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RUTH EUGÊNIA AMARANTE CIDADE E SOUZA ATLETAS PARAOLÍMPICAS: FIGURAÇÕES E SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA CAMPINAS 2004 I

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RUTH EUGÊNIA AMARANTE CIDADE E SOUZA

ATLETAS PARAOLÍMPICAS: FIGURAÇÕES E SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

CAMPINAS 2004 I

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RUTH EUGÊNIA AMARANTE CIDADE E SOUZA

ATLETAS PARAOLÍMPICAS: FIGURAÇÕES E SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Este exemplar corresponde à redação final da tese de doutorado, defendida por Ruth EugêE Amarante Cidade e Souza e aprovada pela Comissão Julgadora em 16 de fevereiro de 2004.

//'!7j,~ ~I~ Orientadora: Prof" Dra Maria Beatriz Rocha Ferreira

Comissão Julgadora

Prof" Dr.' Maria da Consolação Gomes Cunha Fernandes Tavares

Prof Dr. Ademir Gebara

Prof Dr. José Júlio Gavião de Almeida

Prof. Dr. Júlio Romero Ferreira

Campinas 2004

111

Page 3: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

PREÇO~~~~-:-;­DATA ~>J!!CPD ____ _

C486a Cidade, Ruth Eugênia Amarante

Atletas paraolimpicas: figurações e sociedade contemporânea I RuthEugênia AmaranteCidade.- Campinas, SP: [s.n], 2004.

Orientador: Maria Beatriz Rocha Ferreira Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação Física,

Universidade Estadual de Campinas.

1. Atletas. 2. Configurações. 3. Sociedade. I. Ferreira, Maria Beatriz Rocha. II. Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação Física. ID. Título.

Page 4: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

v

Época triste a nossa em que é mais difícil quebrar um preconceito do

que um átomo.

Albert Einstein

Page 5: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

AGRADECIMENTOS

À Deus que com sua infinita Graça me amparou nos momentos difíceis. Aos meus pais e irmãos que com suas oraÇÕes sempre acompanharam

meus passos. Ao Luiz Alceu, amigo e marido, por acreditar nos meus sonhos e com

dedicação ajudar-me a concretizá-los. Aos meus filhos, Ana Raquel e Israel, por serem tão compreensivos.

À Coordenação de Pós-Graduação da Faculdade de Educação Física da Unicamp e a UFPR/ Capes (através do PICDT) que

possibilitaram meus estudos. À minha orientadora Maria Beatriz Rocha Ferreira pela atenção, awa1io

e orientação durante este período Aos colegas Cláudio Partilho Marques e Iverson Ladewig que durante a

minha ausência assumiram as aulas e os projetos de Educação Física Adaptada do Departamento de Educação Física da UFPR.

Aos amigos da área e aos colegas de estudo pelo incentivo, apoio e momentos de convivência e experiências, que de maneira especial marcaram

minha vida. À você, que de alguma forma contribuiu para que eu pudesse realizar o

Doutorado e ser o que sou.

"cada pessoa só é capaz de dizer 'eu' se e porque pode, ao mesmo tempo, dizer 'nós' (Elias, 1994:57).

A todos, obrigada!

VII

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SUMÁRIO

LISTA DE SIGLAS ........................................................................................................ XI

LISTA DE ILUSTRAÇÕES.......................................................................................... XIll

RESUMO........................................................................................................................ XV

ABSTRACT................................................................................................................... XVII

INTRODUÇÃO- A cena ennnciativa do estudo....................................................... 1

CAPÍTULO 1- Método............................................................................................... 13

CAPÍTULO 2- A mulher e o esporte: processo civilizador

e o envolvimento feminino nos esportes..................................................................... 43

CAPÍTULO 3 - Estabeiecidos-outsiders eliasianos e atletas

paraolímpicas: representações................................................................................... 68

CAPÍTULO 4 - Estabeiecidos-outsiders eliasianos e atletas

paraolímpicas: rótulo e sujeição................................................................................. 97

CAPÍTULO 5 - Estabelecidos-outsiders eliasianos e atletas

paraolímpicas: grupo e equilíbrio instável de poder................................................. 125

OUTRAS FACETAS E

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................... 159

NOTAS........................................................................................................................... 176

REFERÊNCIAS............................................................................................................ 191

ANEXOS........................................................................................................................ 198

IX

Page 7: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

LISTA DE SIGLAS

Associação Brasileira de Desporto em Cadeira de Rodas ..•..•••••••••••••••••••.•.• Associação Brasileira de Desporto para Amputados •••••.•••••••••••••.••••.••••••••••. Associação Brasileira de Desportos para Cegos •••••••••••••••••••••..•••••••••••••••••••• Associação Brasileira de Desportos para Deficientes Mentais ••••••••.•.•••••.•••• Associação Canadense para o Avanço das Mulheres na Atividade Física ••• Associação Internacional de Educação Física e Esporte para Meninas e

Mulheres ••••••••.•••••••.•.•..•.••••••••••••••••••••••••••••••••••••• ··········-·-·······-·-· .. ····--····· Associação Japonesa para a Mulher e o Esporte. .•..•......••..•••••••••••••...•.••.••••. Associação Nacional de Desporto para Deficientes ••.•..••.••.•.•••••••••••••.•.•.•.•.• Cerebral Palsy International Sport and Recreation Association •••••••••••••••• Clube dos Paraplégicos do Rio de Janeiro ••••••••••••••••••••••••••.•••••••••••••••••••••••• Comissão Nacional de Atletas ••••••••.•..••••••...•••.•.•..•••..••....••••••••••••••••...•....•••• Comissão N acionai de Atletas Parao lirnpicos •••••••••••••••••••••••••••••••.•••..••••••••• Comitê Coordenador InternacionaL. ..••.••••.•••••••••••••••••••••••••••••.......••.•••••••••••• Comité Intemational Des Sports Des Sourds •••••••••••••••..•••.•••••••••••••••.•••••••••. Comitê Olímpico Brasileiro ••••••••••••••••••••••.•••••••••..•••...••.....•..••••••••••••••••••••••.. Comitê Olímpico InternacionaL. •••••••••••••••••••••••••••••••••••••.•••.•••••••••••••••••••••••• Comitê Parao lirnpico Brasileiro .•....••••.•••••••••••••••••••••••••••••••.•.•...•••••••••••••••••. Comitê Parao lirnpico Internacional. ............................................................ . Conselho Internacional para a Ciência do Esporte e Educação Física ••••••••• Equipe Paraolímpica Permanente. •••••••••••.•••.•••.••••••••••••.••••.••••••••••••.••••••• ·-··· Federação de Sociedades Femininas da França •••••••••••••••••.•.•••••••••••••••••••••••. Federação Internacional Desportiva Feminina. •••••••••••••••••..••••••••••••••••••••••••• Grupo de Trabalho Internacional sobre a Mulher e o Esporte. .•••••••••••••••••• International Biind Sports Association. ••...•••.•.•••••••••••••••••••••••••••••.••••••••••••• Internatíonal Organísation of Sport for People with Dísabilitíes .••••..•.••.•••• Internatíonal Paraolympic Committee. ••••••••••••••••••••••••••••••••.•••••••••••••••••••••. International Sports Association For Persons With Mental Handicap •••••••. International Sports Organisation For The Disable. ••••••••••••••••••••..••••••••••••• International Stoke Mandeville Weelcbair Sports Federation. •••....•...••••• Mulheres Européias e Esporte ............................................................ . Sociedade Amigos dos Deficientes F isicos •••••••••••••••••••••••.••.•••••••••••••• WomenSport International. ••..•••••••••••••••••••••••••••••••.•••.••.•••••••••••••••••.••••

X1

Abradecar ABDA ABDC ABDEM ACAMD

IAPESGW JWS Ande CP-ISRA CPRJ CNA Conap ICC CISS COB COI CPB CPI ICSSPE EPP FFSF FSFI GTI IBSA IOSDs IPC INAS-FMH ISOD ISMWSF MEE Sadef WSI

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

L Propaganda do Banco do Brasil na revista Toque a Toque, Ano X, n. 43, setembro/2000 ............................................................................................................... 1

2. Folheto de localização da Vila Paraolímpica de Sydney..... . ........ .3 3. Propaganda do Banco do Brasil na revista Toque a Toque, Ano X, n. 43,

setembro/2000.. .. ............................. ........ .... .... .............. .................. ... ............... . ..... 12 4. Fotografia de capa da Revista Benjamin Constant, n.l7, ano 6, dezembro/2000.

Capa: Ádria dos Santos em Sydneu., Austrália, foto de Osvanildo Dias ............ .42 5. Capa da Revista Toque a Toque, Ano X, n. 44, outubro/2000............. . ..................... 67 6. Propaganda de Órgãos Governamentais na Revista Toque a Toque, Ano X, n. 43,

setembro/2000 ............................................................................................................. 7l 7. Propaganda na Revista Toque a Toque, Ano X, n. 41,julho/2000 ............................... 72 8. Propaganda do Banco do Brasil na Revista Toque a Toque, Ano X, n. 44,

outubro/2000 ................................................................................................................. 74 9. Propaganda do Banco do Brasil na Revista Toque a Toque, Ano X, n 42,

agosto/2000 .................................................................................................................. 81 9.1 Artigo publicado no THE P ARAL YMPIAN, Newsletter ofthe International

Paralympic Committee. Special Edition, oct. 2000, p.6 ..................................... 96 10. Capa da Revista Toque a Toque, Ano Ix, n. 30, maio/1999 ....................................... 124 11. Capa da Revista Brasil Paraolímpico, Ano Ill, n. 7, maio/2000 .................................. 158 12. Capa da na Revista Toque a Toque, Ano X, n. 43, setembro/2000 ............................. 175 13. Letra do Hino "Campeão", Brasil Ilimitado- Informativo do Comitê Paraolímpico

Brasileiro, n. 1, junho/julho de 2000 ............................................................................ 183 14. Foto/propaganda da Revista Brasil Paraolímpico, Ano Ill, n. 7, maío/2000 ............... 185 15. Foto/propaganda da Revista Brasil Paraolímpíco, Ano III, n 7, maío/2000 ............... 190

Xlll

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RESUMO

Este trabalho tem como foco, o estudo das configurações de atletas selecionadas para a Paraolimpíada de Sydney, Austrália, 2000. A investigação de cunho sociocultural está centrada na seguinte questão: como as atletas com deficiência estabelecem relações e interdependências entre os diferentes papéis sociais que exercem? Em termos de objetivos do estudo, buscamos identificar como se constituem as interdependências e as relações estabelecidas na dinâmica configuracional de atletas paraolímpicas. Para tanto, esta pesquisa está baseada nas entrevistas das atletas, na análise do discurso e na história recente da mulher deficiente no esporte de alto nível. O método utilizado neste trabalho foi fundamentado na Teoria Sociológica de Norbert Elias. A pretensão central foi articular essa teoria com a fala das atletas paraolímpicas. Buscamos equilibrar os focos de análise característicos da macrossociologia - no campo das ações coletivas, das relações intergrupais, dos padrões abrangentes de organização e da estrutura social, do grupo e da sociedade (redes mauifestas dos grupos construídos sobre a base de identidades e valores coletivos) - e da microssociologia - em sna riqueza de personalidades únicas, exemplares, indivíduos tomados em sna inteireza, imersos em paixões, interesses, percepções, preconceitos, valores, etc. Na análise do material pesquisado, encontramos subsídios teóricos e empíricos que corroboraram a leitura do processo de (re )siguificação do papel da atleta paraolímpica, em conformidade com as disposições e perspectivas da sociedade contemporânea

Palavras-chave: mulher, atleta paraolímpica, configurações.

XV

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ABSTRACT

This paper has as a focal point the study of the figurations of those athletes selected for the Paralympic Games in Sidney, Australia, in 2000. The inquiry giving emphasis to the socio cultural aspect is centered in the following subject: how the disable athletes can make relationships aud interdependencies among the severa! social roles they practice? Concerning the objectives of this study, we sought to identify how the interdependencies aud relationships found in the figurational dynamics of the paralympic athletes are composed of. For this purpose, this research is based on the athletes' interviews, on the aualysis of the speech, and on the late history of the disable womau in top sports. The method used in this work was grounded on the Sociological Theory of Norbert Elias. The main pretension was to connect this Theory with the speaking of the paralympic athletes. There was also a search for balaucing the focus point of aualysis characteristic of macro sociology - in the field of collective actions, intergrouping relationships, comprehended patterns of orgauization aud social structure related to groups aud society ( existing net of groups constructed upon a basis of identities and collective values) - aud of micro sociology - in its abundauce of uni que aud staudard personalities, individuais being considered in their completeness, emerged in passion, interests, perceptions, prejudices, values etc. In the aualysis of the data, we found theoretical aud empirical subsidies that confirm the reading of the (re )signification process about the role of the paralympic athlete, according to the dispositions aud prospect of the contemporary society.

Key-words: woman, paralympic athlete, figurations.

XVl1

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INTRODUÇÃO

A cena enunciativa do estudo

Sydney, Austrália. Foi ali que começou o trabalho de campo desta pesquisa, antes

da Cerimônia de Abettura e do inicio oficial dos Jogos Paraolímpicos. Entrevistei as

atletas paraolímpicas, integrantes da delegação brasileira, e obtive os dados que

subsidiaram esta investigação centrada inicialmente na questão: como as atletas com

deficiência estabelecem relações e interdependências entre os diferentes papéis sociais

que exercem?

Desde então, curiosidade e desafio têm sido as companheiras ua busca para

compreender esta questãol

Dia 13 de outubro de 2000, Vila Paraolímpica em Sydney (ilustração 2). Para

entrar na cidade dos atletas, foi preciso autorização, passapolte, vistoria e um

acompanhante brasileiro devidamente autorizado, para depois, passar pelo detector de

metais. Vencida a burocracia e a segurança, um portal sinalizava que eu finalmente, pela

primeira vez, estava dentro da Vila Paraolímpica! Realmente o nosso mundo possui

lugares sagrados.

Logo na entrada, há uma praça de servrços. Banco, floticultura, con·ew,

cabeleireiro ,foto shop, revistaria, lavanderia, um pouco de tudo. Organizada e limpa. Um

mundo à parte. Nessa cidade, morariam, durante três semanas, 7 mil pessoas, incluindo os

4 mil melhores atletas paraolímpícos do mundo. Reconhecidamente, a maior, mais

confortável e mais adaptada da história das Paraolirnpíadas.

Para ver e falar com as atletas foi preciso andar, pegar um ônibus e ainda andar

algumas quadras. Realmente era tudo muíto grande e muito longe. Circular na Vila

Paraolímpica foi uma das mais agradáveis experiências. Primeiro, indo a pé, uma

1 Com o objetivo de ilustrar ·a cena euunciativa' produzimos um CD que se encontra após os anexos.

2

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sensação estranha tomou conta de mim. Acho que era a hora do rush e muitos atletas

circulavam na rua, uns apressados e outros apenas passeando, em grupos ou sozinhos.

Aquela gentarada, eu nunca tinha visto tanto deficiente junto! Eram bengalas, muletas,

cadeiras de rodas, próteses. O que me chamou mais a atenção foi a espontaneidade, a

condescendência natural de deficientes e não-deficientes diante das diferenças e, apesar

de todas as evidentes limitações dos atletas, a diferença dentro da diferença. E, por

instantes, a focalização na diferença quase roubou a cena da igualdade -refiro-me ao fato

de que todos os atletas passaram pelas mesmas etapas para estarem nas Paraolimpíadas.

Depois, de ônibus, com todos aqueles atletas entrando e saindo, seus uniformes e

equipamentos arrojados, cadeiras de rodas coloridas e próteses ultramoderuas. Conversas

e risadas em diversos idiomas me deram uma idéia do que poderia ter sido a Ton·e de

Babel. Interessante foi notar que a maioria das pessoas cumprimentavam-se e sorriam

cordialmente mnas para as outras. Esta atitude coletiva me pareceu no mínimo curiosa, já

que no dia-a-dia da vida urbana as pessoas não se olham e não se vêem. E, ali, naquela

Babel, como num passe de mágica, as pessoas envolvidas por um sentimento único

pareciam se conhecer e se reconhecer.

Ao descer do ônibus, o motorista ainda nos ditigiu um amistoso G'Day (mna

saudação típica). À medida que passava pelas casas e pequenos prédios, percebia as

diferentes bandeiras nas janelas indicando de onde eram os moradores temponuios

daquela pequena cidade. Incrível! Quem poderia imaginar Portugal, Quênia, Inglaterra e

Canadá como vizinhos! Na Vila Paraolímpica, mna nova geografia se configurou e novas

fronteit·as, ainda que temporariamente, foram estabelecidas.

Enfnn, logo à frente avisto a bandeira do Brasil e a casa das mulheres que eu iria

entrevistar.

A porta estava aberta e fui entrando. Logo percebi que estava em território

brasileiro. No meio do falatório, vozes misturavam-se com risos. Já na entrada, à

esquerda, um quarto com três atletas. Fui me apresentando e já fiquei por ali mesmo e

iniciei as entrevistas. Em seguida, procurei por outras atletas que estivessem disponíveis

4

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para a conversa e assnn fui cumprindo meu roteiro. Naquela tarde, foram cmco

entrevistas, fotos e muita falação. Mesmo as atletas mais experientes em eventos

internacionais não escondiam a satisfação e a alegria de estarem vivendo e

compartilhando aqueles momentos. Algumas das atletas me mostraram os quartos, os

presentes recebidos da organização, os uniformes e as comidinhas trazidas da praça de

alimentação para o alojamento. Aliás, sobre isto havia uma euforia geral, algumas das

meninas me contaram em tom de grande novidade que o McDonald's ficava aberto 24

horas, assim como toda a praça. Para algumas das atletas isto parecia representar o

inacreditável. Uma delas me disse: "eu não podia nem imaginar um McDonald's aqui

dentro, quanto mais de graça".

Conversar, pergrmtar, silenciar e ouvir suas histórias, participar daqueles instantes

junto delas me fizeram sentir aquele momento de maneira singular. Meninas e mulheres

que deixaram em mim uma impressão de simplicidade e simpatia. Não percebi afetação

ou estrelismo, constatei um contentamento por estarem ali, vivendo aqueles momentos.

Fiquei contagiada pelo tom de esperança das atletas diante das competições que estavam

porvrr.

Voltei mais uma vez. A mesma maratona e, por fnn, completei as dez entrevistas.

Mais fotos, conversas e descontração.

Quanta ambivalência! Por um lado, histórias de sofrimento, estigma e rejeição, por

outro, sucesso, prestígio e alegria por poderem representar o Brasil e chegar ao mais

importante evento esportivo que um atleta pode almejar.

A significação de suas condições como deficientes e atletas constitui-se na tensão

entre possibilidades e impossibilidades, transita nas diferentes vozes e se cruza quando

expõe partes de suas histórias pessoais.

Além desta situação ambivalente, outro lance me detém: a história recente da

mulher no esporte. Desde sua criação, o esporte moderno está em função do masculino e a

participação da mulher nessa área chama a atenção porque ainda está sendo

implementada.

5

Page 16: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Os fatos estão sempre em processo, mudando para transformar o impensado e o

inaceitável em corriqueiro e assimilável. Se, para pensar a mulher no esporte, ainda há

ressalvas, podemos conjecturar que idéias se formam a respeito das atletas com

deficiência! Para a maioria das pessoas, pode parecer extravagante e inadmissível.

Para que se tenha uma idéia da dimensão da questão, e no sentido de guiar aqueles

que desejam conhecer esta investigação, selecionei e atravessei os discursos das atletas

paraolimpicas numa nova condição de produção e formulei um enunciado com um novo

efeito de sentido. Fragmentos de seus depoimentos que, depois de articulados, formaram

uma história que chamei de estória das histórias, um extrato vital que nada mais é do que

uma breve incursão ao mnndo dessas atletas.

Aos sete anos, logo após o acidente ...

... eu comecei corno reabilitação ...

Passei oito anos só corno reabilitação. (E3)

Eu comecei a fazer um tratamento ... escoliose ...

... era corno tratamento ... (E2)

Eu estudava num colégio ... pra deficientes visuais ..

... desde pequena eu estudei lá ... tinha Educação Física ...

... fiz natação, fJZ judô, fiz voleibol, fiz ginástica rítmica,

... todos os desportos ...

... tudo que tinha eu participava (E5)

... me viram nadando e me convidaram

... a participar das competições. (E2)

Foi o começo de urna vida, e o começo de ... um desafio.

Que é um desafio que a pessoa vai e chega até o frnal e

... agora o que a pessoa tem dentro dela é tão tamanho,

... tão espetacular que a pessoa se sente um vencedor,

... urna pessoa mais alto que você possa descrever... na vida de um atleta,

... na vida de urna pessoa que chegou até aquele ponto, e

... agora é urna pessoa nova, urna pessoa maravilhosa

... que pode fazer tudo, tudo, tudo na vida.

Page 17: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Tudo, tudo, tudo que ela pode fazer

... porque ela conseguiu essa meta,

... essa coisa ... alcançar seu objetivo,

... uma coisa maravilhosa. Me emociona.

Tão maravilhoso, tão espetacular que é o esporte ..

A pessoa deficiente chega naquela meta,

... naquele ponto que tudo que ela consegue nessa vida,

... ela conseguiu a meta dela, a coisa que ela mais queria. (E8)

Significa muita coisa .

... minha cabeça que ... tenho hoje,

... eu não teria se não tivesse entrado nesse meio. (E3)

O próprio esporte me trouxe pra vida.

Significa tudo pra mim.

Hoje eu sou uma pessoa que tem muita alegria de -viver,

... muita vontade de viver e ... (E 1)

Meu ... treino. É minha paixão ... (E8)

Eu acho que melhorei em tudo .

... como atleta acho que melhorei mais ainda ..

... porque de onde que ia ter um monte de amigos fora

... do país se eu não fosse uma atleta? (E4)

Minha vida de atleta e minha vida pessoal... misturada .

... uma dependendo da outra ...

Então, assim, minha vida é o esporte,

... todo mundo sabe disso ...

... então vivo a minha vida diária ..

... ela é esportiva, entendeu?

O esporte me trouxe pra vida. (E 1)

Eu acho que tô na melhor fase da minha vida agora ..

Agora que eu consegui chegar até aqui ..

... eu acho que tô no meu melhor. ..

. .. do que eu vinha fazendo ... (E9)

F alo, vou nos eventos,

... eu prestigio os eventos, eu vou lá,

... sempre quando tem oportunidade de falar eu falo.

7

Page 18: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Em qualquer lugar.

Eu adoro dar entrevista pra qualquer pessoa (E5)

... e consegui chegar ...

... que é a coisa mais emocionante e

... maravilhosa do mundo- estar aqui- e

... agora vou pra meta maior que é

... conseguir fazer o meu melhor e mostrar. (E8)

... você tem que ter uma responsabilidade,

... então eu faço da melhor forma possível,

... eu tenho que driblar todo o meu horário de trabalho,

... de dona de casa, de meus treinamentos, de meu lazer,

... é realmente você driblar os momentos ...

... difíciL

... obrigações e ser atleta também. (E! O)

... mas eu quero casar, eu quero ter filhos, eu quero ser mãe .. (E5)

... e vou fazer de tudo pra que consiga realizar meu sonho da medalha ... (E3)

Agora me sinto uma grande atleta. (E7)

Dois dias depois, as atletas estavam desfilando na Abertura dos XI Jogos

Paraolímpicos, o último do milênio.

A cerimônia foi no Estádio Olímpico de Sydney e iniciou oficialmente dia 18 de

outubro, pontualmente às 20 horas. Noite fria e estádio lotado, cem mil pessoas presentes

e, segundo o jornal The Australian, mais de dois bilhões de pessoas assistiram à abertura

dos Jogos Paraolímpicos pela TV.

Enquanto desfilavam, cumpriam o ritual dos jogos e eu lembrava de alguns trechos

das entrevistas que ficaram em minha mente. Prestígio, estigma e esperança de bons

resultados deram o tom do momento.

Nos dias que se seguiram, até 29 de outubro, quando se encerravam as

competições, cada uma das atletas buscou fazer o seu melhor, como elas mesmas diriam.

Dia a dia, enfrentaram o dominio do ímprevisível com ansiedade e esperança. Venceram e

perderam, o que é absolutamente natural.

8

Page 19: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Ao final dos jogos, um resultado histórico para o Brasil: 22 medalhas foram

conquistadas. Cinco das seis medalhas de ouro foram conquistadas por mulheres. Tal feito

representou a ascensão do Brasil no quadro mundial, pois, assim, passamos de 37.0 para

24.0 lugar. Quanto a mim, desde essa experiência, tento compreender um pouco desse

mundo social complexo.

A partir da questão colocada inicialmente - como as atletas com deficiência

estabelecem relações e interdependências entre os diferentes papéis sociais que exercem?

-, o objeto desta pesquisa é estudar as figurações de atletas paraolímpicas, selecionadas

para a Paraolimpíada de Sydney, Austrália, 2000. De acordo com a Teoria de Elias, o

termo configurações refere-se à teia de relações de indivíduos interdependentes, que se

encontram inter-relacionados, em vàrios níveis e de diversas maneiras.

As variáveis escolhidas para serem analisadas foram as teias de inter-relações no

papel de atleta paraolímpica (na família, no movimento paraolímpico, no processo

histórico de formação do habitus) e no enfoque estabelecido-outsider, de Norbert Elias.

Os objetivos do estudo são:

identificar como se constituem as interdependências e as relações estabelecidas

na dinâmica figuracional de atletas paraolimpicas;

dimensionar esse fenômeno social, no qual estão imersas as atletas com

deficiência, considerando determinados momentos históricos e socioculturais;

subsidiar informações aos setores públicos e privados sobre o status quo de

atletas paraolímpicas.

Os pressupostos que norteiam o estudo são: 1) Sociologia Figuracional de Norbert

Elias; 2) a abordagem de ELIAS e SCOTSON (2000) sobre a relação estabelecidos-outsiders

e proposições teóricas relacionadas; 3) as condições de produção do discurso da atleta

paraolímpica no momento em que produz o enunciado e que é, ao mesmo tempo,

produzida por ele; 4) o entendimento da deficiência como um fenômeno multifacetado e o

esporte adaptado como uma figuração.

9

Page 20: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Como diria Lígia Amaral, "parece uma miscelânea de fenômenos e conceitos? E

é". Exatamente pelo caráter multifacetado do tema.

Ass~ este estudo foi dividido em cinco capítulos.

O capítulo 1 descreve os fundamentos norteadores baseados no modelo teórico de

Norbert Elias e alguns elementos da Análise do Discurso na vertente francesa (AD), além

dos procedimentos metodológicos da pesquisa.

Em seguida, o capítulo 2 trata da questão da mulher e o esporte frente ao processo

civilizador. Para o entendimento de um breve momento na história, é feito um recorte e

passa-se a relatar e discutir a organização do desporto adaptado e como os organismos

internacionais, a partir de 1994, tratam da mulher no esporte e apontam caminhos para

fortalecer os espaços já conquistados.

Depois de conhecer o método e ter um panorama sobre o processo civilizador e o

envolvimento feminino no esporte, a partir do capítulo 3, são apresentadas as analogias

entre as características da relação estabelecidos-outsiders (ELIAS; SCOTSON, 2000) e os

enunciados das atletas. Nesse capítulo, é descrita a representação, a percepção que cada

pessoa faz da posição de seu grupo entre outros e de seu próprio status como membro

desse grupo. No capítulo 4, estão descritas outras cinco características: 1. o fato de que o

grupo estabelecido tende a atribuir, ao conjunto do grupo outsider, as características ruins

de sua porção pior, e, em contraste, sua autopercepção tende a se espelhar na minoria de

seus melhores membros; 2. a possibilidade de um grupo fixar em outro um rótulo de

inferioridade humana e fazê-lo prevalecer; 3. o estigma social imposto pelos estabelecidos

aos outsiders costuma penetrar em sua autopercepção e, com isso, enfraquecê-lo e

desarmá-lo; 4. a semelhança do padrão de estigmatização gerada pelas próprias condições

de sua posição de outsiders e pela humilhação e opressão que lhe são concomitantes; e, 5.

sujeição a padrões específicos de conduta, ou seja, esse é o preço a ser pago por cada

membro do grupo estabelecido.

No capítulo 5, é feita a análise de outras características comuns na relação

estabelecidos-outsiders e os enunciados das atletas. São discutidas: 1. a anomia ou a

10

Page 21: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

situação das pessoas mal-integradi1s; 2. proteção da identidade grupal; 3. diferença

acentuada na coesão entre os grupos e equilíbrio instável de poder. De uma forma geral,

nesse capítulo, é analisada a questão que nos colocam ELIAS e SCOTSON (2000): como e

por que os indivíduos percebem uns aos outros como pertencentes a um mesmo grupo e

se incluem mutuamente dentro das fronteiras grupais ao dizer nós, enquanto, ao mesmo

tempo, excluem outros indivíduos, a quem percebem como pertencentes a outro grupo e a

quem se referem coletivamente como eles?

E, finalmente, nas Considerações fmais, são recuperados os subsídios mais centrais

do referencial teórico e outros dados identificados no decorrer do estudo. São colocados

ainda alguns aspectos que denominamos de outras facetas, que nada mais são do que

elementos que vêm conoborar na apreciação conclusiva e apontar outras perspectivas de

análise.

ll

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Page 23: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

CAPÍTULO I

Método

O método utilizado neste trabalho foi fundamentado na Teoria Sociológica de

Norbert Elias. A pretensão central foi articular essa teoria com a fala das atletas

paraolimpicas. Portanto, para promover essa aproximação, buscamos alguns subsídios na

Teoria de Análise do Discurso, segundo a vertente francesa de Michel Pêcheux. A

primeíra parte do capítulo tratará dos elementos norteadores da Teoria Sociológica de

Norbert Elias e a segunda parte, dos procedimentos metodológicos utilizados.

1. Fundamentos teóricos do método

Teoria de Norbert Elias

Norbert Elias nasceu em 1897, em Breslau, antiga cidade alemã, hoje pertencente à

Polônia. Autor de urna obra extraordinária, perseguiu ao longo de sua vida temas variados

e enfrentou múltiplos desafios analíticos.

Alguns dos aspectos dos diferentes e variados enfoques de Norbert Elias

(WAIZBORT, 2001) são: sua sociologia, que se revela um modelo geral para processos de

longa e longuíssima duração; a teoria dos processos entrelaçada com urna teoria das

figurações; percepção para os ruicrofenômenos conjungando perspectivas ruicro e

macrossociológicas; a formulação do conceito de sociogênese, relacionando-a à

dependência mútua; a formação do Estado moderno como processo; as relações de poder;

a retomada da discussão clássica das Ciências Sociais sobre a relação indivíduo e

sociedade.

Elias afirma, ao referír-se às teorias sociológicas do conhecimento, que é preciso

quebrar a tradição segundo a qual cada pessoa, em termos de seu próprio conhecimento, é

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run começo. Ninguém é. Cada pessoa parte da palavra e entra na preexistente corrente do

conhecimento, a qual ela pode melhorar e arunentar. Trata-se sempre, entretanto, de run

fundo de conhecimento já existente que avançou ou é levado a declinar (ELIAS, 1998, p.

27-28).

Sociologia figuracional é a teoria proposta por Elias em que os conceitos de

configuração e interdependência formam a base para o entendimento de sua tese. O

conceito de configuração refere-se à "teia de relações de indivíduos interdependentes que

se encontram ligados entre si a vários níveis e de diversas maneiras" (ELIAS; DUNNING,

I 992, p. 25). A noção de interdependência desenvolvida por ele está ligada à idéia de que

nós fazemos parte uns dos outros. Fazer parte uns dos outros significa que não existe eu

sem tu, sem nós, sem ele, que cada pessoa singular é um elo na cadeia de relações que

ligam as pessoas runas às outras, uma verdadeira rede de relações ou um todo relaciona!.

Viver juntos, em dependência mútua, é runa condição básica para todos os seres humanos

(ELIAS, 1994 ).

Configuração e interdependência são conceitos que se relacionam, segundo Elias,

por formarem essa rede de relações a que ele se refere e que é definida da seguinte

manerra:

A rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga. Elas formam o nexo do que aqui é chamado configuração, ou seja, uma estrutura de pessoas mutuamente orientadas e dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou menos dependentes entre si, inicialmente por ação da natureza e mais tarde através da aprendizagem social, da educação, socialização e necessidades recíprocas socialmente geradas, elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer, apenas como pluralidades, apenas como configurações. (ELIAS, 1994b, p. 249)

Para fundamentar a teoria dos processos de civilização das sociedades ocidentais,

Elias abrange dois temas e afirma a inter-relação entre eles: a mudança no controle das

emoções - com estreita relação com o entrelaçamento e interdependência crescente entre

os indivíduos - e a organização das sociedades ocidentais sob a forma de Estados

Nacionais.

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Em seu estudo sobre a sociedade cortesã, Elias demonstra que, com o aumento das

interações humanas, há necessidade de se lidar com vários tipos de pessoas, resultando

em diferenças de comportamento (à mesa, o costume de cuspir e assoar o nariz, a vida

sexual, a agressividade ). Essas práticas passaram a regular o comportamento refinado dos

mais abastados em referência ao comportamento vulgar dos menos favorecidos. Um novo

tipo de pressão social que os homens passam a exercer entre si (SOUZA, I 997).

A mudança no controle das emoções e a formação dos Estados Nacionais são

processos interdependentes e nos conduzem à compreensão de que civilização é um

processo continuo e inacabado. Neste sentido, Elias afmna que só quando as tensões entre

(e dentro) dos Estados forem dominadas é que haverá a possibilidade de que a regulação

das paixões e da conduta do homem em suas relações seja limitada àquelas orientações e

proibições que são necessárias para manter o alto nível de diferenciação e

interdependência funcional, sem o qual, mesmo os atuais níveis de conduta civilizada na

coexistência humana não poderiam ser mantidos e ainda menos superados. Portanto,

... a civilização não é ·~razoável", nem "racional", como também não é "irracional". É posta em movimento cegamente e mantida em movimento pela dinâmica autônoma de uma rede de relacionamentos, por mudanças específicas na maneira como as pessoas se vêem obrigadas a conviver. (ELIAS, 1993, p. 195)

O estudo da relação do indivíduo em sociedade foi um dos principais focos de

reflexão da teoria eliasiana. Uma idéia inovadora que encontrou resistência entre os

estudiosos da época. O próprio Elias comentou" ... em sociologia é preciso ver as coisas

na perspectiva do 'eu', na do 'eleíela', na do 'nós' e na terceira pessoa do plural- e tudo

isso simultaneamente. Parece-me uma excelente idéia, mas tal coisa não era acolhida

favoravehnente;" (ELIAS, 2001, p. 75). Superar intelectualmente a polarização entre

individuo e sociedade é para Elias um "objetivo tão fácil como ovo-de-colombo e tão

dificil como a revolução copemicana" (ibidem, p. 149).

No plano das palavras, indivíduo e sociedade são, para Elias, termos que ainda

existem como duas entidades distintas. Ele os concebe como níveis diferentes, mas

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inseparáveis do universo humano. Para compreender isto, é necessário desistir de pensar

em termos de substâncias isoladas únicas e começar a pensar em termos de relações e

funções (ELIAS, 1994). Os indivíduos fazem a sociedade e a sociedade faz os indivíduos,

ou seja, indivíduo na/em sociedade e sociedade no indivíduo (WAIZBORT, 2001 ). Por isso,

para Elias,

O conceito de configuração foi introduzido exatamente porque expressa mais clara e inequivocamente o que chamamos de "sociedade" que os atuais instrumentos conceituais da sociologia, não sendo nem uma abstração de atributos de individuas que existem sem uma sociedade, nem um "sistema" ou "totalidade" para além dos indivíduos, mas a rede de interdependências por eles formada. (ELIAS, 1994b, p. 249)

Tais conceitos são pólos de orientação para que, por um instante, o observador se

concentre sobre os indivíduos que formam um grupo e, em seguida, sobre o grupo que

eles formam juntos.

A partir do pensamento de Norbert Elias, podemos pensar algumas questões

sociológicas em relação à formação dos grupos sociais: de que maneira os indivíduos

garantem seus comportamentos nos diferentes lugares que freqüentam, em suas diversas

relações sociais, e nos lugares onde estão inseridos sem confundir lugares, indivíduos e

comportamentos que devem ter em cada situação especificamente?

Esta questão é ainda mais delicada quando os indivíduos são socialmente

estigmatizados: de que maneira esses indivíduos se deslocam socialmente e, a partir disso,

como se relacionam com os demais quando são considerados como incapazes, como

indivíduos deslocados? Como, onde e em que espelhos os indivíduos se percebem e

percebem o olhar dos outros? São muitas perguntas para serem respondidas. Por isso, é

importante enfatizar que, em Elias, a abordagem se fundamenta na busca das inter­

relações e interdependências em que os indivíduos estão continuamente moldando e

remoldando uns aos outros, pois "a relação entre os indivíduos e a sociedade é uma coisa

singular. Não se encontra analogia em nenhuma outra esfera da existência" (ELIAS, 1994,

p. 25).

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Para Elias, todos os indivíduos nascem num mundo social já construido, já

estabelecido, e, a partir daí, passam a estar imersos numa cultura que fornece

instrumentos para interpretar e agir nesse mesmo mundo. Normas, valores e significados

são repassados e assimilados pela rede de interações em que vivem. A teoria eliasiana

trata da interdependência em processo de mudanças de forma dinâmica. Trata dos

indivíduos vivendo em redes e formando diferentes configurações, sempre permeadas

pelas relações de poder. Os humanos são inseparavelmente interdependentes como

espécie. Sem vínculos de interdependência eles não podem nascer nem sobreviver.

Indivíduos e figurações se complementam mutuamente. Eles são parte do mesmo

fenômeno a que Elias fez referência, chamando-o de "sociedade de indivíduos"

(DUNNING, 1999).

Não é tarefa simples refletir sobre o indivíduo em sociedade, pois requer um

esforço peculiar do pensamento, na medida em que cada um de nós tem hábitos mentaís

demasiadamente arraigados (por exemplo, a dicotomia indivíduo e sociedade) (ELIAS,

1994).

Nas modernas sociedades, o significado social do esporte se acentuou,

apresentando, pelo menos, três aspectos inter-relacionados: I) é um dos principais meios

para produzir uma excitação agradável como uma das maneiras de destruir a rotina; 2) é

uma forma de identificação coletiva; 3) é uma das principais fontes de significado na vida

de muitas pessoas. O esporte, em si, é capaz de proporcionar a identificação do grupo, ou

seja, mais precisamente a formação da idéia de se pertencer ao grupo, de estar fora do

grupo, o nosso grupo ou do grupo deles, no quadro de uma variedade de possibilidades de

níveis, como municipal, estadual, regional, etc. (ELIAS; DUNNING, 1992).

Há razões para se crer que, num contexto complexo, fluido e relativamente

impessoal da moderna sociedade industrial, associar-se ou identificar-se com um time (de

futebol, por exemplo) pode prover as pessoas de um importante apoio de identificação,

uma fonte de sentimentos nossos, um senso de pertencimento e uma fonte de sentido na

vida de muitas pessoas. E também que o esporte pode contribuir com funções de

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urbanização e socialização, em que as pessoas podem se encontrar e estabelecer vínculos,

mesmo que, algumas vezes, fugazes e em contextos que são altamente impessoais

(DUNNING, 1999).

Da teoria figuracional de Elias, destacam-se, para fins deste estudo, os

pressupostos relacionados à questão do gênero e do esporte e que são propostos por

DUNNING (1999, p. 226-227):

1. as primeiras suposições figuracionais centrais em relação a gênero estão

relacionadas à idéia de que, como quaisquer outras relações sociais, as relações

entre homens e mulheres são fundamentalmente afetadas pelo caráter e, sobretudo,

pela estrutura da sociedade em que vivem. O tipo de economia, por exemplo, se

baseada em uma ou outra variante capitalista ou socialista, juntamente com o nível

de desenvolvimento econômico dessa sociedade, é sumamente relevante. Também

é relevante a posição dessa sociedade em relação a outras e o seu grau de

beligerãncia ou pacificação em relações íntersociais. De modo geral, a guerra,

íncluíndo guerras civis e revoluções, tende a favorecer os homens e a paz, a

favorecer as mulheres. Outro argumento crucial, no entanto, é se tal sociedade tem

um Estado e, se o possui, o grau em que esse Estado conseguiu um efetivo

monopólio das forças fisicas e em correlação, uma efetiva taxação; esses são os

principais meios de regulação de uma sociedade, acima de um certo nível de

complexidade, e cruciais para os graus de pacificação íntema;

2. quanto à ínterface entre o natural e o aprendido/cultural, apesar do nível corrente

de conhecimentos permanecer rudimentar, as relações de gênero e identidades são

construídas e parcialmente determinadas em tomo do substrato biológico. Umas

das implicações disso é a radical ínterdependência entre homens e mulheres,já que

necessitam uns dos outros para o propósito de reprodução e continuação da

espécie;

3. assun como em outras ínterdependências humanas, a ínterdependência entre

homens e mulheres será melhor conceituada levando em conta que envolve um

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nível fundamental de equilíbrio dinâmico de poder (no sentido essencialmente

dinâmico, relacional e relativo caráter do poder);

4. em qualquer sociedade, no âmago da dinâmica da balança de poder entre os sexos,

encontram-se não só as capacidades relativas de homens e mulheres no controle

econômico, político e das fontes simbólicas e ideológicas, mas também suas

capacidades relativas de usar a violência e favorecer a importância do sexo com o

outro ou ainda de recusá-los.

DUNNING (1999) acredita que há razões para crer que, nas sociedades industriais

dos últimos duzentos anos, o esporte passou a ser, cada vez mais, um fator a incrementar

a formação da identidade masculina. Nos últimos anos, com o aumento da entrada das

mulheres nessa área, exclusivamente masculina em outros tempos, o esporte tomou-se um

lugar de embates em que situações importantes de identidade de gênero são observadas.

Elias como método de análise

A relevância de Elias para a sociologia se mostra no aparato temático e conceitual

que ele oferece: um modelo geral para abordagens de processos de longa e longuíssima

duração, a severa defesa de uma teoria dos processos entrelaçada com uma teoria das

figurações, a retomada das questões sobre individuo em sociedade, das relações de poder,

das perspectivas micro e macrossociológicas, dentre outros enfoques (W AIZBORT, 2001 ).

Em sua teoria sobre o processo civilizador, Elias argumenta que a dinâmica dos

processos sociais de longo prazo deriva do entrelaçamento dos conjuntos de atos

individuais. Cada um desses atos contém algo de intencionalidade, mas o resultado

coletivo, a direção do processo social de longo prazo, não é planejado. Para o autor,

... nada na história indica que essa mudança ocorrida com o ser humano em longo prazo tenha sido realizada "racionahnente", através de qualquer educação intencional de pessoas isoladas ou de grupos. A coisa aconteceu, de maneira geral, sem planejamento algum, mas nem por isso sem um tipo específico de ordem. (ELIAS, 1993, p. 193)

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Essa ordem social que determina o curso da mudança histórica é que está

subjugada ao processo civilizador. Por isso, Elias propõe uma interpretação do processo

civilizador no sentido de uma tendência crescente ao domínio da vida afetiva e do

autocontrole (SOUZA, 2001).

Para Elias, as forças irresistíveis do entrelaçamento social conduziram à

transformação da sociedade do Ocidente numa única e mesma direção desde a época da

máxima desintegração feudal até o presente. Portanto, "o entrelaçamento continuo de

atividades humanas atuou como uma alavanca que, ao longo dos séculos, produziu

mudanças de conduta na direção de nosso padrão" (ELIAS, 1993, p. 272).

Neste sentido, GOUDSBLOM (2000) propõe existir a possibilidade de distinguir

entre três níveis para nos referirmos a um processo civilizador: o individual, o

sociocultural e o civilizador.

Primeiro, no nível individual, é possível percebermos que cada individuo nasce

com a capacidade e necessidade de aprender. Mostrar o aprendizado de ser atleta

paraolirnpica, por exemplo.

O indivíduo tem que aprender a interpretar as impressões sensoriais que lhe

chegam do mundo exterior, bem como os impulsos internos que se originam

simultaneamente a elas. Quando uma criança adquire gradualmente uma certa

possibilidade de autocontrole, um meio de regular suas próprias impressões e impulsos,

isto deve ser considerado como um processo individual. No decorrer desse processo, a

criança aprende a viver de acordo com as condutas vigentes, padronizadas na sociedade e

nos grupos sociais nos quais ela cresce.

Entretanto, as condutas padronizadas, em qualquer sociedade, em qualquer tempo,

não são eternamente imutáveis. Podemos, portanto, inferir que as normas sociais que os

indivíduos adquirem pela aprendizagem são, em si mesmas, resultantes do processo

histórico ou, para empregar a terminologia de Elias, do processo civilizador, estendido

por muitas gerações.

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No segundo nível, encontramos o processo sociocultural, por meiO do qual

padronizações de condutas são transmitidas de uma geração para a outra e também o

rumo que esta padronízação deve tomar, rápida ou vagarosamente, conforme cada caso.

Segundo Goudsblom, a história humana não oferece nenhum exemplo de um grupo

inteiramente sem normas ou de uma sociedade completamente "in civilizada".

O terceiro nível é aquele em que o processo civilizador deve ser discernido: é o

nível de uma história humana mais ampla. É igualmente valioso examinar, nesse caso, se

a teoria de Elias pode ser aplicada a esse terceiro nível, que, por sua vez, abrange também

o primeiro (o individual) e o segundo (o sociocultural) (GOUDSBLOM, 2000).

Assim, os processos de civilização são considerados uma característica uníversal

das sociedades humanas, pois

... onde quer que vivam, desde que pessoas morem juntas, formam "unidades de sobrevivência". Adquirem competências que lhes permitem sobreviver, particularmente, nos nichos onde se encontram. (OOUDSBLOM, 2001, p. 243)

Quando se fala em processo civilizador, fala-se em aprender 'segredos' de

sobrevivência e transmiti-los à geração seguinte. Trata-se dos procedimentos, da maneira

de viver que as pessoas impõem às outras e a si mesmas e de regimes que permitem

enfrentar os problemas da vida.

No encadeamento do processo de transnrissão de tais conhecimentos, esses

comportamentos podem sofrer maiores ou menores mudanças. Portanto, do mesmo modo

que a mudança, a continuidade também é parte do fluxo desses processos. A abordagem

sociológico-processual fundamenta-se no reconhecimento de que, no plano dos grupos

humanos, das relações entre pessoas, não se pode proceder com a ajuda de conceitos ou

de um processo de conceituação como o utilizado nas leis clássicas, "estas podem mudar

com relativa rapidez. São diferentes em diferentes épocas e lugares" (ELIAS, 1994, p.

144).

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A teoria eliasiana aborda, como já vimos, questões como as relações entre o poder,

as emoções, os comportamentos e o habitus num processo de longa duração. Portanto,

para entendermos o pensamento de Elias, é fundamental a compreensão de alguns

conceitos, como a noção de interdependência desenvolvida por ele, a qual está ligada à

idéia de que nós fazemos parte uns dos outros. Para o autor, "uma das condições

fundamentais da existência humana é a presença simultânea de diversas pessoas inter­

relacionadas" (ELIAS, 1994, p. 27). Conseqüentemente, fazer parte uns dos outros

significa que não existe eu sem tu, sem nós, sem eles, ou, como já dissemos, que cada

pessoa singular é um elo na cadeia relaciona! que liga uns aos outros numa verdadeira

rede de relações, formando um todo relaciona!. A verdadeira vida da sociedade situa-se

nessas relações que se estabelecem entre os singulares, em eterno processo e nos

infindáveis modos de interação entre os homens (WAIZBORT, 2001).

Em Elias, a interdependência é uma característica da vida humana profundamente

enraizada. Viver juntos em dependência mútua é uma condição básica para todos os seres

humanos. Não podemos imaginar a sociedade, como tantas vezes acontece,

essencialmente como uma sociedade de indivíduos que nunca foram crianças e que nunca

morrem. Segundo ELIAS ( 1994 ), a chave para a compreensão do que é a sociedade está na

historicidade de cada individuo e no fenômeno do crescimento até a idade adulta.

Como as investigações de Elias estão sempre voltadas para a longa duração, estão

baseadas na estrutura da personalidade humana e nas mudanças do comportamento no

sentido de uma disciplinarização do individuo. No entanto, essas mudanças do

comportamento não ocorrem apenas no interior de cada pessoa, ou seja, elas estão ligadas

ao desenvolvimento das estruturas sociais (LUCENA, 2002). Neste sentido,

... essas transformações da consciência tanto são históricas, no sentido de que sociedades inteiras passaram ou ainda passam por elas atualmente, quanto pessoais, no sentido de que toda criança as atravessa ao crescer. (ELIAS, 1994,p. 99-100)

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Desde o momento em que nasce, uma criança depende de outros para sobreviver.

Ela pode não gostar das limitações impostas pela sua forte dependência social, mas não

tem escolha. Devido às suas próprias necessidades está amarrada a outros seres humanos

- aos seus pais em primeiro lugar e, por meio deles, a muitos outros, a maioria dos quais

pode ficar desconhecida para a criança por muito tempo, talvez para sempre. Toda a

aprendizagem da criança - aprender a falar, a pensar, a sentir, a agir - acontece num

cenàrio de dependências sociais. Portanto, como resultado do próprio núcleo de suas

personalidades, as pessoas estão ligadas umas às outras (DUNNING, 1999).

De fato, a interdependência precede o nascimento e é constitutiva na construção da

personalidade e dos hábitos individuais. Cada indivíduo nasce à mercê da

interdependência sexual dos pais, dentro dos laços de interdependência de alguma forma

de família. E, na convivência com as pessoas da família e com outras pessoas, é que esse

individuo pode perceber-se como diferente dos demais.

E essa percepção de si como pessoa distinta das outras é inseparável da consciência de também se ser percebido pelos outros, não apenas como alguém semelhante a eles, mas, em alguns aspectos, como diferente de todos os demais. (ELIAS, 1994, p. 160)

Pensar a interdependência com Elias é pensar no ser humano interativo.

Outra noção importante na teoria eliasiana é o de configuração, que significa a rede

de interdependências formada pelos indivíduos. Essas configurações podem ser internas

ou externas a um determinado grupo e são conseqüências inesperadas das inúmeras

possibilidades de interações sociais vividas pelo individuo ou pelo grupo (ELIAS, 1995).

A configuração permite simultaneamente identificar os diversos modos de inter­

relação e ultrapassar as separações teóricas entre o indivíduo e a sociedade. Por isso,

... dizer que os iodivíduos existem em configurações significa que o ponto de partida de toda iovestigação sociológica é uma pluralidade de iodivíduos, os quais, de um modo ou de outro, são ioterdependentes. (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 184)

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Desta forma, o poder está situado, sempre como elemento fundamental de qualquer

configuração, nas relações - de tensão e de poder - que se estabelecem intergrupos e

intragrupos.

Uma "teoria das relações entre os homens" não pode prescindir justamente daquilo que faz da sociedade, sociedade, e dos homens, homens: do jogo de forças que constitui as relações humanas. (WAIZBORT,200l,p. 110)

É possível compreender a relação estabelecida entre individuos em sociedade se

ambos forem considerados como componentes de um processo, como entidades em

contínuo estado de mutação. Elias pressupõe a constante e intensa interação dos

indivíduos- e diferentes grupos- numa relação de interdependência (DUNNING, 1999).

Interdependência e configuração: ambas formam um conjunto de relações que se

estabelece a cada momento entre pessoas e grupos, são sempre relações em processo, isto

é,

... elas se fazem e desfazem, constroem, se destroem, se reeonstroem, são e deixam de ser, podem se refazer ou não, se articular ou não. As relações nunca são sólidas e petrificadas; a cada instante ou elas se atualizam, ou se esgarçam, ou se fortificam, ou se mantêm, ou se enfraqueeem. (WAIZBORT,200l,p.92)

Que indivíduos formam um grupo? E que grupo eles formam juntos?

Estudar os grupos permite compreender as condições de aparecimento de estruturas

de poder, de comunicação, de status e a expressão indireta de sentimentos percebidos na

coletividade. Ou seja, é um lugar privilegiado para investigar não só sentimentos, atitudes

e conflitos como também a coletividade mais ampla, no sentido de que é possível

perceber no grupo o que pensa e diz a sociedade a seu respeito. Entretanto, é preciso

lembrar que o grupo não é uma totalidade fechada que elimina as diferenças, pelo

contrário, sua configuração é provisória, dinâmica, rompe-se a todo instante e altera o

equilíbrio (ELIAS, 1994 ).

