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Memorialistas portugueses

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  • Biblioteca Breve SRIE LITERATURA

    MEMORIALISTAS PORTUGUESES

  • COMISSO CONSULTIVA

    JACINTO DO PRADO COELHOProf. da Universidade de Lisboa

    JOO DE FREITAS BRANCO Historiador e crtico musical

    JOS-AUGUSTO FRANA Prof. da Universidade Nova de Lisboa

    JOS BLANC DE PORTUGALEscritor e Cientista

    DIRECTOR DA PUBLICAO LVARO SALEMA

  • CASTELO BRANCO CHAVES

    MemorialistasPortugueses

    M.E.CSECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA

  • Ttulo

    Memorialistas Portugueses_______________________________________

    Biblioteca Breve / Volume 21 _______________________________________

    Instituto de Cultura PortuguesaSecretaria de Estado da Cultura Ministrio da Educao e Cultura_______________________________________

    Instituto de Cultura PortuguesaDireitos de traduo, reproduo e adaptaoreservados para todos os pases ___________________________________

    1. edio 1978 ___________________________________

    Composto e Impresso nas Oficinas Grficas da Livraria Bertrand Venda-Nova - Amadora Portugal Julho de 1978

  • NDICE

    Pg.

    Generalidades sobre o tema ..................................................................... 6O memorialismo portugus de relance................................................. 10Obras e autores ........................................................................................ 18

    Sculo XVIII ......................................................................................... 18Sculo XIX ............................................................................................ 30Sculo XX.............................................................................................. 48

    Consideraes finais ................................................................................ 55Notas ......................................................................................................... 61Documentrio Antolgico...................................................................... 64Bibliografia Sumria ................................................................................ 80

  • GENERALIDADES SOBRE O TEMA

    Certamente no ser ocioso nem excessivamentearbitrrio dividir em duas espcies o gnero memorialnas literaturas modernas, sendo uma a constituda pelas Memrias e a outra pelos Dirios.

    A primeira espcie pode, para comodidade deexposio, dividir-se em duas grandes famlias: a daqueles memorialistas que se centram na narrativa dos acontecimentos e em que estes so narrados como condicionamento dos eventos da sua vida; e a daqueles outros que desejando ambiciosamente traar um vasto panorama do seu tempo aparecem nas memrias muito semelhantemente maneira como em certos grandespainis e alegorias oficiais se auto-retratavam os pintores: um pouco apagadamente, a um dos extremosda composio. No primeiro caso, as memriasconstituem quase sempre um valioso documentohistrico e, muitas vezes, humano o que narram noesteve sujeito a uma composio de conjunto, mas exprime o que foi directamente observado e sentido; nosegundo, podem tais memrias constituir obra de grande arte literria, se o seu autor um artista de superiores aptides, mas o valor documental, por via deregra, no corresponde extenso do panorama,

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  • havendo necessariamente partes da composio que no foram nem vividos nem observados pelo memorialista.

    No consistem as memrias, apenas, em confisses subjectivas; no so meras autobiografias, to-pouco, porque nas memrias, exactamente como na vida, osfactos individuais e at, em parte, os sentimentos e paixes esto inscritos nos factos histricos e sociais que lhes condicionam as manifestaes. O que eleva quaisquer memrias acima de simples documentos e lhes d condies de valor cultural o gnio criador e artstico do memorialista, a par da capacidade davisionao esttica da prpria vida na vida comum emque se encontrou inserida. Neste caso, o memorialista no dar uma verso literal, digamos, da sua vida, mas recre-la- num plano artstico.

    O gnero memorialstico torna-se assim num gnero literrio, cuja categoria esttica e riqueza de representao humana depende mais, nos seus variadosespcimes, do talento e da riqueza ntima do autor doque propriamente da matria narrada. E por isso queh memrias que se lem como um poema, e o caso das Mmoires dOutre-Tombe, como um romance de aventuras, e o que acontece com as memrias deBenevenuto Cellini ou de Casanova, ou ainda como manual do perfeito conspirador, como as do cardeal de Retz.

    H, porm, a considerar que o memorialismo, comognero literrio, no geral, no obedece a formalismos deescola, nem a modas literrias com as respectivas retricas e isso o preserva do envelhecimento a que esto sujeitos outros gneros literrios.

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  • Menos interessantes que as memrias, so os dirios. Dignos de maior confiana quanto ao rigor do que narram e veracidade do que testemunham, porque elaborados ao sabor dos trabalhos e dos dias, no pecam por perspectivas estilizadas, como vulgar suceder comas memrias. Estas, escritas geralmente no fim da vidado autor, iludem bastas vezes pelas miragens do passado que so, em muitos casos, to enganosas como as dofuturo.

    Sem obedecerem a regras da composio deconjuntos, nem harmonizao de partes com o todo, os dirios registam quotidianamente os factos, as impresses, as ideias ao sabor da sua fluncia. O dirio uma obra de jornalismo ntimo; e por essa feio jornalstica, se participa da efemeridade do quotidiano, por um lado, ganha por outro da genuinidade doimediato. Ser um documento valioso, na maioria doscasos, mas s excepcionalmente constituir obra de categoria literria, a no ser que seja um autntico escritor a mant-lo no propsito de deixar uma obra detal feio e categoria. Quando, porm, os dirios seelevam acima da craveira mdia podem constituir, como sucede com o Diary de Samuel Pepys, uma dessas obrassingulares que, fora de todas as classificaes, regras e gneros literrios, constituem os livros singulares decada literatura e que so seus grandes tesouros.

    Tambm o jornal ntimo um recordatrio, mais doque de factos, de ideias e de estados subjectivos. O padro superior deste gnero o Journal Intime de Amiel.

    So as pocas de convulso social ou meramentepoltica aquelas que suscitam a literatura memorialista,assim como, geralmente, so aqueles que tiveram

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  • destinos de vida agitada e irregular, aventureiros e marginais, os mais propensos ao memorialismo como quem procura, por fim, compor com a narrativada sua existncia o quadro perfeito da aventura quelhe coube. Em Frana, a Fronda deu o memorialista por excelncia neste gnero; e, depois, a Revoluo e o Imprio, o grande nmero daqueles que, em pequena ou grande medida, viveram e fizeram histria nessestempos. Memrias de grandes irregulares, aventureiros com talentos, e entre eles o literrio, esses aparecem emquaisquer tempos ou em quaisquer meios, porque o aventureiro cria ele prprio o condicionalismo das suasaventuras.

    Tpicas memrias deste gnero so as do soldadoespanhol da guerra dos trinta anos, Alonso de Contreras, de cuja vida escreveu Ortega y Gasset noprefcio da ltima edio da Vida del Capitan Alonso Contreras: La existncia de Alonso de Contreras nos presenta un ejemplo superlativo y quimicamente puro del hombre aventurero. E de facto, quem tenha lido a Vida delCapitan Alonso Contreras e volva olhos para Portugal,reconhecer que aventureiro em tal grau, embora que menos quimicamente puro, s encontrar talvez Ferno Mendes Pinto cuja confisso, porm, ficou com a suaveracidade humana comprometida por convenincias econvencionalismos de outra ordem. De resto, a Peregrinao constitui um dos livros singulares da literatura portuguesa, o qual, se participa no gneromemorialstico, tambm livro de viagens, romance deaventuras e at livro de proveito e exemplo.

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  • OMEMORIALISMO PORTUGUS

    DE RELANCE

    A literatura portuguesa pobre no gnero memorial,quer seja sob a forma memorialista, quer sob a de dirios e muito mais na de jornal ntimo. Na literatura portuguesa, o intimismo expressa-se primacialmente nasua poesia lrica.

    Os historiadores da literatura e da cultura portuguesas tm desprezado ou esquecido o gneromemorial, e, ao que se me afigura, com alguma injustia.Numa das suas Causeries, Sainte-Beuve escreveu um dia apropsito das Memrias de Marmontel: Nada me di mais do que observar o desdm com quefrequentemente so tratados os escritores de segunda ordem dignos de notabilidade e de estima, como se shouvesse lugar para os de primeira plana. Ora este sentimento de Sainte-Beuve para com os escritores de segunda plana pode, com igual esprito de equidade, sersuscitado, entre ns, pelo menosprezo a que tm sido votados os gneros literrios muito arbitrariamenteconsiderados como marginais da literatura digna dehistria e de estudo, como sejam, por exemplo, onoticiarismo, o panfleto, a crnica, as memrias, o diriopessoal. E, no entanto, no primeiro, existe a obra

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  • noticiarista de Castilho que uma pura maravilha de estilo e arranjo narrativo; no panfleto a extraordinriaobra panfletria de Jos Agostinho de Macedo; na crnica, em nossos dias, Joo de Arajo Correia que scomo contista tem sido mais justamente considerado, e anteriores a ele, Joo Chagas e Carlos Malheiro Dias.

    O gnero memorial tambm tem sido dos enjeitados nos estudos da literatura e da cultura portuguesas. Como gnero relativamente recente, pois s pode considerar-se comeado a cultivar, e timida e imperfeitamente, no sculo XVIII.

    Esta fixao cronolgica poder ser considerada, ejustificadamente, como puramente arbitrria o queacontece, alis, com todas as que pretendam marcar um comeo e determinar um termo a qualquer actividade do esprito humano, porque tudo o que novo resulta de tudo o que foi envelhecendo e sempre o mais perfeito se obteve por sucessivas imperfeies, cada vez menos imperfeitas.

    Ora, se quisermos rebuscar antecedentes naproduo memorialstica portuguesa podemos ir longe,desde que consideremos o que crnica ou relao historial como sendo memria ou dirio. O que, porm,caracteriza o gnero memorialstico a centralizao da narrativa na pessoa e na vida do memorialista como umdocumento pessoal onde subjectiva a viso dos acontecimentos que narra.

    A produo memorialstica em Portugal no sculo XVIII foi muito exgua, predominando, na maioria das memrias que se escreveram e so conhecidas, a relaodos acontecimentos pblicos, fastos da crte, danobreza e da Igreja.

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  • Do que hoje se conhece pode dizer-se que essasmemrias setecentistas pertencem apenas quela espcie de apontoados de anedotas, no gnero das memrias de Besenval. Tal gnero estava adequado ao sculo a que osGoncourt chamaram o sculo da anedota. Desta feio de memorialistas foram Jos da Cunha Brochado, cujas memrias esto quase integralmente inditas, Fr. Joode S. Jos Queirs, bispo do Gro-Par, e o Cavaleiro de Oliveira em certos lances da sua obra e nas principais pginas dos Amusements Priodiques que Aquilino Ribeirotraduziu e publicou com o ttulo de Recreao Peridica.

    Nas pginas que qualquer deles deixou no h, nem de longe, o sal e sainete que os franceses lhe sabiam dar,mas nem por isso deixam de ser curiosas e nalgunslances vivas embora o esprito seja pesado.

    De natureza ntima so as Memrias da Condessa de Atouguia, escritas por ordem do seu confessor. Assim, s uma comparsa na trgica conspirao contra o rei D.Jos deixou, no memorialismo portugus do sculoXVIII, um documento vivo e pessoal da sua vida e da suasorte. Todos os outros, com excepo de RibeiroSanches, ou sejam, o bispo do Gro-Par, o Cavaleiro de Oliveira e Cunha Brochado, no fugiram influnciafrvola do sculo e quela outra, um pouco bronca, dasociedade portuguesa de ento.

