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8178 CIDADANIA, PRISÃO E SOCIEDADE CIVIL CITIZENSHIP, PRISON AND CIVIL SOCIETY Geraldo Ribeiro de Sá RESUMO As comemorações dos 20 anos de promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil despertaram o autor dessas reflexões para revisitar três pesquisas teóricas e de campo, focalizando o sistema prisional. Duas dessas investigações aconteceram em ocasiões mais remotas, sendo a primeira durante a feitura do doutorado, em 1989, quando se apresentou um trabalho intitulado “O prisioneiro: um processo de qualificação e re-qualificação”. A segunda ocasião aconteceu em 1998, como componente de um grupo de pesquisa interdisciplinar, formado no Departamento de Ciências Sociais da UFJF. Uma terceira investigação iniciou-se em dezembro de 2007, encontrando-se ainda em andamento, originada em função do vínculo profissional, à época, com a UNINCOR, campus de Três Corações. Um dos temas recorrentes e convergentes detectados nessas pesquisas foi e continua sendo a questão da cidadania. Esse artigo, centrado nesta questão, pretende contribuir para as discussões a respeito do processo de construção da “cidadania”, no interior do sistema prisional. Para se atingir tais objetivos, caminha-se em duas direções. Na primeira, procura-se esclarecer como se desenvolve a socialização para a cidadania, com a finalidade de se sobreviver e viver no mundo por detrás das grades e, simultaneamente, viver e sobreviver no mundo do crime, ou seja, a socialização e re-socialização para a delinqüência. Na segunda direção, que acontece juntamente com a socialização para a delinqüência, pretende-se demonstrar como se processa a formação para a cidadania com o intuito de se circular, viver, conviver e sobreviver no mundo das pessoas livres. Para facilitar o autor e o leitor, nesse percurso, o presente artigo está subdividido em dois momentos centrais: 1º Cidadania, prisão e criminalidade e 2º cidadania, prisão e sociedade civil. PALAVRAS-CHAVES: CIDADANIA, PRISÃO, SOCIALIZAÇÃO, POLÍTICA PÚBLICA, SOCIEDADE CIVIL ABSTRACT The celebrations of the Brazilian Constitution’s 20th anniversary led the author to reflect upon it and revisit three theoretical and field pieces of research focusing on the Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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CIDADANIA, PRISÃO E SOCIEDADE CIVIL

CITIZENSHIP, PRISON AND CIVIL SOCIETY

Geraldo Ribeiro de Sá

RESUMO

As comemorações dos 20 anos de promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil despertaram o autor dessas reflexões para revisitar três pesquisas teóricas e de campo, focalizando o sistema prisional. Duas dessas investigações aconteceram em ocasiões mais remotas, sendo a primeira durante a feitura do doutorado, em 1989, quando se apresentou um trabalho intitulado “O prisioneiro: um processo de qualificação e re-qualificação”. A segunda ocasião aconteceu em 1998, como componente de um grupo de pesquisa interdisciplinar, formado no Departamento de Ciências Sociais da UFJF. Uma terceira investigação iniciou-se em dezembro de 2007, encontrando-se ainda em andamento, originada em função do vínculo profissional, à época, com a UNINCOR, campus de Três Corações. Um dos temas recorrentes e convergentes detectados nessas pesquisas foi e continua sendo a questão da cidadania. Esse artigo, centrado nesta questão, pretende contribuir para as discussões a respeito do processo de construção da “cidadania”, no interior do sistema prisional. Para se atingir tais objetivos, caminha-se em duas direções. Na primeira, procura-se esclarecer como se desenvolve a socialização para a cidadania, com a finalidade de se sobreviver e viver no mundo por detrás das grades e, simultaneamente, viver e sobreviver no mundo do crime, ou seja, a socialização e re-socialização para a delinqüência. Na segunda direção, que acontece juntamente com a socialização para a delinqüência, pretende-se demonstrar como se processa a formação para a cidadania com o intuito de se circular, viver, conviver e sobreviver no mundo das pessoas livres. Para facilitar o autor e o leitor, nesse percurso, o presente artigo está subdividido em dois momentos centrais: 1º Cidadania, prisão e criminalidade e 2º cidadania, prisão e sociedade civil.

PALAVRAS-CHAVES: CIDADANIA, PRISÃO, SOCIALIZAÇÃO, POLÍTICA PÚBLICA, SOCIEDADE CIVIL

ABSTRACT

The celebrations of the Brazilian Constitution’s 20th anniversary led the author to reflect upon it and revisit three theoretical and field pieces of research focusing on the

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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prison system. Two of these investigations took place in remote occasions, the first of them being during the Doctoral Degree course in 1989 when the work “The prisoner: a qualification and requalification process” was presented. The second occasion occurred in 1998 as a participant in an interdisciplinary research group formed at the UFJF Department of Social Sciences. A third investigation started in December 2007, and is still in progress, motivated by the professional association with the UNINCOR campus in the city of Três Corações. One of the recurring and convergent themes detected in these investigations was, and still is, the citizenship issue. This article focuses on this issue and tries to add to the debates regarding the construction process for “citizenship” inside the prison system. To achieve such aims, two directions are taken. The first seeks to clarify how socialization for citizenship develops in order to survive and live in a world behind bars while surviving and living in a world of crimes, i.e., socialization and re-socialization for delinquency. The second direction, which takes place in conjunction with socialization for delinquency, seeks to demonstrate how the formation of citizenship is processed in order to circulate, live, deal with, and survive in a world of free people. To make it easier for the author and the reader along the way this article is divided into two central moments: 1st Citizenship, prison and criminality, and 2nd Citizenship, prison and civil society.

KEYWORDS: CITIZENSHIP, PRISON, SOCIALIZATION, PUBLIC POLICY, CIVIL SOCIETY

INTRODUÇÃO

Motivado pelas comemorações dos 20 anos de promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, ocorrida em cinco de outubro de 1988, e pelo tema do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, esse artigo re-visita, entre outras, três pesquisas teóricas e de campo, focalizando o sistema prisional. Duas dessas investigações aconteceram em ocasiões mais remotas, sendo a primeira por ocasião da feitura do doutorado, em 1989, quando se apresentou um trabalho intitulado “O prisioneiro: um processo de qualificação e re-qualificação”.[1] A segunda ocasião aconteceu em 1998, como componente de um grupo de pesquisa interdisciplinar, formado no Departamento de Ciências Sociais da UFJF[2] cujos dados subsidiaram, bem mais tarde, a produção de um artigo denominado “Criminalidade, drogas e cadeias”[3]. Uma terceira investigação iniciou-se em dezembro de 2007, encontrando-se ainda em andamento, originada em função do vínculo profissional, à época, com a UNINCOR, campus de Três Corações.

Nessas pesquisas, feitas em momentos diferentes, com propósitos distintos e em estabelecimentos penais com caracteres diversos, existentes em cidades de porte também diferenciadas, muitos foram os aspectos divergentes destacados, mas também vários foram os momentos de convergência encontrados. Entre os temas convergentes, um deles se destacou e continua merecendo a atenção dos pesquisadores: a questão da cidadania, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, na expressão da própria carta constitucional [4]. Entretanto, uma constituição, por sua própria natureza, consiste de um conjunto de princípios, os mais gerais possíveis. Aliás, nunca é demasiado recordar a etimologia da palavra constituição, originada do latim

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“constitutio”, de “cum” mais “statuere”, cujo significado é estatuir conjuntamente ou fundamentar legalmente um Estado[5].

