chita: a cara do brasil? - reflexões sobre identidade ... · through musical compositions and...
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SPGD 2017
3º SIMPÓSIO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESIGN DA ESDI
Rio de Janeiro, 22 e 23 de novembro de 2017
Chita: a "cara do Brasil"? - Reflexões
sobre identidade nacional a partir de um
tecido de origem popular
Chita: the "face of Brasil"? - Reflexons on nacional
identity from a fabric from a popular origin
MIGUEL, Aline.
RESUMO: Este artigo propõe uma investigação na relação entre estamparia de chita e identidade nacional brasileira do ponto de vista da antropofagia oswaldiana tendo como exemplo o movimento cultural tropicalista. Oswald defende a identidade brasileira como uma entidade em formação que se apropria de diversas influências em um hibridismo cultural. Hibridismo este que se alinha à estamparia de chita devido às transformações gráficas e simbólicas sofridas por este tecido desde sua importação das Índias até a sua concepção como um produto totalmente nacional em uma possível associação à brasilidade, tropicalidade e alegria dos brasileiros. O simbolismo da chita fica mais evidente ao analisarmos o uso deste tecido pelo movimento da Tropicália. Através de composições musicais e ousados visuais, pelo exagero de acessórios e roupas estampadas, dentre elas a chita, os tropicalistas propunham inovações e faziam críticas à construção de identidade nacional no cenário cultural do Brasil nos anos 60. Palavras-chave: Design de Moda. Imagem e Comunicação. Cultura e Sociedade. Design de Superfície. Estampa.
ABSTRACT: This article proposes an investigation into the relationship between Chita print and brazilian national identity from the point of view of oswaldian anthropophagy, taking as an example the tropicalist cultural movement. Oswald defends the Brazilian identity as an entity in formation that appropriates diverse influences, in a cultural hybridity. This hybridity is aligned with the chita print due to the graphic and symbolic changes undergone by this fabric since its importation from the Indies until its conception as a totally national product in a possible association with brazilianness, tropicality and the joy of brazilians. This chita symbolism becomes more evident when we analyze the use of this tissue by the Tropicália movement. Through musical compositions and daring visuals, by the exaggerated use of printed accessories and clothing, among them the chita, the tropicalistas proposed innovations and criticized the construction of national identity in the cultural scene of Brazil in the 60's.
Keywords: Fashion Design. Image and communication. Culture and society. Surface design. Print.
MIGUEL. Chita: a "cara do Brasil"? Reflexões sobre identidade nacional a partir de um tecido de origem popular
Anais do 3º Simpósio de Pós-Graduação em Design da ESDI | SPGD 2017
ISSN: 2447-3499 | ISSN ONLINE: 2526-9933
1 — Introdução
Este artigo aborda a relação entre estamparia de chita1 e identidade nacional brasileira do ponto de partida da antropofagia de Oswald de Andrade, tomado como incentivador teórico para observação das diversas reflexões que este simples tecido pode suscitar. O conceito de identidade nacional é posto em crítica por pensadores como Hall e Canclini na proposição de uma identidade que abarque toda a pluralidade multifacetada encontrada nas sociedades contemporâneas. "As nações modernas são, todas, híbridos culturais" (HALL, 2006, p. 62). No manifesto literário "Utopia Antropofágica", de 1928, Oswald defende a identidade brasileira como uma entidade em formação que se apropria de diversas influências, cenários e contradições através da "deglutição" de múltiplas culturas, inclusive estrangeiras. Esta construção heterogênea de identidade se alinha à estamparia de chita. Floral importado das Índias, ele chegou aqui com determinadas características que foram se hibridizando por inúmeras influências a ponto de se tornar um produto 100% nacional com novos aspectos gráficos e simbólicos que podem ser associados à brasilidade, tropicalidade e alegria dos brasileiros. O hibridismo da chita fica mais claro ao analisarmos o uso deste tecido pela Tropicália. Movimento de grande importância no cenário cultural brasileiro, a Tropicália se propõe, entre outras coisas, a redefinir a identidade brasileira, em um desdobramento do conceito oswaldiano, em oposição à imagem imposta pelo colonialismo. Este movimento se deu principalmente na música. Seus integrantes se utilizavam de liberdade e ousadia nas composições musicais e também em suas vestimentas, com o uso intencional e exagerado de cores, acessórios e estampas, dentre elas, a chita. Nesse sentido, seguindo os conceitos de Oswald e as práticas do Tropicalismo, a formação
da identidade nacional pode ser compreendida como um processo cultural de
apropriações e misturas de influências vindas de diversas fontes e a chita pode ser
considerada como um de seus frutos mais ricos.