    Nem no sculo XVIII nem no que imediatamente se lhe seguiu houve grande escritor portugus que sesentisse seduzido pelo gnero, deixando alguns delesapenas um escasso nmero de pginas de tinturamemorialstica. Mas se o valor esttico e a categorialiterria do memorialismo portugus no atingem cumes nem, ao menos, aproximaes, certo, porm, que, quer nas memrias, quer nos dirios, alcanou

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  • (particularmente no sculo XIX) qualidade digna de estima.

    De resto, esta exiguidade do gnero memorial na literatura portuguesa afigura-se-me ter trs causas que possivelmente se entredependem: por um lado, da partedos nossos grandes escritores do passado, a falta defortes aptides introspectivas e uma certa displicnciapelo gnero (seja exemplo Garrett, encarregando Gomes de Amorim de lhe escrever as memrias); e, por outra face, a indiferena do pblico ledor por este gnero de escritos, desde que no sejam sobre acontecimentos recentes ou no tenham feio escandalosa.

    Se, por exemplo, compararmos o aparecimento das memrias daqueles portugueses que participaram na luta contra os invasores franceses e nas campanhas daliberdade com a abundncia memorialstica que se verificou em Frana depois da Revoluo e do Imprio e tem continuado a ser publicada at nossos dias, exumada dos arquivos familiares, verifica-se que em Frana este movimento editorial corresponde a um vasto pblico interessado, enquanto que em Portugal osleitores para este gnero de obras restritssimo. AsMemrias de Jos Liberato Freire de Carvalho, publicadas em 1855, ainda no foram reeditadas e nem sequerconstituem raridade, apesar da tiragem ter sido pequena; as Memrias de Silva Maia, aparecidas no Rio de Janeiroem 1841, nunca tiveram reedio em Portugal; asRevelaes de Luz Soriano, que mereciam uma reedioexpurgada das disparatadas e extensas notcias completamente alheias poca e vida de Soriano, maisque esquecidas, permanecem ignoradas; o Dirio de Silva Carvalho continua sepultado nos descomunais volumes

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  • da obra de Antnio Viana; as Memrias do Marqus de Fronteira e de Alorna, publicadas entre 1928 e 1932, aindano tm a edio esgotada, o mesmo acontecendo sMemrias do Conde de Lavradio, editadas de 1932 a 1938,bem como s de Trigoso de Arago Mourato, aparecidas em 1933.

    Do nosso sculo XVIII, que to poucos memorialistas possui, esto por publicar o Journal de Ribeiro Sanches e as Memrias de Jos da Cunha Brochado. Do Journal de Ribeiro Sanches escreveuMaximiano Lemos, que o leu: Em dia de S. Martinhode 1768 comeou Sanches, a escrever o seu Journal,manuscrito de inaprecivel valor autobiogrfico queexiste na Biblioteca da Escola de Medicina de Paris. O mdico portugus lanava nele tudo quanto lhe interessava. Ao lado das cartas que escrevia e recebia, tomava nota dos acontecimentos que se iam desenrolando, das leituras a que se entregava, do que tencionava fazer, das preocupaes que sentia. Asmenores particularidades mereciam meno. No s por ele se pode reconstituir a sua vida desde esse ano de 1768 at morte, mas a de alguns indivduos que estiveram em contacto com ele. 1 De Cunha Brochado como memorialista disse Mendes dos Remdios: V-lo-emos, a este esprito ponderado e reflexivo, retratando-se e retratando o que lhe caiu debaixo da sua formosalupa de observador. A sua linguagem aligeira a narrativa,sempre despretensiosa e calma. Quando ri, ri discretamente. Tambm no usa sobrecenho carregado, quando moraliza e espaneja luz do sol o seu doentio pessimismo. 2

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  • E apesar destas notcias com mais de meio sculo, continuam inditas as memrias de Brochado e o Journalde Sanches.

    Em Portugal, no sculo XIX, cresceu o nmero de memorialistas. Pode at dizer-se que, em relao aoXVIII, a centria de oitocentos foi uma poca de hipermnsia. O portugus que sofreu e lutou com as invases francesas, que batalhou na Rssia incorporado na Grande Arme, que participou nas lutas liberais, passou a ter que contar, mergulhado que foi, por fora das circunstncias, na vida e no ambiente europeus doseu tempo. E, curioso, no s as figuras que comdestaque participaram nas lutas polticas do tempo se ocuparam a contar a sua vida no turbilho dos acontecimentos, mas at alguns pobres homens aconsiderar pelo que escreveram se consideraramobrigados a contar a sua vida e trabalhos que passaram. caso, por exemplo, de um certo Martiniano da Silva Vieira que em 1848 escreveu e publicou A minha vida e dos meus amigos ou os ltimos quarenta anos, onde, alis, se encontram algumas notas curiosas sobre Bocage e Jos Agostinho de Macedo.

    Deste perodo se destacam as memrias de Jos Liberato, de Silva Maia, do marqus de Fronteira e deAlorna, do Conde de Lavradio, de Luz Soriano, os dirios de D. Pedro V e de Ribeiro Saraiva. Cada uma destas obras constitue um tombo noticioso. Algumas delas encerram uma galeria de retratos e de tipos originais que eram frequentes numa sociedade e numtempo em que a vida social ainda permitiasingularidades.

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  • Os romnticos, aqueles que tiveram praa assente naliteratura do tempo, no cultivaram o gnero e nem Garrett nem Camilo, aqueles de quem mais havia a esperar memrias, dado o seu egotismo, apenas teceramcom episdios das suas vidas as fices das suas obrascom isto se dando por quites. Tendo utilizado na fico as suas realidades pouco lhes restou para memrias. S Bulho Pato as deixou, e essas mais memoranda do que memrias.

    As memrias oitocentistas a que nos vimosreferindo, excepto as de Bulho Pato, tm a sua tnicana poltica e em quase todas elas ressumbra ainda a parcialidade poltica. Nem por isso, porm, deixam deser valiosos documentos da poca, revelando um estilode vida que de todo desapareceu e fornecendo a notciade factos e circunstncias que ficariam ignorados da histria se elas, muitas vezes acidentalmente, os no revelassem.

    No perodo que abrange as duas primeiras dcadasdo sculo XX, a vida portuguesa foi caracterizada por iniludveis sintomas de deteriorizao do regime monrquico, pela luta poltica e pela acorevolucionria do partido republicano, tendo por ilhargas as sociedades secretas e uma pequena falangeanarquista. Seguiram-se-lhe as dificuldades dainstaurao do regime, a primeira Grande Guerra e a dissoluo da Primeira Repblica.

    queda do regime monrquico e instaurao daRepblica seguiu-se um perodo de literatura memorialstica, cujas produes ainda nos nossos dias vo sendo publicadas. Apressaram-se a vir ao pretrio, ajustificarem-se, os antigos polticos da monarquia:

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  • Teixeira de Sousa, Jlio de Vilhena, Antnio Cabral. Sem aspectos muito restritos as obras destes polticospodem ser consideradas como memorialsticas. A sua inteno polmica, quase s poltica e s aqui ou almdando um retrato, contando um episdio, desvendando uma perspectiva da vida social.

    Entretanto dava-se um acontecimento na vida literria do pas: apareceram, espaadamente em trs volumes, as Memrias de Ral Brando, obra de elevado valor literrio que ficou para sempre pertencendo ao patrimnio da literatura portuguesa.

    Com as memrias de Ral Brando, com as de Aquilino, com as de Sarmento Pimentel e com as deJos Relvas, a literatura memorialstica portuguesa ficouenriquecida com obras de mrito literrio que at a no possura. So ainda de considerar pelo seu mrito memorialstico as Memrias do Sexto Marqus de Lavradio e as de Toms de Mello Breyner, que o autor deixou incompletas.

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  • OBRAS E AUTORES

    Num trabalho da natureza deste, que no pode ultrapassar os limites marcados a um guia de leitores e exige concentrao no essencial, no cabe no desenho aperspectiva histrica do memorialismo em Portugal, indo recolher aqui e ali obras onde os autoresdeponham como testemunhas que foram de acontecimentos histricos, como por exemplo algumas partes da Miscelnea de Miguel Leito de Andrada ou,mais remotamente, a Crnica do Infante Santo de Frei JooAlvares, ou registem e compilem notcias e eventos deque foram contemporneos como sucede com ointeressantssimo Memorial de Pero Roz Soares. So, porm, obras estas a que, como j disse, faltam ascondies caractersticas do gnero memorialista pois esto totalmente privadas da presena do narrador e daviso subjectiva dos factos.

    SCULO XVIII

    Por isso se pode bem dizer que s no sculo XVIII a literatura portuguesa regista os seus primeiros memorialistas. Nenhum deles, contudo, deixou obra

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  • memorial que ento relevasse o gnero, tendo legado apenas narrativas pitorescas, com mais valor histrico do que humano, sem subtilezas de observao nem belezas de forma.

    Pode bem dizer-se que em quase todos ressalta umarudeza inata que se lhes vinculou na obra, rudeza prpria do meio em que viveram. Porque o sculo XVIIIem Portugal no teve requintes nem na vida da corte, nem na vida social das diversas classes. Houve, poriniciativa dos monarcas, prodigalidades luxuosas, mas mesmo neste particular, o que existiu de mais apurado,de fino e delicado gosto, foi o que veio feito e acabadoda Frana e da Itlia. Mas logo a se revela quanto todasessas peas de requintada categoria artstica discrepavam do estilo de vida do meio onde vinham ser ostentadas. 3No se pode definir o que de ingnito havia nestafidalguia portuguesa de ento que lhe no permitiaassimilar o requinte da Europa francesa. Seja caso ilustrativo, por mais frisante, o caso do duque de Lafes.Compare-se este magnate portugus, que passou grande parte da sua vida nas cortes europeias, com o que foi o prncipe de Ligne. No havia, portanto, a esperar do nosso memorialismo setecentista que, mesmo de longe, se assemelhasse obra de um duque de Saint-Simon.

    Acresce, a contribuir para a exiguidade do inventriomemorialstico portugus do sculo XVIII, que os melhores destes memorialistas deixaram as suas obras no gnero, em parte ou no todo, escritas em francs,ficando vinculadas ao memorialismo portugus apenas pela matria que no pela lngua. Refiro-me a AntnioRibeiro Sanches e a Francisco Xavier de Oliveira, o clebre Cavaleiro de Oliveira.

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  • Antnio Ribeiro Sancbes (1699-1783), grande homem da cincia do seu tempo e destacada figura na cultura europeia do sculo XVIII, colaborador da Enciclopdia,com o avano da sua idade volveu em misantropo e, como vulgar em quem se afasta do convvio social,passou a comunicar ao papel o que no dizia ao prximo, o que bem revela quanto os anos e aexperincia o haviam feito progredir em sabedoria e noconhecimento dos homens. Assim, a partir dos fins do ano de 1768 at ao fim da sua existncia registava em Mon Journal as ocorrncias de cada um dos seus dias. Esse dirio est hoje recolhido na Biblioteca da Escolade Medicina de Paris onde pode ser consultado, lido oucopiado (Manuscrito 25/2015).

    Maximiano Lemos, como j referi, consultou-o e deunotcia do valor desse documento, que continuaesperando publicao.