Ao se deter no conceito de cidadania, verifica-se também sua generalidade, sobretudo, quando se propõe delineá-lo como um “status”[6], condição ou situação do pleno gozo dos direitos civis, políticos e sociais de um país ou de uma comunidade nacional. O próprio texto constitucional encarrega-se de explicitar esses direitos, porém apesar das especificações, o conceito de cidadania ainda permanece no campo da generalidade, embora a objetivação dos direitos já sinalize para algo da máxima importância, uma vez que o conteúdo de uma norma escrita se erige em ponto de apoio e referência, em sinal de partida e de chegada ou, ainda, em objetivos a serem atingidos, em incentivo para mobilização de cidadãos, com a finalidade de alcançá-los e ampliá-los, ou seja, para a construção de sua efetividade. Se os direitos componentes do instituto da cidadania são por demais amplos e sua efetivação complexa, também os componentes para se construir uma definição de comunidade nacional são muito heterogêneos e de difícil aproximação.

Ao se “desdobrar a cidadania em direitos civis, políticos e sociais”[7], mas principalmente ao sintetizá-la e defini-la como um conjunto de direitos e de deveres e ao se destrinchar a composição do conceito de comunidade nacional em sub-comunidades, detectou-se, sobretudo, através das pesquisas mencionadas, a presença de uma comunidade muito especial, formada pelos internos dos diferentes estabelecimentos penais, onde as relações sociais se desenvolvem, quase sempre de maneira oposta aos padrões e valores predominantes no cotidiano das pessoas livres[8]. Daí o interesse em se conhecer como se efetiva a questão da cidadania no dia-a-dia de uma instituição fechada, onde seus internos lá se encontram, não por vontade própria, mas pela força do poder de coerção do Estado.

Essas pesquisas, além de muitas outras, têm comprovado um processo, também muito especial, de construção da “cidadania”, em duas direções, sendo uma delas à socialização para se sobreviver e viver no mundo por detrás das grades e, simultaneamente, viver e sobreviver no mundo do crime, ou seja, a socialização e re-socialização para a delinqüência. Entretanto, juntamente à socialização e à re-socialização para a delinqüência, ocorre também a aprendizagem para se circular, viver, conviver e sobreviver no mundo das pessoas livres. Esse artigo pretende apresentar uma síntese das informações obtidas, nas pesquisas citadas, para o esclarecimento de algumas estratégias empregadas durante os processos de socialização, direcionadas à efetividade da ‘cidadania’ na sociedade delinqüente e na sociedade das pessoas livres.

Duas questões são formuladas, para orientar o autor e o leitor, durante a feitura e a leitura dessa reflexão. Como se efetivam os direitos e os deveres, ou seja, a “cidadania” por detrás das grades de uma prisão? Ou ainda, quais são as estratégias e como elas se comportam no sentido de produzirem um efeito real na aprendizagem, na socialização e na vivência da “cidadania” no interior da micro-comunidade, construída e instituída pelas pessoas componentes do universo prisional? Em função dessas questões, o desenvolvimento desse texto desdobrar-se-á em dois momentos, de forma distinta, porém interligada e inseparável: a) a efetivação da “cidadania” para se conviver, viver e sobreviver na comunidade prisional e no mundo do crime (dentro e fora da prisão); b) a efetivação da “cidadania” para se interagir, conviver, viver e sobreviver entre as pessoas livres.

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DESENVOLVIMENTO

Cidadania, Prisão e Criminalidade

A prisão também conhecida como a “sociedade dos cativos”[9] pelo fato de se constituir de agrupamentos humanos muito especiais, cria, recria e transmite valores culturais, com a função de também classificar simbolicamente “objetos, experiência, comportamento, características pessoais e estados ou modos de ser”.[10] Esses valores culturais, socializados e interiorizados pelos internos, a duras “penas”, sofridas na “alma” e no “corpo”, facilitam a convivência e a sobrevivência, a permanência e o trânsito do interno pelas diferentes comunidades, componentes da rede prisional e das redes formadas pelo mundo das atividades criminosas.

Os valores culturais da “sociedade dos cativos” são normas práticas de comportamento, isto é, de pensar, agir e sentir criadas, recriadas, testadas e selecionadas no cotidiano das relações prisionais. Eles contribuem de forma determinante para a "ordem", no universo carcerário, definem e afirmam o grau de prestígio de seus habitantes, estabelecem hierarquias, criam sistemas de proteção dos internos e dos demais membros vinculados ou não à instituição, consolidam lideranças e fixam mediações de adesão ao mundo prisional.

Alguns desses valores são religiosamente cultuados e cumpridos pelos internos, e sintetizados, conforme a linguagem prisional, no significado da palavra “código”. No amplo significado da palavra “código”, muitos princípios de conduta da sociedade carcerária estão embutidos. A violação do código pode ser paga, às vezes, com a vida do transgressor.

Códigos de conduta[11]

O silêncio! Não ver, não ouvir, não falar! A quebra da "lei do silêncio" sobre os acontecimentos na prisão pode "atrasar a cadeia", isto é, envolver o preso em inquéritos, rixas futuras com colegas, suspeição de alcagüetagem, complicações essas que podem custar ao prisioneiro perda de confiança de seus pares e de benefícios como visitas, transferência, liberdade condicional e muitos outros. A observância do silêncio confere ao preso confiança dos colegas, mantém sua ficha limpa nos arquivos do cárcere, evita indesejáveis revistas nas celas, não desperta a atenção dos policiais e da administração sobre a rotina da cadeia. Tudo isso favorece o "adiantamento da cadeia".

Se a lei do silêncio esconde rotineiros acontecimentos da cadeia como o desaforo do colega, a dor do interno, o desespero do condenado, a agressão do semelhante, o desrespeito do policial, a carência de alimentos, a falta e a sujeira da água disponível, ela pode também sepultar para sempre autores de acontecimentos graves e insólitos como o assassinato de preso por preso e diante de presos. Mesmo após o assassinato de um colega, como preceitua o "Código" vigente na sociedade dos cativos, ainda deve

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imperar a lei do silêncio: "Ninguém viu nada, não sabe de nada e mesmo se soubesse não iria falar, para não se arriscar a morrer também." A quebra da lei do silêncio, além de "atrasar a cadeia" para o presidiário, pode custar-lhe a vida como forma de pagamento pela violação do "Código".

Preso não é polícia de preso. Se em dados momentos da vida prisional prevalece solidariedade entre os detentos da cela ou da galeria, como nos casos de doação de alimentos, ameaça de motins para a obtenção de cuidados médicos do colega enfermo, em outras circunstâncias, até gratuitamente, prevalece o ódio e a violência sob várias formas: intuito de pura catarse, passatempo ou satisfação de impulso sexual. Ao prevalecer o princípio de que "preso não é polícia de preso", ninguém impedirá agressões físicas, assaltos sexuais ou assassinatos.

Criminoso não manda em criminoso. Esta regra funda-se no princípio de que na cadeia todos são iguais e cada um deve responder pelo que faz. Todavia, ela presta-se mais para garantir a "lei do silêncio" do que propriamente a igualdade dos detentos nas relações entre si mesmos.

O QI do crime, isto é, consciência e vigilância. Este princípio representa a conversão integral à cidadania na "sociedade dos cativos". Ele é mais denotativo de um estado de vida e de espírito, e resultante de um conjunto de práticas e experiências do que propriamente uma regra. A propósito Coelho relatou um depoimento muito esclarecedor.

