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A CONTRIBUIÇÃO DA ESCRITA FEMININA, DE LAURA RESTREPO, PARA A FORMAÇÃO DE UMA HISTÓRIA DA LITERATURA NA AMÉRICA LATINA Tiago Vinícius Cidade (UCS) Cecil Jeanine Albert Zinani (UCS) A cultura nos fornece um conjunto de saberes textualizados. Quando lemos, interpretamos com base nesses conhecimentos. De acordo com Roberto Reis (1992), no interior de qualquer formação cultural, as camadas dirigentes transformam formas discursivas em ideologia para assegurar o seu domínio social. Segundo Reis (1992:67) “a escrita sempre foi uma forma de poder”. Dessa forma, o conceito de cânon implica um princípio de seleção e, assim, não pode se desvincular da questão do poder. A partir dessas afirmações, o autor assevera que o corpus canônico da literatura encontra-se protegido em uma redoma de a-historicidade, uma vez que foi uma comissão, supostamente de alto nível, que elegeu tais obras e autores, em um processo de escolha e também de exclusão: Ao olharmos para as obras canônicas da literatura ocidental percebemos de imediato a exclusão de diversos grupos sociais, étnicos e sexuais do cânon literário [...] o cânon está impregnado dos pilares básicos que sustentam o edifício do saber ocidental, tais como o patriarcalismo, o arianismo, a moral cristã (REIS, 1992:72). Reis (1992) ressalva ainda a esmagadora presença no cânone ocidental de autores europeus, brancos, do sexo masculino e originários das elites. Assim sendo, o sistema canônico tem sido usado para recalcar os escritos dos segmentos culturalmente marginalizados e politicamente reprimidos, como mulheres, etnias não-brancas, minorias sexuais e culturas do chamado Terceiro Mundo (REIS, 1992:73). Para o autor, é importante que se tenha em mente a mecânica de produção, circulação e consumo do texto, e, dentro disto, questionar o estatuto do autor, do crítico e do leitor enquanto autoridades e receptores. A história da literatura, de acordo com José Luís Jobim (1996), nos mostra que, no decorrer da história da civilização ocidental, houve sucessivas e diferentes representações do que chamamos literatura, dependendo do momento, do ponto de vista ou do lugar a partir do qual se fala. Segundo Jobim (1996:67), “uma parte do problema 30

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Literatura de Autoria Feminina

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Page 1: CIDADE Et ZINANI - A Contribuição Da Escrita Feminina, De Laura Restrepo, Para a Formação de Uma História Da Literatura Na América Latina

A CONTRIBUIÇÃO DA ESCRITA FEMININA, DE LAURA RESTREPO, PARA

A FORMAÇÃO DE UMA HISTÓRIA DA LITERATURA

NA AMÉRICA LATINA

Tiago Vinícius Cidade (UCS)

Cecil Jeanine Albert Zinani (UCS)

A cultura nos fornece um conjunto de saberes textualizados. Quando lemos,

interpretamos com base nesses conhecimentos. De acordo com Roberto Reis (1992), no

interior de qualquer formação cultural, as camadas dirigentes transformam formas

discursivas em ideologia para assegurar o seu domínio social. Segundo Reis (1992:67)

“a escrita sempre foi uma forma de poder”. Dessa forma, o conceito de cânon implica

um princípio de seleção e, assim, não pode se desvincular da questão do poder. A partir

dessas afirmações, o autor assevera que o corpus canônico da literatura encontra-se

protegido em uma redoma de a-historicidade, uma vez que foi uma comissão,

supostamente de alto nível, que elegeu tais obras e autores, em um processo de escolha

e também de exclusão:

Ao olharmos para as obras canônicas da literatura ocidental percebemos de imediato a exclusão de diversos grupos sociais, étnicos e sexuais do cânon literário [...] o cânon está impregnado dos pilares básicos que sustentam o edifício do saber ocidental, tais como o patriarcalismo, o arianismo, a moral cristã (REIS, 1992:72).

Reis (1992) ressalva ainda a esmagadora presença no cânone ocidental de

autores europeus, brancos, do sexo masculino e originários das elites. Assim sendo, o

sistema canônico tem sido usado para recalcar os escritos dos segmentos culturalmente

marginalizados e politicamente reprimidos, como mulheres, etnias não-brancas,

minorias sexuais e culturas do chamado Terceiro Mundo (REIS, 1992:73). Para o autor,

é importante que se tenha em mente a mecânica de produção, circulação e consumo do

texto, e, dentro disto, questionar o estatuto do autor, do crítico e do leitor enquanto

autoridades e receptores.