    Quanto a Francisco Xavier de Oliveira, Cavaleiro de Oliveira, (1702-1783) a parte memorial da sua obra ficoufragmentada e dispersa por vrios dos seus escritos. Nos livros, opsculos e publicaes peridicas que deu estampa, quando menos o leitor o espera, surge-lhe uma recordao da mocidade de Xavier de Oliveira, um quadro de costumes, uma confisso saudosa. As notasautobiogrficas abundam, seja nas cartas, seja nos opsculos, particularmente no intitulado Le Chevalier dOliveyra brul en effigie etc. Lidas as suas obras de controvrsia religiosa, o que resta ldimo dos talentos literrios de Xavier de Oliveira so essas pginas de recordao e autobiografia. Sob o aspecto do memorialismo oliveireano h que recorrerprincipalmente ao Amusement Priodique, cujos principais trechos esto traduzidos por Aquilino Ribeiro com o

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  • ttulo de Recreao Peridica; s Cartas Familiares, das quais h uma edio que no rara (a de 1855, de CunhaRivara); s Cartas Inditas, publicadas pelo Doutor Gonalves Rodrigues, autor da mais completa e sriabiografia do Cavaleiro de Oliveira; bem como aoopsculo Le Chevalier dOliveyra brul en effigie, hoje facilmente acessvel por estar inserto no volumeOpsculos contra o Santo Ofcio, tambm publicado porGonalves Rodrigues; e, ainda, s reedies exemplares do Discours Pathtique e Reflexes de Flix Corvina dos Arcos,publicadas pela Imprensa da Universidade de Coimbraquando dirigida pelo Doutor Joaquim de Carvalho.

    Seria trabalho meritrio organizar e dar estampa uma antologia das pginas memorialsticas desteportugus, proporcionando ao leitor comum o conhecimento do nico escritor nascido em Portugal no sculo XVIII que manifestou qualidades que podiam ter feito dele um notvel memorialista porque alm domuito que viu e experimentou, o sabia contar com graa e vivacidade de esprito 4. Sirva aqui de exemplo este trecho autobiogrfico em uma das cartas que dirigiu a D. Florncio Henriques Maldonado:

    Sabendo j dizer rvore, Zodaco e Pandeiro, pelo A, pelo Z, e pelo P, e sabendo j que havia trs pessoas distintas e um s Deus verdadeiro como o melhor Telogo, entendeu-se que necessitava o meu juzo nova Escola em que fosse aperfeioar todas estas boas coisas que sabia como de cor Da idade de seis anos, pouco mais ou menos, deixei as liesdo Senhor Francisco Martins, morador na Caladinha de S. Cristovo, que um beco ou um escorregadoiro do diabo que d consigo nas costas

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  • de Santa Justa. Era o dito Senhor Martins organistado Hospital Real de Todos os Santos do Rocio,Mestre de meninos de toda a qualidade, entrando o nobre vestido e o maroto p descalo sem outra distino em sua casa que a de se pagar ele muito menos dos marotos que dos fidalgos Dentro deano e meio no s lia mas adivinhava as cifras de que tinham usado todos os Escrives, Notrios e Tabelies do Reino de Portugal e suas conquistas,excepto a de um capito que morava ao Correio, que essa era reservada somente a ele, e Deus somentesabe se ele depois de a fazer a entendia. Julgando-se que eu em matria de escrever tinha assentadobastantemente a mo sobre o Morante que foi oAutor de que tirei os primeiros traslados me foi o Senhor Francisco Martins admitindo ao mesmo tempo Aritmtica Achando-me Aritmtico sobre Escrivo comecei a ouvir falar de outra Cinciaintitulada gramtica, e palavras no eram ditas, se memeteu em casa uma Arte do Insigne e Incomparvel Padre Manuel lvares, Honra da Nao Portuguesa,ilustre scio da Companhia de Jesus e digno Mestrede todos os Povos da Europa. 5

    Embora a sintaxe como o vocabulrio que usou o impeam de ser considerado escritor vernculo,Francisco Xavier de Oliveira tem na literatura portuguesa lugar assegurado como epistolgrafo.Assinalando as qualidades mestras das suas cartas, o seubigrafo definiu-as como residindo sobretudo na juvenil agilidade intelectual, na graa difusa e fina, na arte perfeita de contar que trai a virtuosidade deconversador, no estilo nervoso e dctil. 6

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  • Estas qualidades so as que se encontram na parte memorialstica das suas obras e, particularmente, noAmusement, infelizmente escrito numa lngua onde o seuestilo nervoso e dctil j no brilhava.

    Jos da Cunha Brochado (1651-1733), se no possuiu as qualidades literrias que viriam a ser as do Cavaleiro de Oliveira, nem tivesse vivido entre tantos vai-vens dafortuna ou se tivesse aventurado em galanteios to arriscados como os de Oliveira com Maria Elizabeta,princesa de Valquia, ficou contudo um memorialistadigno de muito reparo. Magistrado, Cunha Brochado s iniciou a sua carreira diplomtica quando j contavaquarenta e quatro anos. Durante trinta exerceu cargos em Paris, Londres e Madrid, permanncias que, se nofizeram dele um estrangeirado, lhe deram a feioeuropeia do seu sculo no que ela podia ter de maiscomedido e por tal estilo avaliou das pessoas e dosacontecimentos. Mendes dos Remdios, que contribuiusingularmente para a divulgao do nome de Brochado como memorialista, escreveu acerca dele: comefeito uma das mais nobres e belas figuras do sculo XVIII. Erudito, a sua erudio aparece-nos perfumada por um claro e transparente critrio de liberdade filosfica; magistrado, a sua conscincia foi sempre norteada mais pela equidade das condies humanas doque pelo despotismo cruel e sanguinrio das leis e estatutos civis; poltico com representao em diversas cortes europeias, de diferente religio e mais diferente ecomplexo modo de pensar e proceder, a sua tctica,cautelosa e prescrutadora, patritica sem arrogncia e delicada sem baixezas, deu-lhe foros de mestre em matrias diplomticas. 7

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  • As suas cartas, que Mendes dos Remdios com manifesto exagero considerou superiores s doCavaleiro de Oliveira e s do abade Costa, esto mais divulgadas 8 que as memrias, que deixou manuscritas.Barbosa Machado d notcia de Memrias e Anedoctas da Corte de Frana, que contm vrios casos, e dvidas, que houve naquela Corte. Destas memrias, cartas e outros escritos existem vrias cpias, das quais podem ser consultadasas que existem na Biblioteca da Universidade de Coimbra e na Biblioteca Pblica de Braga.

    Estas memrias de Brochado, apesar do letreiro dosmanuscritos, no tratam apenas de assuntos respeitantes Corte e ao pas de Frana mas tambm deportugueses. Nelas Brochado anota e critica males e defeitos da sua terra cotejando-os com os que observava nos pases onde se encontrava. Alguns exemplos a ilustrar o que fica dito e a marcar a qualidade e o estilo do memorialista:

    Escreveu o Geral dos Trinos Franceses umacarta a el-Rei nosso Sr., agradecendo-lhe o cuidado com que Sua Magestade mandava que a Provncia dePortugal ficasse na sujeio de Frana, e no na deCastela. Esta carta me mostrou o mesmo Geral, para ver se estava nos termos do maior respeito; era ela escrita em francs, mas de um estilo culto, e enflcomo eles dizem, e como este estilo no ordinrioa esta nao, antes o aborrecem, e se fazem umponto de honra de o no seguirem, perguntei ao Religioso a razo daquela novidade, respondeu-me que se fizera expressamente, por seguir o gosto do pas; e que na Corte Portuguesa se amava o culto, e

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  • palavras menos ordinrias, a que satisfaz comopude.

    Trs liberdades acho em Frana, principalmenteem Paris, a saber: para o bom, para o indiferente, epara o mau: a primeira, e a segunda se acha em todaa parte, a ltima s em Paris, e no isto defeito das suas leis, porque no h governo em Repblica alguma mais mido, e melhor executado, mas a grandeza, a distncia, e a multido faz que o mau tenha menos testemunhas, e serve de capa para abrirmuitas cousas e aces, que se no advertem, ou castigam, porque se no conhecem. De sorte que nesta Corte a vastido faz o mesmo efeito que nasoutras terras causa a noite, que sempre a protectorade maior liberdade.

    Em Lisboa nem para o bom h permisso nem aquela liberdade de que a virtude necessita para obrarsem medo. E muito menos h esta licena para oindiferente, porque sempre a malcia do vizinho oudo concorrente interpreta em m parte o vossoprocedimento.

    Nem por ser um homem herege o havemos de privar das honras, e civilidades, que se do dosoutros homens da nossa religio, porque a virtudemoral e a justia mandam que se respeite omerecimento em qualquer pessoa, em que se achar. A religio no quer destruir estas leis da natureza.

    Frei Joo de S. Jos Queirs (1711-1764), foi frade bento e bispo do Gro-Par. At ser sagrado bispo viveu na

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  • roda da nobreza e gozou da proteo das rainhas D. Maria Ana de ustria e D. Mariana Vitria, convivnciasque, no dizer de Camilo Castelo Branco, deram aos inditos de Frei Joo de S. Jos realce e mritos de publicidade.

    Deixou manuscrita uma miscelnea de notas e reflexes de acentuado tipo memorialstico que Camilo, ao edit-las, denominou Memrias 9. No foi imprpria a alterao do ttulo porquanto, no sculo XVIII,frequentemente se usou de tal designao para ascolectneas de anedotas e casos singulares entretecidosde reflexes pessoais. Camilo encontrou o manuscritono Mosteiro de Tibes, para onde havia sido remetido, com os mais papis de Frei Joo, do Mosteiro deAlpendorada onde, desterrado, havia acabado os seusdias. Estas notas foram sendo escritas, hoje uma,amanh outra, a pouco e pouco consoante a disposio,desde os vinte e alguns anos do frade at ao fim da vida.O manuscrito, quando chegou s mos de Camilo, encontrava-se truncado, com folhas arrancadas; e, ao public-lo, o romancista ainda cancelou algumas pginas dele em considerao aos netos dos contemporneos do frade e com respeito honestidade de quem l.Seriam talvez as pginas de mais faceta indiscrio. O pudor tem de ficar responsvel por muita mutilao detextos que, completos, teriam temperado pela faccia asua sisudez casmurra. Camilo praticou nas suas obras mais esta vernaculidade: o pudor.

    Este Frei Joo foi homem de muita instruo,poliglota e versado nas letras divinas e humanas, talvezat mais nestas que naquelas. Escrevia nem melhor nempior que os melhores prosadores do seu tempo, sendo conceituoso com elegncia e discreto ironista. As

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  • Memrias, porm, no se podem dizer bem escritas,porque se ressentem da sua natureza de anotao breve,sem intuitos de serem dadas estampa. nas cartas e nas relaes de viagens pastorais de que Camilo tambm nos deu amostras que a sua prosa se apura, embora no possam ser tidas como modelos devernaculidade.

    Simultaneamente histrico e asctico, o relatoautobiogrfico que a ltima Condessa da Atouguia (1722-?) escreveu por ordem do seu confessor, constitui, ao queme parece, um documento memorialstico curiosssimo.Escrito, talvez, durante o ano de 1783, est redigido num estilo simples, natural, sem quaisquer pretenses.

    Foi publicado em 1916 10 pelo padre jesuta Valrio A. Cordeiro, a quem a Superiora do Colgio do S.Corao de Jesus de Coalville (Leicestershire) asofereceu num j velho manuscrito em papel com amarca Bath 1828 e que, portanto, no podia ter sidoescrito pela confessada. Este manuscrito, a que faltavamas primeiras folhas, foi completado, por diligncia de Valrio Cordeiro, com uma outra cpia do mesmo textoento na posse do Conde de Bertiandos, muitoprovavelmente feita sobre o manuscrito original que se encontrava em poder de Manuel Bento de Sousa.

    Esta ltima condessa da Atouguia foi, como vulgarmente sabido, filha dos marqueses de Tvora, supliciados em Belm, e esposa do conde da Atouguia tambm ali justiado.

