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Charruas e Guarani-missioneiros no Uruguai e no sul do Brasil: a etnicidade enquanto experiência1
Rojane Brum Nunes
Doutoranda PPGAS/UFRGS – RS, Brasil
Resumo:
As reflexões propostas nesse texto, vinculam-se a questões que serão desenvolvidas em uma tese
de doutorado acerca da presença charrua e guarani-missioneira no sul do Brasil e no norte do
Uruguai. A partir de uma etnografia junto a pessoas, que habitam espaços que outrora foram
territórios habitados por esses coletivos ameríndios e que hoje estão nas imediações das
fronteiras político-administrativas desses estados nacionais, busca-se apreender como a noção de
―indianidade‖ é enunciada, apropriada e reelaborada, enquanto categoria êmica de classificação
da alteridade própria e/ou do outro. Sob essa perspectiva, busca-se identificar e compreender
quais os estratos de sentido que engendram essa ―indianidade‖ nos territórios em questão,
configurando esferas de pertencimento ou negação a uma descendência e ancestralidade charrua
e/ou guarani-missioneira. Desse modo, pretende-se compreender como essa noção permeia as
sociocosmologias que norteiam os saberes, as práticas, as noções êmicas de pessoa, parentesco e
territorialidade, assim como a construção da memória coletiva.
Por outro lado, a partir do trabalho de campo que vem sendo realizado junto a interlocutores, que
ao longo do processo histórico, tornam-se indivíduos de um estado-nação, depreende-se que a
etnicidade deve ser abordada enquanto uma experiência individual e intersubjetiva, impondo
desafios aos estudos etnológicos clássicos, na medida em que estes tendem a ser realizados junto
a grupos e coletivos. Nesse sentido, aponta-se a importância de uma perspectiva teórico-
metodólogica, com vistas ao estudo de narrativas biográficas, trajetórias sociais e ao fenômeno
da memória coletiva, atendo-se, portanto, às tensões entre o indivíduo, o coletivo, a nação e aos
fluxos de discursos que interpelam os sujeitos a fim de (re)atualizar um projeto de estado-nação,
tanto no Brasil quanto no Uruguai.
Palavras-chave: etnicidade; indianidade; eperiência intersubjetiva;
Nos “rastros da história” e nos “trilhos da memória”: a historiografia, a etnografia e
antropologia
A abordagem interdisciplinar entre a História e a Antropologia em torno da temática
indígena, vem sendo contemplada por pesquisadores de ambas as áreas. De acordo com John
Monteiro (2001), essa aproximação estreitou-se, sobretudo, a partir dos laudos e perícias
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e
06 de agosto de 2014, Natal/RN.
2
antropológicas, pois a reconfiguração da noção dos direitos indígenas enquanto direitos
históricos e territoriais, ―estimulou importantes estudos que buscavam nos documentos coloniais
os fundamentos históricos e jurídicos das demandas atuais dos índios ou, pelo menos, dos seus
defensores (Monteiro: 2001:7)‖.
Em se tratando da História, na perspectiva desse autor – cuja trajetória intelectual
caracteriza-se pelo diálogo com a Antropologia – o ―deslocamento dos holofotes dos
colonizadores para os colonizados‖, implicou no desafio de realizar uma ―história indígena‖
(Monteiro, 2001:03). Por sua vez, Boccara (2013) assinala que há poucos estudos sobre a história
dos grupos indígenas que viviam nas fronteiras do império espanhol no Novo Mundo, de modo
que além de estarem localizados nas ―fronteiras da civilização‖, eles também estão relegados ―às
margens da história‖. Entretanto, ele destaca que nos últimos anos novas perspectivas e
aproximações teóricas, como a colaboração fecunda entre a Antropologia e a História, têm
despertado um novo interesse sobre o estudo dessas ―fronteiras guerreiras‖.
Na sua perspectiva, tal aproximação deve-se ao fato de que análise dos mecanismos
sociopolíticos dos grupos fronteiriços possibilita-nos compreender a sua enigmática resistência,
assim como a política expansionista espanhola e o funcionamento do estado colonial. Além
disso, “essas zonas fronteiriças sob o seio das quais circulavam indivíduos, ideias e objetos,
constituem um imenso ‗laboratório‘ para o estudo dos processos de mestiçagem e da criação de
novos sujeitos históricos‖ (Boccara, 2013: 02).
Em sua proposta de realizar uma antropologia histórica, Oliveira Filho (1999:08) declara
que ―a dimensão histórica foi escolhida como estratégica para uma reflexão sobre as sociedades
e culturas indígenas do Brasil‖, pois, a compreensão dessas sociedades e culturas ―não pode
passar sem uma reflexão e uma recuperação críticas de sua dimensão histórica‖, ou seja, os
―eixos espaço-temporais‖ nos quais os indígenas atuam como ―sujeitos históricos plenos‖. Nesse
sentido, ao criticar a tendência da etnohistória em situar os indígenas como membros estanques
do passado, ele assinala que é preciso ―retirar as coletividades indígenas de um amplo esquema
dos estágios evolutivos da humanidade e passar a situá-las na contemporaneidade e em um
tempo histórico múltiplo e diferenciado‖ (1999:09). Haja vista, essa perspectiva também é
apontada por Johannes Fabian (2013), quando este denuncia ―a negação da coetaneidade do
outro‖ por parte dos discursos científicos do ocidente.
Conforme mencionado na introdução desse texto, o ―impulso ético‖ (Segato, 2006) 2 que
alavancou a construção da proposta da tese, bem como a etnografia que vem sendo realizada
2De acordo com Rita Segato (2006:222) o impulso ético é o que nos permite abordar criticamente a lei e a moral, e, considerá-las
inadequadas. A pulsão ética nos possibilita não somente contestar e modificar as leis que regulam o ―contrato‖ impositivo em
que se funda a nação, mas também distanciarmo-nos do leito cultural que nos viu nascer e transformar os costumes das
3
para este fim, tiveram a historiografia como um dos pontos de partida, tendo em vista que os
estudos antropológicos e etnográficos sobre os Charrua e Guarani-missioneiros, no sul do Brasil
e no Uruguai ainda são exíguos.
Muito embora a historiografia em geral, apregoe a extinção dos Charrua desde os
inúmeros massacres empreendidos contra os mesmos pelo nascente estado-nação uruguaio,
historiadores uruguaios, como Acosta y Lara (1981), ao identificar a ascendência charrua de
Bernardino Garcia, e, por outro lado, Oscar Padrón Favre (1994), ao mapear a presença de
descendentes guarani-missioneiros no norte do Uruguai, revelam a presença indígena num ―país
sem índios‖, fornecendo pistas para pensá-los na sua continuidade no tempo presente.