A história da literatura, de acordo com José Luís Jobim (1996), nos mostra

que, no decorrer da história da civilização ocidental, houve sucessivas e diferentes

representações do que chamamos literatura, dependendo do momento, do ponto de vista

ou do lugar a partir do qual se fala. Segundo Jobim (1996:67), “uma parte do problema

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da história literária consistiria em investigar quais foram as representações que se

construíram para este termo”. Para o autor, a história da literatura ultrapassa o

pressuposto de que se constitui de um determinado universo de autores e obras

consagrados como clássicos pelo cânon que herdamos. Assim, se partimos do

pressuposto de que é tarefa do historiador literário determinar seu objeto, teremos um

resultado diferente (JOBIM, 1996:67).

Jobim (1996) explica que, quando o historiador se volta para o que o passado

considerou literatura, confronta-se com sua perspectiva presente. Dessa forma, pode-se

observar uma certa ordem em cada período literário, a partir da qual se estabelecem,

com maior ou menor rigidez, as fronteiras com o literário: “Cada época tem seu quadro

de referência para identificar a literatura, tem suas normas estéticas, a partir das quais

efetua julgamentos” (JOBIM, 1996:70).

Wolfgang Beutin (1986) na introdução de História da literatura alemã,

explica que a literatura, enquanto produto da história geral e simultaneamente fator

histórico atuante, acumula, nos seus textos, experiência histórica, não como simples

documento de algo que existiu, mas como um meio de se relacionar com as experiências

de leitores atuais. Para ele, a experiência histórica de um autor e de seu tempo, contida

nos textos literários, não possui significado para a construção de uma história da

literatura, “pelo contrário, ela só se torna realmente significante na relação com um

sujeito leitor e com suas experiências específicas, enraizadas no seu próprio presente”

(BEAUTIN, 1986:113). Dessa forma, segundo o autor, o objeto desta história literária

só pode ser aquilo que se manifesta diretamente no produto estético. Isso acaba nos

transportando para o território da recepção.

Hans Robert Jauss (1994) considera que a qualidade e a categoria de uma

obra literária é resultado dos critérios da recepção, do efeito produzido pela obra e sua

fama junto à posteridade, e não das condições históricas ou biográficas de sua

concepção. Segundo ele, a relação entre literatura e leitor possui tanto implicações

estéticas quanto históricas:

A implicação estética reside no fato de já a recepção primária de uma obra pelo leitor encerrar uma avaliação de seu valor estético, pela

comparação com outras obras já lidas. A implicação histórica manifesta-se na possibilidade de, numa cadeia de recepções, a compreensão dos primeiros leitores ter continuidade e enriquecer-se de geração em geração, decidindo, assim, o próprio significado

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histórico de uma obra e tornando visível sua qualidade estética (JAUSS, 1994:23).

O contexto histórico no qual uma obra aparece não constitui uma sequência

factual de acontecimentos existentes independente de um observador. Jauss (1994)

ressalta que a história da literatura é um processo de recepção e produção estética que se

realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor,

que se faz produtor, e do crítico que sobre eles reflete. Assim sendo, diferentemente do

acontecimento político, o literário não possui consequências, que seguem existindo

sozinhas e das quais gerações posteriores não poderão escapar.

Jauss (1994:26) explica que o texto

só logra seguir produzindo seu efeito na medida em que sua recepção se estenda pelas gerações futuras ou seja por elas retomada – na medida, pois, em que haja leitores que novamente se apropriem da

obra passada, ou autores que desejem imitá-la, sobrepujá-la ou refutá-la. A literatura como acontecimento cumpre-se primordialmente no horizonte de expectativa dos leitores, críticos e autores, seus contemporâneos e pósteros, ao experienciar a obra. Da objetivação ou não desse horizonte de expectativa dependerá, pois, a possibilidade de compreender e apresentar a história da literatura em sua historicidade própria.