A presente pesquisa foi feita com base em bibliografia diversificada de livros e artigos, além de documentário em vídeo acerca do movimento tropicalista. Ademais, haverá um complemento desta pesquisa numa visita ao museu Décio Mascarenhas (Caetanópolis - MG), considerado o maior museu têxtil brasileiro com acervo de mais de mil peças, inclusive tecidos de chita.
A seguir, começaremos a discussão por um breve retrospecto do conceito oswaldiano.
1 "Chita é um tecido de algodão barato e de pouca qualidade, com estampas de cores fortes,
geralmente florais, e tramas simples. As estamparia é feita sobre o tecido conhecido como morim
[algodão]." Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Chita_(tecido)> Acesso em 04/09/2017.
MIGUEL. Chita: a "cara do Brasil"? Reflexões sobre identidade nacional a partir de um tecido de origem popular
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2 —Antropofagia de Oswald de Andrade
Manifesto literário de corrente modernista, a Utopia Antropofágica foi escrita pelo poeta
Oswald de Andrade, em São Paulo em maio de 1928. Este manifesto se constitui em
críticas à cultura brasileira enquanto formadora da identidade nacional. Identidade esta
que apresenta um amálgama de culturas primitivas, como a do índio e a do escravo negro,
em detrimento ao arcabouço intelectual europeu.
O manifesto faz criticas à hegemonia ideológica imposta pelo aparelho colonial político-
religioso, com suas regras de comportamento, e ao controle intelectual centrado na classe
dominante em alinhamento ao estrangeirismo. Oswald propõe "deglutir" o legado cultural
europeu, um uma "digestão" sob a forma de uma arte tipicamente brasileira.
Constituído por três modos de linguagem, o manifesto trata da metáfora orgânica na qual
os tupis são vistos como devoradores dos colonizadores em uma alusão à necessidade de
englobar tudo o que podíamos repudiar, assimilar e superar na conquista da nossa
autonomia intelectual; E também traz, para além do diagnóstico da sociedade brasileira,
traumatizada pela repressão colonizadora, uma proposta terapêutica, como meio de
reação violenta às articulações e acontecimentos que fizeram do trauma repressivo uma
instância censora, como os mecanismos sociais e políticos, manifestações literárias e
artísticas e hábitos intelectuais. (NUNES, 1990)
Oswald pregava a liberdade de expressão em contraste às imposições ideológicas e ações
repressivas do aparelho colonial. Uma liberdade que abarcasse a riqueza cultural nacional
na sua concepção de múltiplas influências, em suas complexidades e heterogeneidades.
"Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago." (ANDRADE, 1990,
p. 47). É preciso misturar, confrontar e contrastar as múltiplas representações produzidas
pelos sujeitos históricos para se localizar na trajetória brasileira e fazer uma escolha em
relação à direção para a construção do futuro.
