cidade dormitório

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"Cidade Dormitório" é um livro de contos sobre as reflexões que fazemos num ambiente urbano, sobre as coisas que as cidades nos fazem pensar.

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"Eu saí da minha terraPor ter sina viageira,Com dois meses de viagemEu vivi uma vida inteira,Saí bravo cheguei mansoMacho da mesma maneira.Estrada foi boa mestraMe deu lição verdadeira,Coragem não tá no gritoNem riqueza na algibeiraE os pecados de domingoQuem paga é segunda-feira".

Capoeira do ArnaldoPaulo Vanzolini

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ÍNDICE

1. Prólogo2. Cidade Dormitório3. O Santo Guerreiro

4. Mulher Sentada5. Maurício Bragança

6. Os Ratos7. A Mosca

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Prólogo

Há quase cinco anos atrás, mudei-me para o Rio de Janeiro com o firme propósito de dedicar-me apenas à literatura.

Havia juntado algum dinheiro trabalhando na cozinha de um navio e acreditava, então, que esta reserva financeira garantir-me-ia algumas semanas até que eu encontrasse um emprego capaz de sustentar a mim e à minha escrita.

A literatura, enquanto companheira, não nos exige muito: apenas nosso tempo e, em certa

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medida, o sentido de nossas vidas. Dramático, mas suportável.

Aluguei um quarto no bairro de Santa Tereza, região conhecida como reduto de artistas, músicos, escritores, etc. Queria que tudo conspirasse a favor do meu plano.

De manhã saía para caminhar na estrada das paineiras com alguns dos moradores com quem dividia a casa – todos seres marginais, em maior ou menor medida, artistas. – ou ia correr só nas escadarias de Santa Tereza.

Depois, caminhava até a Biblioteca Nacional (BN), no centro da cidade, onde ficava lendo o que me aprazia e, ali, tinha como meta

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escrever ao menos uma "boa" página por dia.

Às quatro, creio, a BN fechava. Dirigia-me então à biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil, próximo à Praça XV, onde permanecia até o cair da noite, folheando de tudo um pouco e atento à meta diária de uma "boa" página.

Por fim, voltava para meu quarto e dedicava-me a observar a movimentação das pessoas pelo morro de Santa Tereza. Tudo era feito a pé. A vida tinha o ritmo dos meus passos.

À minha maneira, portanto, tentei enquadrar-me num arquétipo de escritor e esperava que ele se

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ajustasse e se consolidasse com o tempo.

Pois o tempo passou. Em dois meses minhas parcas reservas se esgotaram e o emprego que consegui foi como professor numa escola de idiomas em Niterói, uma cidade do outro lado da Baía de Guanabara, uma cidade dormitório.

Mudei-me do Rio de Janeiro sem ter logrado tornar-me o escritor arquetípico que havia idealizado.

Segui escrevendo – como sigo hoje, nos momentos em que a vida me concede uma ou outra pausa – tendo vivido um plano mirabolante com toda a inocência e incoerência que a idade me permitiu.

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Os contos que compõem este livro são o resultado desse período de minha vida. Dedico-os aos que participam dessa lenta e intermitente jornada.

Campo Grande, 17 de abril de 2011.

Henrique Yuichi Komatsu

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Cidade dormitório

Já passava das sete e meia quando Natacha Marcatto entrou, exausta, em seu apartamento no Ingá. Duas horas em pé num ônibus a esgotara. A ponte Rio-Niterói estava de desistir. "E deve estar ainda" – pensou um tanto ressabiada.

Pessoa miúda que era, ficara aqueles cento e vinte minutos ao sabor do sacolejo da condução, do descortês fluxo das gentes e da revoltante brejeirice masculina que se aproveitava daquele miserê urbano. Carecia de um banho.

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Largou as tralhas onde largou e meteu-se debaixo do chuveiro e ali, por longos minutos, pensou na vida, em Niterói, aquela cidade dormitório da qual teria que sair caso não suportasse mais a rotina migratória que vivia.

Perdia quatro horas da vida em transportes coletivos. "Commuting", pensou consigo mesma lembrando do verbo que aprendera na aula de inglês e que significava o trajeto entre a residência e o trabalho de qualquer empregado. Já deveria ter acabado o curso de idioma, precisava ter inglês fluente no currículo se quisesse um emprego melhor, que pagasse o

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bastante para poder arcar com um aluguel no Rio de Janeiro.

Saiu do banho renovada, mas sem a menor vontade de preparar o jantar. Cozinhar para uma pessoa. Comer sozinha. Lavar a louça. Parecia-lhe uma cerimônia triste demais para aquele horário. "Eu deveria ter almoçado" – refletiu. Tinha fome, precisava comer.

Abriu a geladeira. Do que viu, nem gostou nem desgostou. Já esperava: havia meio peito de frango cru que, àquela altura dos acontecimentos, não se aventuraria a fazer, uma salada de folhas que lhe faltava humor para digerir, uma barra de manteiga (o que

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faria com aquilo?) e meia garrafa de coca cola, já sem gás.

Contemplou o cardápio por alguns instantes e agarrou o engradado com o líquido negro. Lembrou-se que guardara no armário um pacote de salgadinhos (espólio de uma reunião de amigos) e aquela foi a sua ceia.

Enquanto comia e bebia à farta, viajou os olhos pelo apartamento e ficou intrigada ao pousá-los sobre as prateleiras. Havia algo diferente, não sabia precisar o quê. Demorou-se alguns instantes naquele móvel tentando desvendar o enigma. Até que... Todos os seus livros estavam ao contrário.

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Como assim ao contrário? Ao contrário, caro leitor: as lombadas viradas para a parede e os cortes da frente encarando o recinto; alinhadíssimos.

Dispensável dizer que, do jeito que estavam, todos os volumes pareciam-se muito entre si.

Natacha, cansada como estava, não se dignou a levantar. Nunca iria se pôr a ordenar uma estante inteira de livros àquela hora da noite. Com o copo de refrigerante na mão tentava desvendar a identidade de cada obra pela cor das páginas, pela altura ou pela largura; e pensava: "como será que eles foram ficar desse jeito?" – e mastigava um salgadinho.

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Morava sozinha naquele apartamento. Não havia quem culpar. Pensou que talvez um ladrão tivesse entrado enquanto estava no Rio de Janeiro, do outro lado da ponte... mas que ladrão iria dar-se o trabalho de fazer aquilo? Natacha acreditava em gnomos, mas não ao ponto de supor que eles existissem; era uma crença que funcionava como uma passagem para a infância, um toque de ingenuidade na personalidade que construía todos os dias com cuidado. Então, jamais seria capaz de supor que gnomos pudessem ter mexido nos seus livros.

