cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de fortaleza, ce

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CIDADES SUSTENT Á VEIS e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE DISSER TAÇÃO DE MESTRADO UNIVERSIDADE DE B R ASÍLIA CE N TRO DE DE S ENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL PABLO PIMENTEL PESSOA

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A partir da concepção de cidades como sistemas socioambientais complexos, discutimos aspectos considerados menores ou secundários no tratamento corrente das questões urbanas no contexto do desenvolvimento sustentável. Este trabalho foi estruturado sob três eixos abordados cada qual em um artigo independente: (1) relações de risco nos sistemas urbanos; (2) modelos de desenvolvimento urbano sustentável; (3) insustentabilidades na cidade de Fortaleza.

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Page 1: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

CIDADES SUSTENTÁVEIS e as fronteiras de risco e respeito

ao sistema socioambiental

de Fortaleza, CE

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

PABLO PIMENTEL PESSOA

Page 2: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

Pessoa, Pablo Pimentel.

Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE /

Pablo Pimentel Pessoa; orientador Saulo Rodrigues Filho. Brasília,

2014.

146 p.

Dissertação de Mestrado. Centro de Desenvolvimento Sustentável,

Universidade de Brasília, Brasília-DF, 2014.

É concedida à Universidade de Brasília permissão para reproduzir cópias desta disser-

tação e empresar ou vender tais cópias somente para propósitos acadêmicos e cientí-

¿FRV��2�DXWRU�UHVHUYD�RXWURV�GLUHLWRV�GH�SXEOLFDomR�H�QHQKXPD�SDUWH�GHVWD�GLVVHUWDomR�de mestrado pode ser reproduzida sem a autorização por escrito do autor.

Pablo Pimentel Pessoa

Page 3: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

CIDADES SUSTENTÁVEIS e as fronteiras de risco e respeito

ao sistema socioambiental

de Fortaleza, CE

PABLO PIMENTEL PESSOA

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Dissertação de mestrado submetida ao Centro de Desenvolvimento Sustentável

da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos necessários para obtenção do

Grau de Mestre em Desenvolvimento Sustentável, área de concentração em Política e

Gestão da Sustentabilidade.

Aprovado por:

Saulo Rodrigues Filho, Doutor, Universidade de Brasília

�2ULHQWDGRU�

Marcel Bursztyn, Doutor, Universidade de Brasília

�([DPLQDGRU�,QWHUQR�

2WWR�7ROHGR�5LEDV��'RXWRU�([DPLQDGRU�([WHUQR�

Brasília-DF, abril de 2014

Page 4: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

A essa cidade moribunda

e ao pulso de vida baldia.

Page 5: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

iv

AGRADECIMENTOS

Antes, aos gigantes de fundas pegadas que me precederam e ao vagalume da

ignorância, que nos permite, livres da vertigem e do medo de altura, cumprirmos com

a escalada de ombros. E, é claro, aos mirantes fabulosos que daí se nos apresentam;

Aos meus progenitores. Não porque me conceberam, mas porque estão, da-

quele dia até hoje, comprometidos e seguirão, eu sei, até os últimos dias envolvidos

nessa labuta alegre de mostrar a nós que a vida é coisa do maior quilate;

À minha irmã, o gigante lá de casa, que tá sempre à frente – desde quando o

mundo todo era um condomínio residencial no Parque Manibura –, abrindo caminho

na mata e segurando o carrasco pra não cravar meu couro de caçula;

Aos amigos todos. Ao Pedro e à Karina, minha segunda base e abrigo, sempre

que os ventos tempestuosos teimam em dar as caras. Ao Miyamoto e sua prole cigana,

FXMD�SDUWLGD�PXLWR�PH�LQVSLUD�D�LU�SRU�RQGH�RV�JRVWRV�DÀRUDP��$R�7XQLFR��FRPSDQKHLUR�

GH�DJUXUDV�H�HUUkQFLDV�TXH��VRPHQWH�RV�ORERV�VDEHPRV��QRV�IRUWDOHFHUDP�D�¿EUD��$R�

Pinto, pela guarida e desbrave de uma cidade inteira, por ser essa porta de transcen-

dência através do som e pelas canções todas a viajar. Ao Marcelo e à Lila, pelo nos-

so pequeno projeto quase diário de viver a cidade e cantarmos a alegria quando as

poeiras de faroeste tomaram as ruas e parte do meu peito. À Jade e à Ju Parente, à

&OiXGLD�H�j�7DWL��DR�&DLR�H�j�5D¿QKD��YDORURVRV��KiEHLV�H�QREUHV�DOTXLPLVWDV�GD�UHMX-

YHQHVFrQFLD�EHOFKLRULDQD�GR�PHX�VHU��$R�(ULF�H�j�0DUL��j�,DUD�H�DR�7K\DJR��SHOD�Ip�GH�

que ‘seja o que for desse trabalho, parece ser coisa boa’. À Luna pela muamba toda

que me trouxe de contrabando desse fantástico mundo dos sonhadores de cidades e

pela própria coisa do sonhar. Aos luchadores brechtianos e poetas daquilo que será:

7LWLOKD��-~OLR��3RWL��/LYLQKD��*HUPDQR�H�WRGRV�RV�HVWUDQKRV�IDPLOLDUHV�DFDPSDGRV�GR�

�2FXSH&RFy���2FXSHR$FTXiULR��j�3RQWH�9HOKD�H�D�WRGDV�DV�JHQWHV�H�FRLVDV�TXH�UH-

sistem. À Ju pela presença forte, companhia e apoio em quase todas as etapas disso

tudo, desde quando eu não passava de um ‘menino do interior’ desbravando a capitar

ao episódio dramático dos ataques covardes aos pés de minha porta. Aos biozarros e

¿JXUDV�LOXVWUHV�D¿QV��'HERUDK��6R¿D��+LOWRQ��,YDQ��/LOLDQ��0DOGHYDU��%UXQR��/LOD��&pOLR��

3ULVWLQD�H�7HOHV��D�PROHTXLFH�SDVWHO{QLFD�p�TXDOTXHU�FRLVD�LPSUHVVD�IXQGR�HP�WRGRV�

Page 6: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

v

QyV��UHD¿UPDGD�DQR�D�DQR��¬�7KDO\��SHoD�FKDYH�QR�DWR�¿QDO�GHVWD�REUD��SRU�PH�OHP-

brar que ‘a hora do sim é o descuido do não’ e por segurar as pontas comigo quando

o objeto de estudo quis me abater;

À minha família recifense e seus mais novos raminhos, em especial pelo auxílio

luxuoso dos tios: César, Jesus e Mirna, com a leitura carinhosa dos artigos sob feitura;

Ao Ziggy, cão fênix, mi deber nerudiano de vivir, morir, vivir;

Ao pessoal do CDS. À minha turma e à turma irmã do doutorado, pelas con-

versas, permutas e pães de queijo. Brasília está pra saber como se faz um happy

hour, mas vocês foram massa ainda assim. Ao Alan, à Paula, à Andréia, ao Sérgio, ao

$QGUpV�H�j�'LDQD��SRU�PRPHQWRV�H�IRUoDV�GLYHUVDV��$R�SHVVRDO�GR�$OIUHGR¶V��2VPDU��

grande e incontestável achado desse mestrado, Babi, Sílvia, Ana, Michelle, Pati, Mar-

OD�H�0DUFRV��YRFr�VDEHP�YLYHU��9RX�FRQJHODU�FDGD�XP��PLQLDWXUL]DU�H�OHYDU�QR�EROVR�

DRQGH�HX�IRU��$R�/XL]�&OiXGLR�H�j�9HU{QLFD��SHODV�VHVV}HV�GH�/LEHUW\�0DOO�H�RXWUDV�

alegrias sutis. Aos verdadeiros mestres e pessoas admiráveis que encontrei nesse

FXUVR�SHUFXUVR��(OLPDU��0DXUtFLR��&ULVWRYDP��0DUFHO��'UXPPRQG��'RULV��0{QLFD��7KR-

mas, Frédéric, Ludivine, em especial, ao Saulo, porque me adotou como orientador

mesmo ciente do meu pensamento arredio e topou comigo esta difícil empreitada. Por

¿P��DR�7DLQi�H�j�/XGPLOD��j�5DL]D�H�DR�3DXOR��JUDQGHV�HVStULWRV��TXH�ID]HP�HVWD�VD-

ída da terra natal, sem dúvida alguma, ter valido à pena. Ao moleque-piranha, minha

mais nobre insígnia, porque não deve ter sido fácil me aguentar quase que em tempo

integral. A ti, que a vida te abra o olho esquerdo, toda a felicidade e incríveis novas

aventuras para nosotros.

Page 7: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

vi

RESUMO

A partir da concepção de cidades como sistemas socioambientais complexos,

procurou-se discutir aspectos considerados menores ou secundários no tratamento

corrente das questões urbanas no contexto do desenvolvimento sustentável. Este tra-

balho foi estruturado sob três eixos abordados cada qual em um artigo independente.

2�SULPHLUR�FDStWXOR�WUDWD�GRV�HORV�HQYROYLGRV�QDV�UHODo}HV�GH�ULVFR�VRFLRDPELHQWDLV�urbanos, tomando como exemplo a modelagem diagramática das conexões causais

entre o problema recorrente das inundações urbanas nas cidades brasileiras e os pro-

cessos sociais de exploração do trabalho, especulação imobiliária e espoliação urba-

na na construção das situações de vulnerabilidade. A teoria de riscos aqui é utilizada

como instrumento de revelação da complexidade nos sistemas socioambientais e da

QHFHVVLGDGH�GH�FRQVLGHUDomR�GD�LQFHUWH]D�QDV�JHVW}HV�XUEDQDV�GLWDV�VXWHQWiYHLV��2�segundo capítulo tenta destrinchar os principais modelos de desenvolvimento urbano

sustentável e discuti-los à luz das principais questões relativas ao campo geral da

VXVWHQWDELOLGDGH��&RP�EDVH�QDV�YLUWXGHV�H�GH¿FLrQFLDV�GH�FDGD�FRUUHQWH��IRL�SURSRVWR�o conceito de fronteiras do respeito como princípio balizador da busca pela susten-

WDELOLGDGH� XUEDQD� HP� VHQWLGR� DPSOR��3RU� ¿P�� QR� WHUFHLUR� FDStWXOR�� WRPD�VH� R� FDVR�da cidade de Fortaleza e de seus processos históricos de consolidação e expansão

urbanas como porta de acesso ao mecanismo de produção das insustentabilidades

nos espaços urbanos dos países subdesenvolvidos. A disseminação epidêmica da

violência e a proliferação dos assentamentos informais, em um cenário de profunda

desigualdade social, são apresentados como sinais de ruptura da resiliência do siste-

ma socioambiental urbano e como parâmetros para a percepção do posicionamento

da cidade quanto às fronteiras de risco e respeito.

Palavras-chave: cidades sustentáveis; sustentabilidade urbana; riscos socioambien-

tais, fronteiras locais, Fortaleza.

Page 8: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

vii

ABSTRACT

From the conception of cities as complex socio-environmental systems, this

work discuss aspects of urban crisis commonly treated as secondary issues in the

VXVWDLQDEOH�GHYHORSPHQW�FRQWH[W��7KHVH�DVSHFWV�ZHUH�H[SORUHG�LQ� LQGHSHQGHQW�DUWL-

FOHV��FRPSRVLQJ�D�WKUHH�FKDSWHUV�WKHVLV�VWUXFWXUH��7KH�¿UVW�FKDSWHU�DGUHVVHV�WKH�OLQNV�

involved in socio-environmental risk relations, using as example a diagramatic repre-

VHQWDWLRQ�RI�JHQHULF�EUDVLOLDQ�FLWLHV�XUEDQ�ÀRRGLQJ�SUREOHP�DQG� LWV�VRFLDO�SURFHVVHV�

causal linkages. Cindinics theoetical frame was used here as key instrument to access

urban complexity and to reveal the necessary regard of uncertainty in sustainable

XUEDQ�PDQDJHPHQW�GHFLVLRQ�PDNLQJ�SURFHVV��7KH�VHFRQG�FKDSWHU�FRYHUV�WKH�PDMRU�

urban sustainable development models confronting with the central debate topics re-

ODWHG�WR�VXVWDLQDEOH�JHQHUDO�¿HOG��%DVHG�RQ�VWUHQJWKV�DQG�ZHDNQHVVHV�RI�HDFK�PRGHO�

we establish the concept of respect boundaries as a guideline compass in the seeking

of sustainable city broad sense. Finally, in the third chapter, we analyze the case of

Fortaleza city, looking for actual unsustainabilities traits and its roots in the foundation

RI�WKH�FLW\�DQG�LWV�XUEDQ�VSUDZO�KLVWRULF�SURFHVV��7KH�HSLGHPLF�JURZWK�RI�XUEDQ�YLROHQ-

ce rates and the endless spread of informal settlements, specially of those exposed

to risk situations, are presented as evidence of alarming resilience disruption of urban

VRFLDO�HQYLURPHQWDO�V\VWHP��7KH�KLVWRULFDO�FRQVLGHUDWLRQ�RI�WKH�SUHVHQW�XUEDQ�FULVLV�RI�

brasilian cities may serve as evaluation parameters on how distant our metropolis are

from the desirable state suggested by the respect boundaries concept.

Keywords: sustainable cities; urban sustainability; socio-environmental risks, local

boundaries, Fortaleza.

Page 9: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

viii

CAPÍTULO 1

Figura 1. Classes de riscos naturais de acordo com os recortes conceitu-

DLV�GH�9H\UHW�H�0HVFKLQHW�GH�5LFKHPRQG��������H�5HEHOR�������Figura 2. Elementos e variáveis envolvidas da produção social do risco de

inundação em um sistema urbano brasileiro genérico

)LJXUD����,QWHUUHODo}HV�GLUHWDV��FRQWtQXDV��H�LQYHUVDV��SRQWLOKDGDV��HQWUH�componentes de um sistema urbano brasileiro genérico

Figura 4. Áreas do conhecimento envolvidas da construção do risco de

LQXQGDomR�XUEDQR�LQGLFDGRUDV�GH�FRPSOH[LGDGH�ÀDJUDQWH)LJXUD����5HFRUWH��HP�D]XO��HYLGHQFLDQGR�R�HQTXDGUDPHQWR�WUDGLFLRQDO�GDV�inundações como riscos naturais

CAPÍTULO 2

Figura 1. Panorama do campo da sustentabilidade e subcampos. Adapta-

GR�GH�+RSZRRG�������Figura 2. Posicionamento de agentes e discursos no campo. Adaptado de

+RSZRRG�������4XDGUR���(FRQRPLD�FRPR�VXEVLVWHPD�GH�XP�VLVWHPD�7HUUD�IHFKDGRQuadro 2. Caracteres identitários dos principais modelos de desenvolvi-

mento urbano sustentável e posicionamentos sobre o campo da sustenta-

bilidade

)LJXUD����(L[R�GH�LUUXSomR�GR�XUEDQR��$GDSWDGR�GH�/HIHEYUH�������

CAPÍTULO 3

Figura 1. Quadro de honrarias, mural de notícias

)LJXUD����7D[D�GH�KRPLFtGLRV�HP�)RUWDOH]D������������)LJXUD����'DGRV�JHUDLV�GR�PXQLFtSLR�GH�)RUWDOH]DFigura 4. Divisão administrativa atual por bairros e secretarias executivas

Figura 5. Municípios cearenses com mais de 100 mil habitantes

)LJXUD����%DFLDV�H�VXE�EDFLDV�KLGURJUi¿FDV�GH�)RUWDOH]D)LJXUD����&RPSDUWLPHQWDomR�JHRPRUIROyJLFD�GR�VtWLR�XUEDQR�GH�)RUWDOH]D)LJXUD����6tWLR�XUEDQR�GH�)RUWDOH]D��D��0DSD�KLSVRPpWULFR���E��0DSD�GH�declividades

)LJXUD����6tWLR�XUEDQR�GH�)RUWDOH]D���D��6LVWHPDV�$PELHQWDLV���E��9XOQHUD-

bilidade Natural

)LJXUD�����3ULPHLUD�SODQWD�GD�9LOOD�1RYD�GD�)RUWDOH]D�GH�1RVVD�6HQKRUD�da Assumpssão da Capitania do Siará Grande, atribuída ao capitão-mor

0DQXHO�)UDQFrV��������D���H�SDUWH�GR�OLWRUDO�FHDUHQVH�QR�3HTXHQR�$WODV�GR�

p. 24

S���

S���

S���

S���

p.46

p.48

p.58

p.62

p.65

p.86

S���p.88

S���S���S���S���S���

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LISTA DE QUADROS E FIGURAS

Page 10: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

ix

0DUDQKmR�H�*UmR�3DUi��GH�-RmR�7HL[HLUD�$OEHUQD]�,��������E��)LJXUD�����3ODQWD�GR�3RUWR�H�9LOOD�GD�)RUWDOH]D��GH�6LOYD�3DXOHW��������D���H3HUVSHFWR�GD�9LOOD�GD�)RUWDOH]D�GH�1RVVD�6HQKRUD�GD�$VVXPSVVmR�RX�3RUWR�GR�6LDUi��DWULEXtGR�D�)UDQFLVFR�$QW{QLR�0DUTXHV�*LUDOGHV��������E��)LJXUD�����3ODQWD�GR�3RUWR�H�GD�9LOOD�GH�)RUWDOH]D��GH�6LOYD�3DXOHW���������E��H��D��GHVHQKR�VLPSOL¿FDGR��FRP�LQGLFDo}HV�GH�HVWUDGDV��ULDFKRV�H�HGL-¿FDo}HV�)LJXUD�����3ODQWD�GD�&LGDGH�GH�)RUWDOH]D��GR�3DGUH�0DQRHO�GR�5rJR�GH�0HGHLURV��������D���H�3ODQWD�GD�&LGDGH�GH�)RUWDOH]D�H�6XE~UELRV��GH�$GRO-IR�+HUEVWHU��������E�)LJXUD�����3ODQWD�([DFWD�GD�&DSLWDO�GR�&HDUi��GH�$GROIR�+HUEVWHU��������D���H�3ODQWD�GD�&LGDGH�GD�)RUWDOH]D��FDSLWDO�GD�SURYtQFLD�GR�&HDUi��GH�$GROIR�+HUEVWHU��������E��Figura 15. Detalhes da Planta da Cidade da Fortaleza, capital da provín-

FLD�GR�&HDUi��GH�$GROIR�+HUEVWHU��������D��$VLOR�GD�0HQGLFLGDGH�H�5LDFKR�3DMH~���E��$UUDLDO�0RXUD�%UDVLO�H�5LDFKR�3DMH~�Figura 16. Abastecimento de água e esgotamento sanitário nos bairros de

Fortaleza

)LJXUD�����'RPLFtOLRV�FRP�EDQKHLURV�H�HQHUJLD�HOpWULFD�QRV�EDLUURV�GH�Fortaleza

Figura 18. Coleta de lixo e índice sintético de condições domiciliares nos

bairros de Fortaleza

)LJXUD�����,'+��FRQÀLWRV�GH�WHUULWRULDOLGDGH�H�WD[DV�GH�KRPLFtGLR�PDLV�H[-

pressivas nos bairros de Fortaleza

Figura 20. Rendimento pessoal e pobreza extrema nos bairros de Fortale-

za

p.104

p.105

p.106

S����

S����

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S����

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x

APRESENTAÇÃO

NOTA INTRODUTÓRIA

CAPÍTULO 1. Desastres naturais de sinergia antrópica

1.1. Introdução: De limites a fronteiras

1.2. Sociedade e epistemologia dos riscos

�����7LSRV�GH�ULVFR��ULVFRV�XUEDQRV�H�D�QDWXUH]D�DPEtJXD�GDV�LQXQGDo}HV1.4. Relações de risco

�����,QXQGDo}HV��HVWUXWXUDQWHV�FOLPiWLFRV��¿VLRJUi¿FRV�H�VRFLRHFRQ{PLFRV�����&RQVLGHUDo}HV�¿QDLV��(P�EXVFD�GD�UHVLOLrQFLD�GR�VLVWHPD�XUEDQR

CAPÍTULO 2. Cidades sustentáveis e as fronteiras do respeito

2.1. Introdução: Dos maus negócios

2.2. Sustentabilidade: Um campo cambiante

�����$ERUGDJHQV�GH�GHVHQYROYLPHQWR�XUEDQR�VXVWHQWiYHO2.4. Cidades e paisagens: ruptura e reconciliação

�����&RQVLGHUDo}HV�¿QDLV

CAPÍTULO 3. Cidade de Fortaleza: insinuações de risco e respeito

�����,QWURGXomR��1mR�p�SRVVtYHO�WHQWDU�R�SQHXPRWyUD["�����&RQVLGHUDo}HV�PHWRGROyJLFDV�H�SUHGLVSRVLo}HV�VXEMHWLYDV�����6DOD�GH�KRQUDULDV�H�D�SRQWD�DPRODGD�GR�LFHEHUJ�����(VWDGR�GD�DUWH�DWXDO��¿FKD�WpFQLFD�GR�PXQLFtSLR�����$�EROD�GH�QHYH�GR�VHPL�iULGR�����$YDODQFKH��6LQDLV�GH�UXSWXUD�����&RQVLGHUDo}HV�¿QDLV

PALAVRAS FINAIS

11

��

15

16

����28

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42

��45

50

����

��

��81

82

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146

SUMÁRIO

Page 12: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

11

APRESENTAÇÃO

� 6REUH�VXVWHQWDELOLGDGH�DSUHQGL�TXH��IUHQWH�DRV�GHVD¿RV�FLYLOL]DWyULRV�GH�DJRUD�

em diante, das décadas vindouras, pouca importância haverá de se dar às nossas

limitadas individualidades. Mesmo que as relações humanas substanciais se restabe-

leçam no futuro próximo, que grandes soluções um indivíduo em estado de iluminação

que seja seria capaz de propor a um mundo tão imensamente complexo e tão intensa-

PHQWH�PXWDQWH"�$�XOWUDPRGHUQLGDGH�QDXVHDQWH��D�HVWHLUD�GH�FDPXQGRQJRV�GH�QRVVD�

sina subdesenvolvida, a fragilidade das instituições democráticas que oscilam entre

EHODV�OHWUDV�PRUWDV�H�HPHQGDV�PXWLODGRUDV�GH�QRUPDV�TXH�DPHDoDP�JDQKDU�H¿FiFLD��

'H�IDWR��7RP�-RELP�IRL�FHUWHLUR��HVWH�SDtV�QmR�p�SDUD�SULQFLSLDQWHV��2�TXH��HQWmR��QHV-

VH�HVWDGR�H�JUDYLGDGH�GH�FRLVDV��SRGHULD�HX�SUHWHQGHU�SDOSLWDU"

A escolha do tema desta dissertação, desde sua concepção enquanto projeto

de pesquisa é fruto de uma perseguição particular e, em certa medida, de difícil ne-

gociação. Em função de minha tenra formação como biólogo, pude ter contato com a

história das iniciativas de proteção à natureza no Brasil e dali passei a descrer das ra-

]}HV�¿QDOtVWLFDV�HQYROYLGDV�QDV�SROtWLFDV�PRGHUQDV�GH�FRQVHUYDomR�GR�SDUWLP{QLR�QD-

WXUDO��$TXHODV�PHWDV��SDUD�PLP��QmR�SDUHFLDP�VH�MXVWL¿FDU�QHP�GH�XP�SRQWR�GH�YLVWD�

HFROyJLFR�QHP�GH�XP�SRQWR�GH�YLVWD�VRFLRHFRQ{PLFR��)RL�HVWD�FRQVWDWDomR�H�D�EXVFD�

pelo que chamava de demandas por degradação que me conduziram ao estudo das

cidades. Entendi que, por excelência, partiam dos núcleos urbanos, especializados no

consumo da produtividade dos escossistemas, as tais demandas.

A partir dali, começaria a lançar o olhar de estranhamento sobre tudo o que

FRPS}H�R�IHQ{PHQR�XUEDQR��$¿QDO��H[LVWH�XPD�QDWXUH]D�XUEDQD"�'H�TXH�PDWpULD�p�

IHLWR�XP�WHFQRHFRVVLVWHPD"�$�TXH�VH�UHIHUHP�RV�MXULVWDV�TXDQGR�WUDWDP�GH�PHLR�DP-

ELHQWH�DUWL¿FLDO��FXOWXUDO�RX�GR�WUDEDOKR"�(�RV�DUTXLWHWRV�H�HQJHQKHLURV��TXH�HQ[HUJDP�

no meio ambiente construído, nas manchas de sistemas vivos residuais antes de pro-

SRUHP�VXD�XUEDQL]DomR"�4XH�VLJQL¿FD�SDUD�HOHV�XUEDQL]DomR"�0HVPR�TXH�SHUVLVWDP�

IUDJPHQWRV� ÀRUHVWDLV� H� FRUUHGRUHV� IXQFLRQDOPHQWH� FRQHFWDGRV�� TXH�PRWLYRV� WHPRV�

SDUD�PDQWr�ORV� IUHQWH�jV�GHPDQGDV�VRFLDLV�SRU�VROR�XUEDQR"�6H�R�VtWLR�XUEDQR�p�R�

pequeno espaço reservado na crosta terrestre à antropização, por que não prescindir

Page 13: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

12

GD�ELRGLYHUVLGDGH�SHOR�PHQRV�DTXL"�2X��FRPR�GLULD�1XULW�%HQVXQVDQ��VHUi�TXH�QmR�

³VHULD�PHOKRU�PDQGDU�ODGULOKDU´"

Nessa empreitada terminei por transpor o cercado que me mantinha protegido

na seara disciplinar das ciências biológicas, da ecologia e das chamadas hard scien-

ces. Para cada espaço disciplinar, é um processo de alfabetização que tem início.

Confesso que minha primeira alegria foi no encontro com a geomorfologia urbana

e de saber que para cada compartimento geossistêmico tradicional estavam sendo

propostas novas categorias voltadas à compreensão das particularidades daqueles

HOHPHQWRV�QD�FRQMXQWXUD�XUEDQD��+DYLD�RV�VRORV�XUEDQRV��DV�HQFRVWDV�XUEDQDV�H�DV�

EDFLDV� KLGURJUi¿FDV� XUEDQDV�� DOpP� GH� XPD� UHVLJQL¿FDomR� TXDVH� TXH� FRPSOHWD� GR�

olhar sobre os problemas ambientais naquele contexto.

É daí que, para mim, apresenta-se a dimensão social. Não que antes não fosse

sensível a este aspecto da vida, mas é apenas com o endereçamento dos problemas

e riscos envolvidos no uso e ocupação ambientalmente inadequados do solo urbano

que percebo uma aproximação apreensível desses dois planos, até então, paralelos.

7RGR�HVWH�SHUFXUVR�GH�GHVFREHUWDV�VH�IH]�PDUFDGR�QD�FRQFHSomR�H�QD�HVWUXWXUDomR�

GHVVH� WUDEDOKR��2�SUySULR�GHVHMR�GH�GHVHQYROYr�OR� MXQWR�DR�&HQWUR�GH�'HVHQYROYL-

PHQWR�6XVWHQWiYHO��&'6�8Q%��H�DV�GLVFXVV}HV�FRP�DV�TXDLV�WLYH�FRQWDWR�DWUDYpV�GR�

centro estão aí impressas, assim como as mudanças de estratégia de abordagem do

WHPD��GL¿FXOGDGHV�H�FDPLQKRV�HQFRQWUDGRV��,PDJLQR�H�GHVHMR�TXH�R�OHLWRU�QDV�SUy[L-

mas páginas seja capaz de acompanhar este processo de aprendizado e que com

isso possa partilhar de meus insights e descobertas. Como iniciei dizendo, não creio

que para os problemas postos haja formação ou indivíduo apto a prover respostas

satisfatórias, mas ainda assim podemos e devemos revolver o terreno.

Ao optar pela estruturação em artigos independentes, tomei o cuidado de pen-

sar introduções e considerações panorâmicas para cada capítulo, de modo que o as-

SHFWR�DPSOR�FRQWH[WXDO�GD�VXVWHQWDELOLGDGH�FRPR�GHVD¿R�FLYLOL]DWyULR�QmR�YLHVVH�D�VH�

perder. Em todo modo, eis o que considero a essência desta dissertação de mestrado:

todos os deslocamentos efetuados e as ponderações aqui trazidas apontam no sen-

tido da desconstrução da urbanização como, em primeiro lugar, oposição à natureza,

sobretudo intraurbanamente; e, também em primeiro lugar, dividindo o pódio, da urba-

nização como privilégio de poucos, ou a defesa do direito à cidade como mecanismo

de alcance da sustentabilidade urbana como colocada adiante.

Page 14: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

13

Ao conceber este trabalho, objetivamos lançar luz sobre questões tidas como

VHFXQGiULDV�QR�HTXDFLRQDPHQWR�WUDGLFLRQDO�GRV�SUREOHPDV�XUEDQRV�D�¿P�GH�OLEHUDU�RV�

modelos brasileiros de gestão urbana dos ciclos viciosos das soluções emergenciais,

que frequentemente acirram mazelas. Desta forma, procuramos inicialmente explorar

dois grandes terrenos de estudo: o da teoria de riscos, que pressupõe o enquadra-

mento do urbano enquanto sistema socioambiental particular; e a literatura, até então,

GLVSHUVD�HP�WRUQR�GRV�TXDOL¿FDGRUHV�cidades sustentáveis e sustentabilidade urbana.

No capítulo um, “Desastres naturais de sinergia antrópica: inundações urba-

nas”, preparamos o ingresso à discussão da complexidade urbana, contextualizando

a crise urbana como uma das muitas manifestações de uma crise civilizatória maior

em curso. A literatura de risco aqui mobilizada lança um alerta para a necessidade

de se expandir o foco de ação das políticas pontuais de condução da vida comum

nas cidades, tomando como exemplo as relações de sinergia desencadeadas pelo

WHUUHPRWR�GH������QD�7XUTXLD��$R�¿QDO��p�DSUHVHQWDGD�XPD�SURSRVWD�GH�FRQVLGHUDomR�

dos riscos de inundações nas cidades brasileiras, não como um problema em si, mas

como decorrência dos padrões de uso e ocupação do solo e do processo tradicional

de produção e reprodução do espaço urbano brasileiro.

Em “Cidades sustentáveis e as fronteiras do respeito”, o capítulo dois, procu-

ramos organizar as correntes de pensamento e os modelos de desenvolvimento ur-

bano ditos sustentáveis, confrontando-os com as principais frentes de debate afeitas

ao campo geral da sustentabilidade. Desse exercício de cotejamento, sugerimos o

conceito das fronteiras do respeito como princípio balizador a um sentido de susten-

WDELOLGDGH� SDVVtYHO� GH� DSURSULDomR� ORFDO� SHOR� IHQ{PHQR� XUEDQR��$V� QDUUDWLYDV� DTXL�

reunidas expõem as virtudes e as limitações dos modelos discutidos e indicam pontos

potenciais de ruptura com a fragilidade dos discursos e práticas de sustentabilidade

urbana, abrindo espaço para uma reorientação substancial futura dos sistemas socio-

ambientais urbanos.

� 3RU�¿P��QR� WHUFHLUR�FDStWXOR�� LQWLWXODGR� ³&LGDGH�GH�)RUWDOH]D�� LQVLQXDo}HV�GH�

risco e respeito”, percorremos os caminhos históricos de formação socioambiental da

Nota introdutória

Page 15: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

14

capital cearense como subsídio argumentativo à sustentação da tese de uma estru-

tura urbana atual em vias de quebra da sua resiliência ou dos elos fundamentais que

PDQWpP�R�IXQFLRQDPHQWR�VLVWrPLFR��2�OHLWRU�GHYHUi�SHUFHEHU�DTXL�XPD�PXGDQoD�GH�

abordagem quanto ao que vinha sendo pavimentado nos capítulos anteriores. A expli-

citação da necessidade de uma gestão equilibrada na distribuição das infraestruturas

e condições de vida por toda a cidade estava prevista para ser acessada segundo as

FRQWULEXLo}HV�GH�FDGD�XQLGDGH�XUEDQD��HVSDoRV�IRUPDLV�H�LQIRUPDLV��j�SURGXomR�GR�

ULVFR�GH�LQXQGDo}HV��'L¿FXOGDGHV�PHWRGROyJLFDV�H�FRP�D�REWHQomR�GRV�GDGRV�QHFHV-

sários à análise espacial conduziram-nos à procura de uma abordagem alternativa.

Foi então que optamos por construir o quadro problema em questão partindo da vio-

lência urbana como porta de acesso às demais fragilidades locais.

Assim, procuramos reunir um apanhado de pesquisas e compor um panorama

de dados secundários e narrativas capazes de satisfazer a duas formulações bá-

VLFDV�����De que forma os caminhos e escolhas de desenvolvimento em Fortaleza

terminaram por assumir um caráter perverso de produção e reprodução social ur-

banas?��H����A saturação atual dos espaços favoráveis à ocupação no sítio urbano,

aliado às tendências macrocefálicas da região metropolitana, explicam a promoção

das vulnerabilidades sociais e o acirramento das fragilidades ambientais?; Buscando

esclarecer esses pontos e tomando por base as evidências da conformação histórica

de Fortaleza, trazemos à tona nas páginas que seguem um retrato dos processos de

vulnerabilização ativa que sucederam e ainda sucedem a diversas capitais e cidades

brasileiras. A persistência desses processos, presentes na base das relações urbanas

e promotores de riscos diversos, segue minando as possibilidades presentes e futuras

GH�XPD�H[SHULrQFLD�XUEDQD�LGHQWL¿FDGD�FRP�XP�VHQWLGR�GH�VXVWHQWDELOLGDGH�HP�UHV-

peito a pessoas e a processos naturais fundamentais.

Page 16: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

CAPÍTULO 1 DESASTRES NATURAIS

DE SINERGIA

ANTRÓPICA

Page 17: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

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Capítulo 1. Desastres naturais de sinergia antrópica: inundações urbanas

Pablo Pimentel Pessoa

5(6802

Sob as bases interpretativas de uma epistemologia de riscos, empreendeu-se um

DMXVWH�GH�FODVVL¿FDomR� WLSROyJLFD�H�XP�DSURIXQGDPHQWR�VLVWrPLFR�GD�FRPSUHHQVmR�

corrente acerca das variáveis envolvidas na construção do risco de inundação urbana.

Uma proposta de arranjo entre elementos e variáveis componentes do sistema urbano

brasileiro é apresentada de forma genérica e discutida a partir do enfoque das relações

GH�ULVFR��3RU�¿P��RV�PRGHORV�UHSUHVHQWDWLYRV�DSUHVHQWDGRV�QHVWH�HVWXGR�UHVVDOWDP�

a contribuição ativa de vetores de promoção das vulnerabilidades social e ambiental,

tradicionalmente relegada a segundo plano na gestão dos riscos naturais.

1. Introdução: De limites a fronteiras

“Se a noite não tem fundo, o mar perde o valor

2SDFR�p�R�¿P�GR�PXQGR�SUD�TXDOTXHU�QDYHJDGRU

Que perde o oriente e entra em espirais

E topa pela frente um contingente que ele já deixou pra trás”

Meia-noite, Chico Buarque e Edu Lobo

A celeridade das mudanças, que moldou a singularidade histórica das

últimas décadas, semeou também os elementos que viriam a constituir o caráter da

PRGHUQLGDGH�GR�VpFXOR�����6HYFHQNR��������S�����FRPSDUD�HVWD�WUDMHWyULD�FLYLOL]DWyULD�

a um passeio de montanha-russa. Para ele, inovações tecnológicas transformam

profundamente o seio das sociedades, mas apenas o fazem de maneira consequente,

com a cautela de que o lado fraco da corda carece, quando ensejam o exercício da

crítica.

Acontece que a volta da virada do último século tem sido um trecho conturbado

Page 18: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

17

do passeio, uma espécie de loop prolongado. A velocidade da sucessão dos

fatos nesse estágio teria levado a um rompimento do diálogo entre a técnica e as

suas necessárias ponderações. Uma avaliação criteriosa do novo estaria assim

comprometida, na peculiaridade desse momento histórico, em função da vertigem

provocada pelo turbilhão do progresso.

Assim, o percurso de ascensão que principia na Europa do século 16, pelo

conhecimento e domínio de poderosas forças naturais, encontra o primeiro vale em

PHDGRV� GR� VpFXOR� ����$� 5HYROXomR� &LHQWt¿FR�7HFQROyJLFD� UHSUHVHQWD� XPD� TXHGD�

vertiginosa em que a velocidade dos processos em curso se acirra, deixando para trás

DV�UHIHUrQFLDV�GR�HVSDoR�H�GDV�FLUFXQVWkQFLDV�DQWHULRUHV��7RGD�H[SHULrQFLD��SRUpP��

por mais nauseante, é posta uma outra vez em perspectiva ante a intensidade dos

URGRSLRV�QD�HVSLUDO�TXH�VH�VHJXH��6(9&(1.2��������S������

Nesse ponto do percurso descortinam-se três problemas estruturais de cunho

epistemológico: o problema lógico, que remete à dimensão da complexidade; o problema

da desordem, que remete à dimensão da instabilidade; e o problema da incerteza, que

UHPHWH�j�GLPHQVmR�GD�LQWHUVXEMHWLYLGDGH��9DVFRQFHOORV��������S������H[SOLFD�TXH�HVVD�

tríade de questões apresenta-se inicialmente como problema no seio das ciências

duras, em especial, a Física. A saber: a questão da contradição onda/corpúsculo

�3ODQFN��(LQVWHLQ�H�%RKU���D�TXHVWmR�GD�GHVRUGHP�PROHFXODU��%ROW]PDQ��H�R�SULQFtSLR�

GD�LQFHUWH]D��+HLVHQEHUJ���$�DGPLVVmR�GD�FRPSOH[LGDGH�SHOD�)tVLFD��XPD�FLrQFLD�GH�

PHWLr�WLSLFDPHQWH�VLPSOL¿FDGRU�LQDXJXUD��D�SDUWLU�GD�VHJXQGD�PHWDGH�GR�VpFXOR�����

XP�QRYR�SDUDGLJPD�FLHQWt¿FR� IXQGDGR�QR�DEDQGRQR�GRV�SUHVVXSRVWRV� WUDGLFLRQDLV��

GD�VLPSOLFLGDGH��GD�HVWDELOLGDGH�H�GD�REMHWLYLGDGH�GR�XQLYHUVR��9DVFRQFHOORV��������S��

�����FKDPD�HVVD�HSLVWHPRORJLD�GHEXWDQWH�GH�3HQVDPHQWR�6LVWrPLFR�

Paralelamente às rupturas paradigmáticas nas ciências, transformações de

RXWUD� RUGHP� �SROtWLFD�� HFRQ{PLFD� H� FXOWXUDO�� DQXQFLDYDP�VH� FRP� D� HPHUJrQFLD� GD�

questão ambiental. Desastres notáveis como as centenas de mortes e doenças no

Japão provocadas pelo envenenamento por mercúrio entre os habitantes da Baía

GH�0LQDPDWD��LQYHVWLJDGR�HP��������H�R�UHODWR�GR�PDOHV�DVVRFLDGRV�DR�XVR�GR�''7�

GHVFULWRV�QR�OLYUR�3ULPDYHUD�6LOHQFLRVD�GH�5DFKHO�&DUVRQ��SXEOLFDGR�HP�������IRUDP�

conduzindo a comunidade global a um despertar para os riscos da modernidade

�%856=7<1��3(56(*21$��������S���������

� 2� UHVSDOGR� FLHQWt¿FR� GHVVDV� DPHDoDV� GHX�VH�� FRPR�PDUFR�� HP� ����� FRP�

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18

a publicação do primeiro relatório do Clube de Roma, o Limites do Crescimento

�0($'2:6�HW�DO����������8P�JUXSR�GH�SHVTXLVD�GR�0,7�²�Massachusetts Institute of

Technology�²�PRGHORX�DV�FRQVHTXrQFLDV�GR�FUHVFLPHQWR�HFRQ{PLFR�HP�SURMHo}HV�GH�

curvas de consumo para diversos recursos-chave e atividades essenciais, lançando

um alerta para o risco de colapso das sociedades se mantido, nas economias de

centro, e expandido para as periferias o nível de consumo dos países desenvolvidos.

Entre mudanças de postura política progressistas e retrógradas, desde o

lançamento do relatório, muitos estudos foram empreendidos, acordos e esforços de

FRRSHUDomR�LQWHUQDFLRQDO�¿UPDGRV��QR�HQWDQWR��HP�UHODomR�j�UHGXomR�DEVROXWD�H�DR�

controle efetivo dos processos causadores de impactos e promotores de riscos, foram

incipientes, até então, as conquistas alcançadas. Isso é o que aponta Rockström e

FRODERUDGRUHV���������HP�XP�HVWXGR�DFHUFD�GR�HVWDGR�GD�DUWH�GR�SODQHWD��6HJXQGR�

o grupo de trabalho do Stockholm Resilience Centre, quatro de nove fronteiras para

a existência segura da humanidade já tiveram seus níveis de alerta ultrapassados.

Esta mudança de tratamento do tema entre o primeiro relatório para o Clube de Roma

e este último estudo: de limites para fronteiras, atualiza a compreensão acerca das

capacidades de suporte da biosfera. Sabe-se hoje que as referidas raias de segurança

podem ser negligenciadas e transpostas sem que as consequências das rupturas

recaiam imediata ou diretamente sobre os principais transgressores. A incerteza que

paira sobre os efeitos deletérios da quebra de resiliência dos sistemas de suporte à

vida direciona o debate de limites para o âmbito da segurança em múltiplas dimensões.

É através desse prisma novo-paradigmático do pensamento sistêmico

e na perspectiva da busca de formas de uso e ocupação do espaço orientadas à

sustentabilidade que se pretende esmiuçar as relações-chave que suportam e criam

o universo de riscos a que as comunidades humanas modernas tem sido submetidas,

em especial nos centros urbanos. Dessa forma, espera-se que a complexidade

GRV� IDWRUHV� HQYROYLGRV� HP� XP� IHQ{PHQR� GDQRVR� GH� FDXVDV� � � DPEtJXDV� FRPR� DV�

inundações urbanas possa ser melhor acessado, gerido e reduzido em seu aspecto

FDWDVWUy¿FR��UHLWHUDGDV�YH]HV�WLGR�FRPR�IDWDOLGDGH�

Page 20: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

19

2. Sociedade e epistemologia dos riscos

“Oh! Deus, será que o senhor se zangou

(�Vy�SRU�LVVR�R�VRO�DUUHWLURX��ID]HQGR�FDLU�WRGD�D�FKXYD�TXH�Ki

Oh! Deus, se eu não rezei direito o senhor me perdoe

Eu acho que a culpa foi desse pobre que nem sabe fazer oração”

Súplica Cearense, Gordurinha e Nelinho

� +i�XPD�HVSHFL¿FLGDGH�HQWUDQKDGD�QRV�SURFHVVRV�H�HYHQWRV�TXH�VH�VXFHGHUDP�

no século 20 e que interessam a esse esforço de compreensão da natureza das

FDWiVWURIHV�XUEDQDV��6LP��RV�ULVFRV�VmR�IHQ{PHQRV�LQHUHQWHV�D�TXDOTXHU�DomR�KXPDQD��

&ROXPHOD�H�3OtQLR��R�9HOKR�DGYHUWLUDP�j�5RPD�GR�VpFXOR����D�UHVSHLWR�GD�DPHDoD�GH�

quebras de safra e erosão dos solos que a má gestão dos recursos à época traria. As

FLYLOL]Do}HV�GD�$PpULFD�&HQWUDO�FRODSVDUDP�QR�VpFXOR�����HP�IXQomR�GR�FUHVFLPHQWR�

populacional e da erosão dos solos. Em 1285, na Inglaterra foram apresentadas queixas

j�-XVWLoD�FRQWUD�IRUQRV�GH�FDO�TXH�LQIHFWDYDP�R�DU��2UGHQV�UHDLV�H�UHJXODPHQWDo}HV�GH�

�����H������WHQWDUDP�QRUPDWL]DU�R�GHVSHMR�GRV�UHVtGXRV�ORQGULQRV�SDUD�SHUtPHWURV�

FDGD�YH]�PDLV�GLVWDQWHV�GD�FLGDGH��+i�UHODWRV�GR�VpFXOR����GH�PRUWHV�GH�PDUXMRV�TXH�

FDtDP�QR�ULR�7kPLVD��R�PHVPR�RQGH�DQWHV�VH�RULHQWDYD�R�GHVSHMR�GR�OL[R���QmR�SRU�

afogamento, mas, sim, por intoxicação de vapores e gases tóxicos contidos no córrego

LQJOrV��2V�ULVFRV�GR�GHVHQYROYLPHQWR�LQGXVWULDO�FHUWDPHQWH�R�DFRPSDQKDUDP�GHVGH�

DV�SULPHLUDV�DWLYLGDGHV�IDEULV��ULVFRV�ODERUDLV��j�VD~GH��GD�SREUH]D�H�GH�TXDOL¿FDomR��

Da mesma forma, riscos naturais como erupções vulcânicas, queimadas, secas,

ataques de predadores, doenças transmissíveis por vetores, avalanches e terremotos

também não são preocupações originárias do século 20 ou deste (BECK, 2010, p. 26;

%856=7<1��3(56(*21$��������S������

� 2�PDUFR�GD�PRGHUQLGDGH�WDUGLD��TXH�OHYD�%HFN��������D�HQ[HUJDU�RV�FRQWRUQRV�

de uma nova sociabilidade, reside na globalidade do alcance dos riscos e ameaças

HYLGHQFLDGRV�QHVVH�SHUtRGR��)HQ{PHQRV�FRPSOH[RV�FRPR�R�VXUWR�GH�H[WLQo}HV�HP�

PDVVD�GR�$QWURSRFHQR��DV�PXGDQoDV�FOLPiWLFDV�H�D�DFLGL¿FDomR�GRV�RFHDQRV�S}HP�

em risco a vida no planeta sob todas as suas formas (BECK, 2010, p. 26; PRIMACK

� 52'5,*8(6�� ������ S�� ���� 52&.675g0� HW� DO��� ������� 2� GHVHQYROYLPHQWR� GH�

Page 21: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

20

VXUSUHHQGHQWHV� IRUoDV� SURGXWLYDV� TXtPLFDV� H� DW{PLFDV� WUDQVFHQGHX� RV� OLPLWHV� GDV�

IiEULFDV�H��PDLV�TXH� LVVR�� UHVVLJQL¿FRX�DV�QRo}HV�GH�HVSDoR�H� WHPSR�� HPSUHVD�H�

(VWDGR��OLPLWHV�GH�EORFRV�PLOLWDUHV��IURQWHLUDV�SROtWLFDV�H�JHRJUi¿FDV��'HVDVWUHV�FRPR�

os de Bophal, de Chernobyl e o constatado poder de extermínio das bombas nucleares

ODQoDGDV�HP�+LURVKLPD�H�1DJDVDNL�VLWXDP�QRV�DR�SDWDPDU�LQpGLWR�GR�SRGHU�GHVWUXWLYR�

DOFDQoDGR�SRU�HVVDV�LQRYDo}HV�WHFQROyJLFDV���%856=7<1��3(56(*21$��������S��

����

Não há necessariamente um consenso a respeito dos termos e conceitos usados

entre os estudiosos da ciência cindínica, termo cunhado ao longo de eventos promovidos

SHOD�81(6&2�HP������H������SDUD�UHXQLU�FRUUHQWHV�GH�HVWXGR�GH�ULVFR��'$*1,12��

-81,25���������'LDQWH�GHVWH�FHQiULR�HP�YLDV�GH�FRQVROLGDomR��WRPDUHPRV�DOJXPDV�

posições suleadoras baseadas nos pressupostos novo-paradigmáticos apresentados

SRU�9DVFRQFHOORV��������

Riscos, aqui, serão entendidos como percepções acerca de ameaças. Esta

noção pressupõe a existência de um ou vários entes (indivíduos, grupos, comunidades,

HFRVVLVWHPDV��SDLVDJHQV��FLGDGHV��HWF���VRE�VLWXDomR�GH�SHULJR��0DUDQGROD�-U��H�+RJDQ�

������� WUDoDP�R�SHU¿O� HYROXWLYR�GRV�HVWXGRV�FLQGtQLFRV�QDV� VHDUDV�GD�*HRJUD¿D�H�

GD�'HPRJUD¿D��2V�DXWRUHV� UHYROYHP�SHVTXLVDV�VHPLQDLV�VREUH�R� WHPD�H�DSRQWDP�

WHQGrQFLDV�GH�HQIRTXH�REMHWLYLVWDV��HSLULFLVWD�UHDOLVWDV��H�VXEMHWLYLVWDV��LGHDOLVWDV��FRPR�

referenciais ontológicos extremos. Conforme esta revisão, escolas tradicionalmente

afeitas ao estudo dos perigos naturais de causas tidas como essencialmente

ELRItVLFDV�GLUHFLRQDUDP�VHXV�HVWXGRV��QRV�¿QV�GRV�DQRV������H�������SDUD�R�WHUUHQR�

dos perigos sociais e tecnológicos. Embora os geógrafos, por exemplo, tenham,

desde o início, tratado de perigos em consideração à probabilidade de populações

KXPDQDV�VHUHP�DWLQJLGDV��D�UHD¿UPDomR�GHVVDV�SUHRFXSDo}HV�RULHQWDUDP��HP�WRGR�R�

FDPSR�GD�FLQGtQLFD��XPD�DWHQomR�PDLV�GLUHWD�D�DVSHFWRV�VRFLRHFRQ{PLFRV�H�FDXVDV�

eminentemente sociais.