Jauss, segundo Terry Eagleton (1994), situa a obra literária em um horizonte

histórico, no contexto dos significados culturais dentro dos quais ela foi produzida, para.

em seguida, explorar as relações variáveis entre ela e os horizontes, também variáveis,

dos seus leitores históricos. O objetivo de Jauss, de acordo com Eagleton, é produzir um

novo tipo de história literária centralizada não nos autores, influências e tendências

literárias, mas na literatura tal como definida e interpretada pelos seus vários momentos

de recepção histórica. “As obras literárias, em si mesmas, não permanecem constantes,

enquanto as suas interpretações se modificam; os próprios textos e tradições literárias

sofrem modificações ativas de acordo com os vários horizontes históricos nos quais elas

são recebidas” (EAGLETON, 1994:89).

O fato de sempre interpretarmos as obras literárias à luz dos nossos próprios

interesses, segundo Eagleton (1994:13), poderia ser uma das razões pelas quais certas

obras literárias parecem conservar seu valor através dos séculos: “Pode acontecer, é

claro, que ainda conservemos muitas das preocupações inerentes à da própria obra, mas

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pode ocorrer também que não estejamos valorizando exatamente a „mesma‟ obra,

embora assim nos pareça”.

Eagleton (1994:13) ressalta que

todas as obras literárias, em outras palavras, são “reescritas”, mesmo que inconscientemente pelas sociedades que as lêem; na verdade, não há releitura de uma obra que não seja também uma “reescritura”. Nenhuma obra e nenhuma avaliação atual dela, pode ser simplesmente estendida a novos grupos de pessoas sem que, nesse processo, sofra

modificações, talvez quase imperceptíveis.

A LITERATURA LATINO-AMERICANA

O processo literário na América Latina sofreu forte influência da colonização

europeia. De acordo com Eduardo Coutinho (2003), a construção de cânones literários

nacionais na América Latina sempre esteve vinculada ao processo de formação e

constituição das nações, definido por traços que diferem os países latino-americanos uns

dos outros e de suas matrizes europeias. Segundo o autor, “as literaturas nacionais são

ao mesmo tempo produtos e constituintes parciais da nação e de seu sentido coletivo de

identidade nacional. Assim, cada literatura nacional irá constituir-se à diferença de outra

ou outras, consolidando-se num cânone” (COUTINHO, 2003:60).

A independência política da maioria dos países latino-americanos, no

começo do século XIX, motivou uma onda patriótica no meio intelectual; tornar a

literatura nacional distinta do que se produzia na Europa se tornou uma missão para os

escritores. O Romantismo, dominante na Europa, “incentivou na América Latina o culto

aos elementos locais, que passaram então a dominar a produção literária, desde a fauna

e a flora tropicais até a configuração do tipo indígena como símbolo da nova terra”

(COUTINHO, 2003:62). Um século depois, surgem os movimentos de vanguarda da

América Latina, oriundos da assimilação de diferentes correntes europeias, mesclada à

leitura crítica da própria tradição latino-americana, o que resultou em um discurso

literário afirmativo e crítico, constituindo uma força de resistência cultural contra o

poder hegemônico do imperialismo.

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Coutinho (2003) explica que as contradições presentes na construção das

literaturas nacionais na América Latina se tornaram evidentes; apesar de marcar as

diferenças em cada nação, tinham como base referenciais europeus, que incluíam obras

produzidas pela elite intelectual, educada no padrão europeu, excluindo dessa forma,

produções fora desse modelo. Isso mudou a visão corrente da questão. Para ele, essa

abertura do cânone foi importante para a América Latina, pois tornou audíveis vozes

silenciadas há séculos, como as de comunidades indígenas, africanas e principalmente a

voz da mulher:

O cânone [...] não é uma entidade fixa, natural, mas uma construção

como qualquer outra, ideologicamente marcada e sujeita a interesses de ordem eminentemente política; desse modo, ele é mutável e inteiramente dependente do olhar que lhe dá forma. Ao assumir este olhar, os intelectuais latino-americanos passaram a enfocar a questão por uma perspectiva múltipla, e o resultado foi surpreendente: toda aquela ampla produção até então excluída da órbita da literatura passou agora a ser levada em conta, tornando-se objeto de estudo, inclusive no meio acadêmico. (COUTINHO, 2003:65-66)

A literatura, juntamente com a história, contribui para a construção de uma

identidade cultural, é o que ressalta Cecil Jeanine Albert Zinani (2010). Segundo a

autora, desde a primeira metade do século XX, a ditadura, na América Latina, foi

utilizada por escritores para discutir, um fato histórico, possibilitando a visão a partir de

outra margem.

Zinani (2010:41) explica que

quando houver o não comprometimento do artista com a história oficial, o escritor terá a liberdade necessária para construir uma espécie de micro-história, em que é valorizado o diminuto, o pessoal, o cotidiano, o marginal, temas em geral, desconsiderados pela historiografia oficial.