Desistiu dos devaneios e voltou à prateleira.

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Os livros pareciam estar de castigo, ou em protesto. Talvez os dois, refletiu. Desde que começara a trabalhar nunca mais havia encostado num livro, pequeno que fosse, de poesias. O trabalho parecia ter-lhe diminuído a libido literária.

Certamente – considerou – os favoritos, com os quais tinha uma relação quase afetuosa – como a Antologia poética de Carlos Drummond – sentiam-se punidos por aquele abandono.

Por outro lado, aqueles livros importantes, indispensáveis para a formação de um indivíduo, não se subordinariam à empáfia de uma suburbana qualquer, ainda mais se

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tratando duma suburbana de um metro e sessenta que calçava 33. Sob a liderança das "Confissões" de Santo Agostinho, revoltaram-se e decidiram ignorá-la.

"Se os livros tivessem vida...", ponderou.

Natacha contemplava sua pequena biblioteca sem saber o porquê daquela arrumação.

Foi-se o refrigerante, foram-se os salgadinhos e a dúvida permanecia... agora inquietante. Olhava para a bandeira verde e rosa da Mangueira que tinha pendurada no topo da estante e perguntava: "Você viu quem foi?". A bandeira, obviamente, não respondia.

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Tendo em vista a alimentação puramente industrial à que se submetera, não teve o incômodo de lavar a louça, bastou jogar as embalagens no lixo.

Durante essa operação teve uma luz. Quem havia virado todos os seus livros tão cuidadosamente?

Ora, a faxineira. Esquecera-se por completo que Dona Fátima estivera aquela tarde limpando o apartamento. A verdade chegava a ser sem graça, tamanha a simplicidade.

O mistério agora era saber que caraminholas se passaram na cabeça da diarista para inverter todos os livros daquele jeito.

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Apenas uma pessoa que jamais tivesse entrado numa biblioteca e não possuísse intimidade alguma com o objeto livro, poderia fazer uma asnada como aquela. Escovando os dentes, parada diante das estantes, incrédula, Natacha se enternecia por Fátima, a diarista, que talvez sequer soubesse ler. Além disso, de fato, do ponto de vista meramente estético, fazia sentido organizá-los daquela maneira, afinal de contas eles ficavam muito mais homogeneamente dispostos... tons de branco, a mesma textura folhada. Pena que a essência do objeto estava justamente no conteúdo e não na matéria... mas como Fátima iria saber?

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Natacha foi dormir segura de que em toda aquela cidade dormitório que era Niterói, seus livros eram os únicos organizados daquela maneira às avessas.

Sonhou que buscava sua "Antologia Poética" de Drummond, mas não a encontrava, pois todos os livros de todas as prateleiras tinham as lombadas voltadas para as paredes.

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O Santo Guerreiro

Havia decidido naquele exato instante que sua vida, a partir daquele momento e nenhum segundo a mais, iria tomar outro rumo. Não sabia qual, nem sabia como, apenas que do jeito que estava não poderia ficar. Assim haveria de ser ou não se chamava Joana.

Era a segunda de três irmãs, numa família sem pai, do interior do Ceará. Através de uma sequência – demasiadamente bem orquestrada para ser atribuída ao acaso – de encontros e desencontros (sendo os últimos tão decisivos quanto os

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primeiros), tornou-se, aos dezoito anos de idade, uma prostituta carioca. De luxo, é verdade, mas em todo caso "puta".

Tanto é assim que dos mais íntimos aos não tão íntimos, era apenas conhecida como Joana, sem sobrenomes e sem as alcunhas americanizadas das profissionais performáticas.

"Qual seu nome""Joana" – dizia, por vezes

despindo-se e jogando seu nome no esquecimento de um homem que, também nu, apenas perguntara por hábito. A identidade era muito como uma peça de roupa.

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Agora, auferindo-se os méritos a essas coisas da vida que não sói ao entendimento humano capturar, esta cearense, que completava então quase vinte e cinco primaveras, pensou consigo: "Basta".

No tom da decisão não havia o ímpeto revolucionário ou a indignação com o estado das coisas – Joana nunca chegou a conhecer as perturbações psíquicas dos movimentos estudantis. Estava apenas cansada, estava apenas curtida: "Basta; não mais".

Foi sentada no pórtico duma igreja que sentiu essas palavras lhe atravessarem o espírito. À sua frente, ansiosa, uma amiga e colega de ofício gaúcha caminhava em círculos sobre

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saltos altos e muito delgados. Vez por outra resmungava: "Puta que o pariu! É o fim da picada!". Joana desconhecia por completo o que pudesse ser uma picada e não conseguia imaginar o final de uma. Fez uma ou duas suposições mentais, mas logo desistiu por não fazerem muito sentido.

Fato é que as duas haviam saído de uma bela festa na zona oeste para atender ao pedido de um antigo cliente, rico, na zona sul: um programa a três, de madrugada. Cruzaram a cidade de táxi e foram bater no luxuoso edifício, já muito conhecido de ambas. Não havia ninguém. "Puta que o pariu. É o fim da picada".

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Os últimos tostões haviam ficado na corrida: fora-se o capital de giro. Não poderiam voltar de táxi. Era tarde demais para pegarem um ônibus.

Faltavam poucas horas para romper o dia, o orvalho lhes umedecia a maquiagem. Vestidos finos, cabelos feitos, saltos altos, na sarjeta. Tinham que se meter em algum canto até que os coletivos começassem a circular. "Puta que o pariu. É o fim da picada".

Foram parar no pórtico da Igreja de São Jorge, três quadras dali, onde Joana, conversando com seus botões (na verdade um decote), decidiu: "Basta".

Sentia frio. Não só perdera o último cliente de sua vida como

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também acabava – com aquela decisão – de perder o que conhecia mesmo por vida desde os dezoito anos de idade. O que iria fazer agora?

"Puta que o pariu" – repetiu a amiga esfregando os braços para se aquecer – "Não... É o fim da picada".

Joana ergueu a cabeça para lhe perguntar o que era uma picada, mas assim que avistou a estátua de São Jorge atrás da amiga, disparou: "E esse aí no cavalo branco, quem é?".

A amiga se riu: "Não sabe? É São Jorge, o Santo Guerreiro".