24

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A abordagem figuracional de Elias, sintetizada por DlJNNING (1999), considera

pelo menos dois sentidos, duas direções. O primeiro sentido consiste no fato de que a

sociologia figuracional é coerente em explorar as ligações entre a biologia, psicologia,

sociologia e história dos seres humanos. Essa abordagem é fundamentalmente baseada no

reconhecimento de que a evolução tem equipado biologicamente os humanos como seres

sociais, um fato que toma possível aumentar o conhecimento, as sociedades e as culturas

que formam, desenvolvem e transformam. No entanto, os conhecimentos podem ser

esquecidos e as sociedades podem regredir, mas isso é menos importante para os

presentes propósitos do que o fato de que a sociologia figuracional reconhece que o que

nós chamamos história envolve progresso ou regressão ou uma combinação simultânea

de ambos, dependendo, no fundo, do fato de que o processo cego (ou não planejado) de

evolução tem equipado os homens biologicamente com a capacidade de aprender.

Na esfera do esporte, esta perspectiva inclui a relação entre a herança genética e a

aprendizagem social na determinação do talento esportívo. A síntese figuracional aponta

ainda para a essência da questão de como e por que os seres humanos têm a necessidade

de atividades como o esporte. Considera-se o fato de que um processo de evolução

biológica não planejado tenha dirigido o Homo sapiens para ser não só uma espécie que

dependa amplamente da aprendizagem sociocultural para sua sobrevivência, mas também

um ser cujo organismo requer estímulos - por meio da companhia de outros seres

humanos - a fim de funcionar satisfatoria e partícularmente. Neste sentido, o esporte

surgiu como um dos meios de prover tais estímulos (DUNNING, 1999).

Na verdade, como Elias e Dunning apontam, o esporte aparece para ser uma

atividade de lazer de decisiva significância no contexto da altamente controlada,

rotiuizada e sedentária sociedade urbana-industrial de hoje.

O segundo sentido consiste no fato de que a abordagem figuracional envolve uma

tentativa de congregar os melhores aspectos da sociologia moderna e clássica. Alguns

exemplos desse investimento são:

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1. o processo social cego ou não planejado de longa duração: Elias escreveu que cada

pequeno passo, no curso da história (de curto prazo), foi determinado pelos desejos

e planos de pessoas e grupos isolados; quando considerados em longas extensões

temporais, eles tendem para uma direção única que nenhuma pessoa ou grupo,

isoladamente, desejou ou planejou. Essa direção única se percebe "de planos

emergindo, mas não planejada. Movida por propósitos, mas sem fmalidade"

(ELIAS, 1994, p. 59);

2. o conceito de função: para Elias, função é um conceito inerentemente relacional.

Tal como o conceito de poder, o conceito de função deve ser entendido como um

conceito de relação. Somente podemos falar em funções sociais quando nos

referimos a interdependências que envolvem as pessoas com diferentes

intensidades. É impossível compreender a função que A executa para B sem

considerar a função que B executa para A Diretor de fábrica, mecânico, dona-de­

casa, amigo, filho, pai, etc. são funções que uma pessoa exerce para outras, um

individuo para outros indivíduos (ELIAS, 1994). Neste sentido, o conceito de

função relaciona-se com o conceito de poder;

3. o conceito de poder: as pessoas ou grupos que exercem funções para os outros,

exercem mutuamente coação. Seu potencial para assegurar o que eles precisam é

geralmente desigual, o que significa que o poder de coagir de um lado é maior do

que o do outro. A coação pode acontecer quando um grupo exclui o outro das

chances de poder e de status, conseguindo monopolizar essas chances. Uma de

suas formas é a monopolização do acesso a informações e de como adquiri-las.

Comunicação e transmissão do saber de um grupo para outro ou de um individuo

para outro indivíduo não dizem respeito apenas ao processo cognitivo de

transmissão, mas incluem sempre as relações de poder (ELIAS; SCOTSON, 2000).

4. o conceito de habitus pode ser útil na análise e compreensão do movimento que se

estabelece entre os diferentes indivíduos de uma mesma sociedade e também o que

há de singular e comum entre esses indivíduos. Em outros termos, "cada pessoa

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singular, por mais diferente que seja de todas as demais, tem uma composição

específica que compartilha com outros membros de sua sociedade" (ELIAS, 1994,

p. 150).

5. o modelo chamado de configuração estabelecido-outsider (ELIAS; SCOTSON,

2000): esse modelo é uma tentativa de estabelecer as fimdações para uma teoria

mais geral, que pudesse ser capaz de esclarecer os aspectos comuns de classe,

etnia-racial, desigualdades de gênero e outros tipos de desigualdades.

Publicado em 1965, Os estabelecidos e os outsiders é um estudo sobre uma

comunidade urbana dos arredores de Londres, de aproximadamente cinco mil habitantes,

designada com o nome de Wiston Parva. A partir desse estudo, Elias e Scotson

... empreenderam uma reflexão teórica ambiciosa, que revolucionou os rumos da teoria social contemporãnea. O texto trata sobre os tópicos candentes das desigualdades e das relações de poder delas decorrentes. (MICELI, 2000, p. I)

O objetivo da pesquisa era compreender os princípios da diferenciação social que

dividiam os moradores do povoado. Segundo Elias e Scotson, o que fazia desse um caso

exemplar era o fato de que, segundo os indicadores sociológicos usuais (como renda,

educação, ocupação etc.), a comunidade era tida como relativamente homogênea, mas

apresentava, em seu interior, uma clara divisão: um grupo morava no local desde longa

data (estabelecidos) e outro grupo havia chegado depois ( outsiders ). Portanto, a distinção

se fazia por um princípio de antiguidade e entre ambos os grupos estabelecia-se uma

relação de complementaridade e conflito. A rejeição entre eles era um elemento essencial

na definição da identidade de cada um: o status superior dos estabelecidos e o status

inferior dos outsiders (NEIBURG, 200 I).

Sendo assim, nessa pequena comunidade, observou-se a situação de tensão

estabelecidos-outsiders, ou seJa, o grupo estabelecido atribuía a seus membros

caracteristicas humanas superiores, excluindo todos os membros do outro grupo do

contato social (não lhes dirigiam a palavTa e excluíam-nos dos cargos de poder das

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associações locais), e o controle social era mantido por meio de fofocas de tipos elogiosas

e/ou depreciativas. A fofoca elogiosa era utilizada pelo grupo estabelecido para apoiar e

elogiar as pessoas aprovadas dentro do próprio grupo. Já a fofoca depreciativa era

utilizada pelo grupo estabelecido para enfatizar os clichês, o estigma, e afetar a identidade

coletiva dos outsiders. Fica especialmente claro que as fofocas serviam como obstáculos à

integração entre os grupos. Essa prática manifesta o grau de coesão do grupo porque,

quanto mais unida for a comunidade, melhor funcionará a fofoca, contribuindo para

aumentar a coesão e rejeitar os outsiders (ELIAS; SCOTSON, 2000).

A peça central da figuração estabelecidos-outsiders é um equilíbrio instável de

poder, com as tensões que lhe são inerentes. Segundo Elias e Scotson, nessa relação, é

possível perceber, em muitos contextos diferentes, características comuns e constantes.

Uma das características constantes é o fato de que o grupo estabelecido tende a atribuir ao

conjunto do grupo outsider as características ruins de sua porção pior, por outro lado, a

auto-repesentação do grupo estabelecido tende a se espelhar na minoria de seus melhores.

No caso de Winston Parva, a superioridade de forças do grupo estabelecido baseava-se no

alto grau de coesão de famílias que se conheciam há duas ou três gerações, em contraste

com os moradores recém-chegados, que eram estranhos, não apenas para os antigos

residentes, como também entre si. Um era estreitamente integrado, o outro, não. A falta

de coesão era usada para excluir e estigmatizar os outsiders.

Sob muitos aspectos, configurações como as estudadas em Winston Parva exercem

um certo grau de coerção sobre os indivíduos que a compõem. Neste sentido, as

configurações que os indivíduos formam entre si exercem algum poder sobre os mesmos

e restringem sua liberdade no âmbito das decisões como resultado da interdependência

entre eles. No caso Winston Parva, os membros de um grupo infamavam os membros do

outro grupo, não por suas qualidades indivíduais, mas devído à sua vinculação a um grupo

que os estabelecidos julgavam coletivamente diferente do seu e, portanto, inferior.

28

Page 39: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Assim, a exclusão e a estigrnatização dos outsiders pelo grupo estabelecido eram armas poderosas para que este último preservasse sua identidade e afirmasse sua superioridade, mantendo os outros firmemente em seu lugar. (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 22)

Na mecânica da estigmatização, é necessário considerar o papel que cada pessoa

exerce na posição que seu grupo ocupa entre outros grupos e seu próprio status como

membro desse grupo.

Um grupo só pode estigmatizar o outro com eficácia quando está bem instalado em

posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído. Segundo ELIAS e SCOTSON

(2000), a estigmatização, como um aspecto da relação estabelecido-outsiders, associa-se,

muitas vezes, a um tipo de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido. Ela reflete e,

ao mesmo tempo,justifica a aversão - o preconceito - que seus membros sentem perante

os que compõem o grupo outsider. Neste sentido, o preconceito não pode ser entendido

apenas no plano individual, mas deve ser percebido, ao mesmo tempo, no âmbito do

grupo.

No sentido de organizar as ações de sua investigação, tentando compreender o

processo de mudança das sociedades, Elias buscou e utilizou-se de fontes documentais,

que serviram como evidência empirica e como roteiro de sua pesquisa.

O conjunto das fontes utilizadas não corresponde, para Elias, à realidade, mas à

representação da realidade, que reúne elementos que indicam fortes redes de

interdependência, das quais fazem parte os indivíduos.

Com base na evidência documentária, Elias assegura que é possível compreender o problema existente entre as estruturas sociais, que assumem, respectivamente, um caráter psicológico individual e um certo número de indivíduos interdependentes. (SOUZA, !997, p. 395)

Para promover conexões entre a Teoria Sociológica de Norbert Elias e a fala das

atletas paraolímpicas, alguns conceitos da Análise do Discurso (AD) foram adotados

como ponto de apoio.

Mas, o que é o discurso? " ... o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as

lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual

29

Page 40: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

nos queremos apoderar." (FOUCAULT, 2000, p. 10). Sendo o objeto do desejo, o discurso

não é um território homogêneo, com sentidos únicos, mas um local de conflitos e lutas

sociais, em que surgem e transformam-se diferentes significações. É no discurso que nos

apropriamos de conceitos, de valores, etc. que transitam socialmente e são incorporados,

modificados, recusados pelos indivíduos.

O modo como as pessoas se vêem e significam sua existência, conceitos e valores é

circunscrito socialmente, na tensão entre diferentes vozes, que aos poucos vão

encontrando ou não ressonância no indivíduo. A internalízação ocorre com a assimilação

e reelaboração da linguagem, lócus em que transita e se constituí o pensamento

socialmente disseminado (KASSAR, 2003).

Quando se aborda a linguagem como discurso e como prática social, está-se

empenhado não apenas em analisar textos, processos de produção e de interpretação, mas

sobretudo em analisar as relações entre textos, processos e suas condições sociais, no que

diz respeito às circunstâncias imediatas ou remotas do contexto situacional das estruturas

institucionais e sociais.

EmA ordem do discurso, Foucault aponta que nós, modernos, estamos de tal forma

certos da união entre pensamento e discurso que nos é absolutamente claro ser a fala urna

espécie de descrição do mundo, do que se nos apresenta. Não é assim, porém, que as

coisas se dão de fato. As verdades estão sedimentadas nos conceitos, nas def"mições, em

ilusões e metáforas desgastadas. Também Elias empreende a caça aos mitos investida

pelo discurso da sociologia, seja para desobstruí-la de termos e noções inapropriadas

(sistema, interação, função), seJa para persegurr as falsas dicotomias

(liberdade/determinismo, indivíduo/sociedade, sujeito/objeto) (BLONDEL, 2001).

FOUCAULT(2000,p.9)supõe

... que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por função conjurar poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

30

Page 41: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Em outros termos, o discurso é a instância por excelência em que se armam

conflitos, resistências, relações de poder e desejo. O discurso não é a tradução dos

aspectos da vida social, mas sim o terreno em que eles se dão.

Entendido como uma prática social, ele não poderá ser entendido separadamente

das práticas que não são discursivas, visto que a relação do que é com o que não é

discurso é algo que se dá discursivamente e, por conseguinte, é algo que se apresenta no

discurso (CORDEIRO, 2003).

Para FOUCAULT (2000), o discurso é o espaço em que saber e poder se articulam,

pois quem fala fala de algum lugar, a partir de um direito reconhecido institucionalmente.

É um jogo estratégico e polêmico, de ação e reação, de pergunta e resposta e também de

luta. O discurso é, assim, o exercício do poder de estabelecer sentidos, modos de ser,

pensar e viver, pelos quais somos ou não convencidos.

Portanto, o discurso é produto da relação entre os individuos, da interdependência.

A pessoa teria então

... urna linguagem que é inteiramente sua e que, ao mesmo tempo, é um produto de suas relações eom os outros, urna expressão da rede humana em que ela vive. Do mesmo modo, as idéias, convicções, afetos, necessidades e traços de caráter produzem-se no indivíduo mediante a interação com os outros, como eoisas que compõem seu 'eu' mais pessoal e nas quais se expressa ... (ELIAS, 1994,p. 35-36)

Neste estudo, a partir do entendimento do que é discurso, delinearam-se os

conceitos que nortearam os procedimentos de análise das entrevistas. Porém, é importante

deixar claro que a Análise do Discurso de Michel Pêcheux (AD), neste estudo, não foi

utilizada em sua plenitude. E sim, optou-se por alguns de seus fundamentos, por

apresentarem a possibilidade de interface com a Teoria de Elias.

Aproximações entre AD e Elias

Durante um longo período, foi suficiente definir a AD como o estudo lingüístico

das condições de produção de um enunciado. Atualmente, faz-se necessário- para marcar

31

Page 42: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

a especificidade da AD no interior dos estudos da linguagem - levar em consideração

outras dimensões do discurso.

Em seu percurso, a AD atravessou três momentos e atualmente está colocada como

dispositivo teórico visando a constituição de corpus, compreensão das condições de

produção e interpretação, leitura da formação discursiva (pontos de vista e lugares

enunciativos). É relevante apontar que na AD não existe uma divisão entre teoria e

prática, já que ambas estabelecem entre si uma relação dialética (PÊCHEUX et al., 1997).

Complexa e constituída por muitas ferramentas, a AD tem um modo próprio e

muito peculiar de proceder à análise do material, do corpus. Neste estudo, o procedimento

de análise dos enunciados não segue, como já foi dito, a AD em sua plenitude, mas

procura apoiar-se em alguns de seus pressupostos. Trata-se de uma tentativa de olhar para

o grupo de atletas com deficiência a partir de um arsenal teórico, isto é, enxergar relações

essenciais para compreender o discurso das atletas paraolimpicas e seus desdobramentos

nas formas de significação.

Neste estudo, o sujeito do discurso é aquele que identificamos no corpus (material

de análise). Nesta perspectiva, ORLANDI (2001) afirma que o sujeito, ao significar,

significa-se, sendo que sujeito e sentido se constituem em seus processos históricos e

sociais. Não há discurso sem sujeito, nem sujeito sem ideologia.

Desta forma, discurso é o efeito de sentido construído no processo de interlocução

e o enunciado é um conjunto de signos produzidos a partir da interação de indivíduos

socialmente organizados. A enunciação é a emissão desse conjunto; realiza-se num aqui e

agora que jamais se repete e é marcada pela singularidade. Considera-se a enunciação do

sujeito como o correlato de uma certa posição sociohistórica na qual os enunciadores se

revelam substituíveis.

Este enfoque voltado à apropriação do discurso coletivo pelo indivíduo, possibilita

a discussão sobre a subjetividade, a significação e a formação de conceitos sobre o mundo

e sobre si mesmo. A constituição da subjetividade, a significação do indivíduo, é marcada

32

Page 43: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

pelas condições de produção nas qua1s o indivíduo está nnerso, incluindo sua

historicidade (ORLANDI, 1988)

São informações que permitem compreender as condições (históricas) da produção

de um discurso. Nota-se que as condições de produção do discurso são intrinsecas ao

próprio discurso, não estão além ou aquém dele; é na própria estrutura da formação

discursiva que se pode apreender suas intenções e os termos de sua produção.

Para ORLANDI (2001 ), as palavras não têm sentido nelas mesmas, mas derivam das

formações discursivas em que se inscrevem. Por formação discursiva entende-se o

conjunto de enunciados marcados pelas mesmas regularidades, pelas mesmas regras de

formação, definindo "o que pode e deve ser dito" a partir de um lugar social e

historicamente determinado: 1 a ideologia está relacionada com o histórico, carregado de

sentido e evidência.

Neste sentido, Orlandi reafirma que não existe sentido sem sujeito e não existe

sujeito fora da ideologia. O sujeito produz e é produzido pelo discurso. As palavras vêm

sempre de umjá-dito, são sempre as palavTas do outro. O discurso é atravessado por

outros discursos (ORLANDI, 2001), configurando o que é denominado em AD como

interdiscurso, ou seja, o lugar em que se dá a relação de um discurso com outros

discursos, em que o discurso é invadido por elemento(s) que vêm de outro lugar. Sob o

discurso, outros discursos são ditos, pois é tudo um já-dito. Portanto, "o dizer tem sua

história" (ORLANDI, 1988, p. 11 ).

Conseqüentemente, o que está em foco neste estudo é a atleta no momento em que

produz seus enunciados e que é, ao mesmo tempo, produzida por ele, numa relação tensa

e interdependente entre os diferentes papéis sociais que ocupa. Neste sentido, Orlandi

coloca que o sujeito é múltiplo porque atravessa e é atravessado por vários discursos,

1 Em alguns momentos, sempre que parecer útil, será colocado o termo fonnação discursiva como objeto da AD. com o funde diferenciá-lo do termo discurso.

Page 44: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

porque se relaciona dinamicamente com a ordem social da qual faz parte, porque

representa vários papéis ( ORLANDI, 2001 ),

2. Procedimentos metodológicos da pesquisa

A escolha da abordagem qualitativa é uma opção metodológica que se aplica a este

estudo e justifica-se por ser a forma mais adequada para entender a natureza do fenômeno

social em análise.

Esta investigação é constituida de situações complexas e ao mesmo tempo

peculiares. Buscamos compreender os processos dinâmicos vividos pelo grupo social- as

atletas paraolúnpicas - e entender o papel social, o estigma e a relação estabelecidos­

outsiders em Elias.

O instrumento adotado para coleta dos dados inclui entrevista de tipo temática, que

é aquela que versa especificamente sobre a participação do entrevistado no tema

escolhido como objeto principal. Esse tipo de entrevista pressupõe o emprego do método

biográfico e tem como objeto o tema que é abordado a partir da biografia do entrevistado:

um periodo cronologicamente determinado, a função que desempenha, o envolvimento e

a experiência em acontecimentos específicos (ALBERTI, 1989).

2.1 Procedimentos para a coleta dos dados

Circunstâncias

A coleta de dados deste estudo realizou-se no alojamento feminino da delegação

brasileira, na Vila Paraolúnpica, por ocasião dos Jogos Paraolúnpicos realizados em

Sydney, Austrália, em 2000.

As atletas foram entrevistadas antes do inicio dos Jogos, nos dias 13 e 16 de

outubro de 2000. A cada abordagem individual, as atletas eram informadas do objetivo do

estudo e então convidadas a participar naquele momento. A adesão foi total. Foram

34

Page 45: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

El

1E2

E3

E4

E5

E6

entrevistas todas as atletas da delegação, o que corresponde a 1 O mulheres que disputaram

provas nas modalidades de halterofilismo, esgrima, natação, tênis de mesa e atletismo.

Os responsáveis - chefe de delegação e coordenador da equipe de avaliação -

analisaram, concordaram e permitiram a participação das atletas no estudo.

O espaço

O alojamento consistia em mn pequeno prédio de três andares. As atletas com

algmn impedimento para subir as escadas instalaram-se no térreo. Quartos, salas e

banheiros acomodavam atletas, atendentes e uma técnica. As entrevistas aconteceram na

sala ou no quarto, conforme o ambiente em que as atletas se achassem mais confortáveis.

A maioria das entrevistadas não se importou com a presença de mna ou mais

companheiras. Apenas uma atleta foi entrevistada reservadamente.

Cada entrevista teve a duração média de vinte minutos. O equipamento utilizado

foi mn gravador portátil Sony, TCM-20DV, e duas fitas cassetes, Sony, de 60 minutos

cada.

Características gerais do grupo

'IDADE TIPO DE TRABALHA ESCOLARIDADE- ESTADO I REGIAODO I DEFICIÊNCIA SITUAÇÃO ATUAL CIVIL I BRASIL EM QUE '

I MORA 31 DF adquirida Sim 3.0 grau em curso Solteira ' Centro-Oeste

I I

34 DF adquirida Não I 2.0 grau Solteira Nordeste

I não estuda '

25 DF adquirida Não 3.0 grau em curso Solteira

I

Nordeste

i

I 28 DF adquirida Sim L o grau em curso solteira Nordeste

(OI ftlho)

23 DV congênita Não I 2.0 grau em curso Solteira Sudeste

I 26 DV congênita Não L0 grau solteira I Sudeste

não estuda I (01 ftlho) I

35

Page 46: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

E7 29 I DF adquirida

I Não s.• do 1.0 grau Solteira Nordeste

não estuda

ES 29 DF adquirida I

Não 2.0 grau Solteira Sudeste

I i não estuda

E9 19 DV congênita Não 3.0 grau em curso Solteira Sudeste I I

ElO 41 DF adquirida Sim

I Doís cursos de 3.0 Solteira Nordeste

i grau, um em curso

O corpus de análise

Para esta pesquisa, foram utilizados dois instrumentos: uma ficha com dados

pessoais (que originou o quadro acima) e um roteiro geral, um questionário contendo 15

pergtmtas, elaborado exclusivamente para este estudo (em anexo). O roteiro geral serviu

de base para as entrevistas individuais, com pergtmtas fechadas e abertas, permitindo ao

entrevistado espaço para expor suas idéias.

A pesquisadora-entrevistadora procurou desempenhar a tarefa na direção de um

diálogo informal com a entrevistada e a entrevistadora, cujo ritmo foi dado pela interação

entre ambas.

Processamento da forma oral para a escrita

Depois de gravadas, as fitas foram duplicadas e as entrevistas

degravadas/transcritas. A tarefa de transcrição foi realizada por uma única pessoa, usando

um gravador portátil e headphone. Depois da transcrição, realizou-se a conferência de

fidelidade pela pesquisadora e por uma especialista em revisão de textos, a fim de adequar

o transcrito para a leitura, procurando, por meio de uma pontuação adequada, aproximar­

se da entonação e sentido proposto pelo entrevistado. Optou-se por não aplicar as normas

gramaticais na apresentação final das entrevistas.

36

Page 47: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Outras fontes

As fontes, no sentido mais amplo deste termo, foram de fundamental importância

para a construção da análise das entrevistas. A escolha e seleção das fontes permitiram o

encaminhamento metodológico e a dinâmica construtiva do pensamento neste estudo, que

aborda uma breve duração temporal.

As fontes selecionadas foram: documentos e relatórios de orgamsmos

internacionais sobre a mulher e o esporte, revistas científicas e especializadas sobre

deficiência, propagandas, slogans, letra do hino do atleta paraolimpico, fôlderes,

programação oficial dos Jogos Paraolimpicos de Sydney e extenso material de divulgação

dos Jogos Paraolimpicos de Sydney. Tais fontes foram escolhidas por atenderem aos

critérios estabelecidos para este estudo, ou seja, valor, autenticidade e procedência.

Neste estudo, a conexão entre as alterações na estrutura social relacionada à mulher

deficiente no esporte e o comportamento e emoções das atletas (reveladas, por exemplo,

na expressão de rejeição, de aceitação) se faz por meio da teoria de Norbert Elias. Daí a

importância das fontes documentais utilizadas para a análise. Os depoimentos das atletas,

como fonte, por exemplo, são a um só tempo indicadores e expressão do comportamento

e uma das formas de exprimir os sentimentos, portanto, uma prática social.

2.2 Procedimentos de análise

Sobre o material empírico (as entrevistas), aplicamos a análise considerando a

abordagem figuracional estabelecidos-outsíders da teoria eliasiana e as condições de

produção e o interdiscurso em AD.

Como estratégia de análise, procuramos situar as principais fontes e estabelecer um

diálogo com as mesmas. Sendo assim, a partir das fontes (entrevistas e outras)

procuramos contextualizar o momento e enriquecê-lo com dados, fatos e situações

históricas.

37

Page 48: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Por intermédio das entrevistas das atletas paraolimpicas (fonte oral), procuramos

dar voz e trazer à tona os pressupostos teóricos que norteiam a pesquisa, ao mesmo tempo

er~ que se buscou refletir e reconhecer nas fontes selecionadas (por exemplo, o enunciado

das atletas) esses mesmos pressupostos. Portanto, o estabelecimento de uma postura

dialógica entre a pesquisadora, os pressupostos teóricos e as fontes foram cautelosamente

perseguidos neste estudo, a fim de integrar os dados na recomposição de um todo.

Para a anàlise das entrevistas com as atletas com deficiência, participantes dos

Jogos Paraolimpicos de Sydney, optamos por um caminho metodológico que considera o

modelo teórico de Norbert Elias, com foco na abordagem figuracional estabelecidos­

outsiders. E, ainda, para efeito de análise dos enunciados, foram considerados os

conceitos de condições de produção e interdiscurso da Teoria da Anàlise do Discurso na

vertente francesa de Michel Pêcheux.

O ponto de contato entre Elias e a AD, neste estudo, se dá pela noção de

exterioridade do texto (o que se diz) e das condições em que se produz. Em Elias, não há

um eu desprovido de um nós/eles. A interdependência é uma caracteristica da vida

humana profundamente enraizada. Viver juntos em dependência mútua é uma condição

básica para todos os seres humanos. Por outro lado, assim como não há discurso sem

sujeito, este, por sua vez, é múltiplo e constituído socialmente, atravessando e sendo

atravessado por vários discursos.

Os protagonistas do discurso, pela sua inserção como parte de uma ordem social, de uma cultura, não podem ser tomados idealmente, mas sim em relação a um certo lugar que ocupam no interior dessa formação social. Por isso, são, ao mesmo tempo, protagonistas do discurso e protagonistas no discurso: produzem e estão reproduzidos naquilo que produzem. (ORLAc'-'Dl, 1988, p. 11)

Portanto, interdependência e discurso constituem um ponto de contato entre Elias e

a AD, evidenciando a contingência do sujeito no discurso, como dependente e produtor

dessa rede de interdependências.

Para organizar o procedimento de anàlise, foi necessário realizar os seguintes

procedimentos:

38

Page 49: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

1. 0 ) identificação das características da abordagem configuracional estabe1ecidos­

outsiders de Elias e Scotson, a saber: 1. a representação que cada pessoa faz da

posição de seu grupo, entre outros, e de seu próprio status como membro desse

grupo; 2. o fato de que o grupo estabelecido tende a atribuir, ao conjunto do grupo

outsider, as características ruins de sua porção pior e, em contraste, ao produzir

sua própria representação, tende a se espelhar na minoria de seus melhores

membros; 3. a possibilidade de um grupo afixar em outro um rótulo; 4. o estigma

social imposto pelos estabelecidos aos outsiders; 5. a semelhança do padrão de

estigmatização; 6. sujeição a padrões específicos; 7. anomia ou a situação das

pessoas mal-integradas; 8. proteção da identidade grupal; 9. coesão entre os

grupos; 1 O. equilíbrio instável de poder.

2.0) seleção dos enunciados pertinentes para testar a consistência dos postulados

teóricos do modelo figuracional. Procuramos localizar ligações entre o

comportamento das atletas com as alterações que se verificam na estrutura social,

pois "é preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem

sobre o indivíduo" (ELIAS, 1995, p. 18).

3°) análise dos aspectos específicos da configuração à luz dos referenciais teóricos,

em composição com os conceitos destacados da AD. Buscamos assim visualizar as

contradições, as regularidades e os traços característicos da relação figuracíonal.

Feito isto, a estratégia de construção do texto deste estudo articulou-se em cinco

pontos:

I. na análise dos procedimentos utilizados por Elias e Scotson na relação

estabelecidos-outsiders e na revisão das características apontadas pelos

pesquisadores como sendo comuns e constantes a diferentes grupos e contextos.

Em seguida, foi possível relacionar as semelhanças e articular a cada uma delas (as

características) os enunciados das atletas e as idéias de outros pesquisadores, dos

quais destaca-se o estudo de Goffman sobre o estigma;

39

Page 50: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

2. no conceito de interdependência de Elias, ou seja, na relação indissociável e

interdependente entre "indivíduo e sociedade"; na possibilidade de, a partir de cada

interação singular, poder adentrar na teia do todo;

3. nos vários níveis da sociabilidade e conexões entre o micro e o macrossocial, ou

... se tudo está a tudo relacionado, trata-se sempre de buscar os laços dessas relações, trata-se de ver as relações mútuas, os "efeitos infinitamente múltiplos", as interações que ocorrem no mundo e na vida. (WAIZBORT,200!,p. 98)

Buscamos equilibrar os focos de análise característicos da macrossociología - no

campo das ações coletivas, das relações intergrupais, dos padrões abrangentes de

organização e da estrutura social, do grupo e da sociedade (redes manifestas dos

grupos construídos sobre a base de identidades e valores coletivos) e da

microssociología - em sua riqueza de personalidades únicas, exemplares,

indivíduos tomados em sua inteireza, ímersos em paixões, interesses, percepções,

preconceitos, valores, etc. (MICELI, 2001 ).

4. em várias escalas espaciais, do local ao global, na medida em que cada vez mais

há conexões do espaço mundial com os assuntos dos espaços domésticos; uma

interação dos indivíduos e organizações locais com agentes coletivos atuantes em

escalas regionais, nacionais e transnacionais;

5. na expressão e ressigni:ficação de várias temporalidades históricas (o passado, o

presente e o futuro), ou seja, o grupo estudado é enfocado em termos de processos

inovadores, de reprodução ou acumulação de experiências históricas. Na prática,

significa dizer que se buscou explicitar os processos sociais que se estabelecem

entre o individuo e o grupo nos níveis locais, regionais e mundiais, considerando

determinados momentos históricos nos quais as noções de espacialidade e

temporalidade foram redefinidas decorrentes da renovação e inovação cultural (em

tentar determinar um começo absoluto de um lento processo social). Porque

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"processos só podem ser explicados em termos de processos. Não há inícios

absolutos" (ELIAS, 1998, p. 35). Entre esses processos, está o da participação da

mulher no esporte e, sobretudo, da mulher deficiente no esporte.

Neste sentido, buscamos explicitar o fenômeno social no qual estão imersas as

atletas com deficiência (papel social), ao observarmos a relação deficiente/não-deficiente

e atleta deficiente/ deficiente não-atleta.

41

Page 52: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

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t Ano6

Número 17 Dezembro 2000

42

Page 53: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

CAPÍTUL02

A mulher e o esporte: o processo civilizador

e o envolvimento feminino nos esportes

Para observar o processo feminino de envolvimento nos esportes, é preciso ter em

mente que cada época é válida em si mesma; tem sua lógica interna segundo a razão

histórica, suas possibilidades de felicidade, seus riscos de infelicidade, seu sentido ou seu

sem-sentido, e "convém não projetar levianamente sobre outras épocas nossa maneira

particular de julgar a realidade" (MARÍAS, 1981, p. 9).

Proibidas na Antiguidade de participar dos Jogos Olimpicos como atletas e como

espectadoras, o caminho percorrido pelas mulheres foi longo. Desde o princípio, as

mulheres tiveram que se esforçar para ter um pé no mundo do esporte. Isso pode ser visto,

por exemplo, através da ainda dominante presença masculina no esporte e da menor

exposição das mulheres (DUNNING, 1999). A participação maior ou menor da mulher em

atividades esportivas, seja como praticante ou expectadora, variou de cultura para cultura,

de época para época.

Foi a partir da Revolução Francesa e do surgimento da burguesia que a

prosperidade e o desenvolvimento econômico começaram a mudar significativamente o

cotidiano e a vida doméstica da mulher do século XIX, isto é, do mundo desenvolvido. A

iluminação a gás, seguida pela luz elétrica, iluminou todos os cômodos das casas; em

lugar das tinas cheias de água nos lombos dos burros ou das carroças, a água corrente e

abundante passou a sair das torneiras; o frio no interior das residências foi vencido, as

chaminés tomaram-se mais eficazes pois o carvão de pedra superou as limitações da

lenha; apareceram as primeiras cozinhas modernas, com fogão - uma grande placa de

ferro - e suas diversas bocas com discos que regulavam a intensidade do fogo,

conservavam as panelas sempre quentes e permitiam várias possibilidades culinárias. Na

Page 54: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

área médica, a introdução da anestesia e da assepsia facilitou os partos e evitou as

infecções puerperais, diminuindo a mortalidade materna. Nos transportes, os trens

afastaram o perigo das viagens em diligências, tombando pelos caminhos, temíveis em

tempos de gravidez. A invenção da máquina de costura e da de escrever (MARÍAS, 1981)

trouxe, para dentro das casas, afazeres antes possíveis somente fora delas.

De 1875 em diante, as mulheres do mundo desenvolvido visivelmente começaram a

ter menos filhos. "Não obstante, é razoável supor que o fato de ter menos ftlhos foi, na

vida das mulheres, uma mudança mais notável do que a de ver sobreviverem mais ftlhos

seus" (HOBSBA WM, 1988, p. 273 ).

A vida da mulher nessa época melhorou admiravelmente, no entanto, ela continuou

no mundo privado. A condição feminina consistia no fato de que uma mulher só podía

fazer aquilo sobre o que havia um acordo positivo, uma aprovação social. Em outros

termos, a vida da mulher estava muito determinada pelas formas sociais, estritamente

canalizada a um conjunto de possibilidades muito limitado.

Após a década de 1870, tomou-se óbvia a mudança na posição e nas expectativas

sociais das mulheres, principalmente as das classes médias e sua afinidade de idéias com

a burguesia. A campanha ativa em prol do direito feminino ao voto; a notável expansão da

educação secundária para meninas; embora irregular, a incorporação da mulher à cultura

universitária e a identificação com os movimentos operários e socialistas; o direito de sair

para o trabalho e de ter profissão (HOBSBA WM, 1988; MARÍAS, 1981 ).

O afrouxamento das convenções possibilitou uma maior liberdade da mulher

dentro da sociedade. A prática de dançar, social e ocasionalmente, em bailes e o

desaparecimento gradual das barbatanas nas roupas femininas, assim como a socialização

dos corpos em tomo das máquinas para tomar os movimentos mais livres ftrmes, exigindo

o uso de sutiã (criado depois de 191 O), são alguns exemplos. O esporte possibilitou aos

jovens (homens e mulheres) encontrarem-se fora dos limites da casa, alargando o estreito

circulo familiar, pois algumas mulheres tomaram-se sócias de clubes de turismo e

alpinismo. O tênis, inventado em 1873, rapidamente tomou-se o jogo preferido dos

44

Page 55: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

subúrbios da classe média, em grande parte por ser bissexual e, por conseguinte,

promover o encontro de filhos e filhas desse universo social. Em 1884, depois de seis

anos de criadas as disputas simples masculinas, criaram-se as femininas em Wimbledon.

Nessa época, a invenção da bicicleta emancipou mais a mulher do que o homem, assim

como a prática crescente dos esportes de inverno entre as mulheres; as férias em estações

de veraneio possibilitaram os banhos mistos (HOBSBA WM, 1988).

Essas transformações estão associadas a uma lenta mudança na balança de poder

entre os sexos, ao desenvolvimento de modernas formas de controle da natalidade, e às

invenções de máquinas domésticas. DUNNING (1999) coloca que, provavelmente, as

mulheres, ao buscarem o esporte, foram motivadas pelo seguinte:

a) interesse em obter as satisfações miméticas, sociais e de mobilidade que se pode

conseguir através do esporte, juntamente com os ganhos relacionados com a

identidade e autoconceito que podem advir dessas atividades;

b) igualdade de oportunidades como resultado das limitações impostas

tradicionalmente aos papéis femininos.

O ideal do amadorismo, que reunia classe média e nobreza, concretizou-se em

1896, nos primeiros Jogos Olímpicos da época moderna. Realizados em Atenas, seguindo

a tradição cultural dos jogos, somente os homens competiram. A participação feminina foi

admitida formalmente em 1900, nos Jogos Olímpicos de Paris, em que 19 mulheres

competiram em dois esportes- o golfe e o tênis ( OL YMPIC, 2003 ).

No final do século XIX e inicio do século XX, mulheres que praticavam esportes

considerados categoricamente inaceitáveis - como o rugby, o boxe e o hockey -, isto é,

esportes que ainda são tidos como inapropriados para mulheres, provavelmente estavam

conscientes da idéia então dominante da implicação entre modalidade e masculinização.

Caso se tomassem feministas ou não, estariam deliberadamente se posicionando contra os

ideais contemporâneos de então (contra o acordo e aprovação social), quanto à

feminilidade e ao habitus feminino.

45

Page 56: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

A condição do esporte como um locus de masculinidade se altera à medida que

aumentam a autoconfiança, a assertivídade e a independência das mulheres no ãmbito de

seu habitus e de seu poder. Em termos organizacionais, à medida que elas ingressavam no

esporte, tais experiências concorreram para questionar as idéias e instituições tradicionais

de preponderância masculina. Para tentar combater a idéia do esporte como reduto

exclusivamente masculino, as mulheres, nos EUA, receberam suporte de alguns homens

influentes. James Naismith, por exemplo, que inventou o basquete, em 1891, como um

esporte de inverno para os jogadores de futebol, proclamou o basquete como um esporte

ideal para mulheres (DUNNING, 1999).

O movimento esportivo feminino ganhou força com uma mulher extremamente

dedicada, a francesa Alice Melliat, que começou a freqüentar os estàdios convencida de

que o esporte auxiliava no desenvolvimento da personalidade, do arrojo e de um espírito

desenvolto. Com o tempo, tomou-se uma excelente esportista e a primeira mulher a obter

o diploma que era concedido a remadores de longa distância. Em 1917, Alice Melliat

fundou a Federação de Sociedades Femininas da França (FFSF). Em 1921, em Mônaco,

ela organizou a Olimpíada Feminina, com a participação de cinco países: Inglaterra,

Suíça, Itália, Noruega e França. Em 31 de outubro de 1921, com o apoio dos Estados

Unidos, Inglaterra, Itàlia, Tcheco-Eslováquia e França, organizou a Federação

Internacional Desportiva Feminina (FSFI). Em 1922, aproximadamente 300 mulheres, de

sete países, participaram da segunda Olimpíada Feminina. Alice Melliat, não contente

com a pouca atenção dada às mulheres nos Jogos Olímpicos de 1928 e 1932, decidiu

realizar, em 1930 e 1934, os Jogos Mundiais Femininos em Praga, Tcheco-Eslováqnia, e

Londres, respectivamente. A FSFI se dissolveu em 1938, pois as provas femininas foram

pouco a pouco incluídas nos Jogos Olímpicos (CARRILLO, 2000).

A partir do incremento do movimento feminista e com o conseqüente

questionamento dos papéis sociais, mesmo as mulheres que rejeitavam o feminismo

passaram a participar de atividades esportivas. Tal situação contribuiu para contestar

46

Page 57: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

antigas crenças, como, por exemplo, a idéia de que as mulheres são o sexo frágil ou que

lhes falta espírito competitivo e coletivo (ALONSO, 2003 ).

O esporte, em sua dimensão social, ainda é um lugar de predominância masculina.

O fato de o esporte ter emergido de um passado de desigualdades, carregado de valores masculinos, influencia na menor participação das mulheres na prática esportiva. (ROCHA FERREIRA, !997, p. 126)

O envolvimento feminino em atividades esportivas ainda é menor que a masculina,

mas vem aumentando lenta e gradualmente. Nos Jogos Olímpicos, por exemplo, em 1900,

eram 19 mulheres participantes (1,6% do total dos participantes); em 1984, 1.567

mulheres (23% do total dos participantes) e 4.069 (38,2% do total dos participantes) nos

Jogos Olímpicos de Sydney (IOC, 2002).

Para avançar na discussão, é necessário esclarecer que, apesar de tabus, crenças e

valores criados em tomo da participação feminina no esporte, o fato de a mulher

participar dessas atividades é uma realidade sociocultural a ser mais investigada.

O esporte é um fenômeno cultural de caráter universal, multirracia1, praticado em

países ricos e pobres. Tem uma lógica própria, isto é, são valores, normas, regras; noções,

ordem, função; problemas de tensão e formas de exercício, e, principalmente, controle do

poder. São traços peculiares presentes em maior ou menor intensidade, que podem ser

denominados de estrutura. Entretanto, quando o esporte é colocado desta maneira,

podemos facilmente interpretar que aquilo a que chamamos de estrutura está separado das

pessoas que a constituem, o que não é real.

Considerando a teoria eliasiana, o esporte é uma configuração e como tal há

constante e intensa interação entre os indivíduos que a formam. O esporte como

configuração social apresenta um estado interno, uma forma específica de controle em

diferentes níveis (dirigentes, técnicos, árbitros, atletas, auxiliares, espectadores, etc.), nos

quais há, a todo momento, decisões, intenções e movimentos intimamente entrelaçados. A

dinâmica dessa configuração supõe pessoas individuais em interdependência, pois "as

47

Page 58: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

configurações de indivíduos não são nem mais nem menos reais do que os indivíduos que

as formam" (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 290).

O termo sociológico estrutura é, para ELIAS (1992, p. 230),

... a configuração de pessoas individuais interdependentes que constituem o grupo ou, num sentido mais vasto, a sociedade. Aquilo que designamos pelo termo de "estrutura" quando consideramos as pessoas enquanto sociedades não são mais do que "configurações" quando as encaramos como indivíduos.

Ele afirma que as configurações constituem, no estudo do esporte, seu

sustentáculo. Por isso, a partir deste entendimento, adotaremos o termo "configuração"

em referência ao esporte como estrutura e/ou instituição.

As raízes do esporte para deficientes foram lançadas no inicio do século XX e

podem ser identificadas inicialmente por meio de eventos isolados. Em 1918, na

Alemanha, durante a Primeira Grande Guerra, mn grupo de sobreviventes lesionados

reuniu-se para praticar esporte. Há registros de que em 1932, surgiu, na Inglaterra, a

Associação do Golfista de Um-Só-Braço, que não conseguia efetivar a prática dessa

modalidade (COMITÉ OLÍMPICO ESPANHOL, 1994 ).

O esporte como prática para pessoas deficientes efetivou-se sistematicamente por

duas linhas distintas de trabalho, que se formaram a partir da Segunda Grande Guerra e

caminharam paralelamente, cada qual com seu objetivo.

Uma delas, com enfoque médico, foi iniciada na Inglaterra. Em face aos problemas

enfrentados pelos soldados mutilados e os lesados medulares, que tinham uma sobrevida

de no máximo um ano, algmnas ações foram implementadas e, em 1943, o governo

britânico construiu o hospital de Stoke Mandeville, em Aylesbury (GUTTMANN, 1976).

Segundo VARELA (1991), o hospital tinha como objetivo receber e tratar lesados

medulares, vítimas da Segunda Guerra Mundial, e Ludwig Guttmann, neurocirurgião e

neurologista, foi convidado para dirigi-lo (STROHKENDL, 1996; CIDADE; FREITAS, 2002).

A outra linha, com enfoque esportivo, foi desenvolvida nos Estados Unidos por

Benjamin Linpton, em 1946. Veteranos de guerra lesionados iniciaram a atividade de

48

Page 59: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

basquetebol e criaram o primeiro time, "The Flyng Wheels" (rodas voadoras), em Van

Nuys, Califórnia (STROHKENDL, 1996; POOL; TRICOT, 1985). As apresentações públicas

tinham como objetivo despertar o interesse da sociedade para os problemas dos traumas

físicos dos deficientes e, também, estimular outras pessoas deficientes a compreenderem a

sua capacidade de realizar diversas atividades, entre elas o esporte (ADAMS et a!., 1985;

STROHKENDL, 1996).

A prática do esporte moderno - de competição - teve sua origem na Inglaterra e

curiosamente as Paraolimpíadas também.

Quatro anos após a implantação de sua bem-sucedida filosofia, Guttmann

organizou os primeiros Jogos de Stoke Mandeville, em julho de 1948. Participaram desses

jogos os pacientes do hospital Star Garter Home for Disable e os Ex-servicemen de

Richmond, de Londres (hospital para ex-combatentes da Guerra). Esses primeiros jogos

contaram com a presença de 16 competidores com lesão medular, disputando a

modalidade de arco e flecha em cadeira de rodas. Provavelmente, essa competição tomou­

se o símbolo do início das disputas esportivas entre os portadores de deficiência

(GUTTMANN, 1976).

Em 1949, Guttmann revelou interesse em incrementar a atividade física para essa

clientela quando anunciou publicamente que os Jogos de Stoke Mandeville poderiam

equivaler, para homens e mulheres portadores de deficiência, aos Jogos Olímpicos. Esse

anúncio entusiasmou tanto os profissionais do hospital quanto os pacientes, que logo

começaram a elaborar os primeiros regulamentos dos jogos. Este foi o marco inicial do

movimento de esportes para pessoas com deficiência (GUTTMANN, 1976). A decisão de

Roma, de incluir, em 1960, os Jogos Internacionais de Stoke Mandeville junto aos Jogos

Olímpicos, abriu espaço para os atletas deficientes fortalecerem esse movimento

esportivo.

No início, Guttmann gostaria que os jogos se chamassem "The Olympics of the

Paralysed" (As Olimpíadas dos Paralisados), mas já era esperada a participação de atletas

com outros tipos de deficiência que não só lesão medular e, em 1976, no Canadá, os jogos

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Page 60: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

ficaram conhecidos como "The Olympiad for the Physical Disable" (A Olimpíada dos

Deficientes Físicos). Esse termo, porém, nunca foi aceito pelo Comítê Olímpico

Internacional (CO!). Nos Jogos de 1984, oito anos mais tarde, o CO! concordou e aprovou

a proposta de Robert Jackson, então presidente do ISMG (International Stoke Mandeville

Games ), de que a denominação fosse "Paralympics".

O termo "Paraolimpíadas" foi originalmente utilizado por uma paraplégica, Alice

Hunter, paciente do hospital de Stoke Mandeville, que escreveu para a revista The Cord

Journal of the Paraplegics um artigo intitulado "Alice at the Paralympiad" (Alice nas

Paraolimpíadas), descrevendo sua história no esporte. De acordo com PARAL YMPIC

SPIRJT (1996), o termo para refere-se à paraplegia. Em fevereiro de 1985, o Comítê

Coordenador Internacional (!CC) aceitou os termos do CO! e concordou em substituir o

termo "Olympics Games for the Disabled" -Jogos Olímpicos para Deficientes por

"Paralympics Games"- Jogos Paraolimpicos (GUTTMANN, 1976).

Desde 1960, em Roma, acontecem oficialmente os Jogos Paraolímpicos de verão

na mesma época e na mesma cidade que os Jogos Olímpicos. Em 1964, eles aconteceram

em Tóquio (Japão); em 1968, em Tel Aviv (Israel); em 1972, em Heidelberg (Alemanha);

em 1976, em Toronto (Canadá); em 1980, em Amhem (Holanda); em 1984, em Stoke

Mandeville (Inglaterra) - para deficientes fisicos e no município de Nassau - NY

(Estados Unidos); em 1988, em Seul (Coréia); em 1992, em Barcelona (Espanha). Foi

escolhida para sediar, em 1996, a 1 0." edição dos Jogos Paraolímpicos a cidade de Atlanta

- GA (Estados Unidos) e as Paraolimpíadas do ano de 2000 foram na cidade de Sydney

(Austrália). Os Jogos Paraolimpicos de 2004 serão realizados em Atenas (Grécia)

(DEPAUW; GAVRON, 1995; DE45 AOS , 1988; TOQUE A TOQUE, 1988; CIDADE; FREITAS,

2002).

Quanto às modalidades esportivas das Paraolimpíadas, o Comítê Paraolimpico

Internacional atualmente oferece 20 esportes de verão e 6 de inverno. A maioria dos

esportes e eventos paraolímpicos são modificações, adaptações dos esportes e eventos

olímpicos, com normas de classificação que permítem o desenvolvimento das

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Page 61: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

capacidades funcionais de cada atleta. Entretanto, na maioria dos esportes, participam

atletas de todos os tipos de deficiência (competindo entre seu grupo). Alguns esportes,

como o judô e goalball, são oferecidos apenas para deficientes visuais (CIDADE; FREITAS,

2002).

As modalidades esportivas de verão praticadas pelos atletas deficientes (em

Paraolimpíadas) são: arco e flecha, atletismo, basquetebol ID (intelectual disable),

basquetebol sobre rodas, bocha, ciclismo, hipismo, esgrima, halterofilismo, futebol,

goalball, judô, rugby em cadeira de rodas, iatismo, natação, tiro, tênis de mesa, tênis em

cadeira de rodas e voleibol.

Desde as Paraolimpíadas de Roma (1960) até Sydney (2000), o número de

modalidades que compõem os Jogos sofreu algumas alterações; em Roma eram apenas 8:

arco e flecha, atletismo, basquetebol sobre rodas, dartchery, esgrima, natação, snooker e

tênis de mesa (PARALYMPIC SPIRIT, 1996). Em Atlanta, foram disputadas medalhas em

1 7 modalidades, houve também demonstração em outras duas, o rugby em cadeira de

rodas e o iatismo. Pela primeira vez, em Atlanta, 56 atletas portadores de deficiência

mental participaram de Jogos Paraolimpicos com demonstração em duas modalidades,

atletismo e natação.

Num panorama geral, as modalidades que foram disputadas em 40 anos de

Paraolimpíadas foram: arco e flecha, atletismo, basquetebol sobre rodas, esgrima e tênis

de mesa. O snooker, por exemplo, que atualmente não faz parte das modalidades

disputadas nesse evento, foi disputado em 7 das 11 Paraolimpíadas- nos Jogos de Roma

(1960), Tokyo (1964), Tel-Aviv (1968), Hildelberg (1972), Toronto (1976), Stoke

Mandeville (1984) e Seul (1988). Dartchery, lawn bowls, snooker e wrestling são

algumas das modalidades que já não são mais dísputadas nos Jogos Paraolimpicos. Desde

os Jogos de Roma até a Paraolimpíada de Sydney (em jogos de verão), foram dísputadas

22 modalidades diferentes. Em Sydney foram dísputadas 18 modalidades, 14 semelhantes

às dísputadas nas Olimpíadas: arco e flecha, atletismo, basquetebol (sobre rodas e a

versão para atletas com deficiência mental), ciclismo, equitação, esgrima, futebol, judô,

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Page 62: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

iatismo, tiro ao alvo, natação, tênis de mes~ tênis e voleibol (sentado e em pé), e somente

4 modalidades - bocha, goalball, rugby sobre rodas e halterofilismo - fizeram parte

especificamente do Programa das Paraolimpíadas (CIDADE; FREITAS, 2002; 2000; 1997).

Considera-se a competição como uma forma de ação do social, um ato pelo qual a

sociedade toma forma e existe por meio de significações. Portanto, após 11 edições, os

Jogos Paraolímpicos se tornaram uma praxe, uma prática no meio esportivo.

No final dos anos 50, chegou ao Brasil a prática desportiva entre portadores de

deficiência, pelas mãos de Robson Sampaio de Almeida e de Sérgio Del Grande,

portadores de paraplegia. Ao retornarem dos EUA após reabilitação, em 1958, tendo

tomado contato com o esporte para deficientes nos hospitais em que se reabilitaram,

trouxeram a idéia para o Brasil. Em São Paulo, Del Grande fundou o clube dos

Paraplégicos, em 23 de julho de 1958, enquanto Robson Sampaio fundou, em I .o de abril

de 1958, o Clube do Otimismo, no Rio de Janeiro. Formaram-se assim as duas equipes

esportivas pioneiras de basquetebol sobre rodas do Brasil (MA TIOS, 1990).

O primeiro jogo de basquetebol em cadeira de rodas foi realizado no

Maracanãzinho, Rio de Janeiro, entre as equipes paulista e carioca. A partir de então,

vários amistosos aconteceram, incentivando o aparecimento de outros clubes e equipes

dessa modalidade, entre os quais o Clube dos Paraplégicos do Rio de Janeiro (CPRJ), em

1965, e a Sociedade Amigos dos Deficientes Físicos (Sadef), em 1979. Cabe aqui

ressaltar o interesse dos dirigentes desses clubes em organizar o desporto nacionalmente.

A primeira participação internacional brasileira de basquetebol sobre rodas foi durante a

segunda edição dos Jogos Pau-Americanos, em Buenos Aires (Argentina), em 1969, com

equipes formadas por paulistas e cariocas. Apesar das dificuldades advindas da falta de

patrocínio e de credibilidade dos órgãos governamentais, essa modalidade trouxe a

medalha de bronze e muita esperança para o esporte voltado para portadores de

deficiência fisica no Brasil (DE 45 AOS. , 1988).