3 — Estamparia de Chita Podemos pensar a chita como um processo antropofágico? De constituição complexa e heterogênea, esta estampa se caracteriza por flores de cores vivas impressas em tecido de algodão. Importada das Índias, sob o nome de Chintz, ela chegou ao Brasil no séc. XVIII. Como pano barato para escravos e carentes, ela passou por transformações gráficas e simbólicas se relacionando com as mais diversas camadas da sociedade e eventos histórico-culturais ao logo dos anos. A história deste tecido está intimamente ligada ao desenvolvimento têxtil do Brasil, podendo ser considerada um "retrato" da população brasileira em uma mescla de festividades nacionais, imaginários populares, hibridismo de culturas e multiplicidade de simbolismos. A chita vestiu escravos, tropicalistas, alta sociedade, estrangeiros, personagens de literatura, teatro e novela. Renata Mellão e Renato Imbroisi, no livro Que Chita Bacana, nos contam uma lúdica estória do "nascimento" da chita, produto 100% nacional. Família de panos popularíssimos e acessíveis, todos descendentes de D. Maria Chitinha, senhora portuguesa aparentada com Mr. Chintz de Lancashire, que tem primas na região de francesa de Provence, parentes na vila portuguesa de
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Alcoçaba, e é descendente de uma casta de trabalhadores indianos. Em terras brasileiras, gerou uma filha mineira, Maria Chita, bonita e flexível, aberta a influência dos quatro cantos do mundo e mãe do imbatível e brasileiríssimo João Chitão. É um prazer conhecer [...] esta é a miscigenada família. (MELLÃO e IMBROISI, 2005, pg. 30) Com isso, podemos perceber que este tecido-imigrante foi tramado por um mosaico mestiço concebido por combinações de diversas influências traduzidas esteticamente por suas formas e cores, em uma proposição de elementos de subjetividade que evidenciam as muitas facetas brasileiras. O desenvolvimento têxtil brasileiro se deu de forma tardia devido a acordos estabelecidos entre Portugal, Inglaterra e Índia para que o Brasil importasse tecidos destas regiões parceiras. Entre as aquisições têxteis, estava a chita. Um novo tratado estimulou as primeiras produções têxteis brasileiras para serem exportadas para Inglaterra. O tecido era tão bem produzido que o Brasil passou a fornecer também para as demais capitanias. Este desenvolvimento chamou a atenção de Portugal que, se sentindo ameaçado pela colônia, proibiu a produção têxtil brasileira sob pena de desmonte das manufaturas. Minas Gerais manteve a produção mesmo na clandestinidade. Mas este cenário mudou com a vinda da família real para o Brasil que, fugida do domínio
de Napoleão, trouxe consigo a autorização oficial para a produção de tecidos nacionais. Em
1872, foi fundada a primeira grande indústria dedicada à produção de chita no Brasil2.
Apesar do desenvolvimento têxtil estar em constante crescimento, o uso deste tecido floral
se restringia aos trabalhadores mais pobres da população, pois os imigrantes preferiam
usar as roupas de origem para manter sua distinção socioeconômica.
Após alguns séculos de fabricação e comercialização, o tecido da chita, numa tentativa de
conquistar o mercado de decoração, teve sua largura ampliada, proveniente da união de
dois teares, fazendo com que o desenho floral acompanhasse o aumento de tamanho e, na
década de 60, a chita virou chitão com flores enormes e novo colorido. (MELLÃO e
IMBROISI, 2005)
O cenário do consumo da chita começou a mudar quando este tecido vira peças de roupa
na ousada coleção da estilista Zuzu Angel, atingindo as classes mais altas da sociedade. O
Tropicalismo também teve seus representantes vestidos de chita na revolução da música
popular brasileira. Mas a estampa atinge seu auge ao virar moda com a aparição na novela
Gabriela da TV Globo, inspirada na literatura3 de Jorge Amado. "Se existe uma coisa que se
pode chamar de moda brasileira, é o tubinho de chita da Gabriela que foi usado por todas
as mulheres do país nos anos 70." (KALIL apud MELLÃO e IMBROISI, 2005, p. 171)
Hoje, a chita está em toda a parte. Podemos encontrá-la nas lojas de varejo de moda e
decoração, além de vermos seu uso em festas populares espalhadas por todo o Brasil.
2 A primeira grande indústria dedicada e produzir chita no Brasil, em 1872, se chamava Companhia
de Fiação e Tecidos Cedro & Cachoeira, em Curvelo, Minas Gerais. Esta empresa funciona até hoje
sob o nome de Cedro Têxtil e mantém o museu têxtil mais completo do país, o Museu Décio
Mascarenhas, com acervo de mais de 1.000 peças.