Joana achou contraditória a ideia de um santo guerreiro, mas já lhe haviam falado sobre uma Maria que

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era puta, então deixou estar: "Que bonito, não?".

"É um homem guapo num cavalo branco, Joana. É bonito, mas é mentira".

Joana ficou com São Jorge na cabeça enquanto, com o olhar perdido, fitava os próprios joelhos descobertos que trincavam de frio.

Às cinco e quarenta passou o primeiro ônibus para o centro. Subiram e sentaram-se nos fundos, sempre sobre o olhar putanheiro do cobrador.

Com a fronte encostada na janela, Joana repensava sua vida enquanto a amiga ao lado discorria sobre a decisão de parar de fumar, decretada

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fazia quase duas semanas, mas ainda engavetada.

Pensou em comunicar seu desligamento daquela vida à colega. Mas de que adiantaria? Seria como dizer: "Vou parar de fumar". Não lhe daria confiança e tampouco poderia dar conselhos. Joana calou-se até a hora de saltar – no Bairro de Fátima: "tchau". Já passava das seis horas da manhã.

Subiu as escadas fatigada, não acendeu as luzes. Jogou a bolsa ao lado do telefone. No banheiro, despiu-se; as roupas ficaram onde caíram. Olhou seu reflexo apagado no vidro do box. "Você está atrasada; eu já não

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sou assim" – pensou essa frase incerta, cansada.

A água escorreu-lhe quente pelo corpo. Não lavou a alma.

Deitou-se nua, ainda úmida; amanhã começava uma vida nova. Melhor? Pior? Passava das seis e meia. O lençol chupava-lhe a água da pele. O corpo mendigava um pouco de sono, mas a angústia recusava-se a apagar as luzes da alma. Olhava para o teto que aos poucos ganhava as cores da manhã... "Deus, se você existe, por favor, me faça dormir" – pedia Joana. Pediu tanto que acabou dormindo. Agora, disso, não infira o leitor a existência de Deus.

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Até porque assim que cerrou os olhos, tocou a campainha. Xingou.

Quis ignorar, mas o dedo do filho da puta era insistente no interruptor. Foi ver quem era.

Era Carlos, o bicheiro.Era cedo demais.Era a vida, cafetina, chamando.Era o destino, como sempre,

rindo-se de Joana."Ó Joana! Qual vai ser o jogo

hoje?".Tinha que atendê-lo, devia-lhe

dinheiro. Além disso, pensou Joana, Carlos era boa gente, não merecia a desfeita. Cobriu-se e foi abrir a porta. Arrastava-se. Rodou as chaves com vagar.

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Assim que o bicheiro pousou os olhos no semblante da puta disse retirando-se: "Desculpe Joana; eu volto mais tarde".

"Pode entrar, Carlitos"."Olhe só para você. Vá dormir,

mulher"."Entre. O homem do sono

esqueceu de entregar o meu essa noite".

Há certas querelas que se deve conceder às prostitutas sem exigir razões. Uma delas é a administração do próprio corpo. O bicheiro entrou.

"O que aconteceu contigo?"."Estou deixando essa vida,

Carlitos".Silêncio.

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"Deixando como?"."Não sei, não sei como. Só não

quero mais isso".Silêncio. Joana, aproveitando a

pausa, foi até a cômoda e voltou com uma pequena caixa de madeira toda marchetada.

"Olha Carlitos, eu sei que estou te devendo um dinheiro...".

"Não. Não se preocupa com isso"."Me preocupo sim. E não discuta,

por favor. Eu estou cansada"."..."."Pegue essas joias que estão aí

dentro e veja quanto lhe pagam por elas. Acho que dá para cobrir as minhas dívidas. Se faltar um pouco...".

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"Não vai faltar" – disse o bicheiro sem abrir a caixa.

"Obrigada, Carlitos. E se sobrar algum, joga no bicho. Vai ser meu último jogo".

"E o que é que você vai fazer agora criatura?".

"Não sei. Vou dormir, acordar e daí eu vejo o que faço".

"Estou feliz por você Joana... apesar de tudo, vai dar tudo certo" – disse Carlitos dirigindo-se para a porta.

"Obrigada. Tchau Carlos"."Tchau... Ah! Caso sobre alguma

coisa dessa caixa aqui, onde você quer que eu jogue?".

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"Não sei... hoje eu estive numa igreja que tinha uma estátua muito bonita: era um homem montado num cavalo e embaixo dele tinha um jacaré. Joga num dos dois".

Carlos riu-se da ignorância da amiga. Confundir um dragão com um jacaré! Mas não disse nada. Foi-se.

Ao fechar a porta Joana sentiu que soltara a primeira amarra de sua antiga vida. Estava mais leve. Tirou do gancho o telefone, deitou-se e chorou. Chorou muito porque chorou por tudo. Embebeu o travesseiro em lágrimas, trocou de lado e finalmente dormiu. Foi seu primeiro sono sem ser puta em quase dez anos. Quando havia sido a última vez que dormira

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assim? Talvez tenha sido no Ceará. Já não se lembrava.

E Joana sonhou. Sonhou muito e sonhou tanto que a uma certa altura não mais sabia se estava morta ou se ainda vivia. Era o desespero onírico.

Sonhos bons e sonhos ruins alternaram-se e ao final de um sonho bom a cearense despertou. Súbitas rufadas de tambores e batuques de tamborins não a deixavam mais dormir. Era o samba, a voz do morro.

Tentou em vão ignorá-lo. Já era quase noite, dormira bem – o suficiente. O que iria fazer agora?

Espanou a dúvida, levantou-se e foi ver do que se tratava a "bateção".

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Ao aproximar-se da janela a cena que viu sugeriu-lhe que talvez ainda estivesse entre sonhos: Era Carlitos à frente da bateria da Mangueira.

"Ó Joana! Abre a porta!"."Que porra é essa homem?"."Mulher de Deus! Você não sabe

o que aconteceu... Abre essa porta!".Carlitos subiu. O batuque da

Mangueira continuou na calçada em frente ao edifício.

"Que é isso?" – perguntou Joana ao abrir a porta.

"Mulher, você quebrou as bancas do Rio e de São Paulo" – disse Carlitos tomado de excitação.

Joana não entendeu.

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"Lembra das joias? Pois bem, vendi tudo e sobrou muito dinheiro. Tinha coisa valiosa ali dentro. Tentei te ligar pra ver o que fazer com aquela dinheirama toda, mas só dava ocupado. Como você mandou jogar, eu joguei. E como o dinheiro era demais, joguei metade aqui e a outra metade em São Paulo. Sabe como são essas coisas. E você não sabe, mulher, em São Paulo deu cavalo e no Rio deu Jacaré. Você está riquíssima Joana! São Jorge te abençoou!".