52

Page 63: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Desde então, nosso país tem sido representado nas grandes competições

internacionais. Atletas brasileiros participaram dos Jogos Pau-Americanos de 1971

(Jamaíca) e de 1973 (Peru).

Após a participação do Brasil nos Jogos Pau-Americanos, do México, em 1975,

deu-se início a uma nova fase do desporto nacional para deficientes. O retomo das

delegações representantes do Brasil nessa competição marcou a criação da Associação

Nacional de Desporto para Deficientes (Ande), que tem afumado em seu estatuto o

objetivo de difundir, organizar e adminístrar essa atividade. Em 1978, a Ande organizou,

no Rio de Janeiro (Brasil), o 5.0 Pau-Americano (DE 45 AOS, 1988; MATTOS, 1990). Logo

depois, o país participou dos Jogos Pau-Americanos dos anos de 1982 (Canadá), 1986

(Porto Rico), 1990 (Venezuela), 1993 (Buenos Aires) e 1999 (México).

Nos Jogos Paraolímpicos, os brasileiros competiram pela primeira vez em 1972, na

Alemanha. No Canadá, em 197 6, o Brasil ganhou suas primeiras medalhas para olímpicas:

os atletas Robson Sampaio de Almeida e Luiz Carlos "Curtinho" conquistaram duas

medalhas de prata na modalidade de bocha.

Na Holanda, em 1980, a delegação brasileira foi representada apenas pelo time de

basquetebol sobre rodas masculino e por um nadador, mas não conseguiu medalhas. Os

jogos de 1984 foram divididos em duas sedes (Aylesbury, Inglaterra, e Nova York, EUA).

Em Nova York, uma mulher, a atleta Anaelise Hermany, foi a primeira cega brasileira a

conquistar uma medalha no atletismo na prova de 100 metros rasos. Na Inglaterra,

participaram somente atletas em cadeiras de rodas e o Brasil conquistou 21 medalhas. Em

1988, a equipe brasileira trouxe de Seul 27 medalhas (4 de ouro, I O de prata e 13 de

bronze), obtendo a 25." colocação num total de 65 países participantes. Nas

Paraolímpíadas de Barcelona, em 1992, o Brasil ganhou 7 medalhas (3 de ouro e 4 de

bronze), ficando em 30.0 lugar na classificação geral, num total de 92 países participantes.

Em 1996, a equipe brasileira retomou ao Brasil trazendo de Atlanta 21 medalhas: 2 de

ouro, 6 de prata e 13 de bronze. Na última Paraolímpíada do milênio, em Sydney

53

Page 64: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

(Austrália), em 2000, o Brasil conquistou 22 medalhas: 6 de ouro, 10 de prata e 6 de

bronze (CIDADE; FREITAS, 2002).

Ao longo desse processo de documentação do esporte para deficiente, que teve seu

início nos meados do século XX, algumas mudanças, mesmo que acanhadas, foram sendo

observadas.

O esporte para deficiente não é apenas uma atividade realizada por voluntários sem

um objetivo específico. Existem, hoje, estudos, pesquisas e principahnente profissionais

competentes para atuarem nessa nova área. Ao observarmos as Paraolimpíadas de

Sydney, vemos que o desporto para deficientes no mundo cresceu, inspirando as

pesquisas sobre fisiologia do exercício, doping, órteses e próteses esportivas, regras,

técnicas, sistemas de treinamento e muitos outros temas correlatos.

Entretanto, apesar dessa evolução internacional, no âmbito nacional, ainda

carecemos de informações, bibliografia, capacitação de recursos humanos, estudos e

pesquisas. Além de atletas, precisamos de pesquisas objetivas, informações concisas e da

disseminação do conhecimento entre as entidades esportivas de deficientes,

universidades, pesquisadores, técnicos e atletas. Uma verdadeira rede de relações.

Assim, são os Organismos Internacionais que atuahnente tratam das questões da

mulher no esporte. São agrupamentos de pessoas em configurações, com a sua dinâmica e

conformidades, com o intuito de orientar, sistematizar e regular as ações e,

principahnente, ocupar e consolidar o espaço legitimado. Esses indivíduos, organizados

em configurações, têm se reunido sistematicamente para discutir, apontar caminhos e

fortalecer os espaços já alcançados. O processo mulher-esporte foi e continua a ser um

contínuo entrelaçar de planos e ações dos indivíduos em grupos.

Mulher e esporte: desdobramentos a partir de Brighton

A mulher no esporte tornou-se um tema que, desde o princípio dos anos 90, tem

recebido crescente atenção no cenário mundial. Em função da realização da "I

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Page 65: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Conferência Mundial sobre a Mulher e o Esporte", é possível apontar alguns dos

desdobramentos ocorridos. Essa conferência reuniu políticos e dirigentes de âmbito

nacional e ínternacional em Brighton, Inglaterra, de 5 a 8 de maío de 1994. Foi

organizada pelo Conselho Britânico do Esporte (British Sport Council), com apoio do

COI, e reuniu 280 representantes de organizações governamentaís e não governamentais

de 82 países.

Esse evento ínternacional de amplo alcance, dirigido a representantes de setores

públicos e privados com poder de decisão, concentrou-se exclusivamente na participação

da mulher no âmbito esportivo. O evento analisou especificamente como acelerar o

processo de trocas de experiências para minimizar as barreiras que as mulheres enfrentam

quando participam ou se ínteressam por esporte. Nesse sentido, criou importantes

oportunidades para acumular experiência a partir de casos de sucesso e também para

conhecer os problemas que se apresentavam em outros lugares (IWG, 2002). O enfoque

ínternacional sobre a mulher e o esporte abrangeu muitos países em todos os continentes;

reconheceu e valorizou as mulheres de todo o mundo e a diversidade das culturas;

examinou temas como: cultura, gênero, sexualidade e necessidades especiais; íncluiu

deliberações sobre liderança, comercialização e meios de comunicação; além de

treínamento com conselheiros e a formação de redes de contato.

Para muitos, foi uma oportunidade para descobrir soluções, conhecer pessoas com

diferentes opiniões e renovar o compromisso de multiplicar as oportunidades para que a

população feminína participe no esporte.

No entanto, o que destacou essa conferência mundial como marco nos avanços

sobre a mulher e o esporte foram seus três resultados principais:

../ a elaboração da Declaração de Brighton;

../ o desenvolvimento de uma Estratégia Internacional para o Esporte Feminíno;

../ a formação de um Grupo de Trabalho Internacional sobre a Mulher e o Esporte.

Page 66: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

A Declaração de Brighton (nota 1) é, em s1, um conjunto de princípios

estabelecidos para acelerar as mudanças frente à participação e envolvimento das

mulheres no esporte. Ela é um marco histórico que vem, no decorrer destes anos,

transformando-se no eixo das estratégias, articulações e ações em favor de uma cultura

esportiva que capacite e valorize a participação da mulher em todos os aspectos do

esporte.

A declaração reconhece o valor do esporte, uma vez que, quando praticado de

maneira honesta e igualitária, enriquece a sociedade, fomenta a amizade entre os povos e

proporciona muitos beneficios aos indivíduos.

Reconhecida como um dos três principais resultados da Conferência de Brighton, a

Estratégia Internacional para o Esporte Feminino foi estabelecida para coordenar, entre

1994 e 1998, no âmbito internacional, os trabalhos realizados em favor da participação da

mulher no esporte. Nela, recomenda-se aos governos e organismos de todo o mundo que

implementem a Estratégia e a Declaração de Brighton.

A elaboração do enfoque estratégico internacional buscou facilitar o intercâmbio

de programas-modelo e de casos de sucesso entre federações esportivas nacionais e

internacionais, a fim de acelerar o desenvolvimento global para uma cultura esportiva

mais igualitária.

Um dos principais objetivos da Estratégia Internacional foi, e ainda é, o de que a

declaração seja adotada por todos os países do mundo, especialmente pelos organismos e

indivíduos com maior poder de decisão e influência. A meta inicial de cem instituições

adotarem a Declaração de Brighton entre 1994 e 1998 foi amplamente superada. Em maio

de 1998, mais de 200 organismos nacionais e internacionais já haviam adotado a

declaração (IWG, 2002).

Sua ampla aceitação demonstra que a Declaração é relevante para numerosos

organismos e países de diversas tradições culturais e religiosas.

Entre tais instituições governamentais, encontram-se os chefes de governo do

Caribe e a Comunidade Britânica, os ministros de esporte europeus e o Supremo

56

Page 67: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Conselho para o Esporte da África. Entre os organismos internacionais poliesportivos,

estão o CO!, o Comitê Paraolímpico Internacional, a Federação de Jogos da

Commonwealth, o Conselho Internacional para a Ciência do Esporte e Educação Física

(ICSSPE) e as federações internacionais de atletismo, tiro com arco, badminton, ciclismo,

vela, halterofilismo e outros (IWG, 2002).

Também estão na liderança do movímento várias associações não governamentais

internacionais e regionais que promovem a participação da mulher no esporte. Entre elas,

destacam-se: a Associação Internacional de Educação Física e Esporte para Meninas e

Mulheres (IAPESGW) e WomenSport International (WSI).

Junto a essas associações internacionais, encontram-se vários grupos regionais, tais

como as associações esportivas, que fomentam a participação da mulher na Arábia, Ásia,

Europa e África. Todas essas associações esportivas estimulam, pressionam e convencem

numerosos organismos nacionais e internacionais a adotarem a Declaração de Brighton.

A influência e recursos de todas essas instituições internacionais são inegáveis. Em

conjunto, representam uma porção significativa da população mundial; cada um desses

Organismos Internacionais de Educação Física e Esporte possuem afiliadas espalhadas

por todo o mundo. E estes contam com o respaldo de mais de 150 organizações nacionais,

responsáveis pelo esporte em mais de 80 países (IWG, 2002).

Outro resultado fundamental da conferência de 1994 foi a criação do Grupo de

Trabalho Internacional sobre a Mulher e o Esporte (GTI). Seus integrantes são do mais

alto nível na área do esporte e representam todos os continentes. O GTI foi instituído para

supervisionar a implementação da Estratégia Internacional para o Esporte Feminino

(1994-1998). É um organismo independente, integrado por representantes de

organízações não governamentais provenientes de diversas regiões do mundo.

O objetivo principal do GTI é promover e facilitar a criação de oportunidades para a

participação da população feminina no esporte e na Educação Física em todo o mundo. O

GTI atua como agente aglutinador dos organismos governamentais e não governamentais

que se ocupam do desenvolvimento das meninas e mulheres através do esporte.

57

Page 68: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Segundo dados da IWG (2002), os principais objetivos do GTI na fase

compreendida entre 1994 e 1998 foram:

-' promover e supervisionar a adoção e implementação da Declaração de Brighton

por parte dos governos e organismos nacionais e internacionais em todo o mundo;

-' estabelecer um plano de ação e apoiar a implementação do mesmo, dando

prioridade às áreas e organismos que ainda não tenham incluído em suas agendas

de trabalho a igualdade da mulher no esporte;

-' atuar como organismo de conexão e consulta para entidades e grupos

internacionais, nacionais e regionais, centrando-se nos avanços internacionais em

matéria de participação da mulher no esporte e facilitando o intercâmbio de

informação;

-' estimular o trabalho de redes regionais, nacionais e internacionais para o avanço da

participação da mulher no esporte;

-' procurar incluir questões relativas aos temas da mulher e o esporte nos programas

das principais conferências internacionais e assessorar os conferencistas sobre tais

temas;

-' atuar como entidade organizadora das conferências mundiais sobre a mulher e o

esporte;

-' assegurar a gestão e o avanço do GTI.

Avanços e ações a partir de Brighton

O Informe de avance 1998-2002 sobre la mujer y e/ deporte (GTI, 2003a) foi

elaborado pelo Conselho de Esporte do Reino Unido, sob o título: Women and Sport.

From Brighton to Windboek: Facing the Challenge. 1 O documento contém: diretrizes para

1 A versão impressa do informe foi publicada em inglês, francês e espauhol. Foi amplameute distribuída

durante 1999 e 2000. Desde 200 I, o informe euccntra-se no síte do GTI: www.iwg-gti.org

58

Page 69: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

colocar em prática os dez princípios da Declaração de Brighton; uma descrição completa

das atividades realizadas por organismos internacionais e nacionais e de outros que até

aquele momento haviam adotado a declaração.

Quanto à avaliação dos avanços e à identificação das inquietações, o informe

destacou o progresso alcançado entre 1994 e 1998 em termos de maior tomada de

consciência sobre a mulher no esporte. Como fruto dessas ações, em 1995, em sua

Assembléia Geral, o Comitê Paraolímpico Internacional examinou a questão da igualdade

dos gêneros e aderiu à Declaração de Brighton. O CO! não só adotou a declaração em

1995 como também criou seu próprio Grupo de Trabalho sobre a Mulher e o Esporte.

Cabe colocar aqui que, em 1981, Anita de Frantz ocupou um cargo e, posteriormente, foi

a primeira mulher a se tomar vice-presidente do CO!. Dados levantados por MOURÃO

(2003) apontam que, nas diretorias regionais do CO!, apenas I 4,4% dos cargos, entre 1970

e I 995, foram ocupados por mulheres.

Em I 996, esse grupo de trabalho do CO! fez várias recomendações, entre as quais

estava a defmição de que um mínimo de 10% dos cargos com poder de decisão nos

comitês olímpicos nacionais e nas federações internacionais deveriam ser ocupados por

mulheres antes do fim de 2001, e 20% deles antes do final de 2005 (KLUKA; MELLING;

SCORETZ, 2000; MOURÃO, 2003).

As inquietações expressadas concentraram-se na expressão de como os Princípios

da Declaração de Brighton estavam sendo colocados em prática. O informe sugeriu ainda

que os organismos podiam classificar-se em quatro categorias:

,/ organismos que não adotaram a Declaração de Brighton e que não reconheceram

que o gênero é um problema da área do esporte;

,/ organismos que adotaram a Declaração de Brighton ou que se comprometeram, por

algum outro instrumento escrito, a promover a igualdade da mulher, mas não

colocaram em ação nenhuma outra iniciativa;

59

Page 70: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

../ organismos que elaboraram um plano de ação, mas não asseguraram os recursos

humanos e financeiros necessários para colocar em prática a Declaração de

Brighton;

../ organismos que tomaram medidas favoráveis, estabelecendo objetivos e

assegurando os recursos necessários, e que seguiram com as ações, obtendo

resultados.

O Informe de avanço sobre a mulher e o esporte (1994-1998) conclui que é

necessário continuar criando uma maior conscientização entre os organismos que ainda

não reconheceram a importância da questão da mulher no esporte (IWG, 2002; GRUPO DE

TRABAJO ... , 2003).

Outra decisão adotada em Brighton foi estabelecer a realização da II Conferência

Mundial sobre a Mulher e o Esporte, que reuniu 400 delegados de 74 países em

Windhoek, Nannbia, de 19 a 22 de maio de 1998. Esse encontro reafirmou a Declaração

de Brighton e produziu a Carta de Windhoek, com o objetivo de incrementar as

oportunidades de participação de meninas e mulheres no âmbito esportivo em seu sentido

mais amplo (IWG, 2002).

Resumidamente, os 11 pontos que estão contidos na Carta de Windhoek são:

../ elaborar planos de ação, estabelecendo objetivos de implantação; supervisionar e

informar sobre os avanços alcançados com a dita implementação;

../ estabelecer laços de cooperação com setores que não os de esporte;

../ trocar informações sobre a contribuição positiva do esporte;

../ desenvolver a capacidade das mulheres como líderes e responsáveis pela tomada

de decisões;

../ adotar medidas para que as jovens tenham acesso à Educação Física;

../ melhor representação, nos meios de comunicação, da mulher no esporte;

../ criação de um meio esportivo seguro e estimulante, livre de coerção, abuso e

exploração;

60

Page 71: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

"' reconhecimento da diversidade humana;

"' legislação e políticas governamentais;

"' ajuda internacional para o desenvolvimento;

"' investigação e pesquisa (IWG, 2002; GRUPO DE TRABAJO .. , 2003).

A estratégia para continuar avançando a partir dos resultados obtidos em

Windhoek, 1998, estabelecia um enfoque coordenado e ordenado para manter o impulso

do movimento internacional que foi promovido e supervisionado simultaneamente à

implantação da Declaração de Brighton e à Carta Windhoek. Os elementos fundamentais

do enfoque que foram relatados em IWG (2002) são:

"' compromisso com a implementação e iniciativas contidas na Declaração de

Brighton e na Carta de Windhoek;

"' máxima utilização dos mecanismos internacionais de coordenação, tais como a

cooperação entre o GTI, o Grupo de Trabalho do CO! sobre a Mulher e o Esporte,

WomenSport lnternational (WSI), a Associação Internacional de Educação Física e

Esporte para Meninas e Mulheres (IAPESGW), a Comissão da Condição Jurídica e

Social da Mulher (Nações Unidas) e outros organismos similares;

"' organizar conferências e trocar informações com regularidade;

"' criar e manter alianças estratégicas com o movimento mundial em favor da mulher;

"' continuar o trabalho de facilitação, promoção e supervisão do GTI;

"' organizar a Conferência Mundial sobre a Mulher e o Esporte no Canadá, em 2002.

Nessa segunda conferência, a sólida liderança da Nannbia abriu um importante

precedente para o movimento em favor da mulher no esporte. Episódio considerado

significativo foi o fato de que metade dos delegados que estavam presentes à conferência

provinha da Áfi:ica. Isto significou que os delegados afi:icanos puderam exercer uma

influência muito maior que o usual sobre os conteúdos das deliberações e os resultados do

evento.

61

Page 72: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

A oportunidade permitiu que os participantes provenientes de outras regiões do

mundo colhessem informações sobre a luta de suas colegas africanas e, por sua vez, as

delegadas africanas conheceram e trocaram informações e experiências. O propósito do

GTI foi criar um movimento global em favor da mulher no esporte, mas foi de inegável

importância o fato de que a segunda conferência tenha sido realizada na África (IWG,

2002).

O incremento na comunicação e redes de contato mais sólidas foram êxitos

alcançados entre 1998 e 2002. Durante esse tempo, a Secretaria do GTI foi propiciada pelo

governo do Canadá por meio da sua Direção Geral de Esporte e foi integrada por

representantes de organismos não governamentais e importantes associações regionais de

diferentes continentes. Nesses quatro anos, o GTI teve por base o trabalho anterior e

alcançou importantes avanços, entre os quais, destacamos o seguintes:

-/ o GTI realizou reuniões regionais em 1998, na Colômbia; em 1999, no Egito; em

2000, na Finlândia; e em 2001, em Kukamoto, Japão. Em cada uma dessas

ocasiões, houve apoio de associações femininas de esporte do país ou continente

anfitrião; também houve apoio regional com a criação de associações, como a

Associação Japonesa para a Mulher no Esporte, criada em 2001, em Kukamoto,

entre outras (essas foram ações fundamentais para a disseminação do debate sobre

a mulher no esporte);

-/ procedimentos sistematizados e maior transparência: o GTI sistematizou os

métodos para eleger os membros e presidentes com critérios claros para a sua

composição, baseada na representação de grupos regionais e organismos

governamentais e não governamentais;

-/ o avanço da comunicação com as pessoas e organismos do movimento em favor da

mulher no esporte (GRUPO DE TRABAJO ... , 2003; IWG, 2002).

Em 2002, com o tema "Investindo em Mudança", a III Conferência Mundial sobre

a Mulher no Esporte, realizada em Montreal, de 16 a 19 de maio, reuniu 550 pessoas de

62

Page 73: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

97 países. Foi organizada pelo GTI e patrocinada pelo Ministério de Patrimônio Cultural,

auxiliado pela Associação Canadense para o Avanço das Mulheres na Atividade Física­

ACAMD (GTI, 2003b). A terceira conferência centrou a discussão em infra-estrutura e

recursos capazes de sustentar o esporte e a atividade fisica de meninas e mulheres.

Novamente, os participantes invocaram a Declaração de Brighton e assumiram o

desafio de desenvolver um plano de ação específico para produzir mudanças,

demonstrando como podem trabalhar em suas comunidades e em seus países para

implementar a declaração e a Carta de Windhoek.

Durante a conferência, foi possível identificar as barreiras que afrontam as

mulheres e se festejaram as mudanças positivas, tanto para as atletas quanto na atividade

fisica em geral, ocorridas no período de 1998 a 2002. Os participantes compartilharam

suas experiências em tomo do esporte e da atividade fisica como impulso para o

desenvolvimento dos indivíduos, das comunidades e das nações (GTI, 2003b).

A terceira conferência tratou o esporte como estimulo ao desenvolvimento, à

cooperação, à liderança comunitária, ao entendimento internacional e à paz como tema

principal; no que conceme especificamente à mulher, mencionou-se a importância do

esporte para o desenvolvimento da segurança e auto-estima, fundamentais para a saúde e

realização de meninas e mulheres. Foram expostas diversas maneiras para garantir que

todas as mulheres e meninas tenham acesso ao esporte e à atividade fisica, sejam quais

forem suas necessidades e capacidades.

Falou-se sobre as formas de contribuir para produzir uma mudança na cultura e nos

sistemas esportivos de tal maneira que haja maior inclusão e respeito. Além disso, foram

examinados diversos métodos para influir sobre governos, organizações esportivas e

patrocinadores (GTI, 2003b).

De Brighton a Montreal, os documentos produzidos registram, de forma clara, o

modo como a Declaração de Brighton tem sido o eixo orientador para as articulações e

estratégias de implementação de uma cultura esportiva que proporcione e valorize a

participação da mulher em todos os aspectos do esporte.

63

Page 74: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

De 1994 a 2002, a I Conferência Mundial da Mulher e o Esporte e,

conseqüentemente, a Declaração de Brighton desencadearam muitas ações em diferentes

lugares do mundo, entre as quais apontamos:

,./ a criação do Grupo de Trabalho Internacional sobre a Mulher e o Esporte ( GTI) e o

site criado em inglês, francês e espanhol que está se convertendo em uma

importante fonte de informação sobre o trabalho do GTI e as diferentes ações em

prol da mulher no esporte;

,./ a sensibilização das Nações Unidas, que incluiu três menções sobre o esporte e

atividade fisica na "Plataforma para a Ação" das Nações Unidas, considerada como

principal resultado da IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher,

realizada em 1995, na China;

,./ a sensibilização do Comitê Olímpico Internacional e do Comitê Paraolimpico

Internacional, que examinaram, debateram e incorporaram a declaração. Em I 995,

o cor criou seu próprio Grupo de Trabalho sobre a Mulher e o Esporte;

,./ a Associação Árabe para a Mulher e o Esporte foi o primeiro grupo regional criado

logo após a Conferência de Brighton; e foi oficialmente estabelecida a Associação

Africana de Mulheres no Esporte e o Grupo de Trabalho para a Mulher Asiática no

Esporte;

,./ o cor organizou as Conferências Mundiais em Lausanne, em 1996, e Paris em

2000, que resultaram em recomendações e uma série de seminários em favor da

participação da mulher no esporte;

,./ a Associação Internacional de Educação Física e Esporte para Meninas e Mulheres

(IAPESGW) realizou conferências na Finlândia (1997), nos Estados Unidos (1999) e

no Egito (2001 );

,./ a realização da II Conferência Mundial sobre Mulher e Esporte, na Namibia, em

1998, reafirmou os princípios da Declaração de Brighton e produziu a Carta de

Windhoek;

64

Page 75: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

../ a Associação Japonesa para a Mulher e o Esporte (JWS) assumiu a iniciativa de

criar uma rede na Ásia sobre a mulher e o esporte;

../ a realização da III Conferência Mundial sobre Mulher e Esporte no Canadá, em

2002;

../ a diversidade dos organismos que adotaram a declaração é também um indício do

esforço realizado em Brighton, o que tem assegurado a inclusão de questões

comuns que se apresentam à mulher e ao esporte em eventos, encontros,

conferências e grupos de trabalho de todo o mundo. O número de adesões continua

aumentando; em janeiro de 2002, 250 organismos notificaram ter adotado a

declaração;

../ a realização da IV Conferência Mundial sobre Mulher e Esporte no Japão, que será

em2006.

Embora essas ações sejam recentes, desde muito tempo existem orgarusmos

preocupados especificamente com a promoção da Educação Física e dos esportes para

meninas, jovens e mulheres. Um dos mais destacados é a Associação Internacional de

Educação Física e Desportos para Menimas e Mulheres (Intemational Association of

Physical Education and Sport for Girls and Women- IAPESGW), que acaba de completar

50 anos de existência. Os organismos nacionais dedicados a promover a igualdade da

mulher no âmbito esportivo, tal como a Fundação para o Esporte Feminino nos Estados

Unidos, também existem há algum tempo (IWG, 2002).

No entanto, os documentos registram marcadamente as iniciativas, as ações e os

avanços a partir da realização da I Conferência Mundial sobre a Mulher e o Esporte. Os

resultados da conferência ainda mobilizam pessoas e em vários lugares do mundo seu

desdobramento vem transformando ações e atitudes em beneficios para meninas e

mulheres envolvidas no esporte. Considera-se a Conferência de Brighton, de 1994, como

marco, da atualidade, de uma iniciativa internacional, estratégica e coordenada.

Depois desta breve apresentação de alguns dos diferentes encaminhamentos e

ações no sentido de promover uma maior a participação feminina no esporte, pode-se ter a

65

Page 76: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

impressão de que as pressões sociais sobre as mulheres cederam ou se atenuaram. Na

realidade, as pressões e tensões não desaparecem, elas foram substituidas, renovadas,

recriadas. As dimensões micro e macro, face e contraface do processo social que envolve

a participação da mulher no esporte só poderão ser entendidas assim, de forma relaciona!,

considerando as tensões entre indivíduos e grupos interdependentes.

A partir destas colocações, buscamos localizar, no centro deste estudo, a situação

peculiar da mulher atleta com deficiência, no sentido de explicitar esse recente fenômeno

social no qual as mulheres estão envolvídas.

Enfnn, por meio de analogias (entre a abordagem da relação estabelecidos­

outsiders e os enunciados das atletas), é que é analisado o grupo de integrantes da

delegação brasileira que participou das Paraolimpíadas de Sydney, observando as inter­

relações possíveis entre: deficiente/não-deficiente; atleta deficiente/atleta não-deficiente.

Não se trata de um simples gesto para decifrar a linguagem, mas de um procedimento de

análise na busca da autenticidade e hístoricidade contidas nos discursos.

66

Page 77: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante
Page 78: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

CAPÍTUL03

Estabelecidos-outsiders eliasianos e

atletas paraolímpicas: representações

Após a análise dos procedimentos utilizados por Elias e Scotson na relação

estabelecidos-outsiders, foram revistas as caracteristicas apontadas pelos pesquisadores

como sendo comuns e constantes a diferentes grupos e contextos.

Neste capítulo, foi possível relacionar, articular e costurar a idéia de representação

que cada pessoa faz da posição de seu grupo entre outros e de seu próprio status como

membro desse grupo, como uma das características da relação estabelecidos-outsiders.

O termo representação é referido a toda atividade de um indivíduo que se passa

num periodo caracterizado por sua presença continua diante de um gmpo particular de

observadores e que tem sobre estes alguma influência/poder (GOFFMAN, 1988; JOSEPH,

2000). Assim, a representação social é uma maneira de conhecimento com a finalidade de

construir comportamentos e comunicação entre os indivíduos (AMARAL, 1995).

Neste estudo, para o grupo estabelecido, a representação corresponde à crença na

graça e na virtude coletivas que atribuem a si mesmos ou que lhe são atribuídas por outros

a quem consideram como inferiores. Por isso

... os grupos dominantes com uma elevada superioridade de forças atribuem a si mesmos, como coletividades, e também àqueles que os integram, como as famílias e os indivíduos, um carisma grupal característico. (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 26)

Quanto ao grupo outsider, estes são alvo de insultos típicos e fofocas depreciativas

estereotipadas que os levam a uma posição de inferioridade e desonra grupal.

Essa dependência que os indivíduos têm da posição e da representação do grupo a

que pertencem influi significativamente na identificação e na avaliação de sua própria

68

Page 79: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

estima e na comparação de seu grupo em relação a outros. A projeção grupal- positiva ou

negativa- impregna profundamente a representação pessoal do indivíduo. Além do que, a

percepção que o indivíduo tem de si no grupo e do seu grupo entre outros ajuda a definir e

a manter as fronteiras entre os grupos (ELIAS; SCOTSON, 2000).

Para GOFFMAN (1988), a crença no papel que o indivíduo está desempenhando

denomina-se representação e, quando um indivíduo exerce um papel, implicitamente

requer de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada por eles. Algumas

representações sociais podem ser consideradas como sendo instituídas, como as regras e

valores sociais presentes no cotidiano. O estigma em relação à pessoa com deficiência,

por exemplo, conduz à representação da ineficiência total.

É necessário considerar que as representações sociais não são estáticas, há sempre

uma reconstrução de idéias, noções e valores como resultado das constantes e dinâmicas

interações.

Por exemplo, o ideário, a representação de atleta mais difundida hoje é a do atleta

profissional como um novo tipo de trabalhador que vende a um patrão sua força de

trabalho e é capaz de produzir um espetáculo, atrair multidões; o atleta profissional se

tomou um profissional do espetáculo muscular e a carreira profissional tomou-se

almejada e urna opção de vída para os habilidosos e talentosos. Os atletas de alto nível ou

trabalhadores do esporte podem ter, em troca de seu desempenho profissional, contratos

publicitários generosos, com exigência de segurança profissional, médica e social (RUBlO,

2002).

Exemplo disso pode ser observado nas respostas dadas pelas mulheres

entrevístadas neste estndo ao serem perguntadas sobre como é que elas se vêem como

atleta:

Eu me vejo importante, porque é a primeira paraolimpíadas, e para eu chegar até aqui, eu tive que batalhar muito. (E2)

69

Page 80: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Eu penso primeiro em mim, né. A vontade, acho que é (.. ), a vontade maior aqui tá a minha, vou ganhar a medalha, não vou ganhar a medalha pros outros, vou ganhar a medalha pra mim. (E3)

Me vejo assim: pra mim é um exemplo de vida ser uma atleta, porque de onde que a gente ia ter chance lá (nome da cidade) ... você tem uma idéia ... vem uma atleta numa olimpíada, lá de (nome da cidade). De onde é que se a gente fosse (para) olímpico estaria aqui. A gente não tinha nem saído do colégio ainda tava lá, treinando voleibol, handebol, ou outra coisa qualquer, né. (E4)

Ah! Eu me vejo ... assim ... eu sou uma pessoa muito esforçada, sabe? Quando eu quero, no esporte, eu quero chegar a vencer, eu corro atrás disso, então eu me vejo como uma pessoa que conseguiu superar, né, muitos obstáculos e pretendo superar mais, então, eu me sinto vitoriosa. No momento sim. (E6)

Uma pessoa grande, uma pessoa que pode fuzer (...)que conseguiu aquela meta ... (E8)

Elas se vêem como vitoriosas, importantes, esforçadas, batalhadoras, que têm força

de vontade, que superam obstáculos. Supõe-se que esta é a representação que fazem de si

no grupo atleta.

A super-valorização dos feitos bem-sucedidos são exemplos e espelhos nos quais a

maioria dos atletas de alto rendimento se vê, pois ele se transforma na figura espetacular

do herói. Essa identificação pode ser creditada à capacidade de enfrentamento do perigo e

do desconhecido, o destemor ao combate e a busca incessante dos objetivos propostos. A

associação feita entre atleta e herói é uma outra característica que vem a ser agregada a

esse conjunto de valores (RUBlO, 2002). Neste sentido, a dimensão perceptiva da

representação envolve significados que os indivíduos atribuem à realidade.

Nas tensões entre os indivíduos e nas ações coletivas em distinta temporalidade

histórica, este processo inovador na história do esporte agrega tensões entre tradições

culturais reavaliadas e novas significações; e entre redes sociais globais e locais.

Considerando que, na trama da história, a cultura se propaga de muitas maneiras, entre

elas na geração e propagação da informação por meio de diferentes fontes, é possível,

então, acreditar que a mídia pode auxiliar os indivíduos a perceberem seu grupo entre

outros e a si mesmos como membros desse grupo. É importante enfatizar que há uma

infinidade de informações que podem ser extraídas e analisadas a partir de uma fonte

70

Page 81: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

A DETERMINAÇÃO DE NOSSOS

ATL~!~~OURO Paraolimpíadas Sydney 2000

O Brasil está enviando para a Austrália uma delegação que esbanja determinação. Ela irá representar nosso País nas Paraoiimpiadas, os jogos disputados entre atletas de várias nacionalidades, que apresentam necessidades especiais. Nas diversas modalidades esportivas, a maior vrtória é o esforço de cada um para superar os próprios limites, seguindo o verdadeiro espírito olímpico. A torcida brasileira vibra com seus atletas.

SEESP SECRETARIA DE

f'ffiJCACÃO ESPECIAL

.MIIISI!ÉRIO EDUCA CÃO

I GOVERNO fEDERAL

Trabalhando em a-odo o Sra-sif 71

Page 82: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Um grupo que sobe trabalhar em ' ""' unta o

E muito, mas muito

talento

isposição e mu

orça

Vários horas de

concentraç~ Depois de misturar todos esses ingredie coloque os atletas dentro do avião e mande-os para Sydney.

Você verá que beleza de resultados!!!

Page 83: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

comunicacional (notícia, ftlme, música, jornal, etc.) (LOPES, 2003; KASSAR, 2003),

levando em consideração signos presentes na cultura mediática que geralmente resultam

de estereótipos sociais que correspondem à idéia de representação discutida no inicio

deste capítulo.

As relações entre comunicação e produção de sujeitos sociais são analisadas no

interior do processo de construção de significados e de formação de subjetividade pela

mídia. Quando a atuação da mídia é analisada no sistema de representações e nos

discursos dos deficientes - e referentes à deficiência -, vemos que estes se encontram

imersos em subjetividades e representações, tomando possível o estudo das condições de

produção e a identificação de estereótipos sociais (PONTES; NAUJORKS; SHERER, 2001).

Em condições de produção como essa, podemos compreender a diversidade da

vida social como questões referentes à exclusão, a embates, a conflitos, a fronteiras

estabelecidas entre o sujeito e a sociedade, às contradições, à interdiscursividade, aos

efeitos de sentido, enfim, à conjuntura discursiva.

Como processo, as novas tecnologias dos metos de comunicação têm como

objetivo tomar comum, apresentar e ser espelho dos fatos ocotridos, abrangendo seus

mais diversos aspectos. Nesse processo, são percebidos, interpretados e compreendidos

significados que podem ser transformados (BETTI, 1998).

A verdade, presente nos discursos dos mais variados campos, é tecida nas redes

simbólicas da mídia. É também construtora e propagadora de imaginários, produzindo

modos de ser que constituem subjetividades e setvem de referencial para a produção das

identidades (ver exemplo na nota 2 - Hino do Atleta Paraolímpico ).

De acordo com FOUCAULT (2000), o discurso é então compreendido como aquilo

que, muito mais do que doctunentar ou representar, tem o poder de edificar ou fabricar

sentidos. Não é por menos que, por exemplo, a publicidade pode ser apreendida como a

área privilegiada para o exercício do poder de criar e instaurar modos de ser, pensar e

viver, com a atte retórica, no texto e na imagem.

Neste sentido, podemos indagar, juntamente com Rubio,

73

Page 84: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante
Page 85: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

... quem mais, nas sociedades contemporâneas, teria o poder da façanha de deter a atenção de alguns milhões de pessoas com o intuito exclusivo do entretenimento? [: o atleta de alto rendimento] (RUBlO, 200Lp. 99)

No esporte, a exploração da figura do atleta é urna realidade. Isto porque, além de

serem pessoas públicas de grande destaque na midia, há enorme interesse em associar o

ideário do clube ou de um evento à figura do atleta vencedor. Não há dúvida de que os

atletas são entendidos como artistas e a exploração comercial de sua posição é mais do

que natural (RUBlO, 2001 ). Mesmo entre os atletas do esporte comum, sabemos que essas

possibilidades são para poucos.

Para pensar a deficiência dentro da sociedade, é preciso considerar que esta se

encontra envolvida por critérios de normalização. Tais critérios estratificam pessoas e

comportamentos em decorrência do discurso da normalidade, que se confirma na pouca

tolerância à diferença (PONTES; NAUJORKS; SHERER, 200 l ).

Em relação ao atleta do paradesporto, ao analisar a atuação da midia nos sistemas

de representações e discursos referentes ao deficiente, percebemos - com algumas

exceções que, por estarem envolvidos por subjetividades, levam à maximização do

preconceito, das disparidades sociais e culturais, a partir de informações truncadas que

acarretam em concepções e construções estereotipadas 1.

Se há a alguma possibilidade para o atleta paraolímpico perceber-se em meio às

fontes comunicacionais, pode ser que na configuração essa percepção se revele mais

fortemente. Sendo assim, em que espelhos os individuos percebem seu grupo entre outros

e a si mesmos como membros desse grupo?

Considerando a competição internacional um momento significativo para a atleta,

analisou-se a representação, o auto-retrato da atleta paraolímpica nesse momento. Por

1 Em uma rápida análise à ilustração 8, perceh:-se na ímagem do homem de costas que trata-se de um atleta Se cego, se paraplégico, não se sabe. Não importa, trata-se da representação de um atleta. A imagem leva o observador a uma idéia rx>sitiva do 'ser atleta'. Porém o enunciado acima, a esquerda depõe contra a imagem. No sentido que leva o observador a pensar entre outras coisas que: só vence na vida o deficiente que pratica esporte.

75

Page 86: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

meio dos seus enunciados, o foco estava na seguinte questão: Quando é que você se sentiu

atleta pela primeira vez?

Foi quando saiu a convocação pro México2 (. .. )Foi muito bom. Foi uma emoção muito

grande. (El)

Eu me senti a verdadeira atleta, porque foi assim, uma competição muito importante, porque um Pan-Americano é muito importante, fora do país ... (E2)

A primeira competição, a primeira medalha, aí você fica pensando ... até quando eu vou ... eu vou até onde der. E, depois que eu cheguei de Barcelona, aí eu vi que realmente, eu era uma atleta realmente, porque eu tinha já participado do maior evento que um atleta pode estar. (E3)

... quando ganhei minha medalha de ouro ... no mundial... (E4)

Quando eu pus uma sapatilha no pé no Latino-Americano, logo na minha primeira competição, e que eu vesti aquela roupazinha verde e amarela escrito Brasil. (E5)

... as competições mais importantes pra mim, foi Atlanta, e agora em Sydney. Em Atlanta eu já me sentia atleta, porque, pelo amadurecimento, né. (E6)

No Pan-Americano, no México. Eu senti que eu era atleta quando ia batendo o Record. (E7)

F oi em 96, que eu fui pra Atlanta- eu já tinha feito competições - mas a minha primeira competição mesmo, que foi um sucesso maior, foi em Atlanta. (E8)

Foi depois que eu comecei a competir. (E9)

E é isso, quando eu trouxe pela primeira vez ... medalhas ... e daí foi quando eu vi realmente crescer no esporte ... (ElO)

Os enunciados não se referem aos treinamentos, aos exames, às avaliações. A idéia

que fazem de si como atletas não inclui o dia-a-dia de treinamentos. A maioria considerou

o fato de sentir-se atleta, de obter esse status, somente após ter passado por esse momento

de identificação por meio da competição internacional. Por outro lado, a vitória, a

convocação, o recebimento da medalha são elementos verbais e gestuais que compõem a

ocasião. Portanto, são esses momentos identificadores que vão corroborar, fortalecer o

2 Os grifos, nestas e nas demais declarações das àt1etas, são meus.

76

Page 87: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

comportamento do grupo, pois neles os valores coletivos são revelados e, assim, o grupo

se mantém coeso.

No caso da atleta paraolímpica, ela percebe que esse momento vai desencadear

todo um mundo de sentimentos, de idéias, de representações que, uma vez nascidas,

celebram publicamente os resultados positivos, reforçando as identidades sociais e seu

poder. Ela percebe, de uma maneira ou de outra, que passa de atleta comum do desporto

adaptado e passa a adquirir um novo status. Consequentemente, difundem e reforçam a

representação, o ideário da atleta e da instituição, tornam público o reconhecimento dos

méritos individuais, estimulam esforços similares e enfatizam o valor social da

observância das regras. Na realidade, esses momentos de significação e identificação

confirmam a hierarquia e mostram ao individuo qual é seu lugar/papel na instituição

(SILVA, 2001).

O esporte tem uma configuração, e está organizado segundo suas normas, leis,

hierarquias, valores e objetivos, conforme a instância em que se realiza (esporte escolar,

universitário, profissional, olímpico, paraolimpico, etc.).

Transformado em espetáculo pelos meios de comunicação, o esporte, como signo

da sociedade contemporânea, remete ao ideário do viver bem, estar bem consigo, ser

vitorioso, transmitido como ideais a serem atingidos pela média da população (RUBIO,

2001).

A configuração denominada de Paradesporto ou Desporto Adaptado concentra

atletas em sua organização, favorecendo as relações entre seus membros na formação

desse grupo específico, sem que o conjunto total de membros, ou seja, outras pessoas com

deficiência, participem. Na instância do alto rendimento, a instituição promove a

concorrência, competição, análise, comparação e classificação de desempenhos e de

indivíduos. No entanto, também proporciona o encontro de identificação e a construção

da idéia de pertencimento do grupo por meio de suas regras e rituais (treinos e

competições), pois "os indivíduos apresentam-se sempre em configurações e estas são

sempre formadas por indivíduos" (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 291 ).

Page 88: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

'

Em conseqüência do extremo desenvolvimento do desporto para portadores de

deficiência, houve a necessidade de criar entidades que organizassem o esporte adaptado

nas competições internacionais, bem como regras e adaptações. Houve, então, um rápido

crescimento de entidades de organização do desporto internacional para o deficiente.

Hoje, no Brasil, muitas pessoas estão envolvidas com o desporto adaptado. Numa visão

macrossocial e para melhor compreensão dessas organizações, serão relacionadas à

configuração do desporto internacional com suas entidades e a estrutura nacional, com

suas respectivas filiações.

A configuração internacional se compõe a partir das Organizações Internacionais

de Esporte para Pessoas Deficientes (International Organisation ofSport for People with

Disabilities - IOSDs), que estão filiadas ao Comitê Paraolímpico Internacional

(International Paraolympic Committee- !PC).

As organizações internacionais estão estruturadas por grupos de deficiência com

características semelhantes e não por modalidades esportivas, como no desporto em geral.

c Comité lnternational D" Sporu D" SOW"d; I Sogund~ VARELA (1991). a CISS foi fimdada no dia 15 de agootode 1924. "":I o - CISS Pans. E a assomação desportiva mtemactonal mrus anttga no desporto para I M

deficientes. Os primeiros jogos internacionais aconteceram em Paris. em 1924, e I os últimos em 1994, em Sofia (Bulgária). A CISS é membro do IPC e e filiada

I díretatnente ao Comitê Olimpico Internacional desde 1995.

T Ccrobrnl Palsy lntern&ional Sport and Essa organização foi criada em 1978, com a f"malidade de proporcionar maiores

Ê Recreation A.ssociation- CP-ISRA oportunidades desportivas e recreativas a pessoas com paralisia cerebral ou com

I""" cerebrais não progressivas,. congênitas ou adquiridas que provoquem

p disfunção motora Auxilia os países membros a concretizar os seus projetos de desenvolvimento desportivo e recreativo nessa ârea de deficiência A CP-ISRA

A i promove seminários, demonstrações, cursos e colabora na organização de eventos

R nacionais nos países membros. A CP-ISRA realiza os seus jogos i.nternacionais I A

de 2 em 2 anos; seus atletas têm competido nas Paraolimpiadas desde 1980. Intemational Sports Association For Persons F oi fundada em 1988, com o objetivo de organizar e dinamizar o desporto de o With Mental Handicap- INAS-FMH competição par3 deficientes mentais, bem como dar suporte adequado para o

L desenvolvimento do desporto em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento.

Í A Associação organiza "'"" próprios campeonatos mundiais em diferentes

M modalidades. e envia, para "' mesmoo de responsabilidade do Comitê Paraolímpico Internacional atletas de -0 atletismo, e oomo """ p Paraolimpíadas de Atlanta, quando 52 atletas de diferentes países participaram

I como demonstração nessas duas modalidades.

c Intemational Blind Sports Association - 1 A Associação foi criada em 1981, em Paris, e desde então os atletas cegos e

o !BSA deficientes visuais parciais têm competido nas Paraolimpíadm. Sua ação está em I enviar atletas cegos aos eventos e assistir os países com progpunas de desenvolvimento de esportes para cegos. A IBSA realiza seus jogos j internacionais de 2 em 2 anos.

78

Page 89: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

I

I I

I

I Intemational Stoke ?1.1andev'ille Weelchair Talvez st;ja a mais conhecida das federações internacionais, que surgiu pelo

N Sports Federation- ISI\1\VSF trabalho pioneiro de Ludv.-ig Guttmann,. em Stoke Monde'ltille, com pessoas com

T lesão medular. A partir de 1988, a ISMGF passou a se chamar ISMWGF, para englobar todos os atletas em cadeira de rodas com deficiências motoras distintas. ,

E A feden~ção regulamenta e organiza as provas em cadeira de rodas e a I R competição internacional acontece todos os anos, e:-.:ceto no ano paraolímpíco. Os

N primeiros jogos internacionais para paraplégicos, que aconteceram oficialmente

A ,= 1952, iniciaram o movímento paraolimpico e conseqüentemente "' Jogos I Paraolimpicos, realizados pela primeira vez oficialmente em 1960. em Roma.

c Intemational Sporu Organísation Foc The Essa organização surgiu logo após os Jogos Paraolímpicos de 1976, para atender

I Disable- ISOD " necessidades de organização e desenvolvimento desportivo. agrupando "' o deficiência<> que não estavam incluídas em outras federações. como os amputados

N e "les autres'' (distrofias musculares,. esclerose múltipla. nanismo, pólio). A ISOD iru;cre = atletas = competições de nível internacional e P""'olimpioo., A colaborando na organização das atividades.

L I

No Brasil, a estrutura do esporte para a pessoa portadora de deficiência iniciou-se

em 1975, com a criação da Ande, que agregava todo tipo de deficiência.

[Nos anos 80,] ".com a dedicação da Década às Pessoas Portadoras de Deficiência, o fortalecimento das entidades de luta e a criação de novas entidades desportivas, o esporte passou a ser visto e tratado com mais profissionalismo. (PETTENGILL, 1997, p, 306)

ARAÚJO (1998), ao pesquisar sobre a estruturação e institucionalização do desporto

adaptado no Brasil, infere que a instituição do ano de 1981 como Ano Internacional das

Pessoas Portadoras de Deficiência foi significativa para estabelecer o ponto de partida do

movimento no âmbito nacional, voltado às questões do desporto. No entanto, a

institucionalização do desporto para pessoas com deficiência se deu, de fato, no início de

1990, com o lançamento do Plano Plurianual 1990/1995 (Plano de Governo).

Com a participação crescente de pessoas deficientes, entidades de deficiências

afms foram se desagregando da Ande e, hoje, formam associações esportivas distintas

(BRASIL PARA OLÍMPICO, 2000):

' Associação Nacional de Foi a primeira associação do desporto para pessoas I Desportos para Deficientes - portadoras de deficiência a se organizar no país,

I ANDE fundada em 1975, Atualmente, organiza o desporto

, para pessoas portadoras de paralisia cerebral e les I autres. Internacionalmente. é filiada à CP-ISRA, Associação Brasileira de, Foi fundada em janeiro de 1984, no Rio de Janeiro, Desportos para Cegos -I No âmbito internacional, é filiada à IBSA ABDC I

79

Page 90: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Comitê Paraolímpico Brasileiro

Associação Brasileira de F oi criada em dezembro de 1984 e reconhecida em setembro de 1987. após a fundação de três regionais. Internacionalmente, é filiada à ISMWSF. ,

Desporto em Cadeira de Rodas- ABRADECAR Associação Brasileira de Desportos para Deficientes Mentais- ABDEM Associação Brasileira de Desporto para Amputados -ABDA

i Confederação Brasileira de

1

1 Basquetebol em Cadeira de Rodas

Foi fundada em 1989, mas seu reconhecimento I aconteceu em 1995, após ajustes no seu estatuto. No ãmbito internacional, é filiada à INAS-FMH Fundada em agosto de 1990, organiza o desporto para pessoas amputadas. Internacionalmente, é filiada à Isod. Vinculou-se ao CPB, após ter se desvinculado da Abradecar.

Essas associações nacionais estão filiadas ao Comitê Paraolimpico Brasileiro

(CPB), que foi criado em 30 de agosto de 1994, no Rio de Janeiro. Essas entidades têm

como principal objetivo fomentar o esporte para pessoas portadoras de deficiência e

organizar o desporto para competições regionais, nacionais e internacionais, orientando,

junto ao CPB, a participação das equipes nacionais em competições internacionais e nas

paraolímpíadas. Na base da configuração do desporto adaptado, estão os clubes esportivos

que vinculam-se diretamente às associações nacionais correspondentes e estas, ao CPB.

A configuração organizativa do CPB comporta atualmente 24 pessoas; destas, 8 são

mulheres. Dos 8 cargos diretivos do comitê, 2 são ocupados por elas, o que representa

25% do poder de decisão. Esta proporção, embora pequena, está de acordo com a

recomendação de 1995 do Comitê Paraolimpico Internacional (CP!), quando aderiu à

Declaração de Brighton.

Outro locus para obseiVações sobre configuração é a composição das comissões

nacionais. A Comissão Nacional de Atletas - CNA -, que pertence ao Ministério do

Esporte, é formada por 33 membros: 25 homens e 8 mulheres, das quais 3 são oriundas do

paradesporto. E a Comissão Nacional de Atletas Parolímpicos- Conap -, que pertence ao

CPB é formada por 26 membros: 19 homens e 7 mulheres.

A respeito do desenvolvímento e fomento para o desporto adaptado, sempre houve

instabilidade e muitas dificuldades (PETTENGILL, 1997; 2001; ARAÚJO, 1998). A partir de

Sydney, a Lei n.0 I 0.264- conhecida como Lei Agnelo/Piva por causa do nome de dois

80

Page 91: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Banco do Brasil Patrocinador Oficial

da Delegação Paraolímpica Brasileira.

·~· www.bb.com.br 81

Page 92: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

de seus autores, o senador Pedro Piva e o então deputado federal e atual ministro do

Esporte Agnelo Queiroz - estabelece que 2% da arrecadação bruta de todas as loterias

federais do país sejam repassados ao Comitê Olímpico Brasileiro (85%) e ao Comitê

Paraolimpico Brasileiro (15%).

Este percentual, de 15% sobre os 2% da arrecadação bruta, confere ao CPB receber

aproximadamente R$ 700.000,00/mês. Segundo VERÍSSllvlO (2003), no Plano de

Aplicação de Recursos do CPB, 74% são destinados para fomento e manutenção do

desporto (59%- modalidades; 10%- desporto escolar; e 5%- desporto universitário).

Outros 14% são destinados para a manutenção das associações nacionais e 12% para a

manutenção do CPB.

Ainda com relação a estes dados, há a seguinte distribuição dos recursos por

modalidade:

atletismo e natação: 8% cada;

basquetebol, futebol de 5 e tênis de mesa: 3,5% cada;

futebol de 7, golbol e judô: 3% cada;

tênis e bocha: 1,5% cada;

tiro, ciclismo, esgrima e halterofilismo: 1% cada;

adestramento, voleibol e iatismo: 0,75% cada.

Com a nova política de incentivo ao esporte adaptado de alto rendimento,

implantada após as paraolimpíadas de Sydney, foi criada a Equipe Paraolímpica

Petmanente (EPP), sendo composta por técnicos, atletas e guias. A seleção dos atletas é

baseada em resultados técnicos anteriores, avaliações físico-funcionais em Centros de

Excelência e precedidos por um minucioso planejamento, visando alcançar um patamar

inédito em quantidade e qualidade de medalhas em Atenas (2004). Os atletas, técnicos e

guias das EPPs estão recebendo uma bolsa-incentivo que possibilita, conseqüentemente, a

dedicação necessária aos treinamentos, indispensáveis ao alcance sistematizado de

resultados.

82

Page 93: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Os critérios utilizados pelo CPB para defmição das Equipes Paraolimpicas

Permanentes 2003 tiveram como referência os campeonatos mundiais de cada modalidade

em 2002 (CPB, 2003). Os valores da bolsa-incentivo variam entre R$ 600,00, R$ 500,00 e

R$ 400,00, e a vigência é de 4 meses, podendo ou não ser renovável.

Os atletas medalhistas nos Jogos Paraolímpicos, a partir de Seul, desde que

convocados para a EPP, recebem um valor mensal de acordo com a medalha mais

expressiva obtida pelo atleta: R$ 3.000,00 (ouro); R$ 1.800,00 (prata) e R$ 1.200,00

(bronze). Além disso, recebem um prêmio por medalha em campeonatos mundiais: R$

1.500,00 (ouro); R$ 900,00 (prata) e R$ 600,00 (bronze). E também um prêmio por

recordes mundiais de R$ 1.500,00.