Foi então, ao seguir os ―rastros da história‖ e ―as trilhas da memória coletiva‖, como será
exposto a seguir, que conheci pesssoas que se autodenominavam descendentes charrua, no
Uruguai, e mais tarde, iniciei a etnografia, nos municípios brasileiros de Cacequi, São Francisco
de Assis e Quaraí, cuja memória coletiva e dados etnohistóricos, aludem à presença charrua e
guarani-missioneira nas terras dos atuais municípios. É sob essa perspectiva, que os dados
etnográficos entrelaçam-se aos dados etnohistóricos, numa tentativa de estabelecer uma
aproximação teórica entre a História e a Antropologia. Para tanto, considero que essas duas
matrizes disciplinares, consistem em práticas e discursos politicamente situados, que atravessam
um amplo campo de relações, contribuindo até mesmo, para processos de visibilização e até
mesmo de invisibilização étnica e velamento de saberes e práticas, como declara Aldrin
Figueiredo (2009) 3.
Haja vista, tanto a História, ao se pautar na comprovação documental, quanto a
Antropologia, a partir do texto etnográfico, exercem à sua maneira, as suas ―autoridades‖
enquanto discursos científicos que buscam se legitimar, engendrando, interpretações,
representações e mesmo ―invenções da alteridade‖ 4, incidindo na configuração de uma memória
coletiva que, por sua vez, (re)configura as imagens e auto-imagens que os sujeitos elaboram de si
e do outro. 5
Charruas e Guarani-missioneiros na Pampa Ameríndia
comunidades morais de que fazemos parte. Nesse sentido, a antropologia, como ciência do outro, seria o campo de conhecimento
destinado a contribuir para o desenvolvimento da sensibilidade ética. Assim sendo, os processos de invisibilidade étnica devem
ser analisados à luz de determinados projetos de estado-nação e dos ―contratos impositivos‖ que possibilitam tais processos. 3 Em seu estudo sobre a pajelança amazônica, o autor chama atenção para o que denominada de ―opções políticas da
historiografia‖. Em suas palavras, ―existem muitos trabalhos sobre a Estrada de Ferro de Bragança, mas nenhum deles teve olhos
para algum pajé que porventura tivesse sua tenda armada nas proximidades‖ (Figueiredo, 2009:23). 4 De acordo com Roy Wagner (1981), tanto a cultura quanto a etnografia são invenções ocidentais. Em se tratando do caráter
literário e fictício da escrita etnográfica, ver Clifford e Marcus (1987). Acerca da autoridade etnográfica do ―estive lá‖, ver O
Antropólogo como autor, de Clifford Geertz (2006).
4 Vinculo-me ao conceito de memória coletiva, proposto por Halbwachs (2006), a partir do qual a memória possui uma dimensão
individual e coletiva, que estão intrinsecamente relacionadas.
.
4
Segundo Tau Golin, o termo ―pampa‖ é de origem indígena, mais especificamente dos
chíchuas. Inicialmente, essa noção designava um território plano com pastagens, mas a partir da
sua ocupação pelos europeus, o significado ampliou-se, incluindo aí o sentido de campo,
campanha. Embora a pampa seja apresentada como tendo a característica de uma planície, esse
espaço abrange serros, banhados, terrenos acidentados e rios caudalosos.
Devido à relação com esse território, alguns coletivos ameríndios receberam a
denominação de ―pampeanos‖, como o caso dos Abipones, Guaycurues, Yaros, Bohanes,
Guenoas, Minuano, Charrua e outros, como os Guarani-missioneiros. Por outro lado, essas
terras, que foram habitadas por esses coletivos, outrora fizeram parte da ―Antiga Banda Oriental
do Uruguay‖. Atualmente, a Pampa está situada em parte da Argentina, e, sobretudo, em terras
do sudoeste do Brasil e norte do Uruguai, onde situam-se as fronteiras político-administrativas
entre esses dois países (Gonzalez e Varese, 1990; Golin, 1999).
De acordo com Pereira (2012), as denominações Tape, Chaná, Yaro, Bohane, Guenoa,
Guarani, Minuano, Charrua, e outros termos, foram utilizados por autoridades civis, militares e
eclesiásticas para definir os povos indígenas na região da Banda Oriental durante o período
colonial, sendo que após a expulsão dos jesuítas estas classificações passaram a cair em desuso.
Em se tratando dos guarani-missioneiros, estes são considerados do tronco linguístico
Tupi-Guarani, macro etnia que abarca a parcialidades Kaiowa, Nhandeva, Chiripa, Mbya, que se
dividiram em parentelas, estendendo-se até o norte, chegando ao Caribe; pelo leste, ao Atlântico;
pelo oeste, aos Andes; e ao sul, à pampa argentina, dominando as terras de florestas tropicais e
subtropicais (Sosa, 1957; Golin, 1999; Castro, 2002).
Além disso, considera-se que esta fora a parcialidade impactada pelo projeto reducional
jesuítico, pela introdução da propriedade privada e pela origem das primeiras vilas e cidades na
Pampa, trazendo a partir desse contato interétnico, uma notável contribuição na fundação de
diversos núcleos e vilas no Rio Grande do Sul e na Banda Oriental (Uruguai). Não por acaso, ―o
guarani‖ foi considerado a ―língua geral‖ nesse território, especialmente na zona rural do norte
uruguaio, onde esse idioma foi falado até o final do século XIX(Gonzalez, Varese, 1990; Favre,
1994).
Por sua vez, Favre (1994) destaca que ―Guarani-missioneiro‖ corresponde à população de
origem étnica Guarani que habitava as missões jesuíticas situadas em ambas as margens do curso
superior do rio Uruguai, sendo que ao ―al nacer el Estado Oriental existían miles de pobladores
de origen indígena, mayoritariamente misionero‖.
Diga-se de passagem, todo esse território possui uma rica toponímia marcada pelo idioma
guarani — inclusive, o próprio nome do país, Uruguai (Sosa, 1957; Favre, 1994; 2009; Kunh,
5
2007). Por outro lado, os ensinamentos dos jesuítas possibilitaram o aprendizado de uma série de
ofícios aos guarani-missioneiros – mais tarde, denominados paisanos – tornando-se carpinteiros,
ferreiros, pedreiros, armeiros, tintureiros, tecelões, fiadores, sapateiros, cocheiros, tropeiros,
domadores, comerciantes de plantas medicinais — saberes esses que trouxeram uma grande
contribuição às sociedades rural-urbana gaúcha e uruguaia (Gonzalez e Varese, 1990).
A saída de mais de trinta mil Guarani-missioneiros/Tapes das reduções, para ocuparem
outros espaços na pampa, foi uma decisiva contribuição para a formação cultural passada e
presente do RS e do Uruguai. Entre outros motivos, frustrados com os rumos do pós ―Guerra
Guaranítica‖ (1754-1756) e a batalha de Caiboaté (1756), além do desaparecimento do líder
Sepé Tiaraju (1755), eles partiram das reduções de São Miguel Arcanjo, São Nicolau, São Borja,
São Luiz Gonzaga, São Lourenço, São João Batista e Santo Ângelo para núcleos/vilas no rio
Paraná, aldeias de São Nicolau do Rio Pardo (Rio Pardo), Nossa Senhora dos Anjos (atual
Gravataí, 1760), Santo Antônio da Guarda Velha (Santo Antônio da Patrulha, 1758), Nossa
Senhora da Conceição do Estreito (Rio Grande, 1763), originando ainda a freguesia de Viamão
(1747), Triunfo (1756) e Santo Amaro.