Joana estava pasma. Nunca acreditara em Deus e nunca acreditara em sorte: por falta de provas. Agora, ouvindo Carlitos dizer as coisas que dizia, a jovem, desempregada, não

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sabia o que pensar... seria sorte? Seria Deus?

"E então, não vai dizer nada?".Joana, que aos quatorze anos

chorou quando viu pela primeira vez o mar, desfez-se em prantos ao avistar diante de si, também pela primeira vez, um futuro. Quem foi que fez o mar tão grande? E quem foi que fez o futuro tão parecido com o mar? Entre soluços balbuciou: "Deixa a Mangueira entrar". E lá se foi Carlitos.

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Mulher Sentada

Era a nona vez. Aquela era a nona vez em menos de duas semanas que Maria Auxiliadora vinha parar ali: no mesmo lugar, à mesma hora. Uma assiduidade estranha ou, ao menos, misteriosa para uma mulher cujo ordenado não chegava aos quatro dígitos.

Estar ali lhe custava dez mangos por vez. Faça-se a matemática e verão o que quero dizer.

Maria deixava-se ficar durante quarenta e cinco minutos; sempre na mesma sala, sentada no mesmo banco, de frente para a mesma

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parede; depois saía apressada para não chegar com atraso ao trabalho.

Perdia com isso o seu horário de almoço; em parte para não incomodar, em parte para não ser incomodada, mas principalmente para que nenhum de seus colegas soubesse desse novo hábito, por vergonha.

Auxiliadora trabalhava na recepção de um laboratório de análises clínicas: exames de sangue, de fezes, urina, etc. Entregava os pequenos recipientes plásticos de coleta, ordenava a documentação e, ao final, informava: "Os exames começam amanhã a partir das sete e meia. É preciso estar de jejum por, no mínimo, nove horas. Obrigada".

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Essa era a sua rotina, sempre de uniforme, camisa branca, cabelo preso, colete azul marinho, combinando com a calça, sapatinhos pretos e maquiagem discreta. Ficava bonita assim vestida. O padrão das vestes realçava-lhe a maturidade e o frescor envernizado dos trinta e poucos anos.

E era assim, uniformizada, que durante as duas últimas semanas, no seu horário de almoço, havia frequentado, quase diariamente, a "última sala à direita do corredor" do segundo piso do Museu de Arte de São Paulo. Por dez reais cada vez, sentava-se no único banco do recinto encarando o terceiro quadro da

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parede – contando-se a partir da direita. Quarenta e cinco minutos.

O quadro que despertara o interesse de Maria Auxiliadora era uma grande tela pintada a óleo por um artista italiano. "Mulher Sentada" era o nome da obra, Modigliani, o do pintor.

Agora, faz-se necessário que eu descreva a pintura. A narrativa o pede e, acredito, pede-me o leitor. Mas isso lá é possível? Fato é que não se paga direito autoral pela reprodução por escrito de nenhuma obra visual, tamanha a distância entre o resultado que se obtém e o original.

Todavia, farei o melhor que puder e, caso fique devendo, saibam todos

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que o Museu de Arte de São Paulo não há de sair da Avenida Paulista, podendo ser visitado por dez reais, sendo o quadro parte do acervo permanente.

Por certo não hão de encontrar Maria, em razão dos eventos que se seguem. Mas vamos à pintura.

A "Mulher Sentada" é o retrato de uma mulher sentada. Relutei em escrever esta linha, parecia-me demasiado óbvia. Todavia, considerando o estado das coisas na arte contemporânea, suspeito que possa ser bastante elucidativa.

Pois bem, a mulher retratada tem cabelos castanhos escuros divididos próximo à têmpora esquerda e presos,

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possivelmente, em forma de coque na altura da nuca, o que acaba por descobrir-lhe toda a fronte. O rosto aparece todo: olhos grandes e negros, maçãs sutilmente delineadas, lábios carnais e a musculatura do queixo levemente tensa.

Nota-se ainda a face enrubescida, talvez pelo constrangimento de estar sendo retratada, sentada diante do pintor que a esquadrinha com um pincel.

O vestido negro deixa à vista os ombros e o colo. Vê-se o curvo encontro do pescoço com a linha dos ombros, a suave protuberância das clavículas e o delta onde se tocam os seios. Os braços também ficam

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expostos. Uma pulseira fina e escura na metade do antebraço esquerdo contrasta com a alvura da pele e desenha o torneamento das carnes. O membro direito pousa relaxado sobre a grande saia de tecido preto.

Afastando-se um passo da tela, duas coisas saltam à vista: a postura da retratada e os detalhes da sala ao fundo. A mulher sentada parece levemente inclinada, apoiando o peso do corpo sobre a nádega esquerda. Sua cabeça faz um contrapeso para o outro lado, o que lhe alonga a linha do pescoço.

O lugar onde se senta é coberto por um tecido bordô e está próximo à quina de uma parede azul. A frieza do

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quarto contrasta com a face ruborizada da mulher.

Havia duas semanas que Maria Auxiliadora notava esses detalhes.

O segurança do museu estranhava a frequência e o interesse. Para ir tantas vezes observar o mesmo quadro por quase uma hora era preciso enxergar mais que uma simples mulher sentada. Às vezes, depois de ver Maria partir para o trabalho, o segurança ia dar uma olhada na tela. Não via nada além de tinta e balançava a cabeça contrariado: "Louca" – pensava consigo – "varrida".

O fato é que Maria Auxiliadora enxergava nos traços e cores um

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sentimento: o desejo. Em sua cabeça a mulher sentada era uma mulher desejada, pressentia-o no cuidado com que lhe fora pintado o busto, nas pinceladas que formavam o pescoço, na linha firme dos braços e no rubor da face. Era como se o pintor quisesse agarrá-la com os olhos, apertá-la contra sim como o pincel contra a tela.

Maria contemplava o quadro e, aos poucos, suas mãos começavam a suar até quase se liquefazerem, uma febre sutil tomava-lhe o pescoço, engolia a seco a saliva que brotava debaixo da língua, as coxas pareciam inchar até tocarem-se próximas às virilhas, os joelhos fraquejavam e

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Maria, secando as palmas nas calças, voltava a sentar-se com as pernas cruzadas, sem tirar os olhos da tela. Não se cansava daquela experiência que o segurança do museu talvez jamais viesse a entender.

