ciência como arte

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CINCIA COMO ARTE: INGOVERNVEL Walter Colli, IQ/USPO cientista quem descobre o fenmeno bsico, mas raramente pensa em sua aplicao. So outros que aplicam a sua descoberta. So outros que fazem a omelete com os ovos que a galinha bota, mas que seriam inteis sem a galinha, pois, sem ela no teriam o ovo. Por isso, correse o risco, ao colocar um cientista na fbrica, de matar o cientista e matar a fbrica. Em pocas de crise econmica exercem-se presses sobre os cientistas para que obtenham resultados de aplicao imediata, concentrando seus esforos nas reas que o governo considera prioritrias. Costuma-se dizer que a pesquisa bsica um luxo injustificvel num pas subdesenvolvido. A incompreenso sobre os objetivos da pesquisa bsica independe da ideologia e atinge at setores universitrios. Pleiteia-se que se faa pesquisa "relevante para os interesses nacionais". Para alguns, "interesse nacional" o modelo econmico voltado para a exportao e para outros o interesse nacional fazer pesquisa "relevante para o povo". Assustei-me quando ouvi, em conferncia no Instituto de Estudos Avanados da USP, uma pessoa importante dizer que cincia que no se transforma em PIB no cincia. Ledo e triste engano, infelizmente de fcil propagao. O desenvolvimento tecnolgico corresponde execuo de uma tarefa encomendada e com etapas previstas de antemo. A cincia que convencionalmente chamamos de cincia bsica, ao contrrio, exploratria. A incerteza e o elemento surpresa so suas caractersticas. No desenvolvimento tecnolgico, ao contrrio, procura-se minimizar a incerteza e eliminar as surpresas. Na cincia, a motivao primordial a curiosidade A curiosidade insuscetvel de planejamento porque depende da intuio e do crebro das pessoas, isto , dos cientistas. Seria como exigir de Picasso que pintasse como Rembrandt. Certamente, poderia at sair algo razovel, mas no teria a genialidade de Picasso pintando Picasso. A cincia, portanto, como a arte: ingovernvel. Moyss Nussenzveig notou: "Ao escolher os temas que vai investigar, o pesquisador motivado pela lgica interna de sua disciplina, por um sentimento intuitivo em que aspectos estticos desempenham muitas vezes um papel importante, como ocorre com o artista" (Cincia Hoje, no. 4/1983). Algum contestou a deciso do Governo de SP de construir uma sala de concertos como a Sala So Paulo, j um orgulho de nosso Estado? H, inclusive, empresrios ajudando o funcionamento da orquestra. E eu pergunto: Qual a contribuio da orquestra ao PIB? Todos respondero que no se espera da orquestra que eleve o PIB, mas eleve sim o esprito, o nvel educacional, a cultura. Pois assim tambm com a cincia. A cincia faz parte do universo da cultura e no difere da arte como produto da inventividade do esprito humano. Nada me irrita mais do que abrir um jornal e ler uma notcia de algum astrnomo que descobriu uma galxia distante e nas duas ltimas linhas' o jornalista se sente obrigado a justificar a descoberta, dizendo, por exemplo, que ela muito importante para a compreenso dos fenmenos meteorolgicos! Ou das transmisses de rdio! Sabemos que tais justificativas so demaggicas. A descoberta da galxia importante porque

bela, porque faz nossa imaginao voar na tentativa de compreenso de nossas origens, da essncia de nossos prtons e eltrons primordiais. E o cncer? Todos os dias h uma notcia da descoberta de uma protena e no fim, indefinidamente, se escreve que a descoberta pode ser boa para a cura do cncer. Ento, por que, ao contrrio das artes e da tcnica, se espera que a cincia contribua para o PIB? Afinal, tambm um grande artista pode exportar quadros ou esculturas e um grande tcnico pode exportar produtos, como por exemplo, um grande lutier pode exportar violinos. Tudo contribui para o PIB, basta ter qualidade. O que no ajuda o PIB a gambiarra, o jeitinho, o retoque, o disfarce e a esperteza que normalmente no contribuem com a qualidade. E tambm, no ajuda o PIB, a retrica vazia e a ignorncia reiteram a profuso dos fatos. Espera-se, provavelmente, que a cincia contribua com o PIB por ser uma atividade que ao desvendar os mecanismos da natureza acaba tendo aplicaes, pois, nada melhor do que conhecer os mecanismos ntimos de funcionamento de um sistema para poder