Esta ênfase à dimensão humana nos estudos de riscos veio a promover o

aprofundamento das distinções entre vulnerabilidade, álea e risco:

Independentemente das palavras utilizadas, está, na prática, aceite, por quase

todos os que se dedicam a este tipo de estudos, que o risco é, então, o somatório de

algo que nada tem a ver com a vontade do homem (aleatório, acaso, casualidade ou

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21

SHULJRVLGDGH��� FRP�DOJR�TXH� UHVXOWD�GD�SUHVHQoD�GLUHFWD�RX� LQGLUHFWD�GR�KRPHP��D�

YXOQHUDELOLGDGH���5(%(/2��������S������

Áleas ou perigos são eventos prováveis, acontecimentos possíveis de natureza

GLYHUVD��WHFQROyJLFD��QDWXUDO��VRFLDO�RX�HFRQ{PLFD��$V�YXOQHUDELOLGDGHV�GL]HP�UHVSHLWR�

às condições de susceptibilidade do ente ameaçado. Elas guardam relações com

a magnitude do impacto de um perigo sobre um determinado alvo e, assim como o

ULVFR��HVWD�p�XPD�QRomR�SUREDELOtVWLFD��9(<5(7��������S�������&RUUHQWHV�PDLV�FUtWLFDV�

defendem o uso conceitual de vulnerabilizações em vez de vulnerabilidades, como

forma de rejeição à ideia de fragilidades intrínsecas aos entes e alvos considerados.

Referir-se às condições de susceptibilidade diferenciais, dessa forma, seria admitir

a existência de processos ativos de construção das vulnerabilidades (ACSELRAD,

�������

A medida da vulnerabilização é apreendida pela probabilidade de dano

�QtYHO�GH�H[SRVLomR��H�SHOD�SUHYLVmR�GD�FDSDFLGDGH�GH�UHVSRVWD�GR�DOYR�DR�HYHQWR�

GDQRVR��+i��QHVVH�HVSHFWUR��UHVSRVWDV�GH�FXUWR��PpGLR�H�ORQJR�SUD]R��'H�XP�ODGR��

ações emergenciais de caráter imediato, como evacuação de áreas e prestação de

socorro a vítimas e, de outro, adaptações biológicas e culturais que demandam de

décadas a séculos para se processar. As respostas de médio e longo prazos são

conhecidas como ajustamentos, que podem ser incidentais ou intencionais. Uma

atenção especial tem sido dada às adaptações intencionais, que abrem um panorama

DPSOR�GH�SRVVLELOLGDGHV�GH�HVFROKDV��FROHWLYDV�H�LQGLYLGXDLV��H�SURSRVWDV�GH�SROtWLFDV�

S~EOLFDV�TXH�HQYROYHP�LQWHUYHQomR��SODQHMDPHQWR�H�JHVWmR�FRP�¿QV�j�PLWLJDomR�GH�

SHUGDV�H�DXPHQWR�GD�VHJXUDQoD��0$5$1'2/$�-5���+2*$1��������

� 2XWUR�FRQFHLWR�HVVHQFLDO�DR�HVWXGR�GH�ULVFRV�p�R�GH�FDSDFLGDGH�GH�DEVRUomR��

Esta noção advém do conceito físico de resiliência, apropriado pela Ecologia e

DPSODPHQWH�GLIXQGLGR�QR�WUDWDPHQWR�GH�TXHVW}HV�DPELHQWDLV��7UDWD�VH�GD�TXDOLGDGH�

elástica e/ou plástica de absorção de um dado impacto e recuperação, sem que o

HVWUHVVH�VLJQL¿TXH�UXSWXUD�GRV�HORV�IXQGDPHQWDLV�TXH�LGHQWL¿FDP�R�VLVWHPD��$�TXHEUD�

GD�UHVLOLrQFLD�GH�XP�VLVWHPD��VHMD�HFROyJLFR��VRFLDO��SROtWLFR�RX�HFRQ{PLFR�SURGX]�XP�

novo arranjo, cujo funcionamento não se pode prever. Em abordagem de riscos, seja

qual for a dimensão e a escala de realidade trabalhada, estarão implicadas questões

de segurança e estabilidade sistêmicas, porque as propriedades de absorção de

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22

impactos pontuais dos sistemas mascaram as evidências da dilapidação gradual dos

seus elos fundamentais. Rupturas nesse nível frequentemente conduzem a mudanças

FDWDVWUy¿FDV��6&+())(5��:$/.(5.��������

A sociedade dos riscos estrutura-se no terreno movediço da ameaça civilizatória

indissolúvel. Considerando que cada elemento introduzido em um sistema gera novos

padrões de interação, a profusão de inovações combinada à síndrome do loop e às

OLPLWDo}HV�GD�KHUDQoD�FDUWHVLDQD� ODQoDP�GHVD¿RV�KRPpULFRV�jV�JHUDo}HV�DWXDLV�H�

IXWXUDV��2�SURFHVVR�GH�PRGHUQL]DomR�JXDUGD�HP�VL�HVWD�DPELJXLGDGH��QD�SURGXomR�

VRFLDO�GR�EHP�HVWDU�H�GD�ULTXH]D�JHVWD�VH�RV�ULVFRV��$VVLP��VREUHS}HP�VH�RV�FRQÀLWRV�

GLVWULEXWLYRV� GD� VRFLHGDGH� GD� HVFDVVH]� FRP� RV� FRQÀLWRV� GD� SURGXomR�� GH¿QLomR� H�

GLVWULEXLomR�GRV�ULVFRV�FLHQWt¿FR�WHFQROyJLFRV��%(&.��������S��������

A interpretação recursiva da sociedade de riscos possibilita a revelação do

caráter de autoameaça dos perigos da modernidade tardia. Ao apontar o cunho social

GD�SURGXomR�GRV�ULVFRV��%HFN��������UHLWHUD�D�QHFHVViULD�GHSHQGrQFLD�FRJQLWLYD�GRV�

riscos socialmente construídos. Ele afasta a possibilidade de tratamento objetivo

dos riscos produzidos e os distingue das ameaças sensorialmente perceptíveis. As

ameaças típicas desses tempos apresentam-se pulverizadas na teia de atividades

cotidianas e são invisíveis aos cinco sentidos humanos. Por isso, sua explicitação

GHPDQGD�D�PHGLDomR�GH�XP�UREXVWR�DSDUDWR�FLHQWt¿FR��

Daí decorre o papel central da ciência, antes de tudo, no rompimento com o

WRUSRU�JHUDO�DFDUUHWDGR�SHOR� WXUELOKmR�GH�SURJUHVVR��2V� UXPRV�GH�GHVHQYROYLPHQWR�

e suas consequências indesejáveis carecem da crítica para que se possa ponderar

DOWHUQDWLYDV�WHFQROyJLFDV��RUJDQL]DFLRQDLV��SROtWLFDV��FXOWXUDLV�H�HFRQ{PLFDV��3RU�PDLV�

TXH�D�FUtWLFD�SRVVD�YLU�GH�IRUD�GDV�VHDUDV�FLHQWt¿FDV��GHFLVLYRV�VHUmR�RV�HPEDWHV�QRV�

espaços de construção e legitimação do conhecimento, onde a ruptura com o senso

comum e com a noção de um sentido natural percorrido pela humanidade torna-se

possível.

Além disso, cabe à Academia reconhecer as limitações do saber técnico-

FLHQWt¿FR��PHVPR�QRV�DPELHQWHV�LQWHUGLVFLSOLQDUHV��GLDQWH�GDV�DPHDoDV�FLYLOL]DFLRQDLV�

crescentes. A experiência interdisciplinar tem apontando a necessidade de se fazer

conversar o técnico com o prático-popular, pois existe uma sociedade em franco

SURFHVVR�GH�FRPSOH[L¿FDomR�H�TXH��DWp�FHUWR�SRQWR��LPS}H�VHX�GLQDPLVPR�j�RUGHP�GH�

funcionamento dos sistemas naturais, recriando a natureza em natureza construída.

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23

A formação técnica verdadeiramente apta a contribuir com a construção das formas

seguras de uso e ocupação do espaço, portanto, deverá buscar, em toda nova

intervenção, suprir as lacunas do alcance disciplinar e por-se ativamente em abertura

DR�GLiORJR�GH�VDEHUHV�FLHQWt¿FRV�H�QmR�FLHQWt¿FRV��/())��������S��������

3. Tipos de risco, riscos urbanos e a natureza ambígua das inundações

� 2�HVIRUoR�GH�FRPSUHHQVmR�GRV� ULVFRV�QRV� OHYD�j�EXVFD�GH� WLSL¿FDo}HV�TXH�

possibilitem distinções de caráter prático em um universo amplo de ameaças. Ao

DSUHVHQWDU�D�WHVH�GD�VRFLHGDGH�GH�ULVFR��%HFN��������S������GLIHUHQFLD�RV�SHULJRV�H�DV�

inseguranças, dominantes em eras remotas, das incertezas de hoje. Sendo risco um

conceito moderno, convencionou-se chamar de “ameaças” as doenças, as guerras e

as epidemias de outrora. Por riscos, diferentemente, pressupõe-se decisões humanas

e futuros humanamente produzidos. Portanto, nem os desastres naturais, atribuídos a

YRQWDGHV�GLYLQDV�RX�jV�IRUoDV�GD�QDWXUH]D��DPHDoDV��QHP�DV�LQFHUWH]DV�FDOFXOiYHLV�H�

SDVVtYHLV�GH�DVVHJXUDomR�H�FRPSHQVDomR�PRQHWiULD��ULVFRV��GmR�FRQWD�GD�QDWXUH]D�

desta terceira categoria: a das “incertezas fabricadas”.

� 6mR�DV� LQFHUWH]DV�IDEULFDGDV��XP�WLSR�HVSHFt¿FR�GH�ULVFR��TXH�SURWDJRQL]DP�

o cenário de perigos da modernidade tardia. Elas também dependem de decisões

humanas, mas se impõem coletivamente, de forma tal que o indivíduo não pode

delas se esquivar. Não são externalizáveis, calculáveis, controláveis ou asseguráveis

privadamente, porque rompem com a experiência passada e com as respostas de

rotina.

� 2XWURV� DXWRUHV� WUDWDP� FRP� PHQRV� ULJRU� HVWD� TXHVWmR� KLVWyULFD� H� UHFRUUHP�

D�XPD� WD[RQRPLD�DWHPSRUDO� GRV� ULVFRV��'DJQLQR�H�&DUSL� -XQLRU� ������� GLVWLQJXHP�

quatro macroclasses: naturais, tecnológicos, ambientais e sociais. Estas categorias

não são excludentes, ao contrário, superpõem-se, mas virtualmente mostram-se úteis

à demarcação de grupos de naturezas diversas.

� 2V�riscos naturais��SRU�GH¿QLomR��HQJOREDP�LQFHUWH]DV�FXMD�FRQVWUXomR�VRFLDO�

tem origem em um processo físico pressentido, percebido e suportado por um dado

JUXSR��9H\UHW�H�0HVFKLQHW�GH�5LFKHPRQG��������S�����VXEGLYLGHP�RV�HP�de origem

litosférica e de origem hidroclimática�� 7HUUHPRWRV�� GHVPRURQDPHQWRV� GH� VROR� H�

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24

HUXSo}HV�YXOFkQLFDV�LGHQWL¿FDP�RV�SURFHVVRV�ItVLFRV�GR�SULPHLUR�JUXSR�H��QR�VHJXQGR��

engloba-se impactos decorrentes de ciclones, de tempestades, de nevascas intensas,

de chuvas fortes e de granizo ou das secas.

� 5HEHOR� �������S�� ���� UHIHUH�VH�GLUHWDPHQWH�D� ULVFRV� WHFW{QLFRV��PDJPiWLFRV��

climáticos, geomorfológicos e hidrológicos, um tratamento, portanto, menos hierárquico.

De uma forma ou de outra, a singularidade dos riscos naturais reside sobre as causas

físicas dessas áleas, que escapam largamente à intervenção humana. Sevá Filho

�������S������FKDPD�RV�riscos telúricos��UHODWLYR�j�7HUUD��H�DFUHVFHQWD�j�VXD�GHVFULomR�

um aspecto de globalidade e incontrolabilidade, que encerra a fragilidade humana

frente a estas áleas.

Figura 1.�&ODVVHV�GH�ULVFRV�QDWXUDLV�GH�DFRUGR�FRP�RV�UHFRUWHV�FRQFHLWXDLV�GH�9H\UHW�H�

0HVFKLQHW�GH�5LFKHPRQG��������H�5HEHOR��������

Acerca dos riscos sociais ou societais�� 9LHLOODUG�%DURQ� ������� S�� �����

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25

FKDPD�D�DWHQomR�SDUD�DV�LPSUHFLV}HV�UHFRUUHQWHV�QR�XVR�GHVVHV�FRQFHLWRV��+i�XPD�

polissemia intimamente associada à expressão “risco social” que decorre da própria

QRomR�GH�ULVFR��6H�GH¿QLPRV�ULVFR�FRPR�D�SHUFHSomR�GH�XP�RX�PDLV�VXMHLWRV�DFHUFD�

da ocorrência de uma ameaça e vulnerabilidade como uma demarcação necessária

da dimensão humana do risco e do alcance do dano, podemos dizer que toda espécie

de risco prevê consequências humanas.

Esta ambiguidade também, de certa forma, põe em xeque a categoria dos

riscos naturais, uma vez que não há risco livre de construção social. No entanto,

estas noções tem sido largamente utilizadas e requisitar uma nova terminologia seria

DFUHVFHU� XP� HOHPHQWR� FRPSOLFDGRU� D� XP� FRUSR� FLHQWt¿FR� DLQGD� HP� FRQVROLGDomR��

7DLV� UHGXQGkQFLDV�SRGHP��VHP�HPEDUJR��VHU�GLULPLGDV�D�SDUWLU�GD�H[SOLFLWDomR�GRV�

VLJQL¿FDGRV�SUHWHQGLGRV�DRV�WHUPRV�

Como foi dito, naturais seriam os tipos de riscos cujas causas escapam

ODUJDPHQWH�DR�FRQWUROH�KXPDQR��1HVWD�OLQKD��VmR�TXDOL¿FDGRV�FRPR�VRFLDLV�RV�ULVFRV�

TXH�DQWHFLSDP�D�SUREDELOLGDGH�GH�XP�DFRQWHFLPHQWR�FDWDVWUy¿FR�SDUD�D�FROHWLYLGDGH�

humana, de consequências nefastas para a sociedade, em sua totalidade ou em parte.

Portanto, considera-se a sociedade aqui referida como um todo cujo fundamento é a

VROLGDULHGDGH��2V�ULVFRV�VRFLDLV��GHVWD�IRUPD��GLVWLQJXHP�VH�GRV�GHPDLV�QmR�SRU�VXDV�

causas sociais, mas pelas consequências sociais de ameaças de origens quaisquer.

Quando o viver em conjunto ou a coesão social são alvo, está-se tratando dos riscos

sociais.

� +LVWRULFDPHQWH�� HVWH� FDPSR� GH� HVWXGR� WHP�VH� YROWDGR� j� LQYHVWLJDomR� GDV�

percepções de insegurança e da violência, duas ameças de vulto em ambientes

XUEDQRV�� 7UDWD�VH�� SRUWDQWR�� GH� ULVFRV� GH� GHOLQTXrQFLD�� GH� FULPLQDOLGDGH�� ULVFRV�

DVVRFLDGRV� DR� XVR� GH� GURJDV� H� DR� QDUFRWUi¿FR�� OLJDGRV� D� LGHRORJLDV� WRWDOLWiULDV�� j�

JXHUUD�H�DR�WHUURULVPR��9,(,//$5'�%$521��������S�������

Posto assim, entende-se porque os estudiosos dos riscos sociais subdividem-

os em exógenos e endógenos. Uma vez que um risco social é reconhecido pelas

suas consequências, em uma visão sociocêntrica, percebe-se as causas naturais

GH�XP�SHULJR�FRPR�IDWRUHV�H[WHUQRV��ULVFRV�H[yJHQRV��H�FDXVDV�GH�SHULJRV�DIHLWDV�

ao funcionamento das próprias sociedades como fatores de risco internos (riscos

HQGyJHQRV��

� $�GLYHUVLGDGH�GH�DERUGDJHQV�HP�FODVVL¿FDomR�GH�ULVFRV�p�HQRUPH�H��HP�QRVVD�

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26

tentativa de organização conceitual, situaremos horizontalmente as categorias de

interesse a esta narrativa, sem, no entanto, impedi-las de se comunicar. A interação

HQWUH�DV�FDWHJRULDV�GH�FODVVL¿FDomR�p�XP�SUHVVXSRVWR�SDUD�D�H[LVWrQFLD�GH�VLQHUJLD�

entre os riscos e este será nosso foco mais adiante.

Pinto ������� DSUHVHQWD� XP� WUDWDPHQWR� WD[RQ{PLFR� FXMDV� VXEFDWHJRULDV�

alocaremos sob o guarda-chuva dos riscos antropogênicos. Compõem este quadro

os riscos construídos, produtivos e culturais (o autor refere-se a riscos sociais,

PDV� IDUHPRV�XPD�DGDSWDomR�SDUD�HYLWDU� FRQÀLWR���'H� IRUPD�JHUDO�H��QDWXUDOPHQWH��

imprecisa, essa macroclasse de riscos contempla ameaças de causas essencialmente

DQWUySLFDV��WUDQVIRUPDo}HV�HFRQ{PLFDV�H�FXOWXUDLV�GD�SDLVDJHP�

A toda espécie de transformação e intervenção humana estruturante no espaço

QDWXUDO��HGL¿FDo}HV��FDQDOL]Do}HV�H�UHWL¿FDo}HV�GH�OHLWRV��SDYLPHQWDo}HV��H�LQVWDODo}HV�

de infraestrutura sanitária que ofereçam ameças aos habitantes por inadequações

ORFDFLRQDLV� H� WHFQROyJLFDV� HVWDUmR� DVVRFLDGRV� ULVFRV� FRQVWUXtGRV�� 7UDQVIRUPDo}HV�

provocadas por traços culturais que acarretem em perdas e danos às comunidades,

FRPR�SUiWLFDV�GH�TXHLPDGDV�H�VXSUHVVmR�GH�PDWDV�FLOLDUHV�SDUD�FXOWLYRV��FRQ¿JXUDP�

riscos culturais. Por último, serão concebidos como riscos produtivos aqueles

relativos a ameaças decorrentes de atividades industriais, situadas em quaisquer elos

da cadeia de produção.

� 2V� ULVFRV� SURGXWLYRV�� WDPEpP� FRQKHFLGRV� FRPR� LQGXVWULDLV� H� WHFQROyJLFRV��

HVWmR� OLJDGRV�D�HIHLWRV� LQGX]LGRV�SRU�HYHQWRV�GH�SROXLomR�FU{QLFD��OHQWD�H�GLIXVD��H�

acidental, a que estão sujeitas as atividades de produção, armazenagem e transporte

GH�PDWHULDLV�SHULJRVRV��9H\UHW�H�0HVFKLQHW�GH�5LFKHPRQG��������S������GLVWLQJXHP�

XP�JUXSR�HVSHFt¿FR�D�TXH�FKDPDP�GH�ULVFRV�LQGXVWULDLV�PDLRUHV��$V�DPHDoDV�IRQWHV�

desses riscos são: explosões, vazamentos de produtos tóxicos e incêndios. São riscos

GH�EDL[D�SUREDELOLGDGH�GH�RFRUUrQFLD��PDV�GH�HIHLWRV�JHUDOPHQWH�FDWDVWUy¿FRV��SRGHQGR�

UHSHUFXWLU� HP� DPHDoDV� j� FROHWLYLGDGH� �ULVFRV� VRFLDLV�� H� DRV� SRGHUHV� FRQVWLWXtGRV��

Apesar de merecerem uma atenção especial, os riscos nucleares constituem um

subtipo daquilo que nomearemos por risco produtivo maior.

Ao lado dos riscos antropogênicos, situaremos os riscos econômicos.

$�HVSHFL¿FLGDGH� GHVWH� JUXSR� UHVLGH� QD� SHUFHSomR� TXH� VH� WHP�GDV� FRQVHTXrQFLDV�

eventuais da gestão da escassez. As escolhas estratégicas de economias nacionais

H�GH�HPSUHVDV�H[SORUDGRUDV�GH�UHFXUVRV��UHQRYiYHLV�RX�QmR��VXMHLWDP�DV�SRSXODo}HV�

Page 28: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

27

dependentes destes bens a inseguranças em termos de provimento de necessidades

e, quanto mais indispensáveis forem os recursos, mais facilmente estas inseguranças

WHQGHP� D� WUDGX]LU�VH� HP� FRQÀLWRV� ODWHQWHV� RX� DEHUWRV�� ÈJXD�� WHUUD� H� SHWUyOHR� VmR�

H[HPSORV�GH�UHFXUVRV�VREUH�RV�TXDLV�FRQÀLWRV�LQWUD�H�LQWHUQDFLRQDLV�WHP�KLVWRULFDPHQWH�

orbitado. Aqui também estão incluídos os riscos de mercado, associados a decisões

de investimento e corte normalmente motivados pela concorrência. As possibilidades

de ganhos e perdas envolvidas nessas decisões dependem de uma rede intrincada de

DJHQWHV�HFRQ{PLFRV�H�RVFLODo}HV�GH�SUHoRV�TXH�IUHTXHQWHPHQWH�IRJHP�DR�FRQWUROH�

GR� WRPDGRU�GH�GHFLVmR��1mR� UDUR�RV� ULVFRV�HFRQ{PLFRV�HQJHQGUDP� ULVFRV� VRFLDLV��

Em agricultura, más escolhas podem concretizar-se em situações de insegurança

DOLPHQWDU�H��GH�XP�PRGR�JHUDO�SDUD�WRGRV�RV�VHWRUHV��HP�LQVHJXUDQoDV�¿QDQFHLUDV�

que retraem crédito e consumo, geram desemprego e distúrbios sistêmicos.

� 3DUD� R� GHVIHFKR� GHVWD� HPSUHLWDGD� FODVVL¿FDWyULD�� UHVHUYDPRV� GXDV� PHWD�

categorias, que não podem ser tratadas no mesmo plano das demais: o grupo dos

riscos à saúde e o dos riscos ambientais. Boa parte dos riscos apresentados

trazem, em alguma medida, prejuízos à integridade de indivíduos e de grupos sociais.

Sejam perdas materiais, mortes, traumas físicos, danos psicológicos ou doenças, em

última instância, as injúrias podem ser traduzidas em termos de saúde. As poluições,

responsáveis pela percepção dos riscos produtivos, contaminações de mananciais

e de alimentos, insalubridades múltiplas suportadas em ambientes de trabalho;

incivilidades, guerras e violência urbana no âmbito dos riscos sociais; desabamento

de construções e desbarrancamentos de solo em áreas íngremes relativos a riscos

construídos; e toda a fragilidade humana posta em xeque ante às catástrofes

associadas aos riscos naturais e telúricos são exemplos.

� 2V� ULVFRV� j� VD~GH� VmR� IUXWR� GH� XPD� UHÀH[mR� VHFXQGiULD� j� FRPSUHVVmR� GR�

espectro de riscos apresentado de diferentes causas e consequências. Como cada

organismo responde de modo muito singular a cada provação, para cada situação

FDEHUi� D� SHUJXQWD�� TXH� ULVFRV� j� VD~GH� GHFRUUHP� GR� ULVFR� SULPiULR� FRQVLGHUDGR"�

Somente conduzindo as análises de risco a esta última etapa, poderemos tomar

decisões consequentes sobre os graus de aceitabilidade das incertezas produzidas a

que nos expomos.

� 'HVWD�FRQVLGHUDomR�VREUH�R�UH¿QDPHQWR�GDV�DQiOLVHV�SRVVtYHLV�HP�WHUPRV�GH�

riscos de impacto ao bem-estar e à qualidade de vida das populações lançamos mão

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28

GR�FRQFHLWR�DEUDQJHQWH�GH�ULVFR�DPELHQWDO��3DUD�GH¿QLU�HVWD�FDWHJRULD��DSRLDPR�QRV�QR�

FRQFHLWR�GH�DPELHQWH�FRPR�FRQFHELGR�SRU�/HII���������SDUD�TXHP�HVWH�HQWH�VLJQL¿FD��

antes de tudo, o espaço de problematização das limitações das operações disjuntivas,

SURFHGLPHQWR�TXH�¿]HPRV�Ki�SRXFR�QR�HVIRUoR�GH�FRPSUHHQVmR�GLGiWLFD�GR�XQLYHUVR�

GH�FDWHJRULDV�GH�ULVFR��3DUD�9H\UHW�H�0HVFKLQHW�GH�5LFKHPRQG��������S������R�ULVFR�

ambiental é a percepção sobre ameças associadas entre riscos naturais e riscos

decorrentes de processos naturais agravados por ação humana e pela ocupação do

WHUULWyULR��1HVWH�WUDEDOKR��WRPDUHPRV�HVWD�GH¿QLomR�QXPD�SHUVSHFWLYD�PDLV�DPSOD��HP�

que o risco ambiental se fará presente sempre que se perceber padrões de interação

entre as categorias de risco primário apresentadas. A seguir esboçaremos algumas

destas possibilidades de interação.

4. Relações de risco

Uma subcategoria de riscos naturais não apresentada no panorama de

FODVVL¿FDomR� H[SRVWR� IRL�� QD� YHUGDGH�� UHVHUYDGD� SDUD� WUDWDPHQWR� j� SDUWH�� 6mR� RV�

chamados riscos naturais agravados ou provocados pelas atividades humanas.

9H\UHW�H�0HVFKLQHW�GH�5LFKHPRQG��������S������GH¿QHP�RV�FRPR�UHVXOWDQWHV�GH�iOHDV�

cujo impacto esperado torna-se mais dramático pelas formas praticadas de uso e

ocupação do território. Nesta classe, agrupam-se riscos associados: à suscetibilidade

D�HURV}HV��jV�GHVHUWL¿FDo}HV��jV�VHFDV��DRV�LQFrQGLRV�H�jV�SROXLo}HV�

� 2V� LQFrQGLRV� HP� iUHDV� YHUGHV� XUEDQDV�� ]RQDV� UXUDLV� H� ÀRUHVWDV� SURWHJLGDV�

UHVXOWDP�GD�IUHTXrQFLD�GH�DWLYLGDGHV�QDV�ÀRUHVWDV�H�HP�iUHDV�GR�HQWRUQR��$�LQVWDODomR�

de campings, casas de veraneio ou mesmo incursões esporádicas às matas, para

caça ou extração de recursos, por exemplo, constituem fatores de risco nessas áreas.

2V�ULVFRV�GH�LQFrQGLR�VmR�SRWHQFLDOL]DGRV�TXDQGR�HVWDV�LQFXUV}HV�VH�GmR�HP�SHUtRGRV�

de estiagem, a depender dos cuidados adotados pelos frequentadores e do respeito a

normas de segurança, além dos tipos e níveis de manejo dessas áreas.

De maneira similar, os riscos de poluição são aqui abordados sob o ponto de

vista dos agravos decorrentes de uso. Nesse caso, como resultado de variações

EUXVFDV�QR�QtYHO�GH�GHPDQGDV�LQÀLJLGDV�VREUH�GHWHUPLQDGD�LQIUDHVWUXWXUD�GH�VXSRUWH��

A inadequação de sistemas de abastecimento, transporte, esgotamento sanitário,

Page 30: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

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coleta, destinação e tratamento adequado de resíduos a altas demandas sazonais

OHYD�DR�FRODSVR�GHVVHV�VLVWHPDV�H�D�FRPSOLFDo}HV�GLYHUVDV��2�LQFUHPHQWR�GR�ÀX[R�

de visitas a sítios turísticos em períodos de alta estação ou em função de eventos

tradicionais de vulto, em geral, extrapola a capacidade de tratamento das águas

servidas. Este se torna, então, um quadro recorrente: com a vinda das chuvas, os

HÀXHQWHV�FRQGX]LGRV�HP�VLVWHPDV�GH�VHSDUDomR�LQFRPSOHWD�DOFDQoDP�FRP�IDFLOLGDGH�

RV� FXUVRV� G¶iJXD�� SROXLQGR�RV� �9(<5(7��0(6&+,1(7�'(�5,&+(021'�� ������ S��

����

� -i�D�DFHOHUDomR�GRV�SURFHVVRV�HURVLYRV��DV�VHFDV�H�DV�GHVHUWL¿FDo}HV�VmR�YLVWRV�

como processos de ocorrência natural em regiões áridas, semiáridas e subúmidas

secas, ainda que induzidos ou exacerbados pela ação humana. A importância da

SDUFHOD� GH� FRQWULEXLomR� DQWUySLFD� SDUD� HVWH� IHQ{PHQR� WHP� FUHVFLGR� PXLWR� FRP� R�

cenário de incertezas que anunciam as mudanças climáticas em curso:

Erros passados, políticas mal concebidas e práticas predatórias resultaram

em condições ambientais e sociais que não podem ser facilmente revertidas na

ausência de esforços de desenvolvimento substanciais e constantes e que requeiram

FUHVFHQWH�DSRLR�¿QDQFHLUR�QDFLRQDO�H�LQWHUQDFLRQDO��$�GHFUHVFHQWH�SURGXWLYLGDGH�GRV�

UHFXUVRV� QDWXUDLV� QDV�5HJL}HV�6HFDV�� D� SUHYDOrQFLD� GH� SREUH]D� H� DV� VLJQL¿FDQWHV�

desigualdades, bem como as fraquezas institucionais, devem piorar com o agravamento

GD�YDULDELOLGDGH�H�GD�PXGDQoD�GR�FOLPD���«��

Eventos climáticos extremos em diversas partes do mundo – recentes

enchentes no Paquistão, incêndios na Rússia e na Indonésia, tempestades de areia

QD�&KLQD��FRPSRUWDPHQWR�HUUiWLFR�GDV�PRQo}HV�QD�ËQGLD��VHFDV�H�Gp¿FLWV�DOLPHQWDUHV�

na África Sub-Sahariana, secas severas prolongadas e falta de água no norte do

México e nordeste do Brasil, entre outros eventos desastrosos em outros lugares –

enfatizam a urgência para que os governos se preparem para um clima incerto no

IXWXUR���'(&/$5$d­2�'(�)257$/(=$�������

Períodos de seca, assim como expressões pontuais de processos erosivos

SURGX]HP� HIHLWRV� GH� GHVHUWL¿FDomR��PDV� R� IHQ{PHQR� HP� VL� p� LGHQWL¿FDGR� TXDQGR�

VH�YHUL¿FD�WUDoRV�GH�LUUHYHUVLELOLGDGH�D�FXUWR�H�PpGLR�SUD]R�QDV�PXGDQoDV�RFRUULGDV�

QD� SDLVDJHP��3RU� GHVHUWL¿FDomR�� SRUWDQWR�� HQWHQGH�VH� XP� TXDGUR� DSURIXQGDGR� GH�

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degradação de solos e da cobertura vegetal com sensível comprometimento do

potencial biológico. As causas comuns são afeitas a má gestão dos recursos naturais

�XVR�H[FHVVLYR�GH�SDVWDJHQV��H[WUDomR�GH�PDGHLUD�H�RXWURV�UHFXUVRV�ÀRUHVWDLV�DOpP�

GR� ULWPR�GH� UHSRVLomR�H�PDQHMR� LQDGHTXDGR�GRV�VRORV���VLWXDomR�GH�GHVFRPSDVVR�

entre demanda e capacidade de provimento, a qual as secas prolongadas, muitas

vezes, prestam-se apenas a revelar.

Uma vez apresentados os riscos naturais agravados ou provocados por ação

humana, já podemos nos perguntar o que são relações de risco. Pois bem, a considerar

a natureza probabilística da noção de risco, investigações acerca de possíveis

LQWHUDo}HV�HQWUH�JUXSRV�EHP�GH¿QLGRV�GH�DPHDoDV�H�YXOQHUDELOLGDGHV�VLWXDGDV�HP�

categorias distintas daquelas propostas deverão voltar-se a um aprofundamento

sistêmico dos padrões de manifestação das crises.

A pergunta agora se apresenta de outra forma: em que medida uma classe de

riscos bem estabelecida tem suas formas de materialização em crise antecipadas,

DJUDYDGDV��DQXODGDV��DPRUWHFLGDV�RX�VXFHGLGDV��FRPR�LJQLomR�GH�GLVSDUR��SRU�RXWUD�

FODVVH�GH�ULVFR"

A medida que um padrão de ameças, efeitos, situações de exposição e

vulnerabilidades torna-se bem compreendido, naturalmente funda-se em torno desses

fatores uma nova classe de risco e, daí em diante, seus elementos de constituição

SDVVDP�D�VHU�SHUFHELGRV�VHJXQGR�D�HVWUXWXUD�GH�IXQFLRQDPHQWR�HVWXGDGD��9HUL¿TXHPRV�

como esse processo pode interferir na apreensão e na consideração consequente de

uma situação de risco mais próxima da realidade complexa.

� 1R�DQR�GH�������D�FLGDGH�WXUFD�GH�,]PLW��GLVWDQWH�����NP�GH�,VWDPEXO��SUHVHQFLRX�

XP�WHUUHPRWR�GH�PDJQLWXGH������2�DEDOR�VtVPLFR�SURYRFRX�HQWUH����H����PLO�PRUWHV��

GHPDQGRX�DMXGD�LQWHUQDFLRQDO�H�H[S{V�D�IUDJLOLGDGH�H�D�DXVrQFLD�GH�PHFDQLVPRV�GH�

SUHYHQomR�D�LPSDFWRV�GH�WUHPRUHV�QD�7XUTXLD��9,(,//$5'�%$521��������S�������

À sequência da catástrofe, mudanças foram anunciadas sob diversas frentes.

Notadamente, um discurso de combate aos efeitos sociais dos terremotos ganhou

destaque na mídia como forma de prevenção a riscos sociais e urbanos, pois o quadro

anterior de carências de prevenção abririam espaço para perda de representatividade

política com vistas a revoltas e a risco de intervenção autocrática.

Análises mais críticas das medidas adotadas no pós-crise revelaram o

SDUDGR[R� HQWUH� R� GLVFXUVR� KHJHP{QLFR� GH� UHHVWUXWXUDomR� SURIHULGR� H� R� QtYHO� GH�

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31

comprometimento com o enfrentamento da natureza complexa dos riscos urbanos a

TXH�VH�GL]LD�FRPEDWHU��3e5286(���������

De modo geral, em Istambul, foram os bairros populares, cujas construções

LQIRUPDLV�HUJXHUDP�VH�DOKHLDV�jV�QRUPDV�GH�HGL¿FDomR�SDUDVVtVPLFD��RV�PDLV�DIHWDGRV��

Como de praxe, setores historicamente vulnerabilizados receberam as coronhadas

mais fortes da crise e são também aqueles que se veem mais desprovidos de meios

para se reerguer e ressarcir suas perdas. Foi assim, que inúmeras associações de

EDLUUR��GH�SURWHomR�FLYLO�H�GH�DPSDUR�D�YtWLPDV�VXUJLUDP�RX�VH�¿UPDUDP�QR�SyV�FULVH�

Parte dessas associações não se fundaram de modo espontâneo, foram,

na verdade, criadas pela prefeitura. Propagava-se, paralelamente, a ideia de que a

UHHVWUXWXUDomR� GH� XPD�7XUTXLD� DEDODGD� GDYD�VH� FRP� H¿FLrQFLD� GHYLGR� DR� HVIRUoR�

FRPXP�GD�VRFLHGDGH�H�HP�QRPH�GD�VROLGDULHGDGH�D�TXH�R�VLVPR�WHULD�SHUPLWLGR�DÀRUDU��

No mesmo ano, porém, o vetor de crescimento urbano de Istambul desviou-se para

as periferias mais seguras da cidade onde se formaram comunidades fechadas. Entre

os planos de governo, consta a construção de unidades-piloto de 25 mil habitantes

em setores distantes das zonas de risco, com subsídios para atrativos de indústrias e

VHUYLoRV��9,(,//$5'�%$521��������S�������

Lugares que antes eram considerados bons bairros caíram em descrédito por

virem-se açambarcados pelas raias delimitadoras de risco. Em 2002, existiam mais

de 220 comunidades fechadas em Istambul e o debate inicial sobre as formas de

viver em conjunto na cidade havia cedido espaço para o enfrentamento da violência

H�j�SURSDJDomR�GR�GLVFXUVR�GR�PHGR��2XWURV�EDLUURV�SHULIpULFRV�DSURIXQGDUDP�VHXV�

estigmas e seus moradores passaram a sofrer com a discriminação social e com a

GL¿FXOGDGH�GH�DUUDQMDU�WUDEDOKR��

Sob essa perspectiva, a manifestação do risco sísmico, a ocorrência do

terremoto e a consideração das chances de ocorrências futuras deram origem a um

furor de resposta à situação de desamparo geral, que, por seu turno, engendrou

especulações sobre riscos sociais e urbanos. A médio prazo, as ações respaldadas

por esse discurso de prevenção aprofundaram um quadro de fragmentação urbana e

divisão social já presente na Istambul de antes do terremoto, mas que de ali em diante

assumia os contornos e as proporções de um temerário estado de risco urbano maior.

Entendemos que esta ponderação sobre as relações de risco no caso de Istambul

só foi possível graças a um acompanhamento sistêmico e atento dos desdobramentos

Page 33: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

32

históricos do caso. De outro modo, inadvertidamente, a mesma questão poderia

ser analisada do modo tradicional, em duas frentes paralelas e independentes de

estudo: uma sobre os riscos naturais e outra sobre os riscos sociais e urbanos, pois

FDGD�GLPHQVmR�SRVVXL�HOHPHQWRV�R�VX¿FLHQWH�D�FRQVLGHUDU�HP�VXD�HVWULWD�VHDUD��VHP�

que necessariamente assumam o problema como um mesmo problema de ordem

complexa e, portanto, digno de mútua ou múltipla consideração.

� 2�TXH�JRVWDUtDPRV�GH�UHVVDOWDU�QR�FDVR�GR�VLVPR�GH������GL]�UHVSHLWR�j�IRUPD�

como a segregação socioespacial se acirra e se coloca de fundo a medida que a

temática dos riscos naturais é apropriada como instrumento político de mediação dos

kQLPRV�H�GH�FRQWUROH�GH�tQGLFHV�GH�VDWLVIDomR�GR�HOHLWRUDGR��2�PHVPR��YDOH�SDUD�D�

rQIDVH�PLGLiWLFD�QD�YLROrQFLD�XUEDQD�FRPR�FDXVD�H�¿P�HP�VL��1HVVH�VHQWLGR��9LHLOODUG�

Baron pontua:

As origens das catástrofes - cujas causas e consequências convêm elucidar

para que melhor se conheçam os riscos incorridos pelo homem – são múltiplas e

frequentemente interdependentes. Uma primeira abordagem mostra que as cadeias

causais que as produzem se tornam mais complexas com o tempo e com o crescimento

HFRQ{PLFR��H�TXH�R�WHUULWyULR�p�GLUHWDPHQWH�DIHWDGR�FRPR�VXSRUWH�GRV�ULVFRV�H�OXJDU�

PDLRU�GH�LQWHUDo}HV���9,(,//$5'�%$521��������S������

Portanto, se admitimos a complexidade dessas questões, devemos também

rejeitar atalhos travestidos de soluções, que, quase sempre, aprofundam os

problemas a que se propõem resolver. A cidade, ou melhor, o ambiente urbano, é o

lugar de excelência das sobreposições e das interações de risco, porque concentra

uma ampla diversidade de feições paisagísticas, um variado leque de demandas de

uso do solo e de projetos de desenvolvimento em disputa, além dos inúmeros alvos

e vulnerabilidades distribuídos no espaço. É nessa linha que pretendemos avaliar

a profundidade das cadeias causais relativas aos riscos de inundações urbanas e

deslocar o lugar comum de tratamento corrente no âmbito dos riscos naturais.

Page 34: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

33

���,QXQGDo}HV��HVWUXWXUDQWHV�FOLPiWLFRV��¿VLRJUi¿FRV�H�VRFLRHFRQ{PLFRV

Nesta seção, caracterizaremos as relações sistêmicas que permeiam a

problemática das inundações urbanas segundo o método de modelagem diagramática

SURSRVWR�SRU�%HUoRW��������S�������$�DXWRUD�UHVVDOWD�R�SRWHQFLDO�GDV�UHSUHVHQWDo}HV�

JUi¿FDV� QR� H[HUFtFLR� GH� HODERUDomR� H� UHHODERUDomR� GH� SUREOHPiWLFDV� GH� SHVTXLVD�

sobre sistemas socioambientais.

� 2V� PRGHORV� GH� UHSUHVHQWDomR� GLDJUDPiWLFD� QHVWD� SURSRVWD� GHYHP� VHU�

construídos com elementos que não se repetem no sistema, representados por

SDODYUDV�RX�H[SUHVV}HV�FXUWDV��VXEVWDQWLYRV��VHPSUH�TXH�SRVVtYHO��QmR�DGMHWLYDGRV���

2V� HOHPHQWRV� GHYHUmR� VHU� VXEGLYLGLGRV� HP� FDWHJRULDV� FRPXQV� DRV� GLDJUDPDV�

WUDEDOKDGRV�H�VXDV�UHODo}HV�UHSUHVHQWDGDV�SRU�VHWDV��7UDoRV�FRQWtQXRV�VLPEROL]DP�

UHODo}HV�GLUHWDV��SRVLWLYDV��H�SRQWLOKDGRV��DV�UHODo}HV�LQYHUVDV��QHJDWLYDV���3RU�¿P��

GDU�VH�i�GHVWDTXH�DRV�FLFORV�GH�UHWURDOLPHQWDomR�LGHQWL¿FDGRV��&LFORV�GH�DPSOL¿FDomR�

virão em azul e ciclos de estabilização em setas vermelhas. Esta última fase, porém,

não será aqui discutida por fugir ao escopo do artigo.

Como ponto de partida para a construção do diagrama, foram destacados

três processos centrais na produção do espaço urbano: a especulação imobiliária,

a exploração do trabalho e a espoliação urbana. Este último conceito foi cunhado

SRU�.RZDULFN��������H�WUDWD�VH�GH�XP�VRPDWyULR�GH�FRQGLo}HV�TXH�GL]HP�UHVSHLWR�j�

LQH[LVWrQFLD�RX�j�SUHFDULHGDGH�GH�VHUYLoRV�GH�FRQVXPR�FROHWLYR��VHUYLoRV�XUEDQRV��

que se mostram socialmente necessários à reprodução dos trabalhadores.

� 2� REMHWLYR� JHUDO� GRV� GLDJUDPDV� FRQVWUXtGRV� p� UHSUHVHQWDU� JHQHULFDPHQWH� R��

padrão de formação e expansão do sistema urbano brasileiro, de forma que se permita

relacionar o mosaico de diferentes usos e ocupações do solo à capacidade interna de

SURYLVmR�GH�VHUYLoRV�DPELHQWDLV��D�VDEHU�R�VHUYLoR�GH�GUHQDJHP�KtGULFD�VXSHU¿FLDO�

(regulação de inundações��QR�GLDJUDPD���(VWD�GLQkPLFD�p�SUREOHPDWL]DGD�FRP�EDVH�

na tendência de aumento crescente das porções de superfície impermeabilizada do

VROR� XUEDQR�� 4XDQWR� PDLV� DYDQoD� R� ELQ{PLR� HGL¿FDomR�SDYLPHQWDomR� VHJXQGR� R�

modelo clássico de urbanização higienista, ou seja, suprimindo a cobertura vegetal e

FRPSDFWDQGR�R�VROR��PHQRU�D�FDSDFLGDGH�GH�LQ¿OWUDomR�GDV�iJXDV�SOXYLDLV�H�PDLRU�H�

PDLV�UiSLGR�R�DF~PXOR�QRV�H[XOWyULRV��LQWHQVL¿FDQGR�DV�FKHLDV�H�IDYRUHFHQGR�HYHQWRV�

de enchentes e inundações nas cidades.

Page 35: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

34

� $�LGHQWL¿FDomR�GH�iUHDV�GH�RFRUUrQFLD�GH�HQFKHQWHV�H�LQXQGDo}HV��WDLV�FRPR�

DV� ]RQDV� GH� ULVFR� VtVPLFR� HP� ,VWDPEXO�� WHP� VLJQL¿FDGR� GUDPiWLFR� HP� XP� HVSDoR�

XUEDQR�LQWHQVDPHQWH�GLVSXWDGR��2�FUHVFLPHQWR�GHVRUGHQDGR�GDV�FLGDGHV�DWUDYpV�GD�

ocupação de áreas problemáticas (encostas de morros e planícies de inundação às

PDUJHQV�GH�ULRV�H� ODJRDV��JHUD�YHUWLJLQRVD�GHJUDGDomR�GR�PHLR�DPELHQWH�H�H[S}H�

VHXV�PRUDGRUHV��HP�JHUDO��JUXSRV�GH�EDL[D� UHQGD��D�DPHDoDV�GLYHUVDV��2�FDUiWHU�

irregular dessas ocupações e a recorrente negligência por parte do poder público

com os grupos que as habitam imprimem com frequência padrões de assentamentos

insalubres, expondo esses grupos a sério risco ambiental.