    As suas memrias valem no s como depoimentohistrico sobre a tragdia que resultou do frustrado atentado contra o rei D. Jos, mas principalmente comotestemunho do que era a instruo de uma menina

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  • nobre do sculo XVIII em Portugal, bem como, e principalmente, da formao moral e religiosa ministrada pelos jesutas s suas filhas espirituais.

    Leia o leitor uma pgina dessas memrias onde acondessa da Atouguia conta algumas das suas atormentaes:

    Numa daquelas tristes noites me sucedeu umcaso muito estranho, e que at agora no sei o quefoi. Deitando-me em uma noite sobre o colcho, como costumava, senti sobre mim um peso que parecia me esmagava, e a este se seguiu um tormentoem meu corpo, que com unhas de ferro me eradespedaada toda a carne dele. E no sei se Nosso Senhor repartiria comigo nesta forma de dores os tratos que, me diziam, o Conde estava levando, assim como os mais companheiros, porque escrevendoisto, me lembro, que dando-me grande cuidado o temor que lhe faltasse a pacincia para os suportar,ou que neles desesperasse e lhe prejudicasse a sua salvao, pedia a Nosso Senhor que lhe diminusse antes a ele as dores e mas desse a mim para as sofrer por seu amor; s as tive aquela noite, mas foi coisa horrorosa, e no foi em sonho, porque me parece estava acordada, mas no vi quem me dava aquele tormento; nele chamei por Nosso Senhor, quem me valesse, e da por diante rodeava a minha cama com gua benta antes de me deitar. Depois do Conde ir para a priso algum tempo lhe foi de casa roupabranca que l aceitaram, e pediam velas; depois de sefazer o sequestro nunca mais quiseram l roupa branca, e s pediram as velas, que sempre as mandeienquanto me deixaram em minha casa por isso

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  • mesmo que eu fazia ideia do crcere ser muito escuro, porque se pediam para todo o dia.

    Quando me vinham os portadores uns atrs dos outros dizer: J se arremataram as bestas, agoralevaram a prata, j no h carruagens, eu tinha na memria toda a carta de instruo das calamidadesde Job, para com ele: Deus o deu, Deus o tirou:louvado seja to bom o Senhor. 11

    No existe um inventrio das memrias e dirios dosculo XVIII recolhidos em arquivos pblicos e particulares. muito possvel que ainda venham aaparecer documentos desta natureza com interesse. Tm vindo a ser publicados alguns manuscritos com o ttulo de memrias mas que no passam, na realidade, cada um deles, de simples memoranda de eventos cortesosou ocorrncias sensacionais que quebravam amonotonia da vida quotidiana de uma sociedadeestagnada. Por vezes, anotaes anodinas de ordem pessoal. Seja exemplo as Memrias do primeiro conde de Povolide (1655-1728) onde, conjuntamente comapontamentos, peas jurdicas e inventrios, seencontram recordaes pessoais sem qualquer valia.

    A corte portuguesa do sculo XVIII, como j disse, no podia dar de si um Saint-Simon e muito menos umduque de Lauzun ou um conde Alexandre de Tilly. A monotonia da corte dos reis de Portugal, cuja maior actividade consistia na caa, na visita a igrejas e aconventos, nos espectculos de pera, em serenins e emsesses acadmicas absurdas, a vida de uma tal corte,quase burguesa, no tinha que contar mais do quenoticiava a Gazeta de Lisboa. Personagens de polpa, como foi o 4. conde de Ericeira, D. Francisco Xavier

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  • de Menezes, escreviam dirios por desfastio que nopassavam de noticirios para uso prprio, sem artenarrativa, sem agudeza crtica, sem originalidade nocomentrio. 12

    SCULO XIX

    Se a memria me no trai, foi Aldous Huxley quem uma vez escreveu que o tema de toda a histria ou de quase toda a biografia conflito e frustrao.

    Esta antinomia caracteriza o sculo XIX portugus: aprimeira metade da centria, conflito; frustrao a segunda, para c de 1851. O sculo, que em Portugal s comea aassumir as suas caractersticas europeias a partir de 1807,com a desagregao das instituies tradicionais e com as guerras intestinas que haviam de terminar pelainstaurao do liberalismo, acaba, depois da experinciaregeneradora, no sentimento colectivo da frustrao dosideais e dos princpios que incentivaram as lutas e osconflitos das suas cinco dcadas iniciais.

    A lite da gerao que em Portugal se formou na luta contra o invasor francs e na revolta surda contra oconsulado de Beresford, surge para a aco animadapela aspirao a criar novas instituies que dem aos portugueses a qualidade de homens livres garantiasjurdicas, novas formas de associao para finseconmicos, sociais e polticos, liberdade de expresso, de doutrina e de crtica, tudo sob a forma de umaConstituio votada ou outorgada. Da liberdade assim obtida se esperava a regenerao completa de pas nos domnios do material e a elevao qualitativa dosportugueses na sua condio de homens livres.

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  • A decepo veio quando, terminadas as lutas, se verificou a insuficincia do que se obteve com a vitria e da o sentimento de frustrao, colectiva eindividualmente sentido. Essa frustrao, sentidadiversamente e mais ou menos intensamente cosoante a natureza e condio dos que a experimentaram, transparece nos memorialistas do sculo XIX.Pessoalmente, porm, ficou-lhes a recordao viva da aventura da idade esplndida.

    Com razo, Bulho Pato escreveu nas suas memriasao referir-se-lhes: aparte o talento, esses homens tinham para narrar coisas extraordinrias! Seja qual for o ponto de vista por onde o historiador encare arevoluo liberal, a verdade que nenhum espritodespreocupado e justo lhe pode negar a grandeza. Noeram retricas as palavras masmorra, exlio, patibulo,campo de batalha! Uns tinham gemido nos ergstulos, outros experimentado as penrias da emigrao. Este perdera um parente ou um amigo na forca, aquele tinhaassinalado no corpo, por uma cicatriz, um dia derefrega.

    Destes homens que tinham coisas extraordinrias para narrar, alguns deles escreveram as suas memrias, contando as lutas e os errores do exlio; contaram-nosquando j a desiluso e o desencanto lhes faziam sentir magoadamente a frustrao dos anelos e das esperanas. Do conjunto dos memorialistas desta poca destacam-se, como tais, o marqus de Fronteira e de Alorna D.Jos Trazimundo Mascarenhas Barreto (1802-1881) eJos Liberato Freire de Carvalho (1772-1855).

    Possua o marqus de Fronteira e de Alorna um notvel talento de narrador e, como escreveu Vitorino Nemsio,

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  • no retrato pessoal quase mestre. As suas memrias no foram redigidas banca: foram ditadas, resultandoda o tom conversador e espontneo que tanto convmao gnero memorialstico.

    Comeadas a ditar em 1861, ficou suspenso o ditadodas memrias em 1863, confinando-se nas ocorrnciasparticulares e pblicas sucedidas at morte de D. Maria II.

    O marqus de Fronteira era fidalgo de preclaraorigem e prospia ilustrssima. Grande do Reino, insufruindo par droit de naissance grandes rendas e benefcios, seria natural que os seus interesses e os desua casa o levassem para a faco poltica que lhosdefendia. Mas no, foi sempre liberal. Reflexionando, escreveu ele nas Memrias, em como eu e meus irmos, nascendo aristocratas, rodeados de parentes queconservaram todos os prejuzos da classe, fomos sempreliberais, no posso deixar de atribuir isto ao cadafalso dapraa de Belm, ao forte da Junqueira e ao convento deChelas. 13

    No entanto, sempre considerou que um aristocrataque funda todas as suas pretenses s em pergaminhos e em ser descendente de indivduos que prestaram ptria relevantes servios se torna ridculo e digno de escrneo; assim como tambm no tenho em grandeconta o fidalgo que julga dever ocupar os primeiros cargos do pas, s pelos seus servios palacianos ou dasseus antepassados. 14 Vintista, ajudante s ordens do general Seplveda, emigrado, mindeleiro, na designaodada por Herculano a cada um dos sete mil equinhentos bravos, bateu-se em quase todas as batalhasdas campanhas liberais e no cerco do Porto. Desandou depois em cartista extreme, amigo dedicado e partidrio

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  • fiel de Costa Cabral, e deu por acabada a sua vida poltica com a Regenerao.

    Com grandes relaes e at com parentela nas vriascortes da Europa, viajou muito, deixando nas suas memrias retratos de alguns personagens de notariedade europeia e quadros das sociedades aristocrticas da Frana e da Itlia dos tempos em que as frequentou eessas pginas no so das menos aliciantes das suasmemrias.

    A matria que constitui os dois primeiros volumes daedio das Memrias, ou sejam, os que abrangem o perodo que decorre de 1802 a 1833, , quanto ao quejulgo, a parte mais interessante e de maior valor literrio.Grande parte do que narra do perodo da infncia e da adolescncia constitudo por reminiscncias que lheficaram vivas e por muito do que ouviu contar desde amais tenra idade. Dessas reminiscncias fez as suas narrativas mais sugestivas. Nelas se inserem osadmirveis quadrinhos plenos de realidade e pitorescoem que narra a infncia e o meio em que ela decorreu.

    Mas nos retratos de personagens com quem teve mais ntima convivncia que ele sobreleva a todos osmemorialistas portugueses da sua poca e at do sculo seguinte: Surpreendeu os homens pelo lado faceto equebradio, no sem opor a restrio moderadora, o mrito ao lado do demrito, a ressalva indulgente, numa palavra; e sempre que tinha de julgar de parentesou aderentes, julgava 15 excepto quando se tratava do Conde de Tomar.

    Prova-se o que fica dito com a srie de esbocetos emque ficaram retratados ao vivo sua av, a marquesa deAlorna 16, o conde de Funchal 17, Drago Cabreira 18,Napier 19, o conde de Paraty 20 .

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  • Jos Liberato Freire de Carvalho foi homem de outra condio e qualidade. Fidalgo de meia tijela, possuia uma ndole rebelde, mas o seu carcter era firme e sofredor e, como confessou, na maioria das vezes impassvel aos revezes da fortuna. Foiincontestavelmente um homem honesto, mas percebe-se que daquela espcie dos que o so no propsito deprivarem os outros de lhes poderem negar tal qualidade.Quando Silva Carvalho lhe chamou maroto praticouuma injustia, mas f-lo na puridade do seu Dirio ntimo.

    Com o bom, com o mau, trabalhado pela aventurada sua vida, deu de si um sujeito curioso, cuja existncia ficou digna de ser contada, do que ele se encarregou quando, ao fim da vida, se sentou banca para escreveras suas memrias: Hoje, 22 de Junho de 1854, em que fao oitenta anos, onze meses e dois dias, principio a escrever estas memrias da minha vida; e no por vaidade nem por dar celebridade ao meu nome; com especialidade para entreter os ltimos dias da minha existncia. Assim como o viajante, depois de muito viajar, folga, quando se acha em descanso, passar pela memria os perigos que correu, a variedade de genteque viu e tratou, e entre elas as boas e ms fortunas que teve, tambm eu, depois de mais de oitenta anos de peregrinao na terra, acho uma certa consolao em merecordar do que passei, dos destinos que tive e dar transies que teve a minha vida. 21

    Camilo, sempre que se referiu a Jos Liberato, menoscabou-lhe a obra e tratou mal o homem: Umfrade, sem a cincia do cu, infringe os votos porque sejulga chamado para as transcendentes questes sociais. E no entende a primeira melhor que as segundas. Finge

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  • de estadista e, como tal, de um acanhamento de ideiasdeplorvel! V as cousas e os homens trs polgadas diante do nariz. 22

    Tendo tomado o hbito de cnego regrante de Santo Agostinho aos quinze anos (aos doze j estava senhor do seu latim), completou os estudos filosficos e teolgicos que o habilitaram ao professorado, queexerceu alguns anos no Mosteiro de S. Vicente de Fora. O que conta da vida e da convivncia nos conventospor onde passou, no de Grij particularmente, e depoisna livraria de S. Vicente, constitui uma ilustrao a como, nesses tempos, um frade se transformava empedreiro-livre.