3 Literatura de Jorge Amado: Gabriela, cravo e canela, publicado em 1958.
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Figura 1: Chintz indiano do séc. XVIII / Fonte: MELLÃO e IMBROISI, 2005, p. 36 Figura 2: 1872: chita produzida no Brasil / Fonte: MELLÃO e IMBROISI, 2005, p. 130 Figura 3: 1969: chita aumenta de tamanho e vira chitão / Crédito: Aline Costa Miguel / Fonte: própria Figura 4: 2017: releitura da chita pela marca carioca Farm / Fonte: Farm, 2013, p. 80
A partir deste panorama, podemos notar que a chita é fruto de uma hibridação cultural. Este termo é usado por Canclini para designar processos interéticos e de descolonização, ou seja, processos que implicam o cruzamento de fronteiras, envolvendo fusões artísticas, literárias e comunicacionais. Esta transformação se dá por sobreposições entre culturas, de um modo antropofágico através de uma mistura que resulta na criação de algo novo, diferente. (PYM apud BURKE, 2003). Se trata da incorporação de elementos de outra cultura a sua própria através de adaptação ou empréstimo em um processo de descontextualizção e recontextualização pela retirada do elemento de seu local de origem, sua modificação e recolocação no novo ambiente cultural.
No caso dos têxteis: um exemplo famoso é o do chintz, um tecido estampado produzido na Índia para ser exportado para a Europa. Os desenhos combinavam motivos persas, indianos e chineses e seguiam padrões enviados para Índia pelos diretores da Companhia Holandesa das Índias Orientais e da Companhia das Índias Orientais de Londres. Em outras palavras, estes têxteis eram produzidos em um estilo 'oriental' genérico que deve ser encarado como uma produção eurasiana conjunta. [...] os intermediários foram as Companhias das Índias Orientais e [...] os designs tradicionais foram gradualmente modificados para se adequarem ao gosto dos consumidores ocidentais. (BURKE, 2003, p. 92) A transformação gradativa da chita é afetada para além das influências culturais e
estéticas, como também pelo gosto popular. Desde o séc. XIX, na Inglaterra, mestres
estampadores de tecidos de algodão produziam grande número de padrões ao longo dos
anos. O lucro dos donos das estamparias dependia do volume de vendas dos desenhos
estampados, ou seja, seu sucesso estava vinculado à popularidade da estampa. (FORTY,
2007). "Imprimimos estampas em função das exigências do mercado.", conta José
Henrique Mascarenhas, diretor da tecelagem Fabril Mascarenhas, fabricante da estamparia
de chita. (MELLÃO e IMBROISI, 2005, p. 128)
Com relação à estética da chita, caracterizada, graficamente, por grandes florais coloridos,
podemos associá-la ao signo de brasilidade, tropicalidade e alegria do povo brasileiro.
Parafraseando o designer Gringo Cardia, a chita é uma fotografia da nossa cultura e
deveria ser tombada. Kátia Barros, diretora criativa da marca carioca de roupa feminina
Farm, conclui que a chita é a "cara do Brasil". Esta frequente abordagem evidencia uma
possível associação deste tecido a nossa identidade. As características ditas "brasileiras"
se constituem em uma imagem do Brasil que é vendida para o turista estrangeiro cujos
interesses estão associados a temáticas relacionadas ao primitivismo, selvagismo e
exotismo.
Todas as representações do Brasil são relevantes, pois, juntas, revelam uma ideia de Brasil complexa, poliédrica; uma ideia composta de ideias, de projetos, um polígono de múltiplas faces ao mesmo tempo opostas e interligadas em uma mesma figura. (REIS, 2007, p. 16)
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4 — Tropicália
A Tropicália foi um movimento cultural cujo objetivo se constituía em críticas relacionadas
a problematização centrada na constituição de imagens do Brasil e no combate ao "Brasil
diarreia" _ expressão criada pelo artista de vanguarda Hélio Oiticica para a situação
estagnatória de mesmice e conformismo artístico, cultural e político do país. (FAVARETTO,
2016)
O movimento manifestou-se principalmente na música (cujos maiores representantes
foram Torquato Neto, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Os Mutantes e Tom Zé); mas
também se desdobrou em diversas manifestações nas artes como as artes plásticas
(destaque para o artista vanguardista Hélio Oiticica), o cinema (o movimento sofreu
influências e influenciou o Cinema novo de Glauber Rocha) e o teatro brasileiro (sobretudo
em peças de José Celso Martinez Corrêa, como a encenação de O Rei da vela) e a literatura
(com obras como 'Brasil diarreia' e "Experimentar o experimental' de Oiticica).