Mas não foram somente os escritores que beberam na fonte da ditadura na

América Latina. A partir da década de 1980, escritoras utilizaram a ditadura como tema

literário. De acordo com Zinani (2010), escritoras latino-americanas exploram essa

vertente em obras relevantes nas quais discutem essa realidade que perpassou o

continente durante décadas. Assuntos como ditadura, segundo a autora,

tradicionalmente são considerados masculinos, dada a feição épica que os caracteriza.

No entanto, Zinani (2010:46) ressalta que “no momento em que a escritura feminina

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atingiu um desenvolvimento significativo, esses temas foram apropriados pelas

escritoras que os abordaram a partir de outras matrizes, revelando, através da ficção, a

valorização da participação das mulheres na constituição dessa nova história e o

impacto dos grandes acontecimentos sobre o dia a dia das personagens”.

A ESCRITA DA MULHER

Elaine Showalter (1994), uma das pioneiras nos estudos da crítica feminista,

afirma que a literatura feita por mulheres ainda está vagando pelo que denomina

“território selvagem”, o qual tem sido de domínio exclusivamente masculino, num

exercício que procura responder às questões propostas a partir de uma tradição

patriarcal, na qual está inscrito um sujeito androcêntrico, cuja ideologia interdita a

aceitação do discurso do outro, nesse caso, do discurso marginalizado da mulher. Uma

crítica de feição feminista, refletindo sobre a especificidade do feminino, procura

responder a perguntas diferentes sucitadas pelo texto, agora feito por mulheres, tanto

autoras quanto leitoras. Assim, a possibilidade de emancipação intelectual da mulher

passa pela reorientação da história e da interpretação literária, tanto revisando a

organização do cânone como verificando as vozes excluídas.

Uma das modalidades de crítica centralizada na figura feminina, ressaltada por

Showalter (1994:32) diz respeito à mulher como escritora, chamada ginocrítica, que

procura investigar os aspectos pertinentes à produção literária, já que apresenta

preocupação em identificar especificidades dos escritos das mulheres. Uma das formas

de verificar essa modalidade consiste em reconhecer, além da caracterização da

personagem feminina e das estruturas narrativas que determinam seu destino, o papel de

narrador como instância enunciativa.

Essa modalidade de crítica feminista tem como fundamento a escrita marcada

pelo texto, na qual, a anatomia é textualidade. Afirmação que, segundo Showalter

(1994:32), “arrisca um retorno ao essencialismo cru, às teorias fálica e ovariana da arte,

que oprimiram a mulher no passado”. Showalter (1994) explica que a crítica feminista

rejeita a atribuição de inferioridade biológica literal, mas que alguns teóricos aceitam as

implicações metafóricas dessa diferença, estruturando sua análise em metáforas de

paternidade literária, como o caso de Gilbert e Gubar (apud SHOWALTER, 1994:32)

que ressaltam que “o autor do texto é um pai, um progenitor, um procriador, um

patriarca estético, cuja caneta é um instrumento de poder generativo, assim como o

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pênis”. Dessa forma, sugerem que as mulheres carecem de autoridade fálica. Showalter

(1994) ressalta que essa diferença tem sido usada como pretexto para „justificar‟ o poder

total de um sexo sobre o outro, mas que o estudo da biocrítica feminista é importante,

pois “As ideias a respeito do corpo são fundamentais para que se compreenda como as

mulheres conceptualizam sua situação na sociedade; mas não pode haver qualquer

expressão do corpo que não seja mediada pelas estruturas linguísticas, sociais e

literárias” (SHOWALTER in HOLLANDA, 1994:35).

Showalter (1994) afirma que uma teoria baseada em um modelo da cultura da

mulher pode proporcionar uma maneira de falar sobre a especificidade e a diferença dos

escritos femininos mais completa e satisfatória que as teorias baseadas na biologia, na

linguística ou na psicanálise, uma vez que “incorpora ideias a respeito do corpo, da

linguagem e da psique da mulher, mas as interpreta em relação aos contextos sociais nos

quais elas ocorrem”. (p. 44) Segundo a autora, uma teoria cultural reconhece a

existência de importantes diferenças entre as mulheres como escritoras: classe, raça,

nacionalidade e história, as quais são determinantes literários tão significativos quanto

gênero. Não obstante, a cultura das mulheres forma uma experiência coletiva dentro do

todo cultural, uma experiência que liga as escritoras umas às outras no tempo e no

espaço.