O nível socioeconômico e o incentivo financeiro influem significativamente nas

oportunidades de participação e na permanência das atletas no desporto adaptado Esta

fase- para usar o conceito estático de época, antes da Lei Piva e depois da sua aprovação,

antes de Sydney e depois de Sydney - é considerada, neste estudo, como uma fase de

transição e em processo, com muitos estágios intermediários.

Como enfatizado anteriormente, essa política só pôde ser adotada pelo CPB após os

Jogos Paraolímpicos de Sydney, em 2000. Até então, os recursos para desenvolvímento e

fomento do desporto adaptado eram oriundos de órgãos federais e de algumas empresas

patrocinadoras.

Tal situação está colocada nos enunciados das atletas, quando perguntadas se

recebiam patrocínio:

Não. (El)

Não, no momento a gente estamos com patrocínio ... mas só até quando terminar a paraolimpíada. Eu pretendo continuar, batalhar, conseguir um patrocínio, porque a gente tendo um patrocínio eu acho que melhora muito, porque aí estimula mais o atleta ... então a atleta precisa de um bom patrocínio, de uma ajuda, de um apoio. (E2)

Tenho, mas por enquanto ... Atleta no Brasil só treina, a força de vontade e arrasto, só. (E3)

83

Page 94: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

... digamos que a gente é até privilegiada assim, pois são todos humíldes, assim, mas a gente tem o apoio do governo do estado, pm trazer resultado pm eles também e a gente ... ele apóia a gente, assim ... desde que eu entrei, que já começou a dar resultado, ele até agora tá nos apoiando, a gente bem que merece patrocínio melhor, mas, por enquanto, só isso mesmo. Além do patrocínio ... tenho que trabalhar, se não for a luta ... (E4)

Tenho. Dá pra me manter sim. (E6)

Tenho uma ajuda de custo ... e quando eu estava saindo, um dia antes de vir pra cá pra Sydney, fechei um patrocínio ... (E7)

Não. É difícil porque a gente sem patrocínio ... meu patrocínio é minha fumília. Eu preciso muito de patrocínio, porque é um esporte que a pessoa ... é um esporte caro, e a pessoa precisa patrocínio pra manter e poder fazer o esporte. (E8)

Esse ano só que eu estou com o patrocínio ... os outros anos é "paitrocínio" mesmo. (E9)

Diante das respostas, inferimos que paradesporto e patrocínio apresentam-se, um

para o outro, como ilustres desconhecidos. Podemos atribuir este estado de coisas a

alguns fatores como: o desconhecimento pela comunidade em geral da própria atividade

(paradesporto ), principalmente a empresarial; a falta de vontade e o receio em associar

sua marca e produtos à deficiência; o despreparo dos atletas para encarar o paradesporto

como profissão; a carência de recursos que até então rondava a Organização do

Paradesporto no Brasil; o recém criado e instalado Comitê Paraolimpico Brasileiro; a

instabilidade do sistema no que diz respeito ao calendário de competições e a falta de

profissionais especializados que ainda cerca a área. Todos estes fatores citados são fruto

de observações e ainda carecem de estudo específico.

Como configuração, o paradesporto tem normas, valores, coletividade,

hierarquias, controle e ou imposição do poder. Percebemos no grupo um engajamento

seletivo, mas voluntário, centrado em afinidades e interesses comuns. Além de legitimar e

reconhecer o papel social do paraatleta. Nesta linha, (re )afirma-se que configuração em

Elias é o agrupamento de pessoas com sua dinâmica, sua lógica, seus problemas e

controle de tensões. "As configurações de indivíduos não são nem mais nem menos reais

do que os indivíduos que as formam" (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 290). É da própria

84

Page 95: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

configuração que dependem, em qualquer momento, as decisões, as intenções e os

movimentos dos indivíduos.

O Comitê Paraolimpico Internacional foi criado oficialmente em 1989 e o Comitê

Paraolímpico Brasileiro, em 1994. Portanto, ambas as instituições são novas e encontram­

se em fase de organização e consolidação em quase todas as áreas. Neste sentido,

analisamos nos enunciados das atletas alguns fatos que inicialmente podem ser vístos

como fragilidades do sistema paraolimpico brasileiro, por exemplo:

Porque eu fui pra competição de natação e afoguei, fiquei debaixo da água. Foi, aí eu desisti, fiquei um tempão sem fazer esporte nenhum. (E!)

... aí colocaram outra atleta no meu lugar ... quando cheguei, passei duas semanas sem treinar, eu não queria voltar, eu não me via como atleta ... daí eu disse, peraí, eu vou dar um tempo pra mim mesma, depois eu começo tudo novamente ... aí ele (o amigo) disse: você está convocada, prepara a mala, porque que "eles" pediram desculpa e agora você só tem que treinar, fazer o melhor de você. (E2)

Meu técnico ... mora em (uma cidade) e eu moro em (em outra cidade de outro estado). Uma vez por semana, ou até duas vezes, meia-noite, quando eu chego do colégio, ele liga, e diz: aí como é que tá? Como é que treinou? Próxima semana faz isso de novo. Ele é legal, uma pessoa legaL (E4)

... e aí eu comecei a me destacar na Educação Física, as professoras perguntaram se eu não tinha interesse em começar a treinar pra viajar... apareceu a oportunidade, a chance, eu vim no brasileiro ... então eu competi ... e quando eu cheguei pra competir... eu não sabia nada ... nem que tinha um preparo todo ... cheguei lá não sabia de nada, mas aí foi legal, eu fiquei com a medalha de prata ... aí logo nesse ano, em 94,já veio minha convocação pro Sul-Americano ... (E5)

... Como todo atleta, né, não só o portador de deficiência. É difícil. O desporto é menos divulgado, então, já tive muitas competições, viajei sem treinar praticamente, estava sem técnico, não tinha apoio, não tinha nada, e fui, consegui ... eu sou muito guerreira, eu corro atrás. (E6)

... eu não me sentia atleta não, eu ia competir porque estava sem fazer nada mesmo, mas não me sentia atleta não. (E7)

... praticar um esporte pra sair, pra ter alguma coisa pra fazer na vida ... (E8)

Eu comecei a competir em 93, nem sabia de nada, eu era a maior inexperiente ... porque Atlanta foi uma coisa assim, falaram assim, você vai, um mês antes, né, então Atlanta foi meio de surpresa ... agora não, agora a gente veio mais preparado ... só fiquei esses dois meses (com o

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Page 96: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

técnico que acompanhou a modalidade) ... eu tô treinando com o técnico que veio comigo pra cá, pelo fato que ele ia ficar comigo nesse um mês. (E9)

São equívocos, falta de estrutura, desorganização e improviso do e no sistema que

podem gerar nas atletas decepção, falta de perspectiva, desestimulo, despreparo, etc. Mas

também podem facilitar sua permanência no sistema/desporto adaptado, bastando para

isto associar a escassez de atletas de alto nivele a pouca competitividade com atitudes que

mesclam oportnnismo e conveniência. Portanto, não deixa de ser uma possibilidade para

as atletas que querem e se esforçam para permanecer no sistema. Essa necessidade de

pertencer ao grupo e, no caso deste estudo, de permanecer no circnito do desporto

adaptado pode ser percebida nas falas das próprias atletas:

Comecei com a modalidade X .. Eu faço modalidade Y quando é pra viajar pra fora do país. Na modalidade X tem muitas meninas, né ... mas quando é pra viajar pra fora, eu faço a modalidade Y, porque eu treino as duas. (E4)

Eu comecei ... quando conheci uma associação ... fiz tênis de mesa, natação, atletismo e bocha .... foi a partir daí que eu deixei de fazer as outras modalidades e fiquei na especialidade (uma modalidade), porque era a modalidade da qual me dava condição de viajar, a nível de competir... (ElO)

... e eu pretendo continuar competindo como atleta até quando for possível, trocando de provas é lógico ... (E5)

Mesmo com as fragilidades e possibilidades apontadas pelas atletas sobre a

configuração desporto adaptado, representar essa estrutura e o país é, para elas, um misto

de prazer e responsabilidade. Nos enunciados que se seguem, é possível averiguar que há

orgulho pessoal e orgulho grupal ao responderem a pergunta: Como é representar o

Brasil?

86

Page 97: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

É uma responsabilidade muito grande, é uma cobrança muito grande, por você estar aqui, você tem a obrigação de ser a melhor, né. Você é a melhor. (E!)

Ahl Eu me sinto muito importante, apesar de que às vezes eu sou muito insegura ... (E2)

Primeiro de tudo, eu estou muito feliz de estar aqui representando o país e é uma honra pra gente participar da paraolimpíadas ... (E3)

Pra mim é uma honra muito grande, assim, poder vestir a camisa do meu país, e poder defender. Eu me sinto assim, maravilhosamente bem assim ... (E4)

Ahi Me sinto muito orgulhosa, me sinto muito honrada, mas tô me sentindo feliz de estar aqui, de estar vestindo essa camisa amarela, mas, em outros momentos, me sinto um pouco humilhada, porque ... a gente não tem o mesmo tipo de apoio (que os olímpicos). (E5)

... É bom demais, mas ao mesmo tempo, a gente mesmo se sente cobrada nisso tudo, então, é aquela coisa, de você vem representando seu pais ... eu fico pensando, eu tô aqui.. vou representar meu pais, e vou representar bem. (E6)

Significa tudo. Minha responsabilidade é muito grande. Eu tô aqui, não quero sair daqui sem medalha não, de jeito nenhum. Tenho que levar minha medalha de todo jeito. (E7)

É a coisa mais maravilhosa. Coisa mais sensacional representando o país. A emoção vibra até as nuvens. (E8)

Pra mim é legal. Você tà representando um país, você tà numa competição onde tem vàrias pessoas de países diferentes. Pra mim é uma coisa boa, pra mim é importante também, né, porque a gente treina pra ter um objetivo. (E9)

Para ELIAS e SCOTSON (2000), o orgulho é variável e extremamente sensível e

pode se tomar uma forma positiva de auto-avaliação das pessoas como indivíduos ou

grupos. "E esse valor que alguém atribui a si mesmo, enquanto membro de um grupo ou

enquanto indivíduo é um elemento fundamental da existência hmnana" (ELIAS; SCOTSON,

2000, p. 211 ). O orgulho tem um papel central nas constantes experiências de grupos

humanos de obter ou preservar uma posição elevada em meio a seus semelhantes, mais

eminente do que a dos possíveis adversários. A mesma necessidade de aprovação ou

promoção do próprio valor do grupo se revela nos esforços, por meio das palavras e

ações, evidenciando as vantagens do próprio grupo e as falhas dos outros (ver exemplo na

nota 3 - Gigantes Paraolímpicos ).

Ainda discutindo sobre estruturaí configurações, algumas delas se apresentam como

referências com o intuito de orientar, sistematizar e regular as ações e principalmente

87

Page 98: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

ocupar e consolidar o espaço legitimado, assunto visto no Capítulo 2. Assim são os

organismos internacionais que tratam da mulher no esporte: encarregam-se dos valores e

orientam as práticas para esse grupo. Essas organizações têm se reunido sistematicamente

para apontar caminhos e fortalecer os espaços já conquistados e, nesta investigação,

buscamos principalmente referências á mulher com deficiência.

Recomendações dos organismos internacionais e referências à mulher com

deficiência

A atenção dada a essas recomendações e princípios por essas organizações é de

fundamental importância, na medida em que têm sido debatidas internacionalmente, com

vistas ao seu conhecimento e cumprimento pelos diversos órgãos que coordenam e

administram o esporte mundial na perspectiva da participação da mulher. Neste trecho,

procuramos destacar nos princípios e recomendações arrolados na seqüência cronológica

apenas os enunciados que têm conexão ou que de alguma maneira se reportam às

mulheres portadoras de deficiência.

Os princípios da Declaração de Brighton -1994

Dentre os princípios já comentados anteriormente, destaca-se o que trata do

equihbrio e igualdade na sociedade e no esporte:

a) todos os esforços devem ser feitos pelas máquinas estatais e governamentais

para garantir que as instituições e organizações responsáveis pelo esporte

concordem com as cláusulas de igualdade da Carta das Nações Unidas, da

Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Convenção das Nações

Unidas sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as

mulheres;

88

Page 99: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

b) Iguais oportunidades de participação e envolvimento no esporte com o

propósito de lazer e recreação, promoção de saúde ou alto nível, é o direito de

todas as mulheres, sem distinção de raça, cor, língua, religião, credo, orientação

sexual, idade, estado civil, portadora de necessidades especiais, afinidades

políticas ou partidárias, nacionalidade ou origem social (KLUKA; MELLING;

SCORETZ, 2000).

Conferência mundial do Comitê Olímpico Internacional sobre mulheres e esporte -

1996

Um evento marcante na história das mulheres no esporte aconteceu em outubro de

1996, quando o CO! deu as boas-víndas para cerca de 220 participantes, de mais de 96

países, para a sua primeira conferência sobre a mulher e o esporte. Os líderes mundiais,

representando o comércio, educação, governo e esporte, dirigiram-se até a sede do CO!,

em Lausanne (Suíça), para definir os tópicos referentes às mulheres e ao esporte (KLUKA;

MELLING; SCORETZ, 2000).

Os três dias de conferência abordaram os cínco temas seguíntes:

1. mulheres e o movimento olímpico;

2. o papel das mulheres na admínistração e orientação técníca;

3. cultura e mulheres esportivas: ficou claro que a cultura desempenha diferentes

papéis em cada um desses países, mas que a igualdade de gênero é um

problema mundial;

4. educação das mulheres e saúde por meio do esporte e da atividade fisica;

5. apoio governamental e não governamental das mulheres esportistas.

Reconhecendo que o ideal olímpico não pode ser completamente realizado sem

que - e até que - haja igualdade para as mulheres dentro do Movimento Olímpico, é

necessário:

89

Page 100: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

chamar a atenção do Comitê Olímpico Internacional, federações internacionais

e comitês olímpicos nacionais para que levem em conta as questões de

igualdade de gênero em todas as suas políticas, programas e procedímentos e

que reconheçam as necessidades especiais das mulheres, de modo que elas

possam tomar parte no esporte completa e ativamente;

recomendar que sejam dadas iguais oportunidades para avanços pessoais e

profissionais para todas as mulheres envolvidas no esporte, seja como atletas,

técnicas ou administradoras. E, ainda, que as Federações Internacionais e

Comitês Olímpicos Nacionais criem comissões especiais ou grupos de trabalho

compostos de, pelo menos, 1 0% de mulheres para idealizar e ímplementar um

plano de ação voltado à promoção das mulheres no esporte.

E, especificamente em relação às mulheres portadoras de deficiência, chamar a

atenção das federações esportivas nacionais e internacionais para facilitar e promover o

esporte para mulheres portadoras de deficiência, tendo em vista que estas encaram um

duplo desafio no mundo do esporte.

11 Conferência Mundial sobre a Mulher e o Esporte-1998

Quatro anos depois de Brighton, 400 delegados de 74 países participaram da "II

Conferência Mundial sobre a Mulher e o Esporte", realizada em Windhoek, Narmbia, de

19 a 22 de maio de 1998. Nesse evento, os participantes lançaram a "Carta de Windhoek",

a fim de incrementar as oportunidades da participação de meninas e mulheres na prática

de atividades fisicas. Os conferencistas reconheceram e afirmaram a importância de maior

cooperação e coordenação entre os numerosos organismos responsáveis por questões que

dizem respeito à mulher. Além de reafirmar os princípios da Declaração de Brighton, os

delegados da conferência elencaram algumas ações para serem observadas; entre elas,

destacamos a que mais diretamente atende às mulheres portadoras de deficiências:

assegurar que as políticas e programas ofereçam oportunidades a todas as jovens e

90

Page 101: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

mulheres, com pleno reconhecimento das diferenças e diversidade que as separam,

incluindo fatores como etnia, capacidade, idade, religião, orientação sexual, idioma e

cultura (IWG, 2002).

IV Conferência das Mulheres Européias e Esporte- 2000

A missão da rede de trabalho das Mulheres Européias e Esporte (MEE) é promover

a igualdade de gênero na prática esportiva. O principal objetivo do Grupo MEE é criar

uma cultura esportiva em que todos os meninos e meninas, homens e mulheres tenham

iguais oportunidades de participação, tarefas e tomada de decisões. A atenção é focada

nas atividades que dão suporte a lideranças femininas no esporte.

A IV Conferência das Mulheres Européias e Esporte foi organizada em Helsinki,

Finlândia, de 07 a I O de junho de 2000. Duzentos e cinqüenta delegados de 47 paises da

Europa e de outras partes do mundo estiveram presentes no evento, que tinha como tema

"Mulheres, esporte e cultura - como mudar a cultura esportiva".

Um dos altos principais da conferência foi a apresentação de tópicos voltados para

a mulher com deficiência na cultura esportiva. A Dra. Gundrun DoU Tepper, da

Alemanha, fez uma palestra sobre "O movimento internacional das mulheres e do esporte:

estreitamento de conexões para as mulheres com deficiência". O assunto das mulheres

com deficiência foi também apresentado em diferentes sessões paralelas e em painéis de

discussão. A conferência formulou recomendações chamadas de "Espírito de Helsinki

2000" e que estão baseadas nos princípios da "Declaração de Brighton" e na "Carta de

Windhoek" (KOLKKA, 2000).

Dentre as recomendações formuladas especificamente para atender às mulheres

portadoras de deficiências, estão:

,/ pessoas com deficiência e com necessidades especiais devem ter as mesmas

oportunidades para participar de atividades físicas, tanto em diferentes esportes

como em diferentes níveis;

91

Page 102: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

,í mulheres com deficiência e com necessidades especiais devem ter iguais

oportunidades na tomada de decisão dos esportes, em todos os níveis;

,í por meio da cooperação entre pessoas com e sem deficiência a tolerância é

reforçada. Além do mais, o contato entre diversos grupos é promovido;

,í para implementar essas recomendações, planos de gênero igualitário devem ser

desenvolvidos por esses organismos e/ou solicitar a seus membros que façam

isso. Esses planos devem ser divididos pela rede de trabalho MEE. Constante

monitoramento e avaliação do processo em direção à igualdade de gênero

devem ser procedidos e relatados.

Mulher e esporte: Sydney 2000

No dia 27 de outubro de 2000, o CP! promoveu uma reunião técnica com

representantes dos países participantes dos Jogos Paraolimpicos para discutir a situação

da atleta portadora de deficiência. As questões discutidas no encontro foram publicadas

por MUSHETT (2000), dentre as quaís destacamos:

,í a participação feminina nas Paraolimpíadas ainda é baixa, chegando a apenas

25% em Sydney;

,í o desenvolvimento e a implementação sistemática de políticas no sentido de

igualar homens e mulheres começou a reverter o alarmante declínio da

participação feminina no esporte paraolímpico;

,í a igualdade entre homens e mulheres requer uma ação coordenada e sistemática

por meio do esporte, comitês nacionais, regionais, gerência e comitê executivo

do CP!, comitê de desenvolvimento do CP! e o apoio de toda a eqnipe do CPI.

Conferência Mundial sobre a Mulher e o Esporte- 2002

Mais de 500 pessoas de 97 países assistiram às discussões acontecidas na

"Conferência Mundial2002 sobre a Mulher e o Esporte", entre os dias 16 e 19 de maio de

92

Page 103: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

2002, em Montreal, Canadá. A conferência foi organizada pelo Grupo de Trabalho

Internacional sobre Mulher e Esporte e nela os participantes compartilharam suas

experiências em tomo do esporte e da atividade física como ação de desenvolvimento dos

indivíduos, das comunidades e das nações. Tratou-se o tema no sentido de promover

desenvolvimento, cooperação, liderança, entendimento internacional e a paz e,

especialmente no que diz respeito á mulher, mencionou-se a importância do esporte na

promoção da auto-estima e confiança. Durante a conferência, falou-se sobre as maneiras

de como produzir uma mudança na cultura e nos sistemas esportivos de tal forma que haja

maior inclusão, confiança e respeito; e, ainda, examinaram-se diversos métodos para

influir sobre os governos, as organizações esportivas, meios de comunicação e

patrocinadores. Quanto á mulher portadora de deficiência, o CP! informou a situação e as

iniciativas relativas à atividade física e ao esporte adaptado para meninas e mulheres

portadoras de deficiência. Entre as iniciativas, está a criação de um instrumento que

permite ao CP! determinar o nível de participação de mulheres nos principais eventos

internacionais e obter dados por pais e provas. Outras iniciativas promovidas pelo CP! e

que têm dado resultado são: maior atenção para as provas de risco para mulheres e atletas

com comprometimentos graves; adição de provas viáveis para as mulheres; divisão

eqüitativa de vagas entre os distintos esportes e países; e ênfase em difundir as ações

realizadas pelos Comitês Paraolímpicos Nacionais quanto às questões relativas à mulher e

o esporte (REUTER, 2002).

Quanto à mulher portadora de deficiência, consideramos que o avanço, tanto na

Declaração de Brighton quanto na Carta de Windhoek ou nos informes, é observado

quando esses documentos recomendam, de forma abrangente, a eliminação de todas as

formas de discriminação, a adequação dos recursos físicos e o atendimento das

necessidades específicas das mulheres envolvidas com o esporte. De certa forma, essas

ações contemplam as mulheres com necessidades especiais envolvidas no esporte.

De Brighton a Montreal, muitas têm sido as discussões e ações e destacamos que,

no conjunto das reflexões, há sempre a preocupação com as meninas e mulheres

93

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portadoras de deficiência. Destacamos que há ênfase em que as medidas possam ajudá-las

a superar dificuldades pessoais e sociais, desenvolvendo auto-estima e confiança em si

mesmas, assegurando igualdade de oportunidades no acesso a atividades fisicas,

competições, treinamentos e posições de liderança propiciando uma mudança na cultura e

nos sistemas esportivos.

Para demonstrar a visibilidade dessas ações, podemos observar as declarações das

atletas quando perguntadas: o que significa ser atleta do esporte adaptado? Ou, de outra

forma, com o mesmo significado: o que significa para você ser atleta da estrutura

paradesporto?

Significa tudo pra mim. O esporte me trouxe pra vida. O próprio esporte me trouxe pra vida. Hoje eu sou uma pessoa que tem muita alegria de viver, né, muita vontade de viver e ... (E 1)

Pra mim é normal, eu acho assim, que eu me sinto como pessoa normal, porque eu não vejo diferença ... (E2)

Significa muita coisa. Exemplo de vida também ... realização pessoal, psicológica ( ... ) E, minha cabeça que eu tenho hoje, eu não teria se não tivesse entrado nesse meio. (E3)

Nem sei explicar. Acho que é um exemplo de vida pras outras pessoas, ser atleta( ... ) Você só é visto, quando você é atleta ... (E4)

Pra mim é normal, porque eu acho que não tem muita diferença, no meu caso ... (ES)

É importante não só pro deficiente, como também pras pessoas normais, porque o esporte ajuda muito, né, a sua saúde, né, então pra gente, pro deficiente ... (E6)

Significa tudo. Minha responsabilidade é muito grande. Eu tõ aqui, não quero sair daqui sem medalha não, de jeito nenhum. Tenho que levar minha medalha de todo jeito. (E7)

Olha, pra mim é assim, pra gente mostrar pras pessoas que a gente é capaz de fazer alguma coisa. As pessoas acham que por a gente ser deficiente a gente não faz nada. Tá largado lá. Isso aí é uma forma de falar pra eles ... (E9)

Acho que significa tudo, acho que realmente é você se integrar, é você se adaptar, é uma sociabilização, eu acho que o esporte ao meu ver é tudo. Porque a pessoa, ela é portadora de deficiência, e o esporte pro portador de deficiência ajuda na nossa formação, na nossa independência, pra você ter habilidade ... (E! O)

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Enfatizamos que as respostas das atletas demonstram que as medidas - dos

organismos internacionais - em maior ou menor escala, podem ajudá-las a superar

dificuldades pessoais e sociais. Em suas declarações há auto-estima positiva e confiança

em si mesmas. Transformação, realização, visibilidade, plenitude e capacidade são alguns

dos elementos que estão em evidência em suas falas.

Finalmente, esses processos servem como um ordenado r da experiência, na medida

em que nos ajudam a compreender como se constrói a representação micro e macrossocial

da atleta paraolimpica.

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During the past several years, the Sport Technical Department has placed a high priority on improving opportunities from women in Paralympic sport. I am pleased to inform you that 80 ofthe 123 countries in the Sydney 2000 Paralympic Summer Games have entered women athletes. This is an increase of 31 countries since 1996. ln Atlanta only 53 per cent of nations included women athletes; in Sydney 65 per cent of nations will include women athletes. Since 1996, the total number of women athletes has risen by nearly 35 per cent. The number o f women's events which did not meet the criteria to be on the Paralympic program due to

Photo: Lieven Coudenys

under-registration and lack o f entries is the smallest since the establishment o f the criteria as "widely practiced". Sport initiatives which have been successful include:

Equity in allocation of country wildcards

Emphasis on at-risk events for women and athletes with severe disabilities in

allocation of sport wildcards

Addition o f viable events and disciplines for women

Equitable allocation of slots by sport and nation

3 Ilustração 9 .I: artigo publicado na edição especial do TIIE P ARAL YMPIAN, outubro de 2000, p.6.

96

Page 107: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

CAPÍTUL04

Estabelecidos-outsiders eliasianos e

atletas paraolímpicas: rótnlo e sujeição

Neste capítulo, dando continuidade à analogia e análise das caracteristicas da

relação estabelecidos-outsiders com o discurso das atletas, são discutidos: o fato de que o

grupo estabelecido tende a atribuir, ao conjunto do grupo outsider, as caracteristicas ruins

de sua porção pior, em contraste, sua autopercepção tende a se espelhar na minoria de

seus melhores membros; a possibilidade de um grupo afixar em outro um rótulo; o

estigma social imposto pelos estabelecidos aos outsiders; a semelhança do padrão de

estigmatização; e a sujeição a padrões específicos.

Um caráter distintivo da relação estabelecido-outsider é o fato de que o grupo

estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo outsider as características ruins de

sua porção pior, em contraste, sua autopercepção do grupo estabelecido tende a se

espelhar na minoria de seus melhores membros. Haverá sempre um fato para provar que

o próprio grupo é bom e que o outro é ruim. "É com base nos afetos e nas emoções que se

produz esta forma de generalização da parte para o todo" (ELIAS; SCOTSON, 2000, p.

175).

Isto quase sempre acontece devido ao fato de as representações serem distorcidas

da realidade, no sentido de que o ideário que se tem de um determinado grupo é uma

representação muito simplificada das realidades sociais e que tendem a uma generalização

do todo, tomando por base (ou por exemplo) uma pequena parte desse grupo. Essa

distorção é tanto para melhor quanto para pior.

Para buscarmos a compreensão desse processo, procuramos entender como se

situam as mulheres no paradesporto. Desde os primeiros Jogos de Stoke Mandeville, na

Inglaterra, em julho de 1948, com a participação de dois times - um do hospital de Stoke

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Page 108: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Mondeville e outro do Star Garter Home for Disable (Ex-servicemen), de Ricbmond­

Londres -, as mulheres estiveram presentes nas competições (três entre os dezesseis

participantes). Naquele ano, elas competiram nas provas de arco e flecha (CIDADE;

FREITAS, 2002).

Desde então, a participação de atletas com deficiência no desporto adaptado vem

crescendo. Os Jogos Paraolímpicos, como evento esportivo, são relativamente novos

quando comparados aos Jogos Olímpicos modernos. Os prímeiros Jogos Paraolímpicos

ocorreram oficialmente em 1960, em Roma. Dados recentes demonstram que, na

Paraolímpíada de Atlanta (1996), 53% dos países participantes tinham mulheres

competindo, num total de 780 mulheres, o que representou 24,5% do total de atletas; em

Sydney (2000), 80 dos 123 países, ou seja, 65%, tinham mulheres atletas em suas

delegações, num total de 978 atletas, o que representou 25,4% do total de participantes.

Quanto às modalidades, em Sydney, as mulheres tiveram acesso a 15 e os homens a 20

modalidades, se considerarmos o basquete para portadores de deficiência mental e o

voleibol (MUSHETT, 2000; REUTER, 2002).

Com relação à participação de atletas brasileiras nas duas últimas Paraolímpíadas,

observamos que, na delegação que foi para Atlanta, dos 58 atletas, 18 eram mulheres,

sendo que 12 faziam parte da equipe de basquete sobre rodas. Na delegação que foi para

Sydney, de 64 atletas, o número de mulheres caiu para 10 (mas a equipe de basquetebol

não participou). É interessante observar que das 6 medalhas de ouro para o Brasil, 5

foram conquistadas por mulheres. Ainda nessa delegação, houve a participação de 24

profissionais (não-atletas), sendo que as mulheres envolvidas em outras funções eram

apenas sete: duas classificadoras, uma enfermeira, duas fisioterapeutas e duas

profissionais destinadas a dar apoio à delegação. Entre os 13 técnicos brasileiros presentes

em Sydney, havia apenas uma mulher. Estes dados refletem uma tímida participação de

mulheres na elite do desporto adaptado no Brasil. FASTING et al. (2001) enfatizam que as

mulheres devem ter acesso ao esporte em todos os níveis e esse fato vem ganhando apoio

dos meios acadêmicos, políticos e do público em geral.

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Alguns estudos têm sido realizados relacionando as mulheres portadoras de

deficiência e o esporte. Pretendemos destacar aqui alguns daqueles trabalhos que foram

divulgados em encontros internacionais.

No XII Simpósio Internacional de Atividade Física Adaptada- Isapa -,realizado

em maio de 1999, em Barcelona, o tema esteve presente nas discussões. DOLL-TEPPER e

SCORETZ (1999), representando o Intemational Council of Sport Science and Physical

Education- ICSSPE -,apresentaram o trabalho "Movimento Internacional do Esporte para

Mulheres: estreitas relações com a portadora de deficiência", colocando as seguintes

questões:

..í Onde e como a mulher portadora de deficiência está representada?

..í Quais áreas/assuntos são importantes para a mulher com deficiência?

..í Como esta representação pode ser aumentada de tal forma que esses fatos sejam

incluídos nas ações diárias?

..í Que ações/tarefas cada indivíduo pode ter que assegurem a implementação de

políticas e programas esportivos que possibilitem princípios igualitários?

Ao levantar estas questões, as autoras tinham a intenção de colocar a necessidade

de aumentar o número de participantes em todas as áreas do esporte, aumentar as

oportunidades de participação de mulheres portadoras de deficiência no esporte e nas

atividades fisicas, envolver mais mulheres de diferentes profissões/áreas e experiências

pessoais para abrir as portas, a fim de disponibilizar recursos, redes de informações e

contatos.

Outro estudo apresentado nesse mesmo simpósio, segundo TIEMAN (1999), foi

"Explorando a vida esportiva de mulheres com deficiência física", realizado por

pesquisadoras de Berlim. Focado na socialização por meio do esporte e na percepção de

regras sociais em mulheres atletas, o trabalho foi realizado por meio de entrevistas e as

pesquisadoras apresentaram o seguinte resumo dos resultados:

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v' o resultado confirmou que é apropriada a separação de mulheres com anomalias

congênitas das que possuem anomalias adquiridas quando se pesquisa a

socialização por meio do esporte;

v' o processo de socialização do esporte para mulheres que tiveram deficiência

física adquirida foi fortemente influenciado por outras pessoas, como, por

exemplo, fisioterapeutas e artistas;

v' o resultado dessa pesquisa também ressaltou na necessidade de diferenciar as

experiências da mulher tanto dentro como fora do esporte para deficientes;

v' ficou também revelado que a sociedade vê com freqüência as mulheres atletas

como vítimas e de quem devemos ter pena;

v' também ficou claro que o esporte primeiramente é visto como uma reabilitação

(na Europa Ocidental) sob o ponto de vista funcional;

v' as entrevistas mostraram que a elite de atletas portadoras de deficiência física é

influenciada por diferentes expectativas de papéis sociais e por diferentes

papéis conflitantes que resultam dessas interações.

Durante o Congresso Pré-Olímpico do Conselho Internacional de Ciência

Desportiva e Educação Física, ICSSPE, no período de 7 a 13 de setembro de 2000, foi

realizado um simpósio intitulado "Gênero, cultura e política: 100 anos de participação

feminina nas Olimpíadas". No que diz respeito ao esporte adaptado, Karen DePauw

(EUA) expôs sobre: "As atletas portadoras de deficiência: perspectivas e oportunidades",

e Fan Hong (China) sobre "Corpo e poder: de mutiladas a campeãs olímpicas- a longa

luta das mulheres chinesas pela igualdade" (TRlCE, 2001 ).

Pensando em novas perspectivas e na luta da atleta com deficiência por

reconhecimento, observamos, entre os enunciados das atletas que participaram deste

estudo, posições interessantes, como por exemplo:

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Page 111: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Você só é visto quando você é atleta, se você não é um médico, você é deficiente, se você não for uma pessoa formada, tiver um bom emprego ou tiver alguma grana, você é visto como um coitadinho, como atleta, não ... (E4)

Primeiro, considerando a sociedade como mn grupo maior, qual seria a sua porção

pior? Quais seriam as características ruins dessa porção? Na fala da atleta, "se você é

deficiente ... você é visto como mn coitadinho", podemos perceber que a porção pior é

identificada como o grupo dos deficientes não-atletas. Em outros termos, a porção pior da

sociedade é o deficiente, e coitadinho mna das suas características ruins apontada pela

atleta.

A deficiência vista como mn sinal, mostrada como fonte de tristeza e infelicidade,

como invalidez permanente, faz com que a sociedade (incluindo os próprios deficientes)

veja a pessoa com deficiência como coitadinha, como vítima (AMARAL, 1995).

Considerando a colocação de AMARAL (1995), de que os indivíduos com deficiência são,

commnente, categorízados como inferiores, em relação aos não deficientes, a atleta

deficiente será considerada outsider porque, sendo deficiente, é assim que é vista.

Segundo, considerando o grupo de atletas paraolímpicos como pertencente ao

grupo dos estabelecidos no desporto adaptado e a autopercepção que esse grupo tem de si,

ao se espelhar na minoria de seus melhores, questiona-se: em quem ou em que grupo as

atletas com deficiência se espelham?

Nmna comparação entre os vencedores dos Jogos Olímpicos da Antiguidade e os

atletas de hoje, podemos facihnente perceber que a coroa de louros foi substituída por

medalhas, as honras e isenções de impostos e outras regalias foram transformados, para

alguns, em contratos milionários e o prestígio conquistado pelos atletas que praticam

modalidades organizadas, reconhecidas e prestigiadas pelo grande público, os conduz a

mna posição de destaque social que beira a realeza (RUBI O, 200 I).

Então, qual seria a minoria de seus melhores? As atletas não-deficientes?

A fala de uma das atletas pode fornecer alguns indícios:

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Me senti uma verdadeira atleta, esqueci que eu era deficiente, esqueci tudo ... eu sou uma atleta .. o resto é resto. (E4)

A minoria de seus melhores é a verdadeira atleta. Mas o que significa ser uma

verdadeira atleta? Como é a verdadeira atleta? Inicialmente, é possível considerar que a

verdadeira atleta seja aquela não-deficiente e de alto rendimento.

Ser mulher-atleta de alto nível constitui a essência da competência atlética no

contexto do esporte. "Ser atleta implica incorporar hábitos que se operam dentro de um

contexto social de restrições econômicas e de pressões institucionais" (SIMÕES, 2003, p.

18).

Uma segunda possibilidade de intetpretação é a figura espetacular do herói. Esta

identificação, como já foi ressaltado anteriormente, pode ser creditada à capacidade de

enfrentamento do perigo e do desconhecido, o destemor ao combate e a busca incessante

dos objetivos propostos. A associação feita entre atleta e herói é uma das caracteristicas

que vem a ser agregada a esse conjunto de valores (RUBlO, 2002).

GOFFMAN ( 1988) ainda sugere que o individuo estigmatizado se define como não­

diferente (verdadeira atleta, atleta normal), embora ao mesmo tempo ele e as pessoas

próximas o reconheçam como alguém estigmatizado (esqueci que eu era deficiente). A

isso ele chama de autocontradição básica.

Uma terceira possibilidade está relacionada com o que se considera o grupo de

atletas do paradesporto. No enunciado, (E4) diz que, como atleta, o deficiente não é visto

como um coitadinho, ou seja, é visto como a minoria dos melhores no grupo de atletas

deficientes. Afinal, como afirma (E I), o importante é saber que:

... você é a melhor. No meu caso, eu sou a melhor do BrasiL

Isso quer dizer: a melhor atleta no paradesporto numa modalidade e classe

especifica.

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Dentre as caracteristicas da relação estabelecidos-outsiders, analisamos a seguir a

possibilidade de um grupo afixar em outro um rótulo de inferioridade humana e fazê-ia

prevalecer. Os próprios nomes dos grupos (por exemplo, "crioulo", "gringo", "sapatão",

"favelados", "deficientes") que estão numa situação de outsiders trazem em si (não em

todos os momentos), e para os outros membros, implicações de inferioridade e desonra.

O rótulo, o estereótipo do deficiente aparece na fala da atleta como sinônimo de

incapacidade, de inferioridade evidenciando o estigma: " ... as pessoas acham que por a

gente ser deficiente a gente não faz nada" (E9).

Para falar de rótulo, faz-se necessário rever os conceitos de atitude, preconceito,

estereótipo e estigma que estarão presentes em todo o estudo.

Em relação à evolução histórica das atitudes através dos tempos, é possível

sintetizar o percurso em quatro grandes periodos: marginalização (até 1800);

assistencialismo (1800-1870); educação e reabilitação (1870-1930/40) e integração social

(a partir da II Guerra Mundial). É importante lembrar que essas mudanças não ocorreram

e não ocorrem de uma forma linear (AMARAL, 1995).

É importante lembrar também que atitude, 1 neste estudo, refere-se a uma

disposição psíquica ou afetiva em relação a determinado alvo: pessoa, grupo ou

fenômeno. Sendo anteriores ao comportamento, as atitudes exprimem um sentimento e

preparam, em princípio, uma ação. Esta ação se exterioriza de forma mais ou menos

explícita, e é observável pela rejeição, pelo preconceito, pela acusação ou outros

comportamentos afins. ELIAS e SCOTSON (2000) observaram, em seus estudos, que as

crianças aprendiam desde cedo, com os pais, atitudes e crenças discriminatórias, isto é, a

rejeição sumária aos outsiders.

1 Ressaltamos aqui que não estamos trabalhando, neste estudo, com a definição de atitude da sociolingüíst:ica.

103

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O preconceito significa julgamento prévio, ou seja, antes de conhecer. É urna

atitude favorável ou desfavorável, positiva ou negativa, anterior a qualquer conhecimento

(AMARAL, 1995 ).

Em todas as épocas e no mundo inteiro, os agrupamentos humanos alimentaram preconceitos uns em relação aos outros. Certamente, o preconceito não é um fato universal, isto é, comum a todas as civilizações e povos; mas está suficientemente divulgado para ter inspirado conflitos internacionais e querelas nacionais. (ROSE, 1972, p. 161 ).

O preconceito, portanto, é também urna fonte de desgraças e de incompreensão

mútuas. De certa forma, representa as relações de poder nos interesses de grupos.

Quase sempre, o preconceito é acompanhado de opiniões inexatas ou sem

fi.mdamento no que se refere às pessoas que constituem o seu objeto. Julgam-se as pessoas

não pelos seus méritos, mas em fi.mção de idéias exageradas e deformadas, referentes

àquilo que se crê serem as características do grupo, admitindo-se erradamente que todos

os membros de urna mesma coletividade são idênticos e que as exceções não existem ou

são insignificantes. A informação é urna arma poderosa de combate às idéias falsas e

completas, pois, com informação, o conhecimento ataca diretamente o preconceito (ROSE,

1972).

Neste sentido, nos estudos de ELIAS e SCOTSON (2000), o grupo estabelecido

utilizava a informação na circulação de fofocas depreciativas sobre o grupo outsider,

maculando sua reputação. No caso dos deficientes, esse tipo de situação tomou-se

rotineira e já perdura há séculos, em grande parte devido à ignorância. A ignorância ou

desconhecimento não são em si suficientes para impulsionar, mas marcam o inicio do

preconceito e tomam aspectos os mais diversos. Ora são noções falsas referentes às

características fisicas, tradições culturais ou crenças de um povo, ora verdadeiros mitos

que facilitam entendimentos sobre-humanos ou de fraquezas. A ignorância provém tanto

da ausência de conhecimentos como da presença de idéias falsas. A ignorância em si não

faz nascer o preconceito, mas favorece e pode ser considerada matéria-prima para a

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perpetuação de atitudes preconceituosas e leituras estereotipadas da deficiência (AMARAL,

1995).

Enfnn, o preconceito é um conjnnto de situações históricas, econômicas e políticas

com ênfase nos conflitos resultantes das formas de estratificação e mobilidade social, da

cultura, dos valores e das tradições. É resultante de processos de comunicação,

aprendizagem e consciência nos - e entre - os grupos. Quase sempre, o preconceito está

associado ao estereótipo que é um rótulo, clichê, um chavão, idéia ou expressão muito

repetida. É um julgamento qualitativo baseado no preconceito e, portanto, anterior a uma

experiência pessoal (AM.~RAL, 1995). Funciona como um modelo conceitual rígido que é

aplicado de modo nniforme a todos os indivíduos de uma sociedade ou grupo, apesar de

seus matizes e divergências. No caso da pessoa com deficiência, é o rótulo (ou o

estereótipo) de que o deficiente é "ineficiente e incapaz" que alimenta e cristaliza o

preconceito. Outro exemplo de estereótipo é a idéia geral que se tem de que os deficientes

são dotados de uma enorme força de vontade e coragem, além de um talento

extraordinário em alguma área específica (por exemplo, os cegos, para a música). Os

estereótipos mais usuais são: vítima (desamparado, sofredor), herói (intrépido, corajoso) e

vilão (marginal, agressivo, criminoso).

Além disso, em tomo da pessoa portadora de deficiência, forma-se também o

estigma, que é uma marca, um sinal, uma tachação. O estigma tem relação com

características que vão compor a representação do estigmatizado, atributos considerados

como qualidades negativas. São marcas utilizadas pelos homens para distinguir alguém,

alguma atitude ou a aparência de outro homem. "Toda pessoa considerada fora das

normas e das regras estabelecidas é uma pessoa estigmatizada" (RIBAS, 1983, p. 16).

Um exemplo comum de estigma é a desvalorização do individuo deficiente porque

há ausência de alguma parte do seu corpo ou a limitação de alguma função motora,

fazendo com que a sociedade o veja como coitadinho. Portanto, a pessoa portadora de

deficiência é segregada, excluída, estigmatizada e condenada ao isolamento em nome da

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normalidade, cujos critérios parecem ser de produtividade e de adaptação aos padrões pré­

estabelecidos pela sociedade.

Sendo assim, estigmatização é

... uma forma de classificação social pela qual um grupo- ou indivíduo- identifica outro segundo certos atributos seletivamente reconhecidos pelo sujeito classificantc como negativos ou desabonadores. (GOLDWASSER, 1999,p. 30)

Pode também ser compreendida como uma forma de relação social impessoal ou

despersonalizante, uma vez que não considera o outro como individuo, mas apenas como

representante de uma determinada classe de estigma, tipicamente caracteristico.

Para GOFFMAN (1988), o estigma pode ser considerado como "inabilitação para

aceitação social plena", o que nos conduz a concluir que o estigma se estabelece nas

relações interpessoais. A marca deficiência não deixa que as pessoas sejam vistas como

individuos, pois parece que já foi estabelecido pela sociedade que, caso um individuo seja

deficiente, ele deve ser colocado à margem de possíveis participações sociais.

Estereótipo, estigma e preconceito formam o tripé em que se apóia a segregação

(AMARAL, 1994). Estão numa relação dialética, são utensilios na dinâmica que leva a um

circulo vicioso nas relações sociais.

A partir da Teoria do Processo Civilizador, formulada inicialmente por Norbert

Elias, "existe a possibilidade de um outro olhar para o estudo das questões relativas aos

estigmas e pertencimentos dos diferentes grupos identificados como deficientes"

(GEBARA, 2001b, p. 34). Aqui, o jogo de poder será o aspecto fundamental na

compreensão dessas relações e não representa alguma eventual diferença.

Como uma das caracteristicas da relação estabelecidos-outsíders, o rótulo, em

muitos casos, quando empregado fora do seu contexto específico, fere profundamente os

outsíders porque os grupos estabelecidos costumam encontrar repercussão, ressonância no

interior dos outsíders.

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Sendo assim, o poder de ferir, de humilhar depende da consciência que tenha o

usuário- o estabelecido e o destinatário, o outsider- de que é possível envergonhá-lo.

Segundo COURY (2001), a hipótese central de Norbert Elias sugere que os

indivíduos são condicionados socialmente pelas representações (por exemplo, rótulos)

que fazem de si mesmos e, ao mesmo tempo, por aquelas que lhes são impostas pelos

outros com quem entram em relação. Em outros termos, é possível observar a capacidade

que o homem tem de perceber-se como pessoa no espelho da sociedade e de agrupar-se

escolhendo o grupo social reconhecido pelos outros.

Como exemplo, a fala da atleta é reveladora:

... as pessoas acham que por a gente ser deficiente a gente não fuz nada. (E9)

O rótulo deficiente aparece na fala da atleta como sinônimo de incapacidade, de

inferioridade (estigma). Analisando o seu grupo (atletas paraolímpicas nos Jogos de

Sydney), a atleta chama a atenção para a situação de seus iguais, para o rótulo de

deficiente que, de certa forma, consolida a representação pública de sua diferença como

real e de seus companheiros estigmatizados como constituindo um grupo real, produzindo

um "retrato" distorcido da realidade social do grupo. Como muitas vezes acontece, a

representação que se faz de um grupo é altamente simplificada da realidade (ELIAS;

SCOTSON, 2000).

Quando a atleta diz "as pessoas acham que por a gente ser deficiente a gente não

faz nada", está, ao mesmo tempo, dizendo que a pessoa deficiente pode fazer mais do que

a maioria imagina e que existe possibilidade de ação.

Observe-se outro exemplo:

... em outros momentos, me sinto um pouco humilhada, porque ... a gente não tem o mesmo tipo de apoio ... a gente tem que ser tratado como os olímpicos foram ... o suor que a gente derrama é o mesmo, no entanto a valorização não é a mesma. (E5)

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No enunciado acima- "a gente não tem o mesmo tipo de apoio", "a valorização

não é a mesma" -, evidencia-se o tratamento diferenciado quanto aos direitos de atleta, o

rótulo de deficiente, de inferior. Tais comentários envolvem também a idéia de que o

paraatleta ainda é outsider no mundo do esporte e de que falta apoio da mídia.

Ainda no mesmo depoimento, a atleta denuncia o modo como os informados

(profissionais, representantes, dirigentes e patrocinadores) envolvidos com a delegação

brasileira conduziram, na época, algumas questões administrativas e que, de certa forma,

foram entendidas por alguns como prejudiciais para o grupo de atletas paraolimpicos. Ela

questiona abertamente o modo como o grupo, naquele momento, é tratado pelos

informados. Ela reivindica o mesmo trato que, supõe, os atletas olimpicos tiveram e

constata, quando diz "a valorização não é a mesma", que ainda há o rótulo, o tratamento

desigual, e suspeita de que, se há alguma demonstração de reconhecimento e aceitação do

atleta com deficiência na estrutura esportiva, ela ainda predomina no campo das palavras,

da aparência e pouco se concretiza no campo das atitudes e ações. Parece haver uma

contradição: no popular poderia-se dizer que "a teoria é uma e a prática é outra". Mas

AMARAL (1995) constata que o discurso politicamente correto "olha" pelos deficientes,

enquanto que o comportamento espontâneo os rejeita.

Embora, dentre as dez atletas, apenas uma se refira ao episódio, de alguma forma,

há, no grupo, uma ruptura inicial, há um olhar e uma critica sobre as atitudes dos

informados. Talvez isso seja um indicio de mudança.

Outro exemplo que mostra esse descontentamento é o seguinte:

... se a gente não fosse atleta era apenas um coitadinho. (E4)

O estereótipo (deficiente/ineficiente), quando negativo, constrói o estigma de

coitadinho e simultaneamente o estigma cria um estereótipo do estigmatizado e esta

relação pode ser levada ao infinito (AMARAL, 1995).

108

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Neste sentido, outra característica apontada pelos pesquisadores na relação

estabelecido-outsider é o estigma social imposto pelos estabelecidos aos outsiders, que

costuma penetrar em sua autopercepção e, com isso, enfraquecê-lo e desarmá-lo.

A estigmatízação, como um aspecto da relação estabelecido-outsider, associa-se

muitas vezes a um tipo de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido e é assimilado

pelo grupo outsider. "Cria fama e deita-te na cama" corresponde a "dê-se a um grupo uma

reputação ruim e é provável que ele corresponda a essa expectativa" (ELIAS; SCOTSON,

2000, p. 30).

Os gregos criaram o termo estigma para se referirem a sinais, marcas corporais,

com os quais se procurava identificar alguma coisa extraordinária ou má sobre o status

moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos no corpo do indivíduo com cortes ou

fogo e avisavam que o portador deles era um escravo, um criminoso ou traidor - uma

pessoa marcada que deveria ser evitada, especialmente em lugares públicos. O termo hoje

é amplamente usado com o sentido original, mas é mais aplicado à própria desgraça do

que à sua evidência corporal; é usado em referência a um atributo depreciativo

(GOFFMAN, 1988). A noção de estigma está associada a uma pessoa ou a um determinado

grupo ou ainda ao tipo ideal construído e consolidado pelo grupo dos normais (assim

denominados neste estudo como não-deficientes).

A deficiência - como um sinal - mostrada como fonte de tristeza e infelicidade,

como invalidez permanente, faz com que a sociedade (incluindo os próprios deficientes)

veja a pessoa com deficiência como coitadinha, como vítima. Um sinal fisico serve de

símbolo palpável da suposta anormalidade e é coisificado. Análogos a esta colocação,

ELIAS e SCOTSON (2000) afirmam que o estigma social atribuído ao grupo outsider pelo

grupo estabelecido transforma-se, em sua imaginação, num estigma material.

Para Goffinan, são três os tipos de estigma: as várias deformidades fisicas, as

variáveis comportamentais, e as tribais (raça, nação, religião). Nesses tipos de estigma,

encontram-se as mesmas características sociológicas: um individuo que poderia ter sido

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facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que se impõe e destrói a

possibilidade de atenção para outros atributos seus.

Para GOFFMAN (1988), o estigma impede a plena aceitação e se estabelece nas

relações interpessoais. A marca da deficiência não permite que as pessoas sejam vistas

como indivíduos, colocando-as à margem de possíveis participações sociais.

Pensando o estigma e a identidade social nas relações sociais cotidianas, GOFFMAN

( 1988) apresenta os conceitos de identidade social real e identidade social virtual. Para

explicitar estes conceitos, tomamos como exemplo o outro que acaba de nos ser

apresentado. O primeiro conceito diz respeito à categoria e atributos aos que, na realidade,

o indivíduo corresponde. E o segundo, às suposições que imputamos ao indivíduo

baseadas em preconcepções que temos e que se transformam em exigências normativas,

em expectativas.

Então, ao olharmos para o outro, essas exigências são preenchidas? O outro, o

indivíduo é o que pensamos que ele deveria ser? A prática social nos mostra que não só

fazemos isto, ou seja, imputamos ao indivíduo exigências daquilo que esperamos que ele

deva ser, como também ele, o indivíduo estigmatizado, parece estar consciente dessa

expectativa social. Vejamos um exemplo nesta fala de uma atleta:

... você só é visto quando você é atleta, se você não é um médico, você é deficiente, se você não for uma pessoa formada, tiver um bom emprego ou tiver alguma grana, você é visto como um coitadinho, como atleta, não ... (E4)

Ciente de que não preenche as expectativas dos normais, a atleta deficiente aponta

algumas razões que considera como reais: "se você não for um médico, se não for uma

pessoa formada, se não tiver um bom emprego ou se não tiver uma boa grana". Essas são

observações em relação à condição social, ao status, e não à condição de quem tem uma

deficiência. Entretanto, a atleta assume a categoria (atleta) e os atributos que pertencem a

ela como sua identidade social real, sem se referir à sua condição (de deficiente). Ao

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mesmo tempo, a enunciação aponta que os deficientes que não são atletas são vistos como

coitadinhos, uma categoria menos desejável, uma pessoa estragada e diminuída

( GOFFMAN, 1988).

