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“CICATRIZES” DA NATUREZA E AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E CIÊNCIA. Antonio Almeida da Silva (Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS/BA) Resumo A arte e a ciência, apesar de apresentarem diferentes características, sempre buscaram estabelecer pontos de contatos e mostras conjuntas se incumbindo de trazer ao mundo percepções, olhares e reflexões que alteram a maneira de se encarar o conhecimento e o modo de se relacionar com o mundo. Diante disso, que artistas e produções na/da arte poderiam refletir e evidenciar diálogos entre a arte e ciência? O objetivo desse artigo é apontar, através de um estudo teórico e qualitativo, algumas possibilidades de diálogo e conexões entre a arte e a ciência, através dos estudos das/pelas fotografias de J. Henry Fair. Entendemos que o ensino de Ciências/Biologia possa ser um importante espaço para promover encontros entre a arte e a ciências. Palavras chave: fotografias, ciência e ensino de Ciências/Biologia. “A ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas, como se sente que são”. Fernando Pessoa A arte e a ciência são construções históricas e culturais; tanto a arte como a ciência são formas de conhecimento que a humanidade produz para interpretar e representar o mundo sobre diferentes óticas, onde cada uma apresenta maneiras diferentes de abordar a natureza. Na obra de arte, através dos sentidos e do olhar particular do artista, busca perturbar, tirar o indivíduo de seu estado de inércia para produzir paradigmas, conduzindo a um novo estado. Já a ciência se alia a técnica, como uma amalgama para produzir seus artefatos, produtos estes que são frutos de uma construção social, de um diálogo intenso entre a humanidade e a natureza. A arte e a ciência, apesar de suas diferenças, sempre buscaram estabelecer pontos de contatos e mostras conjuntas, podemos ver isso nas diferentes manifestações e no uso das artes e das ciências pelos povos antigos, que souberam trazer muita riqueza com emprego destes conhecimentos. Podemos observar em diferentes civilizações (egípcios, incas, 813

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“CICATRIZES” DA NATUREZA E AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E CIÊNCIA.

Antonio Almeida da Silva (Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS/BA)

Resumo

A arte e a ciência, apesar de apresentarem diferentes características, sempre buscaram estabelecer pontos de contatos e mostras conjuntas se incumbindo de trazer ao mundo percepções, olhares e reflexões que alteram a maneira de se encarar o conhecimento e o modo de se relacionar com o mundo. Diante disso, que artistas e produções na/da arte poderiam refletir e evidenciar diálogos entre a arte e ciência? O objetivo desse artigo é apontar, através de um estudo teórico e qualitativo, algumas possibilidades de diálogo e conexões entre a arte e a ciência, através dos estudos das/pelas fotografias de J. Henry Fair. Entendemos que o ensino de Ciências/Biologia possa ser um importante espaço para promover encontros entre a arte e a ciências.

Palavras chave: fotografias, ciência e ensino de Ciências/Biologia.

“A ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas, como se sente que são”.

Fernando Pessoa

A arte e a ciência são construções históricas e culturais; tanto a arte como a ciência são

formas de conhecimento que a humanidade produz para interpretar e representar o mundo

sobre diferentes óticas, onde cada uma apresenta maneiras diferentes de abordar a natureza.

Na obra de arte, através dos sentidos e do olhar particular do artista, busca perturbar, tirar o

indivíduo de seu estado de inércia para produzir paradigmas, conduzindo a um novo estado.

Já a ciência se alia a técnica, como uma amalgama para produzir seus artefatos, produtos estes

que são frutos de uma construção social, de um diálogo intenso entre a humanidade e a

natureza.

A arte e a ciência, apesar de suas diferenças, sempre buscaram estabelecer pontos de

contatos e mostras conjuntas, podemos ver isso nas diferentes manifestações e no uso das

artes e das ciências pelos povos antigos, que souberam trazer muita riqueza com emprego

destes conhecimentos. Podemos observar em diferentes civilizações (egípcios, incas, 813

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mesopotâmios, para ficar somente nesses exemplos) o gosto apurado pela riqueza de detalhes

e a técnica empregada, através da arquitetura, na construção dos templos e palácios, além

disso, essas civilizações se destacaram ao longo do tempo pela riqueza e o domínio de

técnicas empregadas nas pinturas e nas esculturas. A arte sempre teve tem um papel

preponderante na busca de um contato harmônico com o conhecimento científico.

