulano desenhada de acordo com os supostos princpios que teriam sido definidos por aquele gegrafo grego 10. Este erudito estudioso uruguaio toma para ponto de partida uma das duas cartas pertencentes ao Top Kapu Sorayu de Istambul, que foram apresentadas e estudadas por Marcel Destombes em 1936 11. A carta est muito deteriorada, mas representa a bacia do Mar Negro. Laguarda Trias, depois de notar que o desenho da rea esboada na carta muito mais correcto do que o traado de Ptolomeu, aceita que o mapa em questo no seja uma verdadeira carta portulano; no entanto, relaciona-a directamente com os desenhos deste ltimo tipo, e tambm com a tradio de Marino, que para ele seria certamente a que deu lugar carta martima a que chamamos carta-portulano.

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Em minha opinio, os dados esto aqui tomados de maneira inversa. De facto, a carta de Istambul aparenta estar coberta de uma quadrcula, o que a relacionar com Marino, quando se aceitar que este gegrafo imaginou o que hoje abusivamente se chama a carta plana quadrada. Esta, de facto, nunca existiu, seno nas teorias de historiadores mais imaginativos, embora tenha uma razo de ser: de facto, em consequncia dos progressos que os Portugueses foram obrigados a introduzir na navegao, em incios do sculo XVI, passaram a ser inseridas escalas de latitude nas cartas, a que correspondiam iguais valores para cada grau em toda a extenso do desenho; e, no muito depois, embora de modo arbitrrio, passou tambm a inscrever-se a mesma graduao no equador. Daqui resulta que, traando os paralelos e os meridianos, correspondentes s duas escalas, a carta ficaria coberta de uma rede quadricular, tal como se admitia que Marino tivesse feito, e tal como Laguarda Trias encontrou na carta de Istambul. Como a seu tempo veremos mais detidamente, foi espria a introduo de escalas de latitudes e de longitudes em cartas desenhadas pelos princpios que orientavam os cartgrafos medievais e que continuavam a ser adoptados pelos Portugueses. Da carta no estar preparada para esse acrscimo resultou de modo irreversvel a crise da Cartografia latente durante todo o sculo XVI, e de que os navegadores foram os primeiros, talvez, a dar-se conta. Quer isto dizer que a carta, sendo de facto plana (como bvio), apenas continha erradamente os meios para lhe ser sobreposta uma quadrcula, isto , nunca foi correctamente uma carta quadrada. No h, pois, necessidade de congeminar sistemas cilndricos de projeco para dar uma

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explicao que, por artes milagrosas, torne correcto o que de facto falso. Para finalizar estas referncias a um tema que ainda hoje muito discutido, e nos poderia levar muito longe, direi, resumindo, que: a) totalmente desconhecido o sistema de representao de Marino de Tiro, pelo que admitir-se que se encontra traduzido na carta de Istambul mera suposio carecida de prova; b) Al-Edrisi no deve ter sido o transmissor dessa cartografia clssica para o Mediterrneo dos sculos XIIIXV, pois as cartas que dele se conhecem tambm no obedecem a qualquer princpio de representao cientfica; c) a inegvel correco da bacia mediterrnica representada nas cartas-portulano, comparativamente com os desenhos ptolomaicos, resulta de um muito melhor conhecimento da rea representada, o que no deve surpreender-nos se atentarmos a que entre os dois tipos de esboos medeiam dez sculos; mas, em minha opinio, nada tem a ver com os sistemas de representao adoptado (matematicamente bem definido em Ptolomeu; empiricamente esboado nas cartas martimas); e d) essa carta nutica nunca se transformou, de facto, numa carta plana quadrada, como facilmente se poder verificar unindo, num qualquer dos monumentos cartogrficos desenhados por cartgrafos portugueses do sculo XVI, pontos assinalados que sabemos estarem situados a igual latitude, mas que no desenho se no encontram sobre a mesma linha transversal.

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3. O que a navegao astronmica? Quando se indaga em que poca os navegadores iniciaram a prtica de uma navegao astronmica, as respostas obtidas podem ser radicalmente diferentes e ambas correctas. De facto, e em ltima anlise, elas dependero do sentido em que se entenda a expresso navegao astronmica. Assim, quando a designao entendida no sentido de uma simples observao de certas estrelas, para orientar o rumo da singradura, pode-se dizer que certamente foram astronmicas as nuticas de todos os tempos. Alis bem sabido que no s os marinheiros se orientaram desde sempre pelas posies de certas estrelas: tambm aqueles que viajavam os grandes caminhos que, por terra, ligavam lugares muito afastados, recorriam orientao de certas estrelas mais evidentes para escolher o trilho a seguir. Todavia, no nesse sentido primitivo que os historiadores dos nossos dias entendem a navegao astronmica; para eles, com efeito, uma arte de navegar s merece tal qualificativo quando a observao dos astros feita no mar e utilizada para alguma medida de interesse imediato para dirigir a navegao. J acima escrevi que, neste sentido, e em contradio com o parecer de Laguarda Trias, a longa viagem de Pytheas de Marselha nunca pode ser considerada astronmica, porque as quatro observaes de latitudes que lhe so imputadas no foram feitas no mar, nem parece que tenham servido para fins nuticos. Se Pytheas realmente fez essas observaes (o que inseguro, dado o modo como o seu dirio foi reconstitudo), foi

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certamente para localizar (embora imprecisamente) os lugares atingidos. Embora s de um modo espordico, tambm se tem por vezes adiantado que j no sculo XIV se teria praticado no Atlntico, uma navegao astronmica, no se hesitando at em garantir que j ento se observariam latitudes no mar. Armando Corteso, com quem muitas vezes discuti este problema, estava convencido de que os marinheiros portugueses do tempo de D. Dinis j praticavam frequentemente a determinao daquela coordenada geogrfica. Os seus principais argumentos baseavam-se na relativa preciso das representaes da orla martima portuguesa em cartas do sculo XIV e na lista de latitudes (que inclui as de Lisboa, de Santarm e de Coimbra) inserida nos chamados Almanaques Portugueses de Madrid 12. Quanto ao primeiro argumento, deve ser salientado que qualquer rea restrita representada cartograficamente pelos processos de rumo e estima oferece igual preciso, mesmo a respeito de diferenas de latitudes que abusivamente calculemos na carta (e digo abusivamente, porque o desenho no atendeu coordenada). Se fizermos esses clculos para a costa italiana do Mediterrneo encontraremos o mesmo grau de rigor, e est hoje averiguado que no Mediterrneo no foi praticada a navegao astronmica at ao sculo XVIII. Quanto aos Almanaques, verdade que eles incluem as latitudes referidas, mas tambm inegvel que no tm qualquer relao com a nutica. Provam, certo, que em Coimbra (onde foram copiados e parcialmente traduzidos) havia quem prestasse ateno a essa particularidade, e que no reino alguns astrlogos sabiam obter latitudes; mas isso nada tem de surpreendente, dado

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que as regras para a determinao dessa coordenada geogrfica pelas estrelas ou pelo Sol ocorriam em diversos textos, nomeadamente em muitos dos vrios tratados medievais sobre o astrolbio, e tambm nos justamente clebres Libros del Saber de Astronomia, que Afonso X de Castela mandou compilar. de notar, alis, que os Almanaques, contendo tbuas do Sol, no referem as declinaes astronmicas do mesmo astro para os vrios dias de um ano ou de quatro anos sucessivos, dado que seria indispensvel para o clculo da latitude; em todo o caso, deve reconhecer-se que esse elemento podia ser obtido, com valores grosseiros, por processos grficos, a partir dos nmeros apontados para a longitude solar (ou antes, e para se ser rigoroso, para o chamado lugar do Sol) nas tbuas do cdice. Sendo irrecusvel, por consequncia, que em Portugal se fizeram observaes de latitudes antes de meados do sculo XIV (pelo menos as das trs cidades indicadas), no lcito por isso admitir que a prtica logo passasse aos marinheiros e pilotos, quando o manuscrito em que foram registadas nada tem a ver com a actividade martima. Podemos, de resto, perguntar para que serviria a estes homens, habituados a uma navegao costeira e a guiarem-se por outras regras, uma nova prtica que nada tinha a ver com o uso da nutica mais avanada nessa poca, admitindo, o que incerto, que todos os marinheiros a conheciam e a dominavam sem hesitaes. Efectivamente, o marinheiro medieval, como o marinheiro de todas as pocas foi sempre um homem ligado a uma rotina rotina que naqueles recuados tempos se manteve inaltervel durante sculos. Quando modificou a sua maneira de proceder, foi porque a tanto as necessidades o obrigaram; e isso s