Neste exemplo, podemos observar o que Goffinan denomina de discrepãncia entre

identidade social real e identidade social virtual. Está implicito que, quando nos

deparamos com um individuo que tem uma deficiência, imputamos a ele o defeito, a

desvantagem, a fraqueza e um efeito de descrédito que combina com o estereótipo que

criamos para o indivíduo deficiente, ou seja, construimos uma teoria do estigma, uma

"ideologia" para explicar sua inferioridade e estruturar sua identidade social virtual. Por

quê? Porque cada sociedade elege um rol de atributos e/ou condições que representam o

bom, o normal, o adequado ... Enfim, aquilo que a sociedade identifica como um generoso

espelho de si mesma, o tipo ideal e que é ideologicamente transmitido e perpetuado pelo

grupo dominante (AMARAL, 1995). E que provavelmente é diferente de sua identidade

social real.

Novamente, o enunciado " ... se a gente não fosse atleta era apenas um coitadinho"

(E4) coloca esta situação. A atleta sai da esfera deficiente para reconhecer (ou rejeitar?)

no outro (deficiente não-atleta) o coitadinho.

Na aprendizagem do eu, a pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de

vista dos normais, adquirindo, portanto, as crenças da sociedade em relação à identidade e

a uma idéia geral do que ela significa. Aprende também a identificar as conseqüências de

possuir um estigma particular. Essa aprendizagem é chamada, por GOFFMAN (1988),

aprendizagem do estigma. Inicialmente, a estigmatização trabalha sobre os

estigmatizados, levando-os a interiorizar a representação que lhes é remetida e até a se

adaptar a ela em seus comportamentos. Essa representação coletiva negativa passa a ser

literalmente incorporada por aqueles que são suas vítimas.

ELIAS e SCOTSON (2000) colocam que a depreciação coletiva dos grupos outsiders,

atribuída por outros grupos mais poderosos, sob forma de rótulos e de fofocas

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estereotipadas, tem influência sobre a autopercepção e o comportamento dos indivíduos

implicados na circulação de estigmatizações.

O conceito de identidade social permite considerar a estigmatização. A idéia de

identidade do eu permite considerar o que o individuo pode experimentar a respeito de

estigma e sua manipulação.

A informação social sobre o estigma tem determinadas propriedades: é uma

informação sobre o individuo, sobre suas caracteristicas mais ou menos permanentes, é

reflexiva e corporificada, ou seja, é transmitida pela própria pessoa a quem se refere. Os

signos que transmitem a informação social variam em função de serem ou não congênitos.

Quando são empregados contra a vontade do informante, tendem a ser símbolos de

estigma. Quando a informação social transmite uma pretensão especial ao prestígio, à

honra ou a uma classe desejável, é chamada de símbolo de prestígio (GOFFMAN, I 988).

Alguns termos específicos de estigma, como aleijado e retardado, são usados no

sentido de inferir uma série de imperfeições a partir da imperfeição original. Isso é o que

Amaral denomina de generalização indevida, ou seja, o individuo não é alguém com uma

dada condição, é a encarnação da ineficiência total. Essa atitude dos normais revela que,

na maioria das vezes, não importa do que o deficiente é capaz: na verdade, não o aceitam

e não estão dispostos a manter com ele uma relação em condições de igualdade. Ademais,

os padrões que ele incorporou da sociedade o tomaram suscetível ao que os outros vêem

como o seu defeito, levando-o, mesmo que por alguns momentos, a concordar que, na

verdade, ele ficou abaixo do que realmente deveria ser (AMARAL, 1998; GOFFMAN,

1988).

Considerando tudo isso, este estado de coisas, como a atleta paraolímpica se

(re)signífica?

No enunciado " ... se a gente não fosse atleta era apenas um coitadinho" (E4), a

palavra deficiente aparece como um atributo depreciativo, um estigma e não uma dada

condição da atleta. Para Goffman, um estigma é um tipo especial de relação entre atributo

e estereótipo.

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Atleta e coitadinho aparecem na enunciação como posições basicamente diferentes.

Essas duas condições aparecem em oposição uma em relação à outra, ou seja, "se não for

assim, é assim", se não for atleta é coitadinho.

Portanto, como informação social, coitadinho toma-se uma informação sobre o

indivíduo, sobre suas características permanentes ou não, é reflexiva e corporificada, ou

seja, é transmitida peía própria pessoa a quem se refere.

O deficiente-coitadinho é o deficiente não-atleta, incapaz, perdedor e digno de

pena. O coitadinho reitera a representação da pessoa com deficiência como

impossibilitada, como incapaz e derrotada.

A atleta reconhece no outro (não-atleta) o estigma, o coitadinho.

No corpus deste estudo, aparecem várias referências ao fato de as atletas se

colocarem nesse status, nesse lugar de atleta de alto nível. No momento em que se coloca

como atleta e não como coitadinho, ela muda de lugar na figuração, transita, movimenta­

se nos papéis sociais. Enfim, ela assume uma nova condição por ser atleta deficiente, uma

situação recente na institucionalização do desporto adaptado no Brasil.

De certa forma, há uma ruptura com a informação social sobre o estigma que é

comumente veiculada e cria-se aí uma outra categoria, uma nova identidade social real,

uma nova aprendizagem, um lugar social: a de atleta do paradesporto.

En:fnn, no momento, essas atletas ainda vivem entre os símbolos de estigma e os

símbolos de prestígio. Experimentam a desvalorização transmitida pela informação social

corporificada e o prestígio conquistado com medalhas e recordes.

Neste momento, é importante recuperar a fala de uma das entrevistadas sobre

quando se sentiu atleta pela primeira vez:

... quando ganhei minha medalha de ouro .. me senti uma verdadeira atleta, esqueci que era deficiente, esqueci tudo. (E4)

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A informação social levantada por sinais corporificados, quer de prestígio ou de

estigma, pertence à identidade social. Portanto, com relação à aprendizagem do estigma,

tomando como exemplo a deficiência física recém-adquirida, muitos casos estão

associados com a admissão a uma instituição/associação, na qual o indivíduo encontrará

quem compartilhe de seu estigma, outros companheiros de infortúnio, aqueles que, de

agora em diante, deve aceitar como seus iguais. É interessante observar que o recém­

estigmatizado sente uma certa ambivalência porque, segundo GOFFMAN (1988), os

companheiros de infortúnio são nitidamente estigmatizados e, portanto, diferentes da

pessoa normal que ele acredita ser.

Diante dessa situação, é possível que ocorram oscilações na identificação e adesão

para com os seus iguaís. Haverá momentos em que ele irá aceitar ou rejeitar

oportunidades especiais de participação com o grupo, mesmo depois de ter aderido à

proposta anteriormente. Como exemplo dessa oscilação, citamos a fala de uma atleta ao

ser perguntada sobre como começou no esporte:

Meu técnico ... ele ia passando lá na frente da minha casa, e me convidou ... ele pegou e me entregou o endereço da associação ... aí fui a primeira vez, não gostei muito não, aí afastei um pouquinho ... umas duas semanas depois que me afastei, daí voltei de novo, quando voltei pra ficar. (E7)

A oscilação por parte da atleta demonstrada nesse enunciado é apenas uma das

facetas dessa situação. Há que se considerar que as oscilações ocorrem também de

maneira implícita como o convite, a oportunidade, a troca de informações, o

conhecimento sobre o outro, a identificação com o grupo, etc., ou seja, são muitas

possibilidades e contradições que vão construindo a relação.

Os indivíduos em sociedade sofrem as representações que os outros (com quem

estão ou não em relação direta) fazem deles. Essas representações são pertinentes porque

são percebidas, por qualquer um, no olhar dos outros, e é esse conjunto de atitudes

concretas que permite ao indivíduo observar e encontrar seus iguaís.

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Na concretização do estigma (AMARAL, 2001), os não-deficientes deixam-se

envolver numa armadilha que tem algumas facetas, entre as quais: 1. generalização

indevida, anteriormente explicitada; 2. coisificação: é a desumanização do outro em

função de sua deficiência, em que o não-deficiente escolhe e decide pelo estigmatizado; 3.

infantilização indevida: como o próprio nome sugere, há uma infantilização, o

estigmatizado é tratado como criança, considerando que em nossa sociedade os interesses

das crianças são menosprezados; 4. ideologia da força de vontade ou culpabilização da

vitima: com ela é possível lavar as mãos frente a qualquer insucesso na realização de uma

determinada atividade ou mesmo hesitar frente a ela; 5. busca excessiva de compensação:

corresponde ao movimento de compensar uma dada deficiência por meio do incentivo à

ultrapassagem de limites impostos por ela.

Ainda especificamente sobre estigma, outra característica da relação estabelecidos­

outsiders apontada por Elias e Scotson diz respeito à semelhança do padrão de

estigmatização gerada pelas próprias condições de sua posição de outsider e pela opressão

que lhe são concomitantes. Elias observa que, sob alguns aspectos, eles são iguais no

mundo inteiro. A pobreza- o baixo padrão de vida- é um deles. Entre muitos, figuram a

exposição constante aos caprichos das decisões e ordens dos superiores, as atitudes de

deferência e a humilhação de ser excluído (o que inclui a deficiência).

A invenção da categoria de deficiente e a designação dela como um problema é

produto de uma construção social em que a sociedade estabelece os atributos

considerados como comuns, característicos e pertencentes ao grupo e a cada membro. No

caso dos deficientes, em que os indivíduos mais diversos tomam-se iguais, na medida em

que sofrem a mesma carência, a exclusão social vivida é que é a mesma (PIERUCCI,

1999). Nesta assertiva, encontra-se uma regularidade social entre os diferentes grupos de

deficientes (atletas ou não). Não importa a deficiência, se mais ou menos grave, sempre

sofrem, em maior ou menor medida, a mesma exclusão social.

As normas de comportamento fornecem a esses indivíduos condições, orientações

de como tratar os outros e modelos para uma atitude mais apropriada em relação ao seu eu

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e a seu grupo. Portanto, a sua localização na sociedade não só lhe ensina o que deve fazer,

mas como deve ser seu próprio caráter. Existe aí uma semelhança no padrão de

estigmatização. "No movimento social, face à mesma carência, todos se tomam iguais( ... )

É a carência que define uma coletividade possível das diversas coletividades" (PIERUCCI,

1999, p. 158).

Portanto, a categoria resulta da própria delimitação do grupo e envolve ações no

sentido de reconhecimento social de sua origem, suas causas e necessidades. E,

conseqüentemente, oficialização, legalização e legitimação do grupo.

O seguinte enunciado também exemplifica essa situação:

... você só é visto, quando você é atleta, se você não é um médico, você é deficiente. Se você não for uma pessoa formada, tiver um bom emprego ou tiver alguma grana, você é visto como um coitadinho, como atleta, não ... (E4)

Neste enunciado, observam-se os dois padrões citados acima: o baixo padrão de

vida e a deficiência estão lado a lado na fala da atleta. Ao falar do lugar de atleta, a

percepção que tem de si mesma é a de que, sendo atleta, ela é vista como portadora de um

status, um lugar social; o outro (deficiente?), que não é atleta, é o coitadinho sem grana.

Outro aspecto que acompanha o padrão de estigmatização é a idéia da humilhação,

especialmente no que se refere aos contatos mistos (entre grupos), que se encontra em

GOFFMAN (1988). O autor os define como sendo aqueles momentos em que os

estigmatizados e os normais estão na mesma situação social, ou seja, na presença fisica

imediata um do outro, quer durante uma conversa, quer em mera presença. O contato

misto em Goffinan e os padrões de estigmatização em Elias e Scotson correspondem à

mesma situação que Amaral denominou de integração fisica ou integração de primeiro

nível, em que há proximidade, redução da distância fisica e/ou ocupação do mesmo

espaço. Amaral argumenta que, por um lado, a integração fisica pode contribuir para

minimizar o preconceito, favorecer os contatos mistos, como também pode ter um efeito

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contrário ao esperado, ou seja, fortalecer o estigma e justificar uma segregação de caráter

menos explícita. Em suas palavras, "estar simplesmente 'ao lado de' não propicia real e

efetiva integração" (AMARAL, 1995, p. 103), é apenas um primeiro e importante passo,

mas não o suficiente para romper com o isolamento dos grupos.

Nessa categorízação, AMARAL (1995) cita ainda a integração funcional ou de

segundo nível, em que as pessoas podem e devem ter uma atividade em comum, mesmo

que estejam utilizando estratégias e equipamentos diferentes ou desenvolvendo as

mesmas atividades em ritmos, formas e níveis de precisão também diferentes,

favorecendo a experiência vivenciada. Um exemplo desse tipo de integração é descrito

por uma das atletas:

... eu namoro.. ele também é deficiente ... a gente freqüenta lugares que namorados freqüentam ... (E5)

Neste exemplo, temos dois níveis de integração: o físico, pelo fato dos namorados

deficientes estarem num mesmo espaço que namorados normais freqüentam, e o

funcional, porque estão desempenhando uma atividade comum.

Outra forma de integração, denominada por Amaral como de terceiro nível de

integração ou integração social (stricto sensu), supõe que haja comunicação de forma a

reduzir a distância interpessoal durante o contato misto, viabilizando uma real interação.

Esta interação pressupõe reciprocidade. E o quarto nível de integração ou integração

social (latu sensu) só é possível pela vontade política no sentido de possibilitar o acesso

às formas de organízação de uma comunidade social, entre elas: legislação, investimentos

econôrnícos para serviços de habilitação e reabilitação, capacitação e reciclagem

profissional, enfrentamento de barreiras atitudinais e elíminação de barreiras

arquitetônicas.

Em relação aos contatos rnístos, Goffinan afirma que o individuo estigmatizado

pode descobrir que se sente inseguro em relação à maneira como os normais o

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identificarão e o receberão, ou seja, em que categoria será colocado e se será ou não

definido em termos do seu estigma. Esta situação leva o estigmatizado à sensação de não

saber aquilo que os outros realmente pensam dele.

Sentimos que o estigmatizado percebe cada fonte potencial de mal-estar na interação, que sabe que nós também percebemos e, inclusive, que não ignoramos que ele percebe. (GOFFMAN, 1988, p. 27)

Considerando o que pode enfrentar ao entrar numa situação social mista, o

indivíduo estigmatizado pode responder antecipadamente por meio de uma capa

defensiva. Na enunciação abaixo, ao responder uma pergunta sobre suas outras relações

sociais a atleta coloca que:

... a gente freqüenta lugares que namorados freqüentam ... gostamos de sair pra viajar, de passear, fazemos coisas que todos os namorados normais fuzem né. (E5)

Em sua fala, a atleta antecipa que ela e o namorado comportam-se como

namorados normais. Ora, tal assunto não foi explicitado na pergunta, mas a atleta

responde como se a pergunta pudesse ser: "em quais aspectos de sua vida você é igual a

um ser humano normal?". Esse é um mecanismo denominado por AMARAL (1995) de

simulação, ou seja, "é, mas é como não se fosse".

Outro tipo de relação social mista é a que acontece por meio dos informados, que

são pessoas normais, mas que alguma situação especial levou a conviver com o grupo

estigmatizado. São indivíduos entre os quais o estigmatizado não precisa se envergonhar,

nem se autocontrolar, porque sabe que será considerada uma pessoa comum (GOFFMAN,

1988).

Um tipo de pessoa informada é aquele cuja informação vem de seu trabalho junto

às pessoas estigmatizadas, por exemplo, os profissionais da área de saúde, como

enfermeiras, fisioterapeutas, médicos, psicólogos, etc. Outro tipo de pessoa informada é o

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indivíduo que se relaciona com o indivíduo estigmatizado por meio da estrutura social,

assim como mãe, pai, esposa, marido, filho, amígo, ou seja, todos os que estão próximos e

compartilham um pouco do descrédito do estigmatizado com o qual se relacionam.

Segundo GOFFMAN (1988, p. 39), "uma resposta a esse destino é abraçá-lo e viver dentro

do mundo do famíliar ou amigo estigmatizado".

Por outro lado, a ausência de contatos mistos, de interação, pode levar ao auto­

isolamento por parte do estigmatizado como forma de evitar o contato com os normais.

"A pessoa que se auto-isola possivelmente toma-se desconfiada, deprimída, hostil,

ansiosa e confusa" (GOFFMAN,l988, p. 22). O indivíduo estigmatizado pode descobrir

que se sente inseguro, receoso em relação à maneira como os normais o identificarão e o

receberão:

... depois que aconteceu aquilo comigo, fiquei sem sair de dentro de casa ... eu pensava que quando eu saísse o pessoal ia ficar me abusando, isso e aquilo, fiquei dentro de casa praticamente dois anos. Em casa, sem sair de casa. Até pm ir pro hospital eu tinha receio ... (E7)

A mesma atleta declara que, depois que conheceu a associação e o esporte, tomou­

se mais confiante e, como ela, outras se referem da mesma maneira em relação à mudança

ocorrida em suas vidas depois de entrarem para o desporto adaptado:

O esporte me trouxe pm vida. O próprio esporte me trouxe pra vida. Hoje eu sou uma pessoa que tem muita alegria de viver, né, muita vontade de viver e ... (E 1)

Significa muita coisa ... realização pessoal, psicológica ( ... )E, minha cabeça que eu tenho hoje, eu não teria se não tivesse entrado nesse meio. (E3)

É importante não só pro deficiente, como também pras pessoas normais, porque o esporte ajuda muito, né, a sua saúde, né, então pra gente, pro deficiente ... (E6)

Acho que significa tudo, acho que realmente é você se integrar, é você se adaptar, é uma sociabilização, eu acho que o esporte ao meu ver é tudo. Porque a pessoa, ela é portadora de deficiência, e o esporte pro portador de deficiência ajuda na nossa formação, na nossa independência, pm você ter habilidade ... (ElO)

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Como coloca GOFFMAN (1988, p. 27), "uma vez que tanto o estigmatizado quanto

nós, os normais, nos introduzimos nas situações sociais mistas, é compreensível que nem

todas as coisas caminhem suavemente". Quando normais e estigmatizados se encontram,

ambos têm que enfrentar as causas e efeitos do estigma.

Outra característica apontada por Elias e Scotson diz respeito à sujeição a padrões

específicos de conduta, ou seja, esse é o preço a ser pago por cada membro do grupo

estabelecido.

A participação na superioridade de um grupo, e em seu carisma grupal singular, é a

recompensa pela submissão às normas específicas do grupo. Costumeiramente, os

membros dos grupos outsiders são tidos, pelos estabelecidos, como inobservantes dessas

normas e restrições.

Quando se trata de um grupo estabelecido, o indivíduo que contrariar a opinião

grupal terá seu diferencial de poder frente ao grupo dímínuído, podendo haver

rebaixamento de sua posição hierárquica interna, com conseqüente alteração na

competição interna pelo poder e status. Nos casos mais graves, essa situação pode sujeitá­

lo à pressão dos boatos depreciativos ou até à aberta e implacável estigmatização dentro

do próprio grupo. A autopercepção e a auto-estima de um indivíduo estão ligadas à

representação que os outros membros do grupo têm dele (ELIAS; SCOTSON, 2000).

Os grupos estabelecidos criam normas cuja infração constituí desvio e, ao aplicá­

las às pessoas particulares, estigmatizam-nas, marcando-as como outsiders, ou seja, um

grupo faz determinada leitura do sistema sociocultural, estabelecendo as regras cuja

inobservância cria o comportamento desviante (VELHO, 1999). Não seria esta uma forma

de demarcar a área, delímítando as atividades, a expressão e a identidade do grupo

considerado outsider? Como princípios de classificação e diferenciação social, estigma e

desvio social "remetem à problemática de delímítação de grupos sociais e de demarcação

de suas respectivas posições estruturais" (GOLDWASSER, 1999, p. 30). Trata-se de

demarcação de fronteiras entre grupos sociais.

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Em relação às atletas paraolímpicas, observamos, em seus enunciados, que

freqüentemente se referem ao grupo de deficientes, mesmo que seja para dizer que este

não é o seu grupo. Novamente, no exemplo abaixo, podemos observar essa atitude:

Porque se a gente não fosse atleta, era apenas um coitadinho ... você só é visto, quando você é atleta. Se você não for uma pessoa formada, tiver um bom emprego ou tiver alguma grana, você é visto como um coitadinho, como atleta, não ... (E4)

O assunto é complexo, como quase todos os aspectos que envolvem a pessoa com

deficiência. No entanto, não se pode passar pela sujeição sem se reportar à

aceitação/rejeição, o que faz-se neste momento esquemática e superficialmente.

Aceitar é ter algo bom e certo, é receber o que é oferecido, é acatar, é aprovar.

Estes são os sinônímos comuns encontrados nos dicionários. Entretanto, ao invocar

Carolyn Vash, AMARAL (1995) incorpora e defme o termo aceitação como acolher a

deficiência, integrá-la no cotidiano e na vida, desde que haja disponibilidade interna.

GOFFMAN (1988) aponta que a pessoa estigmatizada pode responder à aceitação do

outro de várias maneiras:

1. o indivíduo estigmatizado pode dedicar um grande esforço individual ao dominio

de áreas de atividades consideradas ímpróprias, inadequadas às pessoas com sua

condição. Tal situação é ilustrada por ativídades como nadar, montar e jogar tênis

para um deficiente fisico, ou escalar para um cego.

Neste estudo, enfocamos a atleta com deficiência, para quem as limitações fisicas

ou sensoriais, aliadas ao desempenho atlético, são condições heterogêneas que coexistem

em um mesmo indivíduo. Mas será que essa performance pode sensibilizar ou mudar a

aceitação do outro em relação aos deficientes?

Segundo uma das atletas, nem sempre é assím:

As pessoas às vezes até não acredita. Atleta? Acham que é meio que impossível. (E3)

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Ou como nesta enunciação, quando perguntamos sobre o que significa ser atleta de

esporte adaptado, uma delas responde:

Acho que é um exemplo de vida pras outras pessoas, ser atleta ... você só é visto, quando você é atleta. (E4)

A atleta supõe que esta é uma das formas de demonstrar que deficiência não é

sinônimo de incapacidade, ou seja, dando exemplo, demonstrando, mostrando.

2. O indivíduo com deficiência pode "achar que é o único de sua espécie e que o

mundo inteiro está contra ele" (GOFFMAN, 1988, p. 29). Como neste enunciado,

em que a atleta revê seus sentimentos em relação à sua condição de deficiente:

Eu era uma pessoa muito revoltada, achando que só eu era deficiente, só eu que era coitadinha no mundo ...

Outra forma de aceitação, descrita por AMARAL (1995) como mecamsmo de

defesa, é a atenuação ilustrada, exemplificada na continuação da fala da mesma atleta:

... e quando eu comecei a praticar esporte eu vi que a minha deficiência era mínima perto de muitos que tem por aí. (El)

Para que haja a aceitação, a atleta atenua sua condição em relação a outras e

"acolhe" a deficiência integrando-a à sua vida de atleta.

3. O estigmatizado pode, como forma de aceitar sua deficiência, apontar as limitações

dos normais, como, por exemplo:

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Porque na verdade todo mundo tem uma deficiência A gente portamos uma deficiência, mas todos têm uma deficiência, de uma maneira ou de outra, mas têm. Ninguém é perfeito. (E2)

Nesta mesma linha de pensamento, AMARAL (1995, p. 113-117) comenta sobre

mecanismos de rejeição e, entre os quais, destaca: abandono, superproteção e negação.

Quanto à negação, a autora cita três formas principais: atenuação, compensação e

simulação. Na citação abaixo, podemos observar um exemplo de atenuação por se

considerar que ser atleta é um "exemplo de vida" .

... me vejo assim. Pra mim é um exemplo de vida ser uma atleta... tem as suas desvantagens, mas também tem as suas vantagens, de ser deficiente. (E4)

Neste exemplo, além da questão da autopercepção, notamos um mecanismo de

rejeição, que AMARAL (1995) denomina de compensação, ou seja, lingüisticamente, a

compensação se concretiza pelo aparecimento do "mas": "tem as suas desvantagens, mas

também tem as suas vantagens".

Ser atleta e deficiente, 'duplo pertencimento'(ELIAS, 2001): vantagens e

desvantagens. Desse modo, essa situação (a sujeição?) a levará a mover-se

circunstancialmente entre o que ELLAS (1995) chama de dois mundos sociais. Neste

estudo, identificam-se como sendo: o do desporto paraolimpico e o das outras

configmações.

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CAPÍTULOS

Estabelecidos-outs"iders eliasianos e

atletas paraolímpicas: grupo e equilíbrio instável de poder

Neste capítulo, seguindo com a analogia e análise das características da relação

estabelecidos-outsiders em relação ao discurso das atletas, são discutidos os seguintes

temas: a anomia ou a situação das pessoas mal-integradas; a proteção da identidade

grupal; e a diferença acentuada na coesão entre os grupos.

A anomia ou a situação das pessoas mal-integradas (ou desaprovadas

socialmente) acompanha, neste estudo, a abordagem conceitual dada por Elias e Scotson.

Segundo os pesquisadores, a anomia talvez seja a censura mais freqüente que se faz na

observação da relação estabelecidos-outsiders. Esta é uma outra característica dessa

relação. Na perspectiva sociológica, ela está identificada com o caos desprovido de

estrutura, o que os autores refutam, colocando que "nenhum agrupamento humano, por

mais desordenado e caótico que seja aos olhos daqueles que o compõem ou aos olhos dos

observadores, é desprovido de estrutura" (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 192).

A anomia se refere ao indivíduo, pois "a ausência ou conflito de normas faria com

que as pessoas procurassem estratégias e soluções individuais, não sancionadas por uma

escala de valores consensual" (VELHO, 1999, p. 16). Bem-integrados são os que sugerem

aprovação e mal-integrados são os que sugerem uma desaprovação. O bem e o mal são de

certa forma relativos, porque o senso de valor dos indivíduos modifica-se de acordo com

suas condições mutáveis de vida, o que inclui os progressos do saber humano (ELIAS;

SCOTSON, 2000).

A incerteza e a insegurança nas relações sociais permite que os indivíduos não

sejam reconhecidos, fiquem esquecidos, soltos, sem raiz, tomando-se anômicos (VELHO,

1999).

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Contudo, enquanto a anomia é tratada como um problema, o seu inverso, a nomia,

a situação das pessoas bem-integradas, parece ser um fenômeno que não precisa ser

investigado porque tudo está bem.

Pensar na pessoa com deficiência é geralmente associar o individuo e sua condição

de portadora à ineficiência total, à desaprovação social. A deficiência é considerada um

sinal fisico que serve de simbolo da suposta anomia do grupo, de seu valor inferior

localizado na deficiência. A existência fisica, real, concreta de uma dada alteração

corporal, de uma dada deficiência, não significa que essa determinada situação

corresponda ao conjunto do fenômeno (AMARAL, 1995).

Além de o indivíduo estigmatizado ter que considerar seu grupo de origem,

GOFFMAN (1988) questiona uma segunda perspectiva: a de que o estigmatizado deve

também apreciar o esforço para ajustar-se aos normais e à sociedade mais ampla que eles

constituem.

Em nossos dias, tal necessidade de adaptar-se às demandas do establishment, seguindo a distribuição de poder, é mais ou menos dada como óbvia pelas pessoas socialmente dependentes. (ELIAS, 1995, p. 20)

Ao responder sobre o que significa para ela o esporte adaptado, uma das atletas

declarou o seguinte:

Acho que significa tudo, acho que realmente é você se integrar, é você se adaptar, é uma sociabilização, eu acho que o esporte ao meu ver é tudo. Porque a pessoa, ela é portadora de deficiência, e o esporte pro portador de deficiência ajuda na nossa formação, na nossa independência ... (E 1 O)

Nesta mesma perspectiva,

... recomenda-se ao indivíduo que se veja como um ser humano completo como qualquer outro, alguém que, na pior das hipóteses, é excluído daquilo que, em última análise, é apenas uma área davidasocíaL(ELIAS, 1995,p.l26)

126

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Assim, o indivíduo estigmatizado é aconselhado a se aceitar como pessoa norma~

pois tanto ele como os outros podem se beneficiar nas interações sociais.

A situação do estigmatizado, portanto, compreende duas facetas: uma em que a

sociedade lhe diz que ele é um membro do grupo mais amplo, significando que ele é um

ser humano normal; a outra, por sua vez, diz que, até certo ponto, ele é diferente. Tal

situação revela-se, conseqüentemente, uma incoerência. Não se pode negar que há a

diferença, uma vez que esta deriva da própria sociedade desde que foi construída e

conceitualizada social e coletivamente (AMARAL, 1995; GOFFMAN, 1988).

A construção social da deficiência está associada a diferentes palavras como:

doença, anormalidade, patologia, norma, desvio, diferença e diversidade. São palavras

que formam conceitos que se sofisticam cada vez mais na interação verbal e não verbal,

num movímento continuo. O ser social nasce com o exercício de sua linguagem e a

linguagem como exercício do social.

A palavra é a mediadora entre o social e o individual. Ao aprender a falar, o ser humano também aprende a pensar, na medida em que cada pala\Ta é a revelação das experiências e valores de sua cultura. Desse ponto de vista, tem-se que o verbal influencia nosso modo de percepção da realidade. Portanto, cabe a cada um assumir a palavra como manutenção dos valores dados ou como intervenção no mundo. (LUKIANCHUKI, 2003)

Essas reflexões remetem aos estudos de PÊCHEUX ( 1997), quando diz que, ao

passar de uma formação discursiva à outra, as palavras mudam de sentido. Elas estão em

função das condições de produção do discurso.

O que dizer da correlação entre doença/deficiência? São situações que ocorrem ao

mesmo tempo? Não necessariamente. E outras como anormalidade/patologia,

desvio/patologia, saúde/ideal? Tais correlações formam, ao mesmo tempo, uma

concepção funcional e relaciona! das palavras.

Dessa maneira, as formas estereotipadas no discurso da vida cotidiana encontram

recepção na sociedade que as perpetuam, reforçadas pelo uso e pela circunstância,

refletindo, assim, a composição social do grupo.

127

Page 138: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

A escolha das palavras pode auxiliar no entendimento da questão da deficiência e

trazer algumas vantagens pontuadas por AMARAL (1995): a forma verbal acentua o

aspecto dinâmico da situação; desloca o eixo da noção de deficiência de propriedade

essencial do indivíduo, para condição peculiar; coloca a deficiência como circunstancial,

e, em conseqüência disso, tem um caráter mais descritivo que valorativo; e, por fim,

salienta a unicidade, a singularidade do indivíduo.

Dessa forma, a construção social da deficiência passa pelas palavras e seu sentido.

Mas passa também pelas atitudes que podem ou não confirmar as palavras. Como declara

AMARAL (1995), há uma incongruência entre uma opinião, o politicamente correto, e a

atitude preconceituosa.

Assim, mesmo que se diga ao indivíduo estigmatizado que ele é um ser humano

como qualquer outro, diz-se a ele que não seria sensato abandonar seu grupo ( GOFFMAN,

1988). Em outros termos, ele é igual a qualquer outra pessoa e ao mesmo tempo não é.

Essa política de identidade que circula entre os estigmatizados pode ser identificada nas

falas das atletas.

Ainda na mesma pergunta, sobre o que significa para elas o esporte adaptado, essas

atletas responderam:

Pra mim é normal, porque eu acho que não tem muita diferença, no meu caso (cega) ... (E5)

Pra mim é normal, eu acho assim, que eu me sinto como pessoa normal, porque eu não vejo diferença, às vezes as pessoas portadoras de deficiência fazem até melhor do que os que não são portadores. (E2)

Analisando as condições de produção dos enunciados, entendemos que,

considerando o contexto - Jogos Paraolímpicos -, os enunciadores colocam-se como

pessoas normais (não-deficientes) e falam desse lugar. A percepção que têm de si tem

como espelho o cotidiano da maioria dos não-deficientes. Expressam seu desejo de serem

tidas como iguais pelos outros. No caso dessas atletas, suas respostas demonstram a

128

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ambivalência na situação. Observemos novamente a pergunta: o que significa para você o

esporte adaptado?

O próprio nome já diz esporte adaptado, não é como o esporte comum, não é como

as Olimpíadas. O esporte adaptado é para as pessoas com deficiência, especializado na

diferença, adaptado a condições específicas.

Os enunciados acima podem levar imediatamente a três compreensões: a primeira,

denominada por AMARAL ( 1995) de atenuação, é um tipo de negação ilustrada por frases

do tipo: "poderia ser pior" ou "não é tão grave assim". Atenuação pode ser encontrada,

nas falas das atletas, como:

... é uma vida normal ... (ElO)

... não tem muita diferença, no meu caso ... (E5)

... me sinto como pessoa normal, porque eu não vejo diferença ... (E2)

Mas há diferença, pois ser atleta do desporto adaptado signífica estar inserido num

sistema que, por concepção e estrutura, é diferenciado de seu similar, o esporte para os

normaiS.

Na segunda compreensão, podemos inferir que as atletas adotam uma política de

identidade que conduz a uma conformidade. Elas parecem ter assimilado que o

paradesporto tem uma fimção exclusivamente social. Em seus enunciados, as palavras

adaptar e sociabilizar parecem prepará-las para uma convivência harmoniosa entre os

normais, amenizando o impacto das interações sociais. Ou mesmo, esse comportamento

parece ser uma aproximação, ou melhor, uma forma de diminuirem as diferenças em

relação a uma pessoa "normal". Tal procedimento sugere que há, consciente ou

inconscientemente, uma tentativa para reverter a balança de poder.

A terceira hipótese parte da seguinte questão: será que essas atletas sentem-se tão

bem, tão ajustadas no papel de atletas do paradesporto, que consideram que não há

diferença?

129

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Com a crescente diferenciação da sociedade e a conseqüente individualização dos

indivíduos, o caráter diferenciado de uma pessoa em relação às demais se toma

importante na escala social de valores, ou seja, distinguir-se, ser diferente, passa a ser

valorizado.

A anomia, como a situação das pessoas mal-integradas, foi analisada até aqui em

termos de normal/anormal e será também examinada dentro da relação estabelecidos­

outsiders, na interface com a necessidade que os indivíduos têm de se destacar para serem

aceitos e reconhecidos socialmente.

Em sociedades como a nossa, desde a infância, o indivíduo é estimulado a

desenvolver um grau elevado de autocontrole e independência pessoal. É acostumado

(consciente e inconscientemente) a competir com os outros; aprende desde cedo quando

algo lhe dá aprovação e lhe causa orgulho. O indivíduo fica sabendo que é desejável

distinguir-se dos demais por qualidades, esforços e realizações pessoais e aprende a

encontrar satisfação nesse tipo de sucesso. Contudo, Elias adverte que, ao mesmo tempo,

nessas sociedades, há rígidos limites estabelecidos quanto à maneira como o sujeito pode

distinguir-se e os campos em que pode fazê-lo (ELIAS, 1994 ).

O desejo de se destacar dos demais, de se manter com seus próprios

recursos/condições e de buscar a realização pessoal por suas próprias qualidades e

aptidões, por certo, é um componente fundamental para que a pessoa seja individualmente

considerada e que, aos seus próprios olhos, confirme sua identidade. A pessoa

... pode buscar algo que a destaque de todos os seus parentes e amigos, que lhe permita conquistar ou transformar-se em algo especialmente excepcional, singular ou "grandioso", na competição controlada entre os indivíduos. (ELIAS, 1994, p. I 19)

Tal situação ocupa um lugar privilegiado na escala de valores em muitas

sociedades (parece ser o nosso caso) e garante ao indivíduo o respeito, o aplauso e, muitas

vezes, o amor.

130

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Neste sentido, lutar para se destacar, conquistar algo excepcional e realizar-se na

vida só pode ser vencido por uma minoria. Contrapondo-se a essa situação, há uma

maioria insatisfeita ou claramente sentida porque não consegue aquilo que esperava

realizar nas grandes e pequenas competições. ELIAS (1994) coloca que os sentimentos

daqueles que não conseguem alcançar tal realização passa por aborrecimento, apatia,

depressão, culpa e ausência de significado na vida. Tais sentimentos, segundo o autor,

parecem ser produto de discrepâncias dentro da sociedade, do desencontro entre

orientação social do esforço individual e as possibilidades sociais de consumá-lo.

De modo geral, o individuo almeja a realização pessoal que seja considerada

significativa na sociedade em que vive e procura adequar-se à situação específica em que

está situado em tal sociedade. A satisfação é pessoal, mas, ao mesmo tempo, específica de

cada sociedade, desenvolvida por meio da aprendizagem social.

Lado a lado com o desejo de ser alguém por si ( ... ), freqüentemente existe o desejo de estar inteiramente inserido na sociedade. A necessidade de se destacar caminha de mãos dadas com a necessidade de fazer parte. (ELIAS, 1994, p. 124)

Destacar-se e fazer parte, no caso específico das atletas paraolimpicas, são desejos

observáveis no grupo, uma tendência ao ajuste, ao conformismo e previsibilidade do

comportamento social.

Conforme os enunciados já analisados anteriormente, as atletas expressam

claramente esse duplo desejo:

Acho que significa tudo, acho que realmente é você se integrar, é você se adaptar, é uma sociabilização, eu acho que o esporte ao meu ver é tudo. Porque a pessoa, ela é portadom de deficiência, e o esporte pro portador de deficiência ajuda na nossa formação, na nossa independência ... (ElO)

Observe-se que ser um exemplo de vida, segundo o que afirmou E I O, significa "ser

independente", "morar sozinha", "trabalhar". É mostrar que, mesmo tendo deficiência,

131

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podem fazer esporte e que também são exemplos de "superação", de "como vencer na

vida", de como "derrubar barreiras" e "vencer obstáculos", de "ultrapassar limites" ...

Resumindo:

Ser atleta, acho que é um exemplo de vida pras outras pessoas ... (E4)

No entanto, ser um exemplo de vida para outras pessoas exige um mínimo de

reconhecímento do outro, no grupo, na associação, no bairro, na cidade. Esse

reconhecímento é motivo de aprovação. Mas desejar aprovação é ter um bom ajustamento

social?

GOFFMAN (1988) coloca que o bom ajustamento para os normaís significa que a

dor de ter que carregar um estigma nunca se apresentará a eles; que não terão que admitir

para si mesmos quão limitada é a sua tolerância; que podem continuar relativamente não

contaminados pelo contato com o estigmatizado e não ameaçados em suas crenças

referentes à identidade, ou seja, exige-se que o estigmatizado se comporte de tal maneira

que "não signifique nem que sua carga é pesada, e nem que carregá-la tomou-o diferente

de nós" (p. 133); ele é aconselhado a corresponder naturalmente, aceitando a si mesmo e

aos outros; e, ainda, a permitir uma aceitação de si mesmo que os normaís não são os

prímeiros a dar. Buscar um equilibrio entre ser como os demais em alguns aspectos, e ser

singular e diferente em outros.

A tarefa não é fácil, pois todo indivíduo (estigmatizado ou não) é de certa forma

encaminhado para destacar-se, fazer parte, ser como todos os demaís, seguir as regras,

não sair da linha e, ainda, conformar-se.

A cultura não é, em nenhum momento, uma entidade acabada, mas sim uma linguagem permanentemente acionada e modificada por pessoas que não só desempenham "papéis'" específicos mas que têm experiências existenciais particulares. (VELHO, 1999, p. 21)

132

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Os conceitos de inadaptado, desviante ou desajustado estão vinculados a uma

visão estática e pouco complexa da vida sociocultural. E, por isso mesmo, devem ser

utilizados com cuidado (VELHO, 1999).

Outra característica da relação estabelecidos-outsiders trabalhada por Elias e

Scotson denomina-se de proteção da identidade grupal, ou seja, cerrar fileiras contra os

outsiders é uma das formas de afirmação do grupo estabelecido em relação à sua

superioridade (e vice-versa).

Diferenças coletivas ou grupats são componentes inevitáveis das sociedades

humanas, resultantes de um processo de estratificação que é sempre acompaultado de

diferenciação e avaliação.

Ao se pôr a diferença, no ato mesmo de notá-la ou reconhecê-la, ei-la desde logo valorizada ou desvalorizada, apreciada ou depreciada, prezada ou desprezada. Portanto não há diferença, nos quadros culturais de qualquer sociedade, que não esteja sendo operada pelo valor, como diferença de valor. (PIERUCCI, 1999, p. 105)

A diferença socialmente partilhada recebe um valor: positivo, se for a nossa

diferença- viva a diferença! -, ou negativo, se for a diferença dos outros, do outro.

A lógica da identidade se dá a partir de dois pólos (no caso de sociedades pouco

diferenciadas, mais sÍnlples): a presença de iguais, com quem se dá a identidade, e a

presença do diferente (ou outro), ou seja, quando uma identidade é intemalizada numa

categoria, isto implicará numa certa unidade no interior dela, um sentido de se pertencer a

um grupo, de se fazer parte de um coletivo de indivíduos. O igual é o que constitui o nós

no jogo ou palco das representações. Esse nós serão aqueles com os quais se guardam

afinidades (afetivas ou não) e fidelidades, num determinado espaço ou numa determinada

interação (LOPES, 2003; PlERUCCI, 1999).

Em contraste com esse nós está o eles, que é justamente o outro (o diferente), de

quem o nós se diferencia na construção de sua identidade.

Para dizer nós, o ser humano precisa do ajustamento social, do ajustamento por

outras pessoas. Por meio desse processo de moldagem e ajustamento, num contexto de

133

Page 144: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

caracteristicas sociais específicas, é que a pessoa desenvolve as caracteristicas e estilos

comportamentais que a distinguem de todos os demais membros de sua sociedade. A

existência da pessoa como ser individual é indissociável de sua existência como ser

social, ou seja, cada eu está indiscutivelmente inserido num nós (ELIAS, 1994).

Cada pessoa parte de uma posição única em sua rede de relações e atravessa uma

história singular até chegar à morte. A formação individual de cada pessoa depende da

estrutura das relações humanas num padrão social. Ele adquire sua marca individual a

partir da história dessas relações, dessas dependências, e ainda da história de toda a rede

humana em que cresceu e/ou cresce e vive. Essa história e essa rede humana estão

presentes nele e são representadas por ele.

Todo indivíduo nasce num grupo de pessoas que já existiam antes dele. E não é só: todo indivíduo constitui-se de tal maneira, por natureza, que precisa de outras pessoas que existam antes dele para poder crescer. Uma das condições fundamentais da existência humana é a presença simultãnea de diversas pessoas inter-relacionadas. (ELIAS, 1994, p. 26)

Neste sentido, é pertinente lembrar que a sociologia dos processos fundamenta-se

no reconhecimento de que, no plano dos grupos humanos, as relações entre pessoas

mudam, acontecem com relativa rapidez, pois há dinâmica entre elas. São diferentes em

diferentes épocas e lugares. O individuo só pode ser entendido em termos de sua vida em

comum com os outros, de sua adaptação, e na rede de suas relações, na troca de idéias, na

interdependência em relação aos outros. Neste sentido é que as pessoas estão

continuamente moldando e se remoldando umas em relação às outras (ELIAS, 1994), ou

seja, aprendendo a ser eu em nós. É nesse entrelaçamento continuo e sem começo, na

interação com os outros, que se forma o eu, essa essência pessoal que determina a

natureza e a forma do ser humano individual. A maneira como esse indivíduo se vê e se

conduz em suas relações com os outros depende da estrutura da associação - ou

associações- a respeito da qual ela aprende a dizer nós.

O papel do nós na proteção da identidade grupal revela-se importante, já que não é

possível existir um nós (uma identidade) sem um eles (um outro) para se contrapor, para

134

Page 145: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

comparar. Para GOFFMAN (1988), o eles também seria a platéia, o público, o interlocutor

para quem o nós atua durante a interação. Mas devemos ressaltar que o importante a notar

aqui é que não é possível estabelecer uma identidade sem comparar afinidades.

Por outro lado, a lógica da identificação tem como ponto básico o que é

semelhante, o que se aproxima sem a necessidade de ter um diferente para fazer

reconhecer a alteridade. Neste sentido, a identificação é que determina quem está incluído

e quem está excluído.

Para LOPES (2003 ), o processo de identificação tende a ter um caráter muito mais

efêmero e temporário que a identidade, pois há muitos nós e muitos eles possíveis, com os

quais se podem gerar múltiplas identificações relacionadas com o espaço, com as

intenções dos indivíduos, com as afinidades contextuais possíveis, com a conjuntura ou

outra variável qualquer, pois o outro não deve aparecer como diferente, e sim como

semelhante.

A todo conjunto de semelhantes que compartilham o mesmo espaço denominamos

de grupo. Originalmente, podemos pensar a noção de grupo a partir do pertencimento de

indivíduos a uma coletividade claramente identificado, com regras e objetivos bem

definidos. O modo como cada indivíduo lida com o grupo é que constrói o pertencimento

para com o mesmo.

Um grupo que possui um objetivo estabelecido faz convergir, para si, indivíduos

cujo interesse em comum pode ser o mesmo: a realização de uma tarefa, um grupo de

trabalho, a realização de um evento, a formulação de uma lei, a resolução de um

problema, etc. (LOPES, 2003; PAGÉS, 1882).

A noção de grupo na situação apresentada está fortemente ligada a uma

convergência dos indivíduos devido ao objetivo compartilhado. Mesmo quando não

reunidos (presencialmente), esse tipo de grupo tem o objetivo como fonte de uuião, de

identidade grupal.

Além do objetivo, o caráter afetivo é uma das situações de proteção da identidade

grupal. O sentimento do status de cada membro e da inclusão na coletividade pode estar

135

Page 146: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

ligado à vida e às tradições do grupo. Enfim, supõe-se que, no ritual cotidiano de

afetividade desses grupos, estabeleça-se o seu próprio reconhecimento como grupo. Uma

outra forma de proteção descrita em ELIAS e SCOTSON (2000) é o carisma atribuído a si

mesmo, na configuração, pelo grupo estabelecido. Para marcar a identidade do outro, as

características de desonra são atribuídas aos outsiders.

Para os pesquisadores, entre os já estabelecidos surge uma atitude que denominam

de "cerrar fileiras", que significa unir-se, juntar-se, cercar, fechar-se em linha. "Cerrar

fileiras" tem a função social de preservar, defender, resguardar a superioridade do grupo.

Por exemplo, quando perguntada sobre o que significa o esporte adaptado uma das

atletas responde:

... porque se a gente não fosse atleta, era apenas um coitadinho. (E4)

Esse enunciado,já visto em outras situações durante este trabalho, conduz agora à

reflexão sobre a identidade grupal. O enunciador fala de um lugar que ocupa naquele

momento, de um grupo claramente colocado - o nós atleta -, e se refere ao coitadinho

como sendo claramente, ainda que momentaneamente, do outro grupo, distinto do seu, o

eles.

O enunciado soa como uma defesa em favor das atletas com deficiência, com a

:fmalidade de proteger a identidade do grupo das paraatletas e colocar os coitadinhos, os

deficientes não-atletas, como não pertencentes à mesma identidade grupal. Esse processo,

conhecido como guetízação, gerado ou fortalecido pelas próprias minorias, é produzido

na busca da reafirmação e do orgulho pela identidade construída, levando à estruturação

de espaços e lugares sociais exclusivos (excluindo os considerados diferentes).

O papel social de atleta lhe serve também como grupo, no qual se abriga e se

identifica no momento. O papel de coitadinho, em sua fala, não pertence ao grupo das

atletas. E, ao colocar-se como atleta, a carga afetiva desse grupo nós-atleta lhe confere

um sentido emocional mais intenso do que se ela tivesse dito "se a gente não fosse atleta

136

Page 147: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

paraolímpica". ELIAS (1994) aborda este assunto como uma peculiaridade do periodo de

transição de uma identidade a outra, citando, como exemplo, a identificação "sou

europeu" como emocionalmente mais intensa do que "sou latino-americano".

Neste estudo, a colocação "eu sou atleta" é a referência que parece ter uma carga

afetiva, um sentido emocional, mais intenso do que "eu sou atleta paraolímpica". Enfim,

como as conexões entre as características da relação estabelecidos-outsiders são

complementares, mencionamos, neste momento, a ligação entre este tema e a

característica já analisada no capítulo 4, sobre o grupo estabelecido espelhar-se na

minoria dos seus melhores.

Neste outro enunciado, como resposta à mesma pergunta, outra atleta explica que:

Pra mim é normal, eu acho assim, que eu me sinto como pessoa normal, porque eu não vejo diferença, às vezes as pessoas portadoras de deficiência fazem até melhor do que os que não são portadores. Porque na verdade todo mundo tem uma deficiência A gente portamos uma deficiência, mas todos têm uma deficiência de uma maneira ou de outra, mas têm. Ninguém é perfeito. (E2)

A proteção da identidade grupal, no enunciado acima, se faz com um "ataque", ou

seja, percebemos a tentativa da atleta em desestabilizar, questionar a identidade do grupo

considerado normal quando diz: "A gente portamos uma deficiência, mas todos têm uma

deficiência de uma maneira ou de outra, mas têm. Ninguém é perfeito". E ainda, ao

generalizar, coloca a questão da deficiência como um problema menor, atribui a todos a

identidade deficiente, numa postura de proteção da identidade grupal em que todos têm

uma deficiência. Para AMARAL (1995), tal atitude pode ser considerada como política de

despistamento, ou seja, uma tentativa de não encarar a problemática da deficiência de

frente.

Enfim, a constatação de uma diferença é, em si, apenas uma constatação.

Uma outra característica da relação estabelecidos-outsiders é diferença acentuada

na coesão entre os grupos, ou seja, um é estreitamente integrado o outro não.

137

Page 148: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

A viabilidade de o indivíduo formar uma rede de interdependências que podem ser

internas ou externas a um determinado grupo, como conseqüências inesperadas das

inúmeras possibilidades de interações sociais vividas nesse grupo, é denominada, como se

viu no capítulo 1, de configuração. Na relação estabelecidos-outsiders, não basta só a

configuração, pois o que assegura a coesão do gmpo é a maior ou menor integração, isto

é, um fundo emocional comum e que é compartilhado por todos.

O conceito de coesão grupal refere-se à quantidade de pressão exercida sobre os

membros do grupo a fim de que os mesmos permaneçam nele e também pode ser

considerado como a resultante das forças que agem sobre um membro para que ele

permaneça no grupo. Portanto, "a opiníão interna de qualquer grupo com alto grau de

coesão tem uma profunda influência em seus membros, como força reguladora de seus

sentimentos e sua conduta" (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 39).

O grupo é uma totalidade que não implica em adequação perfeita das partes ao

todo, é baseada num contra-senso, ou seja, nas histórias individuais, nas diferenças dos

individuos e em seus conflitos, mesmo assim há um laço de união grupal que permanece,

consciente ou inconscientemente, e que pode se manifestar em cooperação, solidariedade

e ou respostas individuais e coletivas (PAGES, 1982).

No entanto, quais são as razões que levam à coesão grupal?

Uma primeira ordem de resposta sugere que os grupos, em geral, atraem e são

dotados de atributos que os tomam solicitados pelas pessoas. Uma outra discussão sugere

que muitas pessoas procuram os grupos não pela atração exercida pelo grupo em si

mesmo, mas pela atração exercida por um determinado membro desse grupo. Um terceiro

argumento indica que muitas vezes procura-se o grupo não por atração por uma

determinada pessoa ou pelo grupo, mas porque se acredita que o grupo é a única

alternativa que se dispõe para atingir determinados objetivos (OLIVEIRA, 2002).

Coesão grupal, identificação coletiva e normas comuns são aspectos que permitem

pensar a noção de grupo a partir de individuos pertencentes a uma coletividade

claramente identificada, com regras e objetivos bem defmidos. A identificação agrega

138

Page 149: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

cada pessoa a um grupo/configuração ou a vários grupos/configurações, implicando em

multiplicidade de valores e envolvimento de outros.

Um aspecto observado por Elias e Scotson sobre a coesão grupal, na figuração

estabelecidos-outsiders, levanta a questão de o controle social ser mantido por intermédio

das fofocas dos tipos elogiosa e depreciativa. A fofoca elogiosa serve para apoiar e

elogiar as pessoas aprovadas dentro do próprio grupo estabelecido,

... a opinião interna de qualquer grupo com alto grau de coesão tem uma profunda influência em seus membros, como força reguladora de seus sentimentos e sua conduta. (ELIAS; SCOTSON, 2000, p.39)

Por outro lado, a fofoca depreciativa enfatiza os clichês, o estigma e afeta a

identidade coletiva do grupo outsider, que está sendo o alvo da fofoca. Fica especiahnente

claro como as fofocas servem como obstáculos à integração entre os grupos. Entretanto,

essa prática manifesta o grau de coesão do grupo porque quanto mais unida for a

comunidade melhor funcionará a fofoca, contribuindo para aumentar a coesão dos

estabelecidos e a rejeição dos outsiders.

Contudo, ainda que dentro de um mesmo grupo, as relações conferidas a duas

pessoas e suas histórias individuais nunca são exatamente idênticas.

Consideremos o coletivo das pessoas com deficiência. Para GOFFMAN (1988), o

individuo estigmatizado é originário do lugar que ocupam os seus iguais na estrutura

social.