Nos diagramas (Figuras 2, 3, 4 e 5���SURFXUDPRV�GHPRQVWUDU�D�GLQkPLFD�GH�

RFXSDomR�GRV�HVSDoRV�GH�H[FHomR�H�R�FDUiWHU�FUtWLFR�GRV�HOHPHQWRV�TXH�LQÀXHQFLDP�D�

FDSDFLGDGH�GH�¿[DomR�GRV�WUDEDOKDGRUHV�HP�VXDV�PRUDGLDV��2�FXVWR�GH�PDQXWHQomR�

de serviços urbanos por parte do poder público guarda relação profunda com o

controle que esse mesmo poder exerce sobre o mercado de trabalho (evitando a

GHSUHFLDomR�GRV�VDOiULRV��H�VREUH�R�PHUFDGR� LPRELOLiULR� �UHJXODQGR�D�HVSHFXODomR�

imobiliária e o Laissez faire que conduz ao caos urbano e ao comprometimento dos

VHUYLoRV�DPELHQWDLV�ORFDLV����

� 'HVVD� IRUPD�� ¿FDP� H[SRVWDV� DV� GLPHQV}HV� VRFLDO�� HFRQ{PLFD� H� DPELHQWDO�

GR�FRQÀLWR�VXEMDFHQWH�DR�SURFHVVR�GH�SURGXomR�GR�HVSDoR�LQWUDXUEDQR�H�R�DOHUWD�j�

tendência de especialização da metrópole como centros de consumo de recursos e

processos ecológicos dos ecossistemas extraurbanos. Uma vez comprometidos os

processos internos de sustentação à vida, quando não respeitados os limites e a

capacidade de suporte do sistema, tem início um efeito cascata de degradação da

TXDOLGDGH�GH�YLGD�XUEDQD�H�R�TXDGUR�GH�GHVLJXDOGDGH�VRFLRHFRQ{PLFD�ID]�FRP�TXH�

os prejuízos sejam sentidos também de forma desigual.

Page 36: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

35

Figura 2. Elementos e variáveis envolvidas da produção social do risco de inundação em um sistema urbano brasileiro genérico.

Elaborado pelo autor.

Page 37: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

36

Figura 3.�,QWHUUHODo}HV�GLUHWDV��FRQWtQXDV��H�LQYHUVDV��SRQWLOKDGDV��HQWUH�FRPSRQHQWHV�GH�XP�VLVWHPD�XUEDQR�EUDVLOHLUR�JHQpULFR�

Elaborado pelo autor

Page 38: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

37

Figura 4. Áreas do conhecimento envolvidas da construção do risco de inundação urbana, indicadoras de complexidade.

Elaborado pelo autor.

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38

Figura 5.�5HFRUWH��HP�D]XO��HYLGHQFLDQGR�R�HQTXDGUDPHQWR�WUDGLFLRQDO�GDV�LQXQGDo}HV�FRPR�ULVFRV�QDWXUDLV��(ODERUDGR�SHOR�DXWRU�

Page 40: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

39

���&RQVLGHUDo}HV�¿QDLV��(P�EXVFD�GD�UHVLOLrQFLD�GR�VLVWHPD�XUEDQR

Como haviamos postulado, riscos são construções sociais passíveis de

mediação em todos os níveis. Nesse sentido, o primeiro movimento de resposta a

TXDOTXHU�HYLGrQFLD�QRYD�GH�DPHDoD�SRGH�VHU�FRPSDUDGR�D�XP�DWR�UHÀH[R��D�UHMHLomR�

ou a negação. Isso ocorre por um motivo simples: a inexistência de um risco é

pressuposta até que se prove o contrário. Segue-se, neste caso, o princípio in dubio

pro progresso��TXH�VLJQL¿FD��QD�G~YLGD��GHL[D�HVWDU��%(&.��������S������

Situações de ameaça de forte dependência cognitiva, como as que temos nos

reportado, precisam romper com o senso comum de um estado de segurança e nascer

FLHQWL¿FDPHQWH��$PHDoDV�GLWDV�VLVWrPLFDV�JR]DP�DLQGD�GH�XP�FHQiULR�GH�SXOYHUL]DomR�

das responsabilidades devido à alta diferenciação da divisão do trabalho em meio a

uma multiplicidade de atores, lugares e condições. As causas e os culpados diluem-se

numa cumplicidade e numa irresponsabilidade geral, como se não houvesse escolha

a um curso de destino natural. Desse modo, sob o véu da complexidade sistêmica

e da moral corporativa, pode-se fazer algo danoso e continuar a fazê-lo sem que se

tenha de responder pessoalmente pelas consequências desses feitos.

� $LQGD�TXH�D�IRUPD�GH�DSUHHQVmR�VRFLDO�GH�XPD�FRQVWUXomR�FLHQWt¿FD�HVFDSH�

largamente à solidez metodológica dessa construção e funcione numa dinâmica

própria de divulgação e mediação junto à massa da opinião pública, assumimos a

UHOHYkQFLD�GR�SDSHO�FLHQWt¿FR�GH�DSURIXQGDU�VXSHU¿FLDOLGDGHV�H�DIDVWDU� WUDWDPHQWRV�

VLPSOL¿FDGRUHV�TXH�VRPEUHLDP�FDXVDOLGDGHV�FRPSOH[DV��$LQGD�TXH�QmR�KDMD�JDUDQWLD�

GD� SHUPHDELOLGDGH� H� GR� DFHLWH� GD� VRFLHGDGH� RX�PHVPR� GRV� SDUHV� FLHQWt¿FRV� GRV�

postulados sobre relações de risco de inundações urbanas, compreendemos que, sem

isso, as sociedades estão condenadas às vicissitudes cíclicas das soluções pontuais

TXH��SRU�YH]HV��DFLUUDP�SUREOHPDV��2X��QD�PHWiIRUD�GH�6HYFHQNR��FRQGHQDGDV�DR�

SDVVHLR�QD�HVSLUDO�VHP�¿P�

� $VVLP�� UHDOL]DPRV� RSHUDo}HV� GH� DMXVWH� H� UH¿QDPHQWR� GDV� FDXVDOLGDGHV� HP�

torno dos fatores que contribuem para a construção do quadro genérico de risco

GH� LQXQGDomR� QRV� VLVWHPDV� XUEDQRV� EUDVLOHLURV�� )L]HPRV� LVWR� D� ¿P� GH� YLDELOL]DU� D�

consideração efetiva das consequências de implementação do modelo tradicional de

uso e ocupação do solo urbano à vida e ao bem-estar da totalidade dos habitantes,

com destaque para os grupos historicamente vulnerabilizados.

Page 41: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

40

Referências

$&6(/5$'��+��9XOQHUDELOLGDGH�DPELHQWDO��SURFHVVRV�H�UHODo}HV��&RPXQLFDomR�DR�,,�(QFRQWUR�1DFLRQDO�

GH�3URGXWRUHV�H�8VXiULRV�GH�,QIRUPDo}HV�6RFLDLV��(FRQ{PLFDV�H�7HUULWRULDLV��),%*(��5LR�GH�-DQHLUR��

2006.

%(&.��8��6RFLHGDGH�GH�ULVFR��UXPR�D�XPD�RXWUD�PRGHUQLGDGH��6mR�3DXOR��(G������������

%(5d27��0��'(�$��8PD�TXHVWmR�GH�SHUVSHFWLYD��RV�HQIRTXHV�HVSHFLDOLVWD�H� ORFDO�VREUH�R�FRQWH[WR�

GH�VD~GH�H�DPELHQWH�QD�UHJLmR�GR�PpGLR�7DSDMyV��$PD]{QLD�EUDVLOHLUD��>V�O�@�8QLYHUVLGDGH�GH�%UDVtOLD��

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%856=7<1��0���3(56(*21$��0��$�JUDQGH� WUDQVIRUPDomR�DPELHQWDO�� XPD�FURQRORJLD�GD�GLDOpWLFD�

homem-natureza. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.

'$*1,12��5��'(�6���&$53,�-81,25��6��5LVFR�DPELHQWDO��FRQFHLWRV�H�DSOLFDo}HV��&/,0(3���&OLPDWRORJLD�

H�(VWXGRV�GD�3DLVDJHP��Y�����Q�����������

'(&/$5$d­2�'(�)257$/(=$��5HJL}HV�VHFDV��XP�FKDPDGR�SDUD�DomR��'LVSRQtYHO�HP���KWWS���ZZZ�

LFLG���RUJ�"ORFDOH SWP FRQWHXGRD GHFODUDWLRQBIRUWDOH]D!��$FHVVR�HP�����VHW��������

.2:$5,&.��/��(VFULWRV�XUEDQRV�����HG��6mR�3DXOR��(G������������

/())��(��(SLVWHPRORJLD�$PELHQWDO��6mR�3DXOR��&RUWH]��������

0$5$1'2/$�-5���(���+2*$1��'��-��9XOQHUDELOLGDGHV�H�ULVFRV��HQWUH�JHRJUD¿D�H�GHPRJUD¿D��5HYLVWD�

%UDVLOHLUD�GH�(VWXGRV�3RSXODFLRQDLV��Y������Q�����S����±����������

0($'2:6��'��+��HW�DO��/LPLWHV�GR�FUHVFLPHQWR��XP�UHODWyULR�SDUD�R�SURMHWR�GR�&OXEH�GH�5RPD�VREUH�R�

GLOHPD�GD�KXPDQLGDGH��6mR�3DXOR��3HUVSHFWLYD��������

3,172��$��/��5LVFRV�QDWXUDLV�H�FDUWD�GH� ULVFRV�DPELHQWDLV��XV�HVWXGR�GH�FDVR�GD�EDFLD�GR�FyUUHJR�

)XQGR��$TXLGDXDQD�06��&OLPDWRORJLD�H�(VWXGRV�GD�3DLVDJHP��Y�����Q�����������

35,0$&.��5��%���52'5,*8(6��(��%LRORJLD�GD�FRQVHUYDomR��/RQGULQD��(GLWRUD�3ODQWD��������

5(%(/2��)��5LVFRV�QDWXUDLV�H�DFomR�DQWUySLFD��HVWXGRV�H�UHÀH[}HV��&RLPEUD��,PSUHQVD�GD�8QLYHUVLGDGH�

GH�&RLPEUD��������

52&.675g0��-��HW�DO��3ODQHWDU\�ERXQGDULHV��H[SORULQJ�WKH�VDIH�RSHUDWLQJ�VSDFH�IRU�KXPDQLW\��(FRORJ\�

DQG�«��������

6&+())(5��0���:$/.(5.��%��&DWDVWURSKLF�VKLIWV�LQ�HFRV\VWHPV��Y�������Q��2FWREHU��������

6(9�),/+2��$��2��1R�OLPLWH�GRV�ULVFRV�H�GD�GRPLQDomR��D�SROLWL]DomR�GRV�LQYHVWLPHQWRV�LQGXVWULDLV�GH�

JUDQGH�SRUWH��������&DPSLQDV��63��8QLYHUVLGDGH�(VWDGXDO�GH�&DPSLQDV�

6(9&(1.2��1��$�FRUULGD�SDUD�R�VpFXOR�;;,��QR�ORRS�GD�PRQWDQKD�UXVVD���a. ed. São Paulo: Companhia

das Letras, 2001.

Page 42: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

41

9$6&21&(//26��0��-��(��'(��3HQVDPHQWR�VLVWrPLFR��2�QRYR�SDUDGLJPD�GD�FLrQFLD��&DPSLQDV��63��

Papirus, 2002.

9(<5(7��<��2V�ULVFRV��R�KRPHP�FRPR�DJUHVVRU�H�YtWLPD�GR�PHLR�DPELHQWH�����HG��6mR�3DXOR��&RQWH[WR��

������

9(<5(7��<���0(6&+,1(7�'(�5,&+(021'��1��2V� WLSRV�GH� ULVFR�� ,Q��2V� ULVFRV�����HG��6mR�3DXOR��

&RQWH[WR��������

9,(,//$5'�%$521��+��2V�ULVFRV�VRFLDLV��,Q��2V�ULVFRV�����HG��6mR�3DXOR��&RQWH[WR��������

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CAPÍTULO 2 Cidades sustentáveis

E as Fronteiras

Do Respeito

Page 44: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

43

Capítulo 2. Cidades sustentáveis e as fronteiras do respeito

Pablo Pimentel Pessoa

5(6802

As principais abordagens de desenvolvimento urbano sustentável (cidades corrigidas,

redesenhadas e autônomas) foram discutidas em cotejamento à diversidade de

discursos e embates situados ao campo amplo da sustentabilidade. Um breve panorama

GD�HPHUJrQFLD�GR�IHQ{PHQR�XUEDQR�HP�PHLR�j�KLVWyULD�GDV�FLGDGHV�p�DSUHVHQWDGR�

como subsídio à defesa da retomada de funções negligenciadas pela consagração da

racionalidade instrumental propagandeada pelo urbanismo progressista do século 20.

As possibilidades de superação dos gargalos que atravancam a transição da sociedade

XUEDQD�D�XPD�UHODomR�VLVWrPLFD�GH�EDVH�VXVWHQWiYHO�VmR�LGHQWL¿FDGDV�H�DSRQWDGDV��

com ênfase a um necessário respeito às preexistências, à universalização do direito à

cidade e às capacidades de suporte dos sistemas socioambientais intraurbanos.

1. Introdução: Dos maus negócios

“Encostei-me a ti, sabendo que eras somente onda.

Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.

Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino, frágil,

Fiquei sem poder chorar quando caí.”

Epigrama No8, Cecília Meireles

� 2� TXH� SRGHULD� GHVHMDU� XPD� QDomR� VXEGHVHQYROYLGD� �HVWH� WRGR� FRQWLQJHQWH��

GH�DSDUHQWH�SROLIRQLD��GHVSURYLGD�GH�DFRUGR�H�GH�FRPXP�YRQWDGH��FRP�PDLV� IRUoD�

e fervor que alcançar, o quanto antes, o momento reticentemente reservado a um

WHPSR�IXWXUR�GD�FRQTXLVWD�GR�WtWXOR�GH�SDtV�H�SRYR�GHVHQYROYLGR"�(VWD�SDUHFH�D�PDUFD�

persistente da insatisfação que impregna a história das sociedades sul-americanas.

Porque “tem sempre alguém vendendo o mesmo peixe, dizendo que é fresco”* e nós

seguimos, geração a geração, trocando irmãos por espelhos, mães por pensões e

nutrindo-nos de frágeis, cada vez mais absurdamente frágeis, promessas de alforria

Page 45: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

44

GH¿QLWLYD�H�SD]�

Não sem resistência, os movimentos de luta às formas sistêmicas de dominação

do homem sobre o homem tem percebido, nos três últimos decênios, que esta

exploração sem trégua se dá de forma muito semelhante sobre a natureza e, mais que

isso, o quanto o comprometimento de funções naturalmente desempenhadas pelos

sistemas vivos revelam a face mais dramática da desigualdade na distribuição das

condições de vida. Isto porque restringem, inclusive, a sobrevivência à margem das

HFRQRPLDV�IRUPDLV��2�PHVPR�SRGHULD�VHU�GLWR�GRV�PRYLPHQWRV�DPELHQWDLV�H�GH�VHX�

despertar às causas sociais em caminho inverso.

� )HOL]PHQWH��RV�GLVFXUVRV�FUtWLFRV�WHP�FDPLQKDGR�QXP�VHQWLGR�GH�FRQÀXrQFLD�

e mútuo reconhecimento enquanto questões socioambientais, de forma tal que

as novas apropriações de discurso e meandros retóricos por parte daqueles que

os enfrentam nos embates diários haverão de lidar com um nível mais elevado de

GL¿FXOGDGH�j�WDUHID�GH�OXGtEULR��D�FRQYHUVD�GH�SHVFDGRU��(P�WRGR�FDVR��D�HPHUJrQFLD�

moderna de uma questão ambiental global, a popularização de uma percepção acerca

de possíveis limites à alteração das paisagens e dos ecossistemas em função, é claro,

GDV�SULPHLUDV�YHUL¿FDo}HV�GRV�HORV�FDXVDLV�HQWUH�DV�DWLYLGDGHV�KXPDQDV�H�RV�HIHLWRV�

deletérios dessas ações, apontam cada vez mais para uma visão crítica do progresso.

� $¿QDO�� UHFRQKHFHPRV� LVWR�� GHVHQYROYLPHQWR� FDUHFH�GH�DGMHWLYDomR� �6$&+6��

�������6H�PHVPR�DVVLP��HVWH�WHUPR�QmR�VH�PRVWUDU�FDSD]�GH�UHIHULU�VH�j�YLGD�KXPDQD�

FRPR� ¿P�� HQWmR� QmR� VHUYLUi� VHTXHU� GH� UpJXD� j� HFRQRPHWULD�� SRUTXH� WDPSRXFR� D�

VHDUD�GLVFLSOLQDU�HFRQ{PLFD�WHP�FRQVHJXLGR�HPLWLU�SURQXQFLDPHQWRV�GH�F~SXOD�OLYUHV�

de constrangimentos. Ainda que tenhamos aprendido historicamente a conviver com

a desigualdade entre países, regiões, estados, cidades, bairros e pessoas, com a

consagração de privilégios em detrimento da universalização de direitos, que tenhamos

feito concessões além das elásticas linhas da dignidade, reconhecido e admitido a

existência de cidadãos de segunda categoria por todos os segmentos, omitindo a face

GH�VXMHLWRV�UHVSRQViYHLV�VRE�D�¿JXUD�GH�SHVVRDV�MXUtGLFDV�HVTXL]RIUrQLFDV�GH�DWLWXGH�

corporativa, que personagem poderia neste cenário engessado turvar e romper com a

SDUDOLVLD�GD�LQMXVWLoD�JHQHUDOL]DGD"

Assim como o limite da civilização é a barbárie, o abuso dos sistemas vivos

resulta em crise estrutural. Quando se rompem o elos fundamentais que sustentam um

sistema complexo, dá-se a quebra da resiliência. A ruptura de um estado de equilíbrio

Page 46: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

45

GH�ÀX[RV�H�HVWRTXHV�YLD�GH�UHJUD�FRQGX]�D�XP�QRYR�DUUDQMR�GH�FRPSRQHQWHV��FXMD�

WUDQVLomR��DWp�RQGH�VH�VDEH��WHQGH�j�PXGDQoD�FDWDVWUy¿FD��6&+())(5��:$/.(5.��

������

� 2� FHQiULR� GH� LQFHUWH]DV� DQXQFLDGR�� HP� HVFDOD� JOREDO�� SHODV� PXGDQoDV�

climáticas e, a nível regional e local, pelo esgotamento de recursos e agravamento

de dependências territoriais por solapamento de serviços mínimos de suporte à vida

nos parece agregar a dose de constrangimento necessário aos espaços públicos,

políticos e acadêmicos à reabertura da discussão sobre as formas atuais de se ocupar,

transformar e distribuir o espaço em que se vive. Se o espaço em que se vive já é

majoritariamente e segue, cada vez mais, urbano; se existe uma centralidade capaz

GH�DJORPHUDU�RV�DWRUHV�H�RV�FRQÀLWRV�FKDYH�GDV�UHIHULGDV�TXHVW}HV�VRFLRDPELHQWDLV��

ainda que sejam apenas emissários de demandas que se processam em espaços

longínquos e envolvam outros atores, esses motivos confeririam às cidades e,

sobretudo, às metrópoles o status de arena privilegiada para ocorrência dos embates

acerca do futuro da humanidade. A nossa proposição aqui é de que, para as condições

históricas atuais, a sustentabilidade intraurbana precede e deve ser prioridade às

demais políticas de gestação de um mundo justo, democrático e sustentável.

2. Sustentabilidade: Um campo cambiante

“3RUTXH�HVWD�YLGD�p�VHPSUH�XP�GHV¿ODU�VDIDGR�GH�LGHLDV´

Ideias, Ednardo *

Antes de ingressarmos no debate dos temas urbanos e de como poderia vir

a ser concebido este modelo de cidade sustentável em respeito às fronteiras de

dignidade, reconhecemos a precedência de estabelecermos em nossas suposições

a sustentabilidade não como uma noção acabada ou em vias de amadurecimento

rumo à consolidação, mas como um terreno indissolúvel de tensões e de disputa. A

apresentação do panorama de posicionamentos e atores situados em torno desse

tema, – primeiramente referido como ecodesenvolvimento; clivado, em seguida, ao

ELQ{PLR�desenvolvimento sustentável; e, mais recentemente, tornado novamente

um termo uno – será nosso ponto de partida para situarmos as diferentes abordagens

Page 47: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

46

de desenvolvimento urbano: as intervenções planejadas e as formas espontâneas de

uso e ocupação do solo urbano, cuja proximidade ou distância poderia ser tomada

GDTXLOR�TXH�GH¿QLUHPRV�FRPR�XPD�PRUIRGLQkPLFD�VXVWHQWiYHO�GD�SURGXomR�VRFLDO�GR�

espaço urbano.

� 6mR�GLYHUVRV�WDPEpP�RV�HVIRUoRV�GH�WLSL¿FDomR�H�UHFRQKHFLPHQWR�GRV�WUDoRV�

TXH�FDUDFWHUL]DP�D�LGHQWLGDGH�GDV�P~OWLSODV�OHLWXUDV�VREUH�VXVWHQWDELOLGDGH��+RSZRRG�

H�FRODERUDGRUHV��������PDSHDUDP�WHQGrQFLDV�VHJXQGR�XP�HVSHFWUR�GH�FRPELQDo}HV�

SRVVtYHLV� HQWUH� JUDXV� GH� VHQVLELOLGDGH� D� WHPDV� VRFLRHFRQ{PLFR�GLVWULEXWLYRV� H�

graus de percepções sobre questões ambientais. Desse trabalho de distinção, eles

LGHQWL¿FDP�WUrV�JUDQGHV�JUXSRV��RV�PDQWHQHGRUHV�GR�status quo, os reformistas e os

transformadores (Figura 1���

Figura 1. Panorama do campo da sustentabilidade e subcampos.

$GDSWDGR�GH�+RSZRRG���������(ODERUDGR�SHOR�DXWRU�

Page 48: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

47

� 2� PRGHOR� SURSRVWR� SRU� +RSZRRG� H� FRODERUDGRUHV� ������� DSRLD�VH� QR�

JUDGLHQWH�GH�YLV}HV�DPELHQWDLV�GH�2¶5LRUGDQ� �������HQWUH�RV�H[WUHPRV�GR� WHFQR�H�

GR�HFRFHQWULVPR��$QWHFLSDPRV�TXH�WRGR�HVIRUoR�GH�FODVVL¿FDomR��VHMD�SRU�GH¿QLomR�

a priori de conceitos ou por estratégias de análises discursivas acerca dos usos

FRUUHQWHV�GRV� WHUPRV�QD� YLGD�SROtWLFD�� UHVXOWDUmR�HP�VLPSOL¿FDomR�GR�GHEDWH��(VWH�

parece, no entanto, um movimento inicial necessário, se estamos nos propondo a

acessar as insustentabilidades que permeiam as formas urbanas contemporâneas,

ainda que saibamos e não nos descuidemos da herança infernal atribuída ao

³SHFDGR�RULJLQDO´�GR�PpWRGR�GH�'HVFDUWHV��2V�DXWRUHV�GHVWH�PRGHOR��SRUpP��FRPR�

SUHWHQGHPRV� WDPEpP� ID]r�OR�� FRPSOH[L¿FDP� DTXHOH� JUDGLHQWH�� DFUHVFHQWDQGR� XP�

HL[R�QRYR�j�SDUWH��UHIHUHQWH�j�YDULiYHO�GDV�YLV}HV�VRFLRHFRQ{PLFDV��)D]HP�LVVR�SRU�

entenderem que sustentabilidade e justiça social não necessariamente convergem ou

se aglutinam entre posturas majoritariamente progressistas e conservadoras. Dessa

forma, posicionam-se, ao longo do espectro, as diferentes interpretações e posturas

diante do campo da sustentabilidade (Figura 2���9DOH�GHVWDFDU�D�SUHVHQoD�GH�DWRUHV�

e discursos situados à margem do campo delimitado pela área colorida (fronteiras

GR� FDPSR� GH� GHEDWH��� SRU� QmR� FRQWHPSODUHP� VDWLVIDWRULDPHQWH� DOJXP� GRV� HL[RV�

fundamentais considerados.

Page 49: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

48

Figura 2. Posicionamento de agentes e discursos no campo.

�$GDSWDGR�GH�+RSZRRG���������(ODERUDGR�SHOR�DXWRU�

1DVFLPHQWR��������ID]�XVR�GH�RXWUD�HVWUDWpJLD�WDPEpP�VLPSOL¿FDGRUD�H�UHFRUUH�

jV�GLIHUHQoDV�QD�SHUFHSomR�FRPXP�GH�XPD�DPHDoD�j�KXPDQLGDGH��2�DXWRU�SDUWH�

HP�GHIHVD�GD�KLSyWHVH�GH�HVWUXWXUDomR�GH�XP�QRYR�FDPSR�VRFLDO��FRPR�GH¿QLGR�SRU�

Bourdieu, articulado em torno da sustentabilidade, para o qual caberiam, portanto,

regras próprias de ingresso, regularidades próprias ao jogo, agentes reconhecíveis,

FDSLWDLV�HVSHFt¿FRV�H�IRUPDV�GH�GHVHPSHQKR�QR�XVR�GHVVHV�FDSLWDLV���$V�YDQWDJHQV�

deste tratamento e, portanto, do abandono do uso de sustentabilidade como conceito

ou valor, residiriam na explicitação das lógicas dos debates em torno do futuro da

KXPDQLGDGH��GD�LGHQWL¿FDomR�GH�VHXV�DJHQWHV��UHFXUVRV�H�GDV�UD]}HV�GRV�HPEDWHV��1R�

plano político, isto abriria margem para análises mais objetivas e francas discussões

de divergências entre os participantes do campo.

� ¬� GLYLVmR� GH� VXEFDPSRV� SURSRVWD� SRU�1DVFLPHQWR� �������� Ki� XPD� SULPHLUD�

corrente a perceber este futuro ameaçado como uma ameça à Terra, em decorrência

Page 50: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

49

das mudanças climáticas em curso. Um segundo grupo estaria preocupado com a

ameaça à vida na Terra em função do aquecimento global, mas também por conta

da degradação crescente da biodiversidade global, dos solos e dos recursos hídricos.

2� DXWRU� FRQVLGHUD� HVVHV� GRLV� SULPHLURV� VXEFDPSRV� FRPR� VLWXDGRV� DR� SODQR� GR�

imaginário dadas as suas frágeis fundamentações lógicas alheias à história geológica

H�DRV�FRQKHFLGRV�PHDQGURV�HYROXWLYRV�GHVGH�R�VXUJLPHQWR�GD�YLGD�QD�7HUUD�

� 1R�SODQR�GDV�SRVVLELOLGDGHV��1DVFLPHQWR��������LGHQWL¿FD�XP�WHUFHLUR�JUXSR���

este preocupado com a ameaça à vida humana na Terra. Aqui também os principais

DOHUWDV� WHP� RULJHP� QDV�PXGDQoDV� FOLPiWLFDV� H� QD� VXSRVLomR� GH� FRQ¿JXUDomR� GRV�

FHQiULRV�DQXQFLDGRV�SHOR�3DLQHO�,QWHUQDFLRQDO�VREUH�0XGDQoDV�&OLPiWLFDV��,3&&���¬�

última corrente tratada pelo autor restaria a percepção de uma ameça às condições

de vida humana na Terra. Do terceiro subcampo para este último, rompe-se o plano

das ocorrências possíveis rumo ao espaço das ocorrências prováveis. Nesse caso,

SDVVDP�D�VHU�FRQVLGHUDGDV�DV�YDULiYHLV�VRFLDLV�H�HFRQ{PLFDV��$LQGD�TXH�R�DTXHFLPHQWR�

global possa vir a ocupar lugar central, em geral, ocorre um deslocamento desse

tema para viabilizar a contemplação de um quadro mais amplo das disfuncionalidades

VRFLDLV��HFRVVLVWrPLFDV�H�GDV�FULVHV�HFRQ{PLFDV��e�VRPHQWH�QHVWH�TXDUWR�VXEFDPSR�

que a sustentabilidade urbana é capaz de encontrar relevância e o espaço necessário

para o amadurecimento do debate.

� 8PD� WHUFHLUD� FDWHJRUL]DomR�� TXH� GHYHUi� VH�PRVWUDU� ~WLO� DRV� QRVVRV� ¿QV� GH�

DQiOLVH��HQFRQWUD�VH�QRV�WUDEDOKRV�GH�'REVRQ���������2�DXWRU�UHVXPH�D�GLYHUVLGDGH�

encontrada na literatura sobre sustentabilidade a três concepções básicas, cujo

SULQFtSLR�RUJDQL]DGRU�SURYpP�GDV�UHVSRVWDV�SRVVtYHLV�j�SHUJXQWD�VREUH�R�TXH��D¿QDO��

KDYHULD� GH� VHU� VXVWHQWDGR��3DUD�'REVRQ� �������� Ki� WUrV� UHVSRVWDV� UD]RiYHLV�� D�� R�

capital natural crítico�� FDSLWDO� FRPR�GH¿QLGR�SRU�0DU[�� SRUpP��GH� FDUiWHU� QDWXUDO��

QHFHVViULR�j�SURGXomR�H�UHSURGXomR�GD�YLGD�KXPDQD��E��D�natureza irreversível, não

necessariamente vital à sobrevivência e ao bem-estar humanos, a qual tomaremos por

diversidade biogeofísica��H��SRU�¿P��F��R�valor natural, que advém do reconhecimento

da historicidade presente na relação dos humanos com o meio ambiente ao longo do

WHPSR��/(1=,��������S������

� 'DV�FODVVL¿FDo}HV�DSUHVHQWDGDV��WRPDUHPRV�SRU�EDVH�D�SULPHLUD�H�DSOLFDUHPRV�

DV�GHPDLV��TXDQGR�QHFHVViULR��VHPSUH�HP�VREUHSRVLomR�DR�HVSHFWUR�GH�+RSZRRG�H�

FRODERUDGRUHV���������9DOH��SRU�¿P��OHPEUDU�TXH�R�JUDGLHQWH�GH�VXEFDPSRV�status quo/

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50

reforma/transformação apresentado no diagrama não raro é reduzido a um embate

HFRQ{PLFR�GH�H[WUHPRV�HQWUH�GXDV�FRUUHQWHV�PDMRULWiULDV��D�sustentabilidade fraca e

a sustentabilidade forte��2�QtYHO�JURVVHLUR�GH�SHUFHSomR�GDV�GLIHUHQoDV�QHVVD�HVFDOD�

GH�YLV}HV�GL¿FXOWD�R�UHFRQKHFLPHQWR�GD�LGHQWLGDGH�GRV�DJHQWHV�H�GH�VHX�SRVLFLRQDPHQWR�

em relação aos demais participantes, principalmente, àqueles que se situariam mais ao

referido extremo fraco da sustentabilidade. Esta referência de força ou compromisso

no tratamento de certos problemas fundamentais que marcam os discursos sobre

sustentabilidade, apesar das limitações, há de contribuir para uma análise crítica

dos modelos de desenvolvimento urbano que se propõem sustentáveis e se lançam

em disputa por hegemonia. Isso porque um dos pressupostos que consideramos

indispensáveis à compreensão dos processos urbanos é o reconhecimento da

estruturação dos elementos do espaço urbano enquanto componentes de um sistema

complexo; é o entendimento, portanto, de que intervenções em dadas porções do

sistema tem efeitos sobre os demais compartimentos e níveis e de que as soluções

propostas terão mais ou menos consistência com um sentido de sustentabilidade

conforme o nível de consideração sobre as consequências do encadeamento de

mudanças na totalidade do espaço urbano.

3. Abordagens de desenvolvimento urbano sustentável

“Se oriente, rapaz, pela constelação do Cruzeiro do Sul

Se oriente, rapaz, pela constatação de que a aranha

9LYH�GR�TXH�WHFH��9r�VH�QmR�VH�HVTXHFH

Pela simples razão de que tudo merece

Consideração”

Oriente, Gilberto Gil

� 'H�DQWHPmR��UHFRQKHFHPRV�TXH�XPD�SDUWH�VLJQL¿FDWLYD�GRV�GLVFXUVRV�SURIHULGRV�

em referência à ideia da construção de cidades e metrópoles mais sustentáveis faça

uso corrente de adjetivações esvaziadas de sentido; ou, quando muito, travistam-se

GH� WRQDOLGDGHV� YHUGHV� FRP� YLVWDV� j�PDQXWHQomR� ¿VLROyJLFD� GDV� DQWLJDV� HVWUXWXUDV�

sociais, culturais e políticas, situando-se ou fora do campo da sustentabilidade ou nas

imediações do espaço onde se acomodam os mantenedores do status quo.

Page 52: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

51

Consideraremos aqui apenas três principais correntes, reconhecidas por

+DXJKWRQ���������H��VHJXQGR�HOH��PDLV�UDGLFDLV��+i��ORJLFDPHQWH��RXWUDV�W{QLFDV�PHQRV�

pretensiosas e temas de forte apelo como o da mobilidade urbana, que se sobrepõem

a este debate, complementam-o e fazem referência direta sobre um repensar urbano

em moldes sustentáveis. Estas visões que apresentamos a seguir estariam, portanto,

integralmente inseridas no âmbito geral do debate sobre sustentabilidade e, para ser

mais preciso, aos arredores dos subcampos de reforma e transformação.

Cidades corrigidas

A abordagem corretiva se baseia no diagnóstico de que as cidades atuais

são, em geral, permeadas por disfuncionalidades urbanas: falhas de mercado e

VXEVtGLRV� LQDGHTXDGRV��2� FDPLQKR� SDUD� D� FLGDGH� VXVWHQWiYHO� VHULD�� D� SDUWLU� GHVWD�

leitura, construído mediante uma ampla reforma nos mecanismos de funcionamento

do mercado.

� 7UDWD�VH� GH� XPD� DERUGDJHP� HVVHQFLDOPHQWH� HFRQ{PLFD�� +DXJKWRQ� �������

menciona como referência, ao tratar deste tipo de pensamento, o documento “Urban

Policy and Economic Development: an agenda for the 1990s”. Esta publicação do

%DQFR� 0XQGLDO� ������� WUD]� XP� DSDQKDGR� GRV� SUREOHPDV� XUEDQRV� YLVWRV� FRPR�

LQH¿FLrQFLDV�GH�PHUFDGR��H[WHUQDOLGDGHV���$�LQWHUQDOL]DomR�GRV�FXVWRV�DPELHQWDLV�GH�

produção, com larga aplicação do Princípio do poluidor-pagador e a readequação de

preços sobre recursos exauríveis, conduziria a um quadro ótimo de gestão dos bens

de uso comum.

Ainda que haja neste documento considerações de cunho distributivo, é

patente a ênfase dada sobre os ajustes de mercado como solução central. A primazia

GR�FULWpULR�GH�H¿FLrQFLD�FRPR�RULHQWDGRU�GDV�PXGDQoDV�QHFHVViULDV�FRQIHUH�D�HVWD�

DERUGDJHP�SRXFD�VHQVLELOLGDGH�jV�GLVSDULGDGHV�JHRJUi¿FDV�H�VRFLDLV��DOpP�GH�XPD�

RSRUWXQD�QHJOLJrQFLD�DR�SUREOHPD�GR�FUHVFLPHQWR�HFRQ{PLFR�JOREDO�

� 2FRUUH�TXH�R�FXLGDGR�FRP�D�VD~GH�GRV�PHUFDGRV�p��TXDVH�VHPSUH��XP�GHVFXLGR�

FRP�DV�SHVVRDV��$�FLGDGH�FRUULJLGD��HP�QRVVD�OHLWXUD��FRQÀLWXD�FRP�D�cidade para

pessoas – uma perspectiva de urbanismo que problematiza a primazia do planejamento

de tráfego em voga nos últimos 50 anos e superpõe as necessidades humanas, em

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52

referência a pedestres e ciclistas, como foco das ações de planejamento urbano. Em

YHUGDGH�� TXDOTXHU� HVIRUoR� GH� UHRULHQWDomR� GRV� FRPSRUWDPHQWRV� VRFLRHFRQ{PLFRV�

à sustentabilidade passará por necessárias reformas a nível dos mercados: nos

sistemas de preços, nos marcos regulatórios, nas cobranças por ocasionais danos

e injustiças socioambientais. Esta constatação, no entanto, não pode ser satisfatória

VH� FRPSDUWLOKDPRV� GDV� SUHRFXSDo}HV� XUEDQDV� FRPR� GH¿QLGDV� QR� TXDUWR� JUXSR�

GHVFULWR� SRU� 1DVFLPHQWR� �������� GDV� ameaças às condições de vida humana na

Terra��$�DERUGDJHP�FRUUHWLYD��VH�EHP�FRQGX]LGD��JDUDQWLUi�WmR�VRPHQWH�H¿FLrQFLD�QRV�

processos urbanos. Assim, faremos mais e melhor com menores quantidades, em

menos tempo e, numa visão otimista, com menos prejuízos aos envolvidos direta e

indiretamente nos processos.

� 2�TXH�GHYH�VHU�SURWHJLGR�QXPD�FLGDGH�FRUULJLGD"�9HMDPRV�TXH�QHQKXPD�GDV�

UD]RiYHLV�UHVSRVWDV�GH�'REVRQ��������VH�DGHTXDP�DR�TXH�SURS}H�HVWH�PRGHOR�GH�

cidade. Mesmo que a tradição e a história ambiental da humanidade passe a ser

valorada ou que funções paisagísticas de compartimentos biogeofísicos relevantes

intra e extra-urbanos sejam apreendidas e integradas a cadeias produtivas, teimará

em pesar sobre a natureza a avaliação, vista como legítima, sobre o custo de

oportunidades embutido na decisão de supressão ou não desses valores para outros

usos mais rentáveis.

� 2�UHSHQVDU�XUEDQR�WDQJHQFLD��GHVWH�SRQWR�GH�YLVWD��D�HVVrQFLD�GR�GHEDWH�HQWUH�

sustentabilidade forte e fraca. A crença na substitutibilidade virtual de recursos

naturais por tecnologia e recursos humanos representa um divisor de águas onde

TXHU�TXH�VH� LQWHUSRQKDP�LPEUyJOLRV�DPELHQWDLV��2�PDLV�UHFHQWH�UHODWyULR�GR�Painel

Internacional para Manejo de Recursos Sustentáveis� �81(3�� ������� RX�Painel de

Recursos, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente��3180$��DWHVWD�

HVWH�RWLPLVPR�WHFQROyJLFR�DR�GLVFXWLU�DV�SRVVLELOLGDGHV�GD�GHFRODJHP�HFRQ{PLFD�D�

QtYHO�GH�FLGDGH��2�FRQFHLWR�GH�GHFRODJHP��TXH�GHX�D�W{QLFD�QRV�GHEDWHV�H�DFRUGRV�

¿UPDGRV�QD�Rio +20, soa como a última cartada das correntes cornucopianas de fé

QR�FUHVFLPHQWR�HFRQ{PLFR�RX�QD�FKDPDGD�economia verde��2�WHUPR�ID]�UHIHUrQFLD�

à desmaterialização da economia, uma tendência à redução da dependência relativa

GRV�SURFHVVRV�HFRQ{PLFRV�GH�VHXV�IDWRUHV�GH�SURGXomR�GH�EDVH�PDWHULDO�PHGLDQWH�

JDQKRV�HP�H¿FLrQFLD�H�QRYDV�WHFQRORJLDV�GLWDV�HFRORJLFDPHQWH�FRUUHWDV��GDt�D�LGHLD�

de um descolamento ou decolagem (decoupling���

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53

� $� VXSHU¿FLDOLGDGH� GDV� PHWDV� FRUUHWLYDV� UHVLGH�� HP� SULPHLUR� OXJDU�� QD� IUDFD�

FRQVLGHUDomR� GD� H[LVWrQFLD� GH� OLPLWHV� DEVROXWRV� j� H[SDQVmR� HFRQ{PLFD�� 5HVLGH�

também na desconsideração do efeito rebote, evidenciado pelo Paradoxo de Jevon

�0$<80,��*,$03,(752��*2:'<���������GH�TXH�R�DOFDQFH�GD�H¿FLrQFLD�SHUVHJXLGD�

só reduz a demanda sobre os fatores de produção em termos relativos e não em

DEVROXWR�� 6REUH� HVVH� DVSHFWR�� 9HLJD� ������� S�� ����� H[SOLFD� TXH� R� LPSDVVH� HQWUH�

economistas ecológicos e convencionais se dá pela suposição dos recursos naturais

e capitais como bens complementares por uns e substitutos por outros. Stiglitz, um

dos defensores da substitutibilidade contextualiza o debate e, nisso, alivia o peso de

seus argumentos ao dizer que os modelos analíticos da economia convencional são

úteis a questões de médio prazo, algo entre 50 e 60 anos. De fato, se considerarmos

o pensamento de Georgescu-Roegen – de quem partiu a crítica mais contundente

à esquizofrenia do crescimento ilimitado –, a ameaça do esgotamento dos meios

PDWHULDLV�SDUD�D�UHDOL]DomR�GDV�DWLYLGDGHV�HFRQ{PLFDV�IXQGDPHQWDLV�j�PDQXWHQomR�

da vida social lançam-se a um horizonte temporal para além do longo prazo.

Fizemos questão de ressaltar a relevância do debate sobre a substitutibilidade

dos recursos naturais na tentativa de endereçarmos corretamente a problematização

aos modelos de cidade corrigida. A centralidade e a auto-referência histórica do

IHQ{PHQR�XUEDQR�JOREDOL]DGR�GHVFRQKHFH�IURQWHLUDV�j�H[SDQVmR�GH�VXDV�GHPDQGDV�

PHWDEyOLFDV��FRWLGLDQDV��VD]RQDLV�H�HVSRUiGLFDV���7DPSRXFR�VHQWH�FRQVFLHQWHPHQWH�

VHXV�HIHLWRV�GHOHWpULRV��9DOHPR�QRV�GDV�PHGLo}HV�GH�SHJDGD�HFROyJLFD (nacionais,

UHJLRQDLV� H� PXQLFLSDLV�� FRPR� FRQVWDWDo}HV� GH� TXH� DV� DJORPHUDo}HV� KXPDQDV�

frequentemente requisitam áreas em energia e recursos maiores que os seus próprios

limites, a saber os primeiros estudos sobre as pegadas de países desenvolvidos.

2� HVSUDLDPHQWR�� D� FRQXUEDomR� H� D� H[SDQVmR� XUEDQD� VmR� WHQGrQFLDV� ODUJDPHQWH�

YHUL¿FDGDV�HP�FLGDGHV�SRU�WRGR�R�JORER�H�D�RFXSDomR�LUUHVWULWD�GH�iUHDV�UHVLGXDLV�GD�

malha urbana – porque inadequadas à moradia e ao trânsito – revelam a face triste da

urbanização latino-americana e dos países subdesenvolvidos do Sul: urbanizar é via

de regra negar a paisagem natural.

Enquanto o crescimento constar entre os elementos a serem sustentados

na lista de pré-condições à sustentabilidade da cidade corrigida este modelo se

aproximará do extremo dito fraco e demandará fartas porções dos ecossistemas do

entorno, promovendo a externalização dos seus custos ambientais de reprodução. As

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soluções de mercado usualmente propostas envolvem acordos de compra e venda de

capacidades de carga adicionais, para o caso de cidades que já tenham de lidar com

limitações internas e àquelas que ainda encontrem o que expandir. A esta estruturação

GRV�ÀX[RV�H�HVWRTXHV��PDWHULDLV�H�HQHUJpWLFRV��ODUJDPHQWH�GHSHQGHQWHV�GH�VHUYLoRV�

e recursos extra-urbanos intitulamos metabolismo linear. A cidade corrigida não

se orienta, portanto, a resolver internamente seus problemas de abastecimento,

UHJXODomR�H�PDQXWHQo}HV�QHFHVViULDV��(OD�p��QHVVH�VHQWLGR��FRPR�DSRQWD�+DXJKWRQ�

��������H[WHQVDPHQWH�H[WHUQR�GHSHQGHQWH�

Cidades redesenhadas

Assim como os economistas, em geral, reconhecem-se na cidade corrigida ou,

no mínimo, sentem-se naturalmente instrumentalizados para discuti-la, os arquitetos-

urbanistas e planejadores urbanos costumam dar vazão aos seus anseios por mudança

no campo da sustentabilidade a partir das propostas de redesenho urbano.

Aqui a aposta se faz na forma urbana compacta como estratégia para

UHGXomR�VLJQL¿FDWLYD�GR�FRQVXPR�HQHUJpWLFR�H�GD�JHUDomR�GH�UHVtGXRV��$�EDVH�GHVWH�

pensamento decorre da crítica aos modelos de funcionamento, gestão e crescimento

praticados pelas cidades do século 20; ao funcionalismo da arquitetura modernista,

de atribuições únicas a cada espaço e amplamente apoiado no modelo de circulação

URGRYLiULR��/(,7(��$:$'��������S��������$V�GLWDV�IRUPDV�FRQYHQFLRQDLV�GH�SODQHMDU�

o uso do espaço seriam fontes de expensas materiais e energéticas desnecessárias.

Assim, voltar sobre si a cidade que se espraia, sobrepor funções e reduzir distâncias,

elevando as densidades centrais e valorizando o espaço público, seriam meios de

HYLWDU�TXH�D�FLGDGH�VH�D¿UPH�FRPR�IDUGR�FDGD�YH]�PDLRU�DRV�HFRVVLVWHPDV�H[WHUQRV�

que lhe dão suporte.

� $�EXVFD�SRU�H¿FLrQFLD�WDPEpP�WHP�VXD�PDUFD�QD�FLGDGH�UHGHVHQKDGD��8PD�

PDUFD�LGHQWLWiULD��QD�YHUGDGH��2�UHGHVHQKR�p�WLGR�DTXL�FRPR�VROXomR�SULPRUGLDO�SDUD�

redução das entradas (inputs� e saídas (outputs��GR�VLVWHPD��$WUHODGR�j�DQiOLVH�GH�

que as cidades tradicionais seriam esbanjadoras de recursos, porque moldadas sob a

crença na abundância (de água, terra, energia e áreas para disposição e absorção do

OL[R���HVWD�UHHVFULWD�GR�PRGR�GH�YLYHU�XUEDQR�DSRLD�VH�HP�JUDQGH�SDUWH�QD�LQFRUSRUDomR�

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de novas tecnologias poupadoras, que abrangem desde o ambiente domiciliar

(banheiros secos ou inteligentes, com sistemas hidráulicos desenhados para o reúso,

fornos solares, composteiras e hortas caseiras, placas fotovoltaicas, alternativas para

DTXHFHGRUHV�H�UHIULJHUDGRUHV�GH�DU��HWF���jV�ERDV�SUiWLFDV�GH�FRQVWUXo}HV�GH�HGLItFLRV�

e obras de infraestrutura urbana.

� +DXJKWRQ��������FKDPD�D�DWHQomR�SDUD�XP�GHWDOKH� LQWHUHVVDQWH�JHUDOPHQWH�

associado a esta visão: sem de pronto romper com o antropocentrismo, o apelo

dos discursos em defesa da cidade corrigida orienta-se por um respeito maior aos

processos naturais. As soluções e propostas de design difundidas nesta corrente seriam

inteligentes, portanto, quando capazes de realizar um acoplamento bem-sucedido

HQWUH�RV�DVVHQWDPHQWRV�KXPDQRV�H�DV�GLQkPLFDV�GD�QDWXUH]D�FLUFXQGDQWH��+i��GHVVD�

IRUPD�� XP� ORXYRU� DR� IHQ{PHQR� XUEDQR� TXH� QmR� FRQWUDVWD� FRP� R� UHFRQKHFLPHQWR�

da existência de uma natureza urbana, mesmo que residual. Admitir que sob ou

sobre o ambiente construído persistem paisagens e processos naturais que as

animam independente do nível de alteração empreendido no espaço traz importantes

consequências às proposições inspiradas por essa linha de pensamento.