QI do crime. É a consciência do preso por saber aquilo que fez, até o momento presente. No agir e, às vezes até no falar, no se dirigir, na sua [...] Como é que se diz [...]. No seu proceder, entendeu? Então existe o QI, no caso é a consciência de onde o cara se encontra. Aqui é cadeia, o indivíduo tem que ter consciência de onde ele se encontra, e o que ele tá fazendo, tá fazendo consciente [...]. Para amanhã ou depois ele não botar a mão na cabeça e falar: Poxa, cara aqui não é a rua. Poxa, cara, eu errei, eu [...]. Não. Fazer tudo dentro do padrão positivo, para que não saia da realidade da vida na qual ele se encontra (COELHO, 1987, p. 73-74).

Nunca agredir ao diretor e ao funcionário. A observância desta regra do “Código” segura a cadeia e evita o confronto direto com a autoridade. A agressão à autoridade pode acontecer e se expressar sob várias maneiras, como por exemplo, pelo uso do palavrão, por desobediência a uma ordem e, ainda, diretamente através do ataque físico com o emprego de arma ou o simples emprego de força pessoal. Ela deve ser evitada, em princípio, porque o revide da autoridade será sempre superior à agressão sofrida. Além do mais, pode-se, através do desrespeito ao superior, desencadear-se a ira institucional sobre todos os presos ou simplesmente sobre o transgressor da regra.

Se na agressão vislumbra-se a presença de um instrumento do tipo chuço, faca, canivete, arma de fogo, entre outros. Isto pode ser o sinal da existência de outras. Ora, armas na cadeia é motivo para "revista" ou "geral". E a "revista" ou "geral" expressa um dos momentos de ira institucional e de posse do preso pela prisão, exercida através da autoridade de forma total, límpida e profunda. A "revista não é e não pode ser uma simples atividade de controle, ela é um atentado, ao mesmo tempo, contra o corpo real,

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o corpo imaginário e o corpo simbólico; o homem revistado é um homem possuído” (BUFFARD, 1963, p. 47-48). Durante a "revista" ou "geral", os presos são postos nus e todos os orifícios do corpo são expostos e vasculhados. Seus pertences são virados e revirados.

Os ”códigos de conduta” que presidem as relações sociais desenvolvidas no interior do cárcere; a quase absoluta ociosidade com sua quebra pela prática do jogo, consumo e comércio de tóxico; a possibilidade do sono como momento de “sonhos”; o prenúncio do estigma de ex-presidiário, sobretudo, para os novatos na prisão, e a desilusão de sua vivência para os reincidentes criam laços de amizade e ódio, apego e aversão, solidariedade e egoísmo entre os internos, abrindo novas perspectivas e apontando para circuitos mais complexos, atraentes e definitivos no processo de inserção no mundo delinqüente.

Rituais de iniciação[12]

Após a descrição de alguns valores culturais eleitos, firmados e confirmados como padrões de comportamento pela população prisional, procura-se demonstrar algumas técnicas, recursos ou meios de envolvimento dos internos no culto e observância desses valores. Ao processo de envolvimento dos presos no mundo dos valores prisionais denomina-se aqui socialização na cultura delinqüente.

Entre os recursos ou técnicas de envolvimento dos internos nos valores delinqüentes estão enfatizados dois tipos de estratégia, isto é, as estratégias procedentes da própria estrutura do sistema carcerário e as originárias da inventividade dos internos, sendo ambas articuladas e disponíveis no cotidiano da vida prisional.

O universo carcerário e o mundo das pessoas livres, além de demarcados por muros, grades, fossos, arame farpado ou eletrificado e pela ininterrupta vigilância de homens armados, também se distanciam pela criação, recriação, assimilação e vivência de elementos culturais, alguns eleitos, consagrados e elevados ao nível de valores inquestionáveis. Em decorrência do isolamento entre esses dois mundos e a diferenciação entre valores e padrões culturais, a passagem do mundo das pessoas livres para o da "sociedade dos cativos" exige dos neófitos a sujeição a rigoroso e doloroso ritual de entrada. Aliás, "Toda sociedade geral contém várias sociedade especiais [...] para passar de uma delas a qualquer das outras é preciso satisfazer certas condições [...]" (VAN GENNEP, 1978, p. 25).

“A familiaridade, desenvoltura e submissão demonstradas na entrada da cadeia pelo prisioneiro em relação a determinados ritos distinguem o novato, primário, otário ou vacilão, do cadeeiro, malandro ou bandido” (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1984, p. 309-312). O ritual de entrada, entretanto, não se limita à relação de preso com preso, preso experiente e preso primário, reincidente ou novato, também o pessoal da segurança, por sua vez, cultua rituais de entrada e submete o custodiado ao respectivo processo.

Considerando que "Os rituais revelam os valores no seu nível mais profundo [...] os homens expressam no ritual aquilo que os toca mais intensamente e, sendo a forma de

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expressão convencional e obrigatória, os valores do grupo é que são revelados" (TURNER, 1974, p. 19). A seguir serão destacadas algumas configurações dos ritos, que se interpõem durante a passagem do prisioneiro pela insólita travessia que divide a sociedade das pessoas livres com a "sociedade dos cativos".

O novato, ao se posicionar de frente às grades da cela, deve submeter-se a certas normas de boa educação, vigentes nas relações entre os internos: pedir licença, ao entrar na cela, tirar os sapatos, limpar os pés no chão. Por detrás das grades, ele deve tirar a camisa ao fazer a faxina, não arrotar, não escovar dentes, não ir ao banheiro, não raspar a garganta, enquanto se almoça ou janta. A fidelidade a essas normas perpetua a identidade da população prisional, enquanto grupo distinto da polícia no seu conjunto, da segurança em particular e da burocracia repressora em geral. Além da conservação da identidade, a fidelidade a essas regras propicia aos detentos o acesso às mínimas condições materiais, psicológicas e sociais de sobrevivência.

Se a cadeia é imunda no seu conjunto, a cela será varrida diariamente e permanecerá limpa; se a cela é promíscua, a observância das regras disciplinares garantirá a organização, a ordem e a sobrevivência dos prisioneiros procedentes, regra geral, de famílias pobres, de raças distintas, convivendo em reduzido e adverso espaço, por exemplo, 10 ou mais pessoas numa área de 10m2, incluindo a área ocupada pelos beliches de concreto, cozinha, banheiro e corredor, 24 horas diárias, como acontece, sobretudo, nos distritos policiais, nas cadeias públicas e em algumas penitenciárias.

Se preso não manda em preso e nem é polícia de preso, entretanto, estrutura-se uma hierarquia celular fundada no tempo de casa, no tipo físico, no poder econômico, na classe de delito, na capacidade de convencimento ou na experiência criminal. Se as normas forem desrespeitadas, e a ordem ameaçada, pune-se com rigor o infrator e submete-se o fraco a humilhações. Ao alcagüete aplica-se a pena capital, aos indisciplinados outros corretivos domésticos como violência sexual, agressão física, dormir com a boca no "boi" (privada), sofrer choque elétrico, entre outros castigos.

Se o espaço é reduzido, faz-se necessária sua rigorosa divisão, bem como um rígido controle no uso correto da fração espacial recebida tanto por parte do usuário individualmente como da coletividade (ninguém tocará na cama do outro, ninguém pisará calçado no interior da cela). A rigorosa distribuição do espaço e seu usufruto são acompanhados pela simultânea economia do tempo, também regulada pelas prescrições de boa conduta: o "boi" não poderá ser usado durante as refeições; expressões corporais, como arrotar alto, raspar a garganta e limpar o nariz, são proibidas durante o almoço e jantar; escovar os dentes e tomar banho diário são atividades obrigatórias, mas devem ser cumpridas em momentos previstos (hora da água).