Como forma de ampliar a visão/noção do grupo de atletas paraolimpicos (homens e

mulheres), selecionamos alguns dados do estudo realizado por SAMULSKI (2002);

"' de uma forma geral, o motivo mais importante para iniciar uma atividade esportiva

foi o prazer da prática e a necessidade de reabilitação;

"' o principal motivo para praticar esportes foi a competição e o desejo de superar

limites;

Page 150: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

./ a maioria mencionou os seguintes aspectos estressantes: problemas de sono,

pressão de vencer e conflitos interpessoais;

./ quem mais motivou os atletas a iniciarem sua prática esportiva foram os pais

(32,8%) e os amigos (26,6%);

./ os três principais objetivos no esporte apontados pelo grupo foram: ser campeão

(20,8%); conquistar medalhas (12,8%) e serreconhecido (12,1%);

./ quanto aos fatores que mais dificultam a vida do atleta foram apontados:

necessidade de trabalhar (40,8%), as lesões e doenças (35,7%) e o patrocínio

(35,3%). Nessa questão, houve uma diferença significativa em relação ao sexo dos

atletas, para as mulheres o fator decisivo foi a necessidade de trabalhar (75%);

./ no teste de autopercepção de capacidades no esporte competitivo o item

rendimento atual foi estatisticamente significativo em favor das mulheres e

relacionamento com os familiares foi a mais importante para ambos os grupos;

./ sobre os motivos iniciais que levaram à prática o item incentivo da família e

amigos merece destaque por ter obtido um percentual significativo, relacionando a

importância do estimulo de pessoas próximas para praticar esportes;

./ quanto aos principais motivos que mantêm os atletas praticando esportes são: o

prazer da prática, gostar de competir e fazer amizades; os motivos menos

importantes foram o retorno financeiro e o status social.

Os dados encontrados por SAMULSKI (2002) não são diferentes dos citados na

revisão de BRAZUNA e MAUERBERG-DECASTRO (2001 ). As autoras colocam que:

./ a reabilitação e a oportunidade de engajamento social são os principais motivos

para o ingresso no esporte adaptado;

./ uma vez inserido na rotina do esporte e vencida a fase terapêutica, o atleta inicia

sua jornada no mundo das competições e, apesar do limitado reconhecimento do

esporte adaptado pelo público em geral, o atleta acaba percebendo outras

140

Page 151: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

possibilidades como a política, a financeira e de status pessoal enquanto ascende

na categoria de atleta de elite;

./ o esporte competitivo toma-se uma ponte de ascensão socioeconômica e de status

individual;

./ devido à rápida ascensão para o esporte de elite, muitos atletas experimentam um

envolvimento intenso e de longo prazo;

./ nos países de primeiro mundo, os atletas conseguem status internacional no esporte

adaptado entre seis meses e dois anos;

./ para a maioria dos atletas, o envolvimento e o sucesso da participação no esporte

paraolímpico estão associados com a auto-estima positiva;

./ "o esporte adaptado tem o significado de competição do atleta contra si, contra sua

deficiência, contra a vida e contra os outros" (p. 117).

Os pontos destacados acima discorrem, direta ou indiretamente, acerca de uma

batalha pessoal aprendida, " ... produzida no individuo por instituições sociais e

experiências específicas ... " (ELIAS, 1994, p. 119) Trata-se de uma competição por

oportunidades que são apreciadas como dignas de esforço conforme uma categoria social

de valores. Essas oportunidades, por diferentes razões, continuam inatingíveis para a

maioria dos que as perseguem. Mas, para os individuos que as alcançam, estão associadas

a diversos tipos de recompensa, sejam elas o sentimento de realização, propriedade e

poder ou o de respeito e prazer ou uma combinação de ambos (ELIAS, 1994 ). Competição

por oportunidades, desejo de distinguir-se dos outros, busca por aprovação, destaque e

sucesso são alguns dos elementos que dão idéia dos aspectos presentes na coesão grupal,

mais especificamente dessa configuração - atletas paraolirnpicas.

A família, os amigos, a equipe, a técnica, a associação e a estrutura desporto

adaptado são as configurações mais significativas verificadas na construção do papel

social de atleta. A coesão repousa nos sistemas conscientes de opiniões e atitudes, bem

como sobre a solidariedade inconsciente dos componentes. Alguns exemplos disso podem

ser observados nas respostas abaixo:

141

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... a equipe da gente é uma equipe muito unida, a técnica e tudo, uma família. l\.1as a gente sempre se reúne, assim, a técnica, os atletas, pra ver o que precisa, essas coisas todas ... aí, pra mim fica mais fácil, porque aí é uma família ... (E2)

Associação eu acho legal. Participo, a gente tá todos os dias junto com o pessoal, técnico, os colegas. É como se fosse uma outra família ... (E4)

As normas grupais podem ser caracterizadas como padrões ou expectativas de

comportamentos partilhados pelos membros do conjunto, podendo ser consideradas uma

alternativa satisfatória ao poder exercido no grupo. Há uma clara seqüência no

estabelecimento das normas grupais. Primeiro, em todo e qualquer grupo existe um certo

padrão nas atitudes ou comportamentos desejáveis e aceitáveis por parte dos seus

membros. Segundo, existe uma fiscalização por parte do grupo sobre a obediência aos

padrões estabelecidos, e, por fim, aos não-conformistas observa-se a aplicação das

sanções. Quanto maior a coesão grupal, maior a satisfação experimentada pelos

indivíduos, maior a comunicação entre eles, maior a influência exercida pelo grupo sobre

os seus membros e maior a produtivídade do grupo (OLIVEIRA, 2002). Por exemplo:

Na associação ... a gente se entrosa, são pessoas que a gente já conhece há muito tempo, anos e anos de convivência. É porque é um grupo já, um grupo fechado assim, um grupo de pessoas que a gente já sabe a convivência de cada um ... (E3)

No grupo, existem inúmeras possibilidades de relações. Ao dizer nós, as pessoas

podem estar se referindo aos amigos, à empresa em que trabalham, à cidade onde moram,

ao clube ou à associação de que fazem parte, ao time para o qual torcem, etc. Esta

identificação-nós refere-se a laços sociais e irá variar conforme o nível de envolvímento.

Pode explicitar-se no nível mais amplo, macrossocial. No entanto, pode manifestar-se em

situações mais microscópicas, como no caso da família, que existe por meio de um código

próprio, de uma linguagem de papéis, status, etc. culturalmente elaborados (VELHO,

1999). A fanulia pode ser um outro grupo-nós, outra configuração.

142

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Em muitos casos, as pessoas esperam, de seu grupo-nós, apoio, proteção e ajuda

nos infortúnios, especialmente de seu grupo de sobrevivência, que pode ser a família

(ELIAS, 1998). Neste caso, a família continua a ser a configuração que maior laço afetivo

tem entre seus membros.

A família, enquanto referencial teórico da identidade-nós, sem dúvida continua a ser um grupo humano que, para o bem ou para o mal, clita a seus membros uma carga afetiva bastante elevada. (ELIAS, 1994, p. 166)

Observemos alguns relatos das atletas sobre os informados com quem convivem e

a quem podem referenciar como nós:

Minha família me apóia muito ... meus pais, meu noivo ... todo mundo me apóia, me dá a maior força ... (E 1)

Minha mãe se dedica totalmente a mim. Quando estou em casa, para os treinos, pra todo canto que eu vou resolver alguma coisa. Se for treinar duas vezes ... final de semana, ela passa sempre comigo ... (E2)

... o relacionamento com a técnica ... muito bom mesmo, é uma técnica amiga. Ela assim ... estimula muito os atletas, se dedica muito. Até a gente, quando estamos desanimados, qualquer um atleta, ela está ali em cima ... a técnica, porque ela se dedica muito, ela é dessas técnicas que é dedicada, é assim, é nos momentos difíceis da gente, nos momentos bons, ela sempre tá com a gente. (E2)

... (colega de equipe) que também é um amigão, dá muita força à gente, à equipe, a equipe da gente é uma equipe muito unida, a técnica e tudo, é uma fàmília. (E2)

Eu agradeço muito... a tudo, às pessoas também que me ajudaram até chegar aqui, a minha mãe que sempre teve comigo em tudo, que vai me deixar todos os dias e fica esperando, tudo ... (E3)

Na associação ... a gente tá todos os dias junto com o pessoal, técnico, os colegas. É como se fosse uma outra fàmília, a gente sai de casa, todos os dias. (E4)

... o relacionamento com o técnico é maravilhoso. Ele é pai, amigo, irmão, é tudo pra mim. (E7)

... porque a minha irmã pratica ... e ela me incentivou a fazer um esporte pra eu ficar bem, ficar melhor comigo mesma ... (E8)

143

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A relação do estigmatizado com a comunidade informal e as organizações formais

a que ele pertence em função de seu estigma não podem ser desconsideradas. Para as

atletas do desporto adaptado, a associação à qual pertencem é uma dessas instituições

formais à qual, por estrutura e organização, elas, as atletas, têm que estar vinculadas.

Quando perguntadas sobre a sua participação em alguma associação, algumas delas

realmente participam, outras não; no entanto, a associação está presente em todos os

depoimentos:

Participo muito ... tudo, tudo que precisar eu tô no meio. (E!)

Eu sou muito assim, pra falar eu sou muito timida, né. A assocmção tem uma representante que sempre vai às reuniões ... foi escolhida uma representante e passa tudo pra gente. (E2)

A associação da gente é pequena ... um grupo de pessoas que a gente já sabe a convivência de cada um, o dia-a-dia de cada um, e não tem assim ... a gente se encontra todos os dias no mesmo canto, mesmo local, mesma conversa, mesmo tudo ... (E3)

Participo, a gente tá todos os dias junto com o pessoal, técnico, os colegas. É como se fosse uma outra fàmília ... Associação eu acho legaL Apesar de ser uma associação pequena, é legal. (E4)

Infelizmente não ... mas sempre que eu posso, eu gosto de estar participando, porque eu acho legal, o (deficiente) tem que ser integrado. (E5)

Olha, a gente tá com sérios problemas ... a gente tá querendo sair, então, o relacionamento nosso com a diretoria não é legaL (E6)

Sim ... melhor impossíveL treino, converso ... vou à reunião. (E7)

Participo. Pra competir eu tenho que ser membro da associação. (E8)

... eu participo ... eu não apareço muito. É assim, ela funciona de manhã essa associação, e de manhã, justo de manhã, eu tô treinando. Aí é meio complicado. Eu apareço de vez em quando. (E9)

Eu comecei (no esporte) ... quando conheci uma associação ... (ElO)

O indivíduo só pode ser entendido em termos de sua vída em comum com os

outros, como elo numa cadeia, no sentido de que é possível pensar, ao mesmo tempo, o

homem indivídual a partir da realidade coletiva, da dependência que os outros têm dele e

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da sua dependência em relação aos outros. A identidade eu está irrevogavelmente inserida

num nós, matriz e moeda, como coloca Elias. Finalmente,

... cada pessoa só é capaz de dizer "eu" se e porque pode, ao mesmo tempo dizer "nós". ( ... )As funções e relações interpessoais que expressamos com partículas gramaticais como "eu", "você", "ele", "ela", "nós" e "eles" são interdependentes. Nenhuma delas existe sem as outras. E a função do "nós" inclui todas as demais. (ELIAS, 1994, p. 57)

O igual é o que constitui o nós no jogo das representações. Esse nós serão aqueles

com os quais se tem afinidades (afetivas ou não, dependendo das interações) e fidelidades

num determinado espaço ou numa determinada interação. Contrapondo a este nós está o

eles, que são justamente o outro, de quem o nós se diferencia na construção de sua

identidade.

No estudo sociológico das pessoas estigmatizadas, o interesse está geralmente

voltado para o tipo de vida coletiva - quando esta existe - que levam aqueles que

pertencem a uma categoria particular. O que se sabe é que os membros de uma

determinada categoria de estigma tendem a reunir-se em pequenos grupos sociais cujos

membros são de uma mesma categoria, estando esses próprios grupos sujeitos a uma

organização que os engloba em maior ou menor medida (GOFFMAN, 1988).

A arte de reagrupar-se permite que os indivíduos que se encontram num espaço

social percebam nos outros seus interesses e formem juntos grupos até então

imperceptíveis (COURY, 2001). O grupo possui um objetivo e faz atrair para si indivíduos

cujo interesse seja comum. O objetivo é a fonte de união, seu caráter específico de

identificação.

A configuração desporto adaptado promove o encontro de identificação e a

construção de pertencimento do grupo por meio de suas regras e rituais (treinos e

competições). Tal configuração exige um engajamento voluntário do grupo centrado em

afmidades e interesses comuns.

O processo de partilhamento de semelhanças, relações e identificação entre os

indivíduos do grupo (neste estudo, as atletas do desporto adaptado) é um modo de

145

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pertencimento com reciprocidade como uma das formas de construção/convivência do

próprio grupo.

Contndo, a relação entre os indivíduos e os grupos não pode prescindir daquilo que

faz da sociedade, e dos homens: do jogo de forças que constitui as relações humanas, a

que chamamos conflito. Para Elias, o conflito é inerente às relações sociais, isto é,

humanas. São os conflitos, as lutas e as tensões os elementos que estruturam o todo (seja

individual ou social). Trata-se de uma sociologia dos grupos sociais, preocupada com as

relações, de tensão e poder, que se estabelecem intergrupos e intragrupos (WAIZBORT,

2001).

A dinâmica de atração e repulsão entre os indivíduos e/ou grupos estabelece uma

situação de interdependência e de conflito em equilíbrio instável de poder.

O equilíbrio instável de poder é uma das características da relação estabelecidos­

outsiders, na qual um grupo só pode estigmatizar o outro com eficácia quando está bem

instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído. Quando o

diferencial de poder é muito grande e a submissão inevitável, os grupos na posição de

outsiders avaliam-se pelo padrão, pela bitola de seus opressores, vivenciam a sua

inferioridade de poder como um sinal de inferioridade humana (ELIAS; SCOTSON, 2000).

Por exemplo, pena e piedade nos remete a uma relação em que esse alguém, de quem se

tem piedade, é olhado de cima para baixo, é alguém que sofre, mas sofre num patamar

inferior (outsider) em relação ao que está solidamente instalado no patamar superior

(estabelecido).

Numa outra sitnação, os grupos estabelecidos que dispõem de diferenciais de poder

muito grandes e de opressão igualmente acentuada, tendem a vivenciar seus grupos

outsiders como sujos, pouco limpos. Para exemplificar essa sitnação, os autores citam a

expressão os grandes mal-lavados, utilizada durante o processo de industrialização da

Inglaterra para denominar as camadas inferiores (ELIAS; SCOTSON, 2000).

O poder encontra-se em todos os casos de interação social, pois ele está diluído. Os

indivíduos ou os grupos não compartilham o mesmo poder por ser uma relação

146

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assimétrica, entre desiguais. Isso é o que Elias denomina de um equilíbrio instável de

poder. Medir forças entre si é o que os homens fazem a cada instante ao se relacionarem

uns com os outros. Onde há interdependência funcional entre os individuos, há equilíbrios

de poder. O trabalho é o exemplo mais evidente de interdependência funcional no

processo de diferenciação da sociedade (WAIZBORT, 2001).

Mesmo as sociedades mais simples, pouco diferenciadas, organizam-se em tomo

de pelo menos duas diferenças coletivas que hierarquizem as pessoas, aloquem o poder e

dividam o trabalho, por exemplo, as diferenças de sexo/gênero e idade/geração

(PIERUCCI, 1999).

A pessoa, individualmente considerada, está sempre ligada a outras de um modo

muito específico pela interdependência.

E aquilo que chamamos "poder" não passa, na verdade, de uma expressão um tanto rígida e indiferenciada para designar a extensão especial da margem individual de ação associada a certas posições sociais, expressão designativa de uma oportunidade social particularmente ampla de influenciar a auto-regulação e o destino de outras pessoas. (ELIAS, 1994, p. 50)

E essa margem individual de ação, associada a certas posições sociais, diversos e

complexos papéis sociais que os indivíduos desempenham, diz respeito às cadeias de

interdependências, pontos de entrelaçamento e reciprocidades entre os indivíduos

(WAIZBORT, 2001).

Ainda nesse sentido, segundo GOFFMAN (1988, p. 20), a pessoa estigmatizada pode

usar o seu estigma, apoiando-se em uma desvantagem para ganhos secundários. Vejamos,

na enunciação a seguir, um exemplo de como a oportunidade social pode influenciar a

auto-regulação:

"Quando é que eu ia ser uma (praticante da modalidade X) se eu não fosse paraatleta, né. Tem as suas desvantagens mas também tem as suas vantagens, de ser deficiente físico ou qualquer outra deficiência. (E4)

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A mesma atleta beneficia-se de sua condição para permanecer entre a elite do

paradesporto brasileiro:

Comecei com a modalidade X. .. Eu fuço modalidade Y quando é pra viajar pra fora do país. Na modalidade X tem muitas meninas, né ... mas quando é pra viajar pra fora, eu faço a modalidade Y, porque eu treino as duas. (E4)

Dessa forma, observa-se que, uma vez instaladas, evitarão por todos os meios

perder seu lugar no grupo, mas jamais poderão deixar de ser o que são.

Para permanecer (poder) entre os da elite, a atleta move-se de um círculo social

para outro. Na realidade, quando essa atleta, (E4), desloca-se de uma modalidade para

outra, de um (sub)grupo para outro (sub)grupo, tem que (res)estabelecer os

relacionamentos com o grupo para o qual se desloca. Tal mobilidade social sugere que a

atleta, ao transitar entre os dois (sub )grupos, de uma configuração para outra, acostume­

se, mesmo que temporariamente, com o papel de recém-chegada. "Ao menos por algum

tempo, elas parecem ficar no papel de recém-chegados e, muitas vezes, de outsiders às

portas de um grupo já estabelecido" (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 176). Quer o indivíduo se

mova dentro do mesmo grupo ou entre grupos, alguns traços elementares da mobilidade

se repetem de maneíra mais ou menos pronunciadas e a estígmatização seria um desses

traços.

Se existe a possibilidade de pensarmos as atletas paraolimpicas como estabelecidas

na configuração desporto adaptado, então poderemos apontar alguns indícios de que elas

se mobilizam para que isso ocorra e, principalmente, para que elas permaneçam nessa

configuração. Para serem e continuarem estabelecidas as atletas se colocam:

... e eu pretendo continuar competindo como atleta até quando for possível, trocando de provas é lógico ... (E5)

... e mesmo que eu pare como atleta, eu quero continuar no meio, continuar aqui com outra função, sabe, porque eu acho que minha vida é essa, e eu não saberia fazer outra coisa, então eu

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quero fàzer uma coisa pra contribuir para o deficiente, para o desporto ... qualquer coisa. Eu quero ter uma função que eu possa aproveitar numa delegação como essa, por exemplo, daqui uns I O anos, eu vou estar numa paraolimpíada, sei lá ... fazendo alguma coisa na delegação, estar aqui, porque eu acho que não conseguiria mais viver minha vida sem essa agitação, sem esse mundo, sem essa coisa. (E5)

A integração regula as escolhas do indivíduo, pois se trata de uma mudança

estrutural na relação das pessoas umas com as outras. Essa mudança humana, essa

modificação no equilíbrio de poder- não apenas entre indivíduos enquanto tais, mas entre

indivíduos como representantes de diferentes funções e posições sociais (atleta

paraolímpica) -, pode ser compreendida e só "podemos fazer-lhe justiça se tivermos,

diante dos olhos, exemplos claros, e se tentarmos vísualizar o que esta mudança

significou para as pessoas envolvídas" (ELIAS, 1995, p. 44 ).

No meu caso, eu sou a melhor do Brasil, porque, da minha classe só veio eu, né, do BrasiL (El)

Agora me sinto uma grande atleta. (E7)

Considerando os enunciados acima, podemos apenas dimensionar o que representa

ser "uma grande atleta". "Quanto a esse aspecto não devemos nos iludir julgando o

significado, ou a falta de significado, da vída de alguém segundo o padrão que aplicamos

à nossa própria vida" (ELIAS, 1995, p. 1 0).

Quanto ao discurso, este não é um porta-voz, como se pudéssemos dissociar os

sujeitos de suas falas, principalmente se considerarmos previamente que o discurso tenha

sido constituído no terreno da relação social, como experiência social.

Grupos em situação de poder tendem a se achar melhores e superiores a outros

grupos interdependentes. Parece também que há um empenho para que haja uma distância

social enorme entre atleta e coitadinho, em que a distância espacial é muito pequena,

circunstancialmente na convivência com outras pessoas deficientes não-atletas, o que

ELIAS (1995) coloca como viver "em dois mundos".

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Um desafio é lançado por GEBARA (200Ib): é preciso "isolar" os grupos

específicos de deficientes e investigar, por exemplo, que configurações eles constroem

com os grupos de pessoas não-deficientes com quem convivem no desporto adaptado.

Será possível encontrar alguma regularidade, alguma identidade configuracional?

Certamente a especificação das diferentes características fisicas,(cegos, paraplégicos) acobertadas pela uniformidade dos termos genéricos (deficientes ou portadores), nos pennitirá observar casos onde o desequilíbrio de poder é maior ou menor, dependendo do estrato grupal e seu nível anômico. Da mesma maneira, é de se supor a existência de resistências, as quais são manifestação de poder de segmentos dos grupos outsíders (GEBARA, 200lb, p. 45-46).

Ainda com base em GEBARA (2001 b ), o autor exemplífica colocando que os cegos

recusam seu pertencimento à identidade generalizadora.

Enfim, foi por meio de analogias, aproxiniações e um constante diálogo entre a

abordagem da relação estabelecidos-outsiders e os enunciados das atletas que analisamos

o grupo de integrantes da delegação brasileira que participou das Paraolimpíadas de

Sydney, observando e investigando as inter-relações possíveis entre: deficiente/não­

deficiente; atleta deficiente/atleta não-deficiente.

Finalmente, apresentamos a seguir as caracteristicas discutidas nos capítulos 3, 4 e

5 sintetizadas, como um exercício das possibilidades de análise neste enunciado

exemplar:

... porque se a gente não fosse atleta, era apenas um coitadinho. (E4)

Para que se possa pensar neste vinculo em termos de relações e funções que se

ligam, entrelaçam e reúnem os mais variados aspectos/caracteristicas da relação

estabelecidos-outsiders no grupo estudado, selecionou-se o enunciado acima, que faz

parte da resposta da atleta à pergunta: o que signífica para você ser atleta do esporte

adaptado?

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A resposta indica que é possível perceber, de uma só vez, as caracteristicas da

figuração estabelecidos-outsiders, observemos:

Sobre indivíduo em sociedade

Deve-se começar pensando na estrutura do todo para compreender a forma das partes individuais. Esses e muitos outros fenômenos têm uma coisa em comum, por mais diferentes que sejam em todos os outros aspectos: para compreendê-los, é necessário desistir de pensar em termos de substâncias isoladas únicas e começar a pensar em termos de relações e fonções. (ELIAS, 1994, p. 25)

A representação que cada pessoa faz da posição de seu grupo entre outros e de

seu próprio status como membro desse grupo aparece no enunciado. Atleta e coitadinho

aparecem na enunciação como posições diferentes no discurso. A atleta reconhece no

outro (deficiente não-atleta) o estigma, o coitadinho. E se reconhece na enunciação como

atleta que tem um status e ocupa um lugar na configuração desporto adaptado.

A enunciação não é uma cena ilusória. O "lugar", a posição de onde o indivíduo

fala é a de atleta de alto nível. Para FOUCAULT (2000), é determinando qual é a posição

que pode e deve ocupar cada indivíduo para dela (posição) ser sujeito. Porque se, por um

lado, a posição constitui o sujeito em sujeito de seu discurso, por outro, ela o assujeita. Se

a posição submete o enunciador a suas regras, ela igualmente o legitima, atríbuindo-lhe a

autoridade vinculada institucionalmente a este lugar.

Considerando o fato de que o grupo estabelecido tende a atribuir ao conjunto do

grupo outsider as características ruins de sua porção pior e, em contraste, tende a se

espelhar na minoria de seus melhores membros, um grupo estabelecido tende a definir os

outsiders a partir das caracteristicas que despreza em si, que estão presentes em sua

porção anômica, enquanto se defme a partir das caracteristicas que mais valoriza,

presentes na sua elite.

Na enunciação, como foi visto no capítulo 4, fica claro que a porção pior da

sociedade é o deficiente e coitadinho uma das características ruins apontada pela atleta. E

que minoria de seus melhores em quem se espelham são as atletas não-deficientes e de

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alto rendimento ou mesmo a porção "menor e melhor'' do paradesporto, que são elas

próprias.

No enunciado, a palavra coitadinho aparece também como rótulo. ELIAS e

SCOTSON (2000) colocam que a depreciação coletiva dos grupos outsiders, atribuída por

outros grupos mais poderosos, sob forma de rótulos e de fofocas estereotipadas, tem

influência sobre a autopercepção e o comportamento dos indivíduos implicados na

circulação de estigmatizações. E toda opressão, na verdade, visa o conjunto do

agrupamento e, a priori, todos os indivíduos como membros desse grupo são por ela

afetados anonimamente (MEMMI, 1977).

"Seria apenas um coitadinho" é também o estigma social imposto pelos

estabelecidos aos outsiders.

O enunciado mostra que a atleta "sai" da esfera deficiente para reconhecer (ou

rejeitar?) no outro (deficiente não-atleta) o coitadinho, o estigma. Parece que existe a

necessidade de um estigma para marcar os outsiders. O caráter fantasioso da marca e sua

consolidação são físicos e/ou morais.

Como princípios de classificação e diferenciação social, estigma e desvio social remetem à problemática de delimitação de grupos sociais e de demarcação de suas respectivas posições estruturais. (GOLDWASSER, 1999,p. 30)

Afirmação de fronteiras entre grupos sociais, demarcação de status, o que ELIAS e

SCOTSON (2000) denominam de "cerrar fileiras".

Como já foi colocado, na verdade, a pessoa estigmatizada aprende e incorpora o

ponto de vista dos normais, adquirindo, portanto, as crenças da sociedade em relação à

identidade e uma idéia geral do que significa e as conseqüências de possuir um estigma

particular, o que é chamado por GOFFMAN (1988) como aprendizagem do estigma.

Voltando ao enunciado, ela fala do lugar de atleta e parece que a percepção que

tem de si mesma é que, sendo atleta, ela é vista como tendo um status, um lugar social

diferente do outro (deficiente?) que não é atleta, que é o coitadinho. O deficiente-

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coitadinho é o deficiente não-atleta e por isto ela supõe que seja incapaz, perdedor e digno

de pena. O coitadinho reitera a representação da pessoa com deficiência à

impossibilidade, à incapacidade e ao derrotismo. O que leva o indivíduo estigmatizado e

grupo-coitadinho à semelhança do padrão de estigmatização, que é gerada pelas próprias

condições de sua posição de outsider e pela opressão que lhe são concomitantes.

A estigmatização dos outsiders segue, portanto, a lógica da atribuição de anomia:

considerar como defeito grupal o que é decorrente da situação dos outsiders, imposta e

reproduzida pelos estabelecidos. A pobreza - baixo padrão de vida - é vista como

decorrente de qualidades humanas e não de uma relação de poder. Um modo comum de

estigmatizar é a pobreza. Para utilizá-la, o grupo estabelecido precisa possuir as melhores

posições sociais, em termos de poder, prestígio social e beneficios materiais. Outro modo

de estigmatizar é atribuir como características a outro grupo a anomia, que pode ser

entendida como a situação de pessoas "mal-integradas". Outro modo é atribuir ao outro

grupo hábitos deficientes de limpeza e higiene, os sujos, "mal-lavados". Um último

exemplo é tratar e ver os outsiders como quase inumanos ou não pertencentes à

convivência social (ELIAS; SCOTSON, 2000).

Para permanecer no grupo, é necessário que o indivíduo sujeite-se a padrões

específicos. Este é o preço a ser pago por cada membro do grupo estabelecido para estar

no grupo. A participação na superioridade de um grupo e em seu carisma grupal singular

é a recompensa pela submissão às normas específicas e obrigações grupais. Membros dos

grupos outsiders são vistos como desobedientes a essas normas e obrigações. O contato

com eles está emocionalmente ligado pelo "medo da contaminação".

Sendo assim, a representação que tem de si e a auto-estima de um individuo estão

ligadas ao que os outros membros do grupo pensam dele (ELIAS; SCOTSON, 2000). E

como atleta, ela tem uma autopercepção e auto-estima característicos do grupo-atleta, e

que é diferente do grupo-coitadinho. Por isso, é preciso adotar as normas específicas do

grupo. Mas quais são as normas específicas do grupo? Esta questão carece de

investigação.

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No enunciado, a ano mia ou a situação das pessoas mal-integradas ou desaprovadas

socialmente é analisada no sentido inverso, ou seja, na busca das atletas para o bom

ajustamento à sociedade e particularmente ao papel de atleta. Quando, no enunciado, ela

coloca-se no grupo-atleta e situa o grupo-coitadinho como o outro grupo, que não o seu,

rejeita tudo o que o coitadinho representa, tudo aquilo que para ela é sinal de sua

diferença, inferioridade e desaprovação social (seja constatada ou inventada).

"Cerrar fileiras" contra os outsiders é uma das formas de afirmação do grupo

estabelecido em relação a sua superioridade (e vice-versa), o que Elias e Scotson

denominam de proteção da identidade grupal. Os grupos que reivindicam tal carisma- os

estabelecidos -tendem a evitar o contato social de seus membros com membros de outros

grupos- outsiders -por meio de rótulos, etiquetas e formas de controles sociais, como a

fofoca elogiosa e a fofoca depreciativa.

No enunciado, está claro, a atleta se refere ao grupo como nós e em contraste a este

nós está o eles, que é justamente o outro (o diferente), de quem o nós se diferencia na

construção de sua idetidade-atleta. E de certa forma fabrica a 'ideologia' da atleta

paraolímpica, ou seja, a superioridade do grupo-atleta implica obviamente, como

contrapartida, na inferioridade do grupo-coitadinho (deficiente não-atleta).

Na coesão entre os grupos, o que ocorre é que um grupo é estreitamente integrado

(estabelecidos) o outro não (outsiders). A coesão grupal (organização interna do grupo,

identidade coletiva e compartilhamento de normas) é suficiente para criar um diferencial

de poder e levar os membros de um grupo a diversos beneficios.

Na relação estabelecidos-outsiders, a composição dos grupos se faz por indivíduos

ligados entre si numa configuração. Sendo ass~ a questão que nos coloca Elias e

Scotson é: como e porque os indivíduos percebem uns aos outros como pertencentes a um

mesmo grupo e se incluem mutuamente dentro das fronteiras grupais ao dizer nós,

enquanto, ao mesmo tempo, excluem outros indivíduos a quem percebem como

pertencentes a outro grupo e a quem se referem coletivamente como eles? (ELIAS;

SCOTSON, 2000).

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ELIAS (1998) afirma que em todo o muudo grupos de pessoas, sejam grandes ou

pequenos, associam-se e, com brilho nos olhos, asseguram-se mutuamente o quanto são

maiores, melhores e mais fortes do que algum outro grupo particular ou, quem sabe, do

que os demais grupos humanos.

Secretamente ou não, todos possuem um vocabulário correspondente de difamação, dirigido aos outros. Isso depende do equilíbrio de poder entre os grupos envolvidos, relativo à capacidade de os grupos difamados poderem retaliar, usando seus próprio termos estigmatizantes. (ELIAS, 1998, p. !8)

A relação entre carisma grupal (dos estabelecidos), desgraça grupal (dos outsiders)

e as diversas barreiras que impedem contatos mais estreitos entre estabelecidos e

outsiders converte-se em impedimentos constantes, mesmo com a diminuição do poder

social dos estabelecidos.

Grupo-atleta e grupo-coitadinho, dois mundos heterogêneos? Em certo aspecto

Sllll, mas não podemos simplificar. Pensando em papéis sociais, são inteiramente

diversos. O grupo-atleta por suas características - por compartilhar as mesmas

competições, os mesmos processos de significação, identificação, valores e objetivos -

parece mais coeso como grupo. O grupo-coitadinho é para elas os outros deficientes que

não são atletas. Outro aspecto a ser considerado é o fato de que

... a referência identificadora está em processo de construção, de maneira preponderante, exteriormente ao grupo identificado. A identidade nós está sendo construída por eles, de uma certa maneira, a História, do grupo minoritário, está sendo contada pelo outro grupo. A questão é saber até que ponto o grupo nós tem poder para intervir neste processo, definindo a natureza de seu próprio pertencimento. (GEBARA, 200!, p. 34)

Equilíbrio instável de poder é uma das características da relação estabelecidos­

autsiders, na qual um grupo só pode estigmatizar o outro com eficácia quando está bem

instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído. Medir forças

entre si é o que os homens fazem a cada instante, ao se relacionarem nns com os outros.

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Onde há interdependência funcional entre os indivíduos há equibbrios de poder. "O

estigmatizado e o normal são parte um do outro" (GOFFMAN, 1988, p. 146).

É primordial entender o fenômeno a partir de uma configuração de poder entre dois

grupos e a natureza de sua interdependência. As categorias estabelecidos e outsiders se

definem na relação em que os indivíduos que fazem parte de ambas estão, ao mesmo

tempo, separados e unidos por um laço tenso e desigual de interdependência (ELIAS;

SCOTSON, 2000). As relações entre unidades ou grupos sociais são em realidade as

relações de força que ligam, opõem e, dessa forma, inscrevem os indivíduos em estruturas

hierarquizadas, que presumem campos de forças, tensão, equilíbrio, competição.

Superioridade social e moral, autopercepção e reconhecimento, pertencimento e

exclusão são elementos das relações de poder sinalizados nessa dimensão da vida social e

que são exemplificados na relação estabelecidos-outsiders. Muitas questões diferentes

podem expor as tensões e conflitos entre estabelecidos e outsiders. Na verdade, porém,

todas são lutas para modificar o equilíbrio de poder e as desigualdades que lhes são

concomitantes. Quanto maior o desequilíbrio de poder, maior a capacidade de

estigmatizar os outros, impondo a estes um sentimento de inferioridade, sem

contrapartida.

Nem todas as diferenças são hierarquizantes, a maioria delas, porém, continua

sendo, principalmente quando se trata de diferenças que definem coletividades, categorias

sociais, grupos interdependentes vivendo em relações de poder em sociedades altamente

diferenciadas (PIERUCCI, 1999). O enunciado "se eu não fosse atleta ... " pode ser analisado

como uma diferença coletiva, que, quando afirmada em sua positividade, quando

abraçada discursivamente pelos que se consideram seus portadores (as atletas), quando

posta em discurso com a intenção de legitimar-se em sua peculiaridade, é produtora de

novas diferenças coletivas, ou seja,

... quando os diferentes querem se apresentar e, importante isto, se representar com toda a sua diferença, quando eles tomam 'para si' sua diferença e nela se reconhecem com benevolência e auto-estima, desencadeia-se um processo que é ao mesmo tempo discursivo e material de

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afirmação de outras diferenças culturais já compartilhadas por indetenninado número de indivíduos, mas que eram, até então, socialmente invisíveis em seu valor (real ou imaginário) e inconcebíveis em sua legitimidade (social on política). (PIERUCCI, 1999, p. 120)

Com isso, demonstra-se que a figuração estabelecidos-outsiders é um todo em

movimento e este processo só pode ser apreendido e compreendido dialeticamente.

Finalmente, atravessando o discurso da atleta paraolímpica, podemos nos valer de uma

nova condição de produção; de elementos pré-construídos no discurso de Elias e Scotson;

e formular um enunciado com um novo efeito de sentido:

... se a gente não fosse estabelecido era apenas um outsider.

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Vasco patrocina nadadores que r:>c't.;;o.-;;;,., e The Alpha Club

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OUTRAS FACETAS e

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar a figuração estabelecidos-outsiders, muitos aspectos foram

mencionados nas linhas e entrelinhas, no dito e no não-dito. Entre eles, estão coesão

grupal, estratégias, mecanismos, representações, valores, processos inovadores,

reprodução e reavaliação de experiências históricas, processos macro e microssociais,

tendências, passado e presente.

No entanto, consideramos pertinente trazer à reflexão outras facetas- expectativa

e estigma, ambivalência e habitus - que se fizeram presentes, vinculando os dados e

atravessando o estudo.

Expectativa e estigma

A questão do estigma surge em que há alguma expectativa não realizada, objetivo

não alcançado, falha ou erro. Simbolicamente, pode-se pensar que a expectativa traça seu

rumo e considera obstáculo tudo o que cruza seu caminho, é indiferente ao conflito e aos

danos que possa causar às pessoas. Por isso, a expectativa é escrava do tempo, das

circunstâncias e dos resultados (PENSAMENTO CRIATIVO, 2003 ).

Quanto às atletas paraolímpicas, notamos que, dentre os inúmeros aspectos sociais

que envolvem o tema, questões quanto às expectativas e ao estigma relativos a esses

indivíduos fazem parte da construção social da deficiência. São as expectativas, ligadas ao

meio e às relações sociais que determinarão as diferenças entre as pessoas deficientes e as

não-deficientes.

O modo como os membros individuais de um grupo vivenciam qualquer coisa que afete seus sentidos, o significado que isso tem para eles, depende dos padrões de lidar com esses fenômenos

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que gradualmente se desenvolveram em suas sociedades, bem como de pensar e falar sobre eles. (ELIAS, !998,p. 109).

Estigma e expectativa estão lado a lado na construção social da deficiência. Esta

construção se faz na relação entre o conjunto de expectativas (dirigidas a grupos e/ou aos

indivíduos estigmatizados) e as interrelações (no interior do grupo social que trata como

desvantagens certas diferenças apresentadas por alguns de seus integrantes, os

deficientes).

Sendo assim, as expectativas dirigidas ao indivíduo estigmatizado pelos demais da

sociedade comumente passa a ter como foco aquilo que se destaca como imperfeição,

impedindo que possam ser vistas no indivíduo suas possibilidades e imputando-lhe

determinada significação de desvantagem e de descrédito social (SAETA, 1999; OMOTE,

1994). Quando se fala em desvantagem, refere-se à expressão social da deficiência, que é

um conceito profundamente ligado aos valores, normas e padrões do grupo em que a

pessoa com deficiência está inserida (SAETA, 1999).

Não se trata de abordar a questão pela lógica da exclusão, pois a existência dessa

lógica implica já uma realidade inclusiva.

Em outras palavras, quando excluímos o outro estamos reconhecendo sua existência ainda que sejamos incapazes de identificá-la claramente. Esta incapacidade gera tensões entre quem defme e quem é defmido. ( GEBARA, 200 I b, p. 45)

E, se a pessoa está inserida em qualquer que seja o grupo, desempenha um papel.

Quanto a isto há expectativas também.

Entendida a sociedade como uma rede, só podemos conceber os papéis sociais

(médico, professor, aluna, filha, mãe, mulher, trabalhador, esportista, líder) como

entrelaçados. Dessa forma, todas as expectativas de comportamento, estabelecidas pelo

conjunto social para os ocupantes das diferentes posições sociais, determinam o chamado

papel social.

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Os papéis sociais são, portanto, referências para a percepção do outro, ao mesmo

tempo em que são referências para o próprio comportamento. No encontro social, os

indivíduos assumem determinados papéis e, assim, sabem o que esperar de alguém que

ocupa determinada posição. Quando se aprende o significado de um papel social,

aprende-se também o significado do papel do outro, isto é, quando se compreende o que é

o papel do atleta, o indivíduo também compreende o que é o papel do técnico, do

dirigente, do médico, etc., não importa com quem esteja interagindo.

A construção de papéis foi um processo lento ao longo da história da humanidade.

"Esta lentidão deve-se possivelmente à tendência do ser humano cristalizar valores,

papéis e, por conseguinte, comportamento" (ROCHA FERREIRA, 2002).

Os diferentes papéis sociais e a maleabilidade dos indivíduos permitem a

adaptação de comportamentos às diferentes situações sociais. Todos os comportamentos

manifestos podem ou não estar de acordo com a indicação social, isto é, as normas

prescritas socialmente para o desempenho de um determinado papel.

Minha vida de atleta e minha vida pessoal é um pouquinho misturada. É uma dependendo da outra, minha família me apóia muito, sabe. Então, assim, minha vida é o esporte, todo mundo sabe disso, meus pais, meu noivo, tá, disso(. .. ) então, todo mundo me apóia, me dá a maior força, assim, então vivo a minha vida diária, familiar, ela é esportiva, entendeu? (E!) (grifos meus)

A crença no papel que o indivíduo está desempenhando denomina-se

representação. "Quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de

seus observadores que levem a sério a impressão sustentada por eles" (GOFFMAN, 1988).

Algumas representações sociais podem ser consideradas como sendo instituídas, como as

regras e valores sociais presentes no cotidiano. O estigma em relação à pessoa com

deficiência, por exemplo, conduz à representação da ineficiência total. Segundo uma das

atletas,

Torna-se difícil, você já tem uma parte das obrigações e ser atleta também, você tem que ter uma responsabilidade, então eu faço da melhor forma possível, eu tenho que driblar todo o

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meu horário de trabalho, de dona de casa, de meus treinamentos, de meu lazer, pra tudo isso é realmente você driblar os momentos e ... do qual você possa atender né, tudo aquilo do meu dia-a­dia. (ElO)

O termo representação refere-se a toda atividade que um indivíduo desempenha e

que se passa num periodo caracterizado por sua presença continua diante de um grupo

particular de observadores, e que tem sobre estes alguma influência/poder (GOFFMAN,

1988; JOSEPH, 2000). Assim, a representação social é uma maneira de conhecimento com

a finalidade de construir comportamentos e comunicação entre os indivíduos (AMARAL,

1995).

É necessário considerar que as representações sociais não são estáticas (ITANI,

1998), há sempre uma reconstrução de idéias, noções e valores como resultado das

constantes e dinâmicas interações. E porque não são estáticas, "des-adjetivar a deficiência

é um caminho" (AMARAL, 1995, p. 148), ou seja, ser diferente não é ser melhor ou pior,

bom ou ruim, aviltante ou enaltecedor. Como coloca Amaral, a diferença/deficiência

simplesmente é.

E porque é, será necessário romper com o movimento involuntário e inconsciente

de resistência à percepção real da deficiência. Tal movimento se apresenta como uma

força, que pode ser notada dentro de uma coletividade. Esse movimento distorce as cores

da realidade e resulta no afastamento social do deficiente e, assim, na conseqüente

dificuldade de integração desse individuo a papéis possíveis e compatíveis com suas

capacidades e possibilidades (ITANI, 1998; CARPIGIANI, 1999).

Enfim, os que estão no centro da questão (atletas, técnicos, profissionais, mídia e

outros envolvidos diretos) são os que se dizem contra o preconceito. Mas, sem querer, por

desconhecimento ou indiferença, de alguma forma contribuem para eternizar tais

discursos estigmatizadores. A experiência de ser atleta do paradesporto invoca um novo

status, uma nova categoria, uma ruptura, enquanto que, nos vários lugares sociais, o

discurso continua a perpetuar a ineficiência total da pessoa com deficiência. Em outros

termos - e principalmente -, por meio da mídia, faz-se esta construção social que cria,

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recria e perpetua o preconceito, estereótipos e estigmas (AMARAL, 1995). Isto se dá no

emprego de conceitos coletivos indiferenciados, de verdades sedimentadas que são

miragens perigosas que impedem o desenvolvimento de uma maneira mais adequada de

colocar os problemas. E, como bem coloca Jean Paul Sartre, "o inferno são os outros".

Isso leva a pensar em como seria se fosse o contrário. Substituir imagens e

conceitos equivocados não é tarefa fácil; é difícil, mas possível, até porque " ... os

obstáculos não se eternizam" (FREIRE, 1996, p. 60). É possível utilizar o poder de

propagação da mídia para familiarizar o desconhecido, desmítificar a ineficiência,

desvendar verdades encobertas, des-adjetivar a diferença, mostrar as possibilidades. Mais

do que isto, é preciso formar e educar receptores lúcidos, consumídores criticos dos

produtos da indústria cultural e conscientes no processo de leitura da realídade

(AMARAL, 1995; PORTO, 1998).

O ponto da análise volta-se para as atletas que vivem esse status, esse novo papel

social dentro da recém-criada configuração ( Comítê Paraolimpico Brasileiro). Ao mesmo

tempo, em seus discursos, essas atletas colocam o deficiente não-atleta como o outro, a

quem se referem sempre como tendo menos valor, o coitadinho.

Dentro dessa linha de pensamento, pode-se supor que a atleta paraolimpica é um

ser ambivalente, envolvida entre a rejeição e a aceitação, o estigma e o prestígio.

Ambivalência

Quando tratamos de fenômenos de ambivalência, não estamos mais no domínio do

é ou não-é, mas do é e do não-é. A ambivalência é um conceito que foge completamente

aos domínios da lógica clássica. Excluídos os princípios de identidade e contradição, um

objeto qualquer pode ser simultaneamente todas as suas possibilidades de ser (inclusive a

sua negação). A ambivalência está na base dos processos inconscientes, nos modos mais

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primitivos de organização social É possível reconhecer a visceralidade desse conceito na

própria evolução do nosso corpo sociocultural (FECHINE, 1998 ).

Se os conceitos/entendimentos forem tratados como dicotomias, a tendência é que

haja um favorecimento para um dos elementos da oposição e que o outro seja colocado

como necessariamente exilado, banido, destituído, ou seja, ou se faz isso ou se faz aquilo.

A tônica da modernidade é tratar as ambivalências pelo viés diferenciador, e não o seu

outro como corrosivo ou destruidor.

Saber abordar as ambivalências é uma qualidade particular no pensamento de

Elias, que as considera sem ignorá-las nem reduzi-las, mesmo que atentem contra a

orientação normativa, a lógica. Elias coloca-se contra as oposições conceituais ,fronteiras

artificiais, contra o dualismo que reduz as reflexões às alternativas do tipo ou isto ou

aquilo (HEINICH, 2001 ). Em uma de suas encontra-se um caso exemplar da ambivalência

quando comenta que

Mozart viveu a ambivalência fundamental do artista burguês na sociedade de corte, que pode ser resumida na seguinte dicotomia: identificação com a nobreza da corte e seu gosto; ressentimento pela humilhação que ela lhe impunha. (ELIAS, 1995, p. 24)

Mozart movia-se entre dois mundos sociais, entre ser outsider e estabelecido.

ELIAS (1995) coloca que a orientação normativa nos conduz a pensar que A não

pode, não deve coexistir com não-A, como, por exemplo, desejo e resistência, civilização

e barbárie, integração e marginalidade. Esses são fenômenos de sociabilidade que não

podem ter o seu processo de interdependência desconsiderado, ou seja, esta mesma

orientação normativa considera que as ações humanas são governadas por certa forma

particular de norma, de lógica; e se qualquer outra ação não corresponder ao ideal

estabelecido, de não-contradição, é percebida como anormal, desviada, exigindo uma

explicação particular.

Assim, é possível pensar as ambivalências como pontos cardeais, pólos opostos

sobre um eixo continuo que permite deslocamentos, diferentes posições, pelas quais as

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pessoas - e neste caso as atletas com deficiência- vivem e interpretam sua relação com o

mundo. Pensar ambivalentemente é estar mais de acordo com a dinâmica do mundo real,

multifacetada, diversa e caleidoscópica. É pensar que há possibilidade de acrescentar à

vida a multiplicidade de escolhas e caminhos novos, construídos exatamente pela

singularidade de cada fato e de cada relação (SOUZA, 2003 ). Da mesma forma, entende-se

a representação ambivalente na afirmação de uma das atletas:

... porque se a gente não fosse atleta, era apenas um coitadinho. (E4)

Estar entre as duas condições (estigma e prestígio) permite muitas variáveis: ser

atleta, deixar de ser, ter o status, não ter, ser deficiente, experimentar derrotas, alcançar

vitórias, ter prestígio e simultaneamente também o estigma. Este é o caráter dinâmico da

relação estabelecidos-outsiders, estigmatização e contra-estigmatização. O estabelecido

representa a negação do outsider e vice-versa. A negação de um acarreta necessariamente

a negação do outro. O laço entre estabelecidos e outsiders é tenso e interdependente, um é

considerado opressor e preocupado unicamente com seus privilégios, com sua defesa e

proteção, com o seu grupo e do seu lugar no grupo. O outro é considerado oprimido,

excluido e inferior.

No entanto, a atleta coloca-se num lugar, numa posição dentro de um grupo

(atletas) e questiona diretamente o enunciado ao qual considera não pertencer (seria

apenas um coitadinho). Quando se é atleta, tem-se um papel social, mesmo que

esporádica e momentaneamente em evidência. Na presença de normais, no momento de

sua performance desportiva, é possível que a atleta com deficiência cause no público um

misto de espanto e admiração. Segundo uma das entrevistadas,"as pessoas as vezes até

não acredita. Atleta? Acham que é meio que impossível. (E3)

Diferentes situações, levam-na a viver entre esses dois pólos opostos de tensão, um

mundo de prestígio - como atleta, heroina - e um de estigma - como vitima de sua

própria espécie (de natureza peculiar).

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A variação de seu próprio status, de sua própria situação como membro do grupo

pode ser exemplificada neste outro enunciado:

... me senti uma verdadeira atleta, esqueci que eu era deficiente, esqueci tudo. Eu sou uma atleta ... o resto é resto. (E4)

O status de atleta (situação ou condição dentro do grupo) aparece, no enunciado,

associado ao atributo verdadeiro, que significa real, genuíno, autêntico, seguido da

afirmação: "esqueci que eu era deficiente, esqueci tudo".

Esquecer é deixar sair da lembrança, pôr de lado, não fazer caso, desprezar, omitir,

descuidar. Neste enunciado- "esqueci que era deficiente"- esquecer é considerado como

desprezo, omissão da condição deficiente. E, na seqüência do enunciado, observamos que

a declaração "eu sou uma atleta", significa que esta é a condição, a ocupação, o status que

admite ser/ter: "eu sou uma atleta"; e anuncia, decreta: "o resto é resto", o que toma-se

resíduo no sentido depreciativo, ou seja, sobra (no sentido pejorativo da palavra).

Ora, a atleta com deficiência pode viver dinamicamente entre os símbolos de

estigma e os símbolos de prestígio. Experimentará a desvalorização transmitida pela

informação social corporificada e o prestígio por desempenhar o papel de atleta, possuir

esse status conquistado com medalhas e recordes. A atividade esportiva competitiva

parece ser a condição para ser e se sentir uma atleta. Reforçada pelo argumento da vitória

e das medalhas, podemos acrescentar que elas representam o grupo de seus iguais cada

vez que alguma atleta vence (ou não), quebra um recorde (ou não) e/ou alcança

notoriedade.

Ser vista e tratada como uma atleta comum, de igual valor, por suas realizações

atléticas, é muitas vezes o maior desejo das atletas paraolímpicas. Serem reconhecidas

como iguais por aqueles que as tratam, tão abertamente, como inferiores (coitadinhas)

(ELIAS, 1995) é um desejo manifestado por muitas dessas atletas:

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Você só é visto quando você é atleta, se você não é um médico, você é deficiente. Se você não for uma pessoa formada, tiver um bom emprego ou tiver alguma grana, você é visto como um coitadinho, como atleta, não ... (E4)

A deficiência e a não-deficiência fazem parte do mesmo quadro, do mesmo tecido,

são parte indissociável da sociedade e devem ser encaradas "como decorrentes dos modos

de funcionamento do próprio grupo social e não apenas como atributos às pessoas

identificadas como deficientes" (OMOTE, 1994, p. 68).

Habitus

O conceito de habitus social permite que se supere a dicotomia- tão comum- que

se faz quando se discute a relação indivíduo e sociedade. É esse habitus que "fornece um

solo em que podem florescer as diferenças pessoais e individuais" (ELIAS, 1994, p. 172).

Em outros termos,

... toda pessoa, por mais diferenças que possa apresentar em relação aos demais membros de sua sociedade, tem algo de muito específico que compartilha com os outros, vinculando-se ao grupo do qual faz parte. (SOUZA, 1997, p. 393)

Então, denomina-se habitus a composição social (formada pelas características

comuns dos indivíduos) e a distinção de uma pessoa em relação a outra

(individualização), numa linguagem social comum. São padrões de comportamento

interiorizados pelos indivíduos em sociedade (ROCHA FERREIRA, 2002). O conceito é

empregado para indicar que existe um movimento contínuo entre a identidade grupal do

individuo e sua identidade como ser singular. Em suma, um movimento entre

autopercepção e composição social.

Se o habitus é uma construção social nas diversas sociedades da atualidade, é

também atitude e modo de expressar-se. É, portanto, revelador da constituição da

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estrutura do caráter social. Estrutura esta que não pode ser separada do estudo das

sociedades humanas, como balizador das ações dos indivíduos em uma situação social

concreta, como produto da história que relaciona práticas individuais e coletivas

(LUCENA, 2002).

Em Elias, habitus tem também o sentido de apontar a incorporação irrefletida, a

conformação social do individuo, que é imprescindível para efeitos de dístinção,

hierarquia, reconhecimento e pertencimento. Portanto, o habitus é também corporal, no

sentido de um corpo que faz história e é produto dela; uma história que se encarna em um

sujeito assujeitado que se encontra à disposição de uma estrutura baseada na dístinção dos

grupos, dos comportamentos, no uso eficiente e otimizado do corpo, uma estrutura como

o esporte.