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veio a dar-se no Atlntico em meados do sculo XV, como adiante se ver. Pode-se argumentar que as viagens aos arquiplagos das Canrias, da Madeira e dos Aores, que por vezes se pretende terem sido j frequentes durante o sculo XIV, haviam fatalmente de impor aperfeioamentos na arte nutica tradicional. No me parece que tal se tornasse necessrio para viajar at s Canrias e Madeira, que foram visitadas (ou simplesmente reconhecida a Madeira) durante aquele sculo; as visitas s Canrias realizaram-se com uma frequncia assinalvel a partir de 1341, aproximadamente, podendo considerar-se que a navegao at l se tornou rotineira, sem qualquer pausa que em geral era exigida para se modificarem as prticas navais. A visita aos Aores exigiria, porventura, uma soluo astronmica anloga que foi adoptada no Oceano ndico (Golfos de Cambaia e de Bengala), e tambm, segundo tudo indica, nas viagens atlnticas de Cristvo Colombo. Consistiu essa novidade, que os Portugueses tambm adoptaram no sculo XV, em traar derrotas segundo paralelos, medindo as mesmas alturas de uma estrela (em geral a Estrela Polar) sua passagem pelo meridiano do lugar. Se tal se tivesse praticado no Atlntico durante o sculo XIV, estaramos na verdade em presena de uma navegao astronmica, pois era necessrio medir altura de uma estrela, e repetidas vezes. Mas no creio que assim tenha acontecido, porque me parece inaceitvel que o arquiplago dos Aores tivesse sido descoberto durante o sculo XIV; no aqui o lugar para expr as razes que me levaram a esta concluso, mais radical do que a defendida numa obra anterior 13, onde ainda admitia a possibilidade do conjunto daquelas ilhas ter sido visitado de maneira

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ocasional e fortuita, sem que da tal viagem ou de tais viagens tivesse resultado qualquer projecto para o seu aproveitamento econmico e da visita tivessem at sobrevivido notcias precisas. Creio encontrarmo-nos em condies de concluir mais uma vez que, ao iniciarem a explorao atlntica, os navegadores portugueses de Quatrocentos tinham ao seu dispor roteiros e um pequeno conjunto de regras nuticas, criados ao longo dos anos a partir de uma experincia directamente vivida; esses dados respondiam, no seu conjunto e de maneira bastante satisfatria, s necessidades sentidas pelos marinheiros. No ser demasiado chamar de novo a ateno para a circunstncia de tal experincia traduzir somente a observao do que se passava no mar ou se vivia a bordo; como no ser suprfluo sublinhar mais uma vez que tal nutica no pode ser classificada de astronmica. S as navegaes atlnticas, dominadas por outros condicionalismos, viriam a alterar essa rotina herdada do Mediterrneo.

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II / O SURTO DA CINCIA NUTICA

1. A navegao portuguesa no Atlntico J ficou dito que dispomos de provas indubitveis de terem os marinheiros peninsulares visitado as Canrias e, pelo menos, avistado o grupo de ilhas da Madeira durante o sculo XIV. Sobre as Canrias, alm da comprovao cartogrfica, existem diferentes documentos que referem visitas sucessivas desde 1341 at final do sculo, tendo na primeira delas, que por vezes atribuda iniciativa do nosso rei D. Afonso IV, participado muito provavelmente portugueses; quanto s outras, foram de iniciativa catal ou maiorquina (Francese Desvalers, 1342; Domingo Gual, do mesmo ano; Arnu Roger, dez anos mais tarde; etc.) ou castelhanas (em 1393). Mas de suspeitar que outras se tenham realizado, no devidamente documentadas, e de que hoje apenas h suspeitas 14. No interessa que me detenha sobre os objectivos finais destes exploradores e aventureiros; mas j importa sublinhar que eles saam do trilho da navegao corrente dos mercadores italianos, que j praticavam ento a via martima, contornando a Pennsula com as suas22

mercadorias destinadas ao norte da Europa, em lugar de as desembarcarem no Sul de Frana, donde eram encaminhadas por terra aos seus destinos, como se praticara at uns trs ou quatro sculos antes. Os povos peninsulares, embora timidamente, iniciavam o desbravamento do Atlntico. Essa actividade a navegao at ao arquiplago das Canrias tem um muito maior significado do que o da descida at ao Estreito de Gibraltar das gals que, j sem dvida durante aquele mesmo sculo, ali exerciam um corso contra mouros, pelo menos to desenfreado quanto aquele a que os magrebinos submetiam, nas mesmas paragens, e ao longo de toda a costa portuguesa, a navegao crist. De facto, no retorno das viagens s ilhas Canrias, a despeito de tal regresso no oferecer ainda grandes dificuldades, os pilotos e homens de mar devem ter defrontado por vezes condicionalismos diferentes dos habituais circunstncia que se lhes tornaria muito mais evidente, claro est, quando embarcados em navios de remo e velas, e pretendiam usar o pano nas singraduras. Todavia, a relativamente curta distncia a que as Canrias se encontram, no deve ter tornado crtica tal dificuldade; alis, parece de aceitar que por esse tempo as embarcaes a que os navegadores recorriam fossem predominantemente gals, portanto accionadas sobretudo pela fora de remadores, se bem que pudessem eventualmente montar uma vela. Pouco depois de 1430 iniciar-se-ia, porm, a grande aventura da explorao da costa africana para Sul do Cabo Bojador, que j aparece apontado com este nome na cartografia mediterrnica do sculo XIV; e o muito parco nmero de topnimos, ou a sua completa ausncia para alm desse limite, d claramente a entender que as

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navegaes ento iniciadas eram pioneiras, ou que no havia informaes das empreendidas antes daquele ano. A cronologia das viagens iniciadas posteriormente a essa data ainda hoje motivo de dvidas que podem gerar acaloradas polmicas. No vou preocupar-me com esse aspecto do problema, que pouco interessa ao meu propsito, e aceitarei a cronologia tradicional, fixada por Damio Peres 15; se nela porventura existem erros, eles no excedero nunca um ou dois pares de anos, o que no tem qualquer relevncia na pouco precisa cronologia das concluses que delas se podem inferir a respeito da evoluo da nutica. No ano de 1434, segundo Azurara, Gil Eanes teria conseguido, depois de vrias tentativas infrutferas, ultrapassar o Cabo Bojador. Pensa-se hoje que o cronista exagerou as dificuldades, porque a dobragem do famoso Cabo no oferece entraves nuticos de monta. Em todo o caso, foi um passo decisivo, pois o feito marca o incio imparvel de uma arrancada para Sul. Com efeito, ainda nesse mesmo ano, ou no imediato, o mesmo navegador, acompanhado de Afonso Gonalves Baldaia, atingiu, em nova viagem, 50 lguas para alm daquele Cabo, interrompendo a explorao na chamada ento Angra dos Ruivos (hoje Garnet Bay), no paralelo 24 41 Norte. Em 1436 Baldaia empreendeu sozinho nova expedio tendo chegado ao Rio do Ouro (topnimo retomado do sculo XIV) e Angra dos Cavalos, quedando-se na Pedra da Gal, a 22 3 de latitude Norte. A morte do rei D. Duarte e as perturbaes polticas que se lhe seguiram travaram durante cinco anos este empreendimento. De facto, o cronista s reporta ao ano de 1441 a viagem em que Anto Gonalves chegou at

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um lugar que ficou conhecido por Porto Cavaleiro (parece que pelo facto de Nuno Tristo ter a recebido as honras de cavalaria); o topnimo foi mais tarde substitudo pela designao de Angra de Gonalo de Sintra, ignorando-se a razo da mudana. Nesta viagem de 1441 foi o navio de Nuno Tristo que desceu mais a Sul, chegando at o Cabo Branco. Dois anos mais tarde o mesmo navegador descobriria as ilhas de Arguim e das Garas, e em 1444 seria Lanarote a atingir a ilha de Naar (segundo Duarte Leite), sendo este o primeiro cometimento realizado depois de ter sido passada a carta rgia que mandava entregar ao Infante D. Henrique a orientao e o monoplio de todas as viagens africanas. Em 1446 Nuno Tristo atingiu um rio onde foi atacado pelos povos locais com flechas envenenadas, tendo perdido a vida com quase todos os companheiros (apenas sete se salvaram); este rio veio depois a chamar-se dos Barbarins (actual Salum) como nos mostrou o almirante Teixeira da Mota no seu magistral trabalho sobre o descobrimento da Guin 16. Neste lapso de uma dzia de anos, os navegadores no se limitaram a anotar os acidentes costeiros, a procurar contactos com as populaes ribeirinhas, a aprisionar ou a comprar escravos, e tambm a sonhar com riquezas (e o ouro uma ideia neles dominante), que se lhes mostravam apenas como fugidias promessas. No podiam deixar de se interessar pelas caractersticas dos mares que sulcavam, pois a sua sobrevivncia podia depender do bom ou mau conhecimento que deles tivessem. E, usando navios de velas, tinham igualmente de prestar grande ateno s