Gerda Lerner (apud SHOWALTER, 1994) ressalta a importância de examinar-

se a experiência das mulheres. Segundo ela, as mulheres têm sido deixadas de fora da

história porque temos considerado a história somente em termos centrados no homem.

Precisamos pressupor a existência de uma cultura feminina através do tempo e incluir o

desenvolvimento da consciência feminista como aspecto essencial do passado das

mulheres.

Teresa de Lauretis (1994) complementa a afirmação de Showalter. Segundo a

autora, as concepções culturais de masculino e feminino constituem como duas

categorias complementares, mas que se excluem mutuamente, nas quais todos os seres

humanos são classificados, formando uma estrutura conceitual chamada de “o sistema

de sexo-gênero” (LAURETIS, 1994:211). Trata-se, de acordo com a autora, de um

sistema de significações que relaciona o sexo a conteúdos culturais de acordo com

valores e hierarquias sociais. “Embora os significados possam variar de uma cultura

para outra, qualquer sistema de sexo-gênero está sempre intimamente interligado a

fatores políticos e econômicos em cada sociedade.” (LAURETIS, 1994:211).

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A obra Delírio, de Restrepo, possibilita a discussão, a partir de uma perspectiva

crítica feminista, por meio da personagem Agustina, apresentando aspectos de

emancipação feminina e evidenciando traços importantes de uma crítica preocupada

com a representação das experiências da mulher, por meio de sua própria linguagem,

considerando que a crítica feminista procura definir o sujeito mulher, verificar as

práticas culturais através das quais esse sujeito se apresenta e é apresentado, bem como

reconhecer as marcas de gênero que especificam os modos de ser masculino e feminino,

além de sua representação na literatura.

LAURA RESTREPO: AUTORIA FEMININA NA AMÉRICA LATINA 1

Laura Restrepo nasceu em Bogotá, Colômbia, em 1950. Formou-se em letras e

filosofia pela Universidade dos Andes, onde também é pós-graduada em Ciências

Políticas. Lecionou literatura na Universidade Nacional e na Universidade de Rosário,

em Bogotá. Também foi professora adjunta na Universidade de Sevilha.

Grande parte de sua carreira foi dedicada ao ativismo político. Quando terminou

o superior, mudou-se para a Espanha e durante três anos foi integrante do Partido

Socialista dos Trabalhadores, período pós-Franco. Mesmo na Espanha, participou de

protestos contra a ditadura militar argentina. Da Espanha, mudou-se para a Argentina,

onde nasceu seu filho Pedro, em 1980. De volta à Colômbia, dedicou-se ao jornalismo,

em que assinando uma coluna sobre política na revista Semana. Para sustentar o filho,

trabalhou como repórter, quando investigou muitos problemas sociais que mais tarde se

tornaram parte de seus romances.

Fez a cobertura de eventos políticos, como a Invasão de Granada e também

passo um tempo na Nicarágua, escrevendo sobre a guerra entre os Sandinistas e os

Contras. Em julho de 1982 o presidente colombiano Belisario Betancur convocou a

jornalista para fazer parte de uma comissão que negociava a paz entre as duas forças

rebeldes que assolavam o país, o M-19 e a EPL. Sua experiência como comissária da

paz resultou em ameaças de morte e durante seis anos, permaneceu exilada no México.

Mesmo distante do seu país, continuou tentando a pacificação das forças, o que

aconteceu em 1989. Com a paz restaurada na Colômbia, ela pode voltar para Bogotá.

1Acesso em 29/09/11 Disponível em http://www.encyclopedia.com/doc/1G2-3433900063.html e

http://pt.wikipedia.org/wiki/Laura_Restrepo.

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Laura Restrepo, a partir de suas experiências pessoais, expressa através da

literatura, os dilemas enfrentados nas ditaduras da América Latina, evidenciando uma

multiplicidade de ângulos que esses problemas apresentam, por meio de seus

personagens e de sua narração, com argumentos jornalísticos. O núcleo central do

trabalho de Restrepo é o amor pelo seu país de origem, a Colômbia, retratando seu

passado de guerra e drogas que destruiu partes do país, e como, através desse passado

trágico, a Colômbia pode ser reconstruída.

