cidade e imagens: lugares vividos e praticados – o

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CIDADE E IMAGENS: LUGARES VIVIDOS E PRATICADOS O CENTENÁRIO DA CIDADE DE ITUIUTABA Tamara Claudia Coimbra 1 (orientador) Dr. Cairo Mohamad Ibrahim Katrib 2 RESUMO O presente trabalho propicia uma reflexão entre história local e imagens, a fim de compreender como a cidade pode ser relida, referendando fatos e momentos, oficializados como marca histórica e temporal de um dado lugar. Optamos por analisar as imagens contidas na série de cartões telefônicos produzidos pela empresa de telefonia que atua na região - Algar Telecom -, no ano de 2001, em alusão a comemoração do centenário da cidade de Ituiutaba, MG, localizada no Pontal do Triângulo Mineiro, cerca de 130 km da cidade de Uberlândia. Considerando que as imagens estampadas nos cartões retratam fragmentos da história local e são narrativas carregadas de intencionalidades, eles nos possibilitam compreender os processos de ressignificação da identidade cultural local enquanto movimento narrativo dinâmico que conecta presente passado e futuro as marcas históricas da cidade referendadas como momentos históricos marcantes para toda a sociedade local. Introdução O uso das imagens como fonte histórica sempre funcionou como suporte dialógico da História e, ao mesmo tempo, se vê envolto de diversos questionamentos, sobretudo em relação aos limites e possibilidades interpretativas, considerando o fato de que não há um roteiro pré-concebido ou uma forma precisa de ler imagens que dê conta de uma totalidade. Se analisarmos de forma reflexiva uma imagem, veremos e encontraremos diversas formas de releituras daquela representação. As imagens utilizadas para representar o cotidiano desde os tempos mais remotos. Desde as pinturas pitorescas nas cavernas francesas de Altamira e Lascaux até as diferentes variações e percepções contemporâneas, as imagens permitem a compreensão do vivido, o entendimento do que foi o passado, dentre tantas outras possibilidades. Podemos perceber isso também ao vermos que desde pequenos somos 1 Estudante do curso de graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia Faculdade de Ciências Integradas do Pontal. 2 Professor Adjunto da Universidade Federal de Uberlândia Faculdade de Ciências Integradas do Pontal.

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Page 1: CIDADE E IMAGENS: LUGARES VIVIDOS E PRATICADOS – O

CIDADE E IMAGENS: LUGARES VIVIDOS E PRATICADOS – O CENTENÁRIO

DA CIDADE DE ITUIUTABA

Tamara Claudia Coimbra1

(orientador) Dr. Cairo Mohamad Ibrahim Katrib2

RESUMO

O presente trabalho propicia uma reflexão entre história local e imagens, a fim de

compreender como a cidade pode ser relida, referendando fatos e momentos, oficializados

como marca histórica e temporal de um dado lugar. Optamos por analisar as imagens contidas

na série de cartões telefônicos produzidos pela empresa de telefonia que atua na região - Algar

Telecom -, no ano de 2001, em alusão a comemoração do centenário da cidade de Ituiutaba,

MG, localizada no Pontal do Triângulo Mineiro, cerca de 130 km da cidade de Uberlândia.

Considerando que as imagens estampadas nos cartões retratam fragmentos da história local e

são narrativas carregadas de intencionalidades, eles nos possibilitam compreender os

processos de ressignificação da identidade cultural local enquanto movimento narrativo

dinâmico que conecta presente passado e futuro as marcas históricas da cidade referendadas

como momentos históricos marcantes para toda a sociedade local.

Introdução

O uso das imagens como fonte histórica sempre funcionou como suporte dialógico da

História e, ao mesmo tempo, se vê envolto de diversos questionamentos, sobretudo em

relação aos limites e possibilidades interpretativas, considerando o fato de que não há um

roteiro pré-concebido ou uma forma precisa de ler imagens que dê conta de uma totalidade.

Se analisarmos de forma reflexiva uma imagem, veremos e encontraremos diversas formas de

releituras daquela representação. As imagens utilizadas para representar o cotidiano desde os

tempos mais remotos. Desde as pinturas pitorescas nas cavernas francesas de Altamira e

Lascaux até as diferentes variações e percepções contemporâneas, as imagens permitem a

compreensão do vivido, o entendimento do que foi o passado, dentre tantas outras

possibilidades. Podemos perceber isso também ao vermos que desde pequenos somos

1 Estudante do curso de graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia – Faculdade de Ciências

Integradas do Pontal.

2 Professor Adjunto da Universidade Federal de Uberlândia – Faculdade de Ciências Integradas do Pontal.

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incentivados a desenvolver nosso lado artístico, expressarmos através dele e reconstituirmos

fragmentos do viver que elegemos como significativos ou como marca do nosso processo de

socialização.

Em momentos de relevância histórica, como o centenário de uma cidade, as pinturas e

outras formas de expressão artísticas não poderiam ser deixadas de lado. Na virada para o

século XXI, mais precisamente no ano de 2001, a cidade de Ituiutaba, no Pontal do Triângulo

Mineiro, no estado de Minas Gerais, completou seus primeiros cem anos de emancipação

política e elevação à categoria de cidade. Para celebrar tal evento, foram realizadas várias

ações na cidade, como a composição de painéis artísticos retratando a cidade do passado e do

presente pelos muros de sua região central, exposições, a elaboração comunitária de um livro

que tem por principal tema a trajetória dos representantes políticos locais.

Dentre as muitas ações, uma que nos chamou atenção foi à campanha desenvolvida

pela empresa CTBC, atual Algar Telecom, grupo de telecomunicações que gere parte da

comunicação telefônica da cidade, em associação com o pintor Elias José da Silva Zoccoli.