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correntes e ao regime dos ventos, pois desse conhecimento dependia o xito da viagem. Estes dois ltimos factores apontados viriam a ser, afinal, os determinantes das grandes alteraes de que veio a beneficiar a nutica. Com efeito, cedo os pilotos e marinheiros se deram conta de que, se as viagens para Sul eram facilitadas por correntes e ventos de feio, para o retorno costeiro tanto uns como outros dificultavam muito a navegao. O estudo do regime de ventos e correntes numa larga faixa Atlntica que vai desde o paralelo de Lisboa at ao da Guin, mostra-nos que os ventos sopram dominantemente, e durante todo o ano, de quadrante entre o norte e o nordeste, tendo as correntes a mesma orientao. Deste modo, o regresso da costa africana tornava-se demorado e penoso, mesmo quando se passou a preferir a caravela como embarcao mais adequada a um tipo de navegao feita em circunstncias pouco favorveis. 2. A navegao pelo largo Mas se ventos e correntes no permitiam ou dificilmente permitiam a navegao junto linha costeira africana no sentido de Sul para Norte, facilitavam, pelo contrrio, toda a viagem que engolfasse o navio. A tentativa a fazer seria, pois, a de procurar contornar ventos e correntes, at apanhar circunstncias favorveis para navegar at a costa portuguesa. Consequncia de uma atenta observao dos fenmenos da Geografia Fsica, e produto tambm de uma aventura arrojada, ignora-se o nome do primeiro piloto que ensaiou com bons resultados esta volta pelo26

largo. Propendo a crer que tal soluo nutica apenas deve ter sido tentada depois do descobrimento dos Aores, que a carta de Gabriel de Valseca data de 1427 e atribui a Diogo de Silves; com efeito, s com o desenvolvimento do arquiplago (excludas as ilhas de noroeste, Flores e Corvo, que s muito mais tarde foram encontradas) se poderia ter reconhecido que a ligao das ilhas com Lisboa ou Lagos se podia fazer de modo bastante fcil, navegando aproximadamente segundo um paralelo. No me restam dvidas de que a praticabilidade de tal derrota, e a viagem at aos Aores com escala na Madeira, s se tornaram solues nuticas relativamente bem conhecidas na dcada de 1430-1440; deste modo se entender que o povoamento do arquiplago aoriano apenas fosse oficialmente decidido doze anos depois do seu descobrimento, quando a Madeira estava a ser povoada, e com bons resultados, desde 1425. No possumos qualquer informao directa a tal respeito, mas no me parece muito arrojado admitir que navios por vezes visitassem os Aores vindo de rota batida da costa africana. A escala nas ilhas aorianas foi prtica usual na derrota de torna-viagem da carreira da ndia, durante os sculos XVI e XVII; teria sido iniciada ainda no sculo XV, se bem que no saibamos exactamente quando. Pode-se em todo o caso adiantar que o Mar do Sargao foi reconhecido, embora de incio de modo impreciso, talvez por volta de 1435. certo que nenhum documento dos nossos Arquivos regista o acontecimento, mas anotao a cartografia italiana, sempre to bem informada acerca das viagens portuguesas, que a ela temos de recorrer para solucionar alguns problemas da histria dos Descobrimentos do sculo XV.

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J numa sua carta desenhada em 1435 (carta importante a vrios ttulos) o cartgrafo Andrea Bianco nos indica, com uma legenda situada erradamente a norte dos Aores, que este o mar de Baga (questo xemar de Baga), quer dizer, o Mar dos Sargaos; numa outra carta do mesmo cartgrafo datada de 1448 a legenda repete-se, mas j colocada correctamente para Sul daquele arquiplago. evidente que o reconhecimento desta particularidade implica a realizao de viagens muito distantes da costa africana, sendo de supor que tambm a manobra acima designada por volta pelo largo, usada como meio mais rpido para regressar a Portugal. O cronista Azurara confirma a suposio exactamente a respeito do retorno dos sobreviventes da caravela de Nuno Tristo. Entre eles encontrava-se um nico marinheiro de profisso, mas simples grumete, e que logo declarou nada saber sobre a arte de rotear. Contudo estava a bordo, entre os sobreviventes, um jovem de nome Aires Tinoco, que j decerto observara como os pilotos procediam na torna-viagem; assim, e embora o cronista faa intervir nas suas decises a influncia divina, certo que ele soube conduzir o navio na volta pelo largo, que o trouxe de retorno ao reino ao cabo de dois meses de navegao 17. Para ser possvel chegar definio desta rota, que envolvia uma soluo nutica pela primeira vez posta em prtica na histria da navegao, os marinheiros tiveram de acumular observaes em muitas viagens, e delas tirar consequncias prticas. Num dos sentidos ento mais correntes da palavra, pode-se falar aqui de experincia; uma experincia que nada tem a ver, como evidente, com a experimentao da cincia moderna, mas sim com a recolha de dados que o acaso colocava vista de

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pilotos e marinheiros. Uma experincia ou uma vivncia que ensinava coisas, como afirmava (em sentido moral, embora), o cronista Azurara, mas que as ensinava, bom t-lo presente, a homens que sabiam aproveitar a lio. claro que o tipo de derrota assim adoptado, no podia deixar de trazer aos pilotos um srio problema. Habituados a navegar nas proximidades da costa e a referenciar com assiduidade lugares nela situados, a questo de corrigir a posio do navio, porventura erradamente fixada pelos processos nuticos em uso, era tarefa fcil; mas a situao alterava-se completamente quando passassem a seguir uma via em que singravam em mar aberto durante largas semanas, como aconteceu na navegao de Aires Tinoco, segundo relata o cronista, e no h motivo para pr em dvida a sua informao. Como resolver esta dificuldade? No fundo, ela resumia-se a encontrar um meio que permitisse a fixao na carta, com limitada possibilidade de erro, da posio ocupada pelo navio em cada dia. Estou mesmo em crer que, de incio, nem tanto se exigiria: bastava, com efeito, saber quando, navegando em rumos do quadrante de noroeste, se atingia o local em que se aconselhava a marcha no sentido leste-oeste, em direco costa portuguesa. Acredito de igual modo que, inicialmente, os pilotos se conduzissem apenas pela orientao dos ventos; subindo em latitude (que, repita-se, ainda no determinavam), comeavam a inflectir para a Pennsula logo que eles se mostrassem de feio, ou logo que a rota seguida os colocasse vista das ilhas dos Aores. Em todo o caso, a precariedade do primeiro destes dois modos de proceder, que porventura foi o mais corrente, bem clara; e a escala

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ou a passagem vista das ilhas aorianas era um recurso ainda muito aleatrio. , assim, presumvel que os navegadores, ao praticarem este tipo de navegao, cedo se tivessem comeado a preocupar com a maneira como dia a dia podiam saber aproximadamente o paralelo em que se encontravam; ou, para me explicar de maneira talvez mais prxima da realidade, eles passariam a preocupar-se em descobrir um processo que lhes permitisse saber quantas lguas teriam de navegar no sentido Sul-Norte at alcanar o paralelo de Lisboa ou de Lagos. H neste desejo, que no est claramente expresso em qualquer texto, mas que se adivinha pelos resultados, uma posio j indagadora por parte de marinheiros e pilotos; acredito que no teriam sido esses homens, de medocre cultura, a encontrar a soluo para tal dificuldade; mais culto seria talvez Martim Afonso de Sousa e no soube encontrar explicao para certos factos observados no decorrer da sua viagem ao Brasil, tendo, depois do regresso, consultado Pedro Nunes, que o satisfez em um dos tratados que em 1537 se imprimiram como anexos ao Tratado da Esfera 18. Os pilotos e marinheiros no saberiam resolver o problema; mas tambm me no parece de aceitar a romntica hiptese de Oliveira Martins, que visionou a corte do Infante D. Henrique frequentada por inmeros sbios de vrios pases, reunidos pelo prncipe para dar apoio tcnico (como hoje se diria) s navegaes. De facto, a soluo da dificuldade que os preocupava a todos est insinuada numa obra didctica de grande sucesso, o Tratatus de Spherae, de Johannes de Sacrobosco, que desde a data da sua redaco (segunda metade do sculo XIII) foi muito divulgada, e todos os

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astrlogos bem preparados sem dvida conheciam; e no se esquea que na sua corte dispunha o prncipe de pelo menos cinco fsicos (logo, tambm astrlogos), como apurou Sousa Viterbo, sendo de crer que a obra daquele cosmgrafo ingls no fosse estranha a alguns deles, se acaso no era mesmo do conhecimento de todos, como penso ser mais provvel. certo que Sacrobosco no resolve o problema que preocupava os navegadores de 1435-1445, mas h no seu livro um passo que lhe sugere a soluo. Trata-se do trecho em que o Autor ensina, de um ponto de vista meramente terico, a maneira tcnica de medir a extenso do ano de 1 meridiano terrestre. Diz Sacrobosco que, para atingir tal objectivo, o observador teria de esperar por uma noite clara e estrelada, e tomar ento a altura da Estrela Polar com um astrolbio; devia em seguida caminhar em direco ao Norte at que viesse a observar a estrela com a altura anterior acrescida de 1, a distncia entre os dois pontos de observao seria a extenso de um grau de meridiano. Trata-se, evidentemente, de uma prtica pensada, embora em princpio correcta. Digo que s em princpio porque Sacrobosco no tem o cuidado de prevenir o leitor de que as observaes deviam ser feitas com a estrela no mesmo lugar do seu crculo diurno aparente, e de preferncia em uma das passagens meridianas (ou nas posies que depois vieram a ser tomadas como tal); por outro lado, parece no haver dvida de que o astrolbio era instrumento menos indicado neste caso do que o quadrante (depois preferido pelos navegadores, neste tipo de observaes); mas, quanto a este aspecto, Sacrobosco pode ser facilmente justificado, pois no seu tempo o quadrante no passava ainda de um instrumento pouco