Percebemos, então, que encontros entre a arte e a ciência não são nenhuma novidade.

Michelangelo Buonarroti, no renascimento, traz o equilíbrio das cores e formas, na pintura, na

escultura, na poesia e na arquitetura, Leonardo da Vinci, contemporâneo a Michelangelo,

ficou conhecido por atuar entre uma multiplicidade de conhecimentos, onde se destacou como

cientista, matemático, inventor, anatomista, escultor, poeta, músico e, principalmente, pintor.

Bruzzo (2004) em “Biologia: educação e imagens” relata o cuidado estético de muitos

Naturalistas do século XVIII e XIX nos desenhos sobre a fauna e a flora. Convém mencionar

que durante o século XVIII diversos cientistas e amadores utilizaram do conhecimento da arte

e da ciência nos trabalhos com a taxidermia, outros naturalistas do século XIX, tais como:

John James Audubon, George-Louis Leclerc, conhecido como Conde de Buffon, Étienne-

Jules Marey se destacaram por suas gravuras, pinturas e esculturas para representar a

diversidade, a beleza, a harmonia e o movimento da fauna, da flora e da vida humana.

No século XX, Marcel Duchamp, influenciado pelas cronofotografias do cientista,

inventor do cronofotógrafo, Étienne-Jules Marey, que deu, a suas obras, sensações de

movimento em meio estático, decompondo um corpo em movimento em “Nu descendo a

escada”, revolucionando o seu estilo cubista, dando um novo sentido ao conteúdo a partir do

olhar cotidiano.

Não é nenhum erro dizer que a arte e a ciência, apesar de terem repertórios e

linguagens específicas, em seus vértices possuem pontos de encontros. O próprio físico Albert

Einstein entendia que existia uma ligação intrínseca entre a arte e a ciência e, juntas,

contribuíram para a maior das artes, que é a arte da vida humana.

A arte e a ciência são ramos da mesma árvore e estas contribuem para a grandeza do

indivíduo e da humanidade que, quando se utiliza o saber da ciência, vive-se e experimenta-se

do saber lógico, quando fazemos arte estamos comunicando e aprimorando diversas conexões

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neuronais, buscando ligações antes nunca acessíveis à mente humana, buscando estabelecer

diversos sentidos, além do que a lógica nos apresenta.

Segundo Einstein, quando fazemos ciência utilizamos de uma linguagem lógica, que

muitas vezes se dá através de experimentos e, quando fazemos arte, acessamos na mente as

ligações muitas vezes não experimentadas do consciente.

É importante ressaltar que a arte e a ciência apresentam características singulares,

tanto no que se refere à metodologia, quanto à estética; porém, ambas se incumbem de trazer

ao mundo percepções, olhares e reflexões que alteram a maneira de se encarar o

conhecimento e a maneira de se relacionar com o mundo.

A arte e a ciência vêm, cada vez mais, alterando as relações planetárias, locais e

globais. A arte e a ciência vêm nutrindo, através de suas produções, de diferentes formas o

nosso corpo e a nossa alma, entre a res extensa e res cogitans. Em diferentes espaços

educativos ainda é comum separar e fragmentar os saberes, reafirmando o paradigma vigente;

um exemplo disso é a separação entre as áreas humanas e exatas, tendo esta última mais

ênfase e legitimidade, como Vattimo (1992) enuncia em seu texto1.

Em “Estrutura das revoluções científicas” (1992) Thomas Kuhn reconhece que os

paradigmas se apresentam em diversos momentos históricos como em um conjunto de crenças

e tradições, visões de mundo, formas de trabalho reconhecidas pela comunidade científica.

Contudo, para o autor, o progresso da ciência se faz pela quebra dos paradigmas, pela

colocação em discussão das teorias e métodos, acontecendo assim uma verdadeira revolução.

Concomitante ao exposto, entendemos que o encontro entre a arte e a ciência poderá

trazer diferentes formas de vivenciar o conhecimento científico clássico, tirando deste sua

posição de produtores de um saber inquestionável, diante disso, entendemos que a

aproximação entre o saber científico e a arte produz certo tipo de deslocamento, que nos

direciona para algo maior, permite experimentar diferentes linguagens e técnicas, amplia as

conexões com outros saberes, mergulha no mundo dos sentidos, produz um estranhamento e

paradoxos.