Diz-se que a manifestação dessa sensibilidade, historicamente marginal aos

empreendimentos urbanos de outrora, não chega a romper com um antropocentrismo

SRVVLYHOPHQWH�SHUQLFLRVR��QR�TXH�WDQJH�j�SURGXomR�GH�ULVFRV�DPELHQWDLV�LQWUDXUEDQRV��

SHOD�SRVWXUD�GH�PHGLDomR��UHYHODGRUD�GH�SHVRV�H�YDORUDo}HV��TXDQGR�GR�DÀRUDPHQWR�

GH�FRQÀLWRV�GH�GHVWLQDo}HV�GH�XVR�GRV�HVSDoRV��$R�VH�WUD]HU�j�WRQD�D�PXOWLSOLFLGDGH�

de funções, a elevação virtual das taxas de adensamento e das conectividades,

como máximas à garantia da manutenção da vitalidade, eventuais constatações de

fragilidade ambiental indicadoras de preservação restritiva (e.g. dunas, nascentes,

PDWDV� ULSiULDV�� PDQJXH]DLV�� FRUUHGRUHV� H� IUDJPHQWRV� GH� JUDQGH� YDORU� HFROyJLFR��

tendem a ocupar um lugar de segundo plano no ranking das prioridades.

Em termos de planejamento, frequentemente recorre-se a parâmetros locais

GH�PRQLWRUDPHQWR�GRV�QtYHLV�GH�FRQVXPR��GD�RWLPL]DomR�GH�SURFHVVRV� LQH¿FLHQWHV�

H�GD�HFRQRPLD�DOFDQoDGD�FRP�R�UHDSURYHLWDPHQWR�H�R�UH~VR�GH�UHFXUVRV��2�PRGHOR�

GH� FLGDGH� UHGHVHQKDGD�� QR�PRPHQWR� HP�TXH�S}H�rQIDVH�j� EXVFD�SHOD� H¿FLrQFLD��

naturalmente incorre nos mesmos pontos passíveis de crítica das soluções

mercadológicas da cidade corrigida. Nesse quesito, podemos dizer que aqui também

QmR�VH�S}H�HP�[HTXH�R�GHVHQYROYLPHQWR�DODYDQFDGR�SHOR�FUHVFLPHQWR�HFRQ{PLFR��

Page 57: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

56

2V�SUREOHPDV�DVVRFLDGRV�j�HVSDFLDOL]DomR�GR�FUHVFLPHQWR��WUDGX]LGD�HP�H[SDQVmR�

urbana horizontal, são administrados como se a abundância dos espaços centrais mal

utilizados não apresentasse também um horizonte de saturação de aproveitamento

�%5(+(1<���������$GHPDLV�� LQGLFDGRUHV� ORFDLV�QmR� LQFRUSRUDP� LQVXVWHQWDELOLGDGHV�

GH�FXQKR�GLVWULEXWLYR��VRFLDO�H�HVSDFLDO��DR�TXH�VH�VXFHGH�DOpP�GRV�OLPLWHV�GR�VLVWHPD�

considerado. Ainda que os processos internamente se deem a condições aceitáveis

e que venham a reduzir, de modo geral, impactos externos, as relações com distritos

próximos ou zonas de aporte longínquas podem vir a promover seletivamente a ruína

de ecossistemas provedores e de economias estruturadas sob forte dependência da

FLGDGH�UHGHVHQKDGD��7DO�VLWXDomR�KLSRWpWLFD�VHULD�LQGLFDWLYD�GH�IUDJLOLGDGH�QDV�UHODo}HV�

intersistêmicas, o que enfraqueceria a sustentabilidade do modelo.

� 3RU�¿P��VLWXDUHPRV�RV�GHIHQVRUHV�GD�FLGDGH�UHGHVHQKDGD�FRPR�LGHQWL¿FDGRV�

DR� VXEFDPSR� GD� UHIRUPD� GH� +RSZRRG� H� FRODERUDGRUHV� �������� SRUTXH� DVVLPLODP�

em seus discursos o imperativo das mudanças de postura rumo à sustentabilidade,

DGPLWLQGR�TXH�VRE�DV�HVWUXWXUDV�VRFLDLV�H�SROtWLFDV�FRUUHQWHV�LVWR�GL¿FLOPHQWH�RFRUUHUi��

As proposições práticas, nesse sentido, avaliamos, recuam mais que avançam, uma

YH]�TXH�RUELWDP�HP� WRUQR�GH�PDUFRV� UHJXODWyULRV�H� LQFHQWLYRV�¿QDQFHLURV�YROWDGRV�

basicamente à reorientação de mercados e dos comportamentos individuais, sem

referências objetivas à reformulação de comitês, conselhos e demais instâncias

de decisão participativa no que concerne aos rumos do desenvolvimento urbano;

DRV� GHVD¿RV� GH� JRYHUQDQoD� H� HQWUDYHV� FXOWXUDLV� SHUVLVWHQWHV�� RX� D� REVWiFXORV�

intransponíveis senão por vias de reforma política.

Algo neste modelo, no entanto, o distancia imensamente do ideário da cidade

FRUULJLGD�� (P� QRVVD� DYDOLDomR�� D� FLGDGH� UHGHVHQKDGD� DEUH� XP� ÀDQFR� KLVWyULFR�

SDUD�XP�PRPHQWR�GH�D¿UPDomR�KHJHP{QLFD�GD� LGHRORJLD�GD�FLGDGH�SDUD�SHVVRDV��

(PERUD�R�DSHOR�j�FRPSDFLGDGH�H�DRV�JDQKRV�HP�H¿FLrQFLD�DVVRFLDGRV�jV�HVWUDWpJLDV�

poupadoras não caminhem necessariamente de mãos dadas com a defesa dos

SULQFtSLRV�JHUDGRUHV�H�PDQWHQHGRUHV�GD�YLWDOLGDGH�QR�HVSDoR�XUEDQR��-$&2%6���������

há certamente muitos pontos de convergência. As críticas aos modelos convencionais

de cidade são essencialmente as mesmas nas duas linhas de abordagem, de forma

TXH� R� DOFDQFH� GD� FRQVLGHUDomR� GD� GLPHQVmR� KXPDQD� FRPR� DOWHUQDWLYD� H� ¿P� GDV�

políticas e propostas de intervenção indicariam uma percepção mais acabada e

robusta do quadro amplo de problemas com que estão lidando as cidades modernas,

Page 58: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

57

um algo a mais.

Qual a importância, então, de um modelo de cidade redesenhada voltado para as

SHVVRDV"�3RODQ\L��������S������H[SOLFD�TXH��GHVGH�R�VpFXOR�����FRP�R�HVWDEHOHFLPHQWR�

dos sistemas mercantis, os mercados expandiram em número e em importância,

tornando-se, pela primeira vez, a principal preocupação dos governos, ainda que

IRUWHPHQWH�UHJXODGRV��$�SDUWLU�GR�VpFXOR����p�TXH�VH�DSUHVHQWD�D�LGHLD�GH�XP�PHUFDGR�

autorregulável, que, segundo Polanyi, passaria a controlar a sociedade e a orientar

os seus propósitos de desenvolvimento. Sociedades e mercados autorregulados são

vistos aqui como lutadores, a quem o cinturão da vitória legitimaria uma relação de

subordinação. Desse modo, os estudos de antropologia social revolvidos pelo autor

VHULDP�D�EDVH�GR�DUJXPHQWR�GH�TXH�RV�VLVWHPDV�HFRQ{PLFRV�GR�SDVVDGR�WHULDP��YLD�

GH� UHJUD�� IHLWR�XVR�PHUDPHQWH�DFHVVyULR�GH�PHUFDGRV�DWp�R� ¿QDO� GD� ,GDGH�0pGLD��

quando uma nova economia, voltada para mercados, iniciaria seu movimento de

VXEPLVVmR�GDV�VRFLHGDGHV�D�¿QV�HVVHQFLDOPHQWH�HFRQ{PLFRV�

Não é nossa intenção dirimir as sombras e dúvidas que pairam sobre os

desdobramentos possíveis da propagação de novos caracteres culturais e seus

potenciais de transformação quando imersos em um dado modelo de desenvolvimento

urbano sustentável. Apenas nos propomos a distinguir elementos cuja apropriação

SRGHULD�VLJQL¿FDU�XPD�UXSWXUD�HP�UHODomR�DRV�JDUJDORV�DSRQWDGRV�HP�FDGD�PRGHOR��

'LWR�LVVR��RV�OLYURV�GH�*HKO��������³Cidades para pessoas´�H�GH�6HQ�H�.OLNVEHUJ��������

“As pessoas em primeiro lugar” são dois bons parâmetros para tomarmos a dimensão

GR�TXDQWR�QRVVRV�PRGHORV�GH�GHVHQYROYLPHQWR�HFRQ{PLFR�H�XUEDQR�VH�GLVWDQFLDUDP�H�

relegaram a segundo plano a perseguição primordial de objetivos sociais e humanos.

Page 59: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

58

Quadro 1.�(FRQRPLD�FRPR�VXEVLVWHPD�GH�XP�VLVWHPD�7HUUD�IHFKDGR

2UJDQL]DGR�SHOR�DXWRU�

Page 60: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

59

Cidades autônomas

� 2�WHUFHLUR�H�~OWLPR�PRGHOR�WUD]�FRPR�SHGUD�GH�WRTXH�j�UHYHODomR�GH�VXD�LGHQWLGDGH�

a compreensão central de que o curso de modernização das cidades, de modo geral

e por todo o globo, conduziu-as ao desempenho da postura padrão de ¿OKDV�SUyGLJDV,

que, imbuídas ao desbrave das fronteiras que as comprimiam (regionais, nacionais e

FRQWLQHQWDLV���WRUQDP�j�FDVD��QXP�VHJXQGR�PRPHQWR��DSyV�VRIUHUHP�RX�DQWHYHUHP�

o tombo de sua própria imprudência. Autonomia, nesse sentido, é nada além de um

contraponto histórico ao desfecho do episódio anterior desta saga, quando, apoiadas

nos mercados autorregulados, as cidades projetaram-se à conquista da heteronomia

�FRQGLomR�GH�VXMHLomR�D�XPD�YRQWDGH�H[WHUQD��H��DVVLP��FRQKHFHUDP�FHUWR�IUDFDVVR��

É importante que não se apreenda por autonomia um sentido de independência

impassível, a historicidade contida nas proposições deste modelo apontam para a

EXVFD�GH�DXWRVVX¿FLrQFLD�H�DXWRGHWHUPLQDomR�FRPR�VHQVR�GH�PDWXULGDGH�DGTXLULGR�

HP�IXQomR�GRV�IDUGRV�H�{QXV�LQMXVWDPHQWH�UHOHJDGRV�jV�YL]LQKDQoDV�

� $� HVWUDWpJLD� GH� VXVWHQWDELOLGDGH� GR� PRGHOR� GH� FLGDGH� DXW{QRPD� HVWi�

fortemente amparada na administração espacial – regional e, sempre que possível,

LQWHUQD� ±� GH� VHXV� SUREOHPDV�� 7UDWD�VH� GH� JHULU� ORFDO� H� UHJLRQDOPHQWH� TXHVW}HV�

FRPR�SURYLVmR�GH�iJXD��HQHUJLD�H�DOLPHQWRV�H�iUHDV�SDUD�GLVSRVLomR�GH�HÀXHQWHV�

e resíduos, convertendo o metabolismo urbano, via absorção produtiva das saídas

(outputs���D�XP�IRUPDWR�circular. Esta corrente conquista mais adeptos entre militantes

DPELHQWDOLVWDV�� JHyJUDIRV�� ELyORJRV�� HFyORJRV�� HQJHQKHLURV� ÀRUHVWDLV� H� DPELHQWDLV�

e demais planejadores ambientais e regionais, porque, dentre os demais modelos

apresentados, é esta a vertente que alcança um distanciamento mais bem-sucedido

GD�PRUDO�DQWURSRFrQWULFD��+i��GHVVD�IRUPD��XPD�rQIDVH�QR�SODQHMDPHQWR�ELRUUHJLRQDO�

FRPR�SLODU�PHWRGROyJLFR�H�FRQFHLWXDO�GRV�HVIRUoRV�GH�SODQL¿FDomR�GR�XVR�GH�UHFXUVRV�

e serviços-chave. A saber, as biorregiões são unidades convenientes de planejamento

GHOLPLWDGDV�SRU�IURQWHLUDV�QDWXUDLV��WRSRJUD¿D��YHJHWDomR�RX�WLSR�GH�VROR��H�J��EDFLDV�

KLGURJUi¿FDV��YDOHV��HFRVVLVWHPDV��GRWDGDV�GH�UHODWLYD�VX¿FLrQFLD�TXDQWR�j�JDUDQWLD�

de funções ambientais mínimas à manutenção da vida.

Por trás do apelo à regionalização e à relocalização das atividades humanas,

há uma forte crítica ao modus operandi das economias globalizadas, à íntima

GHSHQGrQFLD�SRU�SDUWH�GDV�JUDQGHV�H�PHJDFLGDGHV�GRV�ÀX[RV�FRQWLQJHQWHV�GH�FDSLWDLV�

Page 61: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

60

¿QDQFHLURV�H�UHFXUVRV�PDWHULDLV�GH�]RQDV�SURYHGRUDV�ORQJtQTXDV��HVSHFLDOL]DGDV�HP�

SURYLPHQWR�H��SRU� LVVR�� LJXDOPHQWH�GHSHQGHQWHV���1R�DWXDO�HVWiJLR�GH�XUEDQL]DomR�

JOREDO��D�PDLRULD�GDV�FLGDGHV�PpGLDV�H�JUDQGHV�Mi�FRPSURPHWHUDP�SDUWH�VLJQL¿FDWLYD�

de suas capacidades naturais internas de regeneração, absorção e provimento de

elementos básicos como água, cobertura vegetal, solos férteis e áreas e corpos

G¶iJXD�SDUD�GHVWLQDomR�¿QDO�GH�UHVtGXRV��(P�XP�SULPHLUR�PRPHQWR��SRUWDQWR��HVWD�

reorientação poderia vir a ser traduzida em um fardo insuportável aos compartimentos

biogeofísicos urbanos já debilitados. De um ponto de vista intra-urbano, tais propostas

LQWHQVL¿FDULDP�R�XVR�GH�UHFXUVRV�H�VHUYLoRV�ORFDLV��WRUQDQGR�PDLV�GUDPiWLFR�R�ULVFR�GH�

exaustão e colapso dos frágeis ecossistemas urbanos.

Do raciocínio anterior decorre a pergunta: até que ponto os centros urbanos

VHULDP�FDSD]HV�GH�VXVWHQWDU�DXWRVVX¿FLrQFLD"�(VVH�QRV�SDUHFH�XP�SRQWR�GH�GHEDWH�

inequivocamente permeado por elementos éticos, porque, apesar do incansável

inventário de danos e projeções em escala global reunidos desde o primeiro relatório

SDUD�R�&OXEH�GH�5RPD��QmR�SDUHFH�KDYHU�IRUoD�RX�VLWXDomR�FRQVWUDQJHGRUD�R�VX¿FLHQWH�

no cenário internacional capaz de descarrilhar os vagões do business as usual

�0($'2:6�HW�DO���������52&.675g0�HW�DO����������e�IRUoRVR�TXH�D�DXWRQRPLD�DTXL�

perseguida parta, antes de tudo, de um reconhecimento dos efeitos deletérios de uma

HVWUXWXUDomR� KHWHURQ{PLFD� GH� RUGHP� FRPSHWLWLYD��&DGD� FLGDGH� DXW{QRPD�p�� GHVWH�

modo, chamada à responsabilidade. Assim como, paralelamente, seu corpo cidadão

tem sido persuadido a uma prática cotidiana de consumo e descarte conscientes, as

cidades haveriam de incluir substancialmente preocupações com o que acontece em

suas regiões metropolitanas, franjas urbanas, pontos de conurbação e áreas agrícolas

e protegidas contidas na mesma biorregião de referência. Preocupações de ordem

global também haveriam de ser contempladas, uma vez que os problemas nesse

nível não necessariamente são açambarcados pelas estratégias de regionalização e

relocalização das atividades.

� 3RU�YLDV�VHFXQGiULDV�jV�SROtWLFDV�YROWDGDV�SDUD�SHVVRDV��DV�FLGDGHV�DXW{QRPDV�

aproximar-se-iam das possibilidades de ruptura com a subordinação das sociedades

aos mercados autorregulados, porque ao se apostar nas capacidades dos mercados

FRRSHUDWLYRV�ORFDLV��FRP�D�LQWHUQDOL]DomR�GD�DWLYLGDGH�HFRQ{PLFD�H�XVR�GH�UHFXUVRV�

locais para satisfação das necessidades, advoga-se um redimensionamento do

HVSHFWUR� GH� DomR� GRV� VLVWHPDV� HFRQ{PLFRV� DRV� OLPLWHV� GH� VXDV� EDVHV� PDWHULDLV�

Page 62: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

61

regionais (Quadro 1��� 2� TXH� QmR� UHSUHVHQWD� QHFHVVDULDPHQWH� XP� FHUFHDPHQWR�

JHQHUDOL]DGR� GDV� WURFDV� WUDQVIURQWHLULoDV� LQWHUUHJLRQDLV�� VLJQL¿FD� DSHQDV� WRUQi�ODV�

FRPSOHPHQWDUHV�RX�DFHVVyULDV��8PD�FLGDGH�DXW{QRPD�GHYH�VHU�FDSD]�GH�QmR�LPSRU�

o peso de sua existência a outra.

� 0DLV�XPD�YH]��VREUH�YDULiYHLV�LQGHSHQGHQWHV�QRV�GLVFXUVRV��+DXJKWRQ��������

QRV�DOHUWD�SDUD�R� IDWR�GH�TXH�R�PRYLPHQWR�GH�UHGXomR�GH�HVFDOD�HFRQ{PLFD�D�¿P�

de geri-la regional e localmente traz consigo o risco de retenção deste tópico a um

aspecto meramente quantitativo. Acontece que, via de regra, governos são reativos

e letárgicos. Uma remodelação dos padrões de relacionamento com a vizinhança e

apropriação externa de recursos e serviços, incluindo o monitoramento co-responsável

das taxas de reposição e regeneração demandaria uma mudança drástica de postura

dos poderes executivos para que o duplo e ousado movimento de retorno à casa e

recuperação das funções de autonomia das biorregiões não dê margem a precipitadas

inferências sobre o fracasso do modelo.

� 2� TXH� HVWDPRV� WHQWDQGR� GL]HU� p� TXH�� SRVVLYHOPHQWH�� H[LVWLUi�� SDUD� FDGD�

biorregião e sua rede de aglomerados urbanos, uma relação fundamental de capital

natural crítico��'2%621��������SHUPLVVtYHO�j�UHSURGXomR�GHVVDV�FRPXQLGDGHV��PDV�

que, certamente, não será pautada pela atual estrutura de aquisição de estoques e

FRUUHQWHV�GH�ÀX[RV��GHPDQGDGRV��7DPSRXFR�VHUmR�DV�DWXDLV�IRUPDV�GH�VRFLDELOLGDGH�

capazes de demandar qualitativamente este outro padrão de consumo e produção da

natureza necessária.

Page 63: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

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Quadro 2. Caracteres identitários dos principais modelos de desenvolvimento urbano sustentável e

posicionamentos sobre o campo da sustentabilidade. Elaborado pelo autor.

Page 64: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

63

4. Cidades e paisagens: ruptura e reconciliação

“E os projetos todos tolos combinados

Perecerão nas margens da manhã

Uma tontura solta na cabeça

Um olho em deus e outro com satã

E quando o sol raiar desentendido

Eu vou ferir a vista no amanhã

E olharei para quem vai pro trabalho

Com os olhos, feito os olhos de uma rã”

6HQWLPHQWDO�HX�¿FR��5HQDWR�7HL[HLUD

� 2V� PRGHORV� GH� GHVHQYROYLPHQWR� XUEDQR� VXVWHQWiYHO� DSUHVHQWDGRV� QmR�

devem ser tomados como percursos autoexcludentes. Suas inconsistências foram

apresentadas com vistas ao estabelecimento de critérios que norteiem práticas

futuras de produção do espaço urbano e permitam aos cidadãos e aos tomadores de

decisão um subsídio crítico ao estabelecimento de prioridades em meio a tamanha

complexidade.

A partir de agora trabalharemos um dos aspectos que consideramos mais

QHJOLJHQFLDGRV� ±� SRUTXH� WDPEpP� SRXFR� LQYHVWLJDGRV� GR� SRQWR� GH� YLVWD� FLHQWt¿FR�

– no que concerne ao debate sobre cidades sustentáveis: as funções naturais do

VROR� XUEDQR�� 7HPRV� DWp� DTXL� QRV� DSRLDGR� H[WHQVDPHQWH� QD� DQiOLVH� GR� SUREOHPD�

urbano enquanto ausência profunda de respeito ou consideração, em primeiro lugar,

à pessoa (ao humano, retalhado em categorias hierárquicas e classes, que sub ou

VXSHUS}H�VH�j�¿JXUD�GR�WUDEDOKDGRU��GD�PHUD�PmR�GH�REUD�RX��PDLV�UHFHQWHPHQWH��GR�

FLGDGmR�FRQVXPLGRU��H��WDPEpP�HP�SULPHLUR�OXJDU��GLYLGLQGR�DV�DWHQo}HV��j�QDWXUH]D��

Cabe, nesse momento e a partir de tudo o que foi colocado até então, explicitarmos o

entendimento de que sustentável, para nós, trata-se da qualidade daquilo que respeita

e põe em primeiro lugar as pessoas e os processos naturais que sustentam a vida

humana e as demais formas de vida.

Antes, contudo, de ingressarmos nas possibilidades que se apresentam à

orientação do futuro das cidades a uma postura consequente e de respeito, devemos

compreender de que forma a história dos aglomerados humanos elegeu funções

essenciais em detrimento de outras.

Page 65: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

64

Quem ordena a vida nos aglomerados?

A cidade é uma criação histórica. Entende-se por isto que ela não esteve sempre

presente, seja como objeto concreto, ideia ou conceito. Entendemos também que a

cidade pode, inclusive, vir a não mais existir ou – o que parece agora mais provável

– poderá transformar-se dramaticamente em relação às formas até então conhecidas

�%(1e92/2��������S������6H�SRU�FLGDGH�UHIHULPR�QRV�D�GLIHUHQWHV�PDQLIHVWDo}HV�QR�

tempo e no espaço de aglomerações humanas sedentárias, de modo geral permissivas

D� WURFDV� �PHUFDGR��H� IUHTXHQWHPHQWH�DVVRFLDGDV�D�XPD�DGPLQLVWUDomR�S~EOLFD�� GH�

pronto, sentimos a necessidade de operarmos uma subjetivação extra ou alguma

DGMHWLYDomR�GHVWH�WHUPR�D�¿P�GH�ID]HU�MXV�jV�VXDV�QXDQFHV��e�OtFLWR��SRUWDQWR��HYRFDU�

a cidade-Estado, a cidade-jardim, a cidade medieval, a cidade turística, a cidade

dormitório, a cidade interiorana, a cidade portuária, a cidade satélite ou, como temos

LQVLVWLGR�DTXL��D�FLGDGH�VXVWHQWiYHO��/(1&,21(��������

� 2�XUEDQR��DLQGD�TXH� WHQKD�VH�HVWDEHOHFLGR�FRUUHQWHPHQWH� FRPR�DTXLOR�TXH�

concerne à cidade, é um termo que surge a posteriori à ideia de cidade. Em língua

portuguesa, por exemplo, os registros etimológicos apontam para o surgimento do

vocábulo “urbe´�GDWDGR�DR�VpFXOR�����HQTXDQWR�³FLGDGH´�VHULD�GDWDGR�GR�VpFXOR�����

/HQFLRQH��������H[SOLFD�TXH�WDQWR�R�FRQFHLWR�GH�FLGDGH�TXDQWR�R�GH�XUEDQR�VH�DOWHUDP�

HP�VLJQL¿FDGR�VHJXQGR�DV�UHIHUrQFLDV�WHyULFDV�TXH�VXVWHQWDP�H�GmR�VHQWLGR�D�HVVHV�

termos. Se a explicitação dos pressupostos conceituais se faz necessária como

exercício de minimização dos ruídos comunicativos, nos apoiaremos nas distinções

WHyULFDV�GH�/HIHEYUH��������SDUD�SUHFLVDU�R�TXH�HQWHQGHPRV�SRU�IHQ{PHQR�XUEDQR�

(P� ������ /HIHEYUH� ODQoRX� D� KLSyWHVH� GH� XP� REMHWR� SRVVtYHO�� HP� YLDV� GH�

FRQIRUPDomR��D�VRFLHGDGH�XUEDQD�SOHQD��+i�PDLV�GH����DQRV��HVWH�DXWRU�DQXQFLDYD�

D�LUUXSomR�GR�IHQ{PHQR�XUEDQR��TXH�QDVFH�GD�LQGXVWULDOL]DomR�H�D�VXFHGH��1DTXHOH�

momento, dizia Lefebvre, a sociedade industrial estava a meio caminho de se tornar

uma sociedade urbana, que não é mera decorrência da cidade industrial, mas um

conjunto de novas relações sociais precipitadas por um movimento de implosão-

explosão das formas socioespaciais anteriores. Para ele, haveria um vetor gradativo de

transformação, que partiria da completa ausência de urbanização, a cidade entregue

aos objetos e processos naturais, ao outro extremo, da realização do urbano, em que

se consolida a realidade urbana. Sobre este eixo arbitrário (Figura 3���RUGHQDU�VH�LD��

Page 66: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

65

em primeiro lugar, os grupos humanos coletores, pescadores, caçadores e pastores,

a quem caberia o reconhecimento prévio do espaço que viria – para os casos em

que esta transformação se deu – a ser ocupado por camponeses sedentários. Com

prudência ante a carga de ideologia presente nas asserções sobre o surgimento das

cidades na Europa após a desestruturação do Império Romano, Lefebvre limita-se a

dizer que, daquilo que se tem registro, a cidade, em todos os casos acompanhou a

DOGHLD��/()(%95(��������S������

Por conta da cautela com que trata este assunto, Lefebvre inicia seu esquema

explicativo da emergência do urbano a partir da cidade política, situada mais à ponta

GD� DXVrQFLD� GH� XUEDQL]DomR� �HVTXHUGD��� (P� UHVXPR�� R� JUDQGH� HL[R� GH� UHIHUrQFLD�

representa o curso de mudanças nas relações socioespaciais constituídas, que

dominam e absorvem a produção agrícola. As narrativas elaboradas por Lefebvre

para sustentar as sucessões de tipos de cidades coincidem com as transformações

VRFLDLV� UHIHULGDV�SRU�3RODQ\L� ��������PHQFLRQDGDV�TXDQGR� WUDWDPRV�GRV�SRWHQFLDLV�

de transformação contidos no discurso de cidades para pessoas. Estas transições

revelam rupturas nas formas de organização da sociedade, dos modos de produção

de bens e ocupação do espaço e via de regra são marcadas por forte resistência aos

GHVORFDPHQWRV�H�UHVVLJQL¿FDo}HV�

Figura 3.�(L[R�GH�LUUXSomR�GR�XUEDQR��$GDSWDGR�GH�/HIHEYUH�������� Elaborado pelo autor.

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66

A cidade política resistiu durante séculos à penetração da mercadoria e

procurou manter a sua estrutura hermética às formas móveis de propriedade que

os comerciantes e os mercados anunciavam. Sua relação com o campo (o monarca

detinha a propriedade, mas a posse efetiva do solo era dada aos camponeses

PHGLDQWH�WULEXWDomR��H�FRP�DV�DOGHLDV�VXERUGLQDGDV��DPSDUDGD�SHOR�GHVHQYROYLPHQWR�

da escrita, era de administração e direção dos trabalhos agrícolas e artesanais.

Nesse sentido, as trocas eram mínimas, suplementares e limitadas à manutenção das

instituições de poder. Em um dado momento, no entanto, – ao ocaso da Idade Média

QR�2FLGHQWH�HXURSHX�±�DV�WHQWDWLYDV�GH�FRQTXLVWD�H�FRORQL]DomR�GR�HVSDoR�XUEDQR�

por parte dos mercados logram sucesso. Este é o momento em que Polanyi (2012,

S������UHFRQKHFH�H�GHPDUFD�R� LQtFLR�GR�JDQKR�GH� LPSRUWkQFLD�GRV�PHUFDGRV�VREUH�

a sociedade, é quando surge, sobre os escombros das antigas cidades políticas, a

cidade comercial.

1R� FXUVR� GHVVD� OXWD� �GH� FODVVHV�� FRQWUD� RV� VHQKRUHV�� SRVVXLGRUHV� H�

GRPLQDGRUHV�GR�WHUULWyULR��OXWD�SURGLJLRVDPHQWH�IHFXQGD�QR�2FLGHQWH��FULDGRUD�GH�XPD�

história e mesmo de uma história tout court, a praça do mercado torna-se central.

(OD�VXFHGH��VXSODQWD��D�SUDoD�GD�UHXQLmR��D�iJRUD��R�IyUXP���(P�WRUQR�GR�PHUFDGR��

tornado essencial, agrupam-se a igreja e a prefeitura (ocupada por uma oligarquia de

PHUFDGRUHV���FRP�VXD�WRUUH�H�VHX�FDPSDQiULR��VtPEROR�GH�OLEHUGDGH��'HYH�VH�QRWDU�

TXH�D�DUTXLWHWXUD�VHJXH�H�WUDGX]�D�QRYD�FRQFHSomR�GD�FLGDGH��2�HVSDoR�XUEDQR�WRUQD�

se o lugar do encontro das coisas e das pessoas, da troca. Ele se ornamenta dos

VLJQRV�GHVVD� OLEHUGDGH�FRQTXLVWDGD�TXH�SDUHFH�D�/LEHUGDGH���/()(%95(��������S��

���

Uma vez estabelecida a troca comercial como função urbana, daí emergem

novas formas e estruturas urbanas. A centralidade da praça do mercado, mencionada

QD�FLWDomR�GH�/HIHEYUH�p�VLQWRPiWLFD�j�GLVSXWD�GDV�HQWLGDGHV�FRPHUFLDLV�SRU�LQÀXrQFLD�

e prestígio sobre os poderes políticos. As tensões entre cidade e campo até então

praticamente não existiam, porque a cidade política e os primórdios das cidades

mercantis se confundiam com o próprio campo. Porém, os ganhos de importância

dos mercados não cessam de crescer e as transformações das relações e do espaço

�SUROLIHUDomR�GH� ORMDV�H�JDOHULDV��VHJXHP�VHX�FXUVR�DVFHQGHQWH�� WDQWR�TXH��HP�XP�

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67

dado momento, o status de heterotopia, – de estranhamento geral sobre os símbolos

da cidade – se inverte e o campo passa de centralidade à vizinhança. A consolidação

GDV�FLGDGHV�PHUFDQWLV�FXOPLQD�FRP�D�HVWUXWXUDomR�GRV�PHUFDGRV�LQWHUQRV��QDFLRQDLV���

que surgem como resposta à necessidade de regulação das trocas externas e passam

D�LQÀXLU�GLUHWDPHQWH�VREUH�D�GLQkPLFD�HFRQ{PLFD�GR�FDPSR�H�GDV�FLGDGHV��32/$1<,��

������S������

� 3RU�¿P��R�PRYLPHQWR�GH� implosão-explosão a que Lefebvre se refere é uma

tentativa de contornar as limitações das descrições sabidamente fragmentadas e

LQVX¿FLHQWHV�� TXDVH� VHPSUH� LQFDSD]HV� GH� UHXQLU� VDWLVIDWRULDPHQWH� DV� FRHUrQFLDV�

H� DV� FRQWUDGLo}HV� HPEXWLGDV� QD� FRPSOH[LGDGH� GR� SURFHVVR� KLVWyULFR�� 7UDWD�VH� GH�

um termo emprestado da física nuclear em alusão às transformações provocadas

pela incrustação da indústria na cidade comercial. Para o autor, a indústria rompe

com a realidade urbana, projetando a não-cidade. Sua insinuação à cidade se dá

não em função de matérias-primas e fontes de energia, mas sim em busca de uma

proximidade oportuna em relação a capitais e reservas de mão-de-obra barata.

De forma semelhante à penetração dos mercados na cidade política, as cidades

mercantis e políticas resistiram à colonização das indústrias por meio de posturas

corporativistas e engessamento das relações, atitudes perniciosas ao grau elevado

de mobilidade demandado pelo capital industrial. Uma hora, no entanto, a produção

industrial suplanta o acúmulo mercantil e reorganiza as trocas comerciais a seu favor,

multiplicando-as. A cidade industrial implode porque concentra todos os capitais

�PDWHULDO�� ¿QDQFHLUR�� KXPDQR�� FXOWXUDO�� FLHQWt¿FR�� H� DWLYLGDGHV�� SODVPDQGR�RV� QD�

realidade urbana. E explode porque cria projeções dessa realidade onde quer que

UHODo}HV�FRP�D�FLGDGH�VH�HVWDEHOHoDP��/()(%95(��������S������

A zona crítica que se situa no esquema (Figura 3�� HP� VXFHVVmR� j� FLGDGH�

LQGXVWULDO� UHSUHVHQWDYD� HP� ������ SDUD� /HIHEYUH�� XPD� VXSRVLomR� WHyULFD� GH� TXH� D�

realidade urbana pulverizada e generalizada pela formidável expansão da cidade

industrial haveria de converter-se em força produtiva capaz de promover uma nova

LQYHUVmR� GH� FHQiULR�� WUDQVIRUPDQGR� DV� UHODo}HV� GH� SURGXomR��2� XUEDQR�� QR� FXUVR�

de uma crise profunda, apropriar-se-ia da industrialização enquanto força dominante

e passaria a reger os rumos da cidade a partir da legitimação de uma problemática

tipicamente urbana, concluindo o ciclo de subordinação do agrário ao urbano iniciado

com a emergência das cidades comerciais. Quarenta anos depois, podemos dizer que

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este pensador foi feliz em suas predições, pois, ainda que a urbanização completa

não esteja em absoluto efetivada, o mundo urbano e a realidade urbana atualmente

exibem inequívocas provas de seu estabelecimento histórico como centralidade

ordenadora. Isso não quer dizer que a indústria e o agrário tenha tido seus problemas

integralmente absorvidos pelo urbano, apenas que a eles tem sido paulatinamente

negado os holofotes ao primeiro plano.

O pensar e o repensar urbanístico

� 2� XUEDQLVPR�� UHÀH[mR� H� SUiWLFD� GH� RUGHQDPHQWR� H� RUJDQL]DomR� GR� HVSDoR�

urbano, que surge como resposta às transformações socioespaciais desencadeadas

SHOD�GLVVHPLQDomR�GD�¿JXUD�GD�PiTXLQD�QD�VRFLHGDGH�LQGXVWULDO��SRGH�VHU�DSUHHQGLGR�

GH� GXDV� IRUPDV� EiVLFDV�� XPD� GH� FDUiWHU� FLHQWt¿FR�WpFQLFR� H� RXWUD� GH� DVSHFWR�

LQVWLWXFLRQDO�LGHROyJLFR�� �2�VpFXOR����FRQKHFHX�XPD�VDIUD�QRWiYHO�GH�SHQVDGRUHV�H�

idealizadores de soluções urbanas para a aparente desordem crescente que a expansão

do capital industrial promoveu nas cidades. De todo modo, é apenas no século 20,

que o urbanismo desponta como terreno de ingerência reservada a especialistas, os

arquitetos. É quando também o corpo de formulações teóricas encontra receptividade

H�FRQGLo}HV�VLJQL¿FDWLYDPHQWH�PDLRUHV�GH�UHDOL]DomR�SUiWLFD��&+2$<��������S������

� 6H� SRXFRV� SHQVDGRUHV� GR� SHUtRGR� SUp�XUEDQLVWD� HXURSHX� GR� VpFXOR� ���

associavam conscientemente a desordem observada no espaço ao estabelecimento

GH�XPD�QRYD�RUGHP�VRFLRHFRQ{PLFD��GH�UDFLRQDOLGDGH�H�OyJLFD�SUySULDV��D�SHUFHSomR�

histórico-contextual praticamente some do pensamento urbanístico do século 20, que

VH�SUHWHQGH�FLHQWt¿FR�H��SRUWDQWR��QmR�SRQGHUD�VREUH�D�QHFHVVLGDGH�GDV�VROXo}HV�H�

verdades que apresenta como resultados de suas pesquisas e medições.

� $LQGD�TXH�&KRD\��������GHVWDTXH��GHVGH�RV�SULPyUGLRV�GR�SHQVDU�XUEDQtVWLFR��

D�H[LVWrQFLD�H�D�SHUVLVWrQFLD�GH�WUrV�FRUUHQWHV�EiVLFDV�H�DQWDJ{QLFDV��SURJUHVVLVWD��

FXOWXUDOLVWD�H�DQWLXUEDQD�QDWXUDOLVWD���GDUHPRV�rQIDVH�DTXL�jTXHOD�TXH�PDLV�LQÀXHQFLRX�

H�FRQTXLVWRX�VWDWXV�QRUPDWLYR�DRV�PDLV�GLYHUVRV�UHJLPHV�HFRQ{PLFRV�H�SROtWLFRV��R�

modelo modernista progressista. Esta corrente, tida como funcionalista, dissemina-se

SRU�RFDVLmR�GRV�&�,�$�0�� �FRQJUHVVRV� LQWHUQDFLRQDLV�GH�DUTXLWHWXUD�PRGHUQD���TXH��

de início, detinham-se à apreciação dos problemas relativos à habitação, mas que, a

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69

SDUWLU�GH�������GHGLFDP�VH�DR�XUEDQLVPR�GH�IRUPD�DEUDQJHQWH��(P�������RV�DUTXLWHWRV�

participantes do 4° congresso embarcaram em um cruzeiro pelo Mediterrâneo rumo

à Grécia e daí elaboraram a Carta de Atenas��TXH�VH�¿UPRX�FRPR�FDUWLOKD�GRXWULQiULD�

do urbanismo progressista. Sua formulação básica apoia-se na ideia de modernidade

– novidade anunciada pela indústria e pela arte de vanguarda da época – e que, por

não se adequar ao automóvel ou à estética cubista, a grande cidade do século 20 se

fazia démodé.

� 2V�DUTXLWHWRV�PRGHUQLVWDV��LQHEULDGRV�SHOD�SURPHVVD�GH�H¿FiFLD�GRV�PpWRGRV�

industriais de mecanização e padronização de procedimentos, internalizaram a

racionalidade instrumental e a conduziram às últimas consequências no campo

especializado de atuação a que lhes foi reservado. Nesse afã, conceberam como

princípio orientador de seus modelos o homem-tipo e a ele estabeleceram necessidades

humanas universais: habitar, trabalhar, locomover-se e cultivar o corpo e o espírito.

Assim, grosso modo, zonearam o espaço urbano, isolando espacialmente o loco de

cada uma dessas funções, tal e qual distribui-se as tarefas e reparte-se o trabalho

em uma fábrica. Por mais absurda e epistemologicamente pobre que atualmente

soe este empreendimento de redução e atomização do ser humano, os urbanistas

SURJUHVVLVWDV�QmR�¿]HUDP�PDLV��QRV�SDUHFH��TXH�GDU�FDER�HP�VXD�VHDUD�D�XPD�IRUPD�

de pensar que permeou e impregnou de um antropocentrismo arrogante as inúmeras

UHDOL]Do}HV�WpFQLFR�FLHQWt¿FDV�GR�VpFXOR����

É bem verdade que, a cada intervenção e às mãos de cada planejador e

executor, os princípios aí expostos conseguiram ser implementados de forma ora

PDLV�� RUD� PHQRV� ¿HO� DRV� SUHFHLWRV� RULJLQDLV�� 2� TXH� TXHUHPRV� GHPDUFDU� DTXL� p�

que, com a Carta de Atenas, abre-se o precedente para a intervenção a-histórica

no espaço urbano. A utopia modernista, ao desenhar-se livremente no imaginário,

sem constrangimentos, lida facil e frequentemente com o arbitrário e, dos modelos

de intervenção arbitrários se pode dizer: não podem se concretizar em respeito a

preexistências culturais e WRSRJUi¿FDV. Postulamos, portanto, que são os princípios

de ordenamento urbano cunhados pelos urbanistas progressistas que lançaram as

origens das práticas racionalmente promotoras de risco nos sistemas socioambientais

intraurbanos.

A disseminação do urbanismo modernista engendrou um espectro amplo de

críticas e resistências teóricas e práticas. Sem nos aprofundarmos no universo de

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70

contribuições que daí surgem, focaremos em um aspecto principal, destacado por

&KRD\� ������� S�� ����� D� UHIXWDomR� GR� GRPtQLR� GD� DUELWUDULHGDGH� H� GR� LPDJLQiULR� QR�

fundamento do planejamento urbano, substitui-o por uma busca de informações sobre

a realidade e subordina-o a um esforço de investigação prévia.

Dito isto, podemos nos perguntar, retomando o ponto com que inciamos o

tópico: a obrigatoriedade de realização de estudos sobre as áreas de intervenção,

por ocasião da regulamentação do processo de planejamento que decorre dessa fase

FUtWLFD��FRQIHUH�DR�XUEDQLVPR�XP�FDUiWHU�PHQRV�LGHROyJLFR"

� 6HJXQGR�/HIHEYUH��������S�������D�ÀDJUDQWH�DXVrQFLD�GH�XPD�HSLVWHPRORJLD�

urbanística constitui um traço indicativo de que esta lacuna talvez nunca seja

preenchida, ou melhor, de que possivelmente associado à natureza da ciência e da

teoria da localização humana haja um indissolúvel aspecto político (institucional-

LGHROyJLFR���&KRD\� �������S������S}H�HVWD�TXHVWmR�GH� IRUPD�FDWHJyULFD�DR�FRQFOXLU�

TXH�R�SODQHMDPHQWR�XUEDQR�FLHQWt¿FR�p�XP�GRV�PLWRV�GD�VRFLHGDGH�LQGXVWULDO�H�TXH�

HVWH�ODERU�QmR�WHP�FRPR�VH�FRQVROLGDU�FRPR�REMHWR�GH�ULJRU�FLHQWt¿FR��$LQGD�TXH�R�

constrangimento imposto pela realização obrigatória de estudos prévios e coletas de

LQIRUPDo}HV�FRQ¿UDP�PDLRU�FRQVLVWrQFLD�jV�SURSRVWDV�H�DOJXPD�SURWHomR�FRQWUD�R�

imaginário, argumenta, sempre restará um resíduo de arbitrariedade de escolha ao

SODQHMDGRU�H�DR�WRPDGRU�GH�GHFLVmR��FXMDV�SURSRVWDV�H�MXVWL¿FDWLYDV�QmR�HVWmR�LPXQHV�

a tendências e a sistemas de valores.

Percebe-se uma postura de desacordo entre esses dois autores no que diz

UHVSHLWR� DR� YDORU� H� DR� VLJQL¿FDGR� GD� XWRSLD� QR� SHQVDPHQWR� XUEDQtVWLFR�� &KRD\�

demonstra uma preocupação com as SUiWLFDV� GR� XUEDQLVPR� GH� ¿FomR� FLHQWt¿FD,

de ponta de faca (hábil em dilacerar e demover estruturas e tramas de relações

VRFLRHVSDFLDLV�� RX� GD� arquitetura da escavadeira (alheia ao valor de existência

GH� PRQWDQKDV� H� GH� SHUVLVWrQFLD� GH� YDOHV��� 5HVSDOGDGD� SHOD� FDUWD� EUDQFD� GH� XP�

aparato tecnológico surpreendentemente capaz de dar vazão aos devaneios dignos

de romances futuristas, a utopia, vista por este prisma, representaria um risco sem

precedentes ao habitante do espaço urbano que se vê à mercê do planejador e dos

recorrentes rituais de sacrifício praticados por tecnólatras devotos – adoradores da

inovação tecnológica.

Lefebvre parece compreender o risco a que Choay se reporta, mas ao apontar

a dimensão política incutida na prática de planejamento urbano, percebe que esta se

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71

abre a duas críticas, uma de esquerda e uma de direita. A crítica de direita, segundo ele,

FRQWpP�H�MXVWL¿FD�XPD�LGHRORJLD�QHROLEHUDO�GH�LQWHUYHQomR�QR�HVSDoR��LGHQWL¿FDGD�FRP�

as iniciativas privadas e com a adequação da cidade à livre circulação dos capitais. À de

esquerda, explica, não estaria necessariamente associada uma ideologia esquerdista,

PDV�SRU�HOD�PDQWpP�VH�DEHUWD�D�YLD�GR�SRVVtYHO��D�¿P�GH�TXH�VH�SRVVD�H[SORUDU�DOJR�

além do que se apresenta como real e frequentemente engessado por contingências

HFRQ{PLFDV��SROtWLFDV�H�VRFLDLV� �/()(%95(��������S�������/HIHEYUH�QmR�SRGH�DEULU�

mão da crítica utópica, porque enxerga nela as possibilidades de superação do status

quo. A tecnotopia, o lugar da técnica, em oposição à WHFQySROLV, cidade da técnica,

LGHQWL¿FD�XPD�GDV�FRUUHQWHV�FUtWLFDV�jV�UHDOL]Do}HV�PRGHUQLVWDV�DSRQWDGDV�SRU�&KRD\�

e, no entanto, situa-se à vertente esquerda da leitura de Lefebvre. Esta corrente chama

a atenção para a possibilidade de aniquilamento, contida no imaginário, da relação

HQWUH�R�VXMHLWR�H�VXD�PRUDGD��+DELWDU��SRU�PDLV�TXH�WHQKD�WLGR�D�VRUWH�GH�VXELU�DR�SyGLR�

das funções-chave eleitas à representação do homem-tipo modernista, não cumpre

PHUD�UHODomR�GH�XWLOLGDGH��³2�KDELWDU�p�D�RFXSDomR�SHOD�TXDO�R�KRPHP�WHP�DFHVVR�DR�

VHU��GHL[DQGR�VXUJLU�DV�FRLVDV�HP�WRUQR�GH�VL��HQUDL]DQGR�VH´��&+2$<��������S�������

Daí a necessidade de defesa e alerta acerca do pensamento urbanista utópico.

As fronteiras do respeito

� $�LQÀXrQFLD�GR�XUEDQLVPR�SURJUHVVLVWD�H�R�³SURJUHVVR´�SURSULDPHQWH�HQJHQGUDGR�

D�UHERTXH�GD�UHYROXomR�FLHQWt¿FR�WHFQROyJLFD�GR�VpFXOR�����HQWUH�RXWURV�IDWRUHV��SHOD�

necessidade posta de reconstrução de tecidos urbanos destruídos nos pós-guerras,

resultaram em dramáticas alterações das paisagens urbanas, de escala e qualidade

GL¿FLOPHQWH�DQWHV�YLVWDV�RX�GRFXPHQWDGDV��$�VHJXQGD�PHWDGH�GR�VpFXOR�p�PDUFDGD�

por um duplo movimento: de expansão do capital de forma globalizada – apropriação

de novas fronteiras interioranas de provimento energético, material, hídrico e agrícola;

e de urbanização de paisagens até então ignoradas, porque problemáticas à ocupação

±�H�GH� WRPDGD�GH�FRQVFLrQFLD�GRV�VLJQL¿FDGRV�� OLPLWHV�H� ULVFRV�DVVRFLDGRV�D�HVVH�

movimento.