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conhecido, enquanto o prestgio do astrolbio era incontestvel. Alm disso, falei em prtica pensada porque seria certamente impossvel, como ainda hoje , percorrer mais de uma centena de quilmetros sem abandonar a linha de um meridiano; a Geodesia, a partir do sculo XVII, havia de contornar esta dificuldade. Como quer que seja, a partir do seu processo (mas, insisto: inaceitvel que o tivesse praticado) Sacrobosco acabou por fixar o valor de 1 do meridiano terrestre em 700 estdios o que tem pouco significado, dado que h vrias medidas com o nome de estdio, e no se sabe a qual delas o cosmgrafo queria referir-se. Contudo, e isso que mais interessa ao problema nutico de que me ocupo, o procedimento apontado oferecia de imediato uma indicao preciosa: de facto, entre dois lugares em que a Polar fosse observada com n graus de diferena de alturas, a distncia entre os respectivos paralelos, contada sobre um meridiano, teria de ser n 700 estdios, ou preferentemente, n 16,6 lguas, j que foi o mdulo de 16 2/3 lguas por grau que, desde o incio, parece ter sido adoptado na marinha portuguesa; Teixeira da Mota pde mostrar que esse valor j corria, pelo menos, desde os primeiros tempos da actuao de Bartolomeu Dias 19. 3. A soluo da comparao de alturas Devemos aqui atender, em primeiro lugar, ao facto de tal procedimento, que at agora apenas foi apresentado como hiptese que potencialmente podia ser usada para resolver uma dificuldade nutica embaraante, provir de um texto de carcter cientfico, embora de caractersticas rudimentares. J ficou dito que o tratado cosmogrfico de32

Sacrobosco teve enorme difuso; livro didctico, que o era acima de tudo, foi das obras mais duradouras desse gnero; desdobrou-se em milhares de cpias e comentrios (ainda hoje sobrevivem largas dezenas de uns e outros) e foi publicado em grande nmero de edies logo depois de inventada a imprensa, tanto em latim como em lnguas vulgares. A sua influncia persistiria at ao sculo XVIII. E Portugal no ficou indiferente a este interesse. Vertido em portugus por tradutor desconhecido, o texto (com algumas pequenas lacunas) aparece integrado nos guias nuticos do incio do sculo (editados, segundo se pensa, em 1509 e 1516), com uma possvel edio princeps ainda do sculo XV (ltima dcada) em que muitos especialistas tm insistido, mas que tenho por muito duvidosa. Como quer que seja, a traduo do texto para a nossa lngua, editada em 1509 (?), mostra o apreo em que o livrinho era tido entre ns; e que esse apreo remontaria ao sculo de Quatrocentos, facto para mim muito provvel, em virtude da cpia latina dele existente em um dos cdices alcobacences 20. Alis, no sculo XVI a obra continuou a despertar o maior interesse no nosso pas, como o comprovam a nova traduo redigida por Pedro Nunes, o breve eptome latino que este cosmgrafo fez editar do texto, o comentrio de Andr de Avelar e vrios outros comentrios que ainda se mantm inditos e so de menor interesse, como o de Andr de Melo existente num manuscrito da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra 21. Mas testemunho porventura ainda mais vivo da importncia do cosmgrafo ingls em Portugal ser o nome de Aula de Esfera que se dava correntemente a uma classe de Cosmografia sustentada pela Companhia

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de Jesus durante mais de um sculo no seu Colgio de Santo Anto, de Lisboa; e interessante notar que, apesar do ttulo da cadeira, nela se abordavam temas variados, desde a Astrologia Arte de Navegar, como nos sumrios por mim publicados h anos 22 se pode facilmente verificar. Outra prova da penetrao do Tratado de Sacrobosco em Portugal encontra-se nos questionrios, acompanhados das respectivas respostas, que sobre matrias cosmogrficas elementares se encontram em guias nuticos e livros de marinharia portugueses. Presumo que tais questionrios espelham de modo velado os exames de madureza que, a partir pelo menos de meados do sculo XVI, os candidatos a pilotos eram submetidos para serem admitidos na profisso. Mesmo o mais completo destes questionrios que, do meu conhecimento, indiscutivelmente o integrado num guia nutico manuscrito e indito existente no Observatrio Astronmico da Universidade de Coimbra mostra o carcter recitativo das respostas que os candidatos deviam dar para satisfazer o cosmgrafo-mor e os seus assessores, no sendo por isso de surpreender que tantas queixas se ouvissem quanto sua preparao terica dos pilotos. Mas tambm certo que, se eles respondiam automaticamente por palavras, que talvez mal entendessem, a perguntas tais como: O que horizonte?; O que se entende por equinocial?, etc, tambm exacto que tinham o sentido do mar, e que do sculo XVII h exemplo de um piloto ter sido suspenso da sua profisso por no saber ler, depois de ter conduzido vrias naus ndia e no retorno! Parece-me, pois, suficientemente justificada a afirmao de que o livrinho de Sacrobosco foi bem

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conhecido no nosso pas durante os sculos XVI e XVII; e conjecturo que tambm no sculo XV, apesar de s encontrar um autor desse sculo que o cita, e uma nica cpia latina da exposio que nessa poca dever ter sido feita em Alcobaa. Todavia, mesmo que o cosmgrafo ingls no tivesse chegado ento ao conhecimento dos portugueses, a ideia que no seu texto fundamental nos transmite, e poderia ter sugerido a resoluo do problema nutico apontado, devia ter-se tornado trivial, e podia ser apanhada no cabedal de cultura, necessariamente diversificado, de qualquer astrlogo; e os astrlogos do reino contavam-se ento certamente por largas centenas. Eis aqui um primeiro exemplo, mas significativo, de como a cincia, embora no seu estdio mais elementar, pde inferir na arte nutica. Com efeito, no h dvida que o mtodo de comparao de alturas foi praticado, pois temos disso testemunhos seguros, apesar de se encontrar apenas transcrito em texto j demasiado tardio. Terei de falar dele, mas parece-me que devo previamente referir-me evoluo a que o processo foi sujeito, medida que ia sendo posto em prtica. No deverei afastar-me muito da realidade se admitir que passou por quatro fases: a) De incio, os navegadores mediriam, em cada noite em que tal fosse possvel, a altura da Estrela Polar; penso que com o tempo devem ter aprendido a tom-la sempre na mesma posio do seu crculo diurno aparente que possivelmente seria o suposto trnsito meridiano 23. Comparavam depois a altura obtida com a correspondente altura em Lisboa, ficando, como j se disse, a saber quantas lguas deviam navegar no sentido

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Sul-Norte para atingir aproximadamente o paralelo da capital do reino. b) Numa segunda fase, verificaram certamente que no era apenas a distncia do paralelo de Lisboa que lhes podia interessar. De facto, vindos da Costa da Guin, eles podiam querer dirigir-se antes Madeira ou a qualquer porto ou lugar da costa africana. Passaram ento a escrever na prpria tbua do quadrante, a fim de no se esquecerem das respectivas alturas, os nomes dos lugares mais frequentados, em face da graduao do quadrante a que, nesses lugares, correspondia a altura da estrela. Este procedimento atestado pelo relato feito a Martinho da Bomia pelo velho navegador Diogo Gomes, quando afirma ter escrito na tbua do quadrante a altura do plo rtico quando visitou a Guin 24. c) Um outro aperfeioamento deste modo de proceder resultou de se verificar que a comparao de alturas podia ser feita com outra estrela que no fosse a Estrela Polar. Era indispensvel, no entanto, saber definir com preciso a sua maior altura (ou seja, a respectiva passagem meridiana), o que, tal como no caso da Polar, se inferia de posies perfeitamente definidas por outras estrelas que os pilotos conheciam bem. d) Bem cedo os pilotos se dariam conta de que uma nica posio da estrela no crculo aparentemente por ela descrito em um dia era insuficiente para o fim desejado; de facto, e essa circunstncia verificar-se-ia algumas vezes com frequncia, e at em vrios dias sucessivos, o cu podia encontrar-se obscurecido hora da observao, o que colocava os navegadores na incerteza a respeito das suas posies aproximadas durante dilatado tempo. A soluo para esta dificuldade veio ainda, certamente, dos astrlogos. Eles observaram em Lisboa (e fizeram com

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certeza observar em outros postos tomados habitualmente como referncia estando neste caso a Ilha da Madeira) as alturas da Polar em oito lugares do seu crculo diurno aparente; esses lugares correspondiam aproximadamente aos rumos principais e intermedirios da rosa-dos-ventos, e os oito valores das alturas passaram a ser apresentados graficamente, j que se tornava ento impossvel escrev-los todos na tbua do quadrante. Esclareo agora que, quanto primeira fase, ela est expressa num passo da edio de 1563 do Reportrio dos Tempos traduzido e publicado por Valentim Fernandes (edio princeps: 1518), e sem margem para dvidas. O trecho deve ser muito anterior data da edio, a avaliar pela nutica bem mais evoluda que se praticava desde o princpio do sculo, ignorando-se porque motivo o editor o incluiu no final de um livro que, em princpio, nada tinha a ver directamente com a navegao 25; como quer que seja, ele bem claramente conclusivo a respeito da prtica da primeira fase referida, pois informa que, partindo algum de Lisboa, devia notar o lugar da graduao do quadrante por onde passava o fio de prumo ao apontar Polar, e assinalar esse ponto; explica que a observao devia ser feita quando as Guardas da Ursa Menor se encontrassem leste-oeste com a Estrela Polar, posio que devia ser respeitada em observaes subsequentes; depois do piloto ter navegado um, dois ou mais dias, se quisesse saber quanto estava afastado (o texto diz diferenciado) de Lisboa, bastava-lhe ver, com nova pontaria estrela, feita nas mesmas condies a respeito das Guardas, onde lhe passava o prumo do instrumento; a diferena de graus, demarcada por este ponto e pelo ponto assinalado em Lisboa, dava a distncia pedida, depois de multiplicada pelas 16 2/3