1 VATTIMO, Gianni. “A educação contemporânea entre a epistemologia e a hermenêutica”. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 108: 9/18, jan.-mar, 1992.

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Em “A nova aliança”, Prigogine e Stengers (1997) nos indicam uma possibilidade de aliança entre a ciência e a natureza, entre a intenção de modelar o mundo e compreendê-lo, em que a astrofísica, a cosmologia e a biologia molecular, entre outras ciências, devem buscar modelos mais humanos, aproximando e inter-relacionando com as ciências humanas, com a filosofia e a arte.

Queremos mostrar que as ciências matemáticas da natureza, no momento em descobrem os problemas da complexidade e do devenir, se tornam igualmente capazes de compreender algo do significado de certas questões expressas pelos mitos, religiões e filosofias; capazes também de melhor avaliar a natureza dos problemas próprios das ciências cujo objeto é o homem e as sociedades humanas. (PRIGOGINE & STENGERS, 1997, p. 25)

Torna-se necessário outro diálogo entre as ciências, na busca de um novo conceito, de

uma ressignificação que permita incluir na prática pedagógica e na atividade científica em

geral o conceito de ética e cultura, na busca de valores sociais e ambientais. “Esse processo

educativo não hierarquiza o saber científico e o conhecimento popular e étnico, não separa

razão e subjetividade, não quantifica o conhecimento aprendido, não separa a arte da ciência”

(REIGOTA, 2007, p. 44)

O poeta Manoel de Barros nos aponta alguns (dês) caminhos:

O filósofo Kiekkegaard me ensinou que cultura é o caminho que o homem

percorre para se conhecer.

Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim falou que só sabia que não

sabia nada. Não tinha as certezas científicas. Mas aprendera coisas di-

menor com a natureza. Aprendeu que as folhas das árvores servem para nos

ensinar a cair sem alardes. (BARROS, 2006, s/p)2

Nesse sentido, o dialogo entre a Ciência e a Arte pode ser um ser um importante

instrumento para rupturas das visões dogmáticas e cristalizadas de uma prática

instrumentalista, insensível ao belo, à delicadeza, à policromia e polifonia das vozes, que se

permita experimentar as diversas singularidades.

Para a arte as coisas nem sempre estão dadas e predeterminadas, elas podem ser de

outro jeito. Esse convite à estranheza, à quebra e à ruptura, é o convite feito pela arte. Já a

ciência se constitui de fatos, esta possui uma sensibilidade ao descobrimento, além de uma

2 Por motivos estéticos as poesias não atendem a todas as normas de citação.

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curiosidade impessoal, nenhum saber é aquele que não pode ser descoberto, contudo, nada se

cria, tudo é uma releitura do que já existe na natureza.

De acordo com Silva (2009), os avanços da Física, da Química, da Astronomia e da

Genética, bem como os de outras áreas das ciências, vêm a cada dia, trazendo nossas leituras

do mundo; elas modificaram a maneira de ver o ser humano, assim como o meio ambiente. A

arte também traz suas leituras, através dos escritores, pintores e poetas, ela trouxe às ciências,

sobretudo às menos impositivas e reducionistas, outras possibilidades de construção de

diálogos e construções de saberes voltados para ética e estética.

A trajetória construída nos parágrafos acima indica algumas das inquietações que nos

impulsionam e convidam a escrever esse texto: que produções na/da arte poderiam refletir e

evidenciar diálogos entre a arte e a ciência? Quais são os artistas que vem se interessando pela

proposta de trazer em seus trabalhos conexões entre a arte e a ciência? O que ganha a arte

quando se deixa experimentar com a ciência? O que ganha a ciência quando se é representa

pela estética e poética da arte?

O objetivo desse artigo/pesquisa é apontar algumas possibilidades de diálogo entre a

arte e a ciência, trazendo nessa proposta algumas produções artísticas, que apresentam

iniciativas bastante contundentes, no que diz respeito à possibilidade de evidenciar conexões

entre a ciência e a arte.

Para apoiar e fundamentar nossas análises e discussões nos amparamos em estudos

teórico-metodológicos que envolvem conceitos, noções e relações entre e arte-ciência-

imagens e educação. Apoiaremos nos estudos realizados por Guattari (1997), Prigogine e

Stengers (1997), Reigota (2007), Wunder (2008), Bruzzo (1998 e 2008), Barcelos (2008),

entre outros.