No ambiente urbano, a face débil da deformação a que a racionalidade

instrumental submeteu as condições de existência e de uso e ocupação do espaço

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revela-se de modo exemplar com a falência dos modelos higienistas de intervenção

e promoção da modernidade. As soluções pensadas segundo o paradigma técnico-

FLHQWt¿FR� UHLQDQWH� j� pSRFD�� VXVWHQWDGR� QD� VLPSOLFLGDGH�� QD� HVWDELOLGDGH� H� QD�

REMHWLYLGDGH�GR�XQLYHUVR��9$6&21&(//26��������S�������� WHUPLQDUDP�SRU�HVIDWLDU�

o relevo intra e periurbano; subjugaram as funções geomorfológicas dos vales e

topos de morros, as funções ecológicas dos manguezais, das dunas, faixas de

praia, lagos, lagoas, rios e coberturas vegetais; deslocaram por completo regimes de

manifestação das dinâmicas climáticas e hidrológicas, segundo ações indiscriminadas

GH�GHVPDWDPHQWR��DWHUUDPHQWR�H�WHUUDSODQDJHP��UHWL¿FDomR�H�FDQDOL]DomR�GH�FXUVRV��

HGL¿FDomR�H�LPSHUPHDELOL]DomR�GR�VROR��*256.,��������S�������(VWD�GHVFDUDFWHUL]DomR�

intensa do meio ambiente urbano ou mesmo a sua negação (existe mesmo uma

QDWXUH]D�XUEDQD"���SDWURFLQDGD�SHODV�SRVVLELOLGDGHV�WpFQLFDV�JHVWDGDV�QR�kPELWR�GD�

engenharia, demarca um período que se estende até o presente, de ruptura virtual

com o elo de dependência material da cidade e de seus habitantes em relação aos

sistemas vivos de suporte interno.

Em consideração a fronteiras imaginárias e concretas da dignidade humana e

de resiliência dos sistemas vivos, que, por todo o mundo, mas em especial nos países

subdesenvolvidos do Sul, foram e seguem sendo paulatinamente ultrapassadas,

WHPRV�QRV�UHIHULGR�D�WDO�PRYLPHQWR�FRPR�XP�JHVWR�GH�GHVUHVSHLWR��2�TXH��HP�WHUPRV�

globais, durante algum tempo na literatura sobre desenvolvimento sustentável, se

WUDWRX� SRU� OLPLWHV�� XPD� YH]� WUDQVSRVWRV�� WRUQDUDP�VH� IURQWHLUDV� �0($'2:6� HW� DO���

������52&.675g0�HW�DO����������$VVLP��FRQFHEHPRV�SDUD�RV�QtYHLV�ORFDO�H�UHJLRQDO�

o conceito de fronteiras do respeito. A perspectiva de análise sobre a qual nos

apoiamos até aqui nos permite agora associar à ideologia modernista o mérito de

consagração no cenário urbano de uma racionalidade essencialmente disjuntiva,

originária do Renascimento europeu e que, mais tarde, consentiu à humanidade a

ilusão do desacoplamento estrutural com o meio natural, ilusão de domínio e submissão

da natureza e de suas forças à sua vontade, ainda que por um curto lapso no tempo.

� $� SDUWLU� GD� GpFDGD� GH� ������ SXOXODP� FUtWLFDV� DR� PRGHOR� GH� SODQHMDPHQWR�

progressista no que tange à negligência de outros elementos essenciais à vida urbana

e põe-se em xeque a consequente pobreza resultante dos ambientes construídos

à luz dessa concepção. Este momento coincide com a emergência das questões

DPELHQWDLV�QR�FHQiULR�JOREDO�H�D� UHYDORUL]DomR�GDV�FLrQFLDV�VRFLDLV� �.$1$6+,52��

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73

������

� $�XUEDQL]DomR�FDyWLFD�YLYHQFLDGD�QRV�DQRV������H������SHORV�SDtVHV�ODWLQR�

americanos desenharam os contornos de uma crise urbana sem precedentes,

PDUFDGD� SRU� DOWDV� WD[DV� GH� GHVHPSUHJR� H� VXEHPSUHJR�� Gp¿FLWV� KDELWDFLRQDLV� H�

alimentares, endividamento, marginalidade e favelização, falência e abandono de

IXQo}HV�GR�(VWDGR�QD�JDUDQWLD�GH�VHUYLoRV�EiVLFRV��6$1726��������S��������1R�%UDVLO��

as constrições e o mal-estar desse período deram origem ao Movimento Nacional de

5HIRUPD�8UEDQD��0158���TXH�ODQoRX�DV�EDVHV�GH�XP�planejamento urbano alternativo

DRV�SUHFHLWRV�PRGHUQLVWDV�HXURFrQWULFRV��LQÀXHQFLDQGR�D�FRQVWLWXLQWH�H�D�SROtWLFD�GH�

GHVHQYROYLPHQWR�XUEDQR�FRQVDJUDGD�QR�WH[WR�GR�(VWDWXWR�GDV�&LGDGHV��0$7,(//2��

�������1R�SODQR�HXURSHX��PXLWR�VH�GLVFXWLX�H�SUREOHPDWL]RX�D�SUiWLFD�XUEDQtVWLFD�H�R�

SDSHO�GR�SODQHMDPHQWR�XUEDQR�DR�ORQJR�GD�GpFDGD�GH�������3DUWH�GHVVDV�GLVFXVV}HV��

JDQKDUDP�FRUSR�FRP�D�HODERUDomR�GD�1RYD�&DUWD�GH�$WHQDV��(&37���������(P�WHUPRV�

gerais, o texto aglutina e sistematiza o pensamento europeu fundamentado por eventos

e documentos emblemáticos construídos ao curso deste decênio. A importância desta

nova carta refere-se, sobretudo, à legitimação de um novo discurso sobre a cidade,

TXH�KDYLD�HPHUJLGR�GH�PDQHLUD�PDUJLQDO�QRV�DQRV�������0$5&21'(6��������

Entre outras contribuições, o grupo de arquitetos e planejadores envolvidos

na redação do documento quis dar ênfase ao papel do cidadão como formulador

ativo das políticas e planos de desenvolvimento urbano, delegando ao planejador

urbano não mais que o papel de orquestrador dos anseios externados. Com ela, o

WHPD�GD�VXVWHQWDELOLGDGH�DPELHQWDO�WDPEpP�SDVVD�D�FRPSRU�D�DJHQGD�KHJHP{QLFD�

GD� SROtWLFD� XUEDQD�� $� FLGDGH� FRPSDFWD� H� HFRH¿FLHQWH� p� SURSRVWD� FRPR� PRGHOR�

(cidade redesenhada��HP�QRVVD�FODVVL¿FDomR���3DUD�0DUFRQGHV���������QR�HQWDQWR��

a carta insere-se em uma visão de ambientalismo moderado, porque não traz um

questionamento a fundo do tipo de desenvolvimento hegemonicamente propagado.

(VWD�~OWLPD�FRORFDomR�MXVWL¿FD�D�DWHQomR�TXH�GHGLFDUHPRV�DR�FDStWXOR�VHJXLQWH�

���&RQVLGHUDo}HV�¿QDLV

“O povo sabe o que quer

Mas o povo também quer o que não sabe”

Rep, Gilberto Gil

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74

As energias reunidas na cunhagem deste trabalho terão logrado êxito se

fornecerem um terreno mais sólido que àquele com que nos deparamos quando nos

inserimos no debate disto que se anuncia e se pretende como sustentabilidade urbana.

Apesar de termos nos referido a modelos de cidades sustentáveis, terminamos por

situar a limitação de qualquer pretensão de nível local a um devir sustentável. As

narrativas históricas que trouxemos à mesa demonstram: as fronteiras de suporte

dos sistemas socioambientais, os limites da racionalidade instrumental e os riscos

engendrados na produção do bem-estar são os frutos podres de um percurso virtuoso

de ascensão civilizatória, algo com que não se esperava lidar. Por esse motivo é que

insistimos no tratamento ético do assunto, pois entendemos que a fragilidade dos

discursos proferidos em âmbito internacional em defesa de sociedades mais justas e

equânimes poderia e pode ser assumida para políticas ambientais globais, que lidem

FRP�D�DPHDoD�GH�UXSWXUD�FDWDVWUy¿FD�GH�VLVWHPDV�GH�VXSRUWH�j�YLGD�FRP�D�PHVPD�

letargia com que tem sido tocadas as políticas sociais.

� 7HUHPRV� WLGR� r[LWR� VH� FRQVHJXLPRV� DTXL� GHPRVWUDU� TXH� VXVWHQWDELOLGDGH��

independente da abordagem, é sempre referência a uma fronteira planetária (o

SODQHWD�p�R�OLPLWH�~OWLPR��DWp�HQWmR��FRQVHQVXDO��H�TXH��SRUWDQWR��PDQHMRV�H�DFRUGRV�

interregionais são possíveis nos equacionamentos que se faça, mas que, sobre todo

arranjo possível, paira uma sombra de incerteza. Da incerteza decorre a postura

preventiva e é justamente nesse ponto que, após criticarmos as limitações da ação

local e regional, retornamos a ela. As fronteiras planetárias traduzem-se, nesses

níveis, em respeito aos serviços ambientais de suporte à vida. Ainda que as trocas

HFRQ{PLFDV� H� DV� VXSHUVDWXUDo}HV� WHFQROyJLFDV� �HVWDGR� LQVSLUDGR� SHOD� TXtPLFD� GH�

soluções, de sobreaproveitamento de um sistema vivo de suporte anteriormente à

UXSWXUD��SHUPLWDP�R�JR]R�GR�GHVDFRSODPHQWR�GDV�VRFLHGDGHV�GH�VXDV�EDVHV�PDWHULDLV��

QmR�SDUHFH�VHJXUR�QHP�jV�HFRQRPLDV�QHP�jV�FRPXQLGDGHV�GHSHQGHUHP�H�FRQ¿DUHP�

VHXV�IXWXURV�QHVWD�GLVSRVLomR�FRQWLQJHQWH�GH�DÀX[RV�TXH�OKHV�VmR�HVVHQFLDLV�

� 3RU�¿P��WHUHPRV�FXPSULGR�PDLV�TXH�R�SODQHMDGR�VH�D�DEHUWXUD�GD�SHUVSHFWLYD�

histórica empreendida puder provocar a reação do leitor quanto a esta derradeira

sugestão: os mercadores fundaram a cidade mercantil ao situarem a centralidade das

funções de mercado; os capitalistas sobrepujaram os mercados e o agrário seduzindo-

os às determinações das funções de produção; que cenário de forças, quais sujeitos

e que novas funções se anunciam no horizonte do século 21 para além da massa de

FRQVXPLGRUHV�H�GH�VHXV�HVWDGRV�GH�VDWLVIDomR�H�LQVDWLVIDomR"�

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75

Referências

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2010.

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sustentável num planeta urbano. Porto Alegre: Bookman, 2012.

/(1&,21(��6��2EVHUYDo}HV�VREUH�R�FRQFHLWR�GH�FLGDGH�H�XUEDQR��*(2863��HVSDoR�H�WHPSR��Q������

S�����±�����������

LENZI, C. L. Sociologia ambiental: risco e sustentabilidade na modernidade. Bauru, SP: Edusc, 2006.

0$5&21'(6��0��-��'(�$��,PDJHQV�H�UHSUHVHQWDo}HV�GD�FLGDGH��$�1RYD�&DUWD�GH�$WHQDV�H�VXDV�

UHVVRQkQFLDV�QR�XUEDQLVPR�EUDVLOHLUR$QDLV�GR�;9,,�(QFRQWUR�5HJLRQDO�GH�+LVWyULD���2�OXJDU�GD�

KLVWyULD��$QDLV���&DPSLQDV��$138+�63�81,&$03�������

Page 77: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

76

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sustentabilidade, decrescimento e prosperidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2012.

2¶5,25'$1��7��7KH�&KDOOHQJH�IRU�(QYLURQPHQWDOLVP��,Q��3((7��5���7+5,)7��1���(GV����7KH�1HZ�

0RGHOV�LQ�*HRJUDSK\��>V�O��V�Q�@��S����±�����

32/$1<,��.��$�JUDQGH�WUDQVIRUPDomR��DV�RULJHQV�GD�QRVVD�pSRFD�����HG��5LR�GH�-DQHLUR��(OVHYLHU��

2012.

52&.675g0��-��HW�DO��3ODQHWDU\�ERXQGDULHV��H[SORULQJ�WKH�VDIH�RSHUDWLQJ�VSDFH�IRU�KXPDQLW\��

(FRORJ\�DQG�6RFLHW\��Y������Q�����������

6$&+6��,��'HVHQYROYLPHQWR�VXVWHQWiYHO��GHVD¿R�GR�VpFXOR�;;,��$PELHQWH��6RFLHGDGH��Y�����S�����±

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8UEDQ�SROLF\�DQG�HFRQRPLF�GHYHORSPHQW��DQ�DJHQGD�IRU�WKH�����V��>V�O�@�7KH�:RUOG�%DQN��������S����

9$6&21&(//26��0��-��(��'(��3HQVDPHQWR�VLVWrPLFR��2�QRYR�SDUDGLJPD�GD�FLrQFLD��&DPSLQDV��63��

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2010.

Page 78: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

CAPÍTULO 3

Cidade de Fortaleza:

insinuações de Risco

e Respeito

Page 79: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

78

Capítulo 3. Cidade de Fortaleza: insinuações de risco e respeito

Pablo Pimentel Pessoa

5(6802

(VWH� DUWLJR� EXVFD� QD� KLVWyULD� GD� IXQGDomR� H� H[SDQVmR� GD� FLGDGH� GH� )RUWDOH]D� D�

compreensão dos processos conformadores do atual cenário de distribuição espacial

dos riscos socioambientais urbanos. Através da investigação da sucessão de esforços

de planejamento urbano, ensaia-se a interpretação de causas para a proliferação

ÀDJUDQWH�GH�SUiWLFDV� LQVXVWHQWiYHLV��$V� IRUPDV�GH�VRFLDELOLGDGH�XUEDQDV�PDUFDGDV�

por tipologias sobrepostas de segregação socioespacial e pela manutenção frágil

e constantemente ameaçada da funcionalidade dos compartimentos ambientais

sugerem a proximidade de um estado limite ou de uma fronteira à resiliência do

sistema socioambiental urbano. Nesse sentido, a construção do plano diretor de 2009

acena para uma mudança paradigmática orientada ao respeito às fronteiras sistêmicas

locais, mas, como indicam as experiências de implementação de planos passados,

isto deverá se dar em franca disputa entre sociedade interessada e governos afeitos

a privilégios e inobservâncias legais.

1. Introdução: Não é possível tentar o pneumotórax?

“Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três.

- Trinta e três... trinta e três... trinta e três... - Respire.

��2�VHQKRU�WHP�XPD�HVFDYDomR�QR�SXOPmR�HVTXHUGR�H�R�SXOPmR�GLUHLWR�LQ¿OWUDGR��

��(QWmR��GRXWRU��QmR�p�SRVVtYHO�WHQWDU�R�SQHXPRWyUD["� - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”

Pneumotórax, Manuel Bandeira

� $R�FXUVR�GR�DQR�SDVVDGR��������YLHUDP�D�WRQD�QD�LQWHUQHW�H�QDV�UHGHV�VRFLDLV�

GRLV� YtGHRV� GH� FDUiWHU� PXLWR� VHPHOKDQWH�� 2� SULPHLUR�� XPD� SURGXomR� EUDVLOHLUD�

independente intitulada “Ainda dá tempo”, lançava a seguinte pergunta a um grupo

Page 80: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

79

de pais: “como você imagina o futuro do mundo?”. As respostas dos entrevistados

anunciavam uma visão essencialmente pessimista de futuro e uma inclinação à

decadência das instituições postas, entre outros motivos, porque não se enxergava

um amadurecimento político quanto à escolha de representantes; porque o horizonte

SUy[LPR�DQXQFLDYD�R�DFLUUDPHQWR�GH�PDLV�FRQÀLWRV�H�JXHUUDV��RX�SRUTXH�VH�SHUFHELD�

uma deterioração das condições de vida num nível de dano impingido ao planeta que

se interpretava como irreversível. Em seguida, os entrevistados são convidados a

RXYLU�RV�UHODWRV�GH�VHXV�¿OKRV�VREUH�HVVH�PHVPR�IXWXUR�H�FRPRYHP�VH�DR�VREUHSRU�

as projeções das crianças (pretensos ginasta, artista, estilista, professora, skatista,

YHWHULQiULD�H�PpGLFD��DR�FHQiULR�TXH�KDYLDP�GHVHQKDGR�QR�PRPHQWR�DQWHULRU��2�¿OPH�

arremata, pondo-nos em xeque sobre como se daria a realização daqueles sonhos

se não houvesse quem se dispusesse a acreditar e apostar na possibilidade de um

mundo melhor.

� 2�VHJXQGR�YtGHR�WUDWD�VH�GH�XPD�SURGXomR�EDQFDGD�SHOR�JUXSR�DQJOR�KRODQGrV�

Unilever, uma corporação internacional instalada no Brasil há mais de 80 anos,

fabricante de produtos de higiene pessoal e limpeza, alimentos e sorvetes. Em “Por

que trazer uma criança a este mundo?” casais em período pré-natal, tomados pelas

DQJ~VWLDV�H�G~YLGDV�DVVRFLDGDV�j�UHVSRQVDELOLGDGH�GH�VH�WHU�XP�¿OKR��VmR�FRQYLGDGRV�

D�DVVLVWLU�XPD�VHTXrQFLD�GH�LPDJHQV�GH�FRQÀLWRV�DUPDGRV��WUDEDOKR�HVFUDYR��FHQiULRV�

GH�SROXLomR�H�GHVDVWUHV�QDWXUDLV��(P�VHJXLGD��D�SHUJXQWD�TXH�Gi�QRPH�DR�¿OPH�p�

lançada e surge um narrador que diz trazer algo de que aqueles pais precisavam saber.

Na fala aveludada do narrador, uma mensagem de acalanto: soluções para parte

desses problemas já são palpáveis e reais. Diz que tecnologias revolucionárias já são

capazes de produzir alimento e água potável para centenas de milhões de pessoas –

enquanto ri-se da chamada Guerra da Água – e que doenças que hoje afetam milhões

GH�FULDQoDV�ORJR�VHUmR�SUHYHQLGDV�FRP�VLPSOHV�SURGXWRV�GR�GLD�D�GLD��2�QDUUDGRU�QRV�

tranquiliza e também aos pais de que essas crianças terão corações mais saudáveis e

que provavelmente gozarão de maior longevidade, mas que, seguramente, quando a

vida lhes trouxer um dessabor de desamor – o que, garante, há de acontecer – para

eles também há de haver o colo frondoso de uma árvore onde possam prantear seus

pensamentos.

É curioso como o vídeo da Unilever quase soa como uma campanha para o

LQFUHPHQWR�GDV�WD[DV�GH�QDWDOLGDGH��PDV��HYLWDQGR�LQJUHVVDU�QD�SROrPLFD�GHPRJUi¿FD��

Page 81: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

80

o que de fundamental nas duas peças audiovisuais me parece sobressair é o esforço

para se desfazer o desencantamento do mundo. Parece difícil acreditar que o

século 20 tenha passado, para quem o tenha bem vivido e para alguém que agora o

FRQWHPSOH��FRP�XP�VHQWLGR�PHQRV�TXH��GLJDPRV��WUDXPiWLFR��2�FRPSRVLWRU�DUJHQWLQR�

Enrique Discépolo não teve os nervos de pagar pra ver o desenrolar da trama e,

em meio à chamada Década Infame, num país sedado pela corrupção generalizada,

HP������� FRQGHQRX� VHP�Gy� VXDV�GpFDGDV� VHJXLQWHV�� ³Siglo veinte, cambalache, /

Problematico y febril / El que no llora, no mama, / Y el que no afana es un gil. / Dale

nomás, dale que vá, / Que allá en el horno nos vamo a encontrar”. Como o autor do

tango, pergunto-me, cético, se a história não se presta a reservar a cada nova geração

um bom punhado de fatos e fardos que os formalmente apresente à desesperança.

Em todo caso, o debute do século 21, agrilhoado por problemas não

equacionados no século anterior dá sentido ao apelo e à sensibilização ensaiados

nos dois vídeos. Esse estado de desencantamento do mundo diz respeito, não

diretamente a uma decepção da humanidade para com os percursos civilizatórios, mas

a um processo de secularização da racionalidade por que passa o sujeito moderno ao

ORQJR�GR�VpFXOR����H�SULQFtSLR�GR�����DLQGD�TXH�R�GHVYHQFLOKDU�GRV�PLWRV�WUDGLFLRQDLV�

R�WHQKD�SRVWR�D�PHUFr�GH�QRYRV�PLWRV��%(1(9,'(6��������S��������(QWUH�RV�QRYRV�

PLWRV��HVWi�D�FUHQoD�QD�VDOYDomR�SHOR�SURJUHVVR�FLHQWt¿FR�WHFQROyJLFR�H�p�LQWHUHVVDQWH�

FRQIURQWDU�DV�QDUUDWLYDV�GRV�YtGHRV�H�YHU�TXH�R�TXH�¿FD�HP�DEHUWR�SDUD�UHÀH[mR�QD�

produção independente, faz-se questão de amarrar na produção corporativa (vale

dizer, associada a um projeto de responsabilidade socioambiental do grupo, o Project

Sunlight���VH�Ki�UHVSRVWD��HVWi�QD�WHFQRORJLD�

Neste artigo, faremos um esforço de localização de uma parcela estratégica

desses problemas no cenário urbano brasileiro ao caracterizarmos o estado da arte

GR�PXQLFtSLR� GH�)RUWDOH]D� �&(��%UDVLO��� FRP� IRFR� VREUH� RV� GHVUHVSHLWRV� ÀDJUDQWHV�

às vocações ambientais do sítio urbano e a direitos historicamente negados a uma

massa de cidadãos invisibilizados. A compreensão dos processos formadores de uma

estrutura urbana marcada por fortes traços acirradores de vulnerabilidades sociais e

de fragilidades ambientais deverão revelar elos fundamentais de difícil percepção que

frequentemente minam as opções de desenvolvimento para as cidades, posicionando-

as dicotomicamente ora como uma questão de urgência em minimização de riscos

�DJHQGD� QHJDWLYD�� RUD� FRPR� XP� GHEDWH� VHOHWLYR� VREUH� TXDOLGDGH� GH� YLGD�� YLVDQGR�

Page 82: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

81

XP� OHTXH� GH� IXWXURV� VHJXURV� H� GHVHMiYHLV� SRVVtYHLV� �DJHQGD� SRVLWLYD��� PDV� QmR�

necessariamente justos. Com isso, acreditamos que seremos capazes de dirimir,

com uma postura consequente, esta frágil polarização entre otimistas e pessimistas,

SHVVRDV�GH�Ip�H�FDWDVWUR¿VWDV��$¿QDO��GHQWUH�RXWURV�OHJDGRV��R�VpFXOR����WRUQRX�RX��

SHOR�PHQRV��IRUQHFHX�HOHPHQWRV�PDLV�TXH�VX¿FLHQWHV�SDUD�WRUQDU�HP�PXLWRV�VHQWLGRV�

constrangedor o posicionamento público de caráter maniqueísta, mutilador do

pensamento complexo.

2. Considerações metodológicas e predisposições subjetivas

Apoiados em uma perspectiva dita novo-paradigmática, de abandono dos

SUHVVXSRVWRV� FLHQWt¿FRV� WUDGLFLRQDLV�� UHFRQVWUXLUHPRV� DVSHFWRV� GH� IRUPDomR�

histórica da realidade fortalezense cujas escolhas e percursos de desenvolvimento

WRPDGRV� UHVXOWDP� QD� FRQ¿JXUDomR� GH� XP� TXDGUR� PDUFDGR� SRU� SURIXQGD� VLWXDomR�

de vulnerabilidade socioambiental, o que, consequentemente, torna questionável a

TXDOLGDGH�GD�WHVVLWXUD�HFRQ{PLFD�VREUH�D�TXDO�VH�DVVHQWD�H�VH�SUHWHQGH�VXVWHQWiYHO�

tal estrutura urbana. Com a rejeição da crença na existência de uma realidade objetiva,

DOKHLD�D�VXMHLWRV�REVHUYDGRUHV��D�QRomR�GH�YHUGDGH�QRYR�SDUDGLJPiWLFD�D¿UPD�VH�QR�

HVSDoR�LQWHUVXEMHWLYR��QR�HQFRQWUR�GH�GLVWLQWDV�VXEMHWLYLGDGHV��'HVVH�PRGR��MXVWL¿FDPRV�

a referência a manchetes de jornal, como elementos potencialmente captadores de

composições narrativas convergentes e divergentes, descritores de um determinado

tema em recorte afeito às determinações e oscilações das condições de vida urbana

às quais se pretende investigar. Às provocações das manchetes buscaremos conectar

H[SOLFDo}HV�KLVWyULFR�SURFHVVXDLV�HP�HVWXGRV�H�UHODWRV�GH�PDLRU�I{OHJR�

Cabe antecipar ao leitor a informação de que esta se trata de uma análise sob

a perspectiva de alguém que é natural da cidade objeto de estudo e que reside e

acompanha as transformações deste espaço há pelo menos duas décadas. Isto deverá

minimizar o espanto quanto a evidências discursivas, às quais optei por não me privar,

sobre a localização e o vínculo espacial da voz que vos fala. Esta advertência de forma

alguma livra o autor do exercício necessário de distanciamento dos fatos. Apenas

reconhece que uma análise multi-temporal e escalar, pretensamente complexa, entre

outras dimensões pode e deve se dar em cotejamento às predisposições subjetivas

do pesquisador. Ademais, sustento esta pequena ousadia no declame parnasiano de

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82

)OiYLR�9LOODoD��������j�FLGDGH�GR�5LR�GH�-DQHLUR��³As cidades são como as estrelas; é

preciso amá-las para entendê-las.”

3. Sala de honrarias e a ponta amolada do iceberg

“melhor é o Poder devolver presse povo a alegria

senão todo mundo vai sambar no dia

em que o morro descer e não for carnaval“

O dia em que o morro descer e não for carnaval,

Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro

Aqui iniciamos nossa busca por insustentabilidades no espaço urbano de

Fortaleza. Uma notícia recente (Figura 1a�� VREUH� R� FRQWUROH� GH� WHUULWyULRV� GHVWD�

FLGDGH� WURSLFDO�SRU�JDQJXHV� OHPEURX�PH�R�UHODWR�GH�-DFREV��������S������TXDQWR�D�

XP�SURFHVVR�VHPHOKDQWH�SRU�TXDO�1RYD�<RUN�SDVVDYD�QRV� LGRV�������(P�������R�

&RQVHOKR� -XYHQLO� GD�&LGDGH� EXVFDYD� ¿UPDU� SDFWRV� HQWUH� JDQJXHV� ULYDLV�� TXH�� SRU�

meio do reconhecimento do domínio desses grupos, propunham acordos de trégua.

2�FRPLVViULR�GH�SROtFLD�j�pSRFD�HQTXDGURX�D�WHQWDWLYD�GH�HQIUHQWDPHQWR�GR�SUREOHPD�

como uma opção inaceitável pela negação dos direitos do cidadão e à segurança

pública. Jacobs cita esse exemplo como uma das três formas possíveis de se conviver

com a insegurança.

A segunda maneira seria permitir a autotutela dos indivíduos, cujo produto

resulta numa cidade fortemente marcada por lugares onde o perigo impera e onde o

dar-se de cara com a ameaça é tido como uma triste casualidade. Já a terceira saída

caracterizada por Jacobs resume-se a uma estratégia de refúgio veicular, em que

os chassis e as blindagens servem de redoma neutralizadora de perigos, tal como

turistas expostos aos perigos de um safari e orientados a nunca abandonarem o

transporte. Nesse sentido, aproximam-se muito os depoimentos ilustrativos trazidos

nos dois textos:

As pessoas que se encontram em locais perigosos de outras cidades também

costumam utilizar automóveis como proteção, é claro, ou pelo menos tentam. Uma

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83

FDUWD�HQGHUHoDGD�DR�HGLWRU�GR�1HZ�<RUN�3RVW�GL]��³0RUR�QXPD�UXD�HVFXUD��WUDYHVVD�GD�

Avenida Utica, no Broklyn, e por isso decidi tomar um táxi para chegar à minha casa,

HPERUD�QmR� IRVVH� WDUGH��2�PRWRULVWD�SHGLX�TXH�HX�GHVFHVVH�QD�HVTXLQD�GD�8WLFD��

dizendo que não queria entrar na rua escura. E eu precisaria dele se quisesse andar

SRU�XPD�UXD�HVFXUD"´��-$&2%6��������S�����;

A pé, o supermercado dista dez minutos de casa. Mas a senhora faz o trajeto

GH�{QLEXV��(QIUHQWD�ORWDomR�H�WUkQVLWR��3DVVD����PLQXWRV�QXP�FROHWLYR��'i�XPD�YROWD�

enorme até chegar ao local das compras. Repete o estorvo na volta, cheia de sacolas.

([DXVWD��7XGR�SDUD�QmR�DWUDYHVVDU�D� UXD�TXH�GLYLGH�R�EDLUUR��0RUUHULD�VH�FUX]DVVH�

“o lado de lá”. Não é envolvida com droga. Nem com nada criminoso. Findaria pelo

simples fato de viver no território onde um grupo disputa com outro o domínio da

6DSLUDQJD��&$6752��������

Parece que, em certa medida, devemos concordar com o comissário nova-

iorquino: estas ações não se prestam a um enfrentamento, mas a uma convivência com

a violência ou a uma busca por sobrevivência apesar da insegurança. Não é intenção

aqui imergirmos em conjecturas sobre o caráter intrínseco ou não da violência ao

funcionamento das grandes cidades. Queremos tão somente esboçar uma tendência

a um agravamento de situações de vulnerabilidade que gradualmente transformam

R�YLYHU�H�R�FRQYLYHU�QDV�FLGDGHV�EUDVLOHLUDV�XP�ÀDJUDQWH�HVIRUoR�GH�VREUHYLYrQFLD��

com particularidades críticas para determinados grupos marginalizados. E se há

causas estruturais mantenedoras e multiplicadoras dessas situações, sua explicitação

GHYHUi� GHVORFDU� H� GDU� QRYR� VLJQL¿FDGR� WDQWR� jV� SROtWLFDV� GH� FRQYLYrQFLD� FRP� D�

LQVHJXUDQoD�TXDQWR�jV�GH�HQIUHQWDPHQWR��$¿QDO��TXDLV�VmR�RV�QtYHLV�GH�LQGLFDGRUHV�GH�

YLROrQFLD�DFHLWiYHLV"�4XH�HVWUDWpJLDV�GLWDV�GH�HQIUHQWDPHQWR�DSURIXQGDP�RV�SRQWRV�

IXQGDPHQWDLV�RULJLQiULRV�GHVVDV�WHQV}HV"

� 4XDQWR�DRV�FRQÀLWRV�GH� WHUULWRULDOLGDGH��D�SUySULD� UHSRUWDJHP�PHQFLRQDGD� Mi�

DSRQWD�XP�FHQiULR�GH�DJUDYDPHQWR� �&$6752���������8PD�GLQkPLFD�GH� ULYDOLGDGH�

TXH� VH� GLVWULEXtD�� HP� ������ HP� WRUQR� GH� �� EDLUURV�� HP� ������ HQJORED� DJRUD� ���

GLVWLQWDV�iUHDV�GD�FLGDGH��VHQGR����FRQVLGHUDGDV�SDOFR�GH�WHQV}HV�FUtWLFDV�H����GH�

PHQRU�SURSRUomR��7DPEpP�GHVGH�������XPD�21*�PH[LFDQD�DFRPSDQKD�D�VLWXDomR�

da violência urbana em Fortaleza, publicando anualmente um ranking das cidades

mais violentas do mundo (Figura 1b���(P������DSUHVHQWDPRV�XPD� WD[D�DQXDO� GH�

Page 85: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

84

homicídios dolosos por 100 mil habitantes de 42,90��������KRPLFtGLRV�UHJLVWUDGRV���QR�

ano seguinte, a taxa foi de 66,39��������KRPLFtGLRV���H��HP�������WLYHPRV�XPD�WD[D�

de 72,81��FRP�������KRPLFtGLRV��$�FLGDGH�DSUHVHQWRX�XP�GHVHPSHQKR�DVFHQGHQWH��

VDOWDQGR�GD�SRVLomR�����SDUD�D���a�H��HP�VHJXLGD���a no último ranking publicado.

Apesar de admitirem trabalhar em alguns casos com projeções estatísticas e

VHUHP�FULWLFDGRV�SRU�UHFRUUHUHP�D�IRQWHV�QmR�R¿FLDLV��MRUQDLV��TXDQGR�RV�GDGRV�QmR�

se encontram disponíveis, os rankeamentos do Conselho Cidadão pela Seguridade

Social Pública e Justiça Penal parecem, pelo menos para Fortaleza, acompanhar

D� WHQGrQFLD�HYROXWLYD�GRV� UHJLVWURV�GH������D������GD�6HFUHWDULD�GH�9LJLOkQFLD�HP�

6D~GH��696��GR�0LQLVWpULR�GD�6D~GH��Figura 2���(VVHV�GDGRV�UHYHODP�XP�FUHVFLPHQWR�

vertiginoso da taxa de homicídios, de 16,7�HP�������24,1 em 2001; e 49,4 em 2011.

,VWR�UHSUHVHQWD�XP�VDOWR�GH������QRV�YDORUHV�HQWUH������D������

� (P�HQWUHYLVWD�DR�SRUWDO�82/�1RWtFLDV�HP�������-XOLR�-��:DLVHO¿V]�RUJDQL]DGRU�

da série Mapas da Violência no Brasil, declarou como insuportável a situação da

YLROrQFLD� HP�$ODJRDV� �0$'(,52�� ������� ¬� pSRFD� D� UHJLmR� DWLQJLD� D� WD[D� UHFRUGH�

entre os estados brasileiros de 71,3, igualando-se à marca de El Salvador, país tido

às pesquisas como mais violento. Nos rankings da instituição mexicana mencionada

0DFHLy�RVFLOD�GD��a, para a 6a e 5a posições, mantendo-se sempre acima de Fortaleza.

6H�EHP�UHSDUDUPRV��QR�HQWDQWR��D�PDUFD�GD�FDSLWDO�FHDUHQVH�HP�������72,8��XOWUDSDVVD�

D�UHIHUrQFLD�GR�LQVXSRUWiYHO�GH�:DLVHO¿V]�

� $�2UJDQL]DomR�0XQGLDO�GD�6D~GH��206��HVWDEHOHFH�R� OLPLWH�GR�WROHUiYHO�HP�

���KRPLFtGLRV�SRU�����PLO�KDELWDQWHV�SRU�DQR��1(9���������$FLPD�GD�PDUFD�GH�10,0, a

taxa passa a ser considerada epidêmica, indicadora de um processo de disseminação

GD� YLROrQFLD� VRE� R� TXDO� QmR� VH� WHP� R� FRQWUROH�� 3DUD� TXDOL¿FDUPRV� D� GLVFUHSkQFLD�

entre o insuportável, o tolerável e o desejável, tomamos por base a meta lançada

pelo Programa Cidades Sustentáveis, uma parceira entre a Rede Nossa São Paulo, o

Instituto Ethos e a Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis inspirada

QRV�FRPSURPLVVRV�GH�$DOERUJ�¿UPDGRV�QD�'LQDPDUFD�HQWUH�FHUFD�GH�����PXQLFtSLRV�

HXURSHXV��)$5,1+$��32(,5$��������

A chamada Plataforma Cidades Sustentáveis é uma ferramenta política

proposta pelo programa para garantir a orientação dos governos a um sentido de

desenvolvimento sustentável pautado em indicadores e metas objetivos. No capítulo

“Equidade, Justiça Social e Cultura de Paz” o documento de referência da plataforma

Page 86: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

85

¿[D�D�PHWD�³]HUDU�DV�PRUWHV�SRU�KRPLFtGLRV´��$�EDVH�GH�FiOFXOR�GR�LQGLFDGRU��GLIHUHQWH�

GD� 7D[D� GH� 0RUWDOLGDGH� (VSHFt¿FD� �70(��� GH� XVR� PDLV� FRPXP�� GLYLGH� R� Q~PHUR�

de mortes no ano pelo total da população e a multiplica por 10 mil habitantes. As

referências da meta são as taxas de homicídios registrados no Mapa da Violência

de 2011�SDUD�D�,VOkQGLD���������R�5HLQR�8QLGR��������H�R�-DSmR���������3RUWDQWR��VH�

¿]HUPRV�D�WUDQVSRVLomR�GHVVHV�YDORUHV�SDUD�D�SURSRUomR�GH�����PLO�KDELWDQWHV�D�¿P�

GH�FRPSDUDUPRV�FRP�DV�GHPDLV�WD[DV�DSUHVHQWDGDV��R�VLJQL¿FDGR�GH�]HUDU�DV�PRUWHV�

se mantém, pois as taxas desses países passam a 0,3, 0,4 e 0,4��5('(�1266$�6­2�

3$8/2��������:$,6(/),6=��������9DOH�GL]HU�TXH�R�DWXDO�SUHIHLWR�GH�)RUWDOH]D��5REHUWR�

&OiXGLR�5RGULJXHV�%H]HUUD��������������IRL�XP�GRV�FDQGLGDWRV�VLJQDWiULRV�GD�FDUWD�

de adesão à plataforma ao curso das eleições municipais de 2012, comprometendo-

se a gerar e divulgar os dados necessários ao acompanhamento dos indicadores.

Feita esta consideração, seria razoável e justo que nos aprofundássemos

em outras conjecturas acerca do quadro da violência no Brasil e na América Latina,

porque este certamente não é um problema restrito à cidade de Fortaleza nem todos

os fortalezenses estão expostos às suas consequências da mesma forma. No entanto,

como foi dito de início, termos nos debruçado sobre as estatísticas de homicídios trata-

se apenas de uma das muitas possibilidades de ingresso no debate complexo sobre

as marcas de sustentabilidade urbana expressas ou ausentes em um dado espaço.

� $�YLROrQFLD�XUEDQD�p�XP�IHQ{PHQR�FRPSOH[R�H�GH�FDXVDV�P~OWLSODV��PDV�TXH�

tem sido associado, em última instância, à reprodução de formas de sociabilidade

PDUFDGDV�SRU�DFHQWXDGRV�QtYHLV�GH�GHVLJXDOGDGH�H�LQMXVWLoD��0$&('2�HW�DO����������

A violência letal a qual temos nos referido diz respeito à violência em grau extremo,

R�TXH�:HLVHO¿V]��������FKDPDULD�GH�³SRQWD�YLVtYHO�GR�LFHEHUJ´�GDV�FRQGLo}HV�GH�YLGD�

H�GDV�UHODo}HV�GLWDGDV�SHOD�PRGHUQLGDGH��&RORFDGR�GHVVD�IRUPD��R�ÀDJUDQWH�TXDGUR�

de extermínio das classes marginalizadas brasileiras – notadamente, jovens, negros

H�SREUHV�±��TXH�VH�YHUL¿FDULD�FRQIRUPH�HVSDFLDOL]DomR�H�GHVDJUHJDomR�GRV�GDGRV�

apresentados, são a expressão empírica de processos persistentes de desigualdades

urbanas. Esses processos estruturaram as aglomerações urbanas brasileiras desde

as primeiras vilas e, portanto, constituem o fundamento dos maiores gargalos à

UHFRQ¿JXUDomR�GDV�VRFLHGDGHV�DTXL�HVWDEHOHFLGDV�D�XPD�UHODomR�GH�UHVSHLWR�HQWUH�VL�

H�FRP�R�PHLR�TXH�RFXSDP��9HMDPRV�FRPR�LVWR�VH�GHX�HP�)RUWDOH]D�

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86

Figura 1. Quadro de honrarias, mural de notícias.

)RQWHV���D��&DVWUR����������E���'LiULR�GR�1RUGHVWH����������F��/DXULDQR�����������G��0DLD��������

Page 88: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

87

Figura 2.�7D[D�GH�KRPLFtGLRV�HP�)RUWDOH]D������������

)RQWH��0LQLVWpULR�GD�6D~GH�696�±�6LVWHPD�GH�,QIRUPDo}HV�VREUH�0RUWDOLGDGH��6,0�

���(VWDGR�GD�DUWH�DWXDO��¿FKD�WpFQLFD�GR�PXQLFtSLR

� $� FRQ¿JXUDomR� WHUULWRULDO� GR� HVWDGR� GR� &HDUi� GHX�VH� SRU� XP� SURFHVVR� GH�

desenvolvimento desigual e concentrado às imediações da cidade de Fortaleza,

que, aos poucos, vai se constituindo como uma metrópole dinâmica cujas forças

atrativas reverberam na produção de um quadro regional de acentuada macrocefalia

�3(48(12���������$IRUD�D�FDSLWDO��GRV�����PXQLFtSLRV��DSHQDV�VHWH�RXWUDV�FLGDGHV�

apresentam mais de 100 mil habitantes (Figura 5���)RUWDOH]D�KRMH��GH¿QLGRV�RV�VHXV�

OLPLWHV�HP�����EDLUURV��Figura 4���FDUDFWHUL]D�VH�FRPR�XPD�FLGDGH�OLWRUkQHD�DR�QRUWH�

GR�(VWDGR��RFXSDQGR�����NP2 (Figura 3���1R�&HQVR�GH�������D�SRSXODomR�HUD�GH�

����������KDELWDQWHV��HVWLPDGD�SDUD������HP�����������KDELWDQWHV��D�TXLQWD�FLGDGH�

PDLV�SRSXORVD��7UDWD�VH�WDPEpP�GD�PDLRU�GHQVLGDGH�GHPRJUi¿FD�GR�3DtV�����������

hab/km2��$�*UDQGH�)RUWDOH]D��UHJLmR�PHWURSROLWDQD�LQVWLWXtGD�HP������KRMH�DEUDQJH��

com a capital, mais 14 municípios.

Page 89: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

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Figura 3. Dados gerais do município de Fortaleza

)RQWHV��,%*(���������/HLWH�H�9LDQD���������2OtPSLR�H�=DQHOOD�������

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Figura 4. Divisão administrativa atual por bairros e secretarias executivas

Fontes: Prefeitura de Fortaleza; Elaboração: IPECE.

Page 91: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

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Figura 5. Municípios cearenses com mais de 100 mil habitantes

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais

� 2�VtWLR�XUEDQR�GH�)RUWDOH]D�p�UHODWLYDPHQWH�SODQR��FRP�SHTXHQDV�GHFOLYLGDGHV�H�

formado majoritariamente por substrato geológico da Formação Barreiras (coberturas

VHGLPHQWDUHV� &HQR]yLFDV��� VREUH� R� TXDO� VH� GHVHQYROYHUDP� RV� 7DEXOHLURV� 3Up�

litorâneos, considerados compartimentos geoambientais de boa estabilidade natural,

SURStFLDV��SRUWDQWR��j�RFXSDomR��+i�WDPEpP�RFRUUrQFLD�GH�URFKDV�GR�(PEDVDPHQWR�

&ULVWDOLQR�H�HVWUXWXUDV�GHULYDGDV�GR�YXOFDQLVPR�7HUFLiULR��6$1726��������S�������

A cidade encerra em seus limites áreas de contribuição de quatro bacias

KLGURJUi¿FDV��D�GR�ULR�&RFy��D�GR�VLVWHPD�0DUDQJXDSLQKR�&HDUi��D�GR�ULR�3DFRWL��H�D�

EDFLD�9HUWHQWH�0DUtWLPD��Figura 6���$�EDFLD�GR�ULR�&RFy��FRP�VHX�SULQFLSDO�WULEXWiULR��R�

ULR�&RDoX��SHUID]HP�D�PDLRU�iUHD�GH�GUHQDJHP��RFXSDQGR�FHUFD�GH�����GR�PXQLFtSLR�

�6$1726��������S��������$�SUHGRPLQkQFLD�GH�VXSHUItFLHV�SODQDV�H�GH�LQFOLQDomR�VXDYH�

em direção ao litoral, com declividades pouco pronunciadas resultam em amplitude

altimétrica não superior a 15 m entre os fundos dos vales e os topos dos tabuleiros,

que, aliados às condições de solos, favorecem o acúmulo de reservatórios de águas

paradas em detrimento da dissecação por ação pluvial (Figura 8���$LQGD�TXH�PXLWDV�

tenham sido aterradas para produção de solo urbano, são incontáveis as lagoas neste

Page 92: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

91

VtWLR��&ODXGLQR�6DOHV������D��H[SOLFD�TXH�HVWH�p�XP�IDWR�FRPXP�DR�GRPtQLR�FRVWHLUR�

nordestino, mas a grande ocorrência desses corpos em Fortaleza deve-se à presença

GR�0DFLoR�GH�%DWXULWp�� TXH�DWXD�FRPR�EDUUHLUD�RURJUi¿FD�j�XPLGDGH� WUD]LGD�SHORV�

ventos de NE.