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lguas em que, como j disse, estava calculado o valor de 1 do meridiano da Terra 26. Quanto fase assinalada em b) no disponho de qualquer testemunho directo de que tivesse sido usada; mas infiro-a como extremamente provvel por, no mesmo trecho publicado por Valentim Fernandes, se falar do aproveitamento do Sol para o mesmo fim e se referir expressamente a Ilha da Madeira, como adiante direi. ainda o mesmo trecho do Reportrio dos Tempos que mostra terem os pilotos recorrido a outras estrelas com o mesmo objectivo, como ficou dito em c). O passo alucidativo aconselha o piloto a usar qualquer estrela que conhecesse no cu, mas do contexto verifica-se que havia uma restrio; o astro devia culminar a Sul do lugar de observao, j que o annimo autor determina que a observao fosse feita s quando a estrela se encontrasse exactamente no rumo do meio-dia, marcado pela bssola. Claro que esta restrio era desnecessria; alm disso a regra, no atendendo possvel declinao magntica (pois manda fixar o rumo Sul pela agulha de marear sem qualquer possvel correco), foi redigida decerto ainda no sculo XV, e antes de ser conhecido esse fenmeno do magnetismo terrestre, ou, pelo menos, antes de se saber calcular essa inflexo da agulha para leste ou para oeste 27. Tambm no h qualquer dvida quanto ao recurso a uma de oito alturas da Polar para o mesmo fim. As regras vm expostas por extenso, embora com vrias gralhas, nas pginas finais do Reportrio dos Tempos de que nos temos servido; mas tambm foram graficamente transcritas em forma de rodas, que se encontram impressas, por exemplo, na 1. edio da j vrias vezes referida obra editada por Valentim Fernandes ou no Guia Nutico de Munique, que provavelmente saiu dos prelos em

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1509 28; estas rodas apresentam oito raios correspondentes aos rumos principais e intermdios, estando escrita na extremidade de cada um deles a altura da Estrela Polar quando as Guardas da constelao atingissem o respectivo rumo. Advirta-se, ainda, que os rumos no eram em geral indicados pelas designaes actuais; considerava-se um homem representado no cu, com o centro do tronco no plo norte da esfera celeste, deduzindo-se os nomes dos rumos das partes do corpo humano assim desenhado: Cabea para o Norte; ombro esquerdo para Nordeste; brao esquerdo para o Leste; etc. Estamos a relacionar os nomes com o Reportrio dos Tempos, em que a figura humana da roda est representada de frente; mas h casos em que ela se apresenta de dorso, e isso d lugar por vezes a dificuldades de interpretao em textos desacompanhados de representao grfica; como evidente, neste ltimo caso designao de ombro esquerdo corresponderia o Noroeste, de brao esquerdo o Oeste, e assim por diante. Como o depoimento de Diogo Gomes, acima referido, se reporta a um ano pouco posterior a 1460, pode-se aceitar que a navegao praticada pelos pilotos portugueses comeou a depender da Astronomia a partir dos primeiros anos da segunda metade do sculo XV; esta data compagina-se perfeitamente com a poca em que deve ter ficado definitivamente proposta a manobra da volta pelo largo, que suponho poder situar um pouco antes de 1450; os cerca de dez anos decorridos entre este facto e a prtica de Diogo Gomes no so demais para se dar conta de existncia de um problema de fundo a resolver e de se lhe procurar e encontrar a respectiva soluo.

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Em todo o caso, interessante notar que j nesta fase dos primeiros passos da navegao astronmica os astrlogos que foram chamados para estudar o problema, teriam, segundo penso, desejado substituir a observao de estrelas por observaes solares, que eram bem mais fceis. Afirmo-o baseado ainda no precioso captulo que foi acrescentado edio de 1563 do Reportrio dos Tempos, captulo que incontestavelmente nos transmite os mais antigos procedimentos da astronomia nutica que at ns chegaram. Na verdade, o texto tambm se refere s chamadas pautas do Sol e ensina como se podia calcular a singradura percorrida pelo navio a partir de observaes do astro. Naturalmente que esta ltima prtica se baseava, como para qualquer outra estrela, numa comparao de alturas, mas em circunstncias diferentes, pois, como sabido, o sol uma estrela que percorre aparentemente a eclptica no perodo aproximado de um ano. O que significa que, em dado lugar, a altura meridiana do Sol, medida em determinado dia, no coincide com a altura, tambm tomada ao meio-dia, logo no dia imediato; tal caso no se verificava com a Estrela Polar, ou com qualquer outra estrela, pois as alturas correspondentes s suas culminaes superiores mantinham-se praticamente invariveis por muito tempo. Qual seria ento o modo de recorrer ao Sol? Como j disse, o texto fala em pautas desse astro, sem explicar o que fossem. Todavia, recorrendo aos Almanaques Portugueses de Madrid, Antnio Barbosa logrou dar uma explicao cabal para esse passo que parecia um tanto misterioso 29. Com efeito, era possvel calcular para Lisboa, e de antemo, as alturas meridianas do Sol para todos os dias de um ano; escritas tais alturas em tbuas,

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estas constituiriam aquilo a que no texto de 1563 se chama pautas (alis acrescentando que existiam umas preparadas para Lisboa e outras para a Madeira); a comparao da altura meridiana do Sol tomada no mar em determinado dia, com a altura marcada na pauta de Lisboa para a mesma data, permitia, tal como no caso das estrelas, calcular a distncia meridiana entre os paralelos dos dois lugares. A explicao proposta por Antnio Barbosa perfeitamente aceitvel, e ainda mais o por ter o suporte de aparecerem duas pautas do mesmo tipo nos referidos Almanaques Portugueses de Madrid; s com uma diferena: as alturas meridianas do Sol, tambm calculadas para Lisboa, no so dadas para todos os dias de um ano, mas de trs em trs dias numa delas e de cinco em cinco na outra. Por curiosidade acrescente-se que no captulo do Reportrio dos Tempos tambm se considera legtimo comparar alturas do Sol, sem atender ao seu movimento na eclptica, at ao mximo de uma diferena de dois dias. Devo de novo dizer, para encerrar estas consideraes, que continuo a no atribuir aos Almanaques Portugueses de Madrid qualquer relao directa com a nutica astronmica. Como escrevi noutra oportunidade, o facto de existirem em meados do sculo XIV em Portugal homens capazes de resolver os elementares problemas astronmicos que se puseram um sculo mais tarde nutica (e os Almanaques deixam-nos a convico de que existiram) no significa que o tivessem feito, porque a navegao, tal como era praticada nesse tempo, o no exigia. De facto, no compartilho da opinio de alguns Autores que fazem remontar ao sculo XIV a navegao por latitudes; em meu entender e pelos testemunhos

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que venho de expor at mesmo a navegao por altura s se teria iniciado, segundo os testemunhos invocados, por volta de 1460. 4. A determinao de latitudes A Astronomia, como acaba de ser visto, passava a ter um papel dominante na nutica praticada no incio da segunda metade de Quatrocentos. certo que deixava ainda imprecisa a posio do navio, pois apenas o situava em determinado paralelo; a marcao rigorosa do ponto (como foi designada a anotao da posio do navio na carta) s poderia ficar completamente resolvida quando se tornasse possvel determinar longitudes no mar de maneira prtica e no susceptvel de erros muito fortes, o que s foi conseguido no sculo XVIII, atravs da inveno do cronmetro por John Harrison, que dedicou toda a sua longa vida a esse problema apaixonante. No quer isto dizer, no entanto, que no fossem conhecidos processos teoricamente correctos para determinar a diferena de longitudes geogrficas de dois lugares, mas que na prtica eram inexequveis por no se saber conservar o tempo de um lugar (isto : manter com exactido, como o cronmetro veio a fazer, a hora desse lugar) e por outras razes. Por exemplo: no caso, bastante vulgar, em que pretendia recorrer a certas observaes lunares, o processo proposto era teoricamente correcto mas esbarrava tambm com o deficiente conhecimento do movimento da Lua, que s depois de Newton se pde estabelecer de modo satisfatoriamente aperfeioado. Voltarei ao assunto mais frente.