Para esse artigo, traremos as fotografias aéreas do ativista ambiental J Henry Fair para

compor e registrar possibilidades de encontro entre esses diferentes saberes.

A presente investigação emprega-se de um estudo teórico, que utiliza da análise

qualitativa para investigar o objeto da pesquisa, que seria entender quais seriam as

implicações e conexões da composição entre a arte e a ciência, debrucemos sobre alguns

exemplos de diálogos nos trabalhos fotográficos de J. Henry Fair. Busquemos discutir essas

possibilidades de diálogos entres estas produções, numa tentativa de compor reflexões em

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busca de pontos de encontro entre as diferentes produções artísticas e a ciência com vista à

construção de outras formas de saberes e práticas.

Busca-se através da proposta e da produção de alguns artistas da contemporaneidade

um exercício dialógico entre o belo e o saber instituído, por meio da arte e da ciência lançar

encontros, conexões, sensações, reflexões e práticas para se pensar e se reafirmar, sobretudo,

possibilidades políticas, ecológicas, estéticas e pedagógicas que se preocupam com a

multiplicidade de saberes, com a sensibilidade e com a estética. Interessamos-nos por um

“movimento de criação de sentidos” que nos provoca a “pensar por imagens” (WUNDER,

2011, p. 162) para compormos conjuntamente com os saberes da ciência uma educação que se

permita recriar, imaginar, encantar, mestiçar e experimentar.

“Não podemos nos esquecer de que vivemos em um mundo onde, cada vez mais, o

cotidiano de homens e mulheres é invadido pela pluralidade de imagens” (BARCELOS, 2008,

p.92)

As “cicatrizes Industriais” nas fotografias de J Henry Fair.

O americano, ambientalista e fotógrafo J. Henry Fair descobriu, através de suas lentes

fotográficas, possibilidades de produzir um apelo e um embate frente à constante poluição

industrial, contudo, não é um apelo ecológico, muito comum nas imagens apresentadas nos

discursos sensacionalistas apresentados pelas diferentes mídias em que se registra uma a

natureza cinza, desagradável, tétrica e desértica, que é o típico estereotípico das

representações de uma natureza em vias de extermínio, impondo certo “medo ecológico como

recurso de controle, que se apoia-se em uma espécie de consciência ‘arcaica’ que a Idade

Moderna, com sua ênfase na racionalidade em detrimento das crenças religiosas, não

conseguiu fazer desaparecer” (BRUZZO e GUIDO, 2008, p. 46). Há também outro extremo,

onde a natureza é apresentada pelos meios de comunicação com um conceito de natureza

idílica, fantástica e exuberante da natureza intocada. Bruzzo e Guido (2008, p. 47) resaltam

que:

Prevalece a noção de que devemos conservar a natureza pela sua inesgotável beleza que se expressa nas mais variadas formas e que pode ser melhor apreciada por meio da mediação das imagens, que detalham, destacam e selecionam, resultando em estímulos concentrados de beleza e ação.

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Fair pelo contrário, por mais estranho que se possa parecer, distancia dessa proposta

apelativa, o seu protesto se apresenta pela estética e venustidade das imagens que registram a

degradação ambiental.

Nessas fotografias percebemos que a ação antrópica nos ecossistemas, apesar do seu

feito devastador sobre a biosfera, também deixa rastos estéticos e podem produzir o belo.

Quando se olha para as fotografias de Fair, somos convidados a apreciar a beleza de cores,

tons e formas em primeiro momento, dificilmente associaríamos de imediato com a

devastação do planeta, com a poluição das águas e do solo.

Será que por serem essas imagens frutos da ação perversa das indústrias sobre o

planeta não merecem ser chamadas de arte? Então, espantosamente podemos dizer que existe

arte na destruição, existe uma arte terrivelmente bela na contaminação do planeta pela ação

humana.

Será que existe uma estética na própria destruição? Tudo isso, no mínimo é um tanto

instigante, provocante. Um misto de fascínio e espanto, fascínio pela composição entre cores

e formas e espanto por saber que toda essa beleza é fruto da degradação da vida e dos recursos

existentes no planeta.