Por sua vez, também os agentes penitenciários, quando submetem o preso ao cerimonial de humilhação, inculcam-lhe o princípio de submissão, a idéia de inferioridade, a posição de um desigual: preso é preso, autoridade é autoridade. Esses rituais produzem, no recém-chegado, a percepção e a experiência de estar sendo possuído pela prisão, através da posse pelo plantonista. Doravante o recém-interno pertencerá à instituição e será submisso à sua vontade. A obediência deverá ser reproduzida pelo prisioneiro nos mínimos detalhes, durante o processo da vida prisional.

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A retenção, quase sempre, do preso recém-chegado na "seção de massagem" (sala de espancamento) e na cela correcional (de castigo), faz parte dos procedimentos de entrada do prisioneiro na "sociedade dos cativos". Muitas outras regras serão rigorosamente cumpridas no curso da vida prisional, daí o necessário rigor na observância do processo ritual de entrada.

O processo ritual, presidido pelos internos veteranos e pelo pessoal encarregado da custódia prisional, contém, em si mesmo, técnicas pedagógicas criadas e recriadas pela tradição prisional, e transmitidas às novas gerações, toda vez que um momento do referido processo se repete. São componentes desse processo ritual a técnica do ensaio e o erro, a recompensa e a punição, a retórica e a prática, assim por diante. Nos rituais de entrada, a identidade do preso na "sociedade dos cativos" começa a se construir e a se definir. A partir desse momento, o preso passa a ser classificado como cagüete, pederasta ou valente. Estas marcas podem estigmatizar o prisioneiro por toda a sua vida. Além do mais, os presos veteranos dispõem de recursos para conferir se o colega recém-chegado é realmente aquilo que os boatos anunciam, por exemplo, pela via do "papagaio", se são verdadeiros ou falsos. A cerimônia do confere irá repetir toda vez que o interno for transferido de uma cadeia ou de uma penitenciária para outro estabelecimento penal, for rebaixado ou promovido em seu percurso pelo mundo delinqüente.[13]

Regime progressivo[14]

O regime progressivo, em essência, foi elaborado e instituído com o propósito de socializar e re-socializar, integrar e reintegrar o prisioneiro, paulatinamente, na vida em liberdade, evitando, dessa maneira, seu abrupto reingresso na sociedade civil. O condenado, em definitivo, ao cumprir sua “pena de reclusão”[15], pela regra geral, percorreria um regime prisional constituído de três estágios: fechado, semi-aberto e aberto. Este percurso, em linhas gerais, compreenderia a passagem do prisioneiro por três espécies de estabelecimento penal: penitenciária, colônia agrícola ou colônia industrial e similar e casa do albergado.

Sendo o número de vagas reduzido nas penitenciárias, colônias e albergue, o cumprimento da pena nessas instituições torna-se um privilégio. Dessa forma, a regra geral metamorfoseia-se em exceção e a exceção em regra geral, com facilidade e rapidez. O privilégio de ultrapassar a cadeia pública, com suas diferentes situações, e percorrer as três outras instituições constitutivas dos diversos estágios do sistema penal, é obtido por uma minoria de detentos. A grande maioria "paga a cadeia" nos xadrezes de delegacia, distritos policiais e depósitos de presos. O regime progressivo de cumprimento da pena privativa de liberdade, mesmo abrangendo uma minoria de “privilegiados” e acontecendo em circunstâncias especiais, propicia o envolvimento do preso na cultura delinqüente.

Estudando a prática do regime progressivo no sistema penitenciário mineiro, em FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, (1984, p. 217), está escrito:

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Por outro lado, o "regime aberto" teve o efeito de impor obstáculos à plena cristalização da "sociedade dos cativos" como esfera monopolizadora da sociedade, da participação e da lealdade dos presos. Saídas regulares, por exemplo, possibilitam a muitos dos internos a manutenção de laços familiares. O trabalho extra-muros torna possível o estabelecimento de redes de interação com membros da sociedade "lá fora" e a remuneração, mesmo que pareça insignificante ou irrisória em relação aos padrões externos, torna o preso menos dependente da "sociedade dos cativos" para sua sobrevivência. Isso não quer dizer que o sistema penitenciário mineiro eliminou a formação de empresas delinqüentes de fornecimento de bens e serviços ilegais. Em todas as unidades do sistema iremos encontrar o tráfico de tóxicos e, em menor escala, de álcool, assim como bancas de jogo. Encontraremos também presos reduzidos a uma situação de virtual mendicância, prontos a se prostituírem ou a assumir o papel de "robô" como condição para a aquisição de tóxicos ou bens de consumo culturalmente valorizados.

Um dos efeitos positivos do "regime progressivo" consiste em impor obstáculos à plena cristalização da "sociedade dos cativos", como "esfera monopolizadora da sociedade, da participação e da lealdade dos presos". Isto significa que a oportunidade oferecida ao detento, por essa espécie de regime de cumprimento da pena privativa de liberdade, possibilita-lhe estabelecer e restabelecer laços sociais e afetivos com pessoas livres, participar de relações sociais de natureza diversificada com estas pessoas e comprometer-se com os valores externos à prisão. Em outros termos, o regime penal, que permite a abertura dos portões do cárcere para a interação do preso com o universo dos homens livres, oferece ao interno o convívio com outro mundo, outras relações, outros valores, outras perspectivas de vida através de diferentes laços. Por exemplo, a "manutenção dos vínculos familiares", a possibilidade de trabalho remunerado, o que lhe possibilita certa independência, em relação à "sociedade dos cativos".

Por sua vez, o próprio autor citado há pouco, reconheceu também a existência de críticas, não contra o sistema em si, mas contra sua aplicação ou administração. Como exemplo, o mencionado autor citou a questão do universalismo do regime aberto, reivindicado pelos condenados, esbarrando em sérias dificuldades por parte dos juízes, guardas, comissões de classificação, diretorias e pela opinião pública. Essas dificuldades fazem com que alguns internos temam a transformação do regime aberto em privilégio para poucos. Os presos sabem disso. Contudo, durante o usufruto do direito ao regime aberto, ocorrem algumas ocorrências muito complicadas. Essas, quando sucedem, podem atrasar a vida do interno, provocando no preso o entendimento de que era preferível não ter saído, isto é, gozado do benefício[16]

No regime aberto, por exemplo, intercalam-se constantemente certas dificuldades, denominadas no parágrafo anterior de ocorrências especiais, inseparáveis da execução do regime. Essas ocorrências são provocadas, por exemplo, por solicitações de internos em regime fechado, quase sempre, mas algumas também do semi-aberto e dos presos de castigo (cumprindo punição). Esses vêem, nas idas e vindas de colegas do espaço intra-muros para o extra-muros e vice-versa, uma oportunidade para ampliar as redes de suprimentos de bens e serviços da "economia delinqüente". Entre os bens, os mais comuns são as drogas proibidas, as armas sempre cobiçadas pelos internos. Entre os serviços destacam-se as correspondências para os familiares e os amigos, as idas e

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vindas de mensagens destinadas a membros da quadrilha. Esses difíceis momentos podem transformar-se também em oportunidades para o interno testar, isto é, negar ou confirmar sua adesão e conversão aos valores da "sociedade dos homens livres ou da sociedade dos cativos" (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1984, p. 34-45).