A Tropicália teve seu início no Festival de Música Popular Brasileira, em 1967, promovido
pela Rede Record (SP) e rede Globo (RJ), no qual Caetano Veloso se apresentou,
interpretando Alegria, Alegria, ao lado do grupo Beat Boys, e Gilberto Gil, juntamente com
Os Mutantes, cantou Domingo no Parque. No ano seguinte, o festival foi integralmente
considerado tropicalista. Em 1968, foi lançado o disco coletivo Tropicália ou Panis et
Circencis.
Figura 5: 1968: capa do disco coletivo Tropicália ou Panis et Circencis. Crédito: Aline Costa Miguel Fonte: própria
Em 1964, início da ditadura militar, a música popular havia se tornado veículo de dissenso
político. A composição musical representaria a liberdade de expressão na articulação do
ideal de uma nação, na revalorização das 'raízes culturais' em detrimento ao projeto
ideológico e político dos militares.
Caetano Veloso, Glauber Rocha, Hélio Oiticica e José Celso Martinez viam possibilidades
limitadas de ensaiar uma reflexão efetiva acerca da situação da cultura brasileira contemporânea, situando-a no contexto internacional. Havia uma necessidade de reunir
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todas as tendências e expressões presentes na rica cultura brasileira, como a mistura de
influências indígenas, africanas e europeias, em novas formas de apresentação cultural.
(BASUALDO, 2007)
Apesar de o Brasil estar sob a repressão do governo militar, com desenvolvimento
industrial acelerado e marcado por grandes distinções sociais, este projeto de vanguarda,
em determinadas instâncias, buscava dialogar com a nascente indústria cultural, de forma
a evitar tornar-se exclusivo e elitista.
Gil observa que era preciso uma redefinição da música brasileira. "O Tropicalismo é
movido a essa reação. É essa coisa de dizer: Não! Precisa ter uma restauração, uma
refundação da música brasileira." (BURGER, 2012)
Com intenção de atualizar a potencializar a produção musical no Brasil, em resposta aos
defensores da tradição musical, Caetano Veloso traz a influência do rock, por meio da
introdução de guitarras elétricas na cultura popular, vindas dos trios elétricos do
Nordeste.
É bobagem insistir em fazer o samba de uma forma para museus, morto. O samba
não morreu: está crescendo. É isso que me interessa... Guitarra elétrica é um
instrumento muito bonito. E desde que existe é utilizado no samba. Cresci ouvindo
os trios elétricos na Bahia, que ainda hoje animam o carnaval de lá. (VELOSO apud
BASUALDO, 2007, p. 11)
Gil e Caetano almejavam reunir a manifestação interiorana nacional em composições
musicais na tentativa de recuperar a valorização da música popular brasileira. Eles tinham
a intenção de apresentar a riqueza cultural nacional através de uma diversidade de
influências vindas de diversas partes, como do álbum Sargent Peppers dos Beatles, do
advento da guitarra elétrica, da banda dos Pífanos de Caruaru, da peça Rei da Vela, de
Oswald de Andrade com a montagem de Zé Celso, do filme Terra em Transe de Glauber
Rocha, das expressões da cultura de massa, do programa do Chacrinha, da jovem guarda
etc.
Esta abertura estrutural às influências e a estímulos externos, transformava a música
popular brasileira na concepção de um processo em desenvolvimento e não mais como um
resultado finalizado de um processo. Isso se dá não só em relação à música, mas à própria
identidade brasileira. "A condição brasileira, mais do que simplesmente marginal dentro
do mundo, é subterrânea, isto é, tende e deve erguer-se como algo específico ainda em
formação." (OITICICA apud FAVARETTO, 2016, p. 168).
É preciso trabalhar para além dos estereótipos brasileiros, em uma apreensão das
expressões populares, possuidoras de potência inerente, como o carnaval, a música
nordestina e a arte de rua. Assim, os artistas revolucionariam as formas culturais e se
aproximariam do grande público, na revolução de novos modos de enunciação e
anunciados correspondentes a suas respectivas práticas. Gil e Caetano viam a importância
de se aproximarem do público, de trazerem as massas para a participação do cenário
sociocultural brasileiro. Por este motivo, era preciso que eles se reconhecerem como
artistas de massa para entendê-la e atuar dentro desta cultura.