Juntos lançaram um conjunto de cartões telefônicos como forma de homenagear os 100 anos

da cidade. Esses cartões estampam em tamanho reduzido as pinturas feitas pelo artista

plástico nos murros do centro da cidade retratando fatos e acontecimentos sobre a trajetória

histórica, cultura, econômica e política de Ituiutaba. Os cartões tiveram grande circulação,

considerando que na época, ainda, o uso dos telefones públicos, os famosos orelhões, era

bastante comum, principalmente pelo fato de que ainda não havia a popularização e

acessibilidade da telefonia móvel, como vemos hoje.

Sendo assim, nosso principal objetivo é compreender de que forma as imagens

produzidas, retratando a história da cidade e evidenciadas no seu centenário são balizas e

marcas que referendam momentos da história oficial que necessitam ser relembrados para

recompor identidade cultural local, prevalecendo os interesses de um dado grupo social sobre

a maioria dos moradores da cidade e, ainda, como esses fragmentos da história, retratados nos

cartões telefônicos, possibilitaram a concepção de uma cidade do desenvolvimento e do

progresso. E, também, de que maneira as imagens criadas nesse contexto são linguagens

reveladoras das intencionalidades históricas, em torno dessa oficialização de fatos,

acontecimentos e narrativas sobre a cidade.

Para isso, o presente trabalho é dividido em três sessões, o primeiro: “Material e

Métodos”, espaço em que discutimos sobre o uso das imagens pela História, considerando o

viés da História Cultural sob a ótica de autores como Peter Burke e Sandra Jatahy Pesavento.

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Além de usarmos as análises de outros pesquisadores que lidam com as imagens, como os

estudos de Alberto Manguel e José de Souza Martins. A segunda parte “Resultados” serve-

nos como momento de reflexão teórico-metodológico a fim de compreendermos o contexto

social, político, econômico e histórico do centenário de Ituiutaba e as possibilidades de

reflexão sobre a importância das imagens na visibilidade desses elementos e como há a

interferência sobre o cotidiano dos diferentes grupos sociais nesse momento festivo. Tendo

isso como base, na parte “Discussão” analisamos os próprios cartões telefônicos, pensando

nas formas como é possível utilizar essa fonte histórica. E por fim, as considerações em

relação ao estudo realizado.

Material e Métodos

O filósofo chinês, Confúcio, disse certa vez que “uma imagem vale mais do que mil

palavras”, geralmente, no entanto, há uma associação das imagens como ilustrações de um

fato passado. Essa ideia é defendida, principalmente, por historiadores ditos “tradicionais”

que questionam o uso de imagens, independente de sua forma, como fonte histórica, que

muito além de ilustração se torna uma evidência histórica, como defende o historiador inglês,

Peter Burke:

É bem possível que historiadores ainda não considerem a evidência de imagens com

bastante seriedade, a tal ponto que uma discussão recente falou da “invisibilidade do

visual”. Como observado por um historiador da arte, “historiadores [...] preferem

lidar com textos e fatos políticos ou econômicos e não com os níveis mais profundos

de experiência que as imagens sondam”, enquanto outro historiador refere-se à

“condescendência em relação a imagens que isto implica” (BURKE, 2004, p.12).

Através disso, percebemos que não há um consenso sobre o uso das imagens quanto

fonte histórica. No entanto, o que podemos notar é sua utilização, principalmente após a

emergência da História das Mentalidades e, consequentemente da História Cultural, tem sido

feita de forma crítica e não como mera ilustração como alguns historiadores sugerem. É

interessante observar, também, que com essas novas metodologias de se fazer História houve

o advento da interdisciplinaridade. Isso é, para explicar os fatos históricos, não se recorreria

apenas à História, mas, também à Sociologia, Antropologia, entre outras áreas do

conhecimento que servem para subsidiar e complementar o conhecimento histórico. Sobre

isso José de Souza Martins nos diz:

já nos primeiros anos após a segunda Guerra Mundial, como observou Lucien

LeFebvre, trouxeram a vida cotidiana para o primeiro plano de existência da maioria

das sociedades ocidentais e instituíram a cotidianidade como era de um modo de ser

dominado pela presente, pelo fragmentário e pela incerteza (MARTINS, 2008, s/p).

Seria impossível analisar essa “nova” forma de se fazer história que considera os

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diversos grupos sociais buscando repensar essas representações do social e do cultural se

considerássemos apenas a história oficial, ou seja, o que está contido nos documentos oficiais,

ou em fontes, em sua maioria, escritas e produzidas com esse intuito? Segundo Pesavento:

[...] as imagens partilham com as outras formas de linguagem a condição de serem

simbólicas, isso é, são portadoras de significados para além daquilo que é mostrado,

[...] a imagem é fruto de uma ação dotada de significado, participando da condição

tão humana que é a de refazer o mundo através de um conjunto de sinais.

(PESAVENTO, 2009, p. 99-100)

Com isso, vemos que a imagem está intrinsecamente ligada à condição humana de se

comunicar, variando, no entanto, os métodos de linguagem. Também devemos considerar que

essa é uma forma peculiar de expressão do imaginário e da consciência social. Pois, como

forma de representação social e subjetiva as imagens são reveladas pela ausência. Quanto

sujeitos ativos na sociedade, cremos na impossibilidade de retratar ou congelar o presente, o

que a arte nos permite ver, é na verdade uma memória do fragmentário, ou seja, temos

compartilhado os resíduos de uma humanidade, essa entendida não no seu sentido global, mas

no que tange ao olhar de cada indivíduo.