    Com as invases francesas comeou a sua odisseia de protestatrio, opo que deu com ele em Londres, onde se fez jornalista. Em 1816 o conde do Funchalobteve-lhe o breve de secularizao e, com andanas porLondres e Paris, voltou a Portugal depois da revoluode 1820 para de novo emigrar em 1826 e, por fim,regressar ao seu pas depois da vitria dos liberais. Setembrista, anichou-se na Imprensa Nacional. Depoisda restaurao da Carta abandonou a poltica e acabouos seus dias a contar a sua aventura. Essa aventura, Nemsio, resumiu-a com o poder sugestivo da sua grande arte literria: Com uma eterna traduo dosAnais de Tcito nos alforges, calcorreou o pas invadido pelos franceses, sofreu o desterro na ordem doscnegos regrantes, viveu o remanso canonical da casa deRefoios de Lima e a regularidade simulada dos grandes conventos citadinos. Escondido em Lisboa, esteve metido num armrio e disfarou-se de mulher paramudar de paradeiro. Foi intrigante e perseguido. Bebeu

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  • a gua dos crceres conventuais e comeu o po doexlio. 23

    Foi nas Memrias que Jos Liberato deixou o nico livro interessante que escreveu a vida de um homem levado da sua vida remansosa de frade de ordem rica pelo turbilho dos acontecimentos do seu tempo para oexlio e para a luta poltica, convivendo com grandes e pequenos, com eminncias e bichos caretas.

    As Memrias da Vida de Jos Liberato Freire de Carvalhoficaram como um repositrio de factos e uma galeria defiguras histricas. Constituem, no seu conjunto, umavaliosa fonte de informaes para a histria da pocaque abrangem. Literariamente, no valem muito. Noparece ter sido vasta nem profunda a cultura literria do antigo cnego regrante e da literatura do seu tempo, da grande revoluo operada nas letras e nas artes peloRomantismo. Jos Liberato, apesar de ter feito da leitura o maior prazer da sua vida, desconhecia tudo. Quandoas necessidades de pecnia o obrigaram a fazer tradues, os livros que escolheu revelam a qualidade das suas leituras. 24

    Joaquim Jos da Silva Maia (1776-1832), deixou umas Memrias histricas, polticas e filosficas da Revoluo do Portoem Maio de 1828 e dos emigrados portugueses pela Espanha, Inglaterra, Frana e Blgica, que foram publicadas por seu filho, no Rio de Janeiro, em 1841.

    Silva Maia comeara a escrev-las em Inglaterra no ano de 1829 e terminou-as no Rio de Janeiro em 1830.No constituem estas memrias nem um documento ntimo, como, alis, o seu ttulo indica, nem um quadro da vida social, apesar do autor pretender que elasfossem, alm do mais, tambm filosficas. So, como o

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  • autor pretendeu, uma narrativa histrica contada por umdos seus comparsas e que abrange os acontecimentos polticos em Portugal desde a outorga da Carta at 1830,com principal incidncia na retirada, disperso e exlio dos liberais depois da Belfastada. Persuadi-me, escreveu no prefcio, que enquanto no aparecia um historiadormais ilustrado, publicando eu estas Memrias avivasse as ideias de uns, esclareceria a de outros sobre factos detanto interesse, apresentando ao mesmo tempo em ums livro o que se acha disperso no monto confuso dasGazetas, produes efmeras, aonde um artigo instrutivo , apenas lido, que (sic) esquecido pelanovidade do dia, ou pela do dia seguinte; quanto mais que havendo eu publicado na cidade do Porto, por tempo de dois anos consecutivos o peridico Imparcialem defesa do Legtimo Soberano e da Carta por Eleoutorgada, estava de algum modo habilitado paracontinuar a escrever sobre o mesmo assunto, mormente acerca dos factos acontecidos aos emigrados, a quemacompanhei na sua peregrinao pela Espanha, Inglaterra e Blgica, participando nos seus sofrimentos. 25

    Estamos portanto perante um autor que, em parte,satisfaz condio indispensvel ao memorialista: terassistido aos acontecimentos que narra e conhecido os personagens a que se refere: A maior parte dos sucessos que escrevo foram por mim presenciados; osoutros os colhi de fontes imparciais; e uns e outros osencarei em seu verdadeiro ponto de vista, livre deprevenes, fazendo-me estranho a tudo para melhor falarde tudo. 26

    Assim, estas memrias pouco tm de ntimo esubjectivamente confidencial; so apenas, como

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  • pretendeu o autor, um documento histrico honesto etanto quanto possvel desapaixonado.

    As memrias que Luz Soriano (1802-1891) escreveu com o ttulo Revelaes da minha vida foram publicadas num volume que, pelo seu formato e nmero de pginas, repelem o leitor. de crer que poucos as hajam lido e que o livro apenas tenha sido manuseado por estudiosos em leituras parciais e de mera consulta.Acontece, porm, que as memrias tm interesse e merecem uma reedio expurgada de quase metade doseu texto, ali onde, muito pouco a propsito, se faz a histria de Coimbra (cento e sessenta e cinco pginas), de Montemor-o-Velho (seis pginas) e a descrio geogrfica dos Aores (vinte e oito pginas).

    As memrias de Soriano, bem como tudo o que lhe saiu da pena, so destitudas de mtodo narrativo, de brilho e elegncia de estilo. Valem, porm, pela notciados costumes e pela descrio de muitos dos episdios das campanhas da liberdade que o velho soldadomindeleiro viveu e sofreu como, por exemplo, a retirada aps a Belfastada (pp. 253 a 282), o depsito deemigrados em Plymouth (pp. 290 e segs), a travessia da Inglaterra para a ilha Terceira (pp. 308 e 310).

    O principal mrito das Revelaes de Soriano reside no valor histrico do depoimento, no testemunho daduradoura vivncia das paixes partidrias, nas pginas de desiluso e desencanto em que terminam. O memorialista, nestas Revelaes, denuncia-se na sua excessiva humanidade muito vaidoso e suficiente, cultivando o seu prprio crdito como, por exemplo, a pginas 431 e 432.

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  • O Conde do Lavradio (1796-1870) comeou a redigir as suas memrias em Dezembro de 1850 sobre os diriosque manteve actuais durante as misses diplomticas emque consumiu a maior parte da sua vida. Cedo, porm, abandonou a elaborao sob a forma memorialstica, de maneira que as Memrias que vieram a ser publicadas durante os anos de 1932 a 1943 so principalmenteconstitudas pelos dirios que D. Francisco de AlmeidaPortugal deixou no seu esplio. O 6. marqus do Lavradio, sobrinho-neto do memorialista, preencheucom relatos histricos, principalmente fundamentadosem papis e documentos do arquivo da casa Lavradio, os hiatos existentes entre os diversos dirios e f-lo de uma maneira equilibrada e no destoante.

    Foi o conde do Lavradio um dos mais distintos e esclarecidos diplomatas portugueses do sculo XIX.Pelos cargos e misses diplomticas que desempenhou em Frana e na Inglaterra, onde como ministroplenipotencirio residiu dezoito anos, e finalmente em Roma, onde veio a falecer, o conde do Lavradio tevemuito que contar, legando nos seus dirios abundantes informaes no s para a histria poltica de Portugalmas tambm, e de muito interesse, para a histriapoltica europeia de 1830 a 1865.

    D. Francisco de Almeida Portugal, vivendo muitos anos consecutivos no estrangeiro e portanto afastado das intrigas polticas do seu pas, alcanou uma visolucidssima dos problemas portugueses de ento e recheou os seus dirios de pginas ainda hoje muito dignas de serem lidas.

    Nem na parte redigida sob a forma memorialstica, nem nos dirios que serviriam de suporte redaco completa das memrias, o leitor encontra um retrato,

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  • um quadro descritivo do meio mundano ou poltico,uma paisagem, uma impresso de feio subjectiva; s factos, mas apontados com tal rigor que deles pode o leitor tirar sugestes coloridas e plsticas. Se estehomem tivesse sido dotado de talento literrio e dotalento narrativo que possuiu o marqus de Fronteira e de Alorna, se houvesse possudo o dom de anlise psicolgica, que galeria de retratos poderia ter deixado, de Wellington, do rei Lus Filipe, de Talleyrand, de Palmerston, de Disrali, da rainha Vitria, do prncipeAlberto! Que narrativas e descries da vida da corte inglesa, que durante tantos anos frequentou em condies de observao muito especiais e privilegiadas!

    Entre os diaristas sobreleva Antnio Ribeiro Saraiva(1800-1890). O Dirio de Saraiva chegou at ns incompleto e com grandes lacunas. No obstante, , ao que julgo, um dos documentos mais interessantes evivos da literatura memorial do nosso sculo XIX.

    No ciclo das lutas civis, Ribeiro Saraiva pertenceu faco vencida e ele prprio foi uma das encarnaesmais ldimas do Portugal velho, no que nele havia de melhor e do que o tornava invivel nos tempos que ento eram novos.

    Saraiva, que foi diplomata, jornalista, poltico,conspirador por necessidade e por vcio, foi tambm, e principalmente, um homem de alta categoria moral e suma dignidade cvica. Passou a vida a conspirar, empregando muito mal as suas qualidades e o seu tempo, servindo as intrigas polticas da rainha CarlotaJoaquina, das infantas beatas e levadas de trinta diabos, do pretendente D. Carlos de Espanha e, principalmente, a causa de D. Miguel. O vcio conspiratrio radicou-se-

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  • lhe por tal forma que quando no conspirava contra osadversrios, conjurava contra os correligionrios, sempre que julgava que eles no serviam a causa segundo o seu critrio. Foi homem talhado pelo velhopadro mirandino de antes quebrar que torcer, de um s rosto e uma s f. Um tanto ou quanto manaco, com seu sainete de excntrico. Palmerston considerava-o lhomme le plus ennuyeux du monde, un vrai moulin paroles;e o conde do Lavradio levava-o de intrigante e de doido.D. Miguel, no exlio, s o aceitou como ltimo recurso.

    Sacrificou tudo o que era seu e a carreira causalegitimista. Dispondo algumas vezes de quantias avultadas fornecidas pelos carlistas espanhis, nem um centavo utilizou em seu proveito, apesar de estar semrecursos e quase s alimentado com as castanhas querecebia de Sernancelhe, sua terra natal. Pelas pginas doDirio segue-se dia a dia o seu idlio com uma menina inglesa muito formosa e muito mais atilada e to prudente e de tanto juzo que o idlio acabou logo que oviu sem eira nem beira. Viveu em Londres uma longavida tendo como principais recursos um muito modestonegcio de vinhos portugueses (e por isso Camilo lhe chamou taberneiro), colaborao em jornais catlicos etraduo de documentos para as chancelarias.

    Escreveu muito e obrigou-se a todos os dias fazer um pequeno poema para um acervo que intitulou Musa Quotidiana, que felizmente nunca publicou. Manteveregularmente correspondncia com dezenas de vultos eminentes das causas chamadas legitimistas, portugueses, franceses e espanhis. Ao fim de muitos anos de voluntrio exlio, acabou alheado das realidadesportuguesas, mas obstinadamente miguelista.