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A marcao do ponto exigia, pois, que fossem conhecidas as duas coordenadas geogrficas. Para a longitude, alm dos mtodos astronmicos que j disse serem inaplicveis, acreditou-se que havia outro meio de a obter o que constituiu, sem dvida, a maior iluso da histria da nutica do sculo XVI; dele me ocuparei tambm mais adiante. De qualquer modo, deve-se perguntar como foi introduzida a latitude, pois que at aqui apenas temos falado de comparao de alturas. No tenho dvida de que foi exactamente este processo de comparao de alturas que conduziu naturalmente os astrlogos convico de que as estrelas tambm podiam fornecer a latitude. E considero que foram as rodas com as oito alturas da Estrela Polar para Lisboa que levaram os tcnicos resoluo do problema. Efectivamente, quando essas alturas so comparadas com a latitude de Lisboa (calculada ento, por nmeros redondos, em 39 N.), verifica-se que delas se pode obter este nmero mediante a adio ou a subtraco de certas constantes. Por exemplo: para a roda representada no Reportrio dos Tempos, quando as Guardas estivessem na cabea, a altura da Polar em Lisboa seria de 36, havendo que acrescentar 3 a este nmero para se obter a latitude daquela cidade; e de maneira semelhante para os outros sete rumos. Esta observao trivial deu lugar a uma volta nos regimentos nuticos. Admitindo-se que as constantes assim obtidas eram as mesmas para todos os lugares em que a Estrela Polar fosse visvel 30, passou-se a exigir dos pilotos que calculassem latitudes, observando a altura da Polar uma das posies tradicionais, e corrigindo-a do valor atractivo ou subtractivo que, para a mesma posio da estrela, resultava da comparao da sua altura em

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Lisboa com a latitude da cidade. Para assim procederem, os pilotos dispunham de rodas com as correces escritas na extremidade de oito raios, em conformidade com as rodas das alturas anteriormente usadas; ou, em alternativa que com o tempo se foi impondo, eram-lhes ensinadas oito regras que traduziam por palavras o que estava representado naqueles grficos. Esse conjunto de enunciados ficou conhecido na histria da nutica por regimento da Estrada do Norte; tipo, por via de regra, como o primeiro passo da navegao astronmica, mas sem justificao, visto que teve antecedentes, como suponho ter ficado bem claro nas pginas anteriores. Em todo o caso, na primeira dcada do sculo XVI j o processo de comparao de alturas devia ser considerado como velharia, pois s assim se pode explicar que o Guia Nutico de Munique se dispensasse de o referir, dando, pelo contrrio, grande nfase ao regimento. Esta conquista no campo da tcnica de navegao, devia imediatamente pr o problema da utilizao de outras estrelas e do Sol para o mesmo fim. Suponho que tais ideias tivessem aflorado mesmo antes do aproveitamento da Estrela Polar, em virtude das viagens prosseguirem cada vez mais para Sul, e aquela estrela deixar de ser visvel; e esta falta de visibilidade da estrela colocava de modo urgente a questo de solucionar a determinao de latitudes por outros meios. de admitir que, ao transporem o Equador, depois de terem deixado de avistar a Polar, a primeira ideia dos pilotos tivesse sido a de encontrar no hemisfrio Sul uma estrela que, tal como aquela estava prxima do plo rctico, descrevesse o seu movimento diurno aparente no muito longe do plo antrctico. possvel que essa preocupao se verificasse antes de 1480, mas s dela

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temos conhecimento atravs da carta que o fsico (mdico) mestre Joo, castelhano, escreveu do Brasil a D. Manuel em 1500. Ele anexa carta um esboo com a posio relativa de algumas estrelas mais em evidncia no cu austral, mas no representa as trs da constelao Octante, que haviam de servir para a elaborao, a respeito do hemisfrio Sul, de um regimento anlogo ao da Estrela do Norte; o astrlogo, segundo penso, anota uma estrela dessa constelao sem interesse para o fim em vista, mas isso no inslito, porque as trs estrelas em condies de aproveitamento para regras anlogas s do Norte (embora com erros mais fortes) so dificilmente visveis, pelo seu escasso brilho. O regimento viria a aparecer nas compilaes de Joo de Lisboa, de Bernardo Fernandes e de Andr Pires, referente 2 Octantis, que uma estrela da 5. grandeza, definindo com duas outras, da mesma constelao e de igual grandeza, um pequeno tringulo. Acontece que as regras enunciadas para a 2 decalcadas sobre as da Estrela Polar por simples semelhana, e sem a base emprica que estava subjacente a estas, s so correctas para as posies correspondentes s passagens meridianas da estrela, a que os trs textos atribuem 5 de distncia polar, valor aproximadamente certo; para as outras posies, os ndices de correco s alturas medidas esto francamente errados; por isso de admitir que o incorrecto regimento tivesse sido estabelecido por pilotos ou homens menos conhecedores de Astronomia, que agiram por decalque sobre o regimento da Polar, sem ter em ateno as circunstncias diferentes em que a Estrela se encontrava. Tratei desta questo com mincia h anos 31, pelo que me abstenho de entrar aqui em mais pormenores; apenas ajuntarei que o

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facto do astro ser dificilmente identificvel deve ver ditado a condeno do respectivo regimento. Outras vias, porm, estavam abertas determinao de latitudes nos textos tradicionais de Astronomia. Elas fundamentavam-se em observaes meridianas do Sol ou de Estrelas facilmente reconhecveis; a altura do astro no trnsito meridiano e conhecimento da sua declinao permitiam obter aquela coordenada geogrfica por simples adies ou subtraces. Todavia, a maneira de proceder com o Sol e com as estrelas era um pouco diferente, porque a declinao destas se mantinha praticamente constante ao longo de muito anos, e a do Sol varia de dia para dia no decorrer do ano. So vrias as estrelas que encontramos citadas em textos do sculo XVI atribuveis a homens do mar, com o objectivo de se inferir da sua altura meridiana a latitude do observador; em todos os casos que conheo, a passagem pelo meridiano do lugar podia ser facilmente inferida das posies que uma ou vrias estrelas bem visveis tomavam no mesmo instante. Assim, para dar o exemplo mais comum, direi que a respeito do Cruzeiro do Sul, de que se observou ento com muita frequncia a estrela mais prxima do plo, ou seja, a Crucis, a altura devia ser tomada quando essa estrela e a oposta, ou Crucis, definissem uma linha perpendicular ao horizonte. Essa posio das duas estrelas correspondia, muito aproximadamente, passagem da Crucis pelo meridiano; alis os textos atribuem estrela uma distncia polar de 30, que tambm est dentro dos limites aceitveis, pois o seu verdadeiro valor era de 29 42.

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A regra que vem de ser escrita deve ter sido obra de astrlogo. Mas a verdade que alguns textos apresentavam para a Crucis um regimento paralelo ao da Polar, considerando oito posies daquela estrela no seu crculo diurno, o que est fortemente errado em todos os enunciados que conheo da primeira metade do sculo XVI. Em 1568 j Bartolomeu Velho alterava os ndices correctivos correspondentes aos rumos dos ombros e dos rumos opostos 32, nmeros alis revistos mais tarde pelo cosmgrafo castelhano Andr Garcia de Cespedes, de maneira completamente satisfatria. minha opinio, contudo, que do regimento do Cruzeiro do Sul s se aproveitavam, em geral, as regras respeitantes aos trnsitos meridianos da estrela. Infiro-a da circunstncia de existirem vrias regras semelhantes para outras estrelas em que a preocupao atender a esse trnsito (e declinao da estrela, claro est), que fica sempre definido, como j acima escrevi, da posio tomada no mesmo instante por estrelas bem conhecidas. J no Livro de Marinharia de Joo de Lisboa aparece uma lista de seis estrelas que podiam ser utilizadas com esse fim. Um guia nutico de Manuel Lindo, que Lus de Matos publicou h anos 33, e que provavelmente mais tardio do que a parte da compilao de Lisboa onde aquela lista se pode ler, aponta j mais de meia centena de estrelas de primeira e segunda grandeza que podiam ser utilizadas. Todavia, h diferena fundamental entre os ensinamentos de Manuel Lindo e as regras que encontramos nos livros compilados por pilotos e marinheiros; as daquele so, com efeito, determinadamente de carcter terico, nunca indicando como definir a passagem meridiana de modo prtico, mas criticando Johannes de Montergio e outros autores a

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respeito dos erros assinalveis nos valores que eles tinham atribudo s coordenadas equatoriais das estrelas consideradas. Alm disso, Manuel Lindo defende a observao das alturas de duas estrelas, e aconselha, a partir da, a soluo grfica do problema da latitude sobre uma poma e com o recurso a um compasso de pontas curvas, tal como Pedro Nunes aconselhara dois anos antes que se fizesse com o Sol. Claro que este modo de proceder era pouco prtico, e logo se suspeita que apenas podia ser aconselhado por um homem com conhecimentos de Astronomia mas certamente sem prtica de navegao. Com efeito, chegaram nossa notcia regimentos de algumas estrelas em que se precisa sempre o instante em que elas deviam ser observadas. Darei como exemplo: a Alfaca da constelao Coroa Boreal, a respeito da qual se diz que se lhe dever tomar a altura quando as duas mais luzentes do conjunto se dispusessem na direco Norte-Sul 34; a Estrela Canopo, cuja posio meridiana deduzida da orientao lesteoeste das estrelas e do Cruzeiro do Sul, facto alis observado pelo piloto Loureno Marques, segundo se diz no texto (e esta particularidade vem em apoio da ideia, j expressa, de que tais regras expeditas seriam devidas a homens prticos no mar e no a astrnomos de gabinetes e de observatrios); a estrela da Barca, ou da Ursa Maior, que passaria pelo meridiano local quando as estrelas do leme da mesma constelao (ou seja, as estrelas e da Ursa Maior) se dispuzessem na direco leste-oeste 35; etc. Convm insistir um pouco na distino que fazemos entre regras preparadas para uso de pilotos e marinheiros e as regras provenientes de astrlogos e astrnomos. Listas de estrelas como as de Manuel Lindo apareciam,