Com isso, traz a tona diferentes símbolos e sinais, e demonstra também as várias

formas que os sujeitos sociais se relacionam com a sua realidade e a partir disso, de que forma

que ocorre essa interação e análise do real vivido. Ainda sobre isso, Pesavento afirma que:

Como representação do mundo, as imagens figurativas têm no real o seu referente,

seja para confirmá-lo, transfigurá-lo, negá-lo, combatê-lo, seja para acenar a outros

mundos possíveis, e pode-se dizer que o modo de representar uma realidade faz

parte do comportamento social de uma época. (PESAVENTO, 2008, p.104)

Com base nisso, podemos conceber a imagem como uma narrativa, perceber seus

signos e símbolos como Alberto Manguel no diz, ao falar que:

para aqueles que podem ver, a existência se passa em um rolo de imagens capturadas

pela visão e realçadas ou moderadas pelos outros sentidos, imagens, cujo significado

(ou suposição de significado) varia constantemente, configurando uma linguagem

feita de imagens traduzidas palavras e de palavras traduzidas em imagens, por meio

das quais tentamos abarcar e compreender nossa própria existência. As imagens que

formam nosso mundo são símbolos, sinais, mensagens e alegorias. Ou talvez sejam

apenas presenças vazias que completamos com o nosso desejo, experiência,

questionamentos e remorso. Qualquer que seja o caso, as imagens assim como as

palavras são a matéria do que somos feitos (MANGUEL, 2001, p. 21).

Outro fator relevante que o autor apresenta é o da existência da imagem vista de

dentro. A pintura expressa e muito bem traduz essa assertiva, pois ela, ao ser exposta na tela,

passou por um processo de criação que busca representar algo imaginado ou vivido ancorado

a um processo criativo, que reflete uma conexão com a memória, com o passado, com a

individualidade de quem pinta; quando ela é vislumbrada por alguém que não a pintou, uma

série de suposições é estabelecida a fim de tentar entrever pela imagem e compreender o que

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o artista quis representar nos traços e cores que compõem a imagem desvelada. Em ambos os

casos, percebemos que ela não existe sem um contexto, mesmo que traga a subjetividade, o

passado colado ao presente ou ao que está por vir, ela é sempre uma representação. Além

disso, o tempo que dedicamos a uma obra de arte, também interfere no nosso modo de

entendê-la. E ao transformarmos a pintura em narrativa, nós a conferimos uma vida infinita e

inesgotável. Também é preciso sempre lembrar que essas narrativas não devem ser definitivas

ou exclusivas, já que as análises de imagens são subjetivas como apontamos acima.

Dessa forma, algumas características são importantes de serem analisadas tanto ao se

pensar nas narrativas imagéticas, quanto nas imagens em si, como por exemplo: o que foi

imaginado pelo artista e o que foi realmente posto na tela. O que nós, “espectadores”, vemos,

lembramos ou aprendemos ao nos debruçarmos sobre uma imagem que nos interessa? As

percebemos como colada ao mundo social ou como mero símbolo representativo da nossa

trajetória histórica?

Para Michael Baxandall, nós “não explicamos as imagens, explicamos comentários a

respeito de imagens” (BAXANDALL apud MANGUEL, 2001, p.29), isso é possível diante

da complexidade que percebemos ao trabalhar com as imagens, pois todas elas são um mundo,

no sentido de que apresentam percepções próprias e únicas e que só podem ser entendidas no

seu contexto específico.

A ideia de recompor a história de uma cidade através de imagens não é inédita, sejam

elas fotografias ou pinturas, sendo que a primeira só foi possível a partir do século XX, e

atualmente, a maneira mais usual de se tentar retratar o presente, é através de uma câmera

fotográfica. As pinturas históricas, no caso, se comprometem com a representação do passado

mais longínquo, como é o caso das obras retratadas nos cartões telefônicos da cidade de

Ituiutaba, nos levando a tentar entender as intencionalidades contidas nelas, os interesses de

um dado grupo social em evidência na época e, ainda, reinterpretá-las a fim de relermos o

passado e compreendermos a dinâmica do presente.

Resultados

Inicialmente, é preciso analisar em qual contexto Ituiutaba estava incluída no ano de

seu centenário. Em 2001, a cidade era governada pelo prefeito Públio Chaves (1997 - 2004),

no ano da sua primeira eleição, pelo PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro),

ele conseguiu 79% dos votos válidos, evidenciando um alto índice de aceitação. Na visão de

vários moradores da cidade, durante o mandato de Chaves, Ituiutaba ficou conhecida como

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um canteiro de obras, pois foram realizadas várias obras visando tanto os aspectos

urbanísticos quanto os de melhoria social.

A nosso ver, seria esse momento um marco de inserção da cidade no contexto de

desenvolvimento e do progresso tão apregoado por muitos administradores públicos e

absorvido pelos moradores de diversos municípios do interior do país e estampados nas obras

municipais, na substituição de antigos casarios por residências de arquitetura mais arrojada e

moderna ou por edifícios com torres acima de sete andares, marco visual da inserção da

cidade no desenvolvimento e no crescimento urbano, dentre outras possibilidades

interpretativas.