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  • A coleco de manuscritos que constituiam talvez a parte mais importante do esplio literrio de AntnioRibeiro Saraiva foram parar s mos de um tal H. J. West, sbdito ingls, que a vendeu por cento e setentalibras ao governo portugus a fim de ser integrada nos arquivos nacionais. Esse esplio compunha-se decorrespondncia oficial e particular, de autgrafos vriose de um dirio. O dirio, que em parte estava escrito emcifra e recheado de sinais de conveno, depois dedecifrado foi publicado pela Biblioteca Nacional. ODirio, l-se no prefcio, que cuido ser de Nogueira de Brito, o decifrador do manuscrito que abrange o longo perodo compreendido entre o 1. de Janeiro de 1831 e o 1. de Janeiro de 1888, com extensas lacunas, particularmente interessante. Alm de retratar comabsoluta fidelidade uma figura que, sem haver atingido, quer na literatura, quer na poltica, um excepcional relevo, no , todavia, das individualidades menosrepresentativas do agitado perodo que imediatamente precedeu o estabelecimento do regime constitucional,deve ser considerado uma das fontes mais valiosas para a reconstituio da histria poltica do nosso pas, napoca, ainda imperfeitamente estudada, dadecomposio do absolutismo. A par de mil factos, porvezes banais, da sua vida particular, as visitas quefazia, os bailes e espectculos a que assistia, os passeios que dava, as lies de flauta que recebia de um velhomsico italiano, a par do registo minucioso das fases e incidentes do seu amor por uma menina inglesa, cujacasa assiduamente frequentava, Miss Catarina Sherson o Dirio de Ribeiro Saraiva d-nos conta de toda a vida oficial do inteligente e lealssimo diplomata, fornecendo-nos dados absolutamente inditos que

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  • completam, umas vezes, e outras corrigem, muitas e muitas passagens da nossa histria moderna. 27

    O rei D. Pedro V (1837-1861) cuja precocidade intelectual e moral foi to invulgar que toma quase a feio de fenomenal, desde os quinze anos que escreviaos seus dirios de viagens. Devem, porm, estes escritos,redigidos em 1852, 1854 e 1855, ser antes considerados como livros de viagens do que propriamente como obras memorialsticas.

    D. Pedro, no entanto, logo que comeou a reinar na conscincia plena das suas responsabilidades e dos seus deveres sentiu a necessidade de confidenciar aopapel as suas ideias, a anlise do carcter e condio dos homens que o rodeavam, dos imperativos que o obsessionavam e das contradies do regime. E porqu ao papel? Por no encontrar sua volta a quem as confiar e com quem estabelecer dilogo. Em 16 de Dezembro de 1856 escreveu no dirio ntimo que ele mesmo designava por Livro Negro: Se escrevo com esta dureza de linguagem, preferindo a verdade maneira dea dizer, porque padeo, porque, sem pessoa alguma a quem possa falar com franqueza, porque uns no me compreendem e julgam ver em mim um pessimista atrabilirio, e outros abusam da minha confiana,preciso s vezes de lanar mo da pena para lhe ditar o que a alma sente. No lisonjeio ningum; sou mais secoque afectuoso, porque no gosto que me lisonjeiem,nem nunca encontrei em ningum, a no ser rarssimasexcepes, sentimentos que no tivessem em vista menos a pessoa do rei do que a dignidade do rei. (Vol. VI, fol. 1420).

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  • Alm deste dirio, por muito tempo julgado perdidomas afinal encontrado entre papis remetidos para opao ducal de Vila Viosa, D. Pedro V deixou notassoltas, hoje reunidas nos 3. e 4. volumes dos seus Escritos publicados pela Academia das Cincias deLisboa em 1926 e 1930. Algumas destas notas de feio memorialstica so verdadeiramente notveis, tais comoaquelas onde D. Pedro faz a anlise paralela do carctere aptides dos dois grandes marechais do Liberalismo o duque de Saldanha e o duque da Terceira 28 da obra de Mousinho da Silveira e da aco revolucionria de D. Pedro IV. 29

    Em todos estes escritos, mas particularmente noLivro Negro, se pode estudar a evoluo do seu nimo deum entusiasmo optimista para a tristeza e o pessimismoem que a morte o veio encontrar.

    Damio Peres escreveu justissimamente: Ao assumir o poder propusera-se D. Pedro V morigerar aadministrao e sanear os costumes polticos; tudo issosem desrespeitar os princpios do regime constitucional. Imaginava ento que o exemplo do seu constante labor,a firmeza da sua vontade, a limpidez das suas intenes, acabariam por fazer triunfar as directrizes da sua aco.Enganou-se, porm, e a breve trecho entrou a reconhec-lo. 30

    As pginas memorialsticas de D. Pedro V constituem um dos documentos mais srios da literaturamemorial portuguesa do sculo XIX. No ter sido D.Pedro V inteiramente justo na avaliao dos homenseminentes a quem sua me deveu o trono e o pas a sua modernizao; mas tal injustia tem a sua principal causana inteireza moral do jovem rei, a quem a curta vida no permitiu adquirir aquela indulgncia compreensiva que

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  • s a longa experincia dos homens e das condies aque esto sujeitos pode dar.

    Em fim do sculo XIX comeou Bulho Pato (1829-1912) a redigir e a publicar as suas Memrias. O poeta, que viveu a sua mocidade no convvio e na intimidade dos grandes prceres do romantismo portugus, queparticipou, como voluntrio entusiasta, na Patuleia ecompartilhou da vida da mocidade dourada do seu tempo, recordava sempre essa fase da sua vida como seela tivesse sido uma idade de ouro. Para ele s a suagerao e a dos seus mestres foi inteligente, generosa,brilhante: Oh! Deus de misericrdia! que lstima mefazem uns entufados das letras e da poltica, que andam por a, e que, por mais que labutem, no logram nuncaesconder na tumescncia do grande homem o bacharelito. 31

    Quem quiser conhecer o que foi a sociedadeportuguesa de 1848 e da Regenerao ganhar muitona leitura das pginas memoriais de Bulho Pato, especialmente para se impregnar do ambiente social dessa poca. A vida de Herculano no eremitrio daAjuda e em Vale de Lobos, a sua agonia e morte,destacam-se nestas memrias como o testemunho mais comovente e expressivo da vida ntima do grande homem. A simpatia, a devoo, o respeito e a gratido inspiraram ao memorialista, nessas pginas, umaeloquncia grandiosa e bela.

    No captulo intitulado Quinta-feira da Asceno de 1846 esto desenhados pelo poeta, com firmeza, umasrie de tipos, episdios e anedotas dignos de leitura.

    Estas memrias escreveu o poeta-memorialista no so escritas, so conversadas; e da a fala de

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  • ordem, de mtodo, os incidentes e episdios constantes.Os factos que no se adulteram jamais. 32

    Aos retratos falta, talvez, aquele toque caricatural de que todo o retrato para ficar vivo necessita, mas nempor isso ficaram infiis nem artificiais nestas memrias.Bulho Pato no possua aquele mnimo de ironia que evita o alindamento do retrato daqueles a quem seadmira. Eis, como, exemplo, o retrato de Garrett,acepilhado com o que lhe faltou e com que outros olhosmais percucientes viram o poeta ilustre quando ele estava na mesma idade em que Bulho Pato o pinta: Ogrande poeta, nesse tempo, tinha cinquenta anos. Ao escrever estas linhas, to vivo se me est retratando na memria, que me parece v-lo! Em muito rapaz, umadesastrada queda arrancara-lhe a pele desde a nuca at parte superior do crneo, obrigando-o a usar cabelo postio; mas com tal arte o trazia, que parecia de um desalinho natural. A testa ampla e no sulcada de rugas. Os olhos rasgados, luminosos e insinuantes, eram garos. O olhar fundo e meditativo, alumiava-se a espaos de luz faiscante. No conheci mais expressivo olhar! As plpebras pisadas. A barba em volta doqueixo, ao uso do seu tempo, sem bigode, uma pequenamosca. A boca um pouco grande; o beio inferior grosso; mas a linha graciosa e finssima. Voz no a ouvi mais harmoniosa e atraente, voz mscula, de bartono,modelada pelo gosto e pela arte. Como lia, comorecitava e como falava! A estatura mediana; peito e ombros largos; mos fortes e cabeludas.

    Um retrato favorecido onde, para mais, abundam ospontos de exclamao. Vejamos agora o trao caricatural que lhe daria vida. Por essa mesma altura, D. Juan Valera o autor de Pepita Jimenez conheceu

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  • Garrett e assim o descreve a sua me, numa carta datadade Lisboa: Entre las personas notables que conociaquel dia, es la ms digna de memoria el poeta Garret(sic), fecundisimo autor, jefe y maestro de los literatosportugueses y restaurador del buen gusto. Este Seor va muy acicalado siempre, y pareceria un Adonis si notuviera peluca, la cara llena de arrugas y los dientespostizos.

    Desalindando o retrato pintado por Bulho Pato com alguns toques da caricatura feita de improviso por Valera, no teremos a fisionomia viva do Garrett dasFolhas Cadas e dos seus amores com a ento baronesa da Luz?

    Tambm nos quadrinhos que recheiam parte dasMemrias h paisagens to pouco tratadas pelosnossos escritores romnticos. Na pena de Bulho Pato,essas paisagens so finssimas aguarelas. Eis um trecho de paisagem ribatejana: Num dia deslumbrante,partimos todos, a cavalo, lezria dentro, para a quinta do nosso hspede. Nos tapizes de relva os malmequeres e as margaridas; nos trigais tensos e lanciolados as ambulas purpurinas das papoulas, e toda a campinaencrespando-se suavemente, com o mar cho e esmeraldino, arripiado por uma leve aragem. O Tejo, que transbordara com a invernia, enchendo as valas, alongava os braos prateados pelas nsuas, sob os salgueiros recurvos e j frondados.

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  • SCULO XX

    No sculo XX a literatura memorial portuguesa tomou novo rumo e ganhou feies que no so aquelas por que se particularizou o gnero.

    Com a queda do regime monrquico e o advento da Repblica apareceu um grupo de memorialistas cujas obras no so, na sua essncia, mais do que libelos acusatrios uns dos outros consoante o bandopartidrio a que pertenceram. Certamente o esboroamento do regime monrquico em Portugal no teve qualquer espcie de grandeza nem de dignidade e essa mesquinhez criou na vida social e poltica do pasum ambiente onde se malograram o entusiasmo e a esperana em que nasceu o novo regime. Na sua maioriaa lite da Repblica manifestou no estar altura da misso que lhe incumbia; e, apesar de modificaes superficiais, no se criaram novas condies sociais eeconmicas ao povo portugus, caindo-se numa lamentvel luta de interesses partidrios e gloriolas pessoais.

    Aferidas por este padro de mediocridade, as obrasmemorialsticas que se escreveram ficaram proporo. A extensa obra de Jlio de Vilhena Antes da Repblica, as memrias de Antnio Cabral, as de Jacinto Cndido no so mais que varrer de testadas, acusaes mtuas e mtua imputao de responsabilidades. Valor memorialstico, quase nulo.

    Se nos volvermos para a obra memorialstica dos homens do novo regime o que h a que merea perdurao no tempo, se exceptuarmos as de Jos Relvas? O Dirio de Joo Chagas, escrito num intuito de

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  • vingana e publicado no propsito de auferir rendimentos pecuniosos do escndalo, deturpa factos, calunia amigos, deixando apenas revelar a m naturezamoral do seu autor que, cnscio da sua frustrao,pretende sobressair pelo abaixamento dos outros. Embora num posto de observao donde poderia tercolhido, se para tal tivesse dotes e posio que no soube criar na sociedade francesa, informaes e aspectos da vida social e poltica da Frana durante a guerra de 1914-1918, Joo Chagas deixou uma obramesquinha nos propsitos e na execuo, muito abaixo dos seus dotes que, como jornalista e panfletrio, foram notveis.