Em Fortaleza, como em boa parte do Nordeste setentrional, as chuvas

FRQFHQWUDP�VH�QR�SULPHLUR�VHPHVWUH�GR�DQR��FHUFD�GH�����GR�YROXPH�DQXDO���FRP�

picos de concentração em março e abril, que são também os meses de menores

LQVRODomR� ������� H� ������ KRUDV�PrV�� H� HYDSRUDomR� �PpGLD� GH� ������ PP�DQR���

Apesar da irregularidade patente, tanto ao longo do ano quanto no decorrer dos

anos, distanciando-se da média, os índices pluviométricos da capital são, em geral,

VXSHULRUHV� D� ������PP�DQR�� FRQ¿JXUDQGR� ERD� GLVSRQLELOLGDGH� KtGULFD� VXSHU¿FLDO� H�

subterrânea em relação às regiões semiáridas interioranas. As temperaturas, por sua

YH]��RUELWDP�HP�WRUQR�GD�PpGLD�GH�����o�&� �&/$8',12�6$/(6������D��6$1726��

������S�������

Figura 6.�%DFLDV�H�VXE�EDFLDV�KLGURJUi¿FDV�GH�)RUWDOH]D

)RQWH���$GDSWDGR�GH�$OGLJXHUL��������S�����

Page 93: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

92

Quanto à compartimentação do relevo (Figura 7��� HVWH sítio urbano possui,

VHJXQGR�=DQHOOD�H�2OtPSLR���������RQ]H�VLVWHPDV�DPELHQWDLV������WHUUDoRV�PDULQKRV��

����GXQDV�PyYHLV������GXQDV�¿[DV������SODQtFLHV�ÀXYLDLV������SODQtFLHV�ÀXYLRPDULQKDV������

SODQtFLH�SUDLDO������SODQtFLHV�ODFXVWUHV������iUHDV�GH�LQXQGDomR�VD]RQDO������WDEXOHLURV�

SUp�OLWRUkQHRV�� ����� WUDQVLomR� WDEXOHLUR� SUp�OLWRUkQHR� H� GHSUHVVmR� VHUWDQHMD� H� �����

PRUURV�UHVLGXDLV��-i�&ODXGLQR�6DOHV������E��UHVXPH�D�FDUDFWHUL]DomR�JHRDPELHQWDO�

D�TXDWUR�WLSRV�GH�HVSDoRV�QDWXUDLV���D��SODQtFLH�OLWRUkQHD���E��WDEXOHLURV�FRVWHLURV���F��

SHGLPHQWR�FULVWDOLQR��H��G��SODQtFLHV�ÀXYLDLV��

� 2SWDUHPRV��QR�HQWDQWR��SHOD�RUJDQL]DomR�WD[RQ{PLFD�GH�6DQWRV��������S��������

que distingue doze padrões de formas de relevo� ��o� Wi[RQ��� �L�� IDL[D�GH�SUDLD�� �LL��

WHUUDoRV�PDULQKRV���LLL��GXQDV�¿[DV���LY��GXQDV�PyYHLV���Y��SDOHRGXQDV���YL��SODQtFLHV�

ÀXYLRPDULQKDV�� �YLL�� EHDFK� URFNV�� �YLLL�� SODQtFLHV� ÀXYLDLV�� �L[�� SODQtFLHV� ODFXVWUHV� H�

ÀXYLRODFXVWUHV�� �[�� WHUUDoRV�ÀXYLDLV�� �[L�� WDEXOHLURV�SUp�OLWRUkQHRV��H� �[LL��SHGLPHQWRV�

GD� GHSUHVVmR� VHUWDQHMD� VXE~PLGD�� 2V� SDGU}HV� GH� IRUPDV� DVVRFLDP�VH� D� FLQFR�

morfoesculturas (2o�Wi[RQ���SODQtFLH�OLWRUkQHD��L�YLL���YDOHV�H�SODQtFLHV�GH�DFXPXODomR�

ÀXYLDO��YLLL�[���JOiFLV�GH�GHSRVLomR�SUp�OLWRUkQHRV��[L���UHOHYRV�YXOFkQLFRV��DVVRFLDGRV�

apenas a formas de relevo mais detalhadas, pertencentes ao 4o táxon – Morro Caruru e

6HUURWH�$QFXUL���H�GHSUHVVmR�VHUWDQHMD�VXE~PLGD��[LL���3RU�¿P��HVWH�DXWRU�UHODFLRQD�jV�

FDWHJRULDV�GH��o e 4o táxons processos derivados de atividades socioeconômicas

(6o�Wi[RQ���PROKHV�HVSLJ}HV��L���FLFDWUL]HV�GH�PLQHUDomR��LLL�Y��[L��[LL�H�0RUUR�&DUXUX���H�

DWHUURV�VDQLWiULRV��YLLL�H�[L��

Como a nós interessa a consideração dos compartimentos geoambientais

em função das suas condições de suporte a usos e ocupações tipicamente urbanos,

recorreremos à análise de fragilidade do ambiente (Figura 9���SUp�UHTXLVLWR�à aferição

dos riscos socioambientais urbanos. A abordagem trabalhada por Santos (2011,

S������EDVHLD�VH�QR�DSULPRUDPHQWR� UHDOL]DGR�SRU�5RVV� �������VREUH�R�FRQFHLWR�GH�

XQLGDGHV�HFRGLQkPLFDV� GH�7ULFDUW� ��������3RU� HFRGLQkPLFD�HQWHQGH�VH�XP�GLiORJR�

HQWUH�D�(FRORJLD�H�D�*HRJUD¿D�)ísica em abordagem sistêmica, IRFDGD�QRV�ÀX[RV�GH�

matéria e energia, para determinação dos níveis de estabilidade dos ambientes. A

qualidade do sistema é tradicionalmente determinada por um balanço entre processos

morfogenéticos e pedogenéticos. Quando a deposição supera a erosão, tem-se

um ambiente estável. Quando ocorre o contrário e os processos morfogenéticos

predominam, tem-se instabilidade no sistema.

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� $� FRQWULEXLomR� GH� 5RVV� DR� PpWRGR� GH� 7ULFDUW� Gi�VH� SHOD� FRQVLGHUDomR� GD�

ênfase aos elementos externos em detrimento dos processos endógenos como

LQDGHTXDGD�DRV�¿QV�GR�SODQHMDPHQWR�DPELHQWDO�XUEDQR��DPELHQWH�RQGH�R�FRPSRQHQWH�

antropogênico se faz notável. Dessa forma, as unidades ecodinâmicas e suas faixas de

transição foram convertidas em unidades de instabilidade emergente e potencial, cada

uma com cinco níveis qualitativos, variando de muito baixa a muito forte. A primeira

unidade corresponde a ambientes em equilíbrio dinâmico, considerados estáveis, mas

cuja fragilidade potencial poderá vir à tona mediante intervenção antrópica. A segunda

categoria refere-se tanto a ambientes naturalmente frágeis como a sistemas fortemente

LQVWiYHLV�GHÀDJUDGRV�SRU�DomR�KXPDQD��DVVRFLDGRV�PXLWDV�YH]HV�D�GHVPDWDPHQWRV�

�6$1726��������S������

Figura 7. Compartimentação geomorfológica do sítio urbano de Fortaleza

Fonte: Adaptado de Santos ������

Uma vez feito o retrato da Fortaleza atual, recorreremos às causas históricas

e processos de formação que marcaram a eclosão desta realidade urbana. Para que

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não incorramos na armadilha de recontar a história da cidade, lançaremos a seguinte

pergunta suleadora: que sorte de acontecimentos em cerca de 160 anos (desde a

D¿UPDomR�FRPR�FDSLWDO��VXFHGHUDP�DR�VtWLR�H�j�VRFLHGDGH�IRUWDOH]HQVH��GH�WDO� IHLWD�

TXH�GHOHV�VH�WHQKD�VHFUHWDGR�FDUiWHU�WmR�LQyVSLWR�VREUH�SDLVDJHQV�RUD�WmR�DPHQDV"�

2V�SURFHVVRV� LQWHQVRV�GH�XUEDQL]DomR�HP� WRGR�R�SDtV�SURGX]LUDP�GHIRUPDo}HV�H�

GHVXPDQLGDGHV� VHPHOKDQWHV�� $TXL�� SRUWDQWR�� QRV� GHWHUHPRV� D� LGHQWL¿FDU� RV� HORV�

críticos dessas relações particulares ao cenário desta capital, porque é a partir deles

que enxergaremos pontos de ruptura com a inércia dessas tais insustentabilidades. De

DQWHPmR��¿[HPRV�D�KLSyWHVH�GH�TXH�D�VDWXUDomR�GR�VtWLR�XUEDQR��FRP�R�SUHHQFKLPHQWR�

virtual das áreas ambientalmente favoráveis à ocupação, aliado às tendências regionais

GH�PDFURFHIDOLD�PHWURSROLWDQD�VHMDP�RV�YHWRUHV�PDLV�VLJQL¿FDWLYRV�GH�SURPRomR�GDV�

vulnerabilidades sociais e acirramento das fragilidades ambientais.

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95

Figura 8. 6tWLR�XUEDQR�GH�)RUWDOH]D���D��0DSD�KLSVRPpWULFR���E��0DSD�GH�GHFOLYLGDGHV

)RQWH��6DQWRV�������

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96

Figura 9.�6tWLR�XUEDQR�GH�)RUWDOH]D���D��6LVWHPDV�$PELHQWDLV���E��9XOQHUDELOLGDGH�1DWXUDO Fonte: 2OtPSLR�H�=DQHOOD�������

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5. A bola de neve do semiárido

“Não haverá mais um dia, não deixemos pra depois

Corta um segundo em minha vida e eu canto uma canção logo em seguida

Enquanto nossa rua, nossos corpos, nossa terra, nossa vida

Não é um alvo da vida dos senhores”

Não haverá mais um dia, Pachely Jamacarú

Para orientar nosso recorte narrativo apoiemo-nos na proposta de periodização

GH�&XVWyGLR��������S�������SDUD�TXHP�D�DQiOLVH�KLVWyULFR�SURFHVVXDO�VH�PRVWURX�FDUD�j�

interpretação dos problemas ambientais de escassez de água e inundações na grande

6mR�3DXOR��(VWD�DXWRUD�LGHQWL¿FD�FLQFR�PRPHQWRV�H�GLVWLQJXH�RV�GD�VHJXLQWH�IRUPD��

(1) 1532-1808:�GD�IXQGDomR�GD�FLGDGH�SULPHLUD�FLGDGH��6mR�9LFHQWH��j�FKHJDGD�GD�

família real portuguesa ao Brasil; (2) 1808-1930: do estabelecimento da família real

DR�LQtFLR�GR�SULPHLUR�JRYHUQR�*HW~OLR�9DUJDV��(3) 1930-1964: da posse de Getúlio ao

período militar; (4) 1964-1988: da ditadura à promulgação da constituição cidadã; e

(5)�GH������DWp�R�PRPHQWR�DWXDO�

3UyORJR��VROLFLWD�VH�R�DYDO�GR�H[LVWLU

� 2�SULPHLUR�SHUtRGR�p�PDUFDGR�SHOR�GRPtQLR�GH�XPD�RUGHP�H[WHUQD��GLVWDQWH���

determinante inequívoca dos processos iniciais de ocupação do território brasileiro.

2V�REMHWLYRV�GH�FULDomR�GDV�FLGDGHV�HUDP��YLD�GH�UHJUD��YROWDGRV�j�GHIHVD�GR�WHUULWyULR��

à drenagem e ao escoamento da produção canavieira e de gêneros secundários

DR� PHUFDGR� LQWHUQDFLRQDO� �&867Ï',2�� ������ S�� ����� $V� RULJHQV� SDUWLFXODUHV� GH�

Fortaleza e da capitania do Ceará estão associadas às funções administrativa e de

defesa do território, como as demais, mas suas condições ambientais não permitiram

a exploração comercial de nenhum produto do repertório cultural europeu digno de

exportação. Assim, a penetração do continente se deu amparada na criação de gado

para provimento da região Nordeste e aglomerações próximas.

Chega a ser desconcertante a leitura dos relatos de formação desta cidade

dada a ênfase no desinteresse por parte dos colonizadores e na precariedade das

condições de vida social urbana, que, cambaleante, vai se estruturando em torno do

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IRUWH�TXH�YLULD�D�GDU�QRPH�j�FDSLWDO�FHDUHQVH��2V�SURFHVVRV�GH�RFXSDomR�GR�&HDUi�QR�

período colonial diferenciam-se das demais regiões do nordeste, porque não havendo

FRQGLo}HV� GH� FXOWLYR� GD� FDQD�GH�Do~FDU� �DWLYLGDGH� SULQFLSDO��� D� SHFXiULD�� DWLYLGDGH�

DFHVVyULD� j� FXOWXUD� FDQDYLHLUD�� UHJLRQDOPHQWH� D¿UPD�VH� FRPR� DWLYLGDGH� SULQFLSDO��

Nesse sentido, ainda que nada comparável ao dinamismo alcançado em Pernambuco

e na Bahia, a criação de gado orienta a penetração continental e, inclusive, subordina

a atividade portuária litorânea aos seus interesses de expansão. Nesse momento,

Aracati e Icó ganham destaque como centros de drenagem e escoamento da produção

GH�FKDUTXH��HQTXDQWR�)RUWDOH]D�UHSRXVD�HP�UHWLFHQWH�HVWDJQDomR��6$1726��������S��

�����

Até a última década do século 18, os povoados, vilas e atividades que, bem

RX� PDO�� GHVHQYROYLDP�VH� QR� DWXDO� HVWDGR� GR� &HDUi� �FDSLWDQLD� VXEDOWHUQD�� HUDP�

YLQFXODGRV� j� FDSLWDQLD� GH� 3HUQDPEXFR�� &DVWUR� ������� FRQWD� TXH� D� FRORQL]DomR�

brasileira reproduziu a prática herdada do sistema administrativo português de criação

de unidades territoriais por divisão consentida pelo poder real, uma forma de manter

D�LQWHJULGDGH�GR�WHUULWyULR�HP�FRQVROLGDomR�DSyV�D�UHFRQTXLVWD�GR�UHLQDGR�FULVWmR��2�

exercício desse poder consentido dava aos municípios, menores unidades do sistema

administrativo, prerrogativas de comando dos territórios com sede nas vilas ou

cidades, permitindo aos membros das câmaras o acúmulo de atividades legislativas,

executivas e judiciais. Daí a solicitação à coroa por parte dos moradores do Forte e

por intermédio dos ouvidores – sobrecarregados de atividades e, por isso, favoráveis

– à criação de uma vila na região.

� (P�������IRL�H[SHGLGD�SRU�'��3HGUR�,,�D�FDUWD�UpJLD�TXH�HQFDUUHJDYD�R�RXYLGRU�

da Paraíba da criação de uma vila no Ceará. Inicialmente instalada na Barra do

Ceará, depois nas proximidades do Forte da Assunção; em seguida, no Iguape (praia

SHUWHQFHQWH�KRMH�DR�PXQLFtSLR�GH�$TXLUD]���SRU�DSDUHQWH�FDSULFKR�GR�RXYLGRU�H��SRU�

¿P��PDV�QmR�VHP�XPD�OXWD�GH�GR]H�DQRV��D�FRQFHSomR�GD�YLOD�UHWRUQD�DR�Sp�GR�)RUWH��

'HVWDUWH��R�LPEUyJOLR�VH�UHVROYH�SRU�H[SHGLomR�GH�QRYD�FDUWD�UpJLD��HP����GH�DEULO�GH�

�����p�VROHQHPHQWH�FULDGD�D�Vila da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção da

Capitania do Ceará Grande��'LSORPDWLFDPHQWH��'��-RmR�PDQWHYH�D�9LOD�GR�$TXLUiV�

LQVWLWXtGD�SHOR�RXYLGRU��&$6752���������

� $�FULDomR�GD�9LOD�GD�)RUWDOH]D��QR�HQWDQWR��QmR�WHULD�WLGR�PXLWR�VLJQL¿FDGR�VH�

HP������QmR� WLYHVVH� VLGR� FRQFHGLGD�D�DXWRQRPLD�GD�&DSLWDQLD�GR�&HDUi��2�QRYR�

Page 100: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

99

HVWDWXWR� DGPLQLVWUDWLYR� R¿FLDOL]RX� D� FRQGLomR� GHVWD� YLOD� FRPR� FDSLWDO� GD� &DSLWDQLD�

DXW{QRPD�H�SHUPLWLX�R�FRPpUFLR�GLUHWR�GRV�EHQV�DTXL�SURGX]LGRV�FRP�3RUWXJDO�H�VXDV�

FRO{QLDV��VHP�R�LQWHUPpGLR�GH�3HUQDPEXFR��2�VLJQL¿FDGR�ORFDO�GHVWD�PHGLGD�WUDGX]�

se na capitalização dos lucros das transações em Fortaleza. Com a vinda da família

real portuguesa e a abertura dos portos, em 1808, este direito se estendeu às trocas

com a Inglaterra.

� 9DOH�PHQFLRQDU�TXH�D�FULDomR�GH�JDGR�QR�&HDUi�DOFDQoRX�R�DSRJHX�HP�PHDGRV�

do século 18, entrando em declínio logo em seguida por ocorrência de uma sucessão

GH�VHFDV�±������������������H�������1HVVH�PRPHQWR��D�SURGXomR�DOJRGRHLUD�JDQKD�

HVSDoR�H�p�HVWH�VHWRU�TXH�PDLV�VH�EHQH¿FLDUi�GD�DEHUWXUD�GRV�SRUWRV�� IRUQHFHQGR�

matéria-prima para as necessidades de consumo alavancadas pela guerra civil norte-

DPHULFDQD��35$'2�-Ò1,25��������S������6$1726��������S�������

Com este breve relato, quisemos dizer que Fortaleza praticamente não se

projeta no período colonial e, quando o faz, trata logo de enaltecer suas vocações

administrativas centralizadas desde a fundação dos primeiros fortes, voltados

essencialmente à defesa e à manutenção do território como ponto de apoio entre

Pernambuco e Maranhão. A todos os aspectos que depõem contra a consolidação

de Fortaleza como capital, devemos opor a centralidade marítima desse sítio em

relação aos vales do Acaraú e do Jaguaribe (e dos povoados e atividades que aí se

HVWDEHOHFHUDP��H�D�UHODWLYD�VHJXUDQoD�RIHUHFLGD�SHOR�)RUWH�GD�$VVXQomR��Figura 10��

ante as reações dos índios habitantes destas paisagens. Secundariamente, a vila que

YLULD�D�VHU�HOHYDGD�DR�WtWXOR�GH�FLGDGH�HP�������QR�SHUtRGR�VHJXLQWH��SURFXUD�D�WRGR�

FXVWR�H[SORUDU�DV�RSRUWXQLGDGHV�TXH�D�HOD�VH�DEUHP�FRP�DV�UHFRQ¿JXUDo}HV�KLVWyULFDV�

H�¿[DU�VH�FRPR�Q~FOHR�GH�HVFRDPHQWR�FRPHUFLDO�GR�DOJRGmR��

Ainda que tenhamos, o povoado do Forte, lutado contra as dissidências do

,JXDSH�SDUD�QRV�D¿UPDUPRV�HQTXDQWR�YLOD�DVSLUDQWH�j�FRQGLomR�GH�FDSLWDO��R�SURFHVVR�

de consolidação dos aglomerados coloniais brasileiros, por mais espontâneo, contrasta

IRUWHPHQWH�FRP�D�H[SOLFDomR�GH�/HIHEYUH��������S������VREUH�D�VXFHVVmR�GH�IXQo}HV�

KHJHP{QLFDV�GHWHUPLQDQWHV�GD�HVWUXWXUD�H�GD�IRUPD�XUEDQDV�HXURSpLDV��1mR�SDUHFH�

sensato, portanto, referirmo-nos a uma cidade política colonial que aos poucos vai

sendo suplantada e de onde irromperia a cidade comercial. Sabe-se que os “homens

bons” – assim reconhecidos porque bem pagavam seus impostos e em quantidade

considerável – faziam da boa conduta um pleito às franquias municipais, de modo que

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100

SXGHVVHP�LQJUHVVDU�jV�FkPDUDV�H�JR]DU�GDTXHODV�SUHUURJDWLYDV��,VWR�FRQ¿JXUD�XPD�

DSUR[LPDomR�JUDGXDO�GRV�SRGHUHV�HFRQ{PLFRV�FRPHUFLDLV�MXQWR�DRV�SRGHUHV�SROtWLFRV��

PDV�QmR�FKHJD�D�GHÀDJUDU�XP�FRQÀLWR�SRU�D¿UPDomR�GH�KHJHPRQLDV�

� (�FRPR�GLVVHPRV�QRXWUR�PRPHQWR��R�HVWDEHOHFLPHQWR�GH�IXQo}HV�KHJHP{QLFDV�

é fator determinante quanto às manifestações e formas de uso e ocupação do solo

XUEDQR�� GDQGR� D� W{QLFD� GD� HVWUXWXUD� XUEDQD�� 2� TXH� SDUHFH� QD� YHUGDGH� VXFHGHU��

SDUWLFXODUPHQWH��j�&DSLWDQLD�$XW{QRPD�GR�&HDUi�p�TXH�DV� IXQo}HV�FRPHUFLDLV�QmR�

entram a princípio em disputa direta com os poderes constituídos porque já se sabem a

razão de ser da cidade colonial, mesmo que se trate de uma atividade acessória. Esta

SDUHFH�D�UHJUD��2�TXH�WDOYH]�SXGHVVH�GHVORFDU�WDO�FHUWH]D��H�TXH�DTXL�QRV�LQWHUHVVDULD��

VHULD�R�DÀRUDPHQWR�GH�XPD�RUGHP�LQWHUQD��SUy[LPD��FDSD]�GH�LQÀXHQFLDU�RV�UXPRV�GR�

desenvolvimento metropolitano incorporando interesses algo além das demandas do

comércio. É o que tem início com o período imperial e a esses processos voltaremos

nossa atenção.

Cidade imantada

� 2�GHFOtQLR�GR�FLFOR�HFRQ{PLFR�GD�SHFXiULD�QR�1RUGHVWH��R�DGYHQWR�GD�FXOWXUD�

algodoeira e as oportunidades que se abriram para Fortaleza a partir do rompimento

com Pernambuco e da abertura dos portos deram a largada em um processo de

D¿UPDomR�GD�FDSLWDO�GLDQWH�GH�UHJL}HV�DWp�HQWmR�PDLV�GHVHQYROYLGDV�H�FRPHUFLDOPHQWH�

HVWUXWXUDGDV��'R�SULQFtSLR�GR�VpFXOR����DWp�R�SULQFtSLR�GR�VpFXOR�VHJXLQWH��D�FLGDGH�

terá que preencher de sentido a importância e a centralidade que lhe foi formalmente

atribuída. Dessa maneira, ingressamos na segunda etapa da periodização de Custódio

�������

� 1HVVH�SURFHVVR��&RVWD��������S�������H[SOLFD�TXH�DV�GHPDQGDV�ODQoDGDV�SHOD�

Revolução Industrial na Europa e pela Guerra de Secessão americana terminaram por

transformar o Ceará em um imenso algodoal. Fortaleza contava com a proximidade

de um importante núcleo produtor desse gênero, a Serra de Uruburetama, mas foram

os investimentos em infraestrutura de portos e malha ferroviária que a favoreceram

em detrimento das cidades de Icó, Aracati e Sobral.

Sob um dado ponto de vista, a consolidação da capital cearense ao longo do

VpFXOR�����j�PHGLGD�TXH�FRQTXLVWD�HVSDoR��SDVVD�D�HQYROYHU�H�VXERUGLQDU�FHQWURV�

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101

SURGXWRUHV� GR� LQWHULRU� D� VHXV� LQWHUHVVHV��(P������� SDVVD�D� WHU� HIHLWR� XPD� OHL� TXH�

reduz à metade as tarifas alfandegárias cobradas no porto de Fortaleza. Esta medida

H[SDQGH�R�UDLR�GH�LQÀXrQFLD�H�D�DWUDWLYLGDGH�GH�)RUWDOH]D��FRRSWDQGR�D�SURGXomR�GH�

algodão do entorno de Sobral que escoava para os portos de Camocim e Acaraú. A

FRQVWUXomR�H�H[SDQVmR�GR�6LVWHPD�GH�9LD�)pUUHD��HQWUH������H�������YHP�D�FRQVROLGDU�

HVVD� LQÀXrQFLD�� WRUQDQGR� REVROHWD� D lógica de comunicação apoiada nas vias de

SHQHWUDomR�QDWXUDO��ULRV�H�HVWUDGDV�DQWLJDV��2XWUR�IDWRU�UHOHYDQWH�VHULD�D�FULDomR�GH�

uma linha de navios a vapor, que tornavam mais rápidas as trocas entre o Poço da

Draga e RV�SRUWRV�HXURSHXV��&267$��������S�������&81+$��3('5(,5$��������S�����

Não é difícil perceber que as forças atrativas da capital em consolidação, nesse

momento, captam e drenam não só a produção interiorana, mas também o fazem sob

XP�FRQWLQJHQWH�GHPRJUi¿FR�GH�YXOWR��)RUWDOH]D�SDVVDULD�GH�3 mil habitantes em 1800

para 16 mil�HP������H�21.372�HP�������(QWUH�RV�QRYRV�UHVLGHQWHV��SURSULHWiULRV�UXUDLV�

e suas famílias, representantes de classes aquinhoadas e que viriam a impulsionar

a estruturação de um considerável mercado consumidor urbano, a expansão do

SHTXHQR�FRPpUFLR�H�GH�VHUYLoRV�S~EOLFRV��&81+$��3('5(,5$��������S�����

Do princípio deste período datam os esforços iniciais de planejamento urbano

HP�)RUWDOH]D��1D�JHVWmR�GR�JRYHUQDGRU�,QiFLR�GH�6DPSDLR��������������R�HQJHQKHLUR�

português Silva Paulet ensaiou a primeira tentativa de disciplinamento do centro por

PHLR�GH�XP�SODQR�XUEDQtVWLFR��&DVWUR��������S������FRQWD�TXH�D�RSomR�SRU�GLUHWUL]HV�

de formas regulares do plano em xadrez (Figura 11a�� DTXL� SURSRVWR� H� DWp� KRMH�

persistentes recorria ao padrão de traçado das vilas novas portuguesas, formações

XUEDQDV�GH�RULJHP�PHGLHYDO�UHD¿UPDGDV�FRP�D�UHFRQVWUXomR�GD�FDSLWDO�OXVLWDQD�DSyV�

R�WHUUHPRWR�GH������

� 7DPEpP� GH� LQHJiYHO� LPSRUWkQFLD� SDUD� RV� UXPRV� GH� GHVHQYROYLPHQWR� GD�

PHWUySROH� DOHQFDULQD� VHULD� D� DWXDomR�GR� HQJHQKHLUR�$GROIR�+HUEVWHU��3RXFR�DQWHV�

GHOH��FDEH�UHJLVWUDU�D�HODERUDomR�GDV�SODQWDV�GHVFULWLYDV�GH�$QW{QLR�6LP}HV�)HUUHLUD�

7RPiV��GH������H�GR�3DGUH�0DQXHO�GH�5HJR�0HGHLURV��GH�������Figura 13a���+HUEVWHU�

era integrante da diretoria de obras em Pernambuco e, em 1855, é cedido ao Governo

3URYLQFLDO� GR�&HDUi��4XDWUR� DQRV�PDLV� WDUGH��+HUEVWHU� FRQFOXLULD� D� HODERUDomR� GH��

sua primeira Planta Exacta da Capital do Ceará (Figura 14a���2�UiSLGR� LQFUHPHQWR�

populacional tanto desencadeou um processo de transformação da paisagem urbana

pelas exigências dos novos citadinos – como a construção de um novo cemitério,

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102

a transição da iluminação pública para o padrão a gás e a criação da Academia

Francesa –, como deu às contrações os limites municipais com perceptivas demandas

GH�H[SDQVmR��0$726��������

� $VVLP��0DWRV��������H�0DWRV�H�3HUGLJmR��������FRQWDP�TXH��GHVGH�D�SODQWD�GH�

7RPiV��Mi�VH�SHUFHELD�XPD�H[SHFWDWLYD�GH�SURJUHVVR��H[SUHVVR�SRU�WUDoRV�SRQWLOKDGRV��

indicativos de arruamentos a leste da cidade. Da planta de Silva Paulet (Figura 12��

datada do começo do século até pelo menos 1850, Fortaleza manteve-se restrita à

ocupação da margem esquerda do riacho Pajeú. Ainda que Paulet tenha projetado

um trajeto de cruzamento do curso d’água pela rua do Norte (atual rua Governador

6DPSDLR���SDUWLQGR�GD� UXD�GD�3RQWH� �DWXDO�DY��$OEHUWR�1HSRPXFHQR��H�XQLQGR�VH�à

Picada do Mocuripe, esta barreira natural só viria a ser efetivamente transposta

na segunda metade do século. A ocupação incipiente à direita do riacho pode ser

REVHUYDGD�FRP�D�HYROXomR�GDV�SODQWDV�GH�+HUEVWHU�GH�������������Figura 13b��H�

1888 (Figura 14b���

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103

Figura 10.�3ULPHLUD�SODQWD�GD�9LOOD�1RYD�GD�)RUWDOH]D�GH�1RVVD�6HQKRUD�GD�$VVXPSVVmR�GD�&DSLWDQLD�GR�6LDUi�*UDQGH��DWULEXtGD�DR�FDSLWmR�PRU�0DQXHO�)UDQFrV��������D���H�SDUWH�GR�OLWRUDO�FHDUHQVH�QR�3HTXHQR�$WODV�GR�0DUDQKmR�H�*UmR�3DUi��GH�-RmR�7HL[HLUD�$OEHUQD]�,��

������E���)RQWHV��&DVWUR���������$UTXLYR�GLJLWDO�GD�%LEOLRWHFD�1DFLRQDO

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104

Figura 11.�3ODQWD�GR�3RUWR�H�9LOOD�GD�)RUWDOH]D��GH�6LOYD�3DXOHW��������D���H3HUVSHFWR�GD�9LOOD�GD�)RUWDOH]D�GH�1RVVD�6HQKRUD�GD�$VVXPSVVmR�RX�3RUWR�GR�6LDUi��

DWULEXtGR�D�)UDQFLVFR�$QW{QLR�0DUTXHV�*LUDOGHV��������E���)RQWH��&DVWUR�������

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105

Figura 12.�3ODQWD�GR�3RUWR�H�GD�9LOOD�GH�)RUWDOH]D��GH�6LOYD�3DXOHW���������E��H��D��GHVHQKR�VLPSOL¿FDGR��FRP�LQGLFDo}HV�GH�HVWUDGDV��ULDFKRV�H�HGL¿FDo}HV��)RQWH��&DVWUR�������

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106

Figura 13.�3ODQWD�GD�&LGDGH�GH�)RUWDOH]D��GR�3DGUH�0DQRHO�GR�5rJR�GH�0HGHLURV��������D���H�3ODQWD�GD�&LGDGH�GH�)RUWDOH]D�H�6XE~UELRV��GH�$GROIR�+HUEVWHU��������E���

)RQWH��&DVWUR�������

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107

Figura 14.�3ODQWD�([DFWD�GD�&DSLWDO�GR�&HDUi��GH�$GROIR�+HUEVWHU��������D���H�3ODQWD�GD�&LGDGH�GD�)RUWDOH]D��FDSLWDO�GD�SURYtQFLD�GR�&HDUi��GH�$GROIR�+HUEVWHU��������E���

)RQWHV��&DVWUR���������$UTXLYR�'LJLWDO�GD�%LEOLRWHFD�1DFLRQDO

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108

6REUH� D� FRQIRUPDomR� GD� FLGDGH� DRV� ¿QV� GR� VpFXOR� ���� GHVWDTXHPRV� GRLV�

HOHPHQWRV�UHWUDWDGRV�QD�WHUFHLUD�SODQWD�OHYDQWDGD�SRU�+HUEVWHU��GH�������2�SULPHLUR��

Mi� LQWURGX]LGR��UHPHWH�DR�VLJQL¿FDGR�VLPEyOLFR�GD�VXSHUDomR�GRV�OLPLWHV�DPELHQWDLV�

pela iminente expansão da cidade a leste, representado pela continuidade do traçado

xadrez sobre os meandros do riacho Pajeú e além. Inspirado no desenho parisiense

GR�%DUmR�GH�+DXVPDQQ��+HUEVWHU�SURMHWRX�VHo}HV�GH�YLDV�XUEDQDV�H� WUrV�JUDQGHV�

cintas de avenidas que haveriam de demarcar até os dias atuais os limites do centro

GH�)RUWDOH]D��6mR�RV�ERXOHYDUGV�GR� ,PSHUDGRU� �D�RHVWH���'XTXH�GH�&D[LDV� �D�VXO��

H� GD� &RQFHLomR� �D� OHVWH��� 'HVVD� IRUPD��0DWRV� ������� UHODWD� D� RSomR� GH� +HUEVWHU�

pelo direcionamento da expansão a leste via prolongamento da Duque de Caxias,

contornando o riacho e desprezando o arruamento proposto por Simões de Farias

em 1850. Entre outros motivos, este autor ressalta como causa o desinteresse das

camadas de alta renda sobre a zona costeira.

� +DYLD� XPD� FRQFHQWUDomR� GH� VHUYLoRV� LQVDOXEUHV� QD� IDL[D� GH� SUDLD� QHVVH�

SHUtRGR��(VWDYDP�GLVSRVWRV�j�FRVWD�R�3DLRO�GD�3yOYRUD��R�*DV{PHWUR��D�6DQWD�&DVD�GH�

Misericórdia, o depósito de lixo da cidade e a penitenciária. Entre o mar e a Estação da

(VWUDGD�GH�)HUUR��LGHQWL¿FD�VH�D�SUHVHQoD�GR�VHJXQGR�HOHPHQWR�GH�GHVWDTXH��R�$UUDLDO�

Moura Brasil (Figura 15b��� SRQWR� GH� DVVHQWDPHQWR� LQIRUPDO� GRV� SRYRV� VHUWDQHMRV�

foragidos da seca. Ao setor leste, cabe também mencionar a presença do Asilo de

Mendicidade (Figura 15a���HTXLSDPHQWR�HGL¿FDGR�GXUDQWH�D�VHFD�GH���������D�¿P�

GH�DEULJDU�DV�OHYDV�GH�ÀDJHODGRV��&267$��������S������0$726���������$�)RUWDOH]D�

GH� ����� Mi� VHFUHWDYD� RV� LQJUHGLHQWHV� FDUDFWHUtVWLFRV� GR� TXDGUR� XUEDQR� FRQÀLWXRVR�

atual. Fato é, desses dois destaques aparentemente sem conexão, que tanto o riacho

Pajeú quanto o Arraial viriam a se constituir como peças descartáveis na composição

da paisagem radiosa da Fortaleza do século 20, autointitulada cidade-sede da alegria

às vitrines da Copa do Mundo de 2014 e, no chavão do marketing turístico, capital da

Terra da Luz – alcunha dada à cidade por conta do seu pioneiro ímpeto abolicionista.

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Figura 15. Detalhes da Planta da Cidade da Fortaleza, capital da província do Ceará, de

$GROIR�+HUEVWHU��������D��$VLOR�GD�0HQGLFLGDGH�H�5LDFKR�3DMH~���E��$UUDLDO�0RXUD�%UDVLO�H�Riacho Pajeú.

Fonte: Arquivo Digital da Biblioteca Nacional

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110

Expansão, convivência e repulsão

� 'HQWUH�DV�REUDV�TXH�5LVpULR��������S�������UH~QH�SDUD�FRQGX]LU�QRV�HP�VXD�

interpretação da Cidade no Brasil, valhamo-nos dos aportes e construções teóricas

GH�7HUHVD�&DOGHLUD�HP�³Cidades de Muros”. Para ela, em São Paulo e, para Risério,

em boa parte das cidades brasileiras, as regras que organizam o espaço urbano

constituem padrões de distinção social e separação que atravessam o século 20 em

SHOR�PHQRV�WUrV�H[SUHVV}HV�PDLV�DFDEDGDV��'R�¿QDO�GR�VpFXOR����DWp�RV�DQRV�������

sobressaía um padrão de segregação por tipos de moradia, em que camadas sociais

VH�FRPSULPLDP�H�VH�FRQFHQWUDYDP�HP�XPD�SHTXHQD�iUHD�XUEDQD��'RV�DQRV������DRV�

������SUHYDOHFHX�XP�PRGHOR�FHQWUR�SHULIHULD��GH�segregação por grandes distâncias.

Nesse segundo padrão, as classes médias e altas ocupam áreas centrais, de boa

infraestrutura, enquanto às classes pobres sobra o desbravamento de longínquas e

SUHFiULDV�SHULIHULDV��3RU�¿P��GRV�DQRV������HP�GLDQWH��jV�WUDQVIRUPDo}HV�UHFHQWHV�

do espaço urbano percebe-se, em sobreposição ao modelo centro-periferia, uma

segregação por muros e tecnologias de segurança��2V�JUXSRV�VRFLDLV�FRH[LVWHP�

e circulam em proximidade, mas, separados, tendem a não interagir em áreas

comuns. Surge daí a experiência capsular dos espaços privatizados e monitorados de

UHVLGrQFLD��FRQVXPR��OD]HU�H�WUDEDOKR��6RE�D�MXVWL¿FDWLYD�GR�WHPRU�DR�FULPH�YLROHQWR��

ocorre um esvaziamento das ruas e dos espaços públicos tradicionais por parte das

classes médias e altas, relegando-os às camadas pobres, aos grupos marginalizados

e sem-teto.

À luz desta ponderação e ainda orientados pela periodização de Custódio

�������� YHMDPRV� R� TXH� VH� GHX� FRP� D� FLGDGH� GH� )RUWDOH]D� DR� FXUVR� GR� VpFXOR� ���

para que viesse hoje a merecer as tais insígnias e honrarias (Tópico 2���9LPRV�TXH��

GD�VHJXQGD�PHWDGH�GR�VpFXOR����DR� LQtFLR�GR����� LQLFLD�VH�QD�FDSLWDO�FHDUHQVH�XP�

SURFHVVR�PDLV�ÀXtGR�GH�PDQLIHVWDomR�GH�VHQWLGR�H�RUGHP�XUEDQDV��TXH�VH�UHYHODP��

HP�~OWLPD� LQVWkQFLD��SHOR�QRWiYHO�SRGHU� UHJLRQDO�GH�DWUDomR�H�¿[DomR�GH�FDSLWDLV�H�

pessoas nesse espaço e que se traduzem em ciclos de implantação de infraestruturas,

QRYDV�GHPDQGDV�SRU�VHUYLoRV�H�UHIRUPDV�WLSLFDPHQWH�XUEDQDV��+i��QR�LQtFLR�GR�VpFXOR�

���� XPD� VRFLHGDGH� XUEDQD� IRUWDOH]HQVH� VX¿FLHQWHPHQWH� PXQLFLDGD� GH� HOHPHQWRV�

identitários e, em muitos sentidos, distante da imagem daquela vila que pouco e mal

VHUYLDP�D�XPD�RUGHP�HFRQ{PLFD�H[WHUQD�RX�D�PHUD�PDQXWHQomR�WHUULWRULDO��&DEH�D�

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111

nós investigar como a emergência de uma ordem próxima e de um sentido de lugar e

de pertença assumem às determinações e escolhas de desenvolvimento, sobretudo

local, um caráter perverso de uma perspectiva socioambiental.

� 2V�DQRV�������HQYROWRV�HP�XP�FHQiULR�GH�FULVH�HFRQ{PLFD�PXQGLDO��DQXQFLDP�

no Brasil uma fase monopolista de Estado, imbuída dos objetivos de modernização do

país. Este período coincide com a alcance do urbanismo moderno e com a difusão das

lógicas funcionalista e higienista entre os planos e propostas de intervenção urbanas

HP�)RUWDOH]D��9DOH�UHJLVWUDU�D�FKHJDGD�GR�SULPHLUR�DXWRPyYHO�QD�FDSLWDO�HP������H�

a substituição do sistema de transporte coletivo de bonde a tração animal (iniciado

HP�������SRU�ERQGHV�HOpWULFRV�HP������H��PDLV�DGLDQWH��HP�������SHOR�VLVWHPD�GH�

{QLEXV��$RV�SRXFRV��R�GHVHQYROYLPHQWR�GRV�WUDQVSRUWHV�YDL�OLEHUDQGR�R�Q~FOHR�FHQWUDO�

e balizando a expansão urbana à medida que permite a ocupação residencial de áreas

PDLV�DIDVWDGDV��PDQWHQGR�DV�FRQGLo}HV�GH�FLUFXODomR�H�DFHVVR�DR�FHQWUR��(P�������R�

LQWHQGHQWH�PXQLFLSDO�,GHOIRQVR�$OEDQR�FRQGX]LX�D�UHWL¿FDomR�GR�DOLQKDPHQWR�GH�FDVDV�

D�¿P�GH�DFRPRGDU�R�WUDQVSRUWH�LQGLYLGXDO�DXWRPRWRU��SURPRYHQGR�R�DODUJDPHQWR�H�D�

SDYLPHQWDomR�GH�QRYDV�UXDV��$Wp�D�GpFDGD�GH������DV�SUHIHLWXUDV�TXH�VXFHGHUDP�RV�

HVIRUoRV�GH�SODQL¿FDomR�GH�+HUEVWHU��*XLOKHUPH�5RFKD��,GHOIRQVR�$OEDQR��*RGRIUHGR�

0DFLHO� H� ÈOYDUR�:H\QH�� HPSUHHQGHUDP� REUDV� H� DMDUGLQDUDP� SUDoDV� VHP� QHQKXP�

SURMHWR�VLVWHPDWL]DGR�GH�LQWHUYHQomR��$SHQDV�QD�DGPLQLVWUDomR�GH�7LE~UFLR�&DYDOFDQWL�

���������� p�TXH� VmR�SURPRYLGRV�DUUXDPHQWRV� VHJXQGR�DV�SURMHo}HV�GH�H[SDQVmR�

GH������H������H� UHWRPD�VH�R�GHEDWH�VREUH�D�QHFHVVLGDGH�GH�XP�QRYR�SODQR�GH�

XUEDQL]DomR�SDUD�D�FLGDGH��&267$��������S������������S�������

� )DULDV�)LOKR��������WHQWD�XPD�DQiOLVH�VHQVtYHO�j�SHUFHSomR�GH�SURMHWRV�VRFLDLV�

HP�WUrV�SURSRVWDV�GH�UHPRGHODomR�SDUD�)RUWDOH]D�HQWUH�RV�DQRV������H�������$R�ORQJR�

desse período, a cidade começa a sentir os dessabores de um crescimento rápido e

FDyWLFR��GHVD¿R�SDUD�R�TXDO�VmR�FRQYRFDGRV�D�GDU�UHVSRVWD�WUrV�XUEDQLVWDV�UDGLFDGRV�

QR�5LR�GH�-DQHLUR��1HVWRU�GH�)LJXHLUHGR��HP�������6DER\D�5LEHLUR��HP������H�+pOLR�

0RGHVWR�� HP�������2�DXWRU� HVIRUoD�VH� SRU� SHUFHEHU� QD� DomR� GHVVHV� SUR¿VVLRQDLV�

algo além de um tratamento impreciso e abstrato do espaço, que seria natural esperar

GD�IRUPDomR�GRV�XUEDQLVWDV�VDELGDPHQWH�VRE�LQÀXrQFLD�H�LQVSLUDo}HV�GRV�SUHFHLWRV�

modernistas. Ainda que tenham sido convidados a considerar questões puramente

funcionais e quantitativas, afeitas principalmente aos gargalos de circulação da

cidade em franca expansão, suas propostas parecem conter aspectos sociais um

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112

nível acima do laissez-faire.

� 2� Plano de Remodelação e Extensão de Fortaleza, de Nestor Egídio de

Figueiredo trata-se mais de um esboço, de um desenho preliminar cuja continuidade

emperrou entre as prioridades da prefeitura de Raimundo Girão e do Conselho Municipal

à época. A proposta de Figueiredo presta-se à reestruturação do traçado em xadrez

de Silva Paulet com a implantação de um sistema radioconcêntrico. Assim, pretendia-

VH�FRQWRUQDU�DV�GL¿FXOGDGHV�GH�FLUFXODomR�HQWUH�RV�EDLUURV�H�RV�FRQJHVWLRQDPHQWRV�GH�

WUiIHJR��FRQIHULQGR�H¿FLrQFLD�j�IRUPD�XUEDQD�FRP�D�FULDomR�GH�QRYDV�FHQWUDOLGDGHV��

3DUD�)DULDV�)LOKR���������R�SURMHWR�VRFLDO�VXEMDFHQWH�FRQWHPSOD�DTXL�RV�DQVHLRV�GD�

burguesia comercial em ascensão. Embebidos em valores estéticos de distinção

espacial, as propostas de remodelação carregam um sentido de embelezamento da

paisagem, além de um rigoroso zoneamento funcional.

Dentre as críticas ao plano, lê-se às entrelinhas dos pareceres do prefeito e

de seus conselheiros a presença forte de uma espécie de bairrismo rude e arisco,

o que não deixa de ser uma manifestação do sentido de pertença e zelo do lugar.

No rechaço do conselheiro Júlio Rodrigues à proposta, ele dispensa a contribuição

de técnicos alheios à realidade local e diz não haver sentido em se destinar uma

IDWLD�FRQVLGHUiYHO�GR�PRGHVWR�HUiULR�PXQLFLSDO�����GDV�UHQGDV�DQXDLV��j�VHSDUDomR�

das atividades em uma cidade consolidada e de crescimento espontâneo. Com este

discurso, evita-se a LQWHUIHUrQFLD�DUWL¿FLDO do poder público sobre a vocação natural

para crescer de Fortaleza e recomenda-se o reinvestimento dos gastos com o plano

QD�FRQVWUXomR�GR�,QVWLWXWR�GH�0HQRUHV�'HOLQTXHQWHV�H�$EDQGRQDGRV��)$5,$6�),/+2��

������

Ainda que a resistência ao plano de Nestor de Figueiredo tenham protegido

Fortaleza da aplicação de um zoneamento funcionalista grosseiro, de uma ideologia

moderna – hoje podemos dizer – inconsequente e imatura, a polêmica em torno

GHVWH�tPSHWR�GH�LPSRVLomR�GH�RUGHP�DR�IHQ{PHQR�XUEDQR�UHVXOWRX�HP�LQWHUYDOR�ODUJR�

de paralisia em termos de instrumentalização à prática do planejamento. Não por

DFDVR��D�SDUWLU�GRV�DQRV�������Gi�VH�XP�FUHVFLPHQWR�FRQWtQXR�GH�DEULJRV�SUHFiULRV�

construídos espontaneamente em terrenos vazios e áreas desvalorizadas (ao

longo dos trilhos da Rede Ferroviária, em terrenos de marinha, da União, terrenos

GD�SUHIHLWXUD��GH�SDUWLFXODUHV��EDOGLRV�H�HP�OHLWRV�GH�UXDV���$Wp�R�SULQFtSLR�GRV�DQRV�

������DQWHV��SRUWDQWR��GR�TXH�YLULD�D�VH�FRQ¿JXUDU�FRPR�XP�VXUWR�GHPRJUi¿FR�XUEDQR��

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113

UHJLVWUD�VH�R�VXUJLPHQWR�GDV�IDYHODV�GR�3LUDPEX���������GR�0XFXULSH���������&HUFDGR�

GH�=p�3DGUH���������GD�9DUMRWD���������GR�/DJDPDU���������0RUUR�GR�2XUR���������

3DSRTXLQKR���������GR�0HLUHOHV��������H�(VWUDGD�GH�)HUUR���������2�1RUGHVWH�KDYLD�

sido sorteado no plano de integração nacional para manter-se à margem do processo

de industrialização, encarregado por seu turno, da exportação do gênero mão-de-obra

para a região Sudeste. A expansão das atividades industriais em Fortaleza datam das

SROtWLFDV�GH�DSRLR�WDUGLR�GD�68'(1(�QDV�GpFDGDV�GH������H������H��GHVVD�IRUPD��

QmR�H[SOLFDP�D�IRUPDomR�GD�PDLRU�SDUWH�GDV�IDYHODV�QHVVHV�WUySLFRV��628=$��������

S������

Ainda assim, neste cenário de tímida projeção do setor secundário, é curioso

observar que o bairro nobre da Jacarecanga, fruto da expansão a oeste do centro

FRPHoD� D� FDLU� HP� GHVFUpGLWR� FRP�D� LQVWDODomR�� HP� ������ GD� R¿FLQD�PHFkQLFD� GD�

5HGH� 9LDomR� &HDUHQVH� �2¿FLQD� GR� 8UXEX��� TXH� DWUDLX� DV� SULPHLUDV� LQG~VWULDV� DR�

FXUVR�GD�DYHQLGD�)UDQFLVFR�6i�DWp�D�%DUUD�GR�&HDUi�H�DR�ORQJR�GDV�YLDV�IpUUHDV��2�

assentamento da mão-de-obra empregada nesses estabelecimentos e a população

indigente e migrante que vai erguendo barracos às margens dessas vias aos poucos

trata de “afugentar” as camadas de alta renda, que encontram nos bairros a leste, além

da linha do Pajeú, seu principal refúgio: a Aldeota, mas também a Praia de Iracema

e o Meireles; e a sul, o Bairro de Fátima. Esse movimento de expansão, repulsão

e homogeneização por bairros estabelece os contornos iniciais da segregação por

JUDQGHV�GLVWkQFLDV�H�GD�FRQ¿JXUDomR�FHQWUR�SHULIHULD�HP�)RUWDOH]D��&267$��������S��

����628=$��������

� 1D�DGPLQLVWUDomR�GR�SUHIHLWR�&OyYLV�0DWRV������������R�HQJHQKHLUR�XUEDQLVWD�

Saboya Ribeiro propõe um traçado do tipo radial-perimetral, com a introdução de

YLDV� UDGLDLV� �HP� WRGRV� RV� VHQWLGRV��� DYHQLGDV� VXE�UDGLDLV� �YLDV� ORQJDV�� OLJDQGR� RV�

EDLUURV�VHP�FUX]DU�R�FHQWUR��H�VLVWHPDV�GH�DQpLV��IRUPDQGR�FLUFXLWRV�DMXVWDGRV�j�UHGH�

ortogonal em toda a cidade e nomeados segundo o raio de abrangência (comercial,

GH� LUUDGLDomR�� LQWHUPHGLiULR�� H[WHULRU� H� UXUDO��� 5LEHLUR� WUDEDOKD� HP� VXD� SURSRVWD� D�

remodelação da área central, reforçando a necessidade de manutenção do seu valor

simbólico e do seu papel como lugar de acomodação dos poderes decisórios e projeta

o disciplinamento das demais áreas segundo uma lógica de organização por bairros.