No Uruguai, o impacto da mobilidade dessas pessoas não foi menor, considerando que
muitos deles participaram da fundação das vilas de Bella Unión, Melo, Tacuarembó, Durazno,
São Borja Del Yi, Víboras, Maldonado, Minas, Paysandu, Salto, Artigas, Montevidéu, Colônia
de Sacramento (além de Buenos Aires, no outro lado do Rio da Prata).
Após o fim do projeto reducional jesuítico-guarani, instalou-se a propriedade privada da
terra na pampa, principalmente através das quadras de sesmaria de campo (uma forma de
ocupação que possibilitou a origem do latifúndio dominada por uma elite individual sulina), da
reiúna (um tipo de propriedade estatal administrada por funcionários públicos) e as estâncias
(sistema formado pela casa principal, residência do capataz ou caseiro, senzala e galpão). Nos
galpões ficavam os peões, trabalhadores livres de procedência indígena ou gaucha, homens para
o trabalho campeiro. Assim sendo, do século XVIII em diante, a pampa tornou-se propriedade de
poucos e não há surpresa em se perceber que inexistem hoje terras indígenas na região da
campanha (Golin, 1999:48; Gonzalez e Varese, 1990).
As inúmeras retaliações entre Portugal e Espanha, as povoações e o despovoamento dos
territórios causados pelos devastadores ataques tanto dos índios ―infiéis‖ como pelas forças
militares luso-brasileira e hispânica, contribuiu em grande medida para que a mestiçagem se
tornasse um aspecto inferiorizante aos indivíduos. Sob esse contexto, muitos guarani-
missioneiros passaram a integrar os estratos mais baixos da sociedade, adotando nomes e
sobrenomes portugueses e espanhóis, além de receberem as designações genéricas de pêlo duro,
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índio, pecuarista tradicional, gaúcho, peão, crioulo, mestiço, mestizo, criollos, changadores,
paisanos (Favre, 2004).
Para Gonzalez e Varese (1990:50), ―essa situação impediu que os mestiços constituíssem
um grupo autônomo e independente, diferenciado do branco, como aconteceu em outras
sociedades latinoamericanas (Paraguai, Bolívia)‖. Talvez devido a isso, Basini Rodríguez afirme
que ―descendente‖ seja uma categoria de difícil resolução, tendo em vista a presença de um
longo processo civilizatório nesses países, implicando na sobreposição da idéia de cidadão e
indivíduo brasileiro e uruguaio à de ameríndio.
Nesse particular, torna-se pertinente a consideração de Boccara (2013), que a partir da
sua análise sobre a etnogênese mapuche, constata que a mestiçagem está para além de um
processo de ―diluição do outro‖, na medida em que no contexto das relações interétnicas, ela
possibilita a (re)elaboração de identidades e a criação de novos sujeitos históricos.
Tratando-se dos Charrua, o outro coletivo amerindio de que trata a tese, os seus territórios
compreendiam, sobretudo, a região da pampa, no atual sudoeste riograndense, norte do Uruguai
e parte da Argentina, os quais, após a chegada dos europeus, passaram a estar entre as fronteiras
de expansão portuguesas e espanholas (Becker, 2002). Se, por um lado, essa dinâmica do contato
interétnico gerou conflitos entre as coroas pela posse desse espaço, por outro, levou os Charrua a
estabelecerem alianças temporárias ora com os portugueses, ora com os espanhóis, Guarani-
missioneiros, criollos e outros coletivos ameríndios, pela manutenção do amplo território
habitado.
Nesse contexto, os Charrua rejeitavam o projeto reducional jesuítico e dificultaram à
consolidação dos Estados-nação, que, posteriormente, vieram a se estabelecer em seus territórios.
Em grande medida, essa resistência rendeu-lhes a ―imagem-conceito‖ (Tacca, 2011:220)
de ―índios infiéis‖, impulsionando a busca pelo seu extermínio, apesar de muitos deles terem
lutado ao lado, por exemplo, do General Artigas e Fructuoso Rivera nas guerras pela
independência uruguaia (Acosta Y Lara, 2010; Becker, 2002).
Nesse particular, em se tratando do espaço reducional, convém destacar que por diversas
vezes, o sistema jesuítico incorporou pessoas de outros grupos étnicos, através da mestiçagem e
da aquisição das pautas culturais daqueles (Gonzáles e Varese, 1990; Favre, 1994). Além disso,
como destaca o historiador Protásio Langer ―a experiência jesuítico-guarani transcendeu o limite
cronológico de missionação marcando, indelevelmente, sucessivas gerações remanescentes dos
povoados missioneiros‖ (2005:11-12) .
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Sob essa perspectiva, há que se considerar o contato interétnico entre os Charrua e os
Guarani-missioneiro ao longo do complexo processo histórico desencadeado entre as forças
ibéricas e espanholas, nas atuais terras do Sul do Brasil e Uruguai.
Desse modo, há que se evitar uma visão essencialista de grupo étnico e de cultura, que
parte do pressuposto que para cada unidade étnica corresponda uma dada cultura. Para tanto,
convém apoiar-se em Fredrik Barth (1998:189) em sua definição de que ―os grupos étnicos são
categorias de atribuição e identificação realizadas pelos próprios atores e, assim, têm a
característica de organizar a interação entre as pessoas‖. Por outro lado, há que se considerar a
cultura como ―um conjunto de estruturações potenciais da experiência, capaz de suportar
conteúdos tradicionais variados e de absorver novos‖ (Viveiros de Castro, 2002:208).
A historiografia aponta que o evento mais emblemático em prol do seu aniquilamento
Charrua foi o Massacre de Salsipuedes, em 1831, na pampa uruguaia, no qual, após serem
atraídos para uma emboscada, vários caciques foram mortos, sendo que dois anos mais tarde,
quatro sobreviventes charrua foram enviados a Paris, como espécies exóticas, sob uma
―migration forcée‖ (Rivet,1930:5). Desde então, o ―evento-extermínio‖ e o ―envio dos quatro
charrua a Paris‖ passam a ser ―imagens-fundacionais do Estado-nação uruguaio‖ (Giorgi,
2002:49), sob as quais se consolidou a imagem de ―um país sem índios‖ (Favre, 1994;
Rodríguez, 2003). Em se tratando dos demais sobreviventes, Becker (2002) destaca a ausência
de dados etno-históricos acerca dos homens que escaparam das chacinas e das mulheres e
crianças distribuídas por lusitanos e espanhóis entre a população de Montevidéu, e outras
localidades, para prestarem-lhes serviços subalternos.
Por sua vez, a inexistência de dados antropológicos sobre tais sobreviventes, pode ser
explicada pelo fato dos mesmos estarem ―entremeados à população regional‖ e ―culturalmente
misturados‖ (Pacheco de Oliveira, 1999:33). Sob essa perspectiva, constata o autor, ocorreu uma
tendência em considerar que as áreas mais antigas de colonização nas Américas deram origem a
populações com ―pouca distintividade cultural‖, sobre ―os quais os etnólogos e etnógrafos não
dedicaram maior interesse‖, como, por exemplo, o Nordeste Brasileiro, a costa leste da América
do Norte, a faixa entre os Andes e o litoral do Pacífico e a região Platina (Pacheco de Oliveira,
1999:33).