Um dos primeiros aspectos que temos que pensar é o de que se ao longo de sua

trajetória histórica Ituiutaba se demonstrou uma cidade antenada ao progresso, e como que a

partir dessa inserção se dão as relações e seu vínculos com o passado. Além disso, devemos

notar que a ideia de uma cidade em movimento foi o que propiciou a ela se reinventar sem

perder seus vínculos culturais com seu passado e nem deixar de estar aberta para receber as

transformações de agora. Entretanto, o passado descortinado foi aquele dos grandes feitos e

acontecimentos, marca da transição de um momento político ou econômico para outro,

incutindo na população uma história em mão única, mesmo que grande parte das pessoas

percebesse que aquela história oficializada não fosse a sua, ou que não tivesse nenhum

significado cultural para elas, foram as mesmas pessoas que passaram a ver de fora quadros

de uma memória oficial se cristalizar silenciando suas vozes e suas lembranças de uma outra

cidade. Por outro lado, foi essa imagem de cidade em franca expansão que atraiu um fluxo

migratório de pessoas de outros estado para Ituiutaba, a fim de buscarem novas oportunidades

de vida e trabalho.

Há mais de cinquenta anos a cidade recebe muitos migrantes e imigrantes vindos de

diversos lugares a procura de prosperidade, atraídos muitas vezes pelos ciclos econômicos que

sustentaram boa parte da economia local como a produção de grãos, no caso, o arroz que

conferiu a cidade o título de “Capital do Arroz” entre as décadas de 1950 e 1960. Depois

quando a produção de arroz deixa de ser o foco econômico da cidade, essa passa por uma

estagnação até o início dos anos 1990, quando a monocultura da cana-de-açúcar é instaurada,

o que atrai muitos migrantes, vindos, principalmente da região nordeste do país, que ao

chegarem à cidade se deparam com os mesmos problema da maioria das cidades brasileiras e

veem seus sonhos minarem e as perspectivas de dias melhores serem esfacelados.

O interessante de se perceber é que, quando o centenário se aproxima, o poder público

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inicia um processo de inserção de toda a população num contexto de unidade municipal,

apresentando Ituiutaba como a cidade do progresso, mas que caminha sem esquecer aqueles

que a construíram. Dessa forma, o ano do centenário foi marcado por várias iniciativas a fim

de homenagear a cidade pela sua história. Nesse contexto, a CTBC Telecom, atual Algar

Telecom lançam um conjunto de cartões telefônicos. Em parceria com o pintor Elias José da

Silva Zoccoli, que é o autor das obras que estampam os cartões, que foram previamente

apresentadas em uma exposição. Essa iniciativa foi bastante divulgada, aparecendo inclusive

no Jornal do Pontal, que é o periódico diário da cidade.

A partir da análise das obras que estampam os cartões telefônicos sobre o centenário e

Ituiutaba, podemos perceber que há diversos interesses por trás da produção do projeto, como

a manutenção da visibilidade política e econômica da cidade interferindo no cotidiano dos

diferentes grupos sociais. Além disso, podemos pensar nas representações do social e do

cultural contidas na história oficial da cidade, e, por fim, entender como que o imaginário da

modernidade e do progresso impõe suas marcas a essa cidade “antenada” e quais suas

reflexões na oficialização e propagação de sua história.

Discussão

A coleção dos cartões telefônicos lançados nos meses de julho, agosto e setembro de

2001, pela CTBC/ALGAR Telecom é composta por nove exemplares, todos do artista Elias

Zoccoli, sendo eles: O velho casarão, Garimpo, Colheita de Arroz, Casarão, Praça da Matriz

de São José, Ribeirão de São Lourenço, Década de 30, Capela e Guerreiros. No verso de

cada cartão há uma pequena história que narra o tema da pintura, além de fornecer outras

informações como o número de série e a sua tiragem.

Para analisarmos essa fonte histórica nos munimos de uma ficha de análise de fonte

para pintura que elenca quatro fatores principais para que seja possível o uso dessa fonte:

1) Identificação da fonte:

a) Tipo de pintura / escola (pintura histórica/pintura a óleo/guache/aquarela)

b) Autor

c) Data da produção

d) Meio de circulação da imagem

e) Qual o tamanho original dos quadros?

f) Título da Obra

g) Onde está localizada a pintura? (museu/coleção particular)

Nessa primeira parte, é feita a análise técnica da obra, momento que pensamos na sua

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produção e seus aspectos diversos, mais de orientação para o historiador na sua utilização. Por

exemplo, pensar o autor, sua produção, seu tamanho real, ajudam a compreender a dimensão

real da obra. Ao falarmos nos cartões telefônicos, temos que inicialmente pensar, na obra de

arte que foi composta pelo autor com um objetivo específico, pensar na sua universalidade

quanto obra, no seu universo particular. Somente a partir disso, é que podemos refletir sobre a

apropriação que é feita pela companhia telefônica ao distribuir e veicular essas imagens, justo

em uma época de criação e recriação da identidade local.

2) Análise da pintura

a) Quais os temas e questões construídos na pintura?

b) Quais os sujeitos sociais construídos na pintura?

c) Quais as tensões e conflitos construídos na pintura?

d) Quais os lugares sociais construídos na pintura?

e) Qual a construção de temporalidade?

f) Quais são as cores utilizadas? Que sensações elas provocam?

Após essa primeira leitura externa da obra é preciso focar na análise interna da obra.

No seu conjunto de fatores que independem do seu momento histórico. Isso é o que cada

pincelada na tela, diz por si só. Na verdade, o que ela diz para quem a está interpretando. Ou

seja, não há um diálogo próprio da obra sobre si mesma, pois a pintura, no caso é entendida

como uma representação que se manifesta a partir de uma narrativa própria que é cedida por

um agente que a analisa. Sendo assim, pensar nas cores, nos lugares construídos, os conflitos

representados e todo esse microcosmo que engloba a obra é extremamente necessário para ser

possível o diálogo entre os atributos internos e externos.

3) Análise do artista

a) Biografia

b) A quais movimentos artísticos, o artista esteve vinculado?

c) Como classificar a pintura analisada?