A concepção da cultura brasileira e sua extensão para a própria noção de identidade
nacional estava se tornando algo diferente, sendo acompanhada por mudanças de atitude
significativas por parte dos artistas, músicos e autores devido a situação política e social
da época. A estratégia de manifestação do Tropicalismo tinha como base a antropofagia de
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Oswald de Andrade que, com seu manifesto apresentado no final da década de 20,
representava o ponto de partida para as discussões tropicalistas em sua ironia a uma
realidade nacional, na simbolização de um país contraditório. Caetano, entre outros, via a
antropofagia oswaldiana como uma solução para o cartesianismo.
A antropofagia seria a defesa que possuímos contra o domínio exterior, e a
principal arma criativa, essa vontade construtiva, o que não impediu de toda uma
espécie de colonialismo cultural, que de modo objetivo queremos hoje abolir,
absorvendo-o definitivamente numa superantropofagia. (OITICICA apud
BASUALDO, 2007, p. 15)
Segundo Favaretto (2016), a produção significante dos tropicalistas se dá pela articulação
de fragmentos e pela "devoração" de imagens conflitantes constituintes do cenário cultural brasileiro. Há apropriações de diversos tipos de elementos, justapostos em uma
mistura de imagens, referências e linguagens, formando uma "síntese imagética", um
processo de construção de contradições enunciadas. Isso se reflete nas composições
musicais, através de proposições simbólicas apresentadas por imagens estranhas e
enigmáticas, com justaposição de materiais de procedências diversas e elementos díspares
em uma elaboração onírica e materialização surrealista. O som da guitarra elétrica
convivia com violinos e berimbaus.
Toda essa profusão imagética e simbólica também era notada nas vestimentas
tropicalistas, cuja escolha se caracterizava pelo excesso: roupas coloridas e estampadas,
adornos e cabelos compridos. Com isso, tinham a intenção de chocar, chamar atenção.
Figura 6: 1968: capa do disco coletivo Tropicália ou Panis et Circencis. Fonte: https://deborando.wordpress.com/2012/09/12/documentario-tropicalia-estreia-nesta-sexta-14/
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5 — Manifesto tropicalista nas roupas
Podemos revelar muitas características de nossa identidade pela maneira na qual nos
vestimos. A vestimenta e a moda se constituem em vetores da expressão pessoal e coletiva
como veículo de comunicação por parte dos atores sociais.
A necessidade de adornar-se está presente desde os primórdios que faziam uso de partes
dos corpos dos adversários como adornos para serem exibidos aos demais integrantes das
tribos como símbolo de vitória, cumprindo a função de troféu, símbolo de poder. Em
alguns grupos indígenas, os escalpos eram arrancados dos inimigos, em outros, colares
feitos dos dentes do adversário eram usados, ou ossos carregados como enfeites, como o
osso maxilar do abatido que era usado como bracelete. (FLUGEL, 1966)
Ao longo dos anos, podemos notar o uso contínuo de adornos não só individualmente, mas
de forma coletiva. Grupos de indivíduos unidos por interesses comuns podem associar-se
as mesmas características decorativas. A caracterização de determinado grupo de pessoas
possui um significado social, pois indica uma associação de seus integrantes a partir de
símbolos de sensibilidade, sentimentos e interesses unificadores deste grupo, como é o
caso dos tropicalistas. A produção significante da Tropicália se dá pela articulação de
fragmentos e pela "devoração" de imagens conflitantes que constituem o cenário cultural
brasileiro. Há apropriações de elementos disparatados, justapostos em uma mistura de
imagens, linguagens e referências formando uma "síntese imagética" em um processo de
construção de contradições enunciadas. Esta produção se estende para além das questões
ideológicas em um reflexo de proposições materiais a partir de ousadas combinações em
vestimentas. Vestimentas essas que se caracterizavam pelo excesso: roupas coloridas e
estampadas, muitos adornos, sobreposições de peças e cabelos compridos.