Contudo, nas últimas décadas, categorias conceituais como ―remanescentes‖ (Silva,
1998), ―resistentes‖ (Boccara, 2013), ―ressurgentes‖ (Amorin, 2010), entre outras, revelam um
empreendimento teórico-conceitual com vistas a destacar a emergência de novas identidades,
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antes em situação de invisibilidade étnica, assim como a (re)construção de etnias já reconhecidas
(Oliveira, 1999), configurando processos que podem ser denominados de etnogênese 6.
Sob esse enfoque, encontram-se os estudos de Baptista da Silva (2008) e Víctora & Ruas-
Neto (2011) junto à Aldeia Polidoro, em Porto Alegre, a primeira aldeia charrua oficialmente
reconhecida no Rio Grande do Sul, em 2007. De acordo com Víctora & Ruas-Neto (2011:45),
esses Charrua enfrentam ―o desafio cotidiano de se comprovarem indígenas na contramão da
História de extermínio do povo Charrua‖, configurando a luta pelo reconhecimento enquanto um
―evento crítico‖.
No Uruguai, o fenômeno da continuidade étnica charrua requer uma compreensão a partir
de um conjunto de variáveis locais, entre eles a atual inviabilidade jurídica de se falar em
território indígena nesse país, pois, diferentemente do Brasil, inexistem legislações nacionais ou
departamentais destinadas aos povos indígenas, como assinala Basini Rodríguez (2003). Porém,
de acordo com esse antropólogo, a partir da década de 1990, uma busca por identidades, antes
silenciadas e invisibilizadas, passa a manifestar o étnico, o racial, o religioso, entre outros, e para
além das classificações de ―indio y no índio”: os descendentes charrua.
Esses descendentes de quinta, quarta e até terceira geração, passam a formar associações
tais como La Asociación Indigenista del Uruguay (AIDU), a Asociación de Descendientes de la
Nación Charrua (ADENCH), a Unión de mujeres del pueblo charrúa (UMPCHA), localizadas
em Montevidéu e norte do país, região onde ocorreu o Massacre de Salsipuedes (Rodríguez,
2003).
Entre as peculiaridades dessas associações, está a de que muitos dos seus membros
advém de camadas médias urbanas intelectualizadas e de que, por hora, elas não reivindicam um
território, mas, sim, o reconhecimento, pela sociedade nacional, de sua descendência, da
memória dos povos indígenas massacrados e dos lugares sagrados dos seus ascendentes, bem
como a adesão à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que versa sobre os
direitos dos povos indígenas (Cadaval, 2013). Convém destacar que as recentes leis de
repatriação que garantiram o retorno dos restos mortais do Cacique Vamaica Perú, do Musée de
l'Homme, em Paris, foram conquistas dessas associações, sendo que as divergências posteriores,
quanto à realização ou não de estudos genéticos, revelam em alguma medida a heterogeneidade
das mesmas (Sans, 2004).
6 Para Boccara (1999:4), a etnogênese ―é um processo pelo qual uma dupla mudança ocorre, tanto no nível subjetivo das formas
de identidade de definição de como o nível alvo de estruturas materiais (econômico e político)‖. Por sua vez, ao dialogar com
este e outros estudiosos desse fenômeno, Monteiro (2001:58) conclui que ―o termo ‗etnogênese‘ ganha novos sentidos quando
pensado enquanto articulação entre processos endógenos de transformação e processos externos introduzidos pela crescente
intrusão de forças ligadas aos europeus‖.
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Por outro lado, há os descendentes charrua que não estão vinculados às associações,
como os habitantes da zona rural e da periferia urbana, muitas vezes designados sob a conotação
inferiorizante de ―mestiço‖, ―pêlo duro‖, ―bugre‖, ―peão‖, paisanos, etc. (Nunes, 2012). Diga-se
de passagem, a trajetória social de Bernardino Garcia, bisneto do cacique charrua Sepe, revela a
sua condição de peão campeiro, antes de ir morar na periferia da cidade de Tacuarembó,
Uruguai, cuja ascendência foi identificada pelos estudos genealógicos de historiador Acosta y
Lara (2008), após o falecimento do seu pai, Avelino Garcia, filho do cacique Sepe, que
permanecera anos em silêncio devido ao ―medo da perseguição‖.
O cacique Sepe foi o único a escapar do etnocídio de Salsipuedes, tornando-se um herói
mítico entre os descendentes charrua (Rodriguez, 2002). Em uma interlocução etnográfica,
realizada, na sua residência, Bernardino Garcia declarou: ―sou bisneto do cacique Sepé, filho do
seu neto. É uma identificação direta, eu soube que era desciendente por Acosta y Lara” (Nunes,
2012). Desde então, Bernardino, transformou-se em um símbolo do ―processo de revisão e
atualização histórica e cultural, que está ocorrendo com particular intensidade no norte do país‖
(Lopez Mazz, 2000:67).
Por sua vez, apesar de negarem o vínculo com o movimento étnico charrua do Uruguai,
as lideranças charrua de Porto Alegre apontam uma ligação genealógica com aqueles charrua que
escaparam do Massacre de Salsipuedes, assim como, a ―existência de grupos de parentela na
região missioneira do RS‖ (Baptista da Silva, 2008:29). De acordo com a cacique Acuab, ―foi a
mobilidade que permitiu a sobrevivência do grupo‖ (Víctora, 2011:303).
A possibilidade de mapear redes de parentesco entre os descendentes charrua, a partir da
ascendência e descendência de Bernardino Garcia e dos vínculos genealógicos de Acuab
permite-nos, com alguns limites temporais, estabelecer uma aproximação com o estudo de Lucia
da Silva (1998), realizado entre oito sobreviventes do extermínio xetá, ocorrido no estado
brasileiro do Paraná, em 1950. Através da memória coletiva desses sobreviventes, essa
antropóloga (re)construiu seus mapas de parentesco, colocou-os em contato outra vez e
demonstrou, através deles, a continuidade étnica Xetá, apesar das descontinuidades históricas e
os processos de ―destribalização‖ e ―desterritorialização‖ que afastou-lhes do mútuo convívio e
tornou-lhes cidadãos de um estado-nação que afirmava a sua extinção.
A partir das considerações acima, surgiu a proposta da tese, que ao considerar o contato
interétnico entre os Charrua e os Guarani- missioneiro ao longo do processo histórico, busca
apreender as feições que a continuidade étnica desses coletivos ameríndios assumem na
contemporaneidade, configurando as noções de indianidade entre sujeitos que habitam espaços
que outrora foram seus territórios. Para tanto, busca-se apreender quais as relações que se
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estabelecem entre saberes, práticas e sociocosmologias, com o passado ameríndio, buscando
identificar as relações de descendência e parentesco, bem como a (re)atualização desses vínculos
pelo viés da memória coletiva.