O interno do "lado de lá", isto é, do lado de fora dos muros prisionais, procura manter o difícil equilíbrio de seu novo status, agora situado num circuito disputado por valores antagônicos e simultaneamente sedutores: não pode negar os compromissos com os valores vigentes no "lado de cá", isto é, do lado de dentro da prisão, mas deve atender e cultivar os predominantes "do lado de lá". Portanto, se por um lado o "regime progressivo", entendido aqui em sua fase de regime aberto, tende a diminuir a força de atração do interno pelos valores da "sociedade dos cativos", por outro lado, a adesão e a conversão do preso aos valores da "sociedade das pessoas livres" pode também provocar, no detento, estímulos ao abuso de confiança. Esse abuso, certamente, conduzirá o preso à regressão de regime, isto é, colocá-lo novamente do "lado de cá". Nessas circunstâncias, os presos do "lado de cá" submeterá o recém-chegado a rituais de entrada mais severos e exigirá desse “novato” provas mais evidentes de adesão e compromisso com a "sociedade dos cativos". Comprova-se, assim, como pode ocorrer ou não uma inversão de funções do regime progressivo, ou seja, sua metamorfose em fator de reconversão do interno à "sociedade” dos cativos e de afirmação de seu status no mundo do crime.[17]

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Muito antes, Thompson (1980, p. 23), apoiando-se no conceito de "prisonização", isto é, na "adoção, em maior ou menor grau, do modo de pensar, dos costumes, dos hábitos, da cultura geral da penitenciária", localizou um dos pontos centrais de contradição inerente ao sistema progressivo. Ponto este situado nos estágios iniciais do sistema, isto é, nos dias, meses ou anos de enjaulamento do prisioneiro na cadeia pública ou prisão comum, seguidos pelo período de cumprimento da pena em prisão de regime fechado, semi-aberto e finalmente aberto. O condenado ao conquistar, se o conseguir, o regime aberto, ele já estará totalmente prisonizado. Sua conversão às normas, códigos e valores da "sociedade dos cativos" é tão profunda e extensiva, a ponto de ser inviável, ou até impossível, acontecer o rompimento do prisioneiro com os vínculos criados entre o interno e a prisão. Deve-se lembrar, entretanto, que alguns detentos vêem nas oportunidades de convívio extra-muros também como momentos de efetivação e de prova da recuperação.

Retomando o pensamento de Thompson, citado no parágrafo anterior, este autor considera o sistema progressivo perverso na própria raiz, pelo fato de provocar a prisonização do de tento logo nos primeiros anos de vida carcerária e tentar salvá-lo no final. O que é tão impossível para a recuperação do prisioneiro como para o médico que "começa o tratamento cuidando de agravar a doença até obter a morte do dito paciente e, depois de deixá-lo enterrado durante algum tempo, para maior certeza do óbito, lança-se à tarefa de conseguir a cura do cadáver" (THOMPSON, 1980, p. 98-99). Este autor localiza um grave vício do sistema progressivo: a inevitável prisonização do detento, entretanto, não elucida satisfatoriamente, como a prisonização impede a efetivação de qualquer possibilidade de recuperação do recluso, ainda que esse seja exposto ao convívio com valores extramuros.

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FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO (1984, p. 217), conforme já se lembrou, foi além de Thompson na discussão da mencionada problemática. Ele aponta dificuldades ligadas à administração do regime aberto por parte das autoridades prisionais e não propriamente vinculadas ao sistema, em si mesmo. Uma dessas dificuldades está relacionada com a questão do universalismo e do particularismo na aplicação do regime, o que foi constatado, inclusive, no sistema penitenciário mineiro. Se a administração prisional aplica universalmente o regime aberto, ela pode conflitar com decisões judiciais, com pontos de vista da Comissão Técnica de Classificação e com a opinião pública.

Se a administração prisional examina caso por caso, ao decidir sobre a progressão de regime (do fechado ao semi-aberto e deste ao aberto), os internos interpretam essa maneira de proceder como particularismo ou criação de privilégio, o que tem provocado motins, fugas, rebeliões e outras expressões de revolta, inclusive solidariedade com o colega injustiçado.

Examinados alguns momentos do sistema progressivo, do qual o regime aberto de cumprimento da pena privativa de liberdade é uma das formas concretas, foram identificados alguns dilemas a ele inerentes e empiricamente expressos como ocasiões favoráveis ao abuso de confiança e afirmação de status no mundo criminal. Por outro lado, esses dilemas também são úteis para se detectar, no sistema progressivo, mais uma expressão do processo disciplinar, simultaneamente combinado e desigual, constitutivo da instituição prisão: o sistema progressivo como momento capaz de determinar a socialização do condenado nos valores da "delinqüência", mas também nos valores do universo das pessoas "livres", ao mesmo tempo.

Cidadania, Prisão e Sociedade Civil

Discutiu-se anteriormente como acontece o processo de socialização para a cidadania na sociedade dos cativos, melhor dizendo, como o usufruto de direitos e o cumprimento de deveres são aprendidos, efetivados e praticados, na comunidade prisional, inserida e em interação permanente com um contexto muito mais amplo, formado pela “sociedade civil” [18]. Mas, nesse processo de assimilação e prática de direitos e deveres, a duras penas, os internos conseguem, também, aprender como acessar e efetivar direitos e deveres, úteis e necessários à circulação e sobrevivência e, principalmente, ao bem-estar na sociedade das pessoas livres.

Efetividade dos direitos

A partir do ingresso num depósito de presos ou numa cadeia pública, o prisioneiro começa a se aproximar, entrar em contato e a circular pelos diferentes órgãos da burocracia do aparelho repressivo, procurando se informar sobre o conteúdo e a localização de seu processo, quem será seu advogado, qual é o artigo do Código Penal ou da Lei de Drogas, no qual se encontra enquadrado, quem será seu juiz, quando será ouvido por esta autoridade, e assim por diante. A procura de informações desse tipo irá durar todo o tempo de cumprimento de sua pena. Os meios para se obter estas e outras informações são os mais diversos, podem ser, por exemplo, seus familiares, seus

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colegas, o próprio advogado. A obtenção de tais informações resultará, com certeza, em conhecimentos e versatilidade, de natureza não só teórica, mas, sobretudo, prática, úteis e necessários, também ao acesso de seus direitos e ao cumprimento de seus deveres, quando em liberdade

Chama-se a atenção do pesquisador, quando visita um interno ou faz entrevistas, logo que se começa a conversar com os presos, a primeira manifestação deles, quando se dirigem ao visitante é com o tratamento de “doutor”. Esse “doutor” para eles é, conforme a regra geral, o advogado. Este vocabulário é um dos sinais de que se aprendeu a conhecer, a duras penas, quem é o advogado e qual é a utilidade desse profissional. Talvez se tenha conversado com um advogado pela primeira, somente pelo fato de ter sido preso, isto porque, entre as pessoas livres, geralmente o acesso ao advogado é, quase sempre privilégio daquelas que têm patrimônio, ou são pessoas de certo poder aquisitivo, pois o advogado vive também de seus honorários, enquanto a população mais pobre procura os serviços da “assistência jurídica integral e gratuita”.[19]

Na prisão aprende-se não apenas a distinguir o advogado de outros personagens, mas também a classificá-lo como bom, diligente, trabalhador, honesto e desonesto[20]. O frente-a-frente com o advogado, a perspicácia suficiente para distinguir o advogado honesto do enganador, do advogado de porta-de-cadeia do profissional competente e eficiente também faz parte da socialização para se acessar direitos e cumprir deveres. Nesse momento, o interno está aprendendo a se comportar como um cidadão livre, ou ainda, como se agir no interior da sociedade civil.