    As Memrias de Jos Relvas (1858-1929), cujo primeiro volume foi publicado recentemente,constituem no somente o mais valioso depoimentosobre a preparao da revoluo de 5 de Outubro de1910 como tambm sobre a prpria revoluo (o relatrio de Machado dos Santos tambm verdico mas o seu ngulo de viso estreito e a qualidadeliterria nula).

    As memrias de Jos Relva so muito bem escritas eressuma delas a honrada fidalguia desse homem dignssimo. Nelas se assinalam os diversos factores dadissoluo do regime monrquico e se revelam com autenticidade e superao crtica o condicionalismo que logo de incio se foi criando para a frustrao dos ideaisrepublicanos em que, num raro momento, comungaram o povo e as classes cultas.

    A participao de Portugal na grande guerra de 1914-1918 suscitou o aparecimento de uma srie de memrias

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  • de combatentes e prisioneiros. Apesar de as haver da pena de Jaime Corteso, de Augusto Casimiro, de Pinade Morais, de Andr Brun e de Alexandre Malheiro, oseu valor medocre.

    Fora de intuitos polticos e polmicos imediatos tm aparecido a esmo, ainda no tempo de uma gerao queno est extinta, memrias que alcanam o fim damonarquia e vo acompanhando outras a existncia daRepblica.

    Dois cortesos de cepa fidalga, homens de apurada ilustrao, deixaram memrias que os seus descendentes publicaram. Possuem qualidades e valores prprios dognero. Refiro-me s memrias do 6. marqus do Lavradio e de Toms de Mello Breyner.

    Na leitura das suas pginas se vislumbra que de 1875a 1908 houve em Portugal, para as classes aristocrticas, uma poca de douceur de vivre que, em todas associedades e em todos os tempos, prenunciam e precedem a sua extino. Quem viveu os ltimos vinte e seis anos do sculo passado e os primeiros deste escreveu o marqus do Lavradio no esqueceu certamente quanto era fcil, despreocupada e alegre avida de Lisboa. A alta sociedade desse tempo eracivilizada e escolhida, existindo ainda a chamada vida de sociedade, que a gerao de hoje ignora. 33

    do ponto de vista desta alta sociedade que tantoeste como Toms de Mello Breyner viam astransformaes que se iam operando na vida social portuguesa.

    As memrias do 6. marqus do Lavradio, possuem os requisitos especficos do gnero: narrativa da vida doautor, sempre inscrita nos acontecimentos polticos em

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  • que participou, principalmente depois do regicdio, como secretrio particular do rei D. Manuel II, a quemacompanhou no exlio. A dedicao do memorialista aosmonarcas que serviu e ao servio dos quais arruinou asua fortuna, merece a admirao do leitor, como todasas dedicaes desinteressadas a uma convico e a umacausa. Alm disto a personalidade moral do autor revela-se dignssima e quem tiver o propsito de escrever umahistria da vida social e poltica que estas memrias abrangem pode confiar nelas.

    Toms de Mello Breyner, tambm titular, foi um mdico distinto. Deixou as suas memrias incompletas, pois aparte pessoal delas no vai alm dos dezassete anos do autor. Esto, porm, recheadas de reminiscncias da infncia que o autor conta com grande pitoresco elhanesa, desenhando com sabor expressivo muitas figuras que conheceu desde a sua infncia, galeria quevai dos criados da sua casa, aos quais se mostra em extremo dedicado, at reis e rainhas que serviu e comquem conviveu.

    Publicadas muito recentemente, mas tambmreferentes ao perodo final da monarquia e agitao revolucionria em que participou, pertencem asmemrias de Aquilino Ribeiro, que o autor comeou a escrever no fim da vida, utilizando algumas pginas anteriormente publicadas. Intitulou-as Um escritor confessa-se. Aquilino j praticava o gnero memorialstico oude jeito memorial nos volumes publicados antes da Segunda Guerra Mundial: a guerra e Alemanha Ensanguentada. Quando Um escritor confessa-se apareceu, postumamente, o livro foi lido com decepo. Decerto

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  • possuem estas memrias a mesma riqueza literria quefoi apangio do autor, a mesma flagrncia, pitoresco evida nas figuras ali retratadas que possuem as ficcionadas pelo romancista. Somente, nas memriasaquilinianas o que se conta da sua vida e circunstnciasque a rodearam participam do seu jeito ficcionista. Pode bem considerar-se este volume de memrias onico que deixou escrito como uma adenda a ViaSimosa e a Lpides Partidas. Como confisso, pertence, ao nmero daquelas em que o penitente tenta iludir o confessor .

    Por volta de 1962 foram publicadas no BrasilMemrias do Capito, de Joo Sarmento Pimentel, que em Portugal s puderam ser lidas depois do 25 de Abril, emedio portuguesa. Assim, durante mais de dez anos estiveram os portugueses privados de poderem ler umdos mais belos livros de memrias que tm sido escritos em lngua portuguesa. Ao prefaci-lo, Jorge de Sena,comea a interrogar: Que diremos que estasMemrias so? Histria ou literatura? Fico ou documento? Sonho ou realidade? Reminiscncia ou fantasia?

    Sarmento Pimentel foi um grande militar e umhomem eminentemente culto que nestas memrias serevela como um dos grandes escritores da lngua portuguesa, e que, como to bem disse o mesmo Jorgede Sena, respondendo s perguntas iniciais do seuprefcio, teve o raro e, entre ns, singularssimo poder de transformar em arte a Histria de que participou em arte na linguagem e em arte na tessitura das suas narrativas e na representao das figuras evocadas.

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  • Publicadas inicialmente em trs volumes que foramsendo dados estampa com largos intervalos, so as Memrias de Ral Brando (1867-1930), muito originais na irregularidade da sua composio. Abrangendo operodo que imediatamente precede o regicdio at sproximidades da ditadura militar de 1926, as memriasde Ral Brando ficaram ricas em retratos de artistas, de escritores, de polticos, abrangendo ao mesmo tempoaspectos pitorescos e trgicos de toda a gama social do seu tempo e tudo isto visionado pelo prisma com que se props ver as pessoas e as coisas com ternurae piedade. Estas memrias so, simultaneamente, uma obra de confisso e de reportagem, de notcia e de crtica, de lirismo e de stira.

    No sculo XIX, Snancour e depois Amiel, um comObermann e o outro com o seu Journal Intime, podem bem ser considerados como os criadores da literaturaintimista em que o homem , ao mesmo tempo,espectculo e espectador de si prprio. Corresponde auma maneira de ser muito particular que fora ointimista a confessar a si mesmo, problematizando-os, os seus pensamentos e as suas ideias, mais que os seus actos.

    Literatura intimista em Portugal, parece-me que s apodemos encontrar condigna, bem entendido naConfisso de um homem religioso de Jos Rgio. Rgio escreveu-a, certamente, para ser publicadapostumamente, se acaso no a escreveu para si prprio o que ora pelo mesmo. No vria a sua problemtica, mas intensa e vasta sobre a angstiasentimental e intelectual que lhe dominou a vida: a

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  • privao da F e o sofrimento de no poder viver semela.

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  • CONSIDERAES FINAIS

    Unamuno, ao confessar uma vez a sua predileo pelos livros de memrias e de autobiografia,acrescentou: Nunca he sabido darme cuenta de la raznde esa escasez de libros de memorias en nuestraliteratura espaola. Acaso se deba a la monotonia y poco saliente de nuestra vida ordinaria, acaso a lo flacos de memoria que somos, ya individual ya colectivamente; acaso tambin al poco, al pouquisimo inters que aquidespierta el hombre.

    Tambm, como j notamos, a literatura portuguesa sofre da mesma carncia e muito mais porque no gnero autobiogrfico e de anlise interior no possui obra que,mesmo de longe, se possa confrontar com o libro de suVida escrito por Santa Teresa de Jesus.

    Motivos dessa pobreza no fcil atinar com eles e s com muitas reservas podemos ousar atribu-losqueles que nos paream poder explic-los. Uma confisso como a de Santa Teresa de Jesus devemosconsider-la fora de qualquer enquadramento comum ou encadeamento lgico, porque uma obra genial e o gnio um acidente na ordem humana.

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  • Removido este acidente, as duas literaturaspeninsulares aparecem igualmente pobres em memrias,dirios e autobiografias. Porqu?

    Talvez haja causa no acanhamento e monotonia que,salvo em raros momentos histricos, sempre caracterizaram a nossa vida social; possivelmente naincapacidade de verdadeira anlise introspectiva que comum maioria dos portugueses; porventura narepugnncia quase visceral a enfrentarmo-nos tais comosomos e tal como agimos.

    Por outro lado, poucos tm sido os portugueses quetenham dado amplitude s suas experincias ou anlisestranscendendo-as para o plano das concepes.

    Mas talvez estas provveis causas, se acaso tm um mnimo de validade e no esto completamente erradas,sejam at excessivas para a criao do gnero de literatura memorial.

    Ver e observar bem e contar com nitidez e animao o que se observa e o que se viveu constituiessencialmente a substncia do gnero memorialstico.Quanto expresso, na arquitectura e na forma, para que as memrias e os dirios no fiquem apenas comoum seco documento e se elevem categoria de gnero literrio, necessrio que o diarista ou o memorialistapossuam o talento de saber contar de uma formaconversada, dando carcter e vivacidade s figuras, cadauma com sua particular feio e transmitindo a narrativade qualquer acontecimento, episdio ou situao com anota verdadeira e justa que lhe corresponda.

    Se o memorialista fr um artista da palavra escrita, as memrias, ento, ho-de ficar mas por acrscimo tambm como monumentos literrios.

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  • Na panormica histrica do gnero memorial, que temos vindo a tentar traar, existem memrias e diriosque possuam as condies essencialmente caracterizantes do gnero? Certamente e evidenciam-se como tais as do marqus de Fronteira e de Alorna, as de Jos Liberato Freire de Carvalho o Dirio de AntnioRibeiro Saraiva. Nenhum deles, porm, foi artista dapalavra escrita, mas qualquer deles possuiu os dons suficientes para dar ao leitor uma leitura interessante eaprazvel.

    Os outros no faltaram narrativa verdica,contando sobriamente, mas sem secura, o quepresenciaram, recordando o que viveram e deixando,como os destaquei, depoimentos e testemunhosverdicos, de valor histrico incontestvel. E se estes ltimos no deixaram livros de leitura recreada, legaram documentos de valor to indiscutvel que no haver historiador das pocas em que eles se inscrevem quepossa prescindir da sua consulta.

    Ficaria, porm, incompleto este bosquejo mais incompleto, melhor diremos se no mencionssemos aquelas obras que, com o ttulo de Memrias ou Dirios,no so na realidade dirios nem memrias, ou o so apenas parcialmente. o caso, para colhermos logo ode um dos maiores, de Camilo Castelo Branco com as Memrias do Crcere. O romancista dera entrada na Cadeia da Relao do Porto em 1 de Outubro de 1860. Estavapronunciado por crime de adultrio. Saiu absolvido aofim de trezentos e oitenta e quatro dias e logo em 1862 publicou as Memrias do Crcere, ttulo provavelmente escolhido na mira de uma extrao rpida da obra. De facto, em 1864 a edio estava esgotada e aparecia uma segunda tiragem. O ttulo dera esperanas, que o texto

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  • desmentira escreveu Camilo no prefcio segunda edio. Nestas Memrias s o Discurso Preliminar autobiogrfico e particularmente atinente ao curto perodo que antecede a priso. Escritas em defesa deuma situao pessoal em que o autor no se podia sentircom boa conscincia, estas pginas autobiogrficas somais histrinicas do que verdadeiras. lcito incluir as Memrias do Crcere como obra memorialista no elenco de livros de memrias? Tambm o Bom Jesus do Montepode ser reclamado como um livro memorial; masaqueles episdios ali compendiados constituem realmente memrias? No so, como a maior parte da obra camiliana, um tecido de realidade e fantasia, deautobiografia e fico?