nele intervir a nosso favor. De fato, a histria das naes demonstra que a cincia, cedo ou tarde, acaba gerando produtos teis. Mas o cientista, aquele que descobre o fenmeno bsico, raramente est pensando na aplicao e ainda assim ele importante porque descobre. So outros os que se apropriam de sua descoberta e a aplicam. So outros que fazem a omelete com os ovos que a galinha bota, mas que seriam inteis sem a galinha, pois, sem ela no teriam o ovo. Por isso, corre-se o risco, ao colocar um cientista na fbrica, de matar o cientista e matar a fbrica. E a temos a primeira concluso: cincia no tecnologia, mas seus resultados podem se transformar em tecnologia. Quem tem vocao para a cincia pode no t-la para a tecnologia. A Fundao Nacional de Cincias dos EUA classifica as atividades de pesquisa e desenvolvimento desta maneira: 1) Pesquisa bsica - O objetivo da pesquisa bsica adquirir mais conhecimento ou compreenso sobre o assunto que se est estudando, sem atentar para suas aplicaes especficas. Na indstria, a pesquisa bsica definida como a pesquisa que faz o conhecimento cientfico avanar e no tem objetivos comerciais imediatos, embora isso possa acontecer. 2) Pesquisa aplicada - A pesquisa aplicada est voltada para ganhar conhecimento ou compreenso sobre um assunto especfico e escolhido de antemo. Na indstria, a pesquisa aplicada inclui investigao orientada para a descoberta de conhecimento cientfico que tenha objetivos comerciais especficos no que concerne a produtos, processos ou servios. 3) Desenvolvimento ou inovao - o uso sistemtico do conhecimento, adquirido na pesquisa bsica ou aplicada, dirigido para a produo de materiais teis, instrumentos, sistemas, mtodos, incluindo o projeto e o desenvolvimento de prottipos e processos. De fato, embora no seja esse o seu motivo primordial, de todas as atividades do intelecto humano, a cincia a que produziu maior nmero de aplicaes transformveis em recursos financeiros. O fsico Hendrik Casimir, com grande experincia na indstria eletrnica, foi diretor, durante muitos anos, dos laboratrios de pesquisa da Phillips, na Holanda, assim se expressou: "Tenho ouvido afirmar que a pesquisa acadmica no serve para nada e que seu papel na inovao pequeno. Este o absurdo mais gritante com que j tive ocasio de me deparar. E d exemplos de como as invenes do transistor, do laser, dos circuitos integrados e da energia nuclear foram

conseqncia no planejada da curiosidade de cientistas que queriam apenas entender o Universo. Faraday que descobriu as leis da induo eletromagntica, o que permitiu construir bobinas que, dentre outras coisas, movem os automveis, era um grande divulgador e proferia muitas conferncias. Numa delas ele mostrou que inserindo um m numa bobina havia gerao de corrente eltrica. Contam que a rainha Vitria o procurou dizendo-lhe que a experincia era interessante, mas servia para qu mesmo? E Faraday teria retrucado: "Majestade, para que serve um beb?" Esse beb de Faraday criou toda a indstria de energia eltrica. Para M. Nussenzveigl, ltaipu descendente direta do beb de Faraday. Algum ento poderia retrucar.Tudo bem! A cincia bsica importante. Mas devemos deixar que os pases avanados faam a pesquisa e ns a usaremos para aplicaes prticas. Esta postura tambm engano, s e intelectualmente limitada. E o raciocnio do espertinho que pensa que os cidados de outras naes so bobos. A razo simples: se um pas no tiver seus cientistas no haver ningum que compreenda as descobertas feitas pelos cientistas dos outros pases. E, mesmo que o pas tenha cientistas, necessrio ter engenheiros e outros cientistas capazes de transformar a descoberta em aplicao. E mais ainda, os pases onde feita a descoberta apropriam-se dela muito mais rapidamente, pois, esto mais perto da fonte de conhecimento. Exemplo disso so os projetos genoma. um feito emblemtico termos terminado o seqenciamento gnico da bactria que provoca o amarelinho nas laranjeiras, a Xylella, porque mostrou a pujana cientfica do Estado de SP. Mas no poderamos t-lo feito se os laboratrios de SP no dominassem parte da tecnologia e da teoria envolvidas. Eles as dominavam porque j as usavam para seu trabalho de pesquisa fundamental. Mesmo assim, essa vitria foi conseguida j no final do sculo XX enquanto a mesma coisa j tinha