DELÍRIO

Um homem volta de uma curta viagem e encontra a mulher fora de casa e longe

de seu juízo perfeito. Sem saber o que aconteceu durante sua ausência e na tentativa de

tirá-la da crise, ele começa uma investigação que revelará a vida privilegiada, mas

problemática, da mulher, imbricando várias histórias, como a de um antigo amante

envolvido com o megatraficante Pablo Escobar, a de um avô alemão marcado pela

tragédia e a de uma infância vivida entre a riqueza, o poder e a dor. Contada a partir de

várias vozes, Delírio compõe uma trama familiar que se estende por várias gerações e

que também representa o reflexo do estado de uma nação, apontando a dura realidade

atual da Colômbia, que vive uma das mais complexas situações do mundo

contemporâneo.

Uma das formas de verificar a modalidade da crítica feminista baseada na escrita

feminina, de acordo com Showalter (1994), consiste em reconhecer, além da

caracterização da personagem feminina e das estruturas narrativas que determinam seu

destino, o papel de narrador como instância enunciativa. Dessa maneira, pode-se afirmar

que o enunciador, como elemento portador de ideologia, pode apresentar caráter

emancipador, ou não, na medida em que demonstra, ou não, uma posição coerente com

os postulados feministas.

Segundo o modelo proposto por Showalter (1994), enfatizando o papel do

narrador e da caracterização da personagem feminina, consta-se que, em Delírio (2008),

essa voz pertence à Agustina, personagem central da obra, jovem descendente de uma

família burguesa – os Londoño –, cujo irmão mais velho, Joaco e o patriarca Carlos

Vicente, estão intimamente ligados ao Cartel de Medellín, comandado pelo

narcotraficante Pablo Escobar. Como objeto de análise, focaremos na voz da

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personagem feminina, que tras junto às memórias, um pouco sobre a história da própria

Colômbia.

Os buraquinhos que atravessam os postigos de minha casa são redondos, recortados na beira, iguais a olhos com pestanas sobre a

cara verde da madeira. O que são esses buraquinhos, mamãe? O que são esses buraquinhos, papai? Sempre me responde Não é nada, Não é nada. Ou seja, os postigos tem buraquinhos e pronto, é algo próprio deles, assim como as pessoas têm olhos. Uma noite, durante a ronda das chaves na hora da nona, meu pai confessa que foram os franco-atiradores do Nove de Abril Compreendo as palavras dele:os franco-atiradores no Nove de Abril abriram aqueles buraquinhos nos postigos de nossa casa. E com que abriram, papai? Com tiros. Atiraram contra

nós? Não, contra as pessoas, ele me diz, mas não acrescenta uma palavra a mais. (115)

No trecho apresentado, a voz narrativa de Agustina, por meio de suas

lembranças, traz à tona o Bogotazo, evento que ocorreu em nove de abril de 1948, em

que, o líder popular liberal Jorge Eliécer Gaitán foi assassinado, dando início a revoltas

e atos de violência que se espalharam pela Colômbia, que causou a morte de cerca de

180 mil pessoas. No seguinte fragmento, um exemplo das revoltas que aconteciam

durante o período:

O Oldsmobile fica preso num nó cego de carros que não conseguem avançar nem recuar. Mamãe verifica mais uma vez se as portas estão travadas; já fez isso várias vezes mas volta a fazer. Está zangada, mamãe? Pergunto porque quando o Bichi e eu fazemos barulho ela se

irrita, mas diz que não, que não é isso, e nos manda para o banco dianteiro, ao lado dela. Tapem os olhos, meninos; com as duas mãos tapem bem os olhos e prometam não olhar, aconteça o que acontecer. Obedecemos [...] Mas podemos escutar os gritos na rua, os gritos que se aproximam, e sabemos, embora sem ver, que há gente passando junto ao carro, gritando. O que está acontecendo, mamãe? Nada, não é nada, dizem suas palavras mas sua voz diz exatamente o contrário [...]

já em casa, já de noite quando tudo passou meu pai me repita mil vezes que hoje na rua o que houve foi um protesto dos estudantes contra o governo.” (119-120)

Desde a primeira metade do século XX, a ditadura na América Latina foi mote

literário. E não só por escritores, mas também, por escritoras. Laura Restrepo, por meio

de sua escrita, possibilita a visão dos fatos históricos que permearam a história de seu

país por meio de outra margem; uma margem em que são valorizadas as experiências

pessoais, o cotidiano, o marginal, temas em geral, desconsiderados pela historiografia

oficial.

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