Apesar de a obra ser o nosso principal foco, não nos ater ao seu idealizador e produtor

seria desconsiderar a individualidade artística e sua forma de expressão. Por isso, é necessário

saber os principais dados da sua biografia, a que movimento artístico, essencialmente, está

vinculado. Não, no sentindo de limitar a sua obra, mas para facilitar o entendimento da sua

amplitude.

4) Interpretação da obra (reflexões a partir da análise realizada)

Por fim, é necessário fazer uma interpretação pessoal da obra. Para analisá-la não

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basta elencarmos todos os seus dados técnicos, é preciso ir além, é preciso demonstrar

empatia pela obra, abrir possibilidade para o diálogo, deixar que emoções aflorem. Essa é a

principal qualidade da arte como manifestação humana, ser capaz de nos tocar e a partir disso,

nós moldamos a nossa função dentro de um contexto sociocultural. No Dicionário de

Filosofia, Nicola Abbagnano traz que, a arte:

Em seu significado mais geral, todo o conjunto de regras capazes de dirigir uma

atividade humana qualquer. [...] Para Platão, Arte é poesia [...] é a política e a guerra.

[...] é a medicina [...] é respeito e justiça (ABBAGNANO, 2007, p.81).

Dessa forma, a arte é essencial para a vida humana e nada mais justo que dedicar a arte

como sendo uma forma para construir, reconstruir, disseminar e propagar a identidade

humana, considerando seu coletivo, quais são os elos que unem as pessoas. No caso, o que faz

com que um cidade seja uma unidade além das decisões superiores do estado e do país. O que

une as pessoas, quais são seus hábitos em comum, suas práticas sociais, suas lutas, seus

sustentos e assim por diante. É com esse intuito que percebemos aqui os cartões telefônicos

lançados no segundo semestre de 2001.

Sendo assim, precisamos, inicialmente, conhecer o autor das obras. Elias José da Silva

Zoccoli, ou simplesmente, Elias Zoccoli, é natural do Rio Grande do Norte, mas, que aos dez

anos de idade mudou para São Paulo, em 1980, e dezenove anos depois se muda,

definitivamente, para Ituiutaba. Desde a época da capital paulista, o pintor já se expressava

como grafiteiro na zona sul da cidade. Além de pintor é também escultor e seu estilo pode ser

definido como uma mistura de arte urbana com “pop arte” contemporânea. No ano de 2001,

ele realizou a exposição: “Centenário de Ituiutaba”, a ideia de suas pinturas era o de retratar

esses cem anos de emancipação política da cidade. Atualmente, essas pinturas pertencem ao

acervo da Prefeitura Municipal e estão expostas em lugares como o gabinete do prefeito, nas

secretarias municipais, na Câmara dos Vereadores e também na Fundação Cultural do

município. Atualmente, o pintor faz parte da ALAMI - Academia de Letras, Artes e Música

de Ituiutaba, além de possuir reconhecimento tanto nacional quanto internacional.

A obra dos cartões telefônicos é composta de nove pinturas, como já foi dito. Podemos

dividi-los em três grupos devido a sua temática geral: o primeiro que foca em lugares, o

segundo nos trabalhadores e por fim, a história “antiga” da cidade.

Os lugares

Esse é o conjunto de mais obras disponíveis, com seis dos nove cartões sendo sobre

isso, são eles: Década de 30, Capela, O Velho Casarão, Casarão, Praça da Matriz de São

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José e Ribeirão São Lourenço. É interessante notar que todas elas são compostas de cores

fortes, principalmente o azul para demonstrar o céu tijucano e também o verde.

No verso de cada cartão foi estampado informação sobre o que a obra representa. Pela

ordem cronológica de lançamentos, primeiro temos “O Velho Casarão”. Sobre ele, temos

escrito que: “1901 - O Velho Sobrado, no dia da instalação do município de Ituiutaba-MG,

com a Bandeira Nacional hasteada. Antigo Fórum, Cadeia Pública e a primeira Câmara

Municipal da cidade”. Esse é um momento simbólico da construção da cidade município,

pois é o momento de referendar sua emancipação, além de apresentar lugares em que são

marcos da ordem e do poder como é o caso do Fórum, a cadeia e a Câmara.

Ao analisarmos os aspectos visuais das imagens podemos ver a ideia do campo, as

árvores, o chão de terra, as pessoas com chapéus na cabeça com intenção de proteger do sol.

O céu sempre azul, apesar de que um pouco encoberto pelas nuvens. Referenda também as

relações campo/cidade e o dualismo entre esses espaços. O rural o local da produção do

alimento, do homem que retira seu sustento da terra, da tradição, da labuta diária, mas local da

felicidade. O urbano se sobrepõe ao rural sendo o lócus do poder e das transformações mais

evidentes.

O próximo cartão é sobre o “Casarão”: “O Casarão onde funcionou o primeiro

Hospital Santa Casa de Ituiutaba-MG. Hoje, tombado pelo Patrimônio Histórico Municipal,

foi totalmente restaurado e é, sem dúvida, um marco na valorização da história de Ituiutaba-

MG”. O Casarão o qual a obra se refere é hoje o MUSAI - Museu Antropológico de Ituiutaba,

que fica ao lado do Hospital São José mostrando ainda sua relação com a questão de saúde

pública, já que esse é o único hospital público da cidade. O progresso só se concretiza se

estiver atrelado ao crescimento e ao bem-estar de sua população. O hospital é o marco que

referenda a preocupação da Ituiutaba centenária com os seus moradores.