Apoiando-se em (Viveiros de Castro, 2013: 10), parte-se do pressuposto de que ―os
enunciados de indianidade são performativos e não constativos‖, configurando um modo de ser e
estar no mundo, ou seja, ―um modo de devir, algo essencialmente invisível, mas nem por isso
menos eficaz, um movimento infinitesimal incessante de diferenciação, não um estado massivo
de diferença anteriorizada e estabilizada, isto é, uma identidade‖. Todavia, as condições
antropológicas de tal enunciado não são dadas por terceiros, tampouco pela antropologia, tendo
em vista que ―o objeto e o objetivo da antropologia é a elucidação das condições de
autodeterminação ontológica do outro‖ (Viveiros de Castro, 2013:11).
Por entre rios, trilhos e butiás: percursos etnográficos na Bacia Hidrográfica do Rio Ibicuí
e do Rio Quaraí
A escolha da zona rural e urbana de municípios localizados na região pampeana do Brasil
e Uruguai, que outrora foram territórios ameríndios como os Charrua e Guarani-missioneiros,
para a realização da etnografia, atrela-se ao objetivo de problematizar a presença e a
descendência vinculada a esses coletivos ameríndios, para além das associações de descendentes
(charrua), concentradas em Montevideo, capital uruguaia, e da Aldeia Polidoro, em Porto Alegre.
Nesse sentido, os processos de etnogênese e a emergência de novas identidades que estão
sendo protagonizados pelos mesmos, são considerados enquanto ponto de partida para o estudo
etnológico em questão, e não necessariamente, como ―objeto‖ e universo de pesquisa. Por outro
lado, o recorte geográfico que configura esse universo, vai ao encontro de outras etnografias e
estudos etnológicos realizados nas terras baixas da América do Sul, que têm enfocado ―os
deslocamentos humanos ao longo de bacias hidrográficas e o zoneamento de seus espaços pelas
dinâmicas territoriais indígenas‖ (Freitas, 2005: 17).
Nesse sentido, afilio-me ainda a constatação da etnóloga Kimye Tommasino (1995), de
que a bacia hidrográfica consiste em uma unidade ecogeográfica fundamental na compreensão
de territorialidades indígenas, assim como na constatação de que a região dos vales dos rios Jacuí
e Ibicuí constituiu-se no divisor dos coletivos ameríndios do planalto e da pampa (Golin, 1999;
Becker, 2002).
Além disso, as territorialidades ameríndias, pautadas nessa unidade, consistem em
enquanto espaços dinâmicos de troca e intercâmbio culturais entre diferentes coletivos e
parcialidades indígenas. Nesse particular, César Pereira (2012) relembra que na América já
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existiam as zonas de fronteiras entre as tribos indígenas, mesmo antes da chegada dos europeus
sendo que com a colonização, novas zonas de fronteiras foram criadas e outras ampliadas.7
O município de Cacequi, onde iniciei a etnografia no Brasil, RS, está localizado na Bacia
Hidrográfica do Rio Ibicuí, mais precisamente, na confluência dos rios Cacequi, Ibicuí e Santa
Maria, cujo nome, de acordo com fontes orais, deve-se ao encontro de caciques charrua e
minuano que ocorrera, justamente, na localidade onde os rios se encontram.
Ao transitar pelas ruas dessa cidade, percebe-se que a presença indígena (pretérita) é
evocada de diferentes formas pela memória coletiva, inscrevendo-se no cotidiano desse
município que fora um importante entroncamento ferroviário na segunda metade do século XIX.
Durante o percurso que fiz pelo Centro da cidade, em maio de 2013, comprei o jornal local, a
Gazeta dos Pampas. Na seção de esportes, constava uma manchete anunciando que os times
“charrua‖ e “iponã‖, haviam vencido a ―4ª rodada do Campeonato de Futebol de Campo de
Cacequi.” Embora sem entender nada de futebol, eu questionei ao dono do estabelecimento se o
time Charrua era bom. Após responder-me afirmativamente, comentei, em tom exclamativo e
interpretativo: - O nome dos times são indígenas!?! Ele concordou e prosseguiu entusiasmado:
“Pois é, são! O próprio nome da cidade é indígena: tem a ver com o encontro
de uns caciques...Tem a questão do encontro dos três rios também. Eu não sei
muito bem porque não sou daqui, mas moro aqui em Cacequi há muito tempo.
Mas, o pessoal fala bastante disso aqui: dos caciques, dos rios...”(Diário de
campo, 10/5/2013).
Algumas quadras depois, na Avenida Bento Gonçalves, deparo-me com a seguinte frase
em uma faixa dependurada na Escola Nossa Senhora das Graças, uma renomada instituição de
ensino privado: ―NSG: Há 76 anos navegando na terra dos Caciques”. Na seqüência deste
trabalho de campo, vislumbrei a rádio ―Três rios‖, a rádio municipal de Cacequi, cujo nome
referia-se, então, ―aos rios onde os tais caciques se encontraram‖.
Conforme percebido, os habitantes de Cacequi (re)configuram uma ―imagem-memória‖
(Eckert,1993) de que as atuais terras município, através do encontro de três rios, foram um
cenário importante para os caciques que habitavam a região. Desse modo, evocam a presença
indígena na sua vida cotidiana e no cenário urbano, através de narrativas (visuais, orais),
toponímia, instituições, estabelecimentos comerciais, entre outros. Por sua vez, fontes orais
apontam que o município foi uma zona neutra, um lugar onde os coletivos ameríndios não
7 Haja vista, esse historiador remete-se à Boccara (2012), em sua definição de complexos fronteiriços como sendo ―um espaço de
soberanias imbricadas formado por várias fronteiras e suas hinterlands [terras interioranas] no seio da qual distintos grupos –
sociopolítica, econômica e culturalmente diversos – entram em relações relativamente estáveis num contexto colonial de lutas
entre poderes imperiais e através das quais se produzem efeitos de etnificação, normalização e territorialização e se desencadeiam
processos imprevistos de etnogênese e mestiçagem‖ (Boccara apud Pereira, 2012:21)
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guerreavam, servindo de refúgio para os índios, por ser um local alto e possuir bastante
vegetação.
A esse respeito, a professora Lílian Paim, com a qual conversei logo ao chegar em
Cacequi, recordou-se do que aprendera na Escola: - Cacequi não é plano, tem vários cerros,
com mato. E ali os índios se guarneciam, eles gostavam. Ali não guerreavam e tomavam
importantes decisões. Eu lembro que a minha professora falou isso”. Além disso, segundo ela,
os Charrua e os Minuano ali se reuniam, e seus caciques, discutiam e tomavam “importantes
decisões‖, mais precisamente, no espaço localizado no encontro dos rios Ibicuí, Cacequi e Santa
Maria, a partir do qual originou-se o nome da cidade. Porém, a cidade seria fundada mais tarde e
se expandiria principalmente com a chegada da Rede Ferroviária no município.
Algumas fontes historiográficas destacam a presença do cacique Sepe em terras do atual
município de Cacequi, entre 1835-45, quando aderiu ao movimento separatista do Rio Grande, a
Revolução Farroupilha, sendo que, em 1840, ele e o charrua Barbacena foram se guarnecer na
costa do arroio Saicã, na serra do Caverá (Favre, 1994; Acosta y Lara, 1981).