Nas imagens aéreas de Henry Fair, percebemos que a destruição da natureza pode ser

lida e compreendida por diferentes maneiras e interpretações. O convite e a proposta

apresentada nas imagens de Fair, é de levar ao público um “grito estético” sobre as “cicatrizes

industriais3”, na perspectiva de uma reflexão de nossa ação sobre o meio ambiente e sobre si

mesmo. “A obra de arte constitui-se no resultado da inquietação do artista, como necessidade

de comunicação com seu público, num determinado contexto histórico”. (LIMA, 2007, p.15)

As primeiras fotografias produzidas por Henry Fair eram apenas registros de imagens

da poluição industrial, nada deleitável aos nossos olhos, entretanto, passou a perceber que

nem sempre os dejetos industriais apresentavam imagens “feias”, muitas apresentavam uma

riqueza e beleza de detalhes.

Nas diferentes fotografias aéreas da poluição industrial, dos processos associados com

a extração de petróleo, gás, alumínio, carvão, fertilizantes, papel, refrigerantes, entre outros;

3 Título dado por Henry Fair nas exposições digitais: “industrial Scars”.

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As imagens de J. Henry Fair nos desafia a qualquer tipo de categorizações, contrastando

muitas vezes entre a aparente beleza, com o impacto avassalador causado pelas indústrias.

Para Fonseca, “todo artista percebe formas que não podem ser nomeadas, que não podem ser

reduzidas a um discurso verbal explicativo, pois elas precisam ser sentidas, e não explicadas”

(FONSECA, 2003, p. 132)

Imagem -1: resíduos de bauxita da produção de alumínio. As cores da imagem acima são devido aos resíduos de bauxita, vindos da produção de alumínio em Darrow, Louisiana. Imagem de Henry Fair, 20114.

A policromia e a beleza das cores e tons, vista na fotografia formada através dos

resíduos da bauxita, surgem devido às reações químicas entre os diferentes resíduos tóxicos

que fazem parte do processo de melhoramento dos óxidos de alumínio.

Longe de uma única categorização, a fotografia acima nos cogita a debruçar sobre a

riqueza de cores, tons e formas, muito parecida com muitas das pinturas abstratas. A

fotografia acima seduz o público pela beleza e ao mesmo convidam para apreciar melhor a

obra, com isso elas acabam conhecendo mais sobre o impacto desses resíduos e sobre os

custos para a sociedade.

Nas suas exposições Henry Fair primeiramente tenta chamar a atenção para uma

compreensão ecológica da crise ambiental e perceber as mudanças e os impactos ambientais

advindos do industrialismo. Suas fotografias foram reunidas em uma exposição digital

4 As fotos estão no livro The Day After Tomorrow: Images of Our Earth in Crisis, publicado pela powerHouse

Books em 2011.

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“Industrial Scars” onde as imagens revelam rios e oceanos poluídos por metais pesados,

formando diferentes imagens frutos da floculação e reação dos compostos químicos, curvas,

desenhos e traços pincelados pelo vazamento de petróleo, entre outros combustíveis que

produzem cores e formas aos rios e oceanos.

Imagem -2: Foto da fábrica de herbicidas em Louisiana (EUA) foi batizada de "Gangrena" pelo fotógrafo J. Henry Fair, 2011.

O fotógrafo e ativista J. Henry Fair viaja diversas regiões do planeta a bordo de um

helicóptero para retratar o impacto de ações humanas, tais como o despejo de herbicidas pelas

grandes empresas ligadas ao agronegócio, em paisagens naturais. Na imagem acima podemos

observar a riqueza de tons de verde formando diferentes imagens a cada soprar dos ventos e

movimentos das águas. O fotógrafo Henry Fair (2011) escreveu em um site de sua mostra

digital5: "com o tempo, comecei a fotografar todas estas coisas de forma a transformá-las em

algo simultaneamente belo e assustador" (tradução minha).

5 FAIR, HENRY. Industrial Scars. Disponível em <www.industrialscars.com/> em 24 de novembro de 2012.

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Imagem -3: resíduos de uma usina química de Nova Orleans que fabrica substâncias usadas em cosméticos e embalagens plásticos e aditivos para tintas. Imagem de Henry Fair, 2011.

Observando a imagem acima podemos interpretá-la como um conjunto de rosas, ou de

células, ou de xilemas e floemas, mas não é! A beleza da imagem encobre, disfarça um

gravíssimo problema ambiental, contudo, a imagem aproxima e atualiza o expectador ao

debate sobre a contaminação das águas e de toda vida trófica pelos dejetos químicos.