Quando se pergunta ao interno o porquê de sua prisão, ele, geralmente, não fala o nome do delito, indo comentar sobre o crime que ele fez ou praticou, apenas depois de ter adquirido um nível confiança em relação ao visitante. O preso prefere se identificar pelo artigo do Código Penal, onde está enquadrado. Então, eu sou 121, 155, 157, 171 (do Código Penal), eu sou 12, 14, 16 (da hoje revogada Lei de Tóxicos), eu sou 33, 35 (da atual Lei de Drogas), e assim sucessivamente.[21] O conhecimento do “artigo” ou dos artigos da legislação, pela qual se encontram presos, considera-se como mais um momento de acesso aos direitos e à satisfação dos deveres, sendo que nessa situação concreta, o dever está sendo satisfeito através do cumprimento e do sofrimento da pena privativa de liberdade.

O conhecimento do “artigo” e das conseqüências advindas de sua violação conduzirá o interno a se informar, nos mínimos detalhes, a respeito do término de cumprimento de sua pena, do direito ou não à progressão de regime, ensinar-lhe-á também a lutar, com todos os meios disponíveis, para acessar a esses direitos. O preso passa a conhecer quando poderá progredir do regime fechado para o semi-aberto, deste para o aberto, e finalmente, para a última etapa da pena a ser cumprida em albergue. Mantém-se informado não somente a respeito dessa movimentação através das instituições penais, mas também sobre todas as conseqüências inerentes à progressão. Aprende-se, igualmente, quando se está injustamente cumprindo pena numa cadeia pública, porque o interno conhece tudo sobre sua sentença, ou seja, a decisão do poder judiciário sobre seu caso.

As diferentes formas de acesso ao conhecimento dos direitos, a duras penas, aprendem-se na cadeia pública e na penitenciária, quando se chega até lá. Mas para se chegar, são

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e salvo à penitenciária, deve-se munir não só das informações sobre o seu artigo, o que se deve fazer ou deixar de fazer, contando, naturalmente, com ajuda dos colegas mais sabidos[22]. Esta socialização é desenvolvida através do conhecimento teórico e, sobretudo, prático do Direito, é uma questão da maior importância para o interno. Este se deixará impregnar por essa aprendizagem, para a vida toda, podendo, por sua vez, beneficiar-se dessa socialização, transferindo-a, também, para o convívio no mundo do crime e sair-se muito bem nas relações sociais desenvolvidas, na sociedade delinqüente. Mas ao se sair da prisão, também se poderá, caso adira-se à sociedade das pessoas livres, após pagar-se pelo crime cometido, usar-se dos conhecimentos do Direito, obtidos na cadeia, em benefício do cidadão, agora em gozo de liberdade.

Regras de trato social

A cidadania, além de constituir-se de direitos e de deveres, componentes das garantias constitucionais e muitos outros, conforme já se descreveu, envolve igualmente o conhecimento de normas difusas na “sociedade dos cativos” e na sociedade das pessoas livres. Essas normas, denominadas “regras de trato social” por Nader, (2000, p. 42-46), são conhecidas também como convencionalismos, regras de urbanidade ou de boa educação, podendo ser usadas para se saber viver bem, se relacionar socialmente com desenvoltura, em ambas as sociedades.

As publicações de Sousa e de Dráuzio[23] , bem como as pesquisas mencionadas, na introdução a esse artigo, entre muitas outras, têm registrado a aprendizagem de normas de boa educação. Essas regras afloram em vários momentos, sendo um deles o “dia da visita”. Este dia é muito especial para o preso. Toma-se banho, cuida da barba, troca de roupa, porque se vai receber alguém muito querido, como a namorada, a esposa, os filhos, os pais e outros familiares ou demais pessoas afetivamente próximas. Mesmo não se tendo visita, vai-se tomar banho, fazer barba, trocar de roupa e se cuidar da melhor forma. Não é aquela roupa de dia de festa, pois a maioria é pobre, mas a roupa que se tiver, porém, com certeza, estará cuidada da melhor maneira. Se não se tiver sapato, vai-se lavar o chinelo, ou seja, o calçado disponível. Ora, o cuidado da higiene para receber ou simplesmente ver alguém do lado de fora, o zelo de uma apresentação, o mostrar para os outros que se está bem, mesmo sendo apenas para receber ou simplesmente ver e admirar, tudo isso compõe as regras de trato social e faz parte das normas de boa educação. Tudo isso pertence aos “deveres” do cidadão e lhe permitem acessar direitos.

Além da visita, o dia-a-dia da cadeia cria hábitos básicos de higiene no interno, como banhar-se diariamente, cuidar da cela, varrendo-a todos os dias, tirando todo o pó acumulado, não jogando papel, resto de comida, toco e cinza de cigarro pelo chão. A cela é simultaneamente dormitório, cozinha, sala de visita, espaço de lazer, em suma, a cela é a casa do preso. A limpeza diária da cela e de tudo que ela contenha faz-se através de um revezamento diário, sempre começando pelo novato, cujos hábitos de “trabalho” e convivência são rigorosamente ensinados e aprendidos. Se não se aprendeu esses hábitos de higiene, quando se estava no mundo livre, agora se aprende, a duras penas.

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Nesse processo de socialização inclui-se a aprendizagem da administração do uso do tempo, também, como parte desse universo de direitos e deveres. Ao se entrar, sobretudo, pela primeira vez num estabelecimento penal, principalmente se for uma cadeia pública, a aparência é de uma desordem plena, isto é, de caos total, ou seja, “o caos construído, que significa a normatividade excessiva. A regra que não busca a harmonia do coabitar, mas sim a rigidez da imobilidade”, no entendimento igualmente de Messuti (2003, p. 31). Essa realidade muda, quando se observa com mais atenção, pois se revela muito diferente daquilo que suas aparências mostram. Aliás, as aparências podem enganar, quase sempre, ao pesquisador incauto. Um desses momentos se revela, por exemplo, no “rigor da disciplina”, durante o banho, na hora da “água”, como, às vezes, se diz, na linguagem prisional. Nem sempre todos os chuveiros estão funcionando, então o preso tem um tempo limitado para se tomar banho e suprir as celas sem água da presença deste precioso líquido. Nessa hora as celas são abertas durante meia hora de relógio. Após este tempo as celas se fecham e quem ficar do lado de fora poderá ser duramente castigado pela segurança, com a advertência, espancamento na sala de “massagem” e até com horas ou dias na “cela de castigo”, conforme o caso.

Se não se tomava banho, se não se levantava na hora certa, se não se tinha horário de refeição com 30 minutos de duração, agora se aprende coercitivamente, por imposição dos colegas de cela mais antigos ou dos seguranças. Não se pode comer aquele almoço, aquele jantar, beber aquele café, também se permite, caso o interno prefira, fazê-los ou recebê-los de pessoas amigas, mas tem-se um horário. É possível ficar de molenga na cama, mas já se sabe do horário de acordar e levantar, podendo a pontualidade lhe ser cobrada a qualquer momento, e as formas de cobrança, sobretudo por parte dos internos, podem vir com a advertência ou com castigos corporais. Além disso, esse conjunto de hábitos constitui valores e padrões de comportamento ultivados, igualmente, o mundo das pessoas livres. Sua aquisição ou reforço durante a estada na prisão poderá lhe facilitar, mais tarde, a convivência com os cidadãos livres.

O dia da audiência com o juiz, o homem e/ou a mulher de capa preta, conforme se diz na “sociedade dos cativos”, constitui um dos momentos de socialização, semelhante ao dia de visita, pois é o dia de ida ao Fórum. Embora esse dia ocasione grande transtorno para a instituição, em decorrência dos riscos de fuga, de seqüestro e de outros acidentes de percurso, deve-se, além disso, ocupar-se com a escolta, o veículo do transporte e muitas outras preocupações. Trata-se de um transtorno para a instituição, mas, contraditoriamente, erige-se em benefício para o preso, e em máxima importância para sua socialização.