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frequentemente, e quase sempre com a indicao das respectivas coordenadas, em muitos textos medievais. Citarei dois: os j referidos Almanaques Portugueses de Madrid e os Libros del Saber de Astronomia; Manuel Lindo retomou essa tradio, dando, alm de uma lista satisfatria em nmero, a regra para se obter a latitude a partir da altura mxima da estrela; esta prtica foi depois repetida por muitos autores que escreveram sobre nutica, no s em Portugal como em Espanha e em Inglaterra, por exemplo. No nosso pas citarei os casos de Joo Baptista Lavanha (1595), texto em que as regras diferem das de Manuel Lindo 36, de Valentim de S (1624) e de Manuel de Figueiredo (1625). Teria este procedimento aconselhado pelos cosmgrafos sido aceite e praticado pelos pilotos? Tendo em vista o contexto de um folheto publicado por Adriaen Veen no final do sculo XVI 37, e traduzido em portugus poucos anos volvidos, a resposta pergunta teria de ser positiva; de facto, esse texto holands d instruo de carcter prtico quanto maneira como os pilotos deviam registar as suas observaes nos dirios de bordo; Veen faz nele referncia a 14 observaes de latitudes, das quais seis so obtidas a partir da medida de alturas de estrelas: duas pela Estrela Polar, uma pela estrela Cauda Leonis, outra pela Cor Scorpionis e ainda duas mais pela estrela denominada Spica da constelao Virgem. de notar, contudo, que Adriaen Veen no era um marinheiro, e que o seu folheto pretendia apenas introduzir na arte de navegar a chamada carta globosa (ou seja, um semi-globo onde o ponto fosse mais facilmente marcado), em detrimento da projeco de Mercator, sugesto que ainda foi ensaiada, sem grande xito, durante alguns anos do incio do sculo XVII por

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alguns pilotos do seu pas; e o tradutor portugus do texto, que tudo leva a crer tivesse sido o Pe. Francisco da Costa, professor do Colgio de Santo Anto 38, tambm era um homem de formao terica, embora os problemas da nutica lhe merecessem curiosidade e interesse e nas duas obras j citadas se encontrem observaes pertinentes a respeito da arte de navegar. Todavia, quando percorremos os dirios de bordo portugueses do final do sculo XVI 39 e incio do sculo XVII, verifica-se que se contam por centenas as vezes em que a latitude registada no texto, mas com excepo de uma meia dzia de casos, sempre foi obtida pelo Sol. Quer isto dizer que existia um ntido confronto entre os conselhos dos tericos e a atitude dos prticos. Esse conflito j se verificava, de resto, no tempo em que Pedro Nunes exercia o cargo de cosmgrafo-mor, e em que no se coibia (e s vezes sem razo) de repreender o procedimento dos pilotos. Ele queria, por exemplo, que estes adoptassem 4 10 para a distncia polar da Estrela do Norte, quando os marinheiros preferiam 3 30, estando este valor, de facto, mais prximo do valor correcto. Nunes tambm aconselhava o recurso de cinco tbuas solares, enquanto os pilotos sempre preferiram simples tbuas de declinaes do astro, que na verdade eram mais prticas. Por outro lado, no seu Tratado em defenso da carta de marear 40, Nunes no s patenteia ter em pouca considerao as opinies dos pilotos e mareantes, como se mostra ressentido das crticas a que estes o no poupavam. Para o cosmgrafo tudo devia ser feito de acordo com a cincia, ponto de honra para ele: E sou to escrupuloso escreveu em misturar com regras vulgares desta arte, termos e pontos de cincia, de que os

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pilotos tanto se riem Em seu entender, os prticos procediam levianamente quando, por exemplo, criticavam a carta de navegar e a consideravam errada; cabia-lhe a ele, Cosmgrafo-mor, desculpar a carta dessas acusaes, filhas da ignorncia, da contumcia e de enganos; e, no entanto, ele mesmo havia de indicar noutro passo da sua obra que a carta mediterrnica estava errada por apresentar distores! Na verdade, os reparos dos homens habituados a utilizar a carta tinham fundamento, como no captulo imediato direi. Mas, se Nunes no poupava os pilotos, que se atreviam a falar do Sol, da Lua, dos seus crculos e dos seus movimentos sem um mnimo de conhecimentos, os pilotos no eram menos crticos a respeito do Cosmgrafo que todos os anos superintendia na preparao tcnica das armadas da ndia, a avaliarmos por este seu desabafo: Bem sei quo mal sofrem os pilotos que fale na India quem nunca foi nela, e pratique no mar quem nele no entrou. Era o conflito surdo entre um homem de cincia, que pretende fundamentar nela a aco prtica, e outros homens que no dia a dia eram obrigados a encontrar solues de recurso para muitas dificuldades com que deparavam, sem qualquer possibilidade de recorrer ao conselho de cientistas. evidente que estas duas posies irredutveis seriam insustentveis: sem as navegaes, realizadas numa poca em que ainda se ia avanando para o desconhecido, jamais Pedro Nunes teria tido notcia do cu do hemisfrio Sul, que num dos seus textos aponta como descoberta sensacional, muito embora nunca aluda a qualquer estrela que se encontrasse fora de sua observao (no h nas obras de Nunes nem uma palavra sobre o Cruzeiro do Sul, por exemplo). Mas sem a

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Astronomia terica herdada da Idade Mdia, tambm teria sido decerto mais difcil para os pilotos recorrerem ao Sol para as suas determinaes de latitudes, questo de que em seguida me ocuparei. 5. As observaes solares As observaes solares na nutica portuguesa do sculo XV para a determinao de latitudes, radicam-se em vrias obras medievais, quase sempre tratados sobre o astrolbio ou sobre o quadrante. Eram certamente bem conhecidas em Portugal, e da o ter-se pensado em acrescentar as regras conhecidas, e geralmente incompletas, a todas as situaes em que os pilotos se encontrassem no mar. Segundo o testemunho de Cristvo Colombo, pelo ano de 1485 j mestre Jos Vizinho, astrlogo que teve influncia no desenvolvimento da nutica astronmica, andava pela Guin ensaiando o regimento. Penso que estas primeiras observaes tivessem sido feitas ainda apenas em terra, j que, segundo uma informao de Joo de Barros, na sua famosa viagem para a ndia, Vasco da Gama ainda no confiava em tais observaes realizadas a bordo e em pleno mar. Os resultados que Vizinho trouxe para Portugal devem ter sido satisfatrios; assim se explica que Bartolomeu Dias, na viagem de 1488, em que descobriu a ligao do Atlntico com o ndico, j fosse apetrechado para mandar determinar latitudes, como se sabe a partir de uma outra nota de Colombo, embora com indicaes claramente erradas.

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J ficou dito que para se poder usar a altura meridiana do Sol no clculo da latitude era necessrio conhecer a declinao do astro no dia da observao, tendo-se acrescentado que, em virtude do movimento anual aparente do Sol na eclptica, esta coordenada equatorial variava de dia para dia. Era, portanto, necessrio saber calcul-la, ou conhec-la atravs de tbuas. Sem entrar em muito pormenor, poderei dizer que o recurso s tbuas foi o que prevaleceu. As efemrides medievais j continham, em alguns casos, os dados necessrios para a sua preparao; e eles aparecem tambm no Almanaque Perptuo de Abrao Zacuto, que, embora s editado em Leiria em 1496, j devia correr manuscrito muitos anos antes, pois as tbuas nele contidas indicam valores de coordenadas a partir de 1473 41. Para o Sol existem no texto quatro grupos de tbuas anuais, que indicam, para um quadrinio (1473-1476), a localizao do Sol nos pontos que dia a dia, e passagem pelo meridiano, ocupava na eclptica; o valor dado pela indicao do signo do zodaco em que o astro se encontrava e pelo nmero de graus, minutos e segundos (entre 0 e 30) j percorridos nesse signo. A coordenada eclptica assim fixada, correspondente actual longitude celeste, denominava-se ento o lugar do Sol, como j disse. Como o calendrio ento em uso no compensava, em rigor, o excesso da durao, em relao a um nmero inteiro de dias, do movimento anual aparente do Sol, a partir de 1476 as tbuas podiam continuar a ser usadas depois de acrescidas de 1 46 por cada perodo de quatro anos decorridos sobre o ano raiz. Uma vez sabido o lugar do Sol, uma quinta tbua podia fornecer a declinao; mas esta tbua, por dar a declinao apenas para graus inteiros dos lugares nos