Auxiliadora queria sentir-se tão desejada quanto a mulher do quadro.

Certa feita, ao passar por um brechó no centro da cidade, viu, num cabide, um vestido negro muito parecido com o do quadro. Entrou na loja, provou-o, sentou-se diante do espelho, pousou a mão direita sobre as pernas, inclinou-se levemente sobre a nádega esquerda, esticou o pescoço e perdeu-se em seu próprio reflexo. Parecia-se com a mulher

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sentada? Sim. Havia quase tudo naquele reflexo, menos o desejo. Decidiu comprar a peça e deixou no brechó parte significativa do salário.

Provava com frequência o vestido no silencio de seu quarto.

Passara a reparar no modo como os homens a olhavam. Será que a desejavam? Em nenhum daqueles olhares percebia o desejo que buscava; entregava os pequenos recipientes de plástico para a coleta de fezes e urina: "Os exames começam amanhã a partir das sete e meia, é preciso estar de jejum por, no mínimo, nove horas. Obrigada".

Então, no horário de almoço ia ao Museu de Arte de São Paulo para

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sentir as mãos suarem e a nuca em febre.

Na terceira vez em que deixou as dependências do museu, decidiu que iria aprender a pintar. Queria pintar um homem que a desejasse tanto quanto Modigliani havia desejado a mulher sentada.

Matriculou-se numa escola de artes, comprou pincéis, tinta, paleta e um par de telas. Pintou inúmeros tipos masculinos. Retratos, nus, brancos, negros, cafuzos, mulatos, vermelhos, amarelos, jovens, idosos. Todos a olhavam, mas Maria não lograva pintar-lhes uma alma, um desejo, duas órbitas. Eram todos cegos.

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Auxiliadora, frustrada, voltava no horário de almoço ao museu para tentar descobrir onde se escondia o desejo que brotava do quadro.

Estava nos olhos do pintor, que ninguém via, exceto a mulher sentada. Observava então atentamente aqueles olhos escuros, feitos com pouquíssimas pinceladas. Na nona vez em que perdeu seu almoço diante do quadro, concluiu: "Essa mulher não sabe o quanto é desejada". "Os olhos não veem... os olhos não veem".

Naquele dia deu a todos os seus homens os mais variados olhos e olhares. Varou a madrugada pincelando pupilas.

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Na manhã seguinte não foi ao trabalho. Não vestiu uniforme. Pôs-se dentro do vestido que comprara no brechó do centro da cidade e subiu para o terraço de seu prédio. Fazia um tempo bonito, sol brilhante, céu de brigadeiro. Ali Maria Auxiliadora passou todo o dia encarando o sol de olhos abertos.

Ao final da tarde estava cega.A cegueira era uma luz opala que,

de tão próxima, incandescia os pensamentos.

Voltou para o seu apartamento aos tatos e sentou-se no centro do cômodo onde montara seu ateliê. Derrubou a lata com pincéis, mas não se deu ao trabalho de recolhê-los.

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Esperou, esperou, esperou, esperou por horas até que a cegueira mudasse de cor e ficasse negra. Já era noite alta. Não se lembrou de acender a luz.

Pousou a mão direita sobre o colo, reclinou-se sobre a nádega esquerda, inclinou a cabeça e deixou-se ficar. Pouco a pouco, sentiu o sangue subir-lhe à face. As mãos derretiam e as coxas pareciam inchar, ao passo que uma tênue febre ardia por todo o seu corpo. Sentia que todos os homens da sala a desejavam. Agarravam-na com os olhos: um desejo que apenas ela poderia imaginar.

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Maurício Bragança

Maurício Bragança, quarenta e oito anos, morador de Santa Tereza, funcionário público. Às sete horas da manhã está no bonde em direção ao trabalho. Às seis e quinze da tarde está no ônibus 26, voltando para casa. Pontual.

Certo dia, entre uma condução e outra, tombou morto. Estava no sanitário masculino da instituição onde trabalhava. Sentado na privada, com dores no peito, suspeitou que era acometido por gases. Estava na realidade tendo um infarto que

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acabaria por lhe fulminar a existência poucos segundos depois.

Foi encontrado com as calças arriadas, estatelado no azulejo. Em seu velório, correram maldosas suspeitas de onanismo como causa mortis. Maurício não viveu para ouvir o absurdo.

Depois do enterro, que estava cheio (para a sua satisfação, caso ainda estivesse vivo) e tendo a alma devidamente encomendada, Maurício partiu para o céu.

Lá chegando, estranhou profundamente o que viu. Diante de si erguia-se uma escadaria idêntica à de Santa Tereza: íngreme, trezentos e tantos degraus. "O que é que está

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acontecendo?" – indagou em voz alta, sem notar que estava só.

Como não houve resposta, ficou a contemplar a subida. "Bem que o céu podia ficar numa descida". Estava com preguiça de subir aquilo tudo, passara a vida desfiando aqueles degraus.

Sentou-se no segundo degrau para "dar um tempo", afinal de contas tempo, naquela condição de morto, era do que mais dispunha. Tinha para dar e vender.

Por outro lado, trocaria toda a eternidade por um cigarrinho. "Já pensou um cigarrinho no céu?" – e riu-se do chiste teológico. "Bom, isso se esse lugar já for considerado paraíso" – disse olhando em redor de

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si. "O que eu duvido muito" – concluiu. "Isso aqui deve ser uma sala de espera... para os pobres, é lógico. Porque, vamos convir, uma escada dessas...".

Maurício postergou o quanto pode, até que, finalmente, como não aparecia ninguém para conversar e lhe fazer companhia, no ócio, meteu-se a subir os degraus. "É o jeito", pensou.

Enquanto dava os primeiros passos rumo ao paraíso especulava que àquela altura mais gente já devia ter morrido, afinal não é brincadeira o que morre de gente nessa vida.

"Que história é essa?". E se ele fosse o único a ter que subir as

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escadas de Santa Tereza? "É realmente só o que me falta".

Todavia, para seu espanto, o exercício não lhe pareceu tão penoso. O fato de não ter um corpo facilitava muito a vida. As pernas não lhe doíam, a respiração não era custosa e o suor não encharcava as vestes. Mesmo assim, lá pelo centésimo degrau, Maurício parou para descansar.

Quando vivo já achava o cúmulo do mau gosto terem construído a escada em Santa Tereza. Agora, reproduzi-la no céu era um desaforo. "Quem terá sido o lazarento?", perguntou sem medo de represálias, já que em sua cabeça deus, bom e fiel,

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nunca lhe aprontaria uma presepada daquelas.