Vai-se falar e ouvir, ou seja, dialogar-se com o juiz, com a autoridade, o representante máximo do Estado, naquele momento. O preso tem acesso ao juiz, por força de coerção, mas ele tem o acesso. Há uma série de rituais preparatórios ensinados pelo advogado e colegas de cadeia essenciais para impressionar bem ao juiz. Em parte o sucesso da audiência, depende da maneira como o ritual foi preparado. E muitos elementos dessa preparação, como a higiene, o cuidado com a boa aparência e o aprender a dialogar com a autoridade, constituem-se, ainda, em fatores de sucesso nos circuitos do convívio com as pessoas livres.

Isolamento, um novo tempo

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O baixo preço do celular democratizou a rapidez e a facilidade da conexão e do contato entre as pessoas, mas na prisão esse sucesso da tecnologia, em decorrência da versatilidade de seus recursos, representa o grande mal desse momento da modernidade. Aliás, “comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo”, conforme o art. 50, VII, da Lei n. 7 210, de 11/ 07/ 1984, acrescentado pela Lei n. 11 466, de 26/ 03/ 2007.

Para dificultar a entrada de celular e outros objetos mal vindos, também os advogados são identificados e passam pela revista, logo no portão de entrada da penitenciária, através de um detector de metais. Esse detector é passado várias vezes pelo lado de fora do corpo de cada um deles, e dos demais visitantes. O celular, a chave do carro e qualquer outro objeto metálico ficam retidos na guarita de entrada. Mesmo sem os pertences, os visitantes são conduzidos, individualmente, à sala de revista, onde se tira o paletó e os sapatos, sendo cada um destes cuidadosamente cheirados, às vezes.

A vigilância se faz presente em todo o espaço prisional e em tempo integral, através dos agentes penitenciários, sem arma de fogo, mas usando cassetete de forma ostensiva. Os agentes masculinos e femininos usam uniforme preto. Também os cães adestrados se fazem presentes através de seus latidos e estão prontos para intervir, tão logo sejam liberados e mandados.

Todos os internos, tanto os homens quanto as mulheres, nas celas ou circulando pela cadeia, usam um uniforme padrão, de um tom vermelho, mais para laranja, não sendo propriamente um macacão, mas uma calça e uma camisa, com calçado preto. O corte de cabelo era padronizado para os homens. Entre as mulheres, algumas usavam o cabelo mais curto e outras preferiam o cabelo amarrado.

Os internos são conduzidos algemados pelos agentes, através dos corredores e do pátio para irem ao dentista, ao médico e a outros atendimentos. O sistema de algemar prisioneiros não foge à forma de um costume já tradicional: um preso vai algemado no braço de outro preso, para facilitar, sobretudo a segurança. Durante todo o percurso, eles permanecem uniformizados, vestidos com roupa de tom avermelhado e cabelos cortados de forma baixa. Não há o costume de se raspar a cabeça do preso.

Além do serviço médico e dentário, em funcionamento, há salas para atendimento psicológico e o setor de serviço social. No setor de saúde, como em toda a penitenciária predomina a limpeza e todo o cuidado da higiene,

A arquitetura do novo modelo de prisões difere dos anteriores. Não predominam os muros altos separando o mundo prisional do mundo das pessoas livres. Esta separação se faz por telas, o que favorece a visibilidade e a leveza de forma do prédio. Além da visibilidade, as telas favorecem a ventilação, que somada á limpeza do espaço e à limpeza das pessoas, não permite aquele mau cheiro de cadeia, cheiro de óleo misturado com alho e cebola, queimado e requeimado. Aliás, o cheiro de cadeia, da prisão antiga, foi registrado, por Varella (1999, p. 57) nos seguintes termos:

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O olfato é um aliado poderoso dos que guardam a saída: o cheiro da cadeia entranha no homem preso. Difícil definir que odor é esse. Parece mistura de vários outros: alho frito, pano de chão guardado, suor e um toque de creolina. Embora não possa ser classificado como mau cheiro, é desagradável. Quente e pesado. É tão pegajoso que os carcereiros, ao abrir as celas de Castigo, apinhadas, nunca se colocam diante da abertura: ____ Não fica na frente da porta, Doutor, esse bafo gruda na roupa da gente de um jeito que nem lavando sai.

A propósito do novo modelo prisional, uma diretora, se manifestou usando de palavras bem diretas, conforme consta do relatório de pesquisa (Sá, 2008, p. 8):

A Penitenciária Regional de Três Corações faz parte de um sistema padrão vigente para todas as penitenciárias regionais do Estado de Minas Gerais. Padrão em arquitetura e disciplina que vai desde o corte de cabelo e uniforme dos internos até ao tipo de vestir dos agentes penitenciários. Padrão de higiene, qualidade dos serviços disponíveis para os internos e de qualificação do pessoal envolvido com toas as funções. Todo o prédio é muito bem ventilado, não parecendo propriamente uma prisão. Não tem aquele mau cheiro de cadeia, cheiro de óleo misturado com alho e cebola, queimado e requeimado. A penitenciária é muito higiênica, muito limpa, e também os internos, conforme se pode visualizar.

O novo modelo prisional, voltado para a re-integração e re-socialização, envolve uma sofisticada tecnologia disponível para os internos e uma qualificação de todo o pessoal dirigente, desde os agentes penitenciários até a pessoa do diretor. A tela no lugar do muro favorece a visibilidade, torna menos brutal a demarcação territorial. Mas por outro lado, o acesso dos internos ao mundo das pessoas livres fica cada vez mais dificultado. Até os advogados são revistados. A visita aos pavilhões, onde há presos por detrás das grades é cada vez mais rara. A tecnologia de comunicação é proibida, por motivo de segurança, é óbvio. Em suma, o rigor do isolamento poderá tornar os prisioneiros menos humanos e mais feras, embora os serviços de saúde e educacionais e a própria progressão do regime de cumprimento da pena sejam pontos positivos em direção à socialização dos internos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo comparado as diversas e diferentes informações, obtidas através do percurso pelas pesquisas de campo, mencionadas no desenvolvimento deste artigo, e do diálogo com autores clássicos e contemporâneos, constatou-se em todas elas um movimento histórico, onde passado e presente encontram-se e se mostram no cotidiano de todas as instituições observadas. Nesse movimento destaca-se a tendência da prisão, como instituição total, de marcar o interno, no corpo e na alma.

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Uma das formas externas desta tendência aparece através da imposição do uso de um vestuário uniforme. No passado era bastante comum visualizá-lo através de filmes e de visitas às prisões, onde se encontravam os internos, portando roupas listadas ou calças e camisas azuis, ou ainda simplesmente a camisa azul, sobretudo, nas penitenciárias e colônias; hoje, predomina o macacão ou o conjunto de calça e a camisa vermelhos, não só para os internos já condenados, mas também para os presos provisórios, nas cadeias públicas.

Outra forma de se distinguir o interno, marcar e demarcar o território dos estabelecimentos penais, incluindo também agora o das cadeias públicas é a disciplina prisional, onde se interagem ordem e desordem simultaneamente, manifestas através da distribuição do tempo e do espaço: hora de comer e hora de dormir, lugar de comer e de dormir, qualidade da comida e disposição dos colchonetes. A cadeia velha, onde a cela era cozinha e dormitório, está dando lugar há uma nova ordem: todo o serviço de alimentação é terceirizado. Também a distribuição e a efetividade dos serviços prestados pelo Estado cumprem e fazem cumprir a velha, mas, sobretudo, a nova ordem disciplinar: a segurança mais ostensiva, extensiva e intensiva é exercida por agentes penitenciários selecionados através de concurso público e treinados para esta finalidade. Estes agentes, também, seguem a um padrão no vestir e, sobretudo, no falar, no informar ao visitante a respeito de suas indagações e no trato com o interno. A arma mais ostensiva é o cassetete, mas conforme a função é o fuzil e a metralhadora e outros apetrechos militares.