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vrios signos do zodaco, exigia quase sempre do manipulador uma interpolao, o que, por sua vez, implicava operaes aritmticas de execuo nesse tempo bastante complicada. A obteno de uma declinao solar por tal via no era certamente uma operao simples; e, como tal, ficaria facilmente sujeita a erros inaceitveis, se fosse realizada por quem tivesse pouca prtica no clculo das operaes de multiplicao e de diviso, nesse tempo consideradas ainda bastante delicadas. E parece claro que os pilotos, na sua maioria, pelo menos, no estariam em condies de cumprir semelhante tarefa. Por isso os astrnomos e os aritmticos procederam ao clculo prvio das declinaes solares para todos os dias de um ano ou para todos os dias do ciclo de quatro anos fixado no Almanaque de Zacuto, fornecendo depois aos marinheiros tabelas que lhes indicavam diariamente a coordenada que tinham de usar. J noutro lugar fiz a histria das tbuas de declinaes solares, e no irei aqui repetir-me 42. Importa, no entanto, sublinhar que, neste caso, mais uma vez a cincia interveio de modo decisivo. Foi um cientista (Vizinho) o homem encarregado de verificar, corrigir e acrescentar as regras para a determinao de latitudes por observaes de alturas meridianas solares; foi um astrlogo-astrnomo (Zacuto) o autor do Almanaque donde saram as tbuas de declinao solares para uso nutico; e foram aritmticos (de um deles sabemos o nome, Gaspar Nicolas, porque Valentim Fernandes o refere) que se deram ao trabalho de calcular essas tbuas de declinaes. Aqui, de novo, as dificuldades dos marinheiros tinham de ser resolvidas pela interveno da cincia, por muito incipiente que ela fosse.

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Todavia, no creio que na corte de D. Joo II, nem mais tarde na de D. Manuel, se tivesse reunido, por ordem de um ou outro rei, um grupo de sbios astrnomos para resolver estes problemas nuticos, que certa historiografia considerou como existente e constituindo como que um conselho consultivo que se denominou Junta de Matemticos (a designao inclui, como evidente, astrnomos e cosmgrafos). A ideia vinha j do sculo XVII, mas tomou vulto no final do sculo XIX; os seus fundamentos so os seguintes: 1.) quando Cristvo Colombo props ao Prncipe Perfeito o descobrimento de Cipango navegando para poente, o rei mandou o navegador avistar-se com o bispo de Ceuta, Diogo Ortiz, Jos Vizinho e mestre Rodrigo, segundo informa Joo de Barros; 2.) de acordo com este mesmo cronista, a navegao por alturas do Sol teria sido discutida pelos trs astrlogos citados (Ortiz ou Calzadilla, nome por que tambm era conhecido, era igualmente dado a estudos astrolgicos) e por Martinho da Bomia; e 3.) quando Pero da Covilh e Afonso de Paiva preparavam a sua viagem por terra ao Oriente, teriam discutido particularidades da aventura com o mesmo Ortiz e com os mesmos dois judeus, mestres Jos e Rodrigo, segundo nos transmite Francisco lvares na sua Verdadeira informao da Terra do Preste Joo das ndias. A interveno de Martinho da Bomia no problema da determinao de latitudes pelo Sol est hoje posta de lado. De facto, Barros diz-nos que ele fora discpulo do clebre astrnomo Joo de Monterrgio; a ser assim, certamente teria inculcado aos companheiros da hipottica Junta os trabalhos do seu antigo mestre, e a partir do incio deste sculo ficou provado (por Ravenstein e Bensade) que na resoluo do problema

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apenas foram usados elementos fornecidos pela j referida obra de Zacuto. No h dvida que o Prncipe Perfeito recorria a quem na corte lhe pudesse dar soluo aos problemas da nova arte de navegar; alm dos citados, h notcia de que tambm se serviu de mestre Moiss, e que, no incio da dcada de 90, utilizou os servios de Abrao Zacuto, chegando este a intitular-se astrnomo do rei; mais tarde, D. Manuel foi certamente quem encarregou Gaspar Nicolas de calcular as tbuas de declinaes solares de tipo quadrienal, que Valentim Fernandes publicou em 1518, no seu Reportrio dos Tempos, e que, quase com certeza, j antes tinham sido publicadas no Guia Nutico de vora (a dvida existe por ser conjectural o ano de 1516 como o da edio deste ltimo livro). Mas no parece que os homens consultados se organizassem como grupo ou junta. Tal organizao, se alguma vez tivesse existido, decerto se teria mantido atravs do tempo, com as atribuies e a organizao que para ela conjecturaram Garo Stockler e Alexandre von Humboldt; ora nada disso se verifica; e quando, na dcada de 1530-1540, D. Joo III pensa criar uma superintendncia sobre os assuntos nuticos (parte tcnica), criou o cargo de cosmgrafo-mor e nomeou para ele Pedro Nunes. Que a soluo se mostrou satisfatria mostra-o o facto de ter sido essa a estrutura que se manteve at ao sculo XVIII, apesar de alguns dos homens que desempenharam o lugar no terem estado, segundo creio, ao nvel das responsabilidades que sobre eles recaam. Uma palavra mais, antes de mudar de assunto. Da leitura dos textos nuticos portugueses do sculo XVI conclui-se, sem sombra de dvida, que o instrumento preferido pelos pilotos nas suas observaes foi o

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astrolbio; certo que h referncias espordicas ao quadrante (ainda representado na edio de 1563 do Reportrio dos Tempos) e balestilha (que Joo de Lisboa at ensina a usar com o Sol, sem que a vista do observador sofresse com isso); mas o astrolbio o instrumento mais falado. Todavia, uma questo se impe: de que astrolbio se trata? O tradicional astrolbio planisfrico, baseado numa chapa circular de cobre, repleta de traados que permitiam a resoluo de vrios problemas de astronomia elementar? De um astrolbio com a mesma configurao, mas reduzido, nessas particularidades, ao mnimo indispensvel para dar resposta a perguntas correntes, tal como est representado nos desenhos de Diogo Ribeiro? Uma resposta precisa a esta questo impossvel. Mas j possvel dizer com segurana que os construtores de astrolbios foram eliminando do instrumento tudo o que no tinha interesse para fins de navegao e acabaram mesmo por substituir o disco metlico por um anel graduado em que se mediam as alturas ou as distncias zenitais dos astros. Criou-se, deste modo, o astrolbio nutico, para o qual certamente contriburam as observaes e os conselhos de navegadores e de pilotos, que no deixariam de transmitir aos homens encarregados da construo o que lhes era estritamente necessrio para o desempenho das suas tarefas. No se pense que esta transformao, imposta pela prtica, no tenha tido uma certa projeco nos observadores estrangeiros que, em Lisboa, acompanhavam as navegaes portuguesas, os seus xitos e insucessos, e tambm a tcnica que nelas se punha em prtica. o que se v de uma informao escrita em Veneza no ano de 1517, por um certo Alexandre, sobre a actividade martima de Portugal e sobre alguns aspectos

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da arte de navegar praticada pelos pilotos portugueses; do ttulo do texto depreende-se, de resto, que os dados fornecidos pela informao teriam sido tambm obtidos pelo relator em Veneza, talvez de algum navegador que recentemente tivesse passado por Lisboa 43. Para o que me importa aqui tratar, direi que margem desse texto se encontra o mais antigo, embora tosco, desenho de um astrolbio nutico, e que no contexto Alexandre se lhe refere, anotando as diferenas que o separavam do astrolbio astronmico. Com efeito, depois de afirmar que os portugueses navegam com quadrante e astrolbio, entra em certos pormenores acerca do ltimo instrumento, que mais lhe chamara a ateno, decerto pelas alteraes que apresentava em relao ao modelo habitual; assim as pnulas da mediclina estavam mais prximas entre si e no se colocavam junto ao limbo, o que facilitava a observao do Sol; alm disso, o astrolbio reduzia-se ao limbo graduado, e nas faces j no estava representado o zodaco com as suas estrelas na sua rede, nem to pouco o cu com seus azimutes e almucntara, nem a escala quadrada de alturas no dorso. Era, pois, um astrolbio reduzido somente s peas que tinham interesse para os fins a que se destinava, (medida da altura ou da distncia zenital de astros), inovao que no podia escapar a um observador atento e que Alexandre registou com bastante mincia, como acabo de dizer.

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III / PROGRESSOS DA CARTOGRAFIA

1. Alguns aspectos da cartografia do sculo XV Quando se estudam, mesmo superficialmente que seja, os mais antigos exemplares conhecidos da cartografia portuguesa, nada neles encontramos (a no ser a novidade de novas costas representadas), que os distinga da cartografia mediterrnica; ou seja, os seus autores prolongarem para o Atlntico a tcnica artesanal das cartas-portulano, a que me referi no Captulo I. Tcnica artesanal, entenda-se, no sentido de ser uma tcnica intuitiva, correspondendo a uma transcrio grfica dos portulanos (roteiros) atravs de princpios que correspondem aos levantamentos topogrficos de pequenas reas, por processos directos e um tanto elementares, que ainda hoje esto em uso. Que Jaime de Maiorca (ou Jafuda Cresques) tenha trazido para Portugal essa tcnica de construir carta