Figura 7: Apresentação do programa tropicalista Divino Maravilhoso em 1968 pela TV Tupi. Fonte: https://medium.com/@educontra/o-tropicalismo-e-a-cr%C3%ADtica-f448ab13d34
Com isso, podemos observar que a moda é apresentada como signo de afirmação e de
diferenciação ostensiva. Podemos notar que a necessidade de libertação dos tropicalistas
era feita por muitas maneiras como o modo de vestir-se, pentear-se, refletir as ideias do
mundo etc.
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Segundo G. Tarde, a moda, em sua essência, se constitui em uma forma de relação entre os
seres, caracterizada pela imitação dos contemporâneos e pelo amor às novidades
estrangeiras. (LIPOVETSKI, 2009). É a imitação, a cópia, a mistura, a releitura das
informações e influências. "Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do
antropófago." (ANDRADE, 1990, p. 47). Notamos, na moda, o manifesto de influências
múltiplas, transversais e recíprocas ao invés de determinismos fechados de corpos, de
classes e de país. A moda é absorvida pelos tropicalistas como uma forma de liberdade de
expressão. Imita-se isso ou aquilo, copia-se daqui e dali, de inúmeras fontes, sem origem
fixa, em uma mistura assumida e "deglutida".
De acordo com o escritor Tárik de Souza (BURGER, 2012), esta questão da imitação e da
cópia se alinha ao movimento tropicalista na medida em que ele faz um grande trabalho de
montagem, uma bricolagem4, incorporando várias forças presentes na cultura brasileira,
não só na música, mas em outras artes.
Em suas roupas, os músicos vestiram peças estampadas de chita pela proposição da imagem simbólica relacionada à identidade do Brasil, entre palmeiras e araras. Os músicos "deglutiram" a estampa de chita em sua antropofagia oswaldiana, misturando e justapondo a outras estampas em um visual excêntrico, com características originais e ousadas.
Figura 8: Caetano Veloso, usando uma camisa com estamparia de chita, e Gilberto Gil Fonte: https://br.pinterest.com/pin/228135537354664529
A estamparia de chita, por ser um tecido utilizado pela maioria da população, era considerada "do povo". Este se constitui em mais um fator à favor de seu uso pelos tropicalistas, pois usar a roupa "do povo" era também uma forma de se identificar com as massas.
4 Termo cunhado por Levi-Straus, em seu livro Pensée Sauvage, para se referir a
incorporação de elementos de outra cultura à sua própria através de adaptação ou
empréstimo.
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4 — Conclusões
A estamparia de chita se relaciona com a identidade nacional na medida em que é considerada "retrato do povo". Parafreseando o designer Gringo Cardia, a chita é uma fotografia da nossa cultura e deveria ser tombada. Contudo, leituras sobre a formação da identidade brasileira nos mostram que essa “identidade" se dá de forma "antropofágica", em uma mistura de influências, hibridismos e mesclas vindas das mais diversas fontes. Esta questão levantada inicialmente pelo movimento antropofágico foi, décadas mais tarde, amplamente ilustrada pelo movimento Tropicalista, no qual seus integrantes faziam uso da estamparia de chita como um veículo de identificação com as massas para a aproximação do grupo com o público. Mas eles também a "deglutiram" como valor simbólico de "retrato" da brasilidade, tropicalidade e alegria dos brasileiros. Uma identidade múltipla e em contínua construção.
Referências
ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. São Paulo: Editora Globo, 1990 (1890-1954)
BASUALDO, Carlos. Tropicália, uma revolução na cultura brasileira. São Paulo: Cosac
Naify, 2007
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre, RS: Ed. Zouk,
2006 (1979)
BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Pelotas, RS: Editora Unisinos, 2003.
FAVARETTO, Celso in SZANIEKI, Barbara, COCCO, Giuseppe, PUCU, Isabela. Hélio Oiticica
para além dos mitos. Rio de Janeiro: R&L Produtores associados, 2016
FLUGEL, J. C. A psicologia das roupas. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1966 (1930)
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Notas sobre a autora
MIGUEL, Aline; mestranda; Chita: apropriações da estamparia tradicional e contribuições para uma valorização de elementos culturais brasileiros no design de estampa contemporâneo; Orientadora: Barbara Szaniecki; Ano previsto para defesa: 2018; Link para o Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8471773U4