Se ao menos tivesse alguém com quem conversar, discutir um pouco sobre a morte nessa nova perspectiva, tomar uma cerveja com algum santo ou anjo... Seu favorito era São Sebastião. Veio-lhe logo a imagem da cerveja jorrando pelos orifícios das flechas enquanto o pobre dava seus goles. Riu-se.

Voltou à subida esperançoso de encontrar companhia no céu. Ia pensando na vida enquanto fitava os joelhos subindo e descendo a cada passo.

Ao galgar o último degrau deu com uma porta de madeira, toda

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pintada de cinza. Maçaneta barata. Frustrou-se. Imaginava um comitê de boas vindas, um portão de madeira de lei e de cujas frestas vazassem a luz ofuscante do paraíso.

Agora, diante daquela portinhola cinzenta, suspeitou mesmo que as luzes do céu estivessem apagadas. "E então?" – pensou consigo. Vacilante, bateu: "toc, toc, toc". Aguardou alguns instantes olhando para o chão... bateu novamente. Nenhuma resposta. "Essa deve ser a entrada dos miseráveis..." – raciocinou: "Porque rico não entra, pobre é convidado de honra, agora, miserável, unha de fome, tem que esperar... e o pior; como esse tipo de gente não morre

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fácil, é capaz de eu ter que ficar esperando sozinho por um bom tempo".

Sentou-se na escada. Pensou em passar um bilhetinho por debaixo da porta, mas não tinha papel nem caneta. Além disso, o que iria escrever? Talvez os anjos – funcionários públicos como ele – se rissem da inocência do requerente. Decidiu que não lhes daria a satisfação.

Entre uma divagação e outra veio-lhe um pensamento que o aterrorizou: "E se o céu não existir? E se atrás dessa porta vagabunda não tiver nada... uma parede de tijolos? E se o

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padre tivesse encomendado sua alma para o lugar errado?".

Levantou-se, agachou-se ao pé da porta e tentou espiar alguma coisa pela soleira sem sucesso algum. Olhou a escada que descia até onde a vista não alcançava e temeu a eternidade. Imaginou-se ali para todo o sempre.

Bateu mais uma vez à porta, testou a maçaneta. Não houve resposta. Sentou-se; desejava ardentemente um cigarro para poder raciocinar. "O que será que está acontecendo?". Quis chorar, mas isso de lágrimas são coisas do corpo que já não tinha. A desgraça mesmo era não ter com quem conversar.

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Como ali em cima as coisas não davam futuro, resolveu descer as escadas. O fez num piscar de olhos. Chegando lá em baixo, deu com outra porta. Não se recordava dela ali; aliás, não se lembrava como chegara até a escadaria de Santa Teresa (a versão celeste). Bateu. Espiou, tentou abrir. Nada. Estava preso.

Finalmente, já que ninguém estava olhando, tomado de uma revolta de tipo popular, decidiu que iria arrombar aquela pinoia. Tornara-se um vândalo celestial.

Ocorre que os rebites metafísicos não só são duráveis, como também muito resistentes. Seu ímpeto

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revolucionário sofreu uma derrota vergonhosa para o status quo divino.

Visto que àquela altura já havia perdido por completo o medo da morte – aliás, nutria agora por ela um desprezo profundo – resolveu matar-se.

Subiu novamente as escadas num passo fúnebre; de costas para a porta superior tomou o embalo que pôde, deu dois largos passos e mergulhou nos degraus, de ponta, como num salto ornamental. Estatelou-se. Aterrissou de testa e rolou duzentos e oitenta e poucos degraus até cair aos pés da porta inferior.

Como podem supor, não estava ferido, exceto no orgulho. Recusou-se

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a levantar, manteve a cara no chão, desistiu de si. "Malditos gases" – pensou consigo. "Aquelas cebolas de merda". E ali ficou para sempre, desenganado com a eternidade.

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Os Ratos

Os ratos são animais nojentos. Não sou hipocondríaco, caro leitor. Ao contrário, meu asco a esses roedores não nasce das doenças que possam transmitir por suas fezes ou urina, mas da repugnância moral que exalam. Explico-me.

Um rato, ao contrário, por exemplo, de um sapo, parece ter plena consciência de seu aspecto e, além disso – e isso é muito importante – chega mesmo a sugerir, com seus olhinhos negros e rabo nu, que sua nojeira é intencional, premeditada.

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É essa perfídia ratinheira que me enerva e justifica a primeira sentença desta página.

Os ratos merecem morrer, pois o crime é doloso. Mas vamos à história.

Outro dia, num sábado, ao sair do armazém da Rua Monte Alegre, com meus bolsos cheios de estricnina, encontrei-me com Marcel, um meu vizinho em Santa Tereza. Cumprimentamo-nos e ele perguntou se eu não gostaria de ir visitá-lo ao final da tarde.

- "Tenho duas amigas vindo de São Paulo passar alguns dias aqui no Rio e pensei em servir-lhes um jantar lá em casa... como você é cozinheiro...".

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- "Claro, claro... ótima ideia Lá por quatro horas está bom?"

- "Ótimo! Eu vou comprar as coisas... daí... você... quatro horas!".

Marcel era um sujeito confuso.A ideia não era tão boa assim, mas

como eu não tinha nenhum plano mais interessante, não faria mal passar a noite na companhia de duas paulistanas.

- "Quatro horas, então".- "Quatro horas".- "Só uma coisa".- "Hum".- "Você já teve problema com

ratos na sua casa?".- "Não, não que eu me lembre.

Por que?".

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- "Não. Por nada".O fato é que na noite anterior um

rato cruzara minha cozinha parando por um segundo para lançar-me um olhar sarcástico.

Voltei para casa, busquei na geladeira um pedaço de carne velha, porcionei-o em tiras que supus serem atrativas aos olhos dos ratos e temperei-as com estricnina. Acredito ter exagerado um pouco no tempero, mas como diria um amigo, rato bom é rato morto. Eu apenas queria ter certeza.

Espalhei os fillets pela casa com a mesma dedicação e curiosidade de uma criança que planeja o afogamento de formigas. Ah! Os

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ratos! Como são asquerosos. "Comam à vontade", pensei comigo.

Depois disso, fui lavar as mãos e retornei à leitura de meu livro. Dionélio Machado: "Os Ratos". Como são as coisas nesse mundo. Só me dei conta da coincidência depois de todo um parágrafo. Olhei o título impresso na capa e me ri.