1HVVH�VHQWLGR��6DOHV��������H[SOLFD�TXH�HVWH�Plano de Remodelação e Extensão para

Fortaleza é marcado pela ambiguidade conceitual típica da arquitetura moderna em

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114

sua primeira fase. As proposições de Ribeiro para os bairros, portanto, aproximam-se

dos modelos de polinucleação sem, no entanto, projetar uma autonomia às unidades

FDSD]�GH�URPSHU�FRP�D�GHSHQGrQFLD�TXDQWR�DR�Q~FOHR�FHQWUDO��)$5,$6�),/+2��������

� 7DPEpP�FRQWUDWDGR�SDUD� GDU� VROXomR�DRV�SUREOHPDV�GH� FLUFXODomR��6DER\D�

Ribeiro, transcende em muito a dimensão da expectativa de suas sugestões,

deixando transparecer não só um projeto social no seu traçado, mas também um

projeto ambiental. Sua proposta de zoneamento combina disciplinamentos de uso

�FRPHUFLDO��FHQWUDO��XUEDQD��VXEXUEDQD��VHGH�GH�GLVWULWRV��UXUDO�DJUtFROD��H�OLPLWHV�GH�

verticalização, destinando a zona central como espaço privilegiado de verticalização

�FRWD�GH���P�H�JDEDULWR�Pi[LPR�GH����SDYLPHQWRV�FRQWUD���SDYLPHQWRV�H�D�OLPLWDomR�

GH�DOWXUD�HP�GXDV�YH]HV�D�ODUJXUD�GR�ORJUDGRXUR�SDUD�DV�GHPDLV�iUHDV���2�PHPRULDO�

descritivo do plano dedica uma seção ao que Ribeiro chama de organização social

da cidade, um apanhado de mecanismos e recomendações voltados a um sentido de

democratização do acesso à propriedade urbana. Aí se sugere a escolha de setores

da cidade ainda não valorizados, próximos a zonas de trabalho, para a construção de

KDELWDo}HV�H�FULDomR�GH�EDLUURV�SRSXODUHV��(VWD�LQLFLDWLYD�¿FDULD�D�FDUJR�GH�LQVWLWXLo}HV�

EHQH¿FHQWHV��¿ODQWUySLFDV�H�GH�DVVLVWrQFLD�VRFLDO��TXH�FRQWDULDP�FRP�D�LVHQomR�GH�

impostos e taxas nas operações imobiliárias. Nesse esforço, o urbanista incluiu um

SURMHWR�SDUD�R�EDLUUR�SRSXODU�0RXUD�%UDVLO��$UUDLDO�0RXUD�%UDVLO���FRP�LQGLFDo}HV�GH�

UXDV�H�TXDGUDV�GHVWLQDGDV�D�KDELWDomR�HP�VpULH��6$/(6��������

Quanto ao projeto ambiental subjacente ao plano de Saboya Ribeiro, a concepção

sanitarista associada a preocupações com a estética urbana resultou em proposições

SRQGHUDGDV�VREUH�D�SUHVHUYDomR�GR�VLVWHPD�KtGULFR�H�GD�SDLVDJHP�QDWXUDO��2�XUEDQLVWD�

HVWLSXORX�D�PDQXWHQomR�GH�XP�PtQLPR�GH�����GH�HVSDoRV�YHUGHV�VREUH�D�iUHD�WRWDO�

GRV�EDLUURV��SURS{V�FRPR�PHGLGD�GH�EDODQoR�j�H[FHVVLYD�RUWRJRQDOLGDGH�GR�WUDoDGR�

em xadrez a construção de avenidas-canal marginais aos cursos d’água; e projetou a

avenida Radial Beira-mar, propondo com ela a preservação de toda a faixa litorânea,

com exceção dos pontos de inserção do Poço da Draga e do Porto do Mucuripe (em

FRQVWUXomR�GHVGH������H�¿QDOL]DGR�HP��������3ODQRV�IXWXURV�DSURSULDUDP�VH�GHVWDV�

propostas sem atribuírem-lhe o mérito, entre elas, a urbanização de parte do riacho

3DMH~�H�D�FRQVWUXomR�GD�DYHQLGD�FDQDO�$JXDQDPEL��)$5,$6�),/+2��������6$/(6��

������

� (P�������D�&kPDUD�0XQLFLSDO�DSURYD�R�3ODQR�6DER\D�5LEHLUR�H�R�&yGLJR�GH�2EUDV�

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115

SURSRVWR��PDV�QR� WH[WR�¿QDO�QmR�FRQVWDP�GHWDOKDPHQWRV�TXDQWR�j�UHJXODPHQWDomR�

dos indicativos de renovação da área central e de reorganização dos bairros. Coube a

uma comissão de avaliação presidida pelo prefeito e por representantes de entidades

públicas e privadas a tarefa de implementação daquelas diretrizes. Como na iniciativa

GH� GLVFLSOLQDPHQWR� DQWHULRU�� GHX�VH� St¿D� D� RSHUDFLRQDOL]DomR� GHVWH� SODQR� VRE� D�

mesma alegação de precariedade de recursos do município. Em verdade, fazia-se

IRUWH� D� LQÀXrQFLD� GR� VHWRU� SULYDGR� QHVVD� FRPLVVmR� H� QHP� VHTXHU� DV� DOWHUDo}HV� H�

recuos previstos para o sistema viário pareciam convergir com os interesses desses

SURSULHWiULRV��)$5,$6�),/+2��������6$1726��������S�������

Neve no sertão?

Na segunda metade do século 20, a cidade de Fortaleza experimenta um

crescimento populacional e uma expansão das fronteiras de ocupação do solo urbano

sem precedentes, tanto de caráter formal como informal (loteamentos clandestinos,

IDYHODV� H� Q~FOHRV� HUJXLGRV� SRU� DXWRFRQVWUXomR��� 2V� LQFUHPHQWRV� SRSXODFLRQDLV�

LQWHUFHQVLWiULRV� GHPRQVWUDP� D� DEHUWXUD� H� D� RFOXVmR� GHVVD� MDQHOD� GHPRJUi¿FD�� GH�

49,9%�HQWUH����������GH�90,5%�HQWUH����������GH�66,6%�HQWUH���������H�52,5% entre

���������(QWUH������H�������Ki�R�LQFUHPHQWR�PDLV�H[SUHVVLYR��HP�TXH�D�SRSXODomR�

UHVLGHQWH�QD�FDSLWDO�VDOWD�GH���������SDUD���������KDELWDQWHV��$�SDUWLU�GD�GpFDGD�GH�

������ SHUFHEH�VH� XP� DUUHIHFLPHQWR� QR� GHVHPSHQKR� GHVVHV� UHVXOWDGRV�� GH�35,2%

HQWUH� �������� H� GH� 21,0%� HQWUH� ����������� R� TXH� QmR� VLJQL¿FD� QHFHVVDULDPHQWH�

uma interrupção do crescimento, mas um deslocamento na escala de ocorrência

GR� IHQ{PHQR� SDUD� RV� OLPLWHV� PHWURSROLWDQRV�� FRPR� LQGLFD� D� WD[D� GH� FUHVFLPHQWR�

SRSXODFLRQDO�UHJLVWUDGD�SDUD�D�5HJLmR�0HWURSROLWDQD�GH�)RUWDOH]D��50)��HQWUH������

H���������������D�PDLRU�HQWUH�DV�UHJL}HV�PHWURSROLWDQDV�PRQLWRUDGDV��,3($��������

628=$��������

� � 4XDQWR� DR� FDUiWHU� GHVVH� FRQWLQJHQWH� DGLFLRQDO�� 6RX]D� ������� H[SOLFD� TXH��

DSHVDU�GD�YHUL¿FDomR�GH�WD[DV�HOHYDGDV�GH�FUHVFLPHQWR�YHJHWDWLYR�QHVVH�SHUtRGR��RV�

saltos populacionais em Fortaleza devem-se, em maior parte, às migrações internas.

Entre outros motivos, a pesquisadora atribui como causa dos movimentos migratórios

o processo de deterioração da economia rural tradicional, com a incidência das secas,

as questões fundiárias, a crise das culturas vulneráveis às irregularidades climáticas

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116

e a ausência ou a inadequação de políticas públicas voltadas a um desenvolvimento

regional equilibrado.

� 8P�HVWXGR�GR�,QVWLWXWR�-RDTXLP�1DEXFR�GH�3HVTXLVDV�6RFLDLV��,-136��GH������

revelava que a composição dos moradores de favelas à época estava representada por

DSHQDV�������GH�LQGLYtGXRV�QDWXUDLV�GD�FDSLWDO��$V�FRQGLo}HV�SUHFiULDV�GH�LQVWUXomR�

H�TXDOL¿FDomR�GHVVD�SDUFHOD�PLJUDQWH�GL¿FXOWDYDP�D�VXD�LQWHJUDomR�j�HFRQRPLD�H�j�

YLGD�XUEDQDV��2FXSDYDP�VH�HP�JUDQGH�SDUWH�GH�DWLYLGDGHV�DUWHVDQDLV��GD�DWLYLGDGH�

pesqueira e de funções de doméstica, servente e pedreiro, além do pequeno comércio

de vendas e botequins, mas no todo urbano constituíam essencialmente uma massa

GH� VXEHPSUHJDGRV� H� GHVHPSUHJDGRV�� FRP� UHQGD� tQ¿PD� RX� DXVHQWH�� (P� ������

UHJLVWUDYD�VH� D� H[LVWrQFLD� GH� ��� YLODV� PDUJLQDLV�� FRP� XPD� SRSXODomR� GH� ���� PLO�

SHVVRDV�DVVHQWDGDV�HP��������GRPLFtOLRV��628=$��������S�������

As práticas de planejamento urbano em sentido amplo, mais próximas de

FRPR�KRMH� DV� FRQKHFHPRV�� DIHLWDV� D� GHWHUPLQDo}HV� GH� FDUiWHU� VRFLDO�� HFRQ{PLFR��

administrativo, ambiental, histórico-cultural e físico-espacial iniciam-se em Fortaleza

também nesta segunda metade de século. Com o Plano Diretor de Fortaleza, elaborado

SHOR� DUTXLWHWR�+pOLR�0RGHVWR�� D� FRQYLWH� GH�5DLPXQGR�*LUmR�� HQFDUUHJDGR�j� pSRFD�

GD�VHFUHWDULD�PXQLFLSDO�GH�XUEDQLVPR�GD�JHVWmR�&RUGHLUR�1HWR������������DOJXPDV�

das dimensões precocemente levantadas por Saboya Ribeiro ganham estatuto de

WUDWDPHQWR� REULJDWyULR� HQWUH� HVIRUoRV� GH� SODQL¿FDomR� SURGX]LGRV� QR� %UDVLO� QHVVH�

período.

� 6HJXQGR�)DULDV�)LOKR���������R�SODQR�GH�+pOLR�0RGHVWR��SHQVDGR�QR�FRQWH[WR�

da chamada fase heróica da arquitetura brasileira, com a construção de Brasília e,

em meio a um cenário local de profundas transformações, marcado sobretudo por

uma conformação espacial descontrolada, sintetiza uma crítica contundente a uma

elite urbana. Segundo ele, estes segmentos trabalharam sobre todas as frentes para

GL¿FXOWDU�RX�MDPDLV�FRQVHQWLU�R�GHVHQYROYLPHQWR�GHPRFUiWLFR�H�HVSDFLDOPHQWH�MXVWR�QD�

cidade de Fortaleza.

Este urbanista propunha um rearranjo de forças segundo a morfologia do

traçado. Modesto retoma a ideia de sobreposição de um sistema radioconcêntrico

à malha ortogonal proposta por Saboya Ribeiro e Nestor de Figueiredo, ampliando

a taxonomia viária numa proclamação da vitalidade e da complexidade da estrutura

urbana. Sua proposta adequa-se ao modelo de cidade polinucleada. Para tanto, ele

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sugere a estruturação de um centro cívico e dos centros de bairros. Diferente da

centralidade administrativa de seu antecessor, o centro cívico é o lugar por excelência

do encontro entre sociedade e espaço, dedicado à produção da alteridade ameaçada

pelo movimento de segregação social acarretado pela expansão e transbordo do

centro.

Aqui se ensaia uma mistura de funções para a área central, congregando

equipamentos administrativos, culturais e religiosos. Infelizmente, como muitas das

SURSRVWDV� LQÀXHQFLDGDV�SHORV�SUHFHLWRV�GR�XUEDQLVPR�PRGHUQR�GD�SULPHLUD�PHWDGH�

GR�VpFXOR��0RGHVWR�QmR�HVERoD�JUDQGH�VHQVLELOLGDGH�TXDQWR�R�YDORU�GR�SDWULP{QLR�

histórico e defende a renovação urbana�GR�FHQWUR�YLD�OLEHUDomR�GH�HGL¿FDo}HV�DQWLJDV��

consideradas por ele como de uso precário. Assim, sua proposta sugere a remoção de

prédios históricos como a Santa Casa de Misericórdia, o Cemitério, a Penitenciária, a

Estação Ferroviária, o Parque Ferroviário, o Quartel-General, os armazéns do porto

DQWLJR��R�*DV{PHWUR�H�R�0HUFDGR�&HQWUDO��)$5,$6�),/+2��������6$/(6��������

� 2V�FHQWURV�GH�EDLUURV�VHULDP�PDLV�TXH�PHUD�HVWUDWpJLD�GH�GHVFHQWUDOL]DomR�

funcional, mas, principalmente, um meio de enfrentamento da desigualdade espacial

alavancada pela segregação urbana. Modesto e sua equipe levantaram dados

VRFLRHFRQ{PLFRV�� WUDWDQGR�GDV� FDUrQFLDV� GH�HTXLSDPHQWRV� GH�HQVLQR�H� FRQGLo}HV�

GH� TXDOL¿FDomR� SUR¿VVLRQDO� GRV� GLYHUVRV� VHWRUHV� GD� FLGDGH�� 3URS{V� VREUH� D� EDVH�

DHURIRWRJUDPpWULFD� GH� ����� XP� ]RQHDPHQWR� IXQFLRQDO� QXPD� DERUGDJHP� LQWHJUDGD�

VHJXQGR�D�HVWUXWXUD�VRFLRHFRQ{PLFD�GRV�EDLUURV�� LGHQWL¿FDQGR�IRUPDV�H�WHQGrQFLDV�

GH�XVR�H�RFXSDomR�GR�VROR��$LQGD�TXH�RV�HVIRUoRV�GR�3ODQR�'LUHWRU�GH������SDUD�

disciplinar o adensamento carreguem um sentido de democratização do espaço

XUEDQR��6DOHV� �������D¿UPD�TXH��DR�GLVFULPLQDU�RV�HTXLSDPHQWRV�XUEDQRV�EiVLFRV�

nos bairros de alto e baixo padrão, facilitou-se a manutenção das desigualdades

pré-existentes entre os bairros, por conta da valorização a priori estabelecida pela

especulação em função da disponibilidade infraestrutural e de equipamentos urbanos,

direcionando, por seu turno, os investimentos privados de ali em diante.

� 7DQWR�HUD�UHDO�D�SUHRFXSDomR�GH�0RGHVWR�FRP�DV�GLVSRVLo}HV�VRFLDLV�GH�VXDV�

recomendações, que chega a propor a instituição de um Censo de Facilidade Sociais,

uma espécie de ouvidoria ou conselho composto por representantes da administração

municipal, da igreja, da universidade e das indústrias capaz de dar vazão a demandas

YLQGDV�GD�EDVH�GD�VRFLHGDGH��'HVVH�SODQR��DSURYDGR�SHOD�&kPDUD�GRV�9HUHDGRUHV�

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118

QD�VHTXrQFLD�GD�DSURYDomR�GR�&yGLJR�8UEDQR�GH�������DOpP�GD� LPSODQWDomR�GRV�

Cadastros Imobiliários, foram adotadas basicamente propostas de estruturação viária,

parte delas já contidas no Plano Saboya Ribeiro: a construção da av. Beira Mar; da

av. Perimetral (anel de ligação entre os bairros periféricos, da Barra do Ceará ao

0XFXULSH���GD�DY��/XFLDQR�&DUQHLUR��PHOKRUDQGR�R�DFHVVR�DR�DHURSRUWR��$�FRQVWUXomR�

da Beira Mar, que se transformaria na principal zona de lazer na década seguinte,

desloca o antigo ponto de prostituição para o Farol do Mucuripe, no bairro do Serviluz,

e os pescadores, que ali mantinham a base de suas atividades, para a rua Manuel

-HVXtQR��QR�EDLUUR�GD�9DUMRWD��&267$��������S������

Depois do temporal, a varrição

� $�SDUWLU�GD�GpFDGD�GH�������LQLFLDP�VH�DV�SROtWLFDV�GH�GHVIDYHODPHQWR��IUXWR�GH�

uma reestruturação nacional da gestão urbana após a instalação do governo ditatorial

HP� ������ $V� PXQLFLSDOLGDGHV� SHUGHP� DXWRQRPLD� SDUD� DV� LQVWkQFLDV� HVWDGXDLV� H�

IHGHUDO��TXH�SDVVDP�D�FHQWUDOL]DU� UHFXUVRV�¿QDQFHLURV�H�D�H[HUFHU�FRQWUROH�SROtWLFR�

e administrativo sobre pastas e aparelhos locais. Coube aos estados o controle da

exploração dos serviços de água e esgoto, energia e telefonia, ao passo que as

SROtWLFDV�GH�KDELWDomR�H�GH�WUDQVSRUWHV�¿FDUDP�D�FDUJR�GR�SRGHU�IHGHUDO��(LV�XPD�IDVH�

de ações desencontradas. A construção de conjuntos habitacionais, a abertura de

vias e a implantação de serviços urbanos, porque tocadas alheias a um planejamento

LQWHJUDGR�� WUDGX]LUDP�VH� HP� IRQWH� GH� DÀRUDPHQWR� GH� VpULRV� FRQÀLWRV� H� SUREOHPDV�

XUEDQRV��&267$��������S������

A consideração tacanha dos aspectos gerais de planejamento da ocupação do

solo deixou a critério dos especuladores imobiliários a coordenação do processo de

incorporação de novas áreas à cidade, a produção de solo urbano. Dessa forma,

proprietários de terras garantiram a posse de terrenos nas periferias distantes e

lotearam sítios antes destinados ao uso rural (Sítios Cocó, Alagadiço, Cambeba e

(VWkQFLD���HQTXDQWR�JUDQGHV�iUHDV�YD]LDV�HQWUH�R�FHQWUR�H�HVVDV�IUHQWHV�GH�RFXSDomR��

EHQH¿FLDYDP�VH� DRV� SRXFRV� GDV� OLJDo}HV� LQIUDHVWUXWXUDLV� ¿QDQFLDGDV� SHOR� SRGHU�

público, aguardando ociosos um pico vantajoso de valorização.

� (QWUH������H�������GXUDQWH�D�JHVWmR�GR�SUHIHLWR�-RVp�:DOWHU�&DYDOFDQWH�������

�����IRL�HODERUDGR�R�Plano de Desenvolvimento Integrado para a Região de Fortaleza

Page 120: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

119

�3/$1',5)���XP�SODQR�GH�DEUDQJrQFLD�PHWURSROLWDQD��FXMDV�SURSRVWDV�FRQWHPSODP�

GLPHQV}HV�ItVLFR�WHUULWRULDLV��VRFLRHFRQ{PLFDV��DGPLQLVWUDWLYDV�H�SROtWLFR�LQVWLWXFLRQDLV��

consolidando e aprofundando a prática de planejamento urbano e regional iniciada no

Plano Hélio Modesto. Pode-se dizer que as preocupações aqui contidas antecipam

D� LQVWLWXLomR� GD� 50)�� TXH� IRUPDOPHQWH� RFRUUHULD� HP� ������ MXQWR� D� RXWUDV� UHJL}HV�

metropolitanas brasileiras, legitimando a necessidade de se pensar o desenvolvimento

integrado das metrópoles e zonas urbanas contíguas. Por outro lado, nota-se também

a diminuição de importância do papel de planejadores e técnicos notáveis nesse

esforço de construção de uma visão multidimensional. Diante da complexidade das

TXHVW}HV�H�GRV�GHVD¿RV�TXH�VH�FRORFDP��SDUHFH�QmR�KDYHU�PDLV�VXMHLWR�RX�IRUPDomR�

GLVFLSOLQDU�TXH�VDWLVIDoD�WDO�HVSHFWUR�GH�FRQVLGHUDo}HV��&267$��������S������

Desta vez, algo além da seção destinada às proposições viárias teve

destaque em termos de implementação, mas, antes, consideremos esta seara. Na

DGPLQLVWUDomR�GR�SUHIHLWR�9LFHQWH�)LDOKR������������VRE�R�FRPDQGR�GD�&RRUGHQDGRULD�

GH� 'HVHQYROYLPHQWR� 8UEDQR� GH� )RUWDOH]D� �&2'()��� DSURYRX�VH� XP� QRYR� 3ODQR�

'LUHWRU�)tVLFR�GH�)RUWDOH]D�HP�������FRP�EDVH�QDV�GLUHWUL]HV�GR�3/$1',5)�H�QRV�

OHYDQWDPHQWRV�DHURIRWRJUDPpWULFRV�GH�������'HVVHV�GRLV�SODQRV��PDWHULDOL]DUDP�VH�

DV�DYHQLGDV�3UHVLGHQWH�&DVWHOOR�%UDQFR��/HVWH�2HVWH���HP�������%RUJHV�GH�0HOR�H�

$JXDQDPEL��DYHQLGD�FDQDO��HP�������=H]p�'LRJR��'LRJXLQKR��H�R�TXDUWR�DQHO�YLiULR�

�OLJDQGR�RV�EDLUURV�GD�3DUDQJDED��%RD�9LVWD��3DVVDUp��&DVWHOmR�H�&DMD]HLUDV���HP�

������ � IRUDP� SURORQJDGDV�� VHJXLQGR� R� VLVWHPD� UDGLRFRQFrQWULFR�� DV� DYHQLGDV� GRV�

([SHGLFLRQiULRV��&DUDSLQLPD� H�$QW{QLR�6DOHV��É a partir desse momento que uma

segunda barreira física à expansão é transposta: a linha férrea Mucuripe-Parangaba

e o rio Cocó. De maneira geral, o sítio urbano de Fortaleza não apresentava

impedimentos à ocupação, à exceção do riacho Pajeú na virada do século e do rio

Cocó nesse segundo ato. Com a construção de pontes e a abertura de vias, observa-

VH�D�RFXSDomR�JUDGXDO�GH�QRYDV�iUHDV�QR�VHWRU�OHVWH��&267$��������S������

� 1R�SODQR�GH������� SDUD� ¿QV�GH�DUUHFDGDomR�� SHOD�SULPHLUD� YH]� WRGD�D�iUHD�

municipal é considerada urbana. Isto parece coincidir com uma inversão da relação

HQWUH�SRSXODomR�XUEDQD�H�UXUDO�QR�HVWDGR��XPD�YH]�TXH�R�FHQVR�GH������DSRQWDYD�TXH�

53,15%�GRV�FHDUHQVHV�YLYLDP�HP�FLGDGHV��(P�������VHULDP�46,6% e em 2010, 75,0%

o contingente urbano. Internamente, as dinâmicas de produção e reprodução urbanas

parecem balizar um movimento de ordenação dos estratos sociais com direcionamento

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120

dos grupos de alta renda a leste e de baixa renda a oeste, conformando uma cidade

partida à marca de irradiação do núcleo central. Ainda que esta tendência não se

comprove no detalhe, esforços no sentido de homogeneização da cidade em duas

manchas contrastadas não faltaram.

Dessa forma, pautada nas diretrizes do PLANDIRF e do Plano Diretor

)tVLFR� GH� ������ WRPD� FXUVR� D� LPSODQWDomR� DWLYD� GH� FRQMXQWRV� KDELWDFLRQDLV�� GH�

loteamentos periféricos e, indiretamente, de autoconstruções nas zonas oeste e sul.

Simultaneamente, ocorrem ações de remoção de favelas e núcleos favelados dispostos

em áreas circundadas por boa infraestrutura e, portanto, favoráveis à ocupação de

DOWR�SDGUmR��$�IDYHOD�GR�7ULOKR�,�p�D�SULPHLUD�D�VHU�UHPRYLGD�SDUD�GDU�OXJDU�j�(VWDomR�

Rodoviária e à avenida Borges de Melo. Em seguida, é a vez das favelas da avenida

Estados Unidos e Senador Machado, cujas famílias são transferidas para o Conjunto

$OYRUDGD� QR� EDLUUR� 6HLV� %RFDV�� $� FRQVWUXomR� GD� DYHQLGD� /HVWH�2HVWH� FREUDYD� D�

remoção para o Conjunto Marechal Rondon – erguido no distrito de Jurema, município

GH�&DXFDLD��D����NP�GR�FHQWUR�±�GH�WUHFKRV�GR�$UUDLDO�0RXUD�%UDVLO��XP�GRV�SULPHLURV�

DVVHQWDPHQWRV�SUHFiULRV��HVWDEHOHFLGR�GHVGH�RV�¿QV�GR�VpFXOR������GR�3LUDPEX�H�GD�

9LOD�6DQWR�$QW{QLR��&267$��������S������

� 6HJXQGR�6RX]D��������S�������RV�FRQÀLWRV�HP�)RUWDOH]D�HQWUH�R�(VWDGR�H�JUXSRV�

PDUJLQDOL]DGRV�SHOD�SRVVH�GH�WHUUD�H�WHWR�GDWDP�GH�������SHUtRGR�GH�FUHVFLPHQWR�GDV�

IDYHODV�GR�3LUDPEX��GR�/DJDPDU�H�9HUGHV�0DUHV��$V�WHQWDWLYDV�GH�H[SXOVmR�GHVVHV�

grupos resultaram no fortalecimento dos movimentos sociais urbanos junto à Igreja,

mobilizados para a resistência às desocupações, além da reivindicação de melhorias

e direitos. Nesse sentido, alguns grupos conseguem manter-se assentados. É o

FDVR�GDV�IDYHODV�GR�3LUDPEX��GH�6DQWD�&HFtOLD��GH�6DQWD�7HUH]LQKD�H�GR�/DJDPDU��

¬�PHGLGD�TXH�VXD�¿[DomR�VH�OHJLWLPD�IUHQWH�jV�Do}HV�GH�UHPRomR��YmR�DRV�SRXFRV�

conquistando o benefício de projetos de urbanização e abandonando parte do estigma

da favelização, constituindo-se como bairros populares.

No entanto, apesar dos casos mencionados, uma parte considerável da

população pauperizada é varrida com sucesso dos assentamentos indesejados,

passando a residir nos conjuntos habitacionais construídos em terrenos baratos e

GLVWDQWHV�SHOD�&RPSDQKLD�GH�+DELWDomR�GR�&HDUi� �&2+$%���VRE�¿QDQFLDPHQWR�GR�

%DQFR�1DFLRQDO�GH�+DELWDomR��%1+��FRP�UHFXUVRV�GR�)*76��2�SULPHLUR�IRL�R�FRQMXQWR�

-RVp� :DOWHU�� QR� EDLUUR� GR� 0RQGXELP� HQWUH� ����� H� ������ (P� VHJXLGD� YLHUDP� RV�

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121

conjuntos Cidade 2000, Conjunto Ceará, Beira Rio, Nova Assunção e Santa Luzia

GR�&RFy��$�SDUWLU�GD�GpFDGD�GH�������RV�SURJUDPDV�GH�KDELWDomR�SRSXODU�DORFDP�RV�

novos projetos preferencialmente na região metropolitana, a princípio em Caucaia

(Nova Acrópole, Parque Guadalajara, Parque Potira, Nova Metrópole I, II e III, Conjunto

$UDWXUL�,��,,�H�,,,��H�0DUDFDQD~��&RQMXQWRV�-HUHLVVDWL�,��,,�H�,,,�H�7LPEy���628=$��������

S�������

As políticas de habitação do período ditatorial nem atendem quantitativamente

à demanda posta nem se prestam a uma resposta digna para o problema, uma vez que

esses conjuntos aumentavam as distâncias dos percursos casa-trabalho sem sequer

suprir as habitações da infraestrutura mínima e dos serviços e equipamento sociais

necessários. Com efeito, uma parte da população desassistida inicia uma prática de

RFXSDomR�GRV� YD]LRV�XUEDQRV�� R�0RYLPHQWR�GRV�7UDEDOKDGRUHV�6HP�7HWR� �0767���

que passa a reivindicar moradia através da ocupação de praças, terrenos e prédios

ociosos, públicos e privados. Essas lutas haveriam de desaguar no âmbito nacional

em pressões para a introdução dos artigos relativos à política urbana na Constituinte

GH�������$�SDUWLU�GD�GpFDGD�GH�������SRU�FRQVHTXrQFLD��RV�SURJUDPDV�KDELWDFLRQDLV�

procuram deslocar os grupos removidos para zonas não muito distantes das áreas de

remoção. Nessa linha, registra-se a construção dos conjuntos São Cristóvão e São

-RmR��SUy[LPRV�DR�&RQMXQWR�3DOPHLUDV��&267$��������S������628=$��������S�������

Direito à cidade do gringo e à cidade lacrada

� $�SDUWLU�GD�GpFDGD�GH�������JDQKD�IRUoD�HP�)RUWDOH]D�R�SDGUmR�GH�VHJUHJDomR�

SRU�HQFODYHV�IRUWL¿FDGRV��1mR�WHQGR�ORJUDGR�r[LWR�SOHQR�QD�UHSDUWLomR�GD�FLGDGH�HP�

dois estratos homogeneamente didáticos, as políticas e práticas de desenvolvimento

urbano pautadas na remoção e na alocação das camadas pauperizadas às periferias

distantes transformam-se com a retomada do Estado Democrático de Direito. Em

������p�LQDXJXUDGR�R�SULPHLUR�VKRSSLQJ�GD�FDSLWDO��R�&HQWHU�8P��HUJXLGR�QR�DY��6DQWRV�

Dumont, no seio do bairro Aldeota e, em torno do qual, desenvolve-se um comércio

GH�OX[R��1D�VHTXrQFLD��HP�������FRQVWUyL�VH�R�6KRSSLQJ�,JXDWHPL��FXMDV�IXQGDo}HV�

VH�LQVWDODP�VREUH�iUHD�GHJUDGDGD�GD�SODQtFLH�ÀXYLRPDULQKD�GR�ULR�&RFy��RQGH�DQWHV�

funcionavam as Salinas Diogo. Este empreendimento atrai outras atividades comerciais

que, somadas aos equipamentos já dispostos no bairro Água Fria (Universidade de

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122

)RUWDOH]D��&HQWUR�GH�&RQYHQo}HV��&HQWUR�GH�7UHLQDPHQWR�GR�%DQFR�GR�(VWDGR�GR�

&HDUi�� ,PSUHQVD� 2¿FLDO� GR� &HDUi��$FDGHPLD� GH� 3ROtFLD�� DJUHJDP� XP� GLQDPLVPR�

PDLRU�j�iUHD��&267$��������S������

� 2�PRGHOR�GH�SROLQXFOHDomR�SURMHWDGR�SHORV�SULPHLURV�SODQHMDGRUHV�PRGHUQRV�

começa seletivamente a tomar forma com o esvaziamento funcional do centro, que

progressivamente assume um papel de centro da periferia a medida que ocorre a

descentralização administrativa, o esvaziamento simbólico do centro tradicional e o

abandono e desinteresse desse espaço pelas camadas altas e setores da classe

média. Nesse período, a sede do governo estadual transferiu-se para a Aldeota

�3DOiFLR�GD�$EROLomR��H�D�$VVHPEOpLD�/HJLVODWLYD�SDUD�R�EDLUUR�'LRQtVLR�7RUUHV��WDPEpP�

QD�]RQD�OHVWH��-i�QR�¿P�GRV�DQRV������HVVD�WHQGrQFLD�GH�GHVORFDPHQWR�VH�UHD¿UPD�

com a transferência de secretarias para o Centro Administrativo do Estado do Ceará,

no bairro Cambeba, a sudeste do núcleo central.

Pouco antes, a oeste, desenvolvia-se ao longo da avenida Gomes de Matos, no

bairro Montese, um pequeno comércio local voltado à população de baixa renda, onde

GHSRLV�VH�LQVWDODULDP�¿OLDLV�GH�ORMDV�GR�FHQWUR��VXSHUPHUFDGRV�H�DJrQFLDV�EDQFiULDV��

Movimento parecido sucede aos bairros da Parangaba, da Messejana, de Jacarecanga,

DR�%DLUUR�GH�)iWLPD�H�jV�LPHGLDo}HV�GD�]RQD�LQGXVWULDO�GD�DY��)UDQFLVFR�6i��+RXYH��

SRU�¿P��XPD�GHVFHQWUDOL]DomR�WDPEpP�GDV�RSo}HV�GH�OD]HU��FRP�D�FRQVWUXomR�GRV�

SRORV�GD�%DUUD�GR�&HDUi��GD�/DJRD�GR�2SDLD��GR�$ODJDGLoR�H�GD�3UDLD�GR�)XWXUR��FRP�

a urbanização da Beira Mar e a criação do Parque Adahil Barreto (seção do Parque

(FROyJLFR�GR�&RFy���GXUDQWH�D�JHVWmR�GR�SUHIHLWR�/~FLR�$OFkQWDUD������������D�TXHP�

IRL�DWULEXtGD�D�PDUFD�GLVWLQWLYD�GD�SURWHomR�DR�PHLR�DPELHQWH�XUEDQR��&267$��������

S������628=$��������S�������

A compreensão da formação urbana de Fortaleza não pode prescindir da

FRQVLGHUDomR�GDV�PLJUDo}HV�FDPSR�FLGDGH��1D�GpFDGD�GH�������HVVHV�PRYLPHQWRV�VH�

LQWHQVL¿FDP�H��VREUHSRVWRV�j�VLWXDomR�HFRQ{PLFD�GR�SDtV��j�EDL[D�RIHUWD�GH�HPSUHJRV�

H�DRV�HOHYDGRV�SUHoRV�GRV�LPyYHLV�H�GRV�DOXJXHLV��DJUDYD�VH�R�Gp¿FLW�KDELWDFLRQDO��

Segundo Souza, a baixa renda familiar tem sido um elemento persistente ao longo

GRV�DQRV��(P�������64,03% das famílias contavam com a renda mensal inferior a

dois salários mínimos e 82,92%��FRP�PHQRV�GH�FLQFR�VDOiULRV��HP������FHUFD�GH�70%

dos chefes de família recebiam até três salários mínimos e 35,33% recebiam menos

GH�XP��D� UHQGD�PpGLD�GRV� FKHIHV�GH� IDPtOLD� IRUWDOH]HQVHV�QHVVH�DQR�HUD�GH������

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123

salários por mês. Nessas condições, simplesmente não se pode conceber a gestão

do solo urbano, a distribuição e o acúmulo de serviços e infraestrutura por simples

PHFDQLVPRV�GH�PHUFDGR��(P�������)RUWDOH]D�RFXSDYD�D�TXDUWD�SRVLomR�QR�UDQNLQJ�

QDFLRQDO�GH�Gp¿FLW�KDELWDFLRQDO�DEVROXWR�H� WHUFHLUR�QR� UHODWLYR�� FRP�D�PDUFD�GH�85

mil unidades��VHQGR���������R�WRWDO�SDUD�D�UHJLmR�PHWURSROLWDQD��3RU�VHX�WXUQR��XPD�

UHSRUWDJHP�GH������GR�'LiULR�GR�1RUGHVWH�UHJLVWUDYD�HP�PpGLD�D�FKHJDGD�GH�����

IDPtOLDV�PLJUDQWHV�SRU�GLD�j�FDSLWDO��$�HVVD�DOWXUD��R�Gp¿FLW�KDELWDFLRQDO�HUD�GH�150 mil

moradias��UHSUHVHQWDQGR�����GD�SRSXODomR�HP�VLWXDomR�SUHFiULD��&267$��������S��

����

� $V� FRQGLo}HV� SUHFiULDV�� LQVX¿FLHQWHV� H� LQVDWLVIDWyULDV� GDV� KDELWDo}HV�

subsidiadas pelo poder público tanto agravam o processo mencionado de ocupação

de vazios urbanos com alguma infraestrutura como desencadeiam a multiplicação dos

assentamentos informais em áreas de risco. A rigor, o padrão de ocupação histórico

das camadas desassistidas ao longo das vias férreas já constitui uma tipologia de

risco, assim como as moradias de palha de comunidades pesqueiras estabelecidas

QD� IDL[D� GH� SUDLD�� 2� TXH� WHP� LQtFLR� QHVVH�PRPHQWR� HP� )RUWDOH]D�� GL]� UHVSHLWR� j�

construção de um cenário de risco tipicamente moderno e essencialmente urbano.

As ocupações de encostas de morros, de campos de dunas, de várzeas e margens

GH� ULRV� H� ODJRDV� FRQ¿JXUDP� XPD� DPHDoD� GH� VHJXQGD� RUGHP�� SRUTXH� FRPELQDP�

FRQGLo}HV� VRFLRHFRQ{PLFDV� GH� YXOQHUDELOLGDGH�� SDGU}HV� GH� FRQVWUXomR� SUHFiULRV��

ausência e impossibilidade legal de atendimento infraestrutural e de serviços, além

GH�XPD�VREUHFDUJD�FXPXODWLYD�GH�LQWHUYHQo}HV�DPELHQWDLV��ItVLFDV�H�TXDOLWDWLYDV��QR�

entorno dessas áreas, que as fragilizam sobremaneira. Esse quadro denota uma fase

madura do processo de urbanização brasileiro marcado pela saturação virtual das

áreas de ocupação preferencial e pela rejeição por parte da classe trabalhadora e

HVSROLDGD�j�¿[DomR�HP�JUDQGHV�GLVWkQFLDV�

� 'D�PHWDGH�GD�GpFDGD�GH������HP�GLDQWH��D�VXFHVVmR�GH�JRYHUQRV�HVWDGXDLV�

D� SDUWLU� GD� SULPHLUD� JHVWmR� GH� 7DVVR� -HUHLVVDWL� ����������� LQLFLD� D� LPSOHPHQWDomR�

das políticas de desenvolvimento do turismo no Ceará. Esses governos mobilizam

grandes investimentos públicos e privados para o Estado, destinado-os à viabilização

de projetos turísticos e culturais. Em termos de infraestrutura, são responsáveis pela

execução de rodovias, melhorando o acesso da capital às praias; de novo anel viário;

GR�3RUWR�GR�3HFpP��GR�$HURSRUWR��GR�0HWURIRU��H�GR�SURMHWR�6$1($5��7UDWD�VH�GH�

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124

uma sucessão política diretamente ligada a grupos de empresários do comércio e da

LQG~VWULD��3RU�PHLR�GH�LQFHQWLYRV�¿VFDLV��GHVHQYROYH�VH�D�LQG~VWULD�Wr[WLO�H�VmR�DWUDtGDV�

para a região indústrias de calçados e outros ramos. Após a fase de implementação

de melhorias, grupos nacionais e internacionais passam a investir no setor hoteleiro e

de lazer.

� 6RX]D� ������� S�� ����� D¿UPD� TXH� HVVDV� WUDQVIRUPDo}HV� IDYRUHFHP� D�

YHUWLFDOL]DomR�GR�VHWRU�OHVWH��7DVVR�JRYHUQRX�R�(VWDGR�GH������D�������LQWHUURPSLGR�

DSHQDV� SHOD� JHVWmR� GH� &LUR� *RPHV� ����������� 1mR� SRU� PHUR� DFDVR�� 7DVVR� p�

proprietário do Grupo Jereissati, responsável pela construção dos shoppings Center

Um, Iguatemi e de vários outros empreendimentos comerciais por todo o país. Sob

VXD�LQÀXrQFLD��D�FDSLWDO�PRGHUQL]D�VH�VHOHWLYDPHQWH��GDQGR�D�LPSUHVVmR�GH�SURJUHVVR�

ascendente à parte da sociedade. As elites e alguns setores da classe média lançam

mão da experiência capsular proporcionada pelos circuitos de lazer privado, entre os

equipamentos monitorados, como os shoppings, as moradias protegidas e o apelo à

circulação por carros.

É preciso poderarmos que, de um ponto de vista ambiental, o programa

6$1()25�6$1($5�� ¿QDQFLDGR� SHOR� %DQFR� 0XQGLDO� D� SDUWLU� GH� ����� PHOKRURX�

HP�PXLWR� DV� FRQGLo}HV� GH� VDOXEULGDGH� XUEDQDV�� (P� ������ �������GRV� GRPLFtOLRV�

UHFHELDP� iJXD� HQFDQDGD� H� DSHQDV� ������ HVWDYDP� OLJDGRV� j� UHGH� GH� FROHWD� GH�

esgoto. A construção do interceptor oceânico e emissário submarino e ampliação do

VLVWHPD�GH�DWHQGLPHQWR�GDWDP�GR�JRYHUQR�$GDXWR�%H]HUUD������������PDV�DWp�HQWmR�

grande parte da população valia-se de fossas sépticas e, nos bairros populares e

favelas, o esgoto corria a céu aberto, como ainda hoje é possível se ver, já que não

houve universalização desses serviços. De todo modo, a poluição do solo, dos corpos

d’água, incluindo as praias, e do lençol freático reduziu-se com a execução desses

SURMHWRV��'H������D�������R�DWHQGLPHQWR�GH�iJXD�SDVVRX�GH��������SDUD�����H��GH�

HVJRWDPHQWR�VDQLWiULR��GH�������SDUD������0DLV�UHFHQWHPHQWH�R�SURMHWR�6$1($5�

FRQTXLVWRX�D�PDUFD�GH�����GH� OLJDo}HV�j�UHGH�GH�HVJRWR��6mR��SRUWDQWR��EDVWDQWH�

comuns ainda as ligações clandestinas à rede de drenagem pluvial, acarretando

sérios transtornos quando as chuvas sobrecarregam a capacidade de escoamento

GRV�FDQDLV��0HVPR�TXH�DV�iUHDV�QREUHV�WHQKDP�VLGR�SUHIHUHQFLDOPHQWH�EHQH¿FLDGDV�

por essas reformas, destaca-se a inclusão do Lagamar, do Parque Genibaú e da Água

)ULD�HQWUH�RXWURV�EDLUURV�SRSXODUHV�EHQH¿FLDGRV�

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125

� $�FRQTXLVWD�GD�XUEDQL]DomR�GH�IDYHODV�QHVVHV�~OWLPRV�DQRV��EHQH¿FLDGDV�SHOD�

implantação de calçamento e de equipamentos sociais, além de infraestrutura de água

e esgoto, sem que se alterem as condições de manutenção dos seus habitantes, tem

como resultado geral imediato a negociação e venda dos imóveis pelos moradores e

o abandono do bairro para residirem em áreas distantes. Dada a situação de renda

mínima ou de ausência de renda, os habitantes desses bairros reformados veem

na venda a possibilidade de capitalização para início de alguma atividade que lhes

SURSRUFLRQH�UHWRUQR��2XWUD�VLWXDomR�FRPXP�p�D�FRQVWUXomR�GH�XP�VHJXQGR�SDYLPHQWR�

ou de um “puxadinho” para aluguel e incremento do orçamento familiar. Uma crítica

UHFRUUHQWH�DRV�VLVWHPDV�GH�¿QDQFLDPHQWR�GH�PRUDGLDV�SRSXODUHV��TXH�DTXL�WDPEpP�

se aplica, diz respeito aos critérios de atendimento dos pré-requisitos, que muitas

vezes deixam de atender a grupos verdadeiramente pauperizados para contemplar

unicamente estratos da baixa classe média.

De uma forma ou de outra, o cenário que se desenha para a virada do século

é o de uma cidade em crescimento sob panos mornos e que responde aos problemas

urbanos da forma como pode. Acontece que uma hora as rotas de fuga privilegiadas

se esgotam ou saturam e a esteira do empobrecimento alcança mesmo aqueles que

haviam se cercado do receituário completo das garantias às incertezas da vida.

A partir dos anos 2000 e princípio dos anos 2010, Fortaleza teria de lidar com

o turvamento do caldo, retrato local da história do Brasil, de uma longa trajetória de

QHJDomR�GH�GLUHLWRV�H� LPSUHYLGrQFLDV�GH�JHVWmR��2�JRYHUQR�PXQLFLSDO��VRE�D�pJLGH�

GD�SUHIHLWD�/XL]LDQQH�/LQV� ������������H�GRV�SURJUDPDV�VRFLDLV�GH�GLVWULEXLomR�GH�

renda do governo federal, abre uma série de comportas, com a reestruturação de

secretarias, referentes ao tratamento de direitos e dimensões da vida social urbana

esquecidas. Nesse sentido, vale um destaque para as ações preventivas da Secretaria

de Defesa Civil, de limpeza de rios, canais e lagoas, contornando parte dos recorrentes

problemas associados a inundações em áreas de risco no período de chuvas.

De modo geral, ainda que o programa de habitações populares Minha Casa,

Minha Vida�SDUHoD�WHU� LQFRUULGR�QRV�PHVPRV�HUURV�GH�SURJUDPDV�GH�¿QDQFLDPHQWR�

anteriores, excluindo do processo os estratos mais vulneráveis e deixando a cargo

da iniciativa privada determinações estratégicas para a produção equilibrada das

transformações urbanas, os programas de renda básica de cidadania conduziram à

inclusão pelo consumo uma leva considerável de camadas marginalizadas. Qualquer

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126

leitura dos efeitos dessas políticas parece ainda prematura, principalmente quando

confrontada com as consequências da estratégia brasileira de enfrentamento da crise

GR�PHUFDGR�¿QDQFHLUR�GH�������$�UHGXomR�GR�,PSRVWR�VREUH�3URGXWRV�,QGXVWULDOL]DGRV�

�,3,��VREUH�D�YHQGD�GH�FDUURV�SRSXODUHV��SHUPLWLX�R�DFHVVR�GH�XPD�SDUWH�VLJQL¿FDWLYD�

da sociedade brasileira a este bem de inegável valor simbólico e instrumento de

distinção social. As vias e malhas urbanas das principais capitais não pareciam estar

preparadas para suportar a circulação do volume gerado de carros e muitas dessas

FLGDGHV�WHP�VRIULGR�HVWUDQJXODPHQWR�GH�WUiIHJR��'H�XP�SRQWR�GH�YLVWD�HFRQ{PLFR��R�

aquecimento da cadeia produtiva de veículos automotores parece um efeito esperado

H�GHVHMiYHO��7DOYH]�QmR�VH�SRVVD�GL]HU�R�PHVPR�GDV�REUDV�GH�LQIUDHVWUXWXUD�SURSRVWDV�

para desafogar os engarrafamentos, que, em várias capitais, a exemplo de Fortaleza,

somam-se às demandas da FIFA de adequação das malhas urbanas às exigências de

realização da Copa de 2014, tendo transformado esta capital, nos últimos anos, em

um grande canteiro de obras.

Finalizamos a narrativa desta saga urbana à luz dos avanços galgados em

termos de política urbana a partir da promulgação do Estatuto das Cidades em 2001.