A presença dos Charrua e Minuano, no atual município de Cacequi, verificada na
toponímia, assim como no consolidado estabelecimento comercial denominado ―lojas Minuano‖,
fora novamente evocada pela autodenominada ―artesã‖ Suzana da Silveira Menezes, na ocasião
da minha visita à Biblioteca Pública Municipal, na qual ela trabalha. Ao chegar ao local,
informei-lhe que estava realizando um estudo sobre a presença indígena nos municípios de São
Francisco de Assis e Cacequi. Quando lhe perguntei se havia no acervo da biblioteca, livros e
demais materiais que versassem sobre o tema, ela respondeu-me que ―não havia muita coisa”.
Porém, mostra-se bastante solícita e começa a transitar por entre as prateleiras, mostrando-me
alguns recortes de jornais e de poesias que faziam referência aos índios Charrua e Minuano.
Em um deles, sem a autoria identificada, constava a seguinte declaração ―Cacequi: terras
dos rios dos caciques que foi cenário das últimas tolderias dos índios minuanos”. Além disso,
enquanto manuseávamos os materiais, Suzana mostrou-me algumas pinturas e desenhos que ela
fizera nas paredes da biblioteca. Após elogiá-los, ela declarou-me:
“Pois é, eu também fiz o desenho de um índio, a pedido do atual prefeito
municipal. A partir do desenho, ele pretende solicitar a um escultor que faça a
escultura e depois a coloque num pórtico que ele quer construir em uma das
entradas da cidade. Na segunda entrada, porque na primeira, não sei se tu
prestou atenção, já tem um pórtico, que faz alusão à ferrovia. Aliás eu acho,
que falam mais da questão ferroviária e não tanto da indígena aqui no nosso
município.” (Diário de Campo, 18/5/2013)
Logo a seguir, apresentou-me os esboços dos seus desenhos, declarando-
me que queria ―criar um desenho que transmitisse a ideia de um índio
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guerreiro”, pois, “pelo que sabe”, eles o eram, e ela queria ser ―fiel à
realidade‖ na sua representação.
Entre as anotações de Suzana, haviam palavras que reconheci enquanto do tronco
lingüístico tupi-guarani, como karaí e nhanderu, seguidas da frase tatá nhande rekó re,
acompanhada da tradução “o fogo é para toda a vida‖. Por fim, ela mostrou-me um recorte de
jornal, anunciou que ―ali‖ dizia ―que a cidade havia sido palco de encontro de caciques charrua
e minuano‖.
De acordo Ítala Becker (2002), há fontes indicando a presença de grupos Charrua e
Minuano, por volta de 1803, nas ―vastas campanhas do Jarau até a Serra do Caverá‖, sendo que
entre 1798 e 1800, ambos grupos, em estado de aliança, são perseguidos nas campanhas do Cel
Francisco Rodrigues devido, em seus constantes ataques as estâncias do povos missioneiros de
São Borja, La Cruz e Yapeyú. Por outro lado, essa historiadora, aponta que:
―...nas proximidades do Arroio Sarandi e nas terras do Ibirapuitã, nos
municípios de Alegrete e Livramento estão os charrua aliados ou não aos
minuanos, como abiageatários envolvidos no roubo de gado, demanda esta
adquirida através contato interetnico com o colonizador. (Becker 2002:65).
Atualmente, tanto a Serra do Caverá quanto as terras em volta do Rio Ibirapuitã e Arroio
Sarandi, estão nas imediações do território no qual se configurou o município de Quaraí e
Cacequi, sendo que este último encontra-se a 62 km de São Francisco de Assis.
Recentemente, ao realizar trabalho de campo na comunidade denominada Butiazal, na
zona rural do município de Quaraí, na fronteira com o município de Artigas, no Uruguai,
Nepomuceno Braga, com 86 anos de idade, declarou-me: ―-meu pai dizia que tinha índio ali
paras bandas do cerro dos caverá e do Jarau‖, mas, “quando tu vier de novo pra festa do
Butiazal, eu te conto mais coisas de índio, que meu pai me contava” (diário de campo,
10/02/2014).
A etnografia nesse município, localizado na fronteira oeste do RS e na Bacia
Hidrográfica do denominado Rio Quaraí, no Brasil, e, Cuareim, no Uruguai, estabelecendo a
fronteira entre esses dois países, fora motivada pela informação que eu recebera de uma colega
de “que havia uma comunidade que se autodenominava Biriva” e que “tinha algo a ver com os
homens de capa preta‖, quais sejam, os padres jesuítas. Segundo o relato de alguns moradores,
foram esses tais ―homens da capa preta‖ – que nos remetem aos jesuítas, e, consequentemente,
aos guarani-missioneiros – que plantaram os primeiros pés de Butiá no local.
Por ocasião de uma entrevista concedida em maio de 2011, à Elisabete Bairros, ―seu
Braga‖, como é conhecido no local, sentencia: ―-Estes butiazais foram plantados há mais de 200
anos, ficando a maior concentração destas palmeiras no topo das elevações e voltados para a
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nascente do sol”. Por sua vez, a historiadora Diva Simões, relatou a essa pesquisadora e
extensionista da Emater/ RS - ASCAR, Quaraí, ―que os jesuítas foram os que trouxeram os
butiás, alimentavam-se deles e plantavam as sementes para marcar o território onde viviam. Os
jesuítas faziam o seu comércio, trocavam ervas, couros e gados” (Bairros, 2011). Além disso, a
historiadora também alude a presença de coletivos ameríndios como os Charrua e Minuanos, em
tempos pretéritos, anteriores a formação do município.
Atualmente, as famílias que vivem no Butiazal, há cerca de 40 km da zona urbana de
Quaraí, vivem da extração da fruta e das folhas do butiá, para alimentação, artesanato e produção
de artefatos para a criação do gado, dedicando-se ainda ao cultivo de milho, aipim, batata e feijão
miúdo para a subsistência. Nos últimos anos, em parceria com Emater e a Prefeitura Municipal,
tem sido realizada a Festa do Butiazal, como meio de fortalecer a “cultura dos butiazeiros‖,
conforme as palavras de Tadeu Mota, um dos organizadores e moradores do local.
Retornando agora, à etnografia realizada em Cacequi: fora no Bairro Mauá, na periferia
da cidade, mais precisamente, na Rua das Tropas entre as ruas Batovi e Guaiana, que conheci a
sra Olga Barcelos, 84 anos, antiga moradora do local, reconhecida pelos demais moradores
enquanto benzedeira.
Ao relatar-me alguns aspectos de sua biografia, em grande parte traçada na zona rural do
município de Cacequi, ―lá paras as bandas de Rosário [do sul] perto de Alegrete e Quaraí ”,
como dissera, ela menciona a aprendizagem acerca do uso de ervas do mato, quando morara nos
campos de uma estância na qual seu pai trabalhara como peão. Na tentativa de evocar-lhe jogos
de memória que revelassem uma possível ascendência indígena, comentei com ela, que me
chamara a atenção o fato das ruas do bairro, possuírem nomes indígenas. Entretanto, tanto ela
quanto a sua filha Rosa, cujo fenótipo parecera-me tão ameríndio quanto o seu, permaneceram
em silêncio.