Arte e ciência se unem nas composições fotográficas de Henry Fair para propor um

manifesto, um convite e um embate frente ao esgotamento e poluição dos recursos naturais.

A imagem fotográfica ocupa um importante papel na propagação de conhecimentos

“levados por um desejo de retenção material de encontros, produzimos vastas superfícies de

fotografias que retêm alguma vontade de vida” (WUNDER, 2008, p.01)

Além das fotografias apresentadas, não podemos deixar de registrar que a própria arte

fotográfica tem um enorme débito à ciência, pois esta:

nasce com o estatuto de objetividade e imparcialidade, uma vez que resulta de um processo físico (captação da imagem através de lentes) seguido de um processo químico (sensibilização da emulsão e posterior revelação e fixação da imagem latente formada) (BRUZZO, 1998).

As fotografias apresentam uma riqueza de formas, texturas e cores que se formam

através da emulsão do cloreto de prata em uma lâmina de papel. Há um misto de arte e

ciência.

Essa arte manifesta por meio de um processo físico-químico. Cada foto pincela,

desenha imagens através da luz e do contraste, no qual, o papel fotográfico, que é atravessado

pela luz, fica sensibilizado devido à presença dos sais de prata, sombras e formas se revelam

em uma folha de papel impregnada de nitrato de prata, há toda uma técnica para que tudo isso

se torne fotografia, a imagem ainda carece de passar pelo revelador, num processo de óxido-

redução, onde magia química começa acontecer e, assim, a imagem se fixa.

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É nesse misto entre ciência, técnica e arte que as imagens se manifestam, e com a

presença das fotografias digitais outros fascínios e diálogos surgiram, é o que podemos

observar nas imagens de Henry Fair.

Acreditamos que o movimento estético e ecológico produzido e divulgado por meio

das fotografias de Henry Fair pode ser um bom exemplo de composições entre arte e ciências.

Diante disso, quero enfatizar que a educação encontra uns dos seus maiores desafios,

que é abandonar seu caráter disciplinar, em que se busca transmitir conteúdos da ecologia,

para uma postura transdisciplinar, onde se vivencie espaços de diálogo com outros saberes e

práticas.

Como visto, trazemos as fotografias de Henry Fair para compor possibilidades de

diálogos entre a arte e a ciência. Apresentamos o diálogo entre os diferentes saberes no ensino

de Ciências/Biologia como instrumento e uma alternativa política, cultural e pedagógica onde

consideramos que sejam possíveis tais reflexões.

Entendo assim, como Reigota (2007) que a educação deriva de questões decorridas do

caráter do complexo, que é preciso aprender a olhar e entender a ciência como criatividade e

atividade que permite integrar a arte e os diferentes conhecimentos (científicos e tradicionais).

É nessa direção que apresentamos as “cicatrizes” fotográficas de Henry Fair. Nossa pretensão

foi de apontar possibilidades de aproximação entre a arte e a ciência e mostrar que encontros

assim contribuem para uma educação preocupada em compor territórios ético-estéticos que

estimulem olhares para a criatividade, a criticidade e a sensibilidade.

Diante disso, acreditamos que a criatividade trazida pela arte dialogando com uma

ciência que rompa as barreiras clássicas da neutralidade, da objetividade e da racionalidade

para debruçar nas “inspirações ético-estéticas” (GUATTARI, 1997, p. 18) possa contribuir

ainda mais para criar, inventar e experimentar novas maneiras de dialogar com os saberes.

Enfim, quero registrar, que visualizo possibilidades teórico-metodológicas nas

diferentes composições entre os saberes epistêmicos e os humanísticos representados, aqui, no

diálogo entre ciência e arte através das obras de Henry Fair, entre seus diferentes estilos e

variantes. É importante frisar que existem inúmeras outras possibilidades de convergência

entre arte e ciência, o que trouxemos foi apenas um pequeno “aperitivo”. Acreditamos que o

exercício dialógico entre o belo e o saber instituído, por meio das manifestações ecológicas

expressas pela arte, possa ser uma excelente alternativa para aqueles e aquelas que querem

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compreender a ciência não só pela técnica, mais pela ética e estética, na razão dialógica, na

alteridade, com vistas à construção de outras formas de saberes e práticas.

Referências

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