O MUSAI guarda em seu interior vários bens também tombados como patrimônio da

cidade, é interessante notar que com a restauração feita, o prédio ainda está bem fidedigno ao

seu original. A obra feita por Elias Zoccoli quase se assemelha a uma fotografia de tão

realístico que ficou a retratação da fachada da construção. O céu muito azul, e a grama do

jardim, verde, contrastam com a cor esbranquiçado-amarelada das paredes.

Já no caso da “Praça da Matriz de São José” é um resgate ao passado. Ela ainda existe

apesar de já ter sofrido várias alterações ao longo dos anos, deixando, por exemplo, de ser a

praça da Matriz para se tornar a Praça da Prefeitura. Antigamente, também, já alojou o

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cemitério municipal, quando esse, era pertencente, essencialmente a ordem religiosa.

Sobre ela os cartões dizem que: “Praça da Matriz de São José com seu coreto, na

década de 30. nesta época, as pessoas saíam para passear e conversar nesta praça. Cenário

típico de uma cidade pacata.” O que podemos ver nessa descrição é a ideia do nostálgico,

afinal, são setenta anos que diferem a pintura da realidade em que ela estava sendo pintada. E,

apesar disso, Ituiutaba ainda tem traços dessa “cidade pacata, as pessoas ainda vão à praça

para passear, conversar e se divertir. Ao mesmo tempo em que os cartões tentam recuperar

fragmentos do passado para referendar o presente e o seu futuro promissor, tradição e

modernidade marcam o tempo, as narrativas, os olhares e as imagens descortinadas sobre a

cidade seja na forma de pinturas, fotografias ou flashes da memória de quem viveu esse

período e vivem a Ituiutaba de hoje.

Na época do centenário, havia uma ideia muito forte de mostrar como Ituiutaba estava

“no caminho do progresso” e que se modernizava rapidamente, de modo a trazer melhorias

para a vida social, econômica e política, apesar disso vários aspectos da vida “pacata” se

mantiveram e se mantém até hoje: ir à praça encontrar os amigos, ir a feira no domingo pela

manhã… São elementos que fazem parte da cultura e identidade local, mas que não foram

materializadas na forma de pinturas, uma vez que tais espaços não evidenciavam os espaços

frequentados pelas elites e famílias tradicionais.

Muitos dos elementos retratados na pintura ainda estão na praça, com algumas

mudanças, o coreto, por exemplo, virou o palanque da prefeitura, a praça foi urbanizada, há

alguns monumentos em homenagem a personalidades importantes. Ou seja, a praça foi

reestruturada pensando na sua visibilidade dentro do contexto social.

Intitulado com o nome de “Ribeirão de São Lourenço”, esse cartão retrata a

importância da sua hidrografia para o desenvolvimento da cidade. A cena específica retratada

na pintura é o de uma, provavelmente, fazenda, pois além dos bovinos, há uma casa antiga,

que notadamente está sendo corroída pelo tempo.

No verso vem escrito: “Captação de água bruta do Ribeirão São Lourenço que

abastece com água potável, toda a cidade de Ituiutaba-MG, que recebeu o Certificado ISO

9002 no processo de tratamento de água. É uma das poucas cidades da América Latina a

receber o certificado de Qualidade Total.”.

É interessante notar as cores fortes utilizadas pelo pintor, o azul da água do ribeirão é

bem marcante, as cores utilizadas para fazer o chão também. Além dos bois mostrados, é

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possível um retrato mais fiel se nos atentarmos a alguns detalhes como as galinhas ciscando

próxima a casa, as roupas estendidas no varal ao fundo. A pessoa sentada do lado da casa. São

representações do cotidiano de pessoas que moram na região rural tijucana. Evidenciam um

cotidiano ligado ao passado rural e já reinventado pelas ações de efetivação do progresso e da

modernidade.

Os próximos dois cartões voltam as suas atenções para lugares urbanos, como é o caso

do “Década de 30” que faz alusão ao primeiro movimento de modernização e industrialização

da cidade que é tipicamente agrária. sobre ela vemos que: “Na década de 30, apareceram às

primeiras indústrias de Ituiutaba-MG. Algumas delas permanecem em atividade até hoje,

superando-se no mercado competitivo e são exemplos de amor e trabalho.”.

A indústria retratada é “A Fazendeira” que até hoje é uma grande produtora de

manteiga e outros derivados do leite. Nesse cartão é estampado com mais clareza a questão da

tentativa de solidificar uma identidade e uma marca de progresso que insere Ituiutaba no

cenário econômico nacional. A Fazendeira, conforme narram vários memorialistas locais é

resultado de investimentos comerciais feitos por algumas famílias na cidade, no início dos

anos de 1930. Tudo começou com uma máquina de beneficiamento de arroz que deu origem

as “indústrias Reunidas” da qual a Fazendeira faz parte. Em cada momento, é nítido a

preocupação da empresa em transformar a matéria-prima oriunda da agricultura numa

mercadoria a ser comercializada tanto na cidade quanto em diversas regiões do país. Manteiga,

óleo de algodão e outros derivados do leite eram as mercadorias mais vendidas pela empresa.

Para compreendermos essa inserção da cidade no processo produtivo de bens de

consumo direto, necessário se faz sintetizarmos os ciclos econômicos do município. As

lavouras de subsistência e no começo do século XX, a mineração e a inserção de Ituiutaba no

cenário industrial com a produção de mercadorias de consumo direto são, respectivamente, os

três momentos principais de desenvolvimento da sua economia. A exploração de riquezas

minerais a céu aberto deram o tom do povoamento do município no início da sua efetivação.

Em seguida, a agricultura de subsistência foi responsável por várias décadas pela manutenção

econômica do lugar até que a cultura do arroz se despontou no município, modificando sua

estrutura fundiária e de produção. As lavouras de arroz, durante a década 1950 foram as de

maior produção do estado, e Ituiutaba foi apelidada de capital do arroz, devido a sua grande

produção do grão. Tal feito segurou a economia local até os anos de 1990 quando a lavoura de

monocultura empreende um novo ritmo ao campo e a cidade.