sido feita no primeiro mundo com muitos outros organismos e estava sendo feita h uma dcada com o genoma do homem, finalmente anunciado. Watson, um dos autores da mais importante descoberta da biologia moderna, a estrutura do DNA em dupla hlice observou: "A elucidao da estrutura do DNA, em 1953, no provocou nenhuma comoo fora do pequeno crculo de especialistas do campo, embora fosse claro que agora poderamos abordar a gentica em nvel molecular e adquirir informaes bsicas sobre a estrutura e a funo dos genes. Mas no previmos nenhuma aplicao prtica para o mundo em nosso redor e muito menos qualquer razo para que o homem da rua tivesse conhecimento de nossa existncia. Em 60, Werner Arber, Nobel de Medicina de 78, queria entender porque alguns vrus que infectavam bactrias tinham seu DNA destrudo dentro da bactria sem que ela destrusse seu prprio DNA. Quem poderia antecipar que a resposta a essa pergunta, a priori to terica, o tivesse levado a descobrir uma classe de substncias chamadas enzimas de restrio? Essa descoberta mais o conhecimento da estrutura do DNA permitiram a inveno da Engenharia Gentica em meados da dcada de 70, cerca de 20 anos depois da descoberta de Watson & Crick. Hoje falamos de transgnicos, clulas-tronco, interveno na programao gentica da natureza - todas aplicaes daquelas descobertas. Por que, ento, quando essas descobertas foram feitas ns, os brasileiros, no aproveitamos a tal de pesquisa bsica "feita por eles" para imediatamente inventar a Biotecnologia antes que eles a inventassem? A razo simples: no tnhamos cincia suficiente para absorver a perfeita compreenso da doutrina por detrs das descobertas. Nossa massa de cientistas era nfima para

poder influir no curso dos acontecimentos. A Microbiologia e a Virologia, dentre outras disciplinas, foram os instrumentos para essas mudanas e durante 60 anos, com as notveis excees de costume e que so reconhecidas por todos ns, predominou no Brasil uma escola de Microbiologia e Virologia que s dava ateno s bactrias e vrus que algum definiu como "importantes" talvez porque provocassem doenas, isto , tinham "aplicao prtica". Essas lideranas repeliam qualquer outra forma de conhecimento na rea. No queriam saber como funcionavam as bactrias, bastava mat-las. O resultado foi que, enquanto uma revoluo estava ocorrendo no Hemisfrio Norte, ns tnhamos no Brasil poucos que a percebessem, mas insuficientes! Portanto, conclui-se que apesar dos esforos de muitos de ns ainda temos pouca pesquisa bsica. Precisamos ter mais para nos apropriarmos mais rapidamente das descobertas, aumentarmos nossa quota de contribuies originais a cincia e o nosso patrimnio cultural. O intervalo entre um descobrimento na pesquisa bsica e suas aplicaes tecnolgicas tende a reduzir-se cada vez mais; de intervalos tpicos de algumas dcadas no incio do sculo, chegamos hoje em dia a intervalos de poucos anos, como nos casos do transistor e do laser. Agora, as grandes corporaes multinacionais j contratam cientistas bsicos e tecnlogos, se assim pudermos denominar os cientistas que tm pendores para aplicar o conhecimento, para trabalharem juntos. Assim, a informao nem sai da firma. Por exemplo, trabalha-se intensamente nas informaes trazidas pela decifrao do genoma humano usando uma metodologia requentariam denominada validao do alvo atravs da quimiogenmica" que nada mais do que a fuso da Qumica com a Genmica. Traduzindo: os frmacos agem em protenas de nosso corpo, mas muitas protenas, embora diferentes, so suficientemente semelhantes para que o frmaco faa distino entre elas. Ento, algo que faz bem para uma determinada doena por se ligar a uma protena, tem efeitos secundrios indesejveis por se ligar a outras protenas com outras funes, mas parecidas com a primeira por pertencerem mesma famlia protica. Usando os recursos da Qumica Orgnica, os cientistas modificam o frmaco bsico a ponto de identificar apenas uma protena na qual ele age. Com isso, em pouco tempo haver uma enxurrada de novos e eficientes medicamentos.Nota: Este texto uma parte da conferncia "C&T&I so deveres exclusivos das Universidades, que Walter Colli apresentou no Congresso Anual do Instituto de Cincias Biomdicas da USP e no Instituto de Qumica de So Carlos. (Jornal da CINCIA/SBPC, 4.OUT.2002, p. 7-8)