Não recordo de logrei chegar ao final da página. Verdade é que veio-me o sono e, ao despertar, já eram as benditas quatro horas. Pensei em não ir cozinhar para as amigas de Marcel, mas repensei, ergui-me tranquei a casa e fui.

Ao pôr os pés na rua, ocorreu-me verificar as carnes com estricnina.

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Vacilei, não sabia se seguia ou se voltava; já estava atrasado. Destranquei o portão e meti-me casa adentro. Pus os cantos dos cômodos em revista, mas os ratos, como eu, certamente haviam caído no sono após a leitura. Sabendo-se lá Deus o que leem esses bichos. A carne estava intacta. Entristeci. Queria ver os lazarentos estrebuchando; imaginava-os espumando pela boca quando tocou o telefone. Era Marcel.

Ao entrar na casa de meu amigo, que não distava mais que duzentos passos da minha, notei que as visitas já haviam chegado.

Fui gentilmente apresentado a ambas. Diana Carvalho e Sofia Telles.

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A última era alta, esguia, tinha negros cabelos cacheados, lábios definidos e tez branca. Aparentava ser tímida, mas poderia muito bem ser mera aparência, afinal, uma mulher com aquela estatura, não sendo completamente estúpida, não tardaria muito a descobrir vãos os esforços em se esconder. O tempo de uma adolescência bastaria para esclarecer-lhe esse fato.

Diana, por sua vez, era mais baixa que a amiga e, para compensar a pouca estatura, falava muito e com as mãos.

Além de palavras, tinha também mais carnes. Seus olhos eram grandes e castanhos, parcialmente cobertos

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por uma franja de cabelos lisos e, como os da amiga, negros. Não lhe fui com a cara logo no aperto de mãos.

Por quê? Hão de me perguntar alguns. Não sei lhes dizer. Desde pequeno tenho o hábito de fazer fortes julgamentos à primeira vista e fiar-me em tais como verdades divinas. "Injustiça!". Podem protestar, mas o fato é que Diana não me passou pela goela.

Foi gentil, sem sombra de dúvidas, ocorre que ao fitar-lhe os olhos notei a arrogância da alma. Era inegável, estava ali, estampada, intencional, para que todos vissem. Naquele instante pareceu encarar-me como o rato da cozinha. Tive asco.

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Marcel atentou para a hora. "O jantar", disse e arrastou-me para dentro da cozinha. "Se quisermos comer é bom começarmos a cozinhar".

Cortávamos os ingredientes e discutíamos banalidades. Receava expor minha impressão sobre Diana, pois Marcel, assim como o leitor, não compreenderia a versão e certamente teceria alguma crítica; dir-me-ia "intolerante", ou algo do gênero, como de costume. Além disso, a própria poderia entrar na cozinha a qualquer momento... sendo isto justamente o que ocorreu.

"Oi", disse timidamente esticando a cabeça pela porta. Era uma timidez

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falsa, ensaiada durante anos e agora interpretada à perfeição. "Posso ajudar?" – perguntou retirando a franja da frente dos olhos. Àquela pergunta, àquela dissimulada prestatividade, deixei a aversão e passei ao ódio.

A desgraça é que não se pode demonstrar um preconceito sem ser injusto e eu não daria àquela figura a satisfação de repreender-me. Queria ignorá-la, mas fui cortês. "Não, não precisa, já está quase tudo pronto", e sorri um falso sorriso.

De fato, para que pudéssemos comer, bastava pôr os pratos no forno durante uma hora. Foram um dos sessenta minutos mais angustiantes

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de minha vida, pois tive que dar atenção a Diana.

Sentamo-nos todos na sala. Marcel enrolava seu cigarro de palha, Sofia o observava: tímida e desconcertantemente alta. Diana falava e alguém tinha que ouvi-la. Eu o fazia e a cada afirmação, a cada opinião vazia e a cada piada mal calculada, odiava-lhe.

Diana, ao contrário, ria-se, perguntava minha opinião sobre os assuntos, agarrava-me e chacoalhava-me pelo braço, como se com os solavancos os argumentos se tornassem mais convincentes. Assim, deliciava-se com seu próprio poder de persuasão.

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Era simpática, o que só fazia crescer a repulsa. Não mais a suportava.

"Com licença, vou ver se a comida está pronta" – disse levantando-me na ânsia de sair daquela situação. Marcel ainda lambia a palha para fechar seu fumo e pareceu não me notar os movimentos. Apenas pareceu, pois assim que entrei na cozinha gritou: "Traga-me o fósforo, por favor!".

Ao ouvir seu pedido, busquei, como que por reflexo, algum isqueiro em meus bolsos. Encontrei apenas uma bisnaga de estricnina esquecida. Fitei-a por alguns segundos na palma de minha mão, intrigado. Retornou

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para meu bolso. Os pratos estavam prontos.

Posta a mesa, sentamo-nos todos e a ingrata conversa retomou sua marcha. A diferença é que agora os três atentavam para as anedotas de Diana. Eu concentrava-me na mastigação para não lhe falar umas asneiras.

Diana comentava sobre a ignorância das massas, falava de como se compadecia das pessoas que não logravam compreendê-la e de como não se sentia paulistana ou brasileira, mas uma cidadã do mundo. Levantou a bandeira de alguma revolução e se disse pasma com a incapacidade do governo em ver a realidade.

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Cometeu a imprudência de perguntar minha opinião e eu o despautério de lhe ser sincero: votara no candidato da situação e não acreditava na revolução. Para quê? Pergunto-me hoje. Para quê?

Tive que aturar um sermão sobre a vida. Queria passar uma tarde agradável e, no entanto, suportava os desatinos de uma mulher arrogante, cidadã do mundo e revolucionária. Para contornar a situação, propus que abríssemos um vinho.

"Eu não posso beber hoje, estou tomando antibióticos" – respondeu Diana com má vontade.

Não perguntei que doença a afligia para evitar mais uma longa

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narrativa cheia de afetações sobre a vida daquela mulher. Mas isso não impediu que Marcel o fizesse: "Eu tenho refrigerante aí se você quiser. O que é que você tem?". Diana aceitou o refresco e começou a minuciosa apresentação de sua enfermidade.

Parti para a cozinha em busca do vinho e do refrigerante. Recostei-me na parede de azulejos para deixar que o tempo escoasse um pouco e, com ele, a ladainha sobre alguma infecção.