O último cartão que retrata um espaço é o da “Capela” que tem uma descrição rápida:

Page 13: CIDADE E IMAGENS: LUGARES VIVIDOS E PRATICADOS – O

“Terceira Capela de Ituiutaba-MG, na avenida 7, em 1862, com seus fiéis retornando para

suas casas após o encerramento da missa.” Apesar de descrição tão simplória, a capela em

questão, é a igreja católica mais importante da região, sendo hoje a Catedral da cidade, com o

nome do santo padroeiro: São José. É em torno da igreja que surge as principais atividades da

cidade, pois além de sua localização privilegiada na região central, foi à primeira paróquia da

cidade e sua fundação remonta o início do século XIX. Quando Ituiutaba, ainda era conhecida

como Arraial de São José do Tijuco.

Um fato interessante é que a edificação que temos hoje não é a mesma dessa época,

pois em 1938 ocorreu um incêndio que destruiu todo o prédio, salvando-se apenas a imagem

de São José e São Pedro. A nova construção mantém vários aspectos da sua antecessora, tanto

que é possível reconhecer na antiga os espaços da nova.

Nesse quadro, podemos ver a identidade religiosa da cidade, que, desde os seus

primórdios esteve ligada a catolicismo, ir à igreja no domingo pela manhã ainda é um ato

bastante corriqueiro, apesar de nos últimos anos outras formas de religiosidade ganharem

destaque.

Outro aspecto em que as imagens não desvelam por si só, são as histórias vividas e

práticas por antigos moradores nesses locais e que permanecem vivos na memória de seus

descendentes, como é o caso que envolve uma das festas populares, hoje mais tradicionais da

cidade que é a festa em homenagem a São Benedito. No local onde foi construída a referida

capela, existia outra onde a população negra da cidade realizava as festividades em devoção a

São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Nos idos de 1900, os negros foram proibidos de

cultuarem suas crenças no local e com a construção da nova edificação foram expulsos para a

periferia da cidade pelo pároco da época. Tal acontecimento marca bem a imposição de uma

cultura dita letrada em detrimento das manifestações da cultura popular da época, segregadas

para áreas mais distantes da cidade a fim de pulverizá-las fazendo com que até mesmo a

religiosidade da população fosse ditada seguindo os moldes da Igreja da época e os desejos da

população de poder aquisitivo elevado que habitavam a região central da cidade.

Os trabalhadores

Esses dois cartões retratam o mundo do trabalho, mas, além dele dois importante

ciclos econômicos: o garimpo e a produção de arroz na cidade. O garimpo foi essencial para o

aumento da população de Ituiutaba, antes mesmo dessa ser uma cidade, ainda como Arraial de

São José do Tijuco e depois como Vila Platina. Mas, a escassez dos minérios encontrados foi

Page 14: CIDADE E IMAGENS: LUGARES VIVIDOS E PRATICADOS – O

rápida, não durando nem duas décadas. O plantio de arroz se iniciou ainda nos anos 30, mas

foi na década de 50 que chegou ao seu auge, havendo diversas máquinas de beneficiamento

do arroz espalhadas pela cidade, o que gerou outro surto demográfico, trazendo pessoas,

principalmente atraídas pelo desenvolvimento econômico.

De forma geral, Ituiutaba sempre atraiu muitos migrantes, principalmente da região

nordeste do país. Esses são a força produtiva tijucana e que acabaram por fixar residência e

aderir aos costumes locais além de incorporar também outras formas de se vestir, comer e

viver.

Pela ordem cronológica, o primeiro cartão, então é o “Garimpo” e sua descrição é a

seguinte: “Garimpo de diamantes no rio Tijuco que concorreu e colaborou para o aumento

da população de Ituiutaba-MG. Era a idade do ouro que se iniciava”. Na pintura são

apresentados dois trabalhadores, com as grandes peneiras de garimpo, ambos usam chapéus

que são maiores dos que os comuns, para mostrar a tentativa de proteção contra o sol forte. É

interessante notar o modo como eles são retratados, suas roupas, o tom de pele, o fato dos dois

serem do sexo masculino, mostrando também aspectos da sociedade da época. Além de ser

possível dizer que eles estão inseridos dentro do rio, representando como que era o cotidiano

desses trabalhadores.

A “Colheita de Arroz” apesar de também enfocar no trabalho, o apresenta de outra

forma, inicialmente temos sua breve descrição: “Na década de 60, Ituiutaba-MG projetou-se

nacionalmente como a “Capital do Arroz, também conhecida como “ARROZCAP”.” A

apresentação que é feita do plantio de arroz se assemelha a uma produção caseira, há três

pessoas em cena, sendo, uma delas uma mulher. As duas casas mostradas ao fundo, trazem

justamente essa ideia de algo mais rudimentar. Apesar da grande produção, a relação do

homem com a terra é bastante evidente e próxima. Outro elemento que pode ser observado é

no fundo da pintura algo que se assemelha com morros, apesar de essa ser uma região já do

planalto central e do cerrado, ainda há alguns morros, sendo alguns deles importantes como o

do “Corpo Seco” que alimenta lendas locais.

História “antiga”

O último cartão da coleção é intitulado de “Guerreiros” e faz uma homenagem aos

indígenas que aqui habitavam antes da colonização e da chegada dos posseiros. Sua descrição

é: “Os primeiros habitantes de Ituiutaba em 1820, século XIX, foram os índios Caiapós (ramo

do grupo Gê ou Tapuia) que eram os donos das terras da região. Foram obrigados a

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entregar suas terras para os posseiros que aqui chegaram.”.