A historiadora Elisa Garcia (2008), problematiza o que significava para os índios, no
período da colonização ibérica, trabalhar como peão nas estâncias. Remetendo-se à constatação
de Caio Prado Júnior, de que tal fato foi uma marca da presença dos índios no atual estado do
Rio Grande do Sul, cuja conseqüência era a integração dos mesmos em um estatuto inferior na
sociedade colonial, ela destaca:
―A ocupação dos índios como peões foi também destacada por boa parte da
historiografia sobre a região, geralmente sem maiores considerações sobre o tema ou
então com abordagens próximas a de Prado Júnior, ou seja, percebendo esta atividade
como algo a meio caminho na passagem, considerada inevitável e linear, de índio para
mestiço. Nestes trabalhos, esta passagem é considerada, implícita ou explicitamente,
como um afastamento dos índios das suas comunidades e dos seus vínculos,
considerando-os ―indivíduos despojados de sua cultura tradicional‖, os quais ficariam
cada vez mais dependentes do poder discricionário dos grandes proprietários de terras
para os quais trabalhavam‖. (Garcia: 2008:129)
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Pode-se dizer, a partir do contexto sócio-histórico tecido ao longo da expansão ibérica, e
do processo de expropriação de territórios ameríndios no sul do Brasil e na região platina, que
muitos dos habitantes da zona rural e da periferia urbana, muitas vezes designados sob a
conotação inferiorizante de ―mestiço rural‖, pelo duro, índio, peão, paisanos, bugre, entre outras,
são descendentes de coletivos ameríndios como os Charrua e os Guarani-missioneiro (Nunes,
2011). 8
Eu soubera da existência do Bairro Mauá, localizado na periferia de Cacequi, ao acessar o
material denominado Monografia das comunidades Escolares da Rede Municipal de Cacequi –
2010, no qual cada escola do município deveria apresentar, entre outros aspectos, um histórico
do bairro onde estava inserida.9 Ao realizá-lo, a Escola Municipal de Ed. Infantil e Ensino
Fundamental Presidente Vargas, listou os nomes indígenas dados às ruas que o compõem,
considerados enquanto uma homenagem aos “primeiros habitantes do município‖, seguidos de
livres traduções para o português. Além disso, o material trazia a imagem do bairro, captada pelo
google maps, a partir da qual cheguei, inicialmente, até à Rua Minuano, esquina com a Rua
Charrua. A seguir desloquei-me, pelas ruas Timbó e Batovi, até chegar a residência de dona
Iracema Trindade, outra reconhecida benzedeira do local, residente à Rua Guaiana, quase
esquina com a Rua Pacati.Ao narrar a sua trajetória, sentada ao sol e próxima a sua ―lavourinha‖
de mandioca, feijão e batata doce, dona Iracema, atualmente, com 83 anos de idade, contou-me
que passou a morar em Cacequi, aos 20 anos de idade, quando saíra da cidade vizinha São
Francisco de Assis:
―Eu nasci pra fora, em São Francisco. Lá na Timbaúva, no meio do mato. É por
isso que até hoje eu sou um bicho do mato. Olha, eu só saio lá pro Centro [da
cidade] por obrigação: quando eu tenho que ir receber no banco. Mas, se tu me
convida pra ir pro mato, aqui perto, na beira do [rio]cacequizinho rio, eu já
estou lá, vou na hora!‖ (Diário de Campo, 18/5/2013)
Após comentar com ela, que ouvi falar que ―antigamente‖ lá era ―terra de índio‖, ela
imediatamente olhou firme nos meus olhos e declarou-me:
“Mas olha pra mim! O que tu acha que eu sou? Bem, na verdade eu já sou
bugre, mestiça, me misturei, mas a minha mãe era índia. Só que ela casou com
um branco que se achegou por lá. A minha avó paterna, falava tudo enrolado,
não era em português como se fala agora...Eu, agora, já nem sei o que eu sou”
(Diário de Campo, 18/5/2013)
Pergunto-lhe onde elas estão sepultadas e ela respondeu-me que ambas ―estão enterradas
lá na Timbaúva mesmo, perto do Buricaci‖. A seguir, questionou-me se ―eu sabia que „lá‟
8 Destaca-se aqui, por exemplo, a trajetória social de Bernardino Garcia, bisneto do cacique charrua Sepe Polidoro que fora peão
campeiro, antes de ir morar na periferia da cidade de Tacuarembó, Uruguai. 9 Material produzido pela Secretaria Municipal de Educação, coordenado pela professora Magda K. Andrade.
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também era terra de índio”, pois segunda ela, ―lá tinha até aquelas ocas de antigamente, que
eram no mato, em um cerro de mato de lá”.As localidades de Timbaúva e Buricaci, evocadas
por dona Iracema, estão localizadas no atual 2º distrito do município de São Francisco de Assis,
nas proximidades do Rio Jaguari e do Arroio Jaguarizinho, que deságuam no Rio Ibicuí, um dos
principais afluentes do Rio Uruguai.
Nesse particular, destaca-se que as terras hoje pertencentes ao município, além de serem
atravessadas pela bacia hidrográfica do Rio Ibicuí, sediaram no século XVII, as reduções
Candelária do Ibicuí e São Tomé. Ambas constituíram as denominadas ―reduções do tape‖,
sendo que a primeira, fundada em 1626, pelo padre Roque Gonzalez, teve curta duração.
De acordo com Quevedo (1996) entre 1618 e 1628, os bandeirantes capturaram e
escravizaram mais de vinte mil índios de Guairá, ―pampas das missiones‖, sendo que diante de
tal devastação, os jesuítas deslocaram-se para o oeste, rumo ao Itatim no Paraguai, e para o sul
seguindo o curso dos rios Paraná e Uruguai. Desse modo, ao sul, na margem direita do rio
Uruguai (atualmente território argentino), foram erguidas cinco reduções; outras dezoito foram
construídas na região do tape, no planalto central do Rio Grande do Sul (Quevedo 1996:09).
Foi neste contexto que, em 1632, os padres Luiz Ernot e Manuel Bertot, com o apoio do
padre Romero, chegaram às margens do Rio Jaguari, próximo a sua confluência com o Rio Ibicuí
onde fundaram a redução de Santo Tomé del Ibiquiti. De acordo com Hartmann (1984), o padre
Bertot registrara que “no local já havia uma aglomeração, quase um povo com 400 almas, às
quais não faltava senão igreja e cruz”.
Em sua carta anua de 1633, o padre Romero, destaca a posição geográfica privilegiada,
da redução, ao escrever que ―em São Tomé se embarca para ir à redução dos rios do Yapejú; se
o rio está baixo gastam-se no máximo quatro dias; se está crescido, dois ou menos”. Do mesmo
modo, a sua localização na bacia hidrográfica do rio Ibicuí, também favoreceu o projeto
reducional jesuítico, ao facilitar o contato entre as reduções e o subseqüente controle das
mesmas, diante do conflituoso e instável contexto da expansão colonial ibérica e dos ataques dos
bandeirantes e até mesmo dos Charrua e Minuano (Becker 2002).