Enchi três taças com o vinho tinto que Marcel guardava na geladeira e, ao tentar abrir o engradado de Coca-Cola, minhas mãos, úmidas com o suor da garrafa de vinho,

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escorregaram e foram vencidas pelo artefato plástico.

Sequei-as nas calças para que ganhassem aderência e, mais uma vez, senti a bisnaga de estricnina em meu bolso. Tinha-a na palma de minha mão quando Diana gritou: "Precisa de um homem para abrir essas garrafas?". Risos na sala.

Não me pergunte por que o fiz, caro leitor. Até hoje eu mesmo não o sei, mas abri a bisnaga, pinguei algumas gotas num copo vazio, abri o engradado de refrigerante num piscar de olhos e completei até a boca. Levei-os à mesa, fizemos um brinde e bebemos.

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Em menos de cinco minutos Diana deixou de falar, deixou de rir, empalideceu, suava em bicas e suava frio. Eu fingia preocupação para acompanhar as emoções da casa. Diana tentou levantar-se e, ao fazê-lo, olhou-me por um instante nos olhos. Não fingia, não encenava, pela primeira vez simpatizei com Diana. Vomitou sobre a mesa, vomitou pela casa em direção ao banheiro e continuou vomitando mesmo sem mais ter o que vomitar. Tremiam-lhe as carnes, a franja despenteara e os cabelos lhe grudavam na face lambuzada de suor e vômito.

Na ambulância cabiam apenas mais dois. Sofia e Marcel pegaram a

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carona. Eu ficaria em casa aguardando o telefonema com as notícias. Forma-se.

Retornei para minha casa, acendi as luzes e notei um rato morto no canto da sala. Havia comido o pedaço de carne que eu deixara atrás do armário.

Antes de empurrá-lo com a vassoura para dentro de um saco plástico, fitei-lhe os olhos arregalados. O sarcasmo sumira por completo. Embrulhei-o junto com a bisnaga de estricnina que tinha no bolso e lancei-o ao lixo.

Banhei-me, retirei do gancho o telefone e fui dormir: de barriga cheia, achando o mundo um lugar mais livre.

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A Mosca

"Era uma mosca graúda e negra" – disse tio Nelson com seu habitual ar anedótico. Voava de uma lâmpada a outra da sala, onde amigos e família acomodavam-se para um café. Cirandava um bulbo e depois, com a mesma cerimônia ou indiferença – conforme se suponha a índole do inseto –, ia cirandar a outra lâmpada.

Verdade é que não discriminava as luminescências. Volteava tanto em sentido horário, quanto em anti-horário. Versátil.

Deixou-se ficar nessa romaria por vários minutos, o que, segundo um

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amigo biólogo corresponde, no calendário das moscas, a quase cinco anos. "Cinco anos" – exclamou com as mãos espalmadas e com uma expressão de assombro.

"Ora Nelson, você nunca teve amigo biólogo!" – protestou tia Marta, vindo da cozinha e interrompendo a narrativa.

Tio Nelson costumava inventar citações e colocá-las nas bocas dos amigos e, não raramente, na falta destes, inventava também os amigos.

"Quem te disse isso? E na minha viagem pela Amazônia eu não conheci um estudante de biologia alemão? Parece-me que hoje é uma das

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maiores autoridades no assunto. Um Alexandre von Humboldt moderno".

Tio Nelson possuía também o hábito de inventar currículos para dar veracidade aos seus personagens.

"Pois bem" – seguiu ainda contrariado com a interrupção – "depois de cinco anos a mosca, talvez por cansaço, tédio ou simples falta de cérebro, resolveu pousar sobre a lâmpada".

"Eu já ouvi muita gente confiável dizer que a resistência de tungstênio de uma lâmpada de cem volts como essa que nos ilumina, por exemplo, chega a mais de três mil graus Celsius. Três mil" – disse com os dedos médio, anular e mínimo levantados.

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Minha tia torceu o nariz e olhou para o teto em busca de deus. Tio Nelson viu, mas fingiu que não, e continuou o relato.

"E o que aconteceu? Como o bulbo da lâmpada era curvo, a mosca, ao pousar, encostou a barriga no vidro e queimou-se. A pobre saiu gritando de dor".

"E mosca lá grita Nelson?" – interrompeu, mais uma vez, tia marta. "Acho que nem dor ela sente".

"Grita sim minha velha. Nosso ouvido humano é que não escuta. Eu, que vi a mosca, sei que ela estava a berrar de dor".

"E não só isso! Se ela não tivesse olhos tão grandes em que não cabem

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sequer as lágrimas, digo que a pobre teria chorado, porque além de lhe arder a barriga em chamas, tinha também a vista ofuscada pela incandescência da lâmpada. Era uma mosca desesperada".

Minha tia riu um riso cheio de sarcasmo. Foi ignorada.

"A pobre voava a esmo, cega e ferida. Ninguém, nenhum dos convidados se compadecia, sequer notaram a triste existência da mosca. Digo triste porque, no calendário das moscas, aquele sofrimento deve ter durado ao menos quatro anos. Imaginem vocês".

"Pois a mosca, visto que não tinha boca para assoprar a queimadura,

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dava voos rasantes pela sala, na tentativa de refrescar o ferimento. Cansou-se logo, é evidente, e foi tentar encostar a barriga na parede".

"Agora, como os insetos têm pernas longas e pouco flexíveis, a mosca não logrou muito sucesso. Ficou a menos de um milímetro da parede, mas não a tocou e a barriga, por certo, seguia a arder e a latejar".

"Então a bicha teve uma ideia brilhante...".

"Essa é ótima!" – exclamou tia Marta.

"Brilhante para uma mosca, que é um animal sem cérebro" – prosseguiu tio Nelson com um certo ar de ironia.

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"Pois a mosca voou até a quina da parede e ali conseguiu refrescar a pança. Não se movia de tanto alívio. Deixou-se ficar ali por alguns anos, feliz da vida".

"Eu queria continuar acompanhando a vida daquela bichinha, mas as pessoas saíram da sala para irem ver a prima Júlia tocar piano. Apagaram-se as luzes e a mosca ficou ali, esquecida".

"Até onde eu sei, a pobre faleceu naquela quina de parede. Você vê, não tinha nem onde cair morta".

"Que história mais triste, Tio. Mas para quê você contou esse causo da mosca?" – perguntei.

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Olhando para tia Marta, que voltava para cozinha, e depois para nós, ele respondeu: "Em quem servir a carapuça, que a use".

FIM