Esse cartão é na verdade, composto por duas pinturas de Elias Zoccoli e trabalham

mais com a questão da imagem do índio, não há uma alusão real a sua força, mas as suas

feições e adornos como pinturas e colares, talvez pelo fato de a própria história local, contada

e recontada pelos seus memorialistas terem silenciado a importância das comunidades

indígenas aqui existentes na época de sua ocupação, os tratando como nocivos ao crescimento

e ao progresso que Ituiutaba procurava seguir. Mesmo, assim, atualmente é nítida a

importância dos indígenas para a composição cultural de Ituiutaba, referendado por vários

trabalhos arqueológicos desenvolvidos na região do Pontal e que tem realizado descobertas

significativas e que em alguns anos poderão recompor a escrita oficial da história da cidade.

No MUSAI é possível encontrar alguns objetos remanescentes dessas tribos que foram

tombados pelo patrimônio histórico municipal, e protegido pela Fundação Cultural de

Ituiutaba.

Considerações

Como todos os trabalhos que se voltam para o estudo da condição humana, seria

impossível trazer uma conclusão final sobre o assunto. Os noves cartões telefônicos

produzidos pela CTBC/Algar Telecom no intuito de homenagear a cidade de Ituiutaba pelo

seu centenário, evidenciam uma construção cultural do que é ser o tijucano, os modos de vida

dentro do universo da cidade, considerando aspectos como sua economia, sua política e

também da sua cultura.

A formação da identidade de um local ocorre por muitos meios. Mas, ao entendermos

o esforço pela sua perpetuação, podemos compreender quais são os poderes em vigência e de

que forma esse ato pode favorecer uma situação posta ou contribuir para a formação de uma

nova realidade.

Atualmente, Ituiutaba está com 112 anos, doze anos se passaram desde o centenário,

mas algumas características de seu espírito festivo ainda podem ser vistas na sociedade, como

a necessidade de perpetuar uma tradição identitária. A nossa função como agentes dessa

realidade social e cultural é compreender com quais intencionalidades são produzidas e

reproduzidas essas identidades, qual é o seu diálogo com a realidade e o porquê de existirem.

Nesse sentido, compreender as diversas possibilidades de releituras do processo de

construção da identidade cultural local a partir das reflexões em torno do processo histórico

da fundação e desenvolvimento de Ituiutaba por meio das imagens contidas nos cartões

Page 16: CIDADE E IMAGENS: LUGARES VIVIDOS E PRATICADOS – O

telefônicos, levou-nos a confrontar as narrativas oficiais com outras histórias, que compõem a

memória de muitos atores sociais que, ao enveredarem por outras experiências nos auxiliaram

reler a cidade com outra lógica interpretativa, pois pudemos perceber que:

Contar histórias sempre foi à arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as

histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece

enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais

profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera

dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de

narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo.

(BENJAMIN, 1986, p.205).

Esse movimento de contar e recontar histórias, de recuperar sujeitos e fatos esquecidos

ou adormecidos nos permitiu entrever pelas muitos enredos em torno da origem e

desenvolvimento de Ituiutaba-MG, desatando nós e realinhavando os fios de uma história

local ancorada no viver a cidade pelos diversos atores sociais questionando as "verdades"

materializadas na história da cidade.

Nesse sentido a interpretação das imagens, contidas nos cartões telefônicos, nos

auxiliaram na compreensão dos vários sentidos em torno da construção da história do lugar,

das representações socioculturais que alinhavaram e atam os “nós” das muitas formas de ver e

ler a cidade, recompondo cenários, identidades e narrativas da cidade.

Nessa perspectiva, o estudo da história da cidade, por meio de imagens nos permitiu

transitar temporal e espacialmente pela Ituiutaba que viveu o “boom” da produção do arroz,

passando pelo crescimento das atividades comerciais, de beneficiamento de grãos, que deu a

cidade o título de “capital do arroz”, se transformando, sobretudo a partir dos anos de 1990,

no município referência na produção da cana de açúcar e de seu beneficiamento, até a

chegada aos anos 2000.

Muitas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais se estabeleceram nesse

período, como também se reinventaram as muitas formas de manutenção dos laços culturais

tradicionais, pois houve a inserção de novos sujeitos dentro desse processo produtivo, a

maioria vinda da região nordeste do país, que imprimiram sua marca na cultura local e

receberam a influência cultural do município e que redimensiona a construção da identidade

dos grupos sociais.

Dedutível de tudo isso é que a leitura das imagens nos permite rever a história, pensar a

cidade e as diversas narrativas que compõem o seu novelo histórico como constituinte de um

“espaço de experiência, sensorial e intelectual [...]” (BOLLE, 2000, p.272) que nos permite,

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agora, lê-la sob a égide da reflexão, na tentativa de reordenar o cenário dinâmico dessas

narrativas frente à necessidade de (re) leitura de efetivação de tantas narrativas.

São essas possibilidades que nos direcionam para uma ponderação em relação à

recomposição da escrita da história local. Entretanto, vale levar adiante a preocupação de

Flores (2007, p.270) 4 que indica que “identidade não é o resultado fechado de heranças

culturais, mas a produção contínua e dolorida de criações diárias, inseridas no jogo social”.

Por fim, além de vermos como as imagens são importantes para a vida humana de forma geral,

principalmente ao as entendermos como narrativas, produzidas com um intuito, podemos

compreender justamente a necessidade do homem de se manifestar pela arte a fim de entender

os acontecimentos que o cercam.

Referências

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