Todo o sistema de segurança encontra-se interligado, desde as câmeras de segurança até ao aparelho de rádio, sempre presente na “pochette”, mas quase sempre ao ouvido, para se comunicar com o superior ou com os colegas. As revistas, inclusive, dos advogados são feitas pelos próprios agentes penitenciários, com mais rigor e uso de tecnologia, detector de metais, bem como o emprego de cães adestrados, quando necessário. Estes são alguns dos indicadores de maior rigor no controle interno e de maior fechamento institucional em relação ao mundo das pessoas livres.

Há uma disposição generalizada de todo o pessoal administrativo, desde a direção até aos agentes penitenciários, em interagir, acolher e receber iniciativas de instituições e pessoas da sociedade civil, no sentido de tornar a prisão menos violenta, onde um mínimo de acesso aos direitos seja possível. Constatou-se ainda uma das grandes contradições, talvez a mais difícil de ser resolvida, no sistema prisional, que se desponta no horizonte contemporâneo: como manter um mínimo de equilíbrio entre segurança e reintegração, isolamento e re-socialização para a vida no mundo das pessoas livres.

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[1] Este trabalho foi publicado em livro: A prisão dos excluídos: origens e reflexões sobre a pena privativa de liberdade. Juiz de Fora/ Rio de Janeiro: EDUFJF/ Diadorin, 1996.

[2] A pesquisa mencionada, foi concluída em março de 1998, fez parte de um projeto mais amplo financiado pela FAPEMIG, com o apoio da PROPESQ – UFJF & do Laboratório de Antropologia do Corpo e da Saúde da UFMG, intitulado “Aspectos sociais do consumo de alimentos, drogas e cuidados corporais, em Juiz de Fora, Minas Gerais. O projeto foi desenvolvido por uma equipe formada por quatro Professores Doutores, Eduardo Viana Vargas (Coordenador Científico), Mário Sérgio Ribeiro (Coordenador perante a FAPEMIG), Geraldo Ribeiro de Sá e Márcio José Martins Alves, quatro bolsistas, sendo duas sociólogas recém-formadas (Giselle Moreira e Lorena Guimarães), duas alunas do Curso de Ciências Sociais (Juliana Magaldi e Haudrey Germanini) e outros auxiliares.

[3] Este artigo foi apresentado e publicado nos Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI, realizado na cidade de Belo Horizonte, em 2007.

[4] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União n. 191-A, de 5 de outubro de 1988, art. 1º, I.

[5] ÁVILA, Fernando Bastos de, S. J. Pequena enciclopédia de moral e civismo. Rio de Janeiro: Departamento Nacional de Educação do Ministério da Educação e Cultura, 1967, p. 110.

[6] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17 ed. São Paulo: Atlas S. A, 2005, p. 16 e MARSHAL, T. H. Cidadania, classe social e status. Trad. de Meton Porto Gadelha. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 76.

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[7] Carvalho, José Murilo de. Cidadania no Brasil.7 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 9.

[8] É muito provável que a penitenciária seja, definitivamente, uma daquelas instituições que, paradoxalmente, são indispensáveis exatamente porque fracassam em sua missão específica. Quanto menos conseguem re-socializar e reintegrar à sociedade o criminoso, mais proliferam e mais recursos consomem COELHO, E. C. Oficina do diabo. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo – IUPERJ, 1987, p.17.

[9] A expressão “sociedade dos cativos” foi cunhada por SYKES, G. M. The society of captives. Princeton: Princeton University Press, 1958.

[10] JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia. Trad. de Rui Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 247.

[11] Para um estudo mais amplo e detalhado dos códigos de conduta, desenvolvidos pela população prisional, favor consultar entre muitos outros autores, SÁ, G. R. de. A prisão dos excluídos: origens e reflexões sobre a pena privativa da liberdade. Juiz de Fora/ Rio de Janeiro: EDUFJF/ Diadorin, 1996, sobretudo, as páginas 174-181.

[12] Para um estudo mais amplo e detalhado dos rituais de iniciação, SÁ, G. R. de. Op. Cit., sobretudo, as páginas 181-190), FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Caracterização da população prisional em Minas Gerais e Rio de Janeiro. Belo Horizonte, 1984 (mimeo), principalmente, nas páginas 309-312 e VARELLA. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, em diversos lugares desta obra.

[13] A propósito do processo ritual desenvolvido nesse parágrafo, favor consultar FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1984, p. 312-314.

[14] Para um estudo mais amplo e detalhado do sistema e regime progressivo vivenciados pela população prisional, favor consultar entre muitos outros autores, SÁ, G. R. de. Op. Cit., sobretudo, as páginas 186-190.

[15] MARCÃO, Renato. Curso de execução penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 110.

[16] A propósito das dificuldades encontradas na efetivação do regime progressivo desenvolvido nesse parágrafo, favor consultar FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1984, p. 184.

[17] A propósito das dificuldades encontradas na efetivação do regime progressivo desenvolvido nesse parágrafo, favor consultar FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1984, p. 352

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[18] Por sociedade civil entende-se aqui “a esfera das relações entre indivíduos, entre grupos, entre classes sociais, que se desenvolvem a margem das relações de poder que caracterizam as instituições estatais” (BOBIO, N. Dicionário de Política. 2 ed. Trad. de Carmen C. Varrialle et al. Brasília: UNB, 1986, p. 1206-1211.

[19] A propósito da assistência jurídica, integral e gratuita pode-se consultar, entre outras fontes, (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União n. 191-A, de 5 de outubro de 1988, art. 5º, LXXIV e BRASIL. Lei n. 1 060, de 5 de janeiro de 1950 – Assistência judiciária e BRASIL. Lei Complementar n.80, de 12 de janeiro de 1994.

[20] Esse sistema de classificação do advogado e outros profissionais também fora registrado por RAMALHO, José Ricardo. Mundo do Crime: a ordem pelo avesso. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p130), SOUZA, Percival. A prisão: história dos homens que vivem no maior presídio do mundo. São Paulo: Alfa Omega, 1977, p. 40-45. VARELLA, Dráuzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 39-45, entre outros autores.

[21] O Código Penal, aqui referido, trata-se do Decreto-Lei n. 2 848, de 7 de dezembro de 1940, sempre sofrendo atualizações, a Lei de Tóxicos, aqui mencionada, trata-se da Lei n. 6 368, de 21 de outubro de 1976, revogada pela atual Lei de Drogas, Lei n. 11 343 de 23 de agosto de 2006.

[22] Nas cadeias de cidades médias e pequenas a infra-estrutura para se aprender e ensinar é menor, às vezes um ou dois presos possui uma caixa contendo o essencial: Código Penal, Código de Processo Penal e Constituição Federal. Porém, Souza, Ramalho e Varela, por exemplo, encontraram na extinta Casa de Detenção, da cidade de São Paulo, verdadeiros “escritórios” de advocacia, comandados por presos. E alguns desses presos, após o cumprimento da pena, eram contratados, com muita disputa pelos advogados, para trabalhar com eles, tal era o domínio prático e teórico do Direito aprendido, durante suas passagens pelo sistema prisional.

[23] SOUZA, Percival. A prisão: história dos homens que vivem no maior presídio do mundo. São Paulo: Alfa Omega, 1977, p. 40-45. VARELLA, Dráuzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 39-45, entre outros autores.