    Saltemos no tempo, e de um grande escritor dopassado transitemos para um grande escritor do presente Miguel Torga. O seu Dirio, publicado regularmente, a espaos comedidos, desde o primeiro at ao dcimo segundo volume recentemente aparecido, deve ser considerado justamente como um dirio, uma vez que escrito para o pblico e com o pensamentonele? No lhe faltaro para o ser, como documentoconfessional, o intimismo e a espontaneidade de taisescritos e, principalmente, a reserva em que so mantidos? A veracidade quase absoluta que a posteridade atribue a tais registos memoriais e o que acontece com o Journal Intime de Amiel um caso bemfrisante no ficar comprometida?

    H, certo, exemplos de tais indiscrees: ocorrem-me as Confisses de Rousseau e a Memoranda de Barley dAurevilly. Mas havemos de convir em reconhecer em ambos os histrionismos das suas atitudes sociais, o queno o caso de um Torga.

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  • No sendo, ao que julgamos, o Dirio de Miguel Torga um verdadeiro dirio, por no participar do intimismo de tais escritos, o que ento nas prosas epoesias que o compem? Julgo que uma obra extraordinria, dessas obras singulares que, rompendo com todos os cnones e retricas, afirmam e vitalizam aliteratura da lngua em que so escritas

    Na literatura portuguesa, neste gnero memorial, existem muitas pginas memorialsticas e autobiogrficas dispersas. O fragmentarismo a que os escritoresportugueses, por fs ou por nefas, so to propensos,tambm aqui se manifesta. E h excelentes e belas pginas memoriais: lembro os dispersos auto-biogrficosde Herculano, coordenados por Vitorino Nemsio sobo ttulo dado, alis, pelo prprio Herculano Scenasde um anno da minha vida; a carta autobiogrfica de Antero a Wilhelm Storck; a autobiografia de Ramalho Ortigo; as pginas de recordaes e memrias de Teixeira Gomes em Uma Fcil Vitria Diplomtica (ainda por reunir em volume e publicadas na Seara Nova), UrsoBranco, postumamente publicadas no jornal A Capital,captulos da Miscelnea, de Regressos, de LondresMaravilhosa; a autobiografia de Trindade Coelho; a autobiografia de Fialho, no volume Esquina; etc.

    Cremos ser esta resenha a primeira tentativa que se faz para o estudo da literatura memorial portuguesa. No a julgamos completa nem a consideramos suficiente. Como tentativa que , tenteia sem pretenderalcanar a categoria de ensaio. Se conseguir despertar aateno dos estudiosos e dos apaixonados pela leitura

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  • para este ramo da literatura portuguesa, est atingido o escopo que o trabalho visa.

    Fevereiro de 1978

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  • NOTAS

    1 M. de Lemos Ribeiro Sanches, p. 154. 2 Subsdios para o estudo da Histria da Literatura Portuguesa,

    XII, pp. 39-40. 3 Um exemplo ilustrativo: foi publicado por Luis Bivar

    Guerra o Inventrio e Sequestro da Casa de Aveiro em 1759. A se encontram descritas algumas das peas mais delicadas e demaior requinte da chamada Baixela Germain, hoje no Museude Arte Antiga. Refiro-me ao centro de mesa de ThomasGermain e s estatuetas de prata dourada representando homens e mulheres de diversos pases, de Cousinet. Estas admirveis obras de arte, que foram sequestradas ao duque deAveiro, encontravam-se no seu palcio de Belm. Percorra oleitor no mesmo inventrio e arrolao dos mveis e ver quanto diferiam da qualidade e gosto daquelas peas. Opalcio do duque de Aveiro em Azeito, onde foi preso, estaria um tanto ou quanto desguarnecido, embora o duqueali fizesse frequentes estadias. Para avaliar do estilo de vida deuma das casas nobres mais ricas de Portugal leia-se a

    escrio do quarto de dormir do duque:d

    4 Panos de rs, duas tiras e uma sobreposta dediversas mos, trs deles novos e um usado os quais representavam o sacrifcio da Lei Antiga, triunfo doSacramento, dois Anjos com instrumentos e duas tiras epresentando a Fortaleza e a Justia.r

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  • 1 Barra lisa com seu espaldar, com um enxergo de riscado e cheio de palha, dois colches velhos de brim de Hamburgo, de riscado, cheio de l e j com buracos e umaronha de brim cheia da penas.f

    l Tamborete raso forrado de carneira vermelha, velhae rota.

    (ob. cit. p. 343)

    4 Algumas passagens memorialsticas da obra do Cavaleiro de Oliveira, encontr-las- o leitor facilmente em Recreao Peridica, 1. vol., pp. 9, 16, 17, 21, 25, 33, 44 a 72, 79,80, 106, 107, 110 a 113, 122 a 126, 135 a 143, 158 a 160, 172 a 179, 193 a 195; 2. vol., pp. 9, 22 a 24, 51, 69 a 77, 141, 163, 168 a 171, 184 a 189, 196, 242 Cartas Inditas, pp. 155, 157, 210 a 214, 217 a 223, 228 a 229, 233, 236, 256 a 258 260 a 264, 268 a 270 Biblos. Ano 1935, p. 450 Opsculos contra o Santo Ofcio, pp. 55 a 61, 135 a 137. Reflexes de Flix Corvina dos Arcos, pp. 7 a 9, 92 a 93 Discours Pathtique, pp. 32, 34, 51.

    5 Cit. A Gonalves Rodrigues O Protestante Lusitano, pp. 4-5.

    6 Id. p. 93. 7 Ob. cit., pp. VI-VII. 8 Investigador Portugus em Inglaterra, vol. X a XVII Revista

    Literria, do Porto, vol. XII, O Instituto vol. LXIX e LXX. Cartas (Col. Clssicos S da Costa).

    9 Memrias de Fr. Joo de S. Joseph Queirs, Bispo do Joo Par,com uma extensa introduo e notas ilustrativas por CamiloCastelo Branco Porto, Typographia da Livraria Nacional, Rua do Laranjal, 2 a 22-1868.

    10 A ltima Condensa de Atouguia (MemriasAutobiogrphicas), Prefcio, Introduo e Notas do P. Valrio A. Cordeiro (2. ed.) 1917.

    11 Ob. cit., pp. 81-82. 12 Dirio de Francisco Xavier de Menezes, 4. Conde da Ericeira

    (1731-1733), apresentado e anotado por Eduardo Brazo,

    62

  • Coimbra, 1943. Assim, tambm, a Gazeta em forma de carta, de Joo Soares da Silva (ed. Bibl. Nac. 1933).

    13 Ob. cit., p. 90. Referia-se ao suplcio dos Tvoras, seus parentes, s prises do forte da Junqueira onde esteve seubisav e ao convento onde, por ordem do rei, estiveramencerradas suas bisav e sua av, a marquesa de Alorna.

    14 Ob. cit. 1. vol., pp. 83-84. 15 Sob o Signos de Agora, de Vitorino Nemsio, p. 49. 16 Ver 1. vol., pp. 14, 15, 55, 110, 132, 135, 140, 151 e

    335.17 Ver 2. vol., pp. 62, 65, 66, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83,

    84, 89, 90 a 102, 105, 176, 194, 196, 197, 199, 201, 205 a 209. 18 Ver 1. vol., pp. 210 a 215. 19 Ver 2. vol., p. 328, e 3. vol., p. 44. 20 Ver 2. vol., pp. 250 a 251. 21 Memrias, p. 5. 22 Dispersos de Camilo, vol. II, p. 495 Em A Queda de um

    Anjo e Livro da Consolao, ao referir-se-lhe, afina por este tom. 23 Exilados, pp. 24 a 26. 24 Em 1849 traduziu Amores de Paris, em 1851, Antnia ou

    menina da montanha e ainda Histria da Bastilha e Mscara de Ferro.

    25 Ob. cit., pp. XI-XII. 26 Ob. cit., p. XII. 27 Dirio de Ribeiro Saraiva, 1831-1888, Tomo I, p. VII. 28 Escritos de el-Rei D. Pedro V, vol. III pp, 353 e 355. 29 Id., vol. V, pp. 202 a 210. 30 D. Pedro V nas pginas do seu dirio ntimo, p. 85. 31 Memrias, 1. vol., p. 142. 32 Memrias, 1. vol., p. 183. 33 Memrias do Sexto Marqus do Lavradio, Edies tica, p.

    19.

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  • DOCUMENTRIO ANTOLGICO

    Para revelar queles que desconhecem os nossosmemorialistas os vrios aspectos das memrias e dirios a que nos referimos no texto seria necessria uma antologiavolumosa. No a podendo fazer nas escassas pginas de que dispomos, limitar-nos-emos escolha de alguns trechos queinevitavelmente no correspondem ao que conviria paraconfirmao das apreciaes que me aventurei a fazer.

    Das Memrias do marqus de Fronteira e de Alorna limitamo-nos a dois retratos 1, o do general Drago Cabreira, enquanto vintista, e o do almirante Napier, comandante da esquadraliberal e vencedor da batalha do Cabo de So Vicente.

    De Drago Cabreira:

    Mas nada de mais extraordinrio do que o velho generalCabreira, comeando pela sua extravagante toilette : um uniforme de artilharia, duma exagerao espantosa; as abas da farda tocavam-lhe nos calcanhares e o chapu era dumasdimenses enormes, com um grande penacho preto de rabo de cavalo, as dragonas disformes em tamanho e a espada dum comprimento espantoso, tendo uma roda no fim da banha, que abria um sulco na terra, que parecia de um arado. Como bom sebastianista que era e com a modesta pretenso de ser um segundo Condestvel D. Nuno lvares Pereira, trazia por

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  • cima da farda uma correia, como as que vemos nos retratos de el-Rei D. Sebastio. (1. vol., p. 210).

    O General Cabreira era extremamente cmico paraproduzir entusiasmo. Junto ao Cruzeiro de Arroios, levantando a sua enorme espada, gritou com voz de trovo:Viva a muito grande e herica cidade de Lisboa e honra memria deNuno lvares Pereira! Os seus gritos e a sua voz provocaram as risadas dos patriotas. (1. vol., p. 210).

    Seriam oito horas da noite saamos da casa de pasto eencontrmos o General Cabreira rodeado da mesma populaae de archotes, marchando para o lado do Rocio, em sentidocontrrio do seu quartel general, gritando Traio! e dando vivas aos indivduos que, poucos dias antes, tinha deposto, e, subindo varanda donde tinha proclamado o Governo ento existente, proclamou, de novo, o que tinha sido deposto, com igual entusiasmo da populaa. (1. vol., p. 215).

    De Napier:

    Ao amanhecer do dia 3, senti bater, com fora, porta do Quartel General, o que acontecia repetidas vezes. Abri a janela e deparei com o Duque do Faial, em traje de viagem,seguido de dois marujos, trazendo um dois sacos as costas e o outro a cara embrulhada num leno, parecendo que estava ferido. Mandei abrir a porta e corri a dar ao meu general a bela notcia.

    Subindo o Duque a escada e entrando na sala, vi que um dos marujos o seguia e que fumava, tranquilamente, um bom charuto de Havana