O habitus evidencia as relações sociais objetivas as condíções materiais de uma

classe, o jeito de ser e fazer do sujeito (coletivo) e a relação entre o indivíduo e as

estruturas sociais (PESSINATTI, 2003).

As investigações de Norbert Elias estão sempre voltadas para a longa duração, das

estruturas sociais em longo prazo, das mudanças em processo. Nesse sentido, e com todo

o cuidado, lembrando de que se trata de um processo, observamos os traços que levam a

alguns indicios da construção de um habitus entre o grupo de atletas paraolimpicas.

Um prenúncio na mudança de atitude em relação a este assunto ocorreu no início

dos anos 60, com a criação das Paraolimpíadas. Apresentou-se uma nova possibilidade,

ou seja, uma outra estrutura, o desporto adaptado. A partir de então, os participantes

tiveram que romper com padrões estabelecidos para deficientes (num tom generalizador),

impor vontades, habilidades e possibilidades como atleta e então se encaixar nas normas e

regras vigentes do sistema. Algo que não era possível, como já foi visto, até o início dos

anos 40.

As Paraolimpíadas foram inventadas - díga-se de passagem - pelos ingleses -

adaptando-se modalidades comuns e suas regras às possibilidades dos deficientes, e não o

contrário. Em outros termos, a não ser o golbol (inventado exclusivamente para cegos e

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incluído oficialmente no programa das Paraolimpíadas em 1984 ), todas as modalidades

disponíveis na estrutura dos Jogos Paraolímpicos estão baseadas em modalidades já

existentes.

As estruturas do CPB e do CP! têm estilos de gerenciamento semelhantes ao do CO!

e do Cornítê Olimpico Brasileiro (COB). Como se pode perceber, existe, no interior da

organização, o que pode e o que não pode; quem pode e quem não pode, o que é comum

numa estrutura dessa natureza. A atividade paradesportiva, na maioria dos casos, está

vinculada a uma associação de atendimento e não a um clube ou federação esportiva,

como acontece no esporte comum.

Então, quando se fala em desporto adaptado de alto nível e em Jogos

Paraolímpicos, deve-se ter em mente que, inevitavelmente, a idéia de pertencimento está,

entre outras, "encarnada" no corpo, cada tipo tem seu grupo, cada grupo sua competição,

suas classes, suas provas, etc. Esse é um primeiro traço dessa estrutura.

Outros elementos podem ser agregados para analisar este indício de habitus

esportivo, ou melhor, paradesportivo. Nos enunciados do grupo de atletas analisadas,

encontram-se algrunas constantes, como, por exemplo:

a) o início no esporte, aconteceu após os 18 anos de idade para sete das dez atletas; as

sete têm deficiência adquirida; as outras três atletas que começaram antes dos 18

anos têm deficiência congênita;

b) todas começaram a atividade fisica como indicação médica na forma de

reabilitação e/ou estimulação motora precoce;

c) observa-se, entre a maioria das atletas, um sentimento de superioridade

compartilhado por todas, o que pode indicar uma coesão do conjunto em opiniões e

atitudes ligadas aos diferentes papéis que exercem, e a consciência das sucessivas

experiências de sucesso para chegar às Paraolimpíadas.

d) todas apresentam-se com um status específico (atleta) que, conforme os

enunciados, fazem questão de propagar;

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e) parece haver um pacto para atitudes de comportamento bem ajustado, cópia de

procedimentos aceitáveis, que, se conformando à configuração, faz com que as

atletas passem a ser bem vistas por ela (estrutura) e pelos outros (sociedade);

f) em todos os casos, há referências à família, à Associação e, com relação à equipe

(outros atletas), elas se reportam como uma segunda família.

Qnando a pesquisadora quis saber o que significava para elas estar no esporte

adaptado, uma atleta respondeu o seguinte:

Acho que significa tudo, acho que realmente é você se integrar, é você se adaptar, é uma socíabilização, eu acho que o esporte ao meu ver é tudo. Porque a pessoa, ela é portadora de deficiência, e o esporte pro portador de deficiência ajuda na nossa locomoção, na nossa independência ... (ElO)

Há, portanto, uma forte conexão entre as alterações percebidas na composição

social e as mudanças nas emoções e no comportamento desses indivíduos.

A identidade eu-nós é parte integrante do habitus social de uma pessoa e está

vinculada à individualização. "Essa identidade representa a resposta à pergunta 'Quem

sou eu?' como ser social e individual?" (ELIAS, 1994, p. 151). A individualização se dá

pela incorporação individual das normas e comportamentos veiculados pelo grupo e

desenvolvidas no sistema das interações. Por conseguinte, é necessário considerar que,

para compreender alguém, é preciso conhecer os anseios primordiais que este deseja

satisfazer. A vida faz sentido ou não para as pessoas na medida em que elas conseguem

realizar suas aspirações {ELIAS, 1995).

Entre as atletas paraolímpicas, houve uma assertiva que foi constante, emotiva e

espontânea: "eu sou uma atleta".

O que é ser atleta? É como se fosse nome e sobrenome. O eu sou aponta para o

indivíduo e atleta aponta para o ser social, o grupo. E, ainda, a carga afetiva parece ser

mais intensa nesta afirmativa "eu sou uma atleta" - do que o não dito: "eu sou uma

atleta paraolímpica".

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Ao tomar-se atleta paraolímpica, como foi visto, ela se converte em uma nova

totalidade, tem um novo papel e, queira ou não, passa a articular-se em função dos dois

pólos que se ímplicam e, ao mesmo tempo, se opõem reciprocamente neste estudo: atleta

e coitadinho.

Temos então a possibilidade de pensar a configuração CPB e especificamente as

atletas brasileiras por meio de elementos icônicos e emblemáticos da construção do

habitus. Eles são, em certa medida, cotidianamente herdados, emaizados em um certo

modo de ser, transmitidos pela configuração, divulgados pela mídia, seja por ímagens,

narrativas em matérias jornalísticas ou propagandas.

Toda estrutura/configuração se assenta sobre sentimentos vividos e compartilhados

pelos seus componentes em interdependência. Tal estrutma é um sistema hierarquizado de

papéis sociais de propriedade específica, pois a configuração comporta papéis e

compromissos compartilhados, regulamentações e equiHbrios de poder. Essas formas

hierarquizadas segregam individuos, papéis, tarefas, responsabilidades e compromissos.

Portanto, as estruturas/configurações podem e, nesse caso, transformam-se em regras

ímpessoais, proclamadas independentemente dos individuos ou dos grupos e ímpostas aos

participantes (PAGES, 1982).

Quanto à ParaoHmpíada, criada sobre a plataforma da (re )integração, podemos

dizer que, como configuração, ela própria é organizada para preservar a condição de

exclusão. Ela é um espaço geográfico, mna área social reservada à segregação de

categorias que se pretende isolar, diferenciar, tomando-se um dispositivo discriminatório,

já que é classificatório, dentro da diferença. Ao mesmo tempo, ela congrega e põe em

relação, direta ou mediatizada ( COUR Y, 2001 ), individuos que se conhecem e que não se

conhecem, que se confrontam ou não em competições e jogos.

Neste sentido, não se opera para dissolver barreiras na organização social,

exatamente porque estas são parte integrante do sistema de diferenciação e classificação

social ao qual servem as Paraolímpíadas. A elíminação da categoria dos paraatletas se

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constituiria na própria anulação da existência da estrutura/configuração, isto é, uma

fronteira reafirmada.

Finalmente, de acordo com o pensamento de ELIAS e SCOTSON (2000), o que

vincula os dados como aspectos de uma coletividade? Quantos e quais são os dados

igualmente centrais para compreender o que concede a um grupo de pessoas um caráter

específico? Um dos aspectos ligados aos dados é o conjunto de enunciados proferidos

pelas atletas.

FOUCAULT (2000) concebe o discurso como algo que, mais do que documento ou

representação da realidade, manifesta o poder de criar ou instaurar modos de ser, pensar e

viver. O discurso é então compreendido como aquilo que, muito mais do que documentar

ou representar tem o poder de edíficar ou fabricar sentidos:

... suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuida por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2000, p. 8-9)

Então, de acordo com Foucault, o discurso só adquire significação no contexto

histórico-social em que o indivíduo assume a posição de sujeito do discurso e é dito por

ele.

Pode-se, então, questionar: por que é que foi dito isso e não outra coisa, o que teria

sido possível dizer? Ou melhor, o que é que tomou possível dizer isso?

De acordo com FOUCAULT (2000), sabe-se que um mesmo conjunto de palavras

pode dar lugar a vários sentidos, a várias construções possíveis, e a várias ações; mesmo

assim, todos esses sentidos, todas essas possibilidades de dizer e de fazer que atravessam

as coisas ditas, tudo isso, supõe, já, precisamente, a existência das coisas ditas em outros

discursos.

Uma vez que o discurso diz e é o alvo desejado, pode-se compreender de que

forma a prática discursiva manifesta o exercício de poder construir sentidos, modos de

ser, pensar e viver que persuadem ou exercem seu poder de coerção para que os sentidos

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criados seJam assimilados e consumidos. O que dizer então da publicidade que -

eventualmente- ronda as atletas paraolimpicas? Há um certo consenso de que, na área

publicitária, uma "certa" representação seja concebida como ícone de uma realidade; o

texto como código de uma mensagem e o slogan como alegoria de uma palavra de ordem,

visando o estabelecimento de modelos de vida (BETTI, 1998; CITELLI, 2003; AMARAL,

1995). Portanto, toma-se

... desnecessário relembrar que a persuasão foi sendo construída na encruzilhada entre os recursos lingüísticos e a exploração das representações socialmente incorporadas pelos indivíduos. (CITTELI, 2003)

Tal situação admite, como foi discutido, que há vinculo nas relações macro

(sociais, estruturais e institucionais) e micro (de grupos). O discurso está na origem das

condições de produção e da formação discursiva- o discurso sendo constituído por dados

históricos em um certo intervalo de tempo e a formação discursiva compreendendo os

enunciados que apresentam pontos característicos de um certo conhecimento. Foi assim

que estabelecemos, neste estudo, uma conversação com o discurso das atletas

paraolimpicas: em conformidade com aspectos de diversas épocas nos processos macro e

microssociais, como maneira de significação muitas vezes polêmico.

Considerando a questão que norteou este estudo - como as atletas com deficiência

estabelecem relações e interdependências entre os diferentes papéis sociais que exercem­

foi possível trabalhar o aspecto sociológico que constitui o grupo e, ao mesmo tempo,

estabelecer um diálogo com os aspectos discursivos que o caracterizam.

Estudar as atletas selecionadas para a Paraolimpíada de Sydney, 2000, por meio da

e de acordo com a Teoria de Elias sobre configurações no enfoque estabelecido-outsider

tomou possível:

1. identificar e analisar como se constituem as interdependências e as relações

estabelecidas no papel de atleta paraolimpica (na família, no movimento

paraolimpico, no processo de formação do habitus) nas relações interdependentes

173

Page 184: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

que se encontram ligadas entre si em vários níveis (macro e microssociais) e de

diversas maneiras;

2. relacionar as características do grupo, analisá-las por meio da decomposição do

todo (a relação) e uma a uma, em partes;

3. dimensionar esse fenômeno social no qual estão imersas as atletas com deficiência

quando consideramos determinado momento histórico e sociocultural;

4. perceber, no trajeto articulado, que a significação de suas condições como

mulheres, deficientes e atletas está na tensão entre possibilidades e

impossibilidades, transita nas diferentes vozes e se cruza na exposição de partes de

suas histórias pessoais.

Enfim, este estudo pretende se constituir como parte da memória de um dado

momento, de uma determinada época. Ao constituir-se como memória, envolve muitas

questões, algumas respostas, coerções, armadilhas sociais e conflitos em uma mesma

esfera, com vários pontos de contato, entre os quais as figurações, a sociedade

contemporânea e o estigma.

Um comentário final incide no anseio de que este estudo possa servir como fonte

de inspiração e auxilie na reflexão destas e outras questões correlatas.

174

Page 185: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

ORDEMEJ

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NOTAS

I. Declaração de Brighton baseada nos registroi contidos em KLUKA, MELLING e

SCORETZ {2000)

Apresentação

O esporte é uma atividade cultural que, praticada justa e eqüitativamente,

emiquece a sociedade e a amizade entre as nações. É uma atividade que oferece aos

indivíduos a oportunidade de conhecer-se melhor, expressar-se, de realizar uma meta

pessoal, adquirir habilidades e demonstrar sua capacidade, enfim, o esporte é uma

atividade social agradável que promove a saúde e o bem-estar.

O esporte fomenta a participação, integração e responsabilidades e contribui para o

desenvolvimento da comunidade.

O esporte e as atividades esportivas formam uma parte essencial na cultura de cada

nação. Apesar de as mulheres e meninas formarem mais da metade da população mundial,

a porcentagem de sua participação no espotte, ainda que varie de país para país, sempre

está abaixo da porcentagem de participação de homens e meninos.

Nos últimos anos, tem se observado um aumento na participação feminina no

esporte e nas oportunidades de envolvimento em eventos nacionais e internacionais; mas

esta ainda não tem chegado a desfrutar de uma maior representação em cargos de direção

e decisão do esporte.

As mulheres estão discretamente representadas em funções de diretora, técnica e

árbitra, principalmente no alto nível. Assim, visando à igualdade de op01tmúdades, é

1 Os registros da declaração fOram traduzidos da fonte em inglês, conforme a citação.

176

Page 187: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

preciso que haja mais mulheres em cargos diretivos, decidindo e servindo de exemplo

para outras mulheres e meninas no âmbito do esporte.

As experiências, os valores e as opiniões das mulheres podem enriquecer, realçar e

auxiliar no desenvolvimento do esporte. Igualmente, a participação no esporte pode

enriquecer, realçar e desenvolver a vida de cada mulher.

Alcance

A declaração se dirige a todos os governos, autoridades públicas, organismos,

empresas, estabelecimentos de educação e investigação, associações de mulheres e

demais responsáveis diretos ou que exerçam algmna influência, direta ou indiretamente,

sobre a condução, o avanço ou a promoção do esporte, ou que estejam de algmna maneira

vinculados com emprego, educação, administração, treinamento, aperfeiçoamento ou

proteção da mulher no âmbito esportivo. Esta declaração será complemento de todas as

cartas e leis, códigos, regras e regulamentos relativos á mulher no esporte.

Objetivos

O principal objetivo é fomentar uma cultura desportiva que permita e valorize a

plena participação da mulher em todos os aspectos do esporte.

É interessante observar que, para haver igualdade e desenvolvimento, os

organismos governamentais e não governamentais, bem como todas as instituições

interessadas no esporte, devem comprometer-se em aplicar os princípios estabelecidos na

declaração, elaborando as políticas e criando as estruturas e mecanismos correspondentes

para:

../ assegurar que todas as mulheres, jovens e meninas tenham a oportunidade de

participar no esporte em um ambiente seguro e estimulante, que proteja os direitos,

a dignidade e o respeito do indivíduo;

177

Page 188: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

./ incrementar a participação feminina em todos os níveis funções e papéis do âmbito

esportivo;

./ garantir que os conhecimentos, experiências e valores da mulher contribuam ao

fomento do esporte;

./ promover o reconhecimento da participação feminina no esporte como

contribuição para a vida pública, o desenvolvimento da comunidade e a construção

de nações sadias;

./ estimular as mulheres a reconhecer o valor do esporte e sua contribuição para o

crescimento individual e uma vida sadia.

Os princípios

1. Equilíbrio e igualdade na sociedade e no esporte

a) Todos os esforços devem ser feitos pelos Estados e governos para garantir que as

instituições e organizações responsáveis pelo esporte concordem com as cláusulas

de igualdade da Carta das Nações Unídas, Declaração Universal dos Direitos

Humanos e a Convenção das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas

de discriminação contra a mulher.

b) Iguais oportunidades para competir e participar no âmbito esportivo, seja com o

propósito de lazer e recreação, promoção de saúde ou alto nível; é o direito de toda

mulher, sem distinção de raça, cor, língua, religião, credo, orientação sexual, idade,

estado civil, com necessidades especiais, convicções e afiliações políticas ou

partidárias, nacionalidade ou origem social.

c) Os recursos, poder e responsabilidade deverão ser alocados com justiça e sem discriminação de gênero; esta alocação, porém, deve compensar qualquer desequilíbrio em termos de vantagens entre homens e mulheres.

178

Page 189: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

2. Recursos fisicos

A participação feminina no esporte depende do número, variedade e acesso às

instalações esportivas. O planejamento, "design" e administração desses recursos devem

estar voltados, apropriada e igualmente, para as necessidades específicas das mulheres na

comunidade, com atenção especial às instalações para crianças e segurança.

3. Esporte escolar e juvenil

As pesquisas demonstram que meninos e meninas aproximam-se do esporte sob

diferentes perspectivas. Esta responsabilidade para o esporte, educação, recreação e

Educação Física voltada aos jovens deve garantir a igualdade de oportunidades e

experiências, as quais acomodem valores, atitudes e aspirações das meninas, e deve ser

incorporada em programas para o desenvolvimento das habilidades fisicas e habilidades

esportivas básicas dos jovens.

4. Desenvolvendo a participação

A participação das mulheres no esporte está relacionada ao volume das atividades

disponíveis. Os responsáveis pelos serviços e programas esportivos deverão oferecer e

promover atividades voltadas para as necessidades e aspirações das mulheres.

5. Esporte de alto nível

a) Os governos e as organizações esportivas deverão oferecer à mulher urna

oportunidade igual para desenvolver seu potencial de rendimento esportivo,

assegurando que programas e atividades relacionados com a melhoria da

performance esportiva levem em conta as necessidades específicas das atletas.

b) Os patrocinadores de atletas de elite e/ou atletas profissionais deverão garantir que

as oportunidades de competir, os prêmios, os incentivos, os reconhecimentos, os

patrociníos, as promoções e outras formas de apoio sejam oferecidos, justos e

igualmente, entre homens e mulheres.

179

Page 190: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

6. Liderança no esporte

As mulheres possuem baixa representatividade em funções de liderança e tomada

de decisões e poucos cargos diretivos em todas as organizações esportivas e outras

instituições vinculadas ao esporte. Os responsáveis dessas áreas deverão elaborar

politicas, criar programas e estabelecer estruturas para aumentar o número de mulheres

técnicas, assessoras, diretoras, árbitras, administradoras e equipe de trabalho em todos os

níveis do âmbito esportivo, com especial atenção ao recrutamento, desenvolvimento

profissional e manutenção do pessoal.

7. Educação,formação e desenvolvimento

Os responsáveis pela educação, capacitação e formação de técnícos e outras

funções esportivas deverão assegurar que os procedimentos e experiências de ensino

sejam voltados a questões relativas à igualdade de gênero e necessidades das atletas; aos

reflexos do equilibrio do papel das mulheres no esporte e também considerar as

experiências, valores e atitudes da mulher em relação à liderança.

8. Informações e pesquisas sobre o esporte

Os responsáveis pela pesquisa e o fornecimento de informações sobre esporte

deverão elaborar politicas e programas destinados a melhorar o conhecimento e a

compreensão geral sobre a participação da mulher no esporte, garantindo que as normas e

padrões de pesquisa estejam baseadas em investigações sobre ambos os sexos.

As pessoas responsáveis pela alocação de recursos deverão garantir a

disponíbilidade de meios para apoiar as atletas, os programas feminínos e as medidas

especiais para promover a Declaração de Princípios.

180

Page 191: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

9. Recursos

Os responsáveis pela alocação de recursos deverão garantir o apoio para mulheres

esportistas, para programas desportivos para mulheres e para as medidas especiais que

tenham sido adotadas para promover a Declaração de Princípios.

I O. Cooperação nacional e internacional

As organizações governamentais e não governamentais deverão incorporar as

questões de promoção da igualdade de gênero e o intercâmbio de práticas recomendadas

às políticas e programas de esporte em conjunto com outras organizações, tanto no âmbito

nacional quanto internacional.

181

Page 192: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

2. Campeão~ Hino do Atleta Paraolímpico1

Autor: Sérgio F errer ("Feio")

Uma chama vai nascer e Vai te iluminar também por Dentro e quando a luz tocar Seu sentimento Irá perceber o Herói que existe em você Na terra. no céu ou mar valentes soldados ali se enfrentam depois como amigos se cumprimentam assim deve ser a vitória nem sempre é vencer

Superar os limites com determinação é a medalha que a gente guarda no coração é um momento de glória que nos faz chorar o que se escreve na história não dá para apagar

Lutar, correr Querer voar É um dome Deus te fez assim Te deu coragem Pra enfrentar Qualquer barreira que existir vá em frente irmão desistir jamais o destino está em suas mãos sua força é a corrente que move a nação você já é um campeão campeão

Intérpretes: Chitãozinho e Xororó

1 Os grifos são meus e pretendem chamar a atenção para pala\Tas que podem fabricar sentidos, construir e propagar imaginários que tendem a reforçar os estereótipos sociais já discutidos. Ilustração 12 e 13.

182

Page 193: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Cam;ão de Chitãozinho e Xororó é I j li íi•l

famosa dupla sertaneja Chitãozinho e Xororó será a grande atração da festa de abertura dos IV Jogos Bra-

sileiros Paradcsportivos, que acontecerá dia 30 de junho no Complexo Desportivo Júlio Delamarc, no Maracanã. A competi­ção é a última chance para que os atletas portadores de deficiência consigam índi­ces para participar da Paraolimpíada de Sydney, que será realizada de 19 a 29 de outubro. A.o lado de seus grandes succs­:;os, eles estarão interpretando "Campeào". composta especialmente para ser a cançã0 oficial dos atletas paraolímpicos brasileiros rumo a Sydt1ey.

Letra c melodia são de autoria de Sergio Fcrrcr, o "Feio", que assina alguns dos gran­des sucessos da dupla. "Quando o Chitão me pediu para cu fazer essa letra, ele sabia qu:: eu iria me empenhar ao máximo", revela de, "Tenho alguns amigos que são portadores de deficiência e sei das dificuldades que dcs enfrentam." Juntamente com hits da dupla~ "Campeão" fará parte de um CO cuja renda será doada para o Comitê Paraolímpico Bra­sileiro. Um videoc.lip.com.im::tgens de-ade-.

?"·; .•

tas paraolímp._icüS:':'·_es~. em·fase:::final de_ e"di: ção. A ca~_ãO.també~irá fazer.partedo:pr&: ximo dis!k(,le carreira .. ~os irffiãos ....