2�~OWLPR�SODQR�GLUHWRU�GH�)RUWDOH]D��FXMD�HODERUDomR�VH�GHX�HP�������FRRUGHQDGD�

pelo Instituto Pólis de São Paulo, representa um marco para o planejamento urbano

do município. Pela primeira vez, a dimensão socioambiental de um plano é colocada

como fundamento e sentido das políticas de desenvolvimento urbano. Para subsidiar

o Plano Diretor Participativo de Fortaleza��3'3)RU��IRL�HQFRPHQGDGR�R�'LDJQyVWLFR�

Geoambiental do Município de Fortaleza, segundo o que foram propostos o

macrozoneamento ambiental e urbano do plano, conforme os indicativos de fragilidade

e potencialidades dos compartimentos geossistêmicos. Merecem destaque, além

GDV�]RQDV�GH�SUHVHUYDomR��UHFXSHUDomR�H� LQWHUHVVH�DPELHQWDO� �=3$��=5$��=,$���RV�

HVIRUoRV�GH�GHOLPLWDomR�GH�]RQDV�HVSHFLDLV�GH�SUHVHUYDomR�GR�SDWULP{QLR�SDLVDJtVWLFR��

KLVWyULFR�H�FXOWXUDO��=(3+��GR�&HQWUR�H�GD�3DUDQJDED��DV�]RQDV�DPELHQWDLV��=($���H�

GH�LQWHUHVVH�VRFLDO��=(,6��

Ressaltamos também o tratamento da drenagem urbana na forma de manejo

de águas pluviais na seção dedicada à Política de Saneamento Ambiental (Art.

����� D� SURSRVLomR� GH� XP� VLVWHPD� GH� iUHDV� YHUGHV� �$UW�� ����� H� R� XVR� GH� WD[DV� GH�

permeabilidade do solo como parâmetro urbanístico regulador da ocupação (Arts.

���� H� ������ 7RGRV� HVVHV� GLVSRVLWLYRV� UHYHODP� XPD� PXGDQoD� SDUDGLJPiWLFD� GH�

Page 128: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

127

postura diante da sociedade urbana historicamente vulnerabilizada por processos de

exclusão, exploração e espoliação e do meio ambiente urbano, contra o que o sentido

GH�XUEDQL]DomR�VH�D¿UPRX��FRQVROLGDQGR�VH��YLD�GH�UHJUD��SHOD�QHJDomR�H�RSRVLomR�

à complexidade dos sistemas vivos. Isto não garante que, diferente dos esforços

anteriores, as diretrizes do PDPFor sejam amplamente seguidas, mas certamente, a

exemplo de seus predecessores, suas proposições balizarão disputas entre futuros

possíveis para Fortaleza, dessa vez, algo mais dignos, justos e democráticos.

6. Avalanche: Sinais de ruptura

� (P�DUWLJR�LQWLWXODGR�³2�QRYR�PRGHOR�GH�JHVWmR�XUEDQD�HVWUDWpJLFD�HP�)RUWDOH]D��

DXPHQWR� GDV� GHVLJXDOGDGHV� VRFLRDPELHQWDLV´�� )UHLWDV� ������� WHQWD� GHVFRQVWUXLU�

aquilo que chama de mito da falta de planejamento em Fortaleza e estrutura uma

LQWHUSUHWDomR� GDV� SUiWLFDV� GH� SURGXomR� GR� HVSDoR� XUEDQR� D� SDUWLU� GRV� DQRV� �����

como um processo planejado para o benefício dos setores produtivos e das elites

urbanas. A autora explica que em substituição ao planejamento modernista tradicional,

R�PRGHOR� GH� JHVWmR� XUEDQD� HVWUDWpJLFD�� GH� IRUWH� LQÀXrQFLD� QHROLEHUDO�� UHSUHVHQWRX�

uma alternativa comum às mais diversas correntes políticas em um momento histórico

PDUFDGR� SHOD� FULVH� ¿VFDO�� FRP� FRUWH� GDV� WUDQVIHUrQFLDV� GH� UHFXUVRV� IHGHUDLV� DRV�

JRYHUQRV� PXQLFLSDLV�� ,VVR�� QR� HQWDQWR�� QmR� VLJQL¿FD� TXH� D� LQVHUomR� GDV� FLGDGHV�

brasileiras no contexto de competitividade global por investimentos e sua sujeição

às leis de mercado determinem as decisões dos atores locais no que se refere à

alocação espacial dos investimentos.

� )UHLWDV��������FKDPD�D�DWHQomR�SDUD�R�PHFDQLVPR�GH�IXQFLRQDPHQWR�GR�PRGHOR�

de gestão urbana estratégica. Aqui a maior preocupação reside na manutenção da

boa imagem externa da cidade e na busca de diferenciais que aumentem o nível de

FRPSHWLWLYLGDGH�XUEDQD�HP�UHODomR�D�RXWUDV�FLGDGHV�� $�¿P�GH�JDUDQWLU�D�DWUDWLYLGDGH�

de Fortaleza a turistas e a novas indústrias, confere-se um lugar de primazia aos

capitais produtivo e comercial diante dos demais pesos envolvidos no processo

decisório. Dessa forma, estabelece-se a precedência das condições de reprodução

desses capitais às condições de reprodução social, o que conduz a um processo de

desinvestimento nas necessidades dos moradores urbanos.

De todo modo, a modelo de urbanismo neoliberal ensaiado em Fortaleza

Page 129: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

128

destoa da experiência vivenciada por outras administrações municipais na América

Latina. Durante esse período o investimento em serviços urbanos não diminuíram e,

inclusive, tem caminhado para a universalização, em geral, sem grandes diferenças

entres bairros. São os casos do acesso à água encanada, da coleta de lixo e das

ligações à rede de energia elétrica (Figuras 16, 17 e 18���'RV�FLQFR�FRPSRQHQWHV�GR�

tQGLFH�VLQWpWLFR�GH�FRQGLo}HV�GRPLFLOLDUHV��,&'���DIHULGR�SHOR�,QVWLWXWR�GH�3HVTXLVD�H�

(VWUDWpJLD�(FRQ{PLFD�GR�&HDUi��,3(&(��FRP�EDVH�QRV�GDGRV�GR�&HQVR�GH������GR�

IBGE, apenas as condições de esgotamento sanitário dos domicílios apresentaram

VLJQL¿FDWLYD�GHVLJXDOGDGH�QD�RIHUWD�GR�VHUYLoR�HQWUH�RV�EDLUURV�GD�FDSLWDO��(QTXDQWR�

bairros como Cidade 2000, Conjunto Ceará I, Bom Futuro, Meireles e Parreão reúnem

DFLPD� GH� ����GH� OLJDo}HV� GRPLFLOLDUHV�� RXWURV� FRPR�3DUTXH�6DQWD�5RVD�� 3DUTXH�

0DQLEXUD�� &XULy�� 3DUTXH� 3UHVLGHQWH� 9DUJDV� H� 3HGUDV�� FRQWpP�PHQRV� GH� ��� GRV�

GRPLFtOLRV�OLJDGRV�j�UHGH�JHUDO�GH�HVJRWR��9DOH�GL]HU�TXH�RV�YDORUHV�SHUFHQWXDLV�QmR�

fazem distinção entre ligações em separado ao sistema de esgotamento e as ligações

à rede de drenagem pluvial.

Quando nos propomos a discutir evidências de respeito e desrespeito ao

cidadão impressas nas condições de vida ou de existência diária que lhe são impostas,

não podemos deixar de lembrar que água, esgoto, energia elétrica, coleta de lixo e

banheiros particulares são aspectos mínimos de habitabilidade urbana. Por mais que

as metas de evolução dos indicadores tenham sido alcançadas ao longo dos anos,

isso não quer dizer que sejam satisfatórias, ou melhor, dignas. Isso é base para tudo

R�PDLV�VREUH�GHVHQYROYLPHQWR�KXPDQR��3RUWDQWR��FRQVLGHUDPRV�DV�GL¿FXOGDGHV�GH�

XQLYHUVDOL]DomR�GR�VHUYLoR�GH�HVJRWDPHQWR�VDQLWiULR�FRPR�RV�¿QV�GH�XPD�HWDSD�D�

ser transposta tanto do ponto de vista do necessário acompanhamento subsequente

da qualidade de todos os demais serviços prestados (o que passa a gozar de mais

DWHQomR�DSyV�D�XQLYHUVDOL]DomR��TXDQWR�GRV�LPSDFWRV�DPELHQWDLV�TXH�DV�IRUPDV�GH�

implementação infraestrutural acarretam. A esta outra qualidade de urbanização nos

UHIHULPRV� FRPR�GH� VHJXQGD�RUGHP�RX� UHÀH[LYD��$�PXGDQoD�QHVVH�SDUDGLJPD� WHP�

HVSHFLDO�VLJQL¿FDGR�SDUD�LQGLYtGXRV�PRUDGRUHV�GH�iUHDV�GH�ULVFR�GH�LQXQGDomR�H�GH�

deslizamento.

Como apresentado no início deste artigo, o quadro preocupante da violência

urbana em Fortaleza parece neutralizar o debate amplo sobre a qualidade de vida

QHVWD�FDSLWDO��$VVLP��WHQWDPRV�HVSDFLDOL]DU�D�GLVWULEXLomR�GH�FRQÀLWRV�GH�WHUULWRULDOLGDGH�

Page 130: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

129

�HP� ����� H� ������ H� DV� WD[DV� PDLV� H[SUHVVLYDV� GH� HYROXomR� GH� KRPLFtGLRV� �GH�

�����D�������QRWLFLDGRV�SHOR� MRUQDO�2�3RYR� �&$6752��������������FRP�EDVH�QRV�

UHJLVWURV�GD�6HFUHWDULD�(VWDGXDO�GD�6HJXUDQoD�3~EOLFD�H�'HIHVD�6RFLDO��663'6��H�

da Delegacia Geral de Polícia Civil (Figura 19���&RPR�RV�GDGRV�GLVSRQtYHLV�QmR�VH�

UHIHUHP�DRV�PHVPRV�DQRV�H�Ki�SRXFD�SHUPDQrQFLD�GH�FRQÀLWRV�QRV�PHVPRV�EDLUURV�

�3LUDPEX��%DUUD�GR�&HDUi���%RP�-DUGLP��$HUROkQGLD�H�0HVVHMDQD��RX�VREUHSRVLomR�

GRV�DWULEXWRV�FRQÀLWRV�KRPLFtGLRV��3UDLD�GH�,UDFHPD�H�0RQWH�&DVWHOR���SRGHPRV�VXSRU�

que a estratégia básica de enfrentamento ostensivo da criminalidade resulta em um

FRQVLGHUiYHO�GLQDPLVPR�QD�FRQ¿JXUDomR�DQR�D�DQR�GD�JHRJUD¿D�GHVVHV�HYHQWRV�

Ao analisar a disposição espacial dos dados sobre violência urbana, buscávamos

encontrar um padrão passível de associação com outros indicadores socioambientais.

Porém, dentre os dados que dispomos, o mapa da distribuição da condição de extrema

pobreza (Figura 20��±�FRP� OLQKD�GH�FRUWH�SDUD� UHQGD� IDPLOLDU�PHQVDO� LQIHULRU�D�5��

������SRU�SHVVRD�±�VXJHUH�XPD�FRUUHODomR�HVSDFLDO�PDLV�FRPSDWtYHO�FRP�R�PDSD�GRV�

FRQÀLWRV�H�KRPLFtGLRV�DSUHVHQWDGR��(VWH�SDGUmR�VH�FDUDFWHUL]D�SRU�XPD�GLVWULEXLomR�HP�

quatro eixos de dispersão a partir do centro e concentração aos limites do município.

$�RHVWH��QD�6(5�,��UHSUHVHQWDGR�SHORV�EDLUURV�3LUDPEX��%DUUD�GR�&HDUi�H�9LOD�9HOKD��

D�VXGRHVWH��QD�6(5�9��FRP�RV�EDLUURV�*HQLED~��*UDQMD�/LVERD��6LTXHLUD��%RP�-DUGLP��

&DQLQGH]LQKR� H� 3ODQDOWR�$\UWRQ� 6HQD�� D� VXGHVWH�� QD� 6(5� 9,�� FRP� PDQFKD� PDLV�

interiorana ou não concentrada aos limites municipais, representada pelos bairros

Barroso, Jangurussu e Conjunto Palmeiras; e ao extremo litoral leste, na SER II, com

RV�EDLUURV�3UDLD�GR�)XWXUR��9LFHQWH�3LQ]yQ�H�&DLV�GR�3RUWR�

Seria razoável que nos perguntássemos que imagem veríamos e o que ela

QRV�GLULD�VH�GLVSXVpVVHPRV�GH�WRGRV�RV�UHJLVWURV�GH�KRPLFtGLRV��FRQÀLWRV��URXERV�D�

SHVVRD�H�D�UHVLGrQFLDV�QRV�~OWLPRV����DQRV��'H�������TXDQGR�D�WD[D�GH�PRUWDOLGDGH�

HVSHFt¿FD�HP�)RUWDOH]D�HUD�GH�������DWp�������������KRXYH�XP�VDOWR�GH��������QR�

indicador. Se considerarmos os dados do Conselho Cidadão pela Seguridade Social

3~EOLFD� H� -XVWLoD� 3HQDO� R� VDOWR� VHULD� GH� ������� DWp� ����� ���������$� LPDJHP� TXH�

projeto apenas para as mortes violentas dá sentido ao adjetivo epidêmico, com o qual

se trata taxas acima de 10 homicídios por 100 mil habitantes. Será que faz algum

sentido tentarmos ensaiar uma compreensão da manifestação da criminalidade e da

YLROrQFLD�QRV�EDLUURV�D�HVVH�JUDX�GH�GLVWDQFLDPHQWR�GD�PDUJHP�GH�DOHUWD"

Quero dizer que Fortaleza, de certo, transformou-se em muitos aspectos ao

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130

ORQJR� GDV� GXDV� ~OWLPDV� GpFDGDV�� H� WDPEpP� SRGH�VH� GL]HU� TXH� VH� FRPSOH[L¿FRX�

quanto aos tipos de ocupação e segregação socioespacial, mas o padrão de

distribuição espacial da renda pessoal segundo os dados do censo de 2010 (Figura

20��VXJHUH�D�SHUVLVWrQFLD�GH�XPD�UtJLGD�HVWUXWXUD�FHQWUR�SHULIHULD��FRP�XP�SHTXHQR�

H[WUDYDVDPHQWR�GD�FRQFHQWUDomR�HP�GLUHomR�DR�VXGHVWH��2�PHVPR�DUUDQMR�SRGH�VHU�

SHUFHELGR�QD�PHQVXUDomR�GR�tQGLFH�GH�GHVHQYROYLPHQWR�KXPDQR��,'+��QRV�EDLUURV�

(Figura 19���LQFOXLQGR��DOpP�GD�UHQGD��UHQGD�PpGLD�PHQVDO�GDV�SHVVRDV�GH����DQRV�RX�

PDLV���DV�GLPHQV}HV�GH�HGXFDomR��SRUFHQWDJHP�GD�SRSXODomR�FRP����DQRV�RX�PDLV�

DOIDEHWL]DGD��H�ORQJHYLGDGH��SRUFHQWDJHP�GD�SRSXODomR�PDLRU�GH����DQRV�UHVLGHQWH�

QR�EDLUUR��

A que tudo indica, o elevado índice de gini (0,51 segundo o IBGE e 0,65 em

������ VHJXQGR� R� UHODWyULR� GD� 218� (VWDGR� GDV� &LGDGHV� GR� 0XQGR��� LQGLFDGRU� GD�

desigualdade na distribuição de renda, mantém-se ainda como principal elemento

explicador das tensões socioambientais que tomam palco em Fortaleza, pelo menos

no nível dos bairros. Diante da complexidade dos sistemas ambientais urbanos, é

sempre muito difícil perceber a totalidade do quadro que se coloca e de suas nuances,

mas, se a abstração da quebra de resiliência puder ser aplicada a sistemas sociais,

diria que a capital cearense, tal como o próprio Estado, é já há algum tempo todo

estilhaços. Diria que as tensões que se manifestam hoje são na verdade choques

de estranhamento entre esses fragmentos que de longa data aguardam pela nova

conformação de alguma sociabilidade.

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131

Figura 16. Abastecimento de água e esgotamento sanitário nos bairros de Fortaleza

)RQWH��,3(&(�������

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132

Figura 17. Domicílios com banheiros e energia elétrica nos bairros de Fortaleza

)RQWH��,3(&(�������

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133

Figura 18. Coleta de lixo e índice sintético de condições domiciliares nos bairros de

Fortaleza

)RQWH��,3(&(�������

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134

Figura 19.�,'+��FRQÀLWRV�GH�WHUULWRULDOLGDGH�H�WD[DV�GH�KRPLFtGLR�PDLV�H[SUHVVLYDV�QRV�EDLUURV�GH�)RUWDOH]D��)RQWH��,3(&(���������&DVWUR�������������

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135

Figura 20. Rendimento pessoal e pobreza extrema nos bairros de Fortaleza

)RQWH��,3(&(�������

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136

���&RQVLGHUDo}HV�¿QDLV

Quando me dispus a percorrer a história da cidade de Fortaleza, tinha ganas de

prospecção de um elemento explicativo bem peculiar. Algo capaz de dar substância

à intuição que me vinha sobre a proximidade à qual nos colocávamos de uma ruptura

com os elos sociais e ambientais que estão no substrato e no recheio dessa estrutura

XUEDQD��GHVVH�VLVWHPD�VRFLRDPELHQWDO�SDUWLFXODU��7DOYH]�SRU�LQWLPLGDomR�DQWH�DV�IHLo}HV�

caóticas da complexidade, é possível que tenha recorrido a um atalho: o fascínio da

violência como recurso apelativo. Esta não me é uma seara aprazível de debate, como

D�FRQVWDWDomR�GDV�PDUFDV�ÀDJUDQWHV�H�SHUVLVWHQWHV�GH�GHVXPDQLGDGHV�QD�FRQVWLWXLomR�

KLVWyULFD� GHVVH� WHFLGR� VRFLDO� WDPEpP� QmR� PH� IRUDP� GH� IiFLO� GLJHVWmR�� +DYLD�� QR�

entanto, uma cascata de perguntas órfã de respostas. Não faz muito, eu mesmo me

recordo, Fortaleza era acusada e dela se fazia pouco por esboçar ares provincianos.

$�SULPHLUD�GHVVD�¿OHLUD�GH�TXHVW}HV�TXH�VH�PH�DSUHVHQWDUDP�IRL��HQWmR��FRPR��HP�

tão curto intervalo, passamos de vila provinciana à capital recordista em pódios de

desigualdades, violências e desprezo a toda sorte de valores culturais, naturais e

SDLVDJtVWLFRV"�&RPR�GLULDP�-DQH�-DFREV�RX�+HQUL�$FVHOUDG�VREUH�ORQJHYLGDGH��PRUWH�

e vida de grandes cidades, tinha para mim que Fortaleza estava morrendo.

De fato, essas transformações se deram em muito curto período, mas não

porque seus processos causadores tenham se manifestado da noite pro dia e, sim,

porque aos possíveis indicadores de agravos futuros não foi dada a devida atenção

ou, se foi dada, não havia cultura administrativa ou sensibilidade social capaz de situá-

la com o caráter prioritário que demandavam. Assim, com inércia e naturalidade foi-

VH�WDQJHQGR�R�JDGR�KXPDQR�ÀDJHODGR�GR�FDPSR�GHVGH�RV�WHPSRV�GR�$UUDLDO�0RXUD�

Brasil e dos primeiros campos de concentração, chamados “currais do governo”, que

se prestavam j�SURWHomR�GD�VRFLHGDGH�XUEDQD�FRQWUD�SRVVtYHLV�FREUDQoDV��2�)RUWH��

em muitos sentidos, pela fragilidade que lhe revelamos congênita, fortaleceu-se e

se expandiu à negação e dreno das capacidades concorrentes dos aglomerados do

HQWRUQR��7DOYH]�QmR�VHMDP�DVVLP�WmR�GtVSDUHV�RV�WHPRUHV�GDTXHOHV�FDSLWmHV�PRUHV�

H� FRORQRV� UHIXJLDGRV� jV� SDUHGHV� IRUWL¿FDGDV� FRQWUD� DV� LQYHVWLGDV� GRV� tQGLRV� GRV�

medos modernos disseminados nas cabeças das crianças ambientadas aos circuitos

FDSVXODUHV�H�EOLQGDGRV�GRV�HQFODYHV�IRUWL¿FDGRV�DWXDLV�

Já não com a mesma inércia, mas certamente com muita naturalidade, a

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137

produção e a reprodução das formas de uso e ocupação do solo urbano a partir do

WUDQVERUGR� GR� FHQWUR� DR� ¿QDO� GR� VpFXOR� ���� GHUDP�VH� SHOD� VLPSOHV� VXSUHVVmR� GD�

FREHUWXUD�YHJHWDO�GD�PDWD�GH�WDEXOHLURV�H�SHOD�HGL¿FDomR�H� LPSHUPHDELOL]DomR�GRV�

ORWHV�H�SDYLPHQWDomR�GDV� UXDV�� LPSRQGR�D�SULPD]LD�GD� IXQomR�HGL¿FDQWH� VREUH�DV�

funções ambientais do solo. Destacamos dois importantes episódios para a história

ambiental urbana de Fortaleza, que retratam as tensões entre limitações impostas

SHOR� VtWLR� �UHODWLYDPHQWH� SRXTXtVVLPDV�� GHYHPRV� SRQWXDU�� H� DV� QHFHVVLGDGHV� GH�

H[SDQVmR�H�SURGXomR�GH�VROR�XUEDQR��2�SULPHLUR�HSLVyGLR�HQYROYH�D�EDUUHLUD� ItVLFD�

ao crescimento inicial a leste da cidade, representada pelo traçado meandrico do

riacho Pajeú e o segundo episódio refere-se à transposição da linha férrea Mucuripe-

Parangaba, mais a leste e do rio Cocó, a sudeste do centro.

� 1RV� ~OWLPRV� DQRV�� LGHQWL¿FD�VH� D� FRQIRUPDomR� GH� XP� WHUFHLUR� HSLVyGLR�� (P�

������LQLFLD�VH�D�FRQVWUXomR�GH�XPD�SRQWH�VREUH�D�IR]�GR�ULR�&RFy��TXH�OLJDULD�D�3UDLD�

do Futuro à Sabiaguaba, facilitando o acesso ao litoral leste do Estado e a valorização,

multiplicação e expansão de loteamentos e infraestrutura urbana sobre a foz do sistema

ÀXYLRPDULQKR�H�VREUH�R�PDQJXH]DO�FLUFXQGDQWH��2�ULDFKR�3DMH~��DLQGD�TXH�EHQH¿FLDGR�

por um projeto de urbanização, tendo um trecho de seu curso convertido em parque

HP������� QmR� SDVVD� KRMH� GH� XP� WtPLGR� YDOH� HQJHVVDGR�� UHWL¿FDGR� H� HQFDL[RWDGR��

VXEPHUVR�jV�YLDV�H�j� VRPEUD�GRV�HGLItFLRV��0HVPR�¿P� WLYHUDP�XPD� LQ¿QLGDGH�GH�

lagoas intermitentes aterradas e trechos de canais suprimidos ou simplesmente

aniquilados em suas funções ambientais em decorrência da implementação dos

preceitos sanitaristas de captação e condução imediata dos volumes precipitados

jV�YHUWHQWHV�H�FDQDLV�GH�GUHQDJHP�DUWL¿FLDO��6H�ERD�SDUWH�GHVVHV�FRPSDUWLPHQWRV�

vivos sofreram impactos com as frentes de ocupações espontâneas nas periferias, os

golpes mais fortes à funcionalidade sistêmica certamente são aqueles desferidos pela

implementação e consolidação da infraestrutura higienista.

� (VWH�� FRP� HIHLWR�� p� XP� SRQWR� D� VH� LQYHVWLJDU� H� DPDGXUHFHU�� 2� TXDQWR� D�

infraestrutura tradicional amplamente difundida nas chamadas áreas de ocupação

consolidada, aliada ao padrão de paisagismo estéril contribuem para a construção

dos dramas e da magnitude das ameaças vivenciadas em áreas de risco. A cidade de

Fortaleza não é só desequilibrada em termos de renda e oportunidades, é sobretudo

desigual em distribuição espacial de infraestruturas, que como estamos dizendo,

não soam mais adequadas a um paradigma de sustentabilidade ambiental. Não

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138

quero com isso reforçar um estímulo à modernização ambiental de infraestruturas,

que resultariam em mais acúmulo às áreas bem servidas. Quero apenas dizer que

o sistema urbano responde como um todo às diversas intervenções mutiladoras.

Que a ausência de pisos e pavimentos permeáveis, arborização adequada pública

e privada, manchas verdes e matas ciliares às margens de corpos e cursos d’água

representam problemas para todos os bairros da cidade. E que uma transição como a

ensaiada pela visão expressa no PDPFor se faz necessária também para os códigos

reguladores das formas de intervenção e obras de toda espécie.

Nessa linha, retomemos uma questão, para nós, fundamental. Por que então

discutir sociedade e meio ambiente urbanos numa perspectiva, por vezes, tão árida

GH�FRQÀXrQFLDV�H�LQWURMHo}HV��GH�FRVWXUD�WmR�FXVWRVD"�$�KLVWyULD�GD�IRUPDomR�XUEDQD�

de Fortaleza é um retrato duro, mas revelador de como é perfeitamente possível que

um pequeno segmento da sociedade aproprie-se e concentre quase que a totalidade

GDV� LQYHUV}HV� SURSLFLDGDV� SHORV� FLFORV� GH� FUHVFLPHQWR� HFRQ{PLFR�� 1mR� VHUtDPRV�

GH�WRGR�MXVWRV�VH�ODQoiVVHPRV�HVWD�FUtWLFD�DRV�WRPDGRUHV�GH�GHFLV}HV�H�jV�¿JXUDV�

LQÀXHQWHV�GH�DWp�D�SULPHLUD�PHWDGH�GR�VpFXOR�����DLQGD�TXH�FHUWDV�SUiWLFDV�VRFLDLV�

nos caiam hoje aos olhos e subjetividades como cruéis e inadmissíveis. Parece até

que a pobreza mantém um certo padrão persistente ao longo da história e que as

WUDQVIRUPDo}HV�PDLV� UDGLFDLV�HPHUJHP�GRV�ÀX[RV�GH� ULTXH]D�H�GRV�FRQVHTXHQWHV�

FRQWUDVWHV��2�HVJDUoDPHQWR�GR�WHFLGR�VRFLDO�GDULD�VH�SHOR�ODGR�GD�SDUFHOD�PRGHUQL]DQWH�

da trama, que paulatinamente se ornamenta de camadas de raros retalhos e notáveis

costuras. A segunda metade do século 20 traz a crítica contundente de Celso

)XUWDGR�DR�PLWR�PRGHUQR�GR�GHVHQYROYLPHQWR�HFRQ{PLFR��GR�EROR�D�VHU�UHSDUWLGR�H��

sobreposta às antevistas fronteiras ambientais do crescimento, esta crítica se estende

à sustentabilidade do modelo de desenvolvimento local intraurbano.

� 3DUWH� GRV� HVWXGRV� D� TXH� UHFRUUHPRV� D� ¿P� GH� DIHULU� R� HVWDGR� GD� DUWH� DWXDO�

GD� FLGDGH� HP� WHUPRV� GH� ULVFRV� VRFLRDPELHQWDLV�� FRPR� D� WHVH� GH�6DQWRV� ������� H�

R� WUDEDOKR� GH� =DQHOOD� H� FRODERUDGRUHV� �������� OHYDP� HP� FRQWD� D� YXOQHUDELOLGDGH�

ambiental como medida da ausência de infraestrutura, como ligações às redes de

água e esgoto, drenagem e carência de serviços, como coleta de lixo. A presença de

infraestrutura mínima tradicional, portanto, de base higienista garante a salubridade

do ambiente humano, a�QmR�SROXLomR�RX�D�UHGXomR�VLJQL¿FDWLYD�GH�SROXHQWHV�QR�VROR�

H�QRV�FRUSRV�KtGULFRV��VXSHU¿FLDLV�H�VXEWHUUkQHRV��1R�HQWDQWR��WHPRV�WUDEDOKDGR�DTXL�

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139

com um conceito de estrutura urbana viva, de um respeito, se não às qualidades

naturais dos sistemas pré-urbanização, pelo menos às funcionalidades mantenedoras

da vitalidade do sistema.

Nesse sentido, a transição paradigmática no campo das engenharias se faz

imprescindível, porque, de certa forma, todo o sítio urbano agoniza oprimido pelo

PRGHOR�URGRYLiULR�H�HGL¿FDQWH�GH�LPSHUPHDELOL]DomR�H�HVFRDPHQWR�LPHGLDWR�GDV�iJXDV�

das chuvas. A sustentabilidade urbana desejável aqui defendida tenta ser sensível

aos processos sociais e culturais de conformação da paisagem. Mas é justamente por

compreender esses processos, como os vazios de espraiamento deliberadamente

reservados à valorização entre o centro e as periferias em Fortaleza que julgamos

não se poder abrir mão das vocações do sítio, suas potencialidades e limitações, tais

FRPR�LGHQWL¿FDGDV�QR�GLDJQyVWLFR�JHRDPELHQWDO��628=$�HW�DO���������

Se os percursos tortuosos de dinamização da economia municipal e estadual

QmR�VH�PRVWUDP�KLVWRULFDPHQWH�FRQ¿iYHLV��VREUHWXGR�SDUD�XP�HVWDGR�HVVHQFLDOPHQWH�

semiárido, pouco industrializado, possivelmente exposto a cenários futuros de

mudanças climáticas e contingências de crises próprias da inserção à economia

globalizada, uma postura de desenvolvimento consequente deveria buscar apoiar-

se preventivamente sobre bases mais sólidas. A busca pela manutenção das

funcionalidades geossistêmicas e das dinâmicas dos compartimentos vivos, podem

QmR�JDUDQWLU�IRQWHV�GH�DÀRUDPHQWR�GH�FDSLWDLV��PDV�DVVHJXUDP�HOHPHQWRV�VDOXWDUHV�j�

qualidade de vida urbana coletiva que não podem ser satisfatoriamente compensados

por estratégias individuais ou nucleares de reposição tecnológica.

A renovação da qualidade do ar, das águas, a regulação climática e a recuperação

da fertilidade dos solos, hoje largamente requisitados pelas frentes de agricultura

XUEDQD��VmR�VHUYLoRV�DPELHQWDLV�TXDOL¿FDGRUHV�GH�XP�VLVWHPD�VRFLRDPELHQWDO�XUEDQR�

saudável e seguro. Sociedades urbanas capazes de assegurar essas funções ao

ambiente intraurbano fazem-se menos dependentes e menos vulneráveis às incertezas

do futuro. Dito isso, parece até preciosismo ressaltar a relevância desses elementos

para a garantia da dignidade de camadas urbanas pauperizadas hoje, sustentadas

acima da linha da miséria unicamente pelos programas de garantia de renda mínima.

Na Fortaleza do século 21 não é incomum encontrarmos pescadores no açude Santo

$PDUR��QR�FDPSXV�GR�3LFL���QD�$Y��*HQHUDO�0XULOR�%RUJHV�RX�QD�UXD�6HEDVWLmR�GH�$EUHX��

que cortam em trechos distintos o curso do rio Cocó, assim como nas muitas lagoas,

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140

todos quase sempre cobertos de aguapés, indicadores sintomáticos de séria poluição

DPELHQWDO��2�VRQKR�GD�FLGDGH�YLWRULRVD�VREUH�D�QDWXUH]D�H�HVWD�FRQVWUXomR�FRQÀLWXRVD�

em si me parecem conformar um dos maiores delírios coletivos já vivenciados pela

humanidade.

Quanto às insinuações de risco e respeito, tentamos interpretar as sucessões de

HYHQWRV�j�OX]�GH�IXQo}HV�KHJHP{QLFDV�RULHQWDGRUDV�GRV�SURFHVVRV�XUEDQRV�WDLV�FRPR�

HQVDLDGRV� SRU� /HIHEYUH� ��������$V� GLVSXWDV� SRU� HVWDEHOHFLPHQWR� HQWUH� DV� FLGDGHV�

política, comercial, industrial e algo que poderíamos chamar de cidade para pessoas

parecem não fazer tanto sentido para as cidades coloniais do novo mundo como o

fazem para as cidades européias. Ainda assim, é possível defendermos a tese sobre o

quanto a emergência de um sentido de lugar, de um enraizamento e de uma produção

de identidade contra a prevalência de uma ordem externa sugerem o balizamento de

ações de maior respeito tanto aos indivíduos quanto ao ambiente urbano, mesmo que

SRU�YH]HV�HVWH�UHVSHLWR�DÀRUH�GH�PDQHLUD�VHOHWLYD��1HVVD�SHUVSHFWLYD�VH�DVVHQWDP�DV�

SRVWXUDV�GH�HPEHOH]DPHQWR�SDLVDJtVWLFR�GRV�DGPLQLVWUDGRUHV�GR�VpFXOR�����PDV�TXH�

tem a dizer tal postulação sobre os desdobramentos relativos à implementação dos

SODQRV�PRGHUQRV�GH�1HVWRU�GH�)LJXHLUHGR��GH�6DER\D�5LEHLUR�H�GH�+pOLR�0RGHVWR"�

As administrações municipais entre divergências e consensos optaram quase que

pura e simplesmente pela adoção dos planos viários, quando muito. Mesmo que entre

os relatos surjam, sem rodeios, comentários de rechaço à contratação de urbanistas

cariocas, como argumento de rejeição aos planos, seríamos mais cautelosos se

elencássemos como causa maior o receio quanto à desestruturação de um modelo

GH� UHSURGXomR� HFRQ{PLFD� H� VRFLDO� TXH� YLQKD� GDQGR� FHUWR� SDUD� DTXHOHV� VHWRUHV�

apoderados.

De todo modo, esta construção teórica se mostra mais útil à segunda metade

do século 20, quando vem à tona o projeto simultâneo de cidade para o turista e

para as elites enclausuradas. Mostra-se útil porque, da saturação desse modelo de

cidade privada, modelada para carros e do abandono dos espaços públicos, começa

a ganhar força o discurso do direito à cidade e a defesa de uma cidade para pessoas,

sustentável, justa e democrática. Esse modelo alternativo contrapõe-se à cidade

vitrine, trabalhada para o consumo, da sociedade do consumo, porque dele emerge o

valor de uso dos espaços compartilhados, um sentido de qualidade de vida coletiva,

que é propriedade percebida pelo indivíduo, mas quando imerso em uma sociedade

Page 142: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

141

VDXGiYHO��HTXLOEUDGD��2�GLUHLWR�j�FLGDGH��QR�HQWDQWR��QmR�VH�WUDWD�GH�XP�GHVGREUDPHQWR�

histórico necessário, algo que cedo ou tarde acontecerá, muito menos quando falamos

de Brasil.

Enquanto concluo a redação deste texto, experimento na pele o que Mike

'DYLV� ������� FKDPD� GH� WUDLomR� GR�(VWDGR��$� VRFLHGDGH� IRUWDOH]HQVH� DQR� SDVVDGR�

HOHJHX�5REHUWR�&OiXGLR�����������SDUD�SUHIHLWR��FDQGLGDWR�DSRLDGR�SHOR�JRYHUQDGRU�

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HP�)RUWDOH]D�R�PRGHOR�GH�FLGDGH�FDQWHLUR��2�JUXSR�GH�&LG�*RPHV�GHVSHQGHX�WRGD�

a energia política de que dispunha para garantir que esta capital compusesse o hall

das cidades sedes da Copa do Mundo de 2014. Dessa forma, desde 2010, quando o

FRPSURPLVVR�FRP�D�),)$�IRL�¿UPDGR��JDQKRX�FRUSR�XPD�VpULH�GH�FRQÀLWRV�UHODFLRQDGRV�

a remoções de moradias para conformar o traçado urbano às demandas do pacote de

PRELOLGDGH�SDUD�D�&RSD��(QWUH�HODV��D�PDLV�QRWiYHO��D�LPSODQWDomR�GR�9HtFXOR�/HYH�

VREUH�7ULOKRV��9/7���TXH��VHJXQGR�UHSRUWDJHP�SXEOLFDGD�GR�3RUWDO�*���$/9(6���������

seria responsável por 2.185 desapropriações, envolvendo cerca de 5 mil famílias. Já

HP�������D�FDUJR�GD�SUHIHLWXUD�VmR�OHYDQWDGRV�RV�FDQWHLURV�GH�REUDV�UHIHUHQWHV�jV�

vias de conexão da zona hoteleira ao estádio Castelão. Contando com a reforma do

SUySULR�HVWiGLR��GH�SRUWRV�H�GR�DHURSRUWR��HVVDV�LQWHUYHQo}HV�UHSUHVHQWDP�XP�¿OmR�GH�

5�������ELOKmR�GH�LQYHVWLPHQWR�QR�&HDUi�SDUD�VHU�DERFDQKDGR�SHOD�FRQVWUXomR�FLYLO�

Não satisfeitos, em julho desse mesmo ano, logo após a jornada de manifestações

de junho, que tiveram como gatilho o aumento do valor da passagem do transporte

público em São Paulo e a realização dos jogos da Copa das Confederações, o prefeito

de Fortaleza anuncia a construção de dois viadutos no cruzamento das avenidas Eng.

6DQWDQD�-~QLRU�H�$QW{QLR�6DOHV��VHQGR�TXH�XPD�GDV�DOoDV�DFDUUHWDULD�D�UHWLUDGD�GH�

PDLV� GH� ���� iUYRUHV� SHUWHQFHQWHV� DR� 3DUTXH� (FROyJLFR� GR�&RFy��2� GHVSURSyVLWR�

desta obra e o hermetismo impositivo de modelo de gestão top-down antiparticipativo,

associado a estratégias de ludíbrio e convencimento público – registre-se aqui a

organização por militância tangida da, possivelmente, primeira manifestação pró-

YLDGXWRV�GD�+LVWyULD�±�GHVHQFDGHDUDP�j�SRUWD�GD�PLQKD�FDVD�R�TXH�VHULD�SDUD�SDUWH�

de nós fortalezenses o equivalente ao levante popular do parque Gezi e da praça

7DNVLP�HP�,VWDPEXO��R�DFDPSDPHQWR�2FXSH�&RFy��TXH�ORJURX�SHUPDQHFHU�SRU�WUrV�

meses, entre despejos e liminares judiciais, sobre a área do parque onde inicialmente

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142

IRUDP�GHUUXEDGDV����iUYRUHV�

Com a desfecho do imbróglio na Justiça, dando ganho de causa à prefeitura

e liberando a continuidade das obras dos viadutos, o pareamento político entre

JRYHUQRV� HVWDGXDO� H� PXQLFLSDO� WRPD� I{OHJR� H� LQLFLD� XPD� DJHQGD� GH� RIHQVLYD�

empreitera. Mencionamos a iniciativa por parte do Governo do Estado de construção

GR�$&48È5,2��XP�FRPSOH[R�WXUtVWLFR�D�VHU�HUJXLGR�VREUH�R�DQWLJR�SUpGLR�GR�'12&6��

ao lado do antigo porto, o que conduziria, conforme projeto de revitalização da área à

UHPRomR�GD�FRPXQLGDGH�GR�3RoR�GD�'UDJD��¿[DGD�DOL�Ki�PDLV�GH����DQRV��+i�SRXFR�

menos de um mês a prefeitura convocou o, cada vez mais experiente, batalhão de

choque da guarda municipal para protagonizar o despejo da comunidade do Alto da

3D]�QR�EDLUUR�9LFHQWH�3LQ]yQ��DOHJDQGR�D�QHFHVVLGDGH�GH�FRQVWUXomR�GH�XP�FRQMXQWR�

habitacional na área. Já esta semana, foi anunciada a execução do primeiro projeto

do Plano de Ações Imediatas em Transporte e Trânsito de Fortaleza� �3$,77��� TXH�

prevê a inversão de sentido de vias na Aldeota, a remoção de cerca de 200 árvores

H�R�FRUWH�GD�3UDoD�3RUWXJDO��D�¿P�GH�PHOKRUDU�R�ÀX[R�GR�WUiIHJR�QR�EDLUUR��$�SUDoD�

FLUFXODU�IRL�FRQVWUXtGD�HP������H�DJRUD�p�DFXVDGD�GH�QXQFD�WHU�VLGR�XPD�SUDoD��PDV��

sim, uma rotatória.

� 'DYLV��������S������UHIHULD�VH�j�WUDLomR�GR�(VWDGR�HP�PHQomR�jV�SURPHVVDV�

de garantias de direitos aos pobres nunca cumpridos e aos seus sonhos esfacelados.

Para representar a transição entre o lento e o rápido processo de urbanização

GHVHQFDGHDGR�HQWUH������H������QRV�SDtVHV�GR�7HUFHLUR�0XQGR��FRP�D�LQYDVmR�GDV�

cidades por migrantes rurais, ele recorre à imagem de um dilúvio. Aqui, buscando

qualquer ranhura de resiliência entres os elos que sustentam a tecitura da sociedade

XUEDQD�IRUWDOH]HQVH��WRPHL�D�LPDJHP�GH�:DLVHO¿V]���������GH�TXH�D�YLROrQFLD�XUEDQD�

não passava da ponta evidente do iceberg, e sugeri a minha própria visão perturbadora

GH�QHYH�H� FRUSRV�JpOLGRV�QHVVHV� WUySLFRV�iULGRV�� SUHVWHV�D� ¿JXUDU�XPD�DYDODQFKH�

destruidora. Para mim, o hiato profundo entre uma existência humana vulnerável, de

exposição diária a riscos e um tratamento de respeito, do abandono dos privilégios

DR�UHFRQKHFLPHQWR�GD�XQLYHUVDOLGDGH�GH�GLUHLWRV�FRQ¿JXUDP�GXDV�DJHQGDV�FRWLGLDQDV�

muito distintas aos governos. Se este ponto tiver sido aqui, não resolvido, mas, pelo

contrário, bem espanado, espalhado e revolvido, hei de sentir-me contemplado.

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143

Referências

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Janeiro, 2010.

$/9(6��*DEULHOD��)DPtOLDV�j�EHLUD�GH�WULOKRV�UHVLVWHP�j�REUD�GR�9/7�SDUD�&RSD�HP�)RUWDOH]D��*��&(��

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2008.

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Page 145: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

144

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Urbanismo, v. 10, n. 2, 2008.

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)5(,7$6��&��)��6��2�QRYR�PRGHOR�GH�JHVWmR�XUEDQD�HVWUDWpJLFD�HP�)RUWDOH]D��DXPHQWR�GDV�

GHVLJXDOGDGHV�VRFLRDPELHQWDLV��8QLYHUVLWDV�)$&(��Y�����Q����������

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-$&2%6��-��0RUWH�H�YLGD�GH�JUDQGHV�FLGDGHV�����HG��6mR�3DXOR��(GLWRUD�:0)�0DUWLQV�)RQWHV��������

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YLGD�HP�6DOYDGRU��5HYLVWD�GH�6D~GH�3~EOLFD��Y������Q��9L��S�����±�����������'LVSRQtYHO�HP���KWWS���

ZZZ�VFLHOR�EU�VFLHOR�SKS"SLG 6����������������������VFULSW VFLBDEVWUDFW!��$FHVVR�HP�����IHY��

2014.

0$'(,52��&DUORV��$/�UHJLVWUD�HP������PDLRU�WD[D�GH�KRPLFtGLR�GD�KLVWyULD�GH�XP�(VWDGR��tQGLFH�p�

LJXDO�D�GR�SDtV�PDLV�YLROHQWR�GR�PXQGR��82/�1RWtFLDV��0DFHLy����IHY��������

0$,$��5DTXHO��2�SUHRFXSDQWH�TXDGUR�GD�GHVLJXDOGDGH�VRFLDO�HP�)RUWDOH]D��23RYR�2QOLQH��

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QRWLFLDVMRUQDOSROLWLFD���������R�SUHRFXSDQWH�TXDGUR�GD�GHVLJXDOGDGH�VRFLDO�HP�IRUWDOH]D�VKWPO!�

0$726��)��'(�2��$�FLGDGH�H�R�PDU��FRQVLGHUDo}HV�VREUH�D�PHPyULD�GDV�UHODo}HV�HQWUH�)RUWDOH]D�H�R�

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0$726��)��'(�2���9$6&21&(/26��)��3��2�OLWRUDO�GH�)RUWDOH]D�H�R�SODQHMDPHQWR�XUEDQR�QD�SULPHLUD�

PHWDGH�GR�VpFXOR�;,;�D�SDUWLU�GDV�SODQWDV�GH�6LOYD�3DXOHW�H�6LP}HV�GH�)DULDV��5HYLVWD�%UDVLOHLUD�GH�

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1(9���o�5HODWyULR�1DFLRQDO�VREUH�RV�'LUHLWRV�+XPDQRV�QR�%UDVLO��������������6mR�3DXOR��>V�Q�@�������

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DVS"FRGLJR ������!�

3$8/2��*��5��1��6��0HWDV�GH�VXVWHQWDELOLGDGH�SDUD�RV�PXQLFtSLRV�EUDVLOHLURV��LQGLFDGRUHV�H�

Page 146: Cidades sustentáveis e as fronteiras de risco e respeito ao sistema socioambiental de Fortaleza, CE

145

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)RUWDOH]D��5HYLVWD�0HUFDWRU��Y�����Q�����������

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6$1726��-��'(�2��)UDJLOLGDGH�H�ULVFRV�VRFLRDPELHQWDLV�HP�)RUWDOH]D�&(��FRQWULEXLo}HV�DR�

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3UHIHLWXUD�0XQLFLSDO�GH�)RUWDOH]D��������

628=$��0��6��'(��$QiOLVH�GD�HVWUXWXUD�XUEDQD��,Q��'$17$6��(��:��&���6,/9$��-��%��'$��&267$��0��

&��/���2UJ����'H�FLGDGH�D�PHWUySROH���WUDQV�IRUPDo}HV�XUEDQDV�HP�)RUWDOH]D��)RUWDOH]D��(GLo}HV�8)&��

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2011

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v. 64, n. 1, 2012.

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Considero este trabalho um testemunho em favor da complexidade do conviver

XUEDQR�HP�VHQWLGR�JHUDO�H�SDUWLFXODU��7RGD�FRQVWUXomR�DTXL�HPSUHHQGLGD�UHVXOWD�GH�XP�esforço para que melhor possamos situar a cidade no contexto dos acúmulos histó-

ricos de debates em torno do desenvolvimento sustentável. Penso ter sido capaz de

apresentar pontos de escape para o ciclo vicioso das medidas emergenciais e urgên-

cias consumidoras das agendas municipais, porque enxergo no regime de urgência o

primo pobre da democracia. Na composição desta peça, propositadamente poupei-me

da tarefa de argumentar o porque da necessidade de buscarmos os caminhos para o

DOFDQFH�GH�VRFLHGDGHV�PDLV�MXVWDV��GHPRFUiWLFDV�H�VXVWHQWiYHLV��7HQWHL�IRUFDU�PH�QD�VLJQL¿FDomR�GHVVHV�WHUPRV�H�HP�VXD�GH¿QLomR�VRE�DOJXPDV�SRXFDV�SHUVSHFWLYDV�TXH�suponho estratégicas para o momento atual. De toda a literatura técnica com que me

entranhei e, como forma de responder a alguma expectativa de proposições objetivas

nesse sentido, retrucaria que estes não me parecem tempos de professianismo tec-

nocrático. As fertilizações de especialistas sobre o que fazer com as cidades são, de

certo, imprescindíveis para o enriquecimento do debate, mas, antes disso, há diante

de nós um descolamento abismal entre poderes e base popular e cuja necessidade de

aproximação e reatamento tornam tudo o mais secundário. Feitas estas colocações,

encerro este discurso e agradeço a atenção até aqui dispensada.

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