Em'96, DÍ:déSantanli, Angélíca;Nuno Leal Mah, Re'gina Casé, ·Norton·Nascimento,

);_ny f14~,:e·vzari,derleá -·:alélT!··dOs pró­;;prios ~}~Zinho·e .. Xoror61 _sem_ esquecer ~O dcsp~rti§~,Riçardil,l~O ~-:Entb~b:adas :·/foram a·l~; d6~.,as~Dsj::,~.ft6~~,:aa TV e d;1 :~música qU~:·dJ~~·~i~~~pàniu de dí­~WJgação sfo.:e~pPfte.j)~~'portadnras ~-~f~cfic~ê~c.~.-~~Í!~~g~:ccrilnôJJia de

~~~~~~:~:.p~~~t~:\~;.~J~d~~ mon{ent.Os &·l Presença .~.,<~<>i !eira na T),,..~,~J;,"..,;..,,-1.., ri'" Ari.-,nt-. 1 l."l 1"1\lHrÍhliÍ-

da C nha Paraolímpica

ção fundamenta! para que o público brasi­leiro pudesse conhecer e reconhecer o valor de um segmt'Jlto :~té então virtualmente ig­norado pdoS meios de comunicação.

"HOMENAGEM AOS PRECURSORES

Além do show musical. serão prestadas ho­menagens a quatro precur~ores do esporte par.aolímpico no Brasil. Dois deles são fun­dadores das primeiras entidades do gênero <.:m nosso país: Robson S;nnpaio (in

mcmoriam) c Sérgio Delgrande. que em 1958 criaram, respectivamente, o Clube do Oti­mismo, no Rio ele Janeiro, .c o Clube do Pararlégico, em São Paulo. Os dois outros homenageados, Aldo Miccolis e José Soares Blanco, como dirigentes de entidades pio­neiras, também inscreveram seus nomes 1U

galeria dos heróis dessa causa que hoje. fi­nalmente, começa a ser reconhecida.

Outra novidade da campanha deste ano é a pl"Odução de uma cartilha para divulgar o desporto paraolímpico entre a garotada, com as letras do Hino Nacional e da canção "Campeão" - considerada o Hino do Desportista Paraolímpico -, ao lado de fotos dos Gigantes Paraolímpicos e de informa­ções sobre seus feitos. Na semana dos IV Jogos Paradcsportlvos, ela será dcstribuida às crianças da tcde escolar e àquelas que fre­qüentam o Programa de Iniciação Esportiva - PIO - o mais antigo programa do gênero no Brasil-, promovido pela Superintendên­cia dos Estádios do Rio de janeiro- Sude1j. nos complexos du Maracanã, no Rio de janeiro, c Caio Marcins. em Niterói. Junta­menti.? com ~1 cartilha, as crianças receberão um kir contendo estojo, !ápis de Cm. régua e quebra-cabeça alusivos à campanha I~umo a Svdncv 2000

Hino do Desportista Paraoiímpíco

Autor: Sérgio Ferrer ("Feio")

Jntérprctes: Chítãozinho eXororó

Uma ch:una vai nascer c

Vai tt" iluminar também por

dcnw.)

e quando a luz tocar

seu sentimento

irá perceber o

herói que existe em você

Na terra, no céu ou mar

valentes soldados

.all se enfrentam

depois como amigos

se cumprimentam

assim deve ser

a vitória nem sempre

é vencer

Superar os limites

com determinação

é a medalha

que a gente guarda

no coração

é um momento

de glória que

nos faz chorar

o que se escreve

na história

não dá para apagar

Lutar. correr

querer voar

é um dom c

Deus te fez assim

te deu coragem

pra enfrentar

qualquer barreira

que existir

vá em frente irmão

desistir jamais

o destino está em suas m5os

sua força é a corrente

que move a nação

você já é um campeão

campeão

t83

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3. Gigantes paraolfmpicos1

Para pensarmos o herói no esporte, selecionamos os enunciados de atletas paraolímpicos

(homens e mulheres) que se encontravam no si te do Banco do Brasil (patrocinador oficial da

Delegação Brasileira que foi às Paraolimpíadas ), em uma das páginas de esporte que foi ao ar em

2000, numa seção denominada Gigantes Paraolímpicos. Nela, os atletas detentores de medalhas e

performances de alto nível escreveram brevemente sobre suas vidas e, por último, deixaram sua

mensagem (antes de irem à Sydney) para outras pessoas com deficiência. As treze frases contidas

na citada seção estão relacionadas a seguir:

O deficiente tem que pensar positivo e lutar para alcançar objetivos, bem como combater

o preconceito, pois ele existe e é mais um motivo para superar barreiras. (1)

Procurem uma entidade para pessoas portadoras de deficiência e pratiquem esporte, pois

isso traz beneficios em todos os aspectos. (2)

A minha mensagem é que as pessoas portadoras de deficiência desenvolvam a prática de

esporte, pois faz bem tanto fisicamente quanto psicologicamente, além de integrar socialmente os

deficientes. (3)

Através do meu esforço, disciplina, dedicação, sucesso e conquistas nos esportes, quero

mostrar ás pessoas portadoras de deficiência como elas podem ser mais confiantes, acreditando

em si próprias. ( 4)

O esporte abre caminhos, embora esteja muito difíciL (5)

Não se sintam inferiores aos ditos normais, pois provamos que pela força de vontade e

garra não há diferença. (6)

Temos que lutar para derrubar barreiras que aparecerem, pois quando se quer algo

verdadeiramente é mais facil transpor estas barreiras. (7)

Não fiquem em suas casas esperando as coisas acontecerem. Saiam para procurar

associações ou clubes para tentar iniciar a prática de esportes. (8)

1 Análise apresentada na íntegra no V1 Simpósio Intemacioual Processo civilizador: História, Educação e Cultura'" em Assis, São Paulo, de 12 a 14 de novembro de 2001. ilustrações 14 e 15

184

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Pratiquem esporte, pois a atividade física modifica o cotidiano do deficiente. Tenham

muita força de vontade e garra. (9)

Não desistam nunca! No esporte, assim como em tudo na vida, nada é impossível. No

entanto, é necessário lutar bastante para conseguir alcançar o objetivo. (1 O)

Não desanimem e treinem normalmente, esquecendo a deficiência, que o resultado virá.

(11)

Os portadores de deficiência não devem ficar em casa como se fossem pessoas inúteis.

Eles devem ir para a rua trabalhar, estudar e enfrentar os obstáculos. (12)

Gostaria que as pessoas portadoras de deficiência fizessem esporte para superar limites,

pois o esporte impede de ficar debilitado. (13)

Os comentários em relação a este assunto serão encaminhados em dois níve1s de

observação: um deles relacionando as palavras contidas nas frases citadas em que se traça alguma

relação entre o herói e seus valores; o outro se refere aos elementos pré-construídos da AD às

expressões dos atletas com deficiência.

Como "Gigantes paraolímpicos" do esporte adaptado, os atletas dizem:

o deficiente tem que pensar positivo;

não se sintam inferiores;

não desistam nunca;

não desanimem;

não fiquem em casa;

Procurem uma entidade;

Não fiquem em suas casas esperando as coisas acontecerem. Saiam para procurar

associações ou clubes para tentar iniciar a prática de esportes;

Não desistam nunca! No esporte, assim como em tudo na vida, nada é impossível. No

entanto, é necessário lutar bastante para conseguir alcançar o objetivo.

Palavras de encorajamento em que "eles", os heróis, dão sua mensagem e seu exemplo

aos outros portadores de deficiência. De portadores para portadores. Mas poderíamos dizer: de

Page 197: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

heróis para vítimas? Como já vimos anteriormente, segundo AMARAL (1998), quando falamos

de estereótipos, além dos particularizados quanto ao tipo de deficiência (por exemplo, o cego é "o

sensível", o surdo é "o impaciente", etc.), existem outros mais generalistas (herói, vítima e vilão).

Teríamos, nas palavras acima, uma relação entre heróis e vítimas? Entre o atleta e o personagem

comum?

Quem atribuiu aos atletas a designação de "Gigantes paraolímpicos"? Seja como for, de

um lado, temos os "Gigantes paraolímpicos", os vencedores, os que superaram barreiras,

enfrentaram os obstáculos, que são os heróis. E, de outro, os outros portadores de deficiência, os

que, segundo a formação discursiva dos atletas paraolímpicos, são os que não devem sentir-se

inferiores, os que não devem ficar em casa como se fossem pessoas inúteis, os que não fazem

esporte e, portanto, correm o risco de ficar debilitados e ainda os que devem esquecer a

deficiência e que aparecem como "eles", vitimizados no discurso dos próprios atletas.

O mito é a expressão de uma idéia, doutrina ou teoria filosófica sob forma imaginativa em

que a funtasia sugere e simboliza a verdade que se pretende transmitir, uma lenda. A seguir,

destacamos estas supostas verdades que, muitas vezes, constituem-se em exemplos a serem

seguidos:

"temos que combater o preconceito";

"superar barreiras'';

"transpor barreiras";

"lutar para alcançar objetivos";

"enfrentar obstáculos";

"superar limites" e "temos que lutar";

"tenham muita força de vontade e garra";

"o esporte abre caminhos";

"temos que lutar para derrubar barreiras";

"pratiquem esporte"_

187

Page 198: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Estes enunciados aparecem com regularidade nas frases citadas e indicam ações e reações

propostas pelos atletas quando charnarn e instigam os portadores de deficiência não praticantes de

esporte.

Como exemplo a ser seguido, citamos este enunciado na íntegra:

Através do meu esforço, disciplina, dedicação, sucesso e conquistas nos esportes, quero

mostrar às pessoas portadoras de deficiência como elas podem ser mais confiantes, acreditando

em si próprias. ( 4)

Como os "Gigantes paraolímpicos" se colocam como "nós" se cada um individualmente

escreveu sua frase em locais diferentes e separados geograficamente? Como podem manter, no

enunciado, esta coesão na formação discursiva? É possível afirmar que aderiram ao status/habitus

de atleta? Nesta nova configuração, é possível localizar esse lugar de identificação e

pertencimento denominado paradesporto ou desporto adaptado.

Atividade não comum - desporto adaptado - que torna a atleta deficiente uma pessoa

diferente, com capacidades notàveis e extraordinárias para a circunstância - a deficiência. Tal

procedimento toma a atleta uma representante ou uma "nativa", como nas palavras de Goffinan,

ou seja, uma pessoa igual aos normais. No caso das atletas paraolímpicas, elas representam um

modelo vivido de uma realização de sucesso; "heroínas da adaptação", as que ultrapassam

barreiras, as melhores, merecedoras de recompensas públicas por provarem que atletas com

deficiência podem ser capazes de treinar, competir e vencer. Nestes exemplos referidos por

GOFFMAN (1988), encontramos alguns elementos pré-construídos, que povoam outros

discursos atribuídos à imagem da atleta. São exemplos da interdiscursividade presente na área.

Os grupos ligados entre si, sob a forma de uma configuração de estabelecidos-outsiders,

são compostos por seres humanos individuais. Para ELIAS e SCOTSON (2000) o problema é

saber como e porque os indivíduos percebem uns aos outros como pertencentes a um mesmo

grupo e se incluem dentro das fronteiras grupais que estabelecem ao dizer "nós" (os Gigantes, os

atletas), enquanto, ao mesmo tempo, excluem outros indivíduos a quem percebem como

pertencentes ao outro grupo e a quem se referem coletivamente como "eles" (neste caso, os

lRR

Page 199: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

deficientes não praticantes). Ao analisar esta formação discursiva em que os enunciadores são os

"Gigantes paraolímpicos", destacamos dois enunciados:

Não se sintam inferiores aos ditos normais, pois provamos que pela força de vontade e

garra não há diferença. ( 6)

Não desanimem e treinem normalmente, esquecendo a deficiência, que o resultado virá.

(li)

Neste sentido, ao analisarmos o atleta na condição de herói ("Gigantes paraolímpicos"),

pretendemos apontar para algumas expressões e palavras que sinalizam para uma regularidade no

discurso dos atletas e indicam que elas estão presentes também no discurso dos envolvidos com a

área. Ao mesmo tempo, demonstrar como as pessoas com deficiência, representadas nesta seção

pelos atletas e consideradas pela sociedade como outsiders, podem muitas vezes assumir, em sua

própria configuração, a posição de estabelecidos e, neste caso específico, o de herói.

189

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197

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ANEXOS

Page 210: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

ANEXO I

El

No dia-a-dia, assim, tem treinamento, como é a sua vida, o que você faz de manhã?

Quando eu acordo, eu faço alongamento e quando é três horas da tarde, eu vou ao

treino, retomo do treino às 18 horas e vou dormir, chego em casa por volta de oito e meia,

nove horas, assisto um pouco de tv e vou dormir, é o meu dia-a-dia.

Quando é que você ficou deficiente?

Ao nascer.

E quando é que você começou a praticar esporte?

Eu tinha quinze anos.

Você começou no atletismo?

Não, na natação.

E como é que você foi pro atletismo?

Porque eu fui pra competição de natação e afoguei, fiquei debaixo da água.

Foi, aí eu desisti, fiquei um tempão sem fazer esporte nenhum, acho que uns três

ou quatro anos, também devido ao meu trabalho, eu tinha um outro trabalho né, e não deu

pra conciliar, eu fiquei uns três ou quatro anos, e fui gostando do atletismo e tô aí já há

duas competições internacionais já.

Você foi a Paraolimpíada de Atlanta?

Não, eu fui no México.

199

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O esporte você começou aos quinze anos, e o atletismo?

O atletismo tem três anos.

Como é que você chegou no atletismo, você foi para experimentar?

Nós temos uma equipe na nossa associação, né, e eu fui, quer dizer, os meninos me

procuraram pra ajudá-los, estavam querendo acabar, aí comecei a pegar a coisa e fui

fazendo.

Como é sua relação com as outras pessoas, como você concilia? Como é que você

organiza isso?

Minha vida de atleta e minha vida pessoal é um pouquinho misturada, tá. É uma

dependendo da outra, minha família me apóia muito, sabe.

Então, assim, minha vida é o esporte, todo mundo sabe disso, meus pais, meu

noivo, tá, disso então, todo mundo me apóia, me dá a maior força, assim., então vivo a

minha vida diária, familiar, ela é esportiva, entendeu?

Quando é que você se sentiu assim., atleta, pela primeira vez, que você pensou -

sou uma atleta- você lembra?

Lembro.

Como é que foi?

Foi quando saiu a convocação pro México, ano passado.

E como é que foi?

Foi muito bom. Foi uma emoção muito grande. Me senti atleta mesmo agora.

Agora?

Convocaram para Sydney, né, que era uma coisa, um sonho meu, muito antigo,

uma coisa muito pessoal minha que não tinha realizado ainda, né. E eu sei como foi

200

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realmente durante o treino, o presente que ele me deu é completo, que a medalha vai pro

BrasiL

O que você acha, sua expectativa de medalha, assun, como é que você está

pensando nisso?

Olha, eu acredito no ouro.

Em qual prova?

No dardo, eu quero ouro, mas se Deus me der uma prata, um bronze também, o que

me der eu vou ficar muito feliz.

Como é representar o Brasil?

É uma responsabilidade muito grande, é uma cobrança muito grande, por você

estar aqui, você tem a obrigação de ser a melhor, né. Você é a melhor. No meu caso, eu

sou a melhor do Brasil, porque, da minha classe só veio eu, né, do Brasil. Então, é uma

cobrança sem fim, sabe, é os técnicos cobrando, é mãe cobrando, é todo mundo,

repórteres cobrando, fica fogo sabe, deixa assim um pouco meio, às vezes, meio

estressado isso.

Muita cobrança, mas a gente vai saber levar direitinho isso.

É a primeira vez que você está numa Paraolimpíada?

Na Paraolimpíada é a primeira vez.

E a caminhada para chegar até aqui, como foi?

Foi tranqüila, não foi dificil não, foi tranqüila, os meus treinos mesmo ...

Você treina todos os dias?

Todos os dias.

201

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Como é que você avalia a sua participação nas competições?

Tem sido tranqüilo, eu sou muito tranqüila, sabe. Acho que é esse meu sucesso. Eu

não fico assim sabe, aflita porque vai ter competidora A, competidora B ou C, vou fazer o

que eu vim fazer.

A sua trajetória até aqui, como tem sido?

Graças a Deus, de sucesso.

Quando é que você foi selecionada para participar da Paraolimpíada? Quando é

que você teve certeza?

Em julho.

Em qual evento?

No Paraesportivo.

Você recebe apoio, patrocíuio?

Não.

Você não tem patrocíuio?

Patrocíuio não, até o momento não.

O que você faz para se manter?

É do meu trabalho, é.

No geral, quais as maiores dificuldades como atleta?

Todas. Todos os treinamentos, alimentação, né. A gente tem que ter medicamentos

caríssimos, que a gente não consegue comprar isso, então quer dizer, para ser uma atleta

tem que ter tudo isso, e a gente, porque quando tem, né, parece fácil, mas ajudando assim,

202

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a disposição para ajudar nós, então assim ... quem dá para ajudar, vai nos ajudando, é

porque nós só ... , aí a gente vaí pro regional ... , vai pro ... , quando tá tendo uma disputinha

qualquer que tiver no interior, uma cidade por exemplo, né, nesses quatro anos, às vezes,

as pessoas acham que a gente não precisa das coisas. Precisamos de apoio sim, durante ...

para a Paraolimpíada de Atenas, por exemplo.

Você participa da associação de sua cidade?

Participo muito.

Como é sua participação?

Tudo, tudo que precisar eu tô no meio.

Você vai às reuniões?

Vou nas reuniões, vou nas assembléias, vou em passeatas, sabe, sou muito

disposta, precisou a gente ta lá.

Você acha que a sua opinião é considerada, quando você fala, dá opinião, o pessoal

ouve?

Ouve.

E o seu futuro como atleta de alto nível, como é que você pensa?

Vou continuar. Se Deus quiser vou fazer uma boa prova aqui em Sydney e vou

continuar lutando, pensando em Atenas, e depois ...

O que significa para você ser atleta do esporte adaptado?

Significa tudo pra mim. O esporte me trouxe pra vida. Eu era uma pessoa muito

revoltada, achando que só eu era deficiente, só eu que era coitadinha no mundo, e quando

eu comecei a praticar esporte eu vi que a minha deficiência era mínima perto de muitos

203

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que tem por ai. O próprio esporte me trouxe pra vida. Hoje eu sou uma pessoa que tem

muita alegria de viver, né, muita vontade de viver e ...

E2

Como é que é seu dia-a-dia?

Meu dia-a-dia é, eu me levanto, ajudo a minha mãe em casa, quando eu não tenho

que sair pela manhã, porque eu só vivo mais fora. Quando eu estou em casa ajudo ela e

treino pela manhã, mas antes da gente sair a gente deixa as nossa coisas organizadas.

Sua mãe, ela vai com você?

Todos os dias ela vai comigo, e à tarde, quando eu não tenho alguma coisa, assim,

treino novamente, porque às vezes eu treino duas vezes ao dia, quando não tenho treino,

não tenho nada pra resolver, aí eu vou terminar de fazer as coisas junto com ela e

descansar. E à noite, assisto as novelas e vou dormir. Durmo cedo, pra no outro dia

começar tudo de novo.

Você usa cadeira?

Não.

E então porque você está usando uma?

Eu ando com muleta, mas só que aqui eu tô sentindo uma grande dificuldade de

percurso do ônibus até a piscina. É muito distante, então aí eu aluguei esta cadeira pra

poder facilitar pra mim pra não ficar tão cansada e conseguir nadar melhor.

204

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Desde quando você pratica esporte?

Eu comecei a fazer um tratamento da escoliose em noventa e três, mas eu fazia

assim, era pouco tempo, meia hora né, que era como tratamento, a partir de 95, no final de

95, me viram nadando e me convidaram a participar das competições.

Quem te viu?

Uma equipe técnica de uma associação, ai eu comecei a participar. A primeira

associação que eu participei foi a (X), ai depois, aí participei de nma competição em (Y),

foi meu primeiro regional, aí então nesse primeiro regional eu consegui, assim, uma boa

colocação pra participar do brasileiro que foi no Rio e assim por diante. Aí, quando foi em

99 eu participei na Argentina, em 2000 eu participei da Argentina e do Pau-Americano no

México, e agora as Paraolimpíadas, mas já participei de várias competições.

Então você começou em 93 como tratamento, e como atleta?

Como atleta, eu considero assim, participar de competições, em 96, foi meu

primeiro campeonato, como eu disse, foi em (Y), né.

Você teve outras opções, falaram pra você escolher outra modalidade ou você

mesma quis ficar ua natação?

Eu até participei uma vez de lançamento de dardo, no atletismo, né, mas depois eu

vi que a minha vocação era pra natação mesmo. Não para o atletismo, eu gosto de nadar, e

é bom a gente fazer o que gosta.

Mora só você e sua mãe?

Não, mora minha mãe, eu e um casal de sobrinhos.

Você passa com sua mãe o dia todo?

205

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É, minha mãe se dedica totalmente a mim. Quando estou em casa, para os treinos,

pra todo canto que eu vou resolver alguma coisa. Se for treinar duas vezes ... fmal de

semana, ela passa sempre comigo.

Você tem namorado?

Não.

Como é que você se vê como atleta representando o Brasil?

Ah! Eu me sinto muito importante, apesar de que às vezes eu sou muito insegura,

às vezes eu me sinto insegura, mas assim, é uma coisa que eu faço e que eu gosto muito,

eu me sinto bem e me sinto feliz no momento em que eu estou participando e que eu

ganho.

Eu me vejo importante, porque é a primeira Paraolimpíadas, e para eu chegar até

aqui, eu tive que batalhar muito.

Como é que foi a caminhada para chegar até essa Paraolimpíada?

É, foi um pouco sofrido, né, porque eu aí participei, eu acho que pra chegar até

aqui eu acho que ... assim ... no México eu me saí bem, pra poder estar aqui, porque no

México, foi o Pan-Americano, então eu consegui duas medalhas de ouro e três de prata,

aí, esse resultado foi que fez eu chegar aqu~ eu tenho índice, e consegui participar da

Paraolimpíada. Mas antes participei de outras competições, regional, brasileiro.

Você tem patrociuio?

Não, no momento a gente estamos com o patrocínio do Vasco e dos Correios, mas

até quando terminar a Paraolimpíada, eu acho que o contrato foi até a Paraolimpíada. Não

sei depois, né, mas esse patrociuio meu mesmo, eu tenho batalhado muito, e até agora não

consegui. Tenho muitas medalhas, consegui assim, umas boas colocações, mas

patrociuio ...

206

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O seu técnico. É um homem ou uma mulher?

É uma técnica maravilhosa.

Como é que é o relacionamento com ela?

Muito bom mesmo, é uma técnica amiga. Ela assim ... estimula muito os atletas, se

dedica muito. Até a gente, quando estamos desanimados, qualquer um atleta, ela está ali

em cima, porque antes mesmo, eu não fui convocada logo, né, aí colocaram outra atleta

no meu lugar, né, por causa da competição no Rio de Janeiro que eu estava muito nervosa

e tem momento que eu fico muito nervosa e atrapalha tudo, e aí botaram essa nadadora,

então eu fiquei assim, sem estimulo, chorei muito, me "aperriei" muito lá, quando cheguei

passei duas semanas sem treinar, eu não queria voltar, eu não me via como nadadora

dentro de uma piscina, daí eu disse, peraí, eu vou dar um tempo pra mim mesma depois

eu começo tudo novamente, aí os meus amigos foram falar comigo pra eu voltar, tudinho,

ela tava muito aperriada, a técnica, porque ela se dedica muito, ela é dessas técnicas que é

dedicada, é assim, é nos momentos difíceis da gente, nos momentos bons, ela sempre tá

com a gente. Aí depois eu consegui assim, eu digo, na terça-feira eu volto a treinar. E

voltei, mas na segunda-feira, antes dessa terça-feira que eu tô falando, um menino ligou

pra mim, um amigo meu que era da equipe, que também é um amigão, dá muita força a

gente, à equipe, a equipe da gente é uma equipe muito unida, a técnica e tudo, é uma

família. Aí, ele ligou pra mim dizendo a mim que eu tinha sido convocada e eu não

acreditei não. No mesmo tempo pensei, vocês acham que vão me enganar? Não tô

mentindo pra você, não, mas não acreditava não, de jeito nenhum. Mas antes ele

perguntou a mim se eu tava treinando, mas ele sabia que eu não tava treinando. Ele disse,

você vaí voltar quando? Aí eu disse, amanhã, que era na terça-feira né, aí ele disse: você

está convocada, prepara a mala, porque eles pediram desculpa e agora você só tem que

treinar, fazer o melhor de você.

207

Page 219: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Como é que você faz para se manter?

Eu assim ... quando terminei o segundo grau, eu tentei conseguir um emprego, mas

não consegui né, fiz até o concurso da (X).

Quais são as outras dificuldades como atleta?

Além do patrocinio que é mais dificil né, assim, a dificuldade, é porque eu não

tenho carro, então eu tenho que ir todos os dias andar o percurso da minha casa pra

avenida, pegar o ônibus, tudo isso, mas aí, mesmo assim, eu não desisto.

Você participa da associação da sua cidade?

Eu participo do (y).

E como é a sua participação na associação?

Eu sou muito assim, pra falar eu sou muito tímida, né. Muito tímida mesmo, mas a

gente tem reuniões da equipe, porque, da equipe de natação. A associação tem urna

representante que sempre vai às reuniões.

Você não vai?

É dificil, sabe, é porque também eu moro distante de là tudinho né, mas dai tem

uma representante, foi escolhida uma representante e passa tudo pra gente. Agora, no

momento que a gente tiver que ir mesmo, aí eu vou. Mas a gente sempre se reúne, assim,

a técnica, os atletas, pra ver o que precisa, essas coisas todas.

Aí você conversa?

Aí, pra mim fica mais fácil, porque aí é uma família né, mas assim, de outra

manerra ...

Quando é que você sentiu que você era uma atleta?

208

Page 220: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

No Pan-Americano, no México. Eu me senti a verdadeira atleta, porque foi assim,

uma competição muito importante, porque um Pau-Americano é muito importante, fora

do país, apesar de que eu já tinha participado de duas na Argentina em Mar Del Plata, mas

pra mim, a que marcou mesmo foi o Pan-Americano.

E o que significa ser atleta do esporte adaptado?

Pra mim é normal, eu acho assim, que eu me sinto como pessoa normal, porque eu

não vejo diferença, às vezes as pessoas portadoras de deficiência fazem até melhor do que

os que não são portadores. Porque na verdade todo mundo tem uma deficiência. A gente

portamos uma deficiência, mas todos têm uma deficiência de uma maneira ou de outra,

mas têm. Ninguém é perfeito.

E o futuro como atleta de alto nível?

Isso aí eu não pensei. Eu pretendo continuar, batalhar, conseguir um patrocínio,

porque a gente tendo um patrocínio eu acho que melhora muito, porque aí estimula maís o

atleta. E é muito gasto, porque material esportivo, alimentação, tudo isso é muito gasto,

então a atleta precisa de um bom patrocínio, de uma ajuda, de um apoio.

E3

Como é que é seu dia-a-dia?

Ultimamente né, acordo, tomo café, aí espero dar um tempo pra hora do treino. Eu

acordo tarde, tomo café tarde, dou um tempo e vou pro treino, que é a uma hora da tarde,

uma hora na piscina, né. Depois a gente almoça lá mesmo e depois vou resolver alguma

coisa, vou pra casa, depois vou namorar, vou ... Não tem assim uma seqüência, não.

?09

Page 221: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Quantos dias você treina na semana?

Todos os dias.

O ano inteiro. Tem folga?

Às vezes.

Como é que você começou a fazer esporte?

Aos sete anos, logo após o acidente, como reabilitação.

Você experimentou outras modalidades?

Não.

Você já começou na natação e ficou?

Porque eu comecei como reabilitação, né. Passei oito anos só como reabilitação e

tendo competições internas, né, dentro do clube.

Quando é que você começou a treinar para competir?

Em 90, eu comecei nas competições.

Você mora com quem?

Minha mãe.

Quem mais?

Só.

Tem namorado?

É.

210

Page 222: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

V ai casar? Que dia vai casar?

Dezoito de novembro.

Como que você se vê como atleta representando o Brasil?

Primeiro de tudo, eu estou muito feliz de estar aqui representando o pais e é uma

homa pra gente participar da Paraolimpíada como sendo uma das três mulheres da

natação, né, e vou fazer de tudo pra que consiga realizar meu sonho da medalha olimpica,

né, sabe que falta.

Falta pra quem?

Pra mim. Eu penso primeiro em mim, né. A vontade, acho que é ... , a vontade

maior aqui tá a minha, vou ganhar a medalha, não vou ganhar a medalha pros outros, vou

ganhar a medalha pra mim.

É a sua primeira Paraolimpíada?

Segunda.

Qual foi a sua primeira?

Barcelona, em 92.

Como você se saiu?

Meu melhor lugar foi um sexto. Nos cem metros peito, também, de lá pra cá já teve

mudança de classificação.

Por que você não foi para a Paraolimpíada de Atlanta?

Não teve vagas femininas.

Como é que foi para chegar a essa Paraolímpíada?

211

Page 223: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Nadei muito. Aprendi muito. A gente ralou um bocado, viu.

Como é que tem sido sua participação nas competições. Como é que você avalia?

A gente teve ... a decisão mais foi tomada no México, né, também teve uma boa

parcela. E lá eu consegui medalhas de ouro, nas minhas provas, né, foi lá que eu consegui

o índice.

Pra tentar permanecer onde eu estava, entendeu? Que depois teve regional, teve

brasileiro, teve paradesportivo, né. E dai que a gente teve tentando manter pra conseguir a

vaga.

O seu técnico. É um homem ou urna mulher?

Técnico.

Como é seu relacionamento com ele?

É bom, porque desde o começo, comecei com ele, né? Muitos anos nunca tive

outro treinador.

Quais suas dificuldades como atleta?

As barreiras que a gente encontra. As pessoas às vezes até não acredita. Atleta?

Acham que é meio que impossível. As barreiras mesmo até chegar ao treino, transportes,

né, o que a gente passa tudo.

Patrocínio, você tem?

Tenho, mas por enquanto, mas assim, a dificuldade é grande, eu só tenho que ter

reconhecimentos de pessoas que tá ligada comigo, ai consegui esse patrocínio pra mim.

Mas é muito dificil. Alimentação, que a gente tem uma alimentação balanceada, a gente

tem que ter todo um processo, é ... Cuidados médicos, dai você tem ... , um atleta tem que

212

Page 224: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

ter tudo isso, e cada vez mais é dificil. Se você não tiver nm conhecimento, condições pra

isso. Atleta no Brasil só treina, a força de vontade e arrasto, só.

Você participa da associação de sua cidade?

Olha, a associação da gente é pequena. Só tem a gente da natação e das atletas do

halteres, né, e ainda não tem dez meses, mas é tudo pequeno assim, dois, três atletas, não

tem mais do que isso. Só a natação que é maior, que tem dezoito. A gente se entrosa, são

pessoas que a gente já conhece há muito tempo, anos e anos de convivência.

Como é que é a sua participação?

Da maneira que eu posso, né, que eu tenho a oportunidade, daí eu sempre falo, né.

Você vai às reuniões?

Vou.

Tem sempre?

É ... digamos que sim. É de vez em quando. É porque é nm grupo já, nm grupo

fechado assim, nm grupo de pessoas que a gente já sabe a convivência de cada um, o dia­

a-dia de cada um, e não tem assim, nm monte de problemas sociais, pra gente se encontrá

todos os dias no mesmo canto, mesmo local, mesma conversa, mesmo tudo, entendeu?

O que significa pra você ser atleta de esporte adaptado?

Significa muita coisa. Exemplo de vida também, né, por causa das pessoas. Legal.

Realização pessoal, psicológica, né, porque o psicológico da gente, né ... quando você

passa ... Eu agradeço muito a natação, a tudo, às pessoas também que me ajudaram até

chegar aqui, a minha mãe que sempre teve comigo em tudo, que vai me deixar todos os

dias e fica esperando, tudo ... E minha cabeça que eu tenho hoje, eu não teria se não

tivesse entrado nesse meio.

213

Page 225: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

E quando é que você se sentiu atleta pela primeira vez?

A primeira tudo é maravilhoso. A primeira competição, a primeira medalha, aí

você fica pensando, se vaí, até onde você vaí, né, então, já tô há muíto tempo, então nunca

aparece pra pensar, até quando eu vou ... eu vou até onde der.

Mas quando é que você se sentiu atleta pela primeira vez?

Quando você ganha a primeira medalha você ... pode ter sido em ...

não ... eu já tinha ido pra Barcelona, que a gente ... Porque Barcelona teve muítos

problemas assim, na parte de natação, na competição. Quando a gente vaí pra

Paraolimpíada tem muitos paises, então, às vezes tinha um atrito aínda de classificação.

Sou paraplégica, aí acontece de eu nadar com pessoas anãs, e isso dificulta muíto, né. E,

depois que eu cheguei de Barcelona, aí eu vi que realmente, eu era uma atleta realmente,

porque eu tinha já participado do maíor evento que um atleta pode estar.

E4

Como é seu o dia-a-dia?

Acordo às nove, faço "cera" por ali um pouquínho, tomo um café, vou treinar.

Depois do treino, faço algumas reuniões com os médicos, essas coisas, vou trabalhar,

volto pra casa, janto, vou pro colégio, volto e vou dormir.

Você estuda à noite?

À noite.

Você pratica esportes desde quando?

214

Page 226: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Desde 95.

Em qual esporte você começou?

Na modalidade X.

Comecei com X. Eu faço a modalidade X quando é pra viajar pra fora do pais. Na

modalidade X tem muitas meninas, né. Eu faço brasileiro e regional na modalidade X e a

modalidade Y, os dois juntos, mas quando é pra viajar pra fora, eu faço a modalidade Y,

porque eu treino os dois.

Como você se vê como atleta?

Me vejo assim. Pra mim é um exemplo de vida ser uma atleta, porque de onde que

a gente ia ter chance lá em (cidade onde mora) ... você tem uma idéia ... vem uma atleta

numa olimpíada, lá da cidade onde moro. De onde é que se a gente fosse olimpico estaria

aqui. A gente não tinha nem saído do colégio ainda lá, treinando voleibol, handebol, ou

outra coisa qualquer, né. Quando que eu ia ser uma atleta da modalidade Y se eu não

fosse paraatleta, né ... Tem as suas desvantagens mas também tem as suas vantagens, de

ser deficiente fisico ou qualquer outra deficiência.

Como é sua relação com as outras pessoas, por exemplo, sua mãe, como é que você

faz, como você concilia? Como é que você organíza isso?

Eu acho que é até melhor, você conhece pessoas, você viaja, você faz mais

amizades, dentro do pais e fora do país. Acho que isso é bom, pra mulher melhor ainda,

homem é aquele bicho chucro. Eu acho que melhorei em tudo. Depois que a gente

começa a viajar no esporte como atleta acho que melhora mais ainda assim, porque de

onde que ia ter um monte de amigos fora do pais se eu não fosse uma atleta.

Como você se vê como uma atleta representando o Brasil?

215

Page 227: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Pra mim é uma homa muito grande, assim, poder vestir a camisa do meu país, e

poder defender. Eu me sínto assim, maravilhosamente bem assim, acho que dependendo

da colocação que a gente fique, mas a gente representando bem, porque se a gente não

tivesse tão bem, não teria sido convocado, né.

É a primeira vez que você participa de uma Paraolimpíada?

Paraolimpíada sim.

E como é que foi pra chegar nessa Paraolimpíada?

Treínando, puxando ferro durante quatro anos.

Há quatro anos atrás foi quando tudo tava começando, que o pessoal estava sendo

convocado pra Atlanta, não tinha vaga, nem pra X no femíníno, nem pra Y, e daí que eu

falei pra (mínha amiga)- na próxima a gente ta lá. A gente vai treínar quatro anos, com

certeza a gente vai ta lá. E nosso sonho está se realizando.

Como é que você foi selecionada para participar dessa Paraolimpíada?

Não teve muito assim, como é que eu vou falar ... disputa, porque não têm muitas

menínas. Eu tive que disputar só com duas menínas, e a mínha convocação já tinha saído

oficialmente daqui, desde o início do ano que o (Presidente do CPB) já falou. Pra mim ter

que vir pra essa Paraolimpíada, desde 98, era só não parar de treínar.

Foi tranqüilo.

Você tem técnico ou técnica?

Tenho técnico.

Como é seu relacionamento com ele?

Ahl Distante. Meu técnico de Y mora em (outra cidade de outro estado) e eu moro

em (outra cidade). Uma vez por semana, ou até duas vezes, meia-noite, quando eu chego

216

Page 228: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

do colégio, ele liga, e aí como é que tá? Como é que treinou? Próxima semana faz isso.

Ele é legal, uma pessoa legaL

Antes não tinha muito apoio pra Y, porque a gente treina (com o técnico da

modalidade X), mas uns dias antes de a gente vir mesmo pra cá (Sydney), a gente ficou

treinando com um professor de Y.

Você recebe apoio, patrocínio?

Sim, digamos que a gente é até privilegiada assim, pois são todos humildes, assim,

mas a gente tem o apoio do governo do estado, pra trazer resultado pra eles também e a

gente ... ele apóia a gente, assim, porque na quantia ele nunca deixou ... desde que eu

entrei, que já começou a dar resultado, ele até agora tá nos apoiando, a gente bem que

merece patrocínio melhor, mas por enquanto, só isso mesmo.

E além do patrocínio?

Tenho que trabalhar, se não for à luta ...

Como é que é na associação, você participa?

Associação eu acho legaL Apesar de ser uma associação pequena, é legal. Eu acho

que quando a gente vê outras por aí, vê que a da gente até que é organizada.

E você participa dela?

Participo, a gente tá todos os dias junto com o pessoal, técnico, os colegas. É como

se fosse uma outra familia, a gente saí de casa, todos os dias.

O que significa ser atleta de esporte adaptado pra você?

Nem, sei explicar. Acho que é um exemplo de vida pras outras pessoas, ser atleta,

porque se a gente não fosse atleta, era apenas um coitadinho. Você só é visto, quando

você não é atleta, se você não é um médico, você é deficiente. Se você não for uma

217

Page 229: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

pessoa formada, tiver um bom emprego ou tiver alguma grana, você é visto como um

coitadinho, como atleta não ... ainda é meio emolado, o pessoal confunde muito.

E quando é que você se sentiu atleta pela primeira vez?

Em 97, quando ganhei minha medalha de ouro na modalidade Y, no mundial, na

Inglaterra. Me senti uma verdadeira atleta, esqueci que eu era deficiente, esqueci tudo. Pra

mim, acho, desde lá, eu tive um pouquinho mais de responsabilidade como atleta., e ... eu

sou uma atleta ... o resto é resto.

E5

Como é seu dia-a-dia?

Bom, primeiro eu acordo às seis da manhã, aí eu saio pra treinar às sete e meia., da

minha casa no treinamento são mais ou menos duas horas, meu treinamento começa às

nove horas, eu tenho que sair da minha casa às sete e meia porque tem transito, né, e da

minha casa lá, é longe. Aí chego no treino às nove horas, treino até mais ou menos meio

dia., depois do treino volto pra casa., saio pra escola., que é na parte da tarde, que é de uma

hora até às quatro, depois eu volto pra casa., assim é essa rotina de segunda a sexta, e no

sàbado, como eu não tenho muitos amigos, eu fico em casa., sou caseira, mas eu gostaria

de sair, de ir pra festa., de ir pra baile, essas coisas assim.

Quando é que você começou a praticar atletismo?

Eu estudava num colégio pra deficientes visuais, que é da 1.• a s.• série, então,

desde pequena eu estudei lá, desde os sete anos de idade até os dezoito, minha infância e

minha adolescência foram toda lá, então lá, eles faziam várias coisas pra estimular

deficientes visuais, tem dança., tem teatro, tem várias coisas, e eu sempre participei de

218

Page 230: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

tudo, nunca deixei de participar de nada. Então tinha Educação Física, teve a parte do

currículo, e eu ÍIZ a Educação Física, fiz natação, ÍIZ judô, fiz voleibol, fiz ginástica

rítmica, todos os desportos assim que tinha, tudo que tinha eu participava, e aí eu comecei

a me destacar na Educação Física, as professoras perguntaram se eu não tinha interesse

em começar a treinar pra viajar, isso foi em 92, na época de Barcelona, até então eu não

sabia nada de competição, nada, aí eu participava das competições que tinham lá no

colégío, nas Paraolimpíadas internas que tinham no colégío, eles fazem todo ano, logo

depois eles montaram uma equipe, pra competir, pra ir disputar o campeonato lá em

Campinas, de atletismo, eu estava treinando, mas não fui, porque não teve passagem pra

todo mundo, fiquei triste porque eu queria ir, porque minhas colegas quase todas foram,

mas teve alguns também que não foram, aí em 94 apareceu a oportunidade, a chance, eu

vim no brasileiro, já tinha ouvido falar da Adria, inclusive até falei pra ela quando eu a

conheci que eu imaginava ela totalmente diferente, eu imaginava ela um mulherão alto,

loiro, e com o maior corpão. Me falavam que ela já era assim, então eu competi com ela

na classe B2, nessa época ela era, e quando eu cheguei pra competir com ela eu não sabia

nada, eu não sabia que tinha sapatilha, nem que tinha um preparo todo, fui de tênis

mesmo, cheguei lá não sabia de nada, mas aí foi legal, eu fiquei com a medalha de prata,

competi com ela e desde então não parei mais, aí logo nesse ano, em 94, já veio minha

convocação pro Sul-Americano, Latino-Americano lá em São Paulo, aí lá eu ganhei

medalha de ouro no 4 por 400 revezamento e duas de bronze nos 100 e 200 e 95 eu

participei do Campeonato Brasileiro e também lá tive a vaga pro Pau-Americano da

Argentina, onde ganhei duas medalhas de ouro nos 100 e nos 200 e logo depois em 96 já

veio o próximo trabalho, já, ganhei a convocação pra Atlanta, foi minha primeira

Paraolimpíada, que foi onde eu ganhei duas medalhas de bronze, nos 100 e 200, e daí, 98

e 97, infelizmente, por causa de apoio, de dinheiro, de tudo, não treinamos. Teve

Campeonato Mundial, teve convite pra Campeonato Europeu, teve Pau-Americano, teve

tudo, mas infelizmente nós não fomos, porque não estávamos treinando, porque não

tinhamos apoio, nem dinheiro, nem técnico, nem nada.

219

Page 231: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Em 99, fomos pro Pau-Americano do México, fiz medalhas de ouro, e agora este

ano a gente fez um trabalho pra cá, Sydney, que foi quando veio a convocação pra

Sydney, eu tô aqui em Sydney e espero que agora com um pouco mais de experiência, já

conhecendo mais minhas adversárias, eu espero melhorar meus resultados, e conseguir

quem sabe, uma medalha de ouro, mas meu objetivo primeiro é melhorar meu resultado,

se com ele for a medalha de ouro, ou for recorde ou for medalha de prata ou for a de

bronze, maravilha.

Como é que você se vê como atleta representando o Brasil?

Ah! Me sinto muito orgulhosa, me sinto muito honrada, mas tô me sentindo feliz

de estar aqui, de estar vestindo essa camisa amarela, mas em outros momentos, me sinto

um pouco humilhada, porque, poxa a gente não tem o mesmo tipo de apoio que todo

mundo tem. Olha só a mala que a gente ganhou, pô, não tem agasalho legal, poxa, ontem

a gente treinou na chuva porque não tinha uma capa de chuva. Isso não é culpa do Comitê

Paraolímpico. Isso é culpa das pessoas que não entendem que a gente tem que ser tratado

como a mesma coisa, como os olímpicos foram. Que nem uma coisa que eu achei aqui,

esse alojamento aqui eu achei fraco, Atlanta o alojamento era melhor do que esse, agora a

vila, a alímentação, muito superior a Atlanta, muito superior mesmo, entendeu. Lá, o suor

que a gente derrama é o mesmo no entanto a valorização não é a mesma.

Dos paraolímpicos em relação aos olímpicos, independente de ser mulher ou

homem. Eu acho que é isso. Eu acho que tem que haver uma valorização, tipo, a gente

não pode estar aqui, já que os olímpicos tiveram todo tipo de apoio, a gente não pode

estar aqui passando frio, nem estar aqui passando essas coisas todas, por causa, que nem,

não sei se você soube, mas essa roupa nossa aqui, o (Presidente do CPB) teve que por o

crachá, o "coisa" do Comitê Paraolímpico, porque eles nos deram uma roupa com o

símbolo do COB, entendeu? Isso foi meio chato, eu acho. E tiveram que pagar por aquele

agasalho de moletom que a gente tem, ainda por cima, entendeu? Tiveram que pagar pelo

agasalho. Que patrocínio é esse que você tem que pagar pelo que você vai vestir? Coisas

220

Page 232: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

complicadas isso aí. E na valorização também do atleta medalhado, ou mesmo do atleta

não medalhado, pô, ninguém sabe, assim ... um incentivo ... sabe ... pra gente e tal ... é esse

tipo de coisa que eu tinha pra falar sobre isso aí.

Como é que você foi selecionada pra participar desta Paraolimpíada?

Bom, teve um campeonato regional pros deficientes visuais, campeonato brasileiro

pros deficientes visuais, e o paradesportivo, que foi uma seletiva geral de todos os

desportos, e aí as atletas lá nesse paradesportivo tinham que alcançar índices A ou índices

B, eu alcancei todos os índices A, aí depois veio a convocação.

Você tem técnico ou técnica?

Técnico.

Como é seu relacionamento com ele?

Particularmente não muito bom, mas profissionalmente eu creio que seja bom.

Pode explicar mais?

Como pessoa a gente não se dá muito bem, não somos aruigos, entendeu? Não

somos aruigos de bater papo, conversar, como por exemplo, apesar de não ser atleta do

fulano dia a dia, a intimidade que eu mantenho com o fulano, que eu tenho com o ciclano,

que com o meu técuico eu não tenho, entendeu? Mas profissionalmente ele é um ótimo

técnico, maravilhoso técnico, e eu não tenho nada que falar dele nessa parte.

Você participa de alguma associação?

Infelizmente não, porque (na cidade onde moro) não tem nenhuma associação de

deficientes visuais a altura, entendeu? Infelizmente isso é uma queixa também que eu

tenho, então eu me identifico com meu namorado, que é presidente de uma associação,

que é uma entidade de outra cidade, então, sempre que eu posso eu gosto de estar

221

Page 233: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

participando nos eventos que ele promove, nas coisas que ele tá fazendo, porque como eu

moro na cidade X e ele mora em Y, é meio complicado pra sempre estar em contato com

ele, mas, sempre que eu posso, eu gosto de estar participando, porque eu acho legal, o

cego tem que ser integrado.

E a sua participação? Quando você participa você fala, dá sua opinião?

Falo. Vou nos eventos, eu prestigio os eventos, eu vou lá, sempre quando tem

oportunidade de falar eu falo. Em qualquer lugar. Eu adoro dar entrevista pra qualquer

pessoa, e gosto muito de falar do meu antigo colégio, porque se não fosse por ele talvez

hoje eu não estivesse aqui.

O que significa pra você ser atleta do esporte adaptado?

Pra mim é normal, porque eu acho que não tem muita diferença, no meu caso que é

atletismo, a adaptação nossa é mais o guia, no resto, a pista é a mesma, o material é de

utilizar da mesma maneira, você utiliza o bloco da mesma maneira, utiliza a pista da

mesma maneira, sapatilha é a mesma, tudo é a mesma coisa. A única adaptação que tem é

o guia pra nós, então pra mim é normal.

Quando foi que você se sentiu atleta pela primeira vez?

Quando eu pus uma sapatilha no pé no Latino-Americano, logo na minha primeira

competição, e que eu vesti aquela roupazinha verde e amarela escrito Brasil.

Que ano foi isso?

94. E também quando ganhei minha medalha de bronze em Atlanta.

Qual era o sentimento?

Muita emoção. Espero repetir aqui, e com certeza vai ser o ouro pra mim ouvir o

Hino Nacional tocar. Acho que a maior emoção que o atleta tem é essa, é você ouvir o

222

Page 234: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

hino do seu país, e ouvir longe da sua casa, ouvir em outro país, eu acho que isso que é

mais excitante, não é o mesmo que ouvir no seu país.

E o futuro como atleta?

Os técnicos dizem que eu tenho muito futuro, né, que eu tenho muitas

Paraolirnpíadas ainda, e eu pretendo continuar competindo como atleta até quando for

possíveL trocando de provas é lógico, porque daqui algum tempo, eu tenho 23 anos, eu

não vou conseguir fazer mais 100 metros em 12 segundos ou 13, entendeu?

E, futuramente eu pretendo terminar meu 2.0 grau, entrar numa universidade de

Jornalismo ou de Comunicação Social, e mesmo que eu pare como atleta, eu quero

continuar no meio, continuar aqui com outra função, sabe, porque eu acho que minha vida

é essa, e eu não saberia fazer outra coisa, então eu quero fazer uma coisa pra contribuir

para o deficiente, para o desporto, ou como jornalista, ou, sei lá, como psicóloga, uma

socióloga, qualquer coisa. Eu quero ter uma função que eu possa aproveitar numa

delegação como essa, por exemplo, daqui uns 1 O anos, eu vou estar numa Paraolirnpíada,

sei lá, como uma jornalista entrevistando os atletas como você está fazendo comigo agora,

ou sei lá, fazendo alguma coisa na delegação, estar aqui, porque eu acho que não

conseguiria maís viver minha vida sem essa agitação, sem esse mundo, sem essa coisa.

Quais são as outras coisas da sua vida que você faz?

É eu namoro com o (nome do namorado) já tem 5 anos, ele também é deficiente

visual, ele joga (Y).

E o que vocês fazem quando estão juntos?

A gente se vê pouco, porque ele mora em outra cidade, então é um pouco difícil.

Eu sou muito caseira, então quando eu vou pra (outra cidade) é que eu me solto, que eu

vou, que eu saio, eu vou pra noite, a gente vai em barzinhos, a gente gosta muito de

barzinho, música ao vivo, a gente freqüenta lugares que namorados freqüentam, vamos ao

223

Page 235: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

shopping, gosto muito de comprar roupas, comprar CD, gostamos de sair pra viajar, de

passear, fazemos coisas que todos os namorados normais fazem né. Mas assim, eu não

tenho sonho de casar, de ter filhos, construir uma família, mas eu quero casar, eu quero ter

filhos, eu quero ser mãe, eu pretendo, agora, ano que vem, vai ter Pau-Americano em

maio, e depois no ano de 2002 tem o campeonato mundial, vou estar com 25 anos, eu

pretendo que depois do mundial, ou entre o Pau-Americano e mundial, não dá que é

muito pouco tempo, mas quero ver se no mundial eu já esteja grávida, ou depois que eu

voltar, ou eu vou pro mundial já esperando um bebê, porque isso não intertere na ... , já

consultei várias pessoas, não interfere, dizem até que é bom, ainda mais assim, nós atletas

a gente tem uma estrutura diferente, então, claro, tem pessoas que logo no primeiro bebê

abortam, outras não, mas nosso organismo eu creio que seja mais preparado pros

impactos, então, já que tem ginástica pra grávida, eu acredito que não influencia pra gente

isso aí, então daqui uns dois anos que eu quero ter um filho, independente de estar casada

ou não, eu quero daqui uns dois anos ter um filho, isso já é uma meta que eu tracei,

porque eu penso assim, que a gente não pode deixar a maternidade pra muito tarde,

porque senão você não vai curtir aquilo, ou então, fazer como a (cita uma atleta) fez, ter

uma filha, agora por exemplo, ela ta com 25 pra 26 anos, a filha dela já é quase uma

moça, já fica despreocupada, entendeu?

E6

Como é o seu dia-a-dia?

Bom, até antes de Sydney? Eu treinava de manhã, segunda a sexta, de nove ao

meio-dia, lá no Rio, e à tarde, terça e quinta a gente estava treinando de manhã e à tarde,

segunda, quarta e sexta na parte da manhã e à tarde era descanso.

224

Page 236: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

E aí, depois?

Segund~ quarta e sexta era treino e daí ia descansar em casa, e terça e quinta a

gente treinava de manhã e de tarde.

E o que você faz em cas~ você mora sozinha?

Eu moro com a minha filh~ só nós duas.

Quem faz o serviço da casa?

Eu mesma. Essa última semana minha mãe ficou comigo dando uma força lá, né.

Faço tudo.

E as compras?

Também faço. Eu faço nos finais de semana.

Vocês passeiam?

Vou a praí~ shopping. Eu saio mais à praia ... que eu moro pertinho da prai~ né.

Você pratica esporte desde quando?

Desde 87.

Quantos anos você tinha?

Eu comecei com 13 anos.

Em qual esporte você começou?

Sempre no atletismo.

Porque você escolheu atletismo?

225

Page 237: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Eu comecei em 87, estudava (nome da instituição), ai fizeram uns testes comigo,

daí me chamaram pra Associação de Cegos (da cidade), ai eu fui e gostei. Primeiro ano já

competi, segunda competição já fui convocada pra Seul, foi minha primeira

Paraolimpíada. Em 88, com 14 anos.

E como é que você foi nessa competição?

A primeira? Ah! Fui bem. Na minha primeira competição bati o recorde brasileiro,

que era da Anaelise, era de 29,6 e eu fiz 29,3. Foi o recorde brasileiro da prova. Em Seul

eu ganhei também ... nessa primeira competição minha, eu fiz llllla prova de campo, foi

salto altura, mas não gostei muito, competi llllla vez só, no outro ano já mudei de prova,

fui pro 400.

Como é que você se vê como atleta?

Ah! Eu me vejo ... assim ... eu sou llllla pessoa muito esforçada, sabe? Quando eu

quero, no esporte, eu quero chegar a vencer, eu corro atrás disso, então eu me vejo como

llllla pessoa que conseguiu superar, né, muitos obstáculos e pretendo superar mais, então,

eu me sinto vitoriosa no momento sim.

E como atleta representando o Brasil?

Ao mesmo tempo é bom demais, mas ao mesmo tempo, a gente mesmo se sente

cobrada nisso tudo, então, é aquela coisa, de você vem representando seu pais, você dá o

máximo- hoje eu tô treinando -e ali, o tempo todo mentalizando aquela largada, né? Aí

na hora eu vou fazer isso, e isso, e pá e lógico, saindo bem, então, isso tudo, eu fico

pensando, eu tô aqui, vou representar meu pais, e vou representar bem.

Como é que você foi selecionada pra participar desta Paraolimpíada?

Foi no Rio de Janeiro, teve o Paradesportivo, e consegui os índices nesta

competição. Os três índices A

226

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Seu técnico é um homem ou uma mulher?

Homem.

Como é seu relacionamento com ele?

Eu acho muito bom. Eu gosto muito do meu técnico, demais, demais mesmo. Não

só como técnico, mas ele é um amigo também, a gente conversa sobre treinamento, se eu

estou com um problema pessoal, eu chego- não tô legal hoje- e ele: vamos conversar. O

meu relacionamento com ele é ótimo.

Você recebe apoio, patrocínio?

Tenho do Bingo (nome), e tenho um outro lá do (nome da instituição).

Dá pra você se manter?

Dá pra me manter sim.

Fale das suas dificuldades como atleta.

Como todo atleta, né, não só o portador de deficiência. É difícil. O desporto é

menos divulgado, então, já tive muitas competições, viajei sem treinar praticamente,

estava sem técnico, não tinha apoio, não tinha nada, e fui, consegui - ontem mesmo eu

tava comentando sobre isso - que foi uma competição, a minha melhor prova que é os

1 00 metros. Eu tava tão mal, não tava bem preparada que eu não consegui nem ir pra

fmal. Então, pra mim, eu não me senti derrotada ali, pensei- eu tenho mais duas provas e

vou tentar- e no 4 por 1 00 eu consegui a medalha de bronze, e nos 200 também. Ma foi

assim, eu sou muito guerreira, eu corro atrás, porque - ah! Se a adversária, a fulana tá

comigo, eu não vou pra cima não, eu não penso assim. Se ela está, eu quero superar.

227

Page 239: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

O que significa pra você ser atleta do esporte adaptado?

É importante não só pro deficiente, como também pras pessoas normais, porque o

esporte ajuda muito, né, a sua saúde, né, então pra gente, pro decifiente, agora aqui em

Sydney, a divulgação também está sendo melhor, eu me sinto bem, como eu vou entrar

com a bandeira, né, ontem o pessoal: - ai que legal, todo mundo vai te ver. Saber que a

minha mãe vai estar ali vendo, sabe, é uma emoção muito grande, das pessoas dizerem:

Essa ai ... essa ganhou medalha, entendeu? É muito gostoso isso.

Quando é que você se sentiu atleta pela primeira vez, você lembra?

Olha, eu comecei muito nova, como eu te fale~ 13 anos, então no começo eu não

via como eu vejo agora, eu era muito nova, a importância que tem pra mim agora,

Atlanta, Sydney, o mundia~ eu já estava mais madura, estava com 18 anos, depois Atlanta

com 22, então, as competições mais importantes pra mim, foi Atlanta, e agora em Sydney.

Em Atlanta eu já me sentia atleta, porque, pelo amadurecimento, né.

Você participa de alguma associação?

Sim.

E como é que é a sua participação na associação?

Olha, a gente tá com sérios problemas, mas a gente tá querendo sair, então, o

relacionamento nosso com a diretoria não é legal.

E o futuro, como atleta?

Pretendo ir em mais algumas Paraolimpíadas. Chegar no Brasil, ter um apoio legal

pra continuar treinando, trabalhando pra me sair bem na próxima. Eu não pretendo parar

tão cedo, quando não der mesmo é que eu quero parar, se Deus quiser vai ser assim.

E daí, você pretende fazer o que? Tem alguma idéia?

228

Page 240: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Agora eu tô pensando mais aqui, eu não quero pensar muito depois, o que é que eu

vou fazer, entendeu? Tô pensando aqui porque no momento tem que pensar aqui. Foi

muito difícil pra chegar aqui, foi um trabalho de longo prazo.

Como é que foi pra chegar aqui. Foi difícil?

Ah! Foi, foi. Foi muito treino, muito trabalho. A gente treinava debaixo de sol e de

chuva, nem todas as vezes estava com vontade de treinar, mas tem que treinar, porque eu

estou na seleção, então, vinha aquela vontade de treinar eu tenho que me sair bem -

muitas vezes digo - vou conseguir - , é difícil porque é cansativo o treinamento, tinha

dias que dava vontade de desistir, tinha dias que o técnico chegava e dizia: hoje vocês vão

fazer. .. , o treino é esse. Ô ... , a gente ficava assim ... - ah não. Aí dava vontade de jogar

isso tudo pro alto e parar, porque o cansaço é muito, muito mesmo.

Como é sua relação com as outras pessoas, como você concilia? Como é que você

organiza isso?

Olha, o relacionamento com a minha farnilia é muito bom, muito bom mesmo.

Estão sempre me apoiando, a minha mãe ficou uma semana antes de eu viajar, ficou na

(cidade) comigo, ajudando, e as minhas irmãs ligando o tempo todo, dizendo boa sorte.

E a relação com a sua filha?

Também é ótima. É minha torcedora número um. Você vai ver só na competição,

ela vai estar ali o tempo todo.

229

Page 241: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

E7

Como é seu dia-a-dia?

Quando me acordo tomo banho, escovo os dentes, tomo café e treino.

Vai pro treino de manhã?

De manhã, às I O horas, todos os dias. Das I O às 12 e de 2 às 5 da tarde.

Sábado e domingo faz o que?

Sábado treino também, e domingo é só diversão. Namorar- esse negócio é bom

demais- namorar e trabalhar demais em dia de domingo.

Por quê?

Porque tem que lavar roupa, arrumar a casa, deixar tudo organizado pra segunda­

feira já começar o treino de novo.

Você mora sozinha?

Não. Com minha mãe e com um batalhão de gente ... deixa eu contar ... é mnita

gente ... 14 pessoas.

Você praticava esporte antes do acidente?

Não.

Quanto tempo faz que você sofreu acidente?

Em 90. Faz I O anos.

Você começou a praticar esporte em que ano?

97.

230

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Como é que você começou?

Meu técnico (nome dele), ele ia passando lá na frente da minha casa, e me

convidou. Até fiquei com medo pensando que era um tarado, que esses tarado nunca é

santo, né, aí eu fiquei com medo, ele pegou e me entregou o endereço da associação, aí

fui a primeira vez, não gostei muito né. Arremessando peso, não gostei muito não, aí

afastei um pouquinho, umas duas semanas depois, daí voltei de novo, quando voltei pra

ficar, em 97.

Você começou no atletismo?

Mandaram eu escolher. Eu escolhi este mesmo. Natação não é comigo não, quando

entro na água é pra morrer mesmo, não sei nadar.

Como é ser atleta representando o Brasil. O que significa pra você?

Significa tudo. Minha responsabilidade é muito grande. Eu tô aqu~ não quero sair

daqui sem medalha não, de jeito nenhum. Tenho que levar minha medalha de todo jeito.

É a primeira vez que você participa de Paraolimpíada?

Primeira.

Como é que foi pra chegar aqui nessa Paraolimpíada?

Foi fácil. Eu acho que consegui esta minha vaga pra vír pra Sydney desde o Pau­

Americano, que eu bati o recorde mundial no lançamento de disco que eu bati o recorde.

O pessoal disse que minha vaga já estava garantida desde o Pau-Americano. Eu não tinha

certeza não, o pessoal é que dizia.

E o Paradesportivo, foi só pra confirmar então?

Só pra confirmar.

231

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Você tem técnico ou técnica?

Técnico.

Como é que é seu relacionamento com ele?

Maravilhoso. Ele é pai, amigo, irmão, é tudo pra mim.

Você tem patrocínio?

Tenho uma ajuda de custo do Bingo ... e quando eu estava saindo agora, um dia

antes de vir pra cá pra Sydney, fechei um patrocínio do ... não consigo lembrar o nome ...

E esses dois patrocínios te ajudam?

Me ajudam muito. O primeiro que me ajudou foi o Bingo ... , me deu uma grande

ajuda, e agora eu fechei este patrocínio quando vinha pra cá.

Quais são as sua dificuldades como atleta?

Não tenho dificuldade não.

Acesso pra chegar no treino?

Não. Só pego um ônibus só, fica perto da minha casa, não tenho dificuldade

nenhuma.

Você participa de alguma associação?

Sim.

E como é que é a sua participação lá na associação?

Melhor impossível. Treíno, converso. Vou em reunião.

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Dá sua opinião?

Dou sempre quando é na parte de atletismo, sim.

E os outros assuntos?

Não.

Quando é que você se sentiu atleta pela primeira vez?

No Pau-Americano, no México.

Como é que foi, o que você sentiu?

Eu senti que eu era atleta quando ia batendo o recorde. Antes disso eu não me

sentia atleta não, eu ia competir porque estava sem fazer nada mesmo, mas não me sentia

atleta não. Agora me sinto uma grande atleta.

E o futuro como atleta de alto nível?

Penso mnita coisa. O que penso, em para o ano estudar, porque relaxei no meu

estudo depois que aconteceu aquilo comigo, fiquei sem sair de dentro de casa, fiquei sem

sair de casa, eu pensava que quando eu saísse o pessoal ia ficar me abusando, isso e

aquilo, fiquei dentro de casa praticamente dois anos. Em casa, sem sair de casa. Até pra ir

pro hospital eu tinha receio, mas eu ia sim. Aí deixei tudo, estudo, não liguei mais pra

nada, e agora vou retomar tudo isso para o ano. Estudar, fazer um bocado de coisa. Casar

não, casar ainda tá cedo.

E como atleta?

Vou continuar treinando pra Atenas claro.

Como é seu relacionamento com a sua família e outras pessoas?

Page 245: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Todo mundo me dá a maior força. Eu tinha um namorado, deixei ele porque não

me dava essa força no esporte. Deixei ele porque falou pra mim que eu não ia ser

convocada pra ir pra Sydney. Acabei porque tinha que acabar mesmo.

E8

Como é seu dia-a-dia?

De manhã eu faço corrida, depois eu venho pra casa.

Quanto você corre por dia?

Algumas vezes eu corro quatro milhas, outras vezes eu corro seis milhas, quando

está perto de uma corrida eu corro mais milhas, e depois vou pra casa, faço meus

exercícios e depois eu faço a modalidade X. Faço exercícios em casa ou a modalidade X e

depois vou pro Rio treinar.

Você treina todos os dias?

Todos os dias.

Quantas horas/dia você treina?

Quatro horas por dia.

Você praticava esporte antes do acidente?

Não.

Quantos anos você tinha quando você teve o acidente vascular?

11.

234

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Então você não praticava nada?

Só a Educação Física na escola.

E quando é que você começou a praticar o esporte?

Quando eu fui pros Estados Unidos.

Quando foi isso?

Pros Estados Unidos eu fui em 84.

Aí é que você começou a praticar esporte?

É.

E porque esta modalidade?

Porque a minha irmã pratica, e ela me incentivou a fazer um esporte pra eu ficar

bem, ficar melhor comigo mesma, praticar um esporte pra sair, pra ter alguma coisa pra

fazer, uma ... como eu posso te explicar ... uma coisa pra fazer na vida. Ela me incentivou

porque ela já fazia. E é isso.

Antes de fazer esta modalidade você fazia outro esporte?

Fazia corrida.

Onde você fazia corrida?

Fazia no Brasil mesmo. Era uma coisa assim, eu praticava não como competição,

só por correr. E fazia um pouco de natação também, só por praticar, só pela atividade

fisica.

235

Page 247: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Agora entendo, você tem um pouco de dificuldade da língua, de se expressar. Fala

pouco português?

Sim. Em minha casa fala pouco português.

Quando é que você se sentiu atleta pela primeira vez?

Foi em 96, que eu fui pra Atlanta - eu já tinha feito competições - mas a minha

primeira competição mesmo, que foi um sucesso maior, foi em Atlanta. E a maratona de

Nova York, é claro.

Você aínda corre a maratona de Nova York? Você já fez 10 maratonas de Nova

York?

Essa vai ser a 11.

E seus resultados na maratona de Nova York, como é que têm sido?

A minha primeira maratona foi em 87, fiz com 14 horas, e foi um sucesso, foi a

minha primeira maratona, foi uma coisa maravilhosa porque eu nunca tinha feito uma

coisa ... só um ... assim ... só as pessoas fisicas fazem esporte assim ... e depois que eu fiquei

doente tanta coisa aconteceu, tanta ... um monte de situações aconteceraru, e eu fiz ... foi

uma emoção. A última eu fiz em 15 horas, fiz com a minha irmã, foi uma sensação ... de

repórteres tudo ... foi uma coisa espetacular. Só a pessoa consegue descrever a emoção do

começo até o finaL Isso ínclui também a emoção que só a pessoa mesmo pode descrever.

Eu não sei como falar ...

*Alguém começa a falar por perto, ajudá-la a descrever essas sensações.

Então foi na maratona que começou tudo. Você ser atleta.

236

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Foi o começo de uma vida, e o começo de uma nova ... como se diz assim ... uma

pessoa que mais que as outras pessoas ... um desafio. Que é um desafio que a pessoa vai e

chega até o final e agora o que a pessoa tem dentro dela é tão tamanho, tão espetacular

que a pessoa se sente um vencedor, uma pessoa mais alto que você possa descrever ... na

vida de um atleta, na vida de uma pessoa que chegou até aquele ponto, e agora é uma

pessoa nova, uma pessoa maravilhosa que pode fazer tudo, tudo, tudo na vida. Tudo, tudo,

tudo que ela pode fazer porque ela conseguiu essa meta, essa coisa... alcançar seu

objetivo, uma coisa maravilhosa. Me emociona. Tão maravilhoso, tão espetacular que é o

esporte, que é a corrida, natação. A pessoa deficiente chega naquela meta, naquele ponto

que tudo que ela consegue nessa vida, ela conseguiu a meta dela, a coisa que ela mais

quena.

Como é que você se vê como atleta?

Uma pessoa grande, uma pessoa que pode fazer este esporte, que conseguiu aquela

meta e isso tudo que eu falei pra você.

E representando o Brasil, como é?

É a coisa mais maravilhosa. Coisa mais sensacional representando o país. A

emoção vibra até as nuvens.

Qual foi sua primeira Paraolimpíada?

Em96.

E pra chegar nesta Paraolimpíada, em Sydney, como é que foi essa caminhada?

Foi uma caminhada difícil, mas uma caminhada maravilhosa. A última competição

minha foi na Espanha, pra fazer o ranking mundial, fui bem, fui muito bem, e consegui

chegar na meta minha, que é a coisa mais emocionante e maravilhosa do mundo - estar

aqui -e agora vou pra meta maior que é conseguir fazer o meu melhor e mostrar.

237

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Você tem um técnico ou uma técnica?

Um técnico.

Como é seu relacionamento com ele?

O meu relacionamento é muito bo~ e nós nos damos muito be~ a gente ... é

tranqüilo ... confiança ... segurança.

Você tem patrocínio?

Não.

Como você se mantém?

É dificil porque a gente sem patrocínio ... meu patrocínio é minha família. Eu

preciso muito de patrocínio, porque é um esporte que a pessoa ... é um esporte caro, e a

pessoa precisa patrocínio pra manter e poder fazer o esporte.

Você quebra muito florete, muita espada?

Quebra

Você participa de alguma associação nos Estados Unidos?

Participo. Pra competir eu tenho que ser membro da (ela diz o nome da associação

em inglês).

E sua participação é ativa? Você vai às reuniões? Você discute, você conversa ou é

só membro?

Só membro.

238

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Como é a relação que você tem com outros aspectos da sua vida? A sua família, as

pessoas que você se relaciona, outras que você faz outro tipo de atividade. A relação da

atleta com esse pessoal todo?

Muito boa. Uma relação ... Eu sócia do Clube de Corrida e sou sócia do (?) onde

faço a modalidade (X). Uma relação ótima.

Você tem outras atividades além de treinar? Lazer?

Meu lazer é treino. É minha paixão.

Você não faz outras coisas?

Saio, vou ao cinema, faço outras coisas, mas a coisa que eu mais gosto é meu

treino mesmo.

Quando é que vai ser a maratona, a próxima?

V ai ser em novembro, dia 5, a maratona de Nova Y ork.

Pra terminar: e o futuro da atleta. O que você pensa?

Vai ser a minha meta aqui, a maratona de Nova York e Atenas. A maratona de

Nova Y ork é uma paixão todo ano, mas Atenas é minha paixão maior.

E9

Conta pra mim como é que é seu dia-a-dia. O que você faz?

Meu dia-a-dia é: eu treino de manhã, à tarde eu estudo um pouco e à noite vou pra

faculdade, de segunda a sexta, sábado eu treino de manhã e tenho aula à tarde, aí de

domingo, domingo eu faço qualquer coisa, saio por aí, me divertir um pouquinho.

239

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Com quem?

Ah! Eu vou pra chácara do meu tio, ou senão saio com meus amigos, a gente

sempre tá saindo em dia de domingo.

E como é que você começou no esporte?

Eu comecei com três anos e meio, na natação mesmo, eu só fiz natação, eu não fiz

outro esporte.

Não fez outro? Não experimentou nenhuma ginástica?

Eu fazia dança também. Fazia dança rítmica, mas assim o que mais me destaquei

foi na natação. Mas também gosto de dançar, adoro dançar.

Como é que você se vê como atleta atualmente?

Eu acho que tô na melhor fase da minha vida agora, né! Agora que eu consegui

chegar até aqui, tudo, pra mim eu acho que tô no meu melhor até agora do que eu vinha

fazendo, né?

E quando é que você sentiu que você era atleta pela primeira vez?

Foi depois que eu comecei a competir. Eu comecei a competir em 93, nem sabia de

nada, eu era a maior inexperiente. A partir daí, em 95, quando eu fui pra Madri, aí que eu

comecei a perceber que eu podia fazer muito mais. Acho que foi 95, por aí.

E como é que você se vê como atleta representando o Brasil?

Pra mim é legal. Você tá representando um país, você tá numa competição onde

tem várias pessoas de países diferentes. Pra mim é uma coisa boa, pra mim é importante

também né, porque a gente treina pra ter um objetivo.

240

Page 252: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

Qual foi a primeira Paraolimpíada que você participou?

A minha primeira foi em Atlanta, em 96.

Como é que foi pra chegar nessa Para olimpíada?

A gente começou depois de Atlanta, já fazer um treinamento mais ou menos

voltado pra tentar chegar nesta Paraolimpíada, tudo específico, desde 96, depois que a

gente voltou de Atlantllo porque Atlanta foi uma coisa assim, falaram assim, você vai, um

mês antes, né, então Atlanta foi meio de surpresllo agora não, agora a gente veio mais

preparado.

Como é que você foi selecionada pra participar desta Paraolimpíada?

Parece que foi os resultados do México, mas eu não tenho certezllo isso daí é uma

coisa que eu não· tenho muito acesso.

Você não sabe quando definiram a sua vinda pra cá? Acha que é o México?

Então, é o que o pessoal estava comentando, mas realmente eu não sei. Fica meio

complicado porque eles fazem meio fechado o negócio, a gente fica sabendo só depois,

mas a gente não sabe como eles selecionaram, a gente não sabe.

Você tem técnico ou técnica?

Na verdade, eu sempre treinei com o pessoal normal lá no Tênis Club da cidade

(X), só fiquei esses dois meses ... , eu tô treinando com o ( ... ) que veio comigo pra cá, pelo

fato que ele ía ficar comigo nesse um mês, né, mas eu sempre treinei com o pessoal

normal desde pequena.

É técnico ou técnica?

Técnica.

241

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E como é que é seu relacionamento com ela?

É bom, é normal, ela trata todo mundo igual lá.

E como é que você diz que desde Atlanta é um treinamento específico. Quem é que

desenhou esse treinamento pra você?

É porque é assim ... normalmente na natação a gente faz assim ... a gente tem os

objetivos ... mas a gente faz assim, por exemplo, não é que desde 96 a gente tá treinando o

próprio ... cada ano a gente faz um treinamento desde o começo, por exemplo, esse ano

tem o campeonato mais importante, por exemplo: 99 teve o México, então quer dizer, o

treinamento voltado pro México, mas já contando pra fazer o melhor pra tentar ...

E é essa técnica que faz isso? Estabelece? Faz o planejamento do treinamento pra

você?

Então ... é mais ou menos ... porque é meio complicado o negócio ... porque assim ...

nosso calendário é muito ... a gente ... assim ... ele não tem uma coisa estabelecida, certinha,

por exemplo: você vai em tal dia, é assim, ela monta mais ou menos, né, mas não tem

como montar ... assim ... falar ... tal dia a gente tá em tal lugar, que é bem ... sabe ... o pessoal

fala: Vai, de repente: Não vai mais. Meio complicado o negócio.

Você recebe patrocínio?

Esse ano só que eu estou com o patrocínio do Vasco, através do comitê.

E os outros anos, como é que você se manteve?

Os outros anos é paitrocinio mesmo.

Além do "paitrocinio", quais as outras díficuldades que você tem como atleta?

Às vezes a gente não tem uma estrutura legal pra gente poder fazer um treinamento

certo. Que nem esse negócio do calendário que eu estava falando pra você, não dá pra

242

Page 254: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

gente montar certinho, que o certo seria no começo do ano ter um calendário, vai ter tais

competições em tais épocas, pra fazer o treinamento certo, né. Isso também é uma coisa

ruim, que pra gente pelo menos ...

E você como atleta, como é seu relacionamento com as outras coisas que você faz.

Como estudante, como ftlha, como é isso?

Assim ... eu acho que me relaciono bem, eu sei dividir bastante coisa. Quando é pra

estudar... estudar, quando é pra treinar, eu sempre em cada hora eu tô pensando no

momento que eu tô fazendo, né? Eu acho ... também não sei.

O que significa pra você ser atleta de esporte adaptado?

Olha, pra mim é assim, pra gente mostrar pras pessoas que a gente é capaz de fazer

alguma coisa. As pessoas acham que por a gente ser deficiente a gente não faz nada. Ta

largado lá. Isso ai é uma forma de falar pra eles, que assim ... né.

Você participa de alguma associação?

Lá em (cidade) eu participo no (associação) lá de (cidade).

E como é que é a sua participação?

Eu não apareço muito. É assim, ela funciona de manhã essa associação, e de

manhã, justo de manhã eu tô treinando. Aí é meio complicado. Eu apareço de vez em

quando.

E têm reuniões, assembléias, você vai? Conversa? Fala?

Aí, eu vou raramente lá, viu, porque é meio complicado que sempre eles marcam

das oito e meia às dez por exemplo, o meu treino começa às sete e meia e vai até as dez e

meia. Assim, mas às vezes em festa eu vou, numa boa, às vezes passeios que eles fazem, a

gente sempre tá ...

243

Page 255: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

E o futuro como atleta de alto nível, como é que é isso? Como você está pensando?

Primeiro vamos ver como é que eu vou me sair aqui, né. Se eu ganhar uma

medalha, eu pretendo ganhar uma medalha, mas eu não sei ainda, eu queria continuar

nadando, mas depende da situação como ficar daqui pra frente.

Qual situação?

Financeira. Porque a gente gasta muito com remédios, comida, que tem que ser

tudo controlado, né. Eu pretendo continuar nadando até quando der, mas eu não sei.

Como atleta de alto nível é que você não sabe, nadar você vai continuar, é isso?

É assim, eu não gostaria de parar de nadar, mas eu ... é o que eu falei pra você,

depende se eu conseguir um patrocíuio, daí dá pra continuar treinando firme, mas se não

conseguir nada ... eu realmente não sei ainda, entendeu? Eu tô meio indecisa ainda.

ElO

Como é que a sua vida no dia-a-dia?

É uma vida normal. É você ter a vida independente, porque eu trabalho, eu moro

sozinha, faço esporte, e tenho uma vida normal como qualquer outra pessoa.

Seu dia como é que é?

Acordo de manhã, vou trabalhar, volto, almoço, descanso, vou pro treino, volto à

noite, vou namorar, levo uma vida normal, minha vida é supercorrida.

244

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Você praticava esporte antes do acidente?

Não. Meu acidente foi aos 7 anos, urna pessoa estava embriagada, eu tava na

calçada brincando, ele jogou o carro em cima de mim e da minha amiga de inf'ancia, ela

faleceu, e eu tive que amputar as duas pernas. Eu não fazia esportes, eu fazia o que: eu era

baliza em 7 de setembro, eu corria, e eu acho que pelo caso eu já nasci pra ser atleta.

Como é que você começou?

Eu comecei em 1981, quando conheci urna associação e antes de chegar a praticar

esporte, no colégio onde eu estudava, um colégio de freiras, era interna, e ali eu brincava

muito, eu corria, eu jogava tênis de mesa, eu competia com as pessoas normais no tênis de

mesa, e foi urna modalidade que da qual eu comecei, eu ia a lazer mesmo, pra beber, e

ficava a tarde aos domingos e sábados, aí jogando tênis de mesa com as pessoas, e quando

eu realmente me descobri no esporte, foi em 1981, quando eu participei da minha

primeira competição a nível nacional em (cidade), e lá eu fazia o que: tênis de mesa,

natação e atletismo e bocha. E é isso, quando eu trouxe pela primeira vez sete medalhas

pra (cidade), pro (estado), e daí foi quando eu vi realmente crescer no esporte, durante

sete anos. Eu perdi em 1990.

Você fazia outras modalidades. Como é que começou no atletismo?

92, quando eu vim pra Barcelona. Aliás foi a partir de 92 que eu deixei de fazer as

outras modalidades e fiquei na especialidade só do atletismo, porque atletismo era a

modalidade da qual me dava condição de viajar, a nível de competir, não de viajar, mas

de competições internacionaís. Então foi quando eu perdi o título de tênis de mesa, em

1990, pra urna menina que era de Curitiba, a Ana Luiza, e fiquei só no atletismo.

O que significa pra você estar no esporte adaptado?

Acho que significa tudo, acho que realmente é você se integrar, é você se adaptar, é

urna sociabilização, eu acho que o esporte ao meu ver é tudo. Porque a pessoa, ela é

245

Page 257: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

portadora de deficiência, e o esporte pro portador de deficiência ajuda na nossa formação,

na nossa independência, pra você ter habilidade então ...

Fala pra gente como é o seu relacionamento com seu técnico?

Inclusive até, essa competição houve uma mudança muito grande que eu decidi

direcionar meu técnico, e tô aí no mundo, atualmente eu tô me dando uma chance na

minha modalidade, de muito tempo que ele foi meu técnico, agora e essa Paraolimpíada e

Atlanta - ele era meu técnico ainda - e o ano passado, o Pau-Americano, o mundial na

Nova Zelândia, ele tava sendo meu técnico de aparência, então a partir do momento que

você teve teu técnico, você já é uma atleta de grande experiência como eu sou, e

ultimamente ele tava treinando outros atletas, aí não tava suportando com os meus

treinamentos, então eu decidi agora já em Sydney, ele é demais de meu amigo, adoro ele,

mas infelizmente não dá mais pra ele continuar como meu técnico, e eu tô aí com o

professor da (instituição), de (cidade), que é o( ... ) e o meu noivo que realmente vou dar

uma chance pros meu treinamentos.

Agora conta pra gente como é o seu relacionamento assim: você é atleta, você

trabalha, você tem sua casa, como é que é essa divisão aí, atleta e os outros papéis que

você tem?

Toma-se dificil, você já tem uma parte das obrigações e ser atleta também, você

tem que ter uma responsabilidade, então eu faço da melhor forma possível, eu tenho que

driblar todo o meu horário de trabalho, de dona de casa, de meus treinamentos, de meu

lazer, pra tudo isso é realmente você driblar os momentos e ... do qual você possa atender

né, tudo aquilo do meu dia-a-dia.

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Page 258: Cidade Ruth Eugenia an Ar Ante

ANEX02

Roteiro geral

1. Como você entrou para o esporte ?/Quando você se interessou por esporte?

2. Como você começou no esporte adaptado? (a história)

3. Como se tomou atleta? Teve opções dentro das modalidades? Como você se vê como

atleta?

4. Como você se sente representando o país no esporte?

5. Como foi a caminhada para chegar a esta Paraolimpíada? Como tem sido (como você

avalia) sua participação nas competições?

6. Como é o seu treino? Horários, freqüência, etc.

7. Como é o seu relacionamento com o técnico?

8. Recebe apoio/patrocínio? O que faz para se manter?

9. Dificuldades como atleta.

1 O. Como é a sua participação na sua Associação?

11. O que significa o esporte adaptado para você? (lazer, saúde, socialização, preencher o

tempo)

12. Você é casada? Tem filhos?

13. Trabalha? Estuda?

14. Como é sua vida? (no dia-a-dia/rotina)

15. E o futuro?

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ENSAIOS PARA OLÍMPICOS - SYDNEY 2000

Este trabalho, apresentado no IV Congresso Brasileiro de Atividade Motora Adaptada em 2001, mostra imagens capturadas durante os Jogos Paraolímpicos realizados em Sydney, Austrália. As fotografias que são mostradas fazem parte de um ensaio composto de 750 fotos em preto e branco das quais foram selecionadas aproximadamente 60 para este registro. As fotos selecionadas foram tiradas entre os dias 18 e 29 de outubro e procuramos mostrar dentro do possível a cidade, os jogos, algumas das modalídades, os atletas, a torcida e o parque paraolímpico. As fotos foram trabalhadas em CD com trílh? · · ' músicas veiculada

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