As almas ―sem igreja e cruz”, as quais se referem os padres acima, tratam-se dos
Guarani-missioneiro/Tapes, considerados parte da nação Tupi-Guarani. Essa macro etnia
dividiu-se em parentelas que se estenderam até o norte, chegando ao Caribe; pelo leste, ao
Atlântico; pelo oeste, aos Andes; e ao sul, à pampa argentina.
A noção guarani abarca cinco parcialidades, quais sejam: Kaiowa, Nhandeva, Chiripa,
Mbya e Guarani-missioneiro/Tapes, sendo que a última, conforme destacado anteriormente, fora
impactada mais diretamente pelo projeto reducional jesuítico, pela introdução da propriedade
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privada e pela origem das primeiras vilas e cidades na pampa (Favre, 1994). Em se tratando dos
Mbya Guarani, Soares (2012), destaca que em meados ou final da década de 1960 e início de
1970, a circulação dos mbya provenientes de Misiones se intensificou, a partir da crescente perda
de direitos sobre as suas terras e relações de proximidade com os não-índios. Após se
organizarem em determinados espaços, ―estabeleciam condições para a chegada de outros
parentes, que passavam a iniciar um outro movimento e assim, sucessivamente‖, assinala a
autora, ao dialogar com Vietta (1992). Nesse período, registra-se a presença de coletivos Mbya
na região da Campanha Gaúcha (região do Ibicuí), Lagoa dos Patos e litoral do Rio Grande do
Sul (Venzon, 1997 apud Soares, 2012).
Em sua tese de doutorado, Soares (2012) ao apresentar os diálogos que teve com o
indigenista Francisco Witt, traz aspectos da sua trajetória, entre eles, o de que a sua inserção no
indigenismo iniciara quando a família de Benito de Oliveira, no ano de 1978, acampou à margem
do Arroio Jaguarizinho, no município de São Francisco de Assis, sua terra natal. Diga-se de
passagem, nas proximidades desse arroio, se dá confluência do Rio Jaguari com o Rio Ibícui,
espaço onde fora instaurada a redução de São Tomé, na primeira metade do século XVII, no qual
atualmente encontra-se a denominada gruta de São Tomé. Nesse particular, a trajetória do
referido indigenista, remete-me às minhas próprias memórias, visto que também sou natural de
São Francisco de Assis, e recordo-me de ouvir falar, quando eu ainda era criança, sobre os
―bugres do jaguarinho‖, na maioria das vezes, de forma pejorativa. Algumas vezes os vi,
vendendo balaios na beira da estrada. Tal lembrança também fora imediatamente evocada,
quando dona Iracema contou-me da sua trajetória e do local onde vivera com sua parentela,
tendo em vista que a localidades por ela mencionadas, são bastante próximas ao Arroio
Jaguarizinho e aos Rios Ibicuí e Jaguari.
O diagnóstico da população Mbyá-Guarani no sul do Brasil, elaborado por Ivori Carlet e
Valéria S. de Assis (1998) considera o ―Jaguarizinho‖ enquanto ―área indígena sem providências
jurídicas‖ sendo descrita da seguinte forma:
―Localização: à beira da rodovia que liga São Francisco de Assis e São Vicente
do Sul, a aproximados 5 km da sede municipal de São Francisco e às margens
do Arroio Jaguarizinho, afluente do Rio Ibicuí. População: apenas uma família
ocupava o local; a população era na ocasião de 10 pessoas. Julian, o chefe da
família aguardava a chegada de parentes da Argentina‖ (Garlet e Assis
1998:72).
Apesar de ter sediado a instalação de duas reduções jesuíticas, “o passado missioneiro”,
segundo moradores de São Francisco de Assis é ―pouco valorizado‖. De acordo com o diretor de
comunicação e cultura do município, Herton Couceiro, esta é uma das suas metas. Entretanto,
após comentar que faltam estudos sobre o tema na cidade, destaca a contribuição dos
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tradicionalistas locais, no resgate da história das reduções de São Tomé e da Candelária do
Ibicuí. A seguir comenta: É foram duas reduções: :a primeira foi a Candelária do Ibicuí, né?
Durou pouco, logo foi destruída. Pelo que eu sei, essa era mais perto da margem esquerda do
Ibicuí. A Redução de São Tomé, era perto de onde é a gruta” (Diário de Campo, 17/5/2013).
A gruta a qual se refere, é a gruta de São Tomé que está localizada a cerca de 2km da
sede do município, próxima ao Arroio Jaguarizinho e à localidade da Timbaúva, onde nascera
dona Iracema que autoidentificou-se como ―bugre‖. Herton, ao se referir a gruta, destaca a sua
proximidade do entroncamento dos rios Jaguari e Ibicuí e recorda: ―- Inclusive, ali teve a
aparição da Nossa Sra Conquistadora, foi bem ali perto dos rios. Até na época, a igreja tentou
trazer a Romaria da Nossa Sra para São Francisco, mas não conseguiu. O padre Paulo Aripe
(já falecido) tentou, foi atrás, mas acabou saindo lá em Uruguaiana. (Diário de Campo,
17/5/2013).
Na ocasião desta interlocução etnográfica, o atual vice-prefeito Ademar Frescura, chega
ao local e ao escutar a narrativa acima, recorda-se: -“Teve uma época que o tenente José Renato,
estava com a ideia de construir um caminho dali da gruta, até o rio, eu acho. Mas depois passou
e não conversamos mais”. O tenente ao qual ele se refere, é um dos atuais proprietários das
terras localizadas nas imediações da gruta de São Tomé e da antiga Redução de São Tomé.
Apesar de não conseguir entrar em contato com ele, dialoguei com o seu sobrinho que fez a
seguinte declaração:
―Ali naquelas terras perto da gruta, tinha até cemitério de índio. Eu me lembro
porque eram e são até hoje terras da minha família. Teve uma época que era
cheio de escavações e buracos, até de madrugada o pessoal ia. Estavam a
procura de ouro e de enterros de dinheiro.” (diário de campo, 17/5/2013).
Após eu comentar sobre a redução, ele evoca:
“Sim. Ali dizem que era uma redução. E também mais lá pra baixo, na margem
do Ibicuí, perto do cerro Batovi, tinha outra, né? Era a Candelária?!? Me diz
uma coisa: o que é que tem lá encima do cerro? Dizem que tem umas cruzes
dos jesuítas e umas placas de bronze. Até, agora há pouco, andou um grupo de
pessoas não sei de onde que subiu lá encima pra fazer umas rezas. No cerro do
glória, ali entre o Jaguari Grande e o Ibicuí também dizem que tinha umas
cruzes”(Diário de Campo, 17/5/2013).
Na década de 1990, um grupo de tradicionalistas locais, vinculados a CTG‘s 10
o
município, fundaram o Grupo de Arte e Cultura Candelária do Ibicuí, cujo objetivo era cultuar a
tradição gaúcha e resgatar e preservar a história do Rio Grande do Sul. De acordo, com a
advogada Zeli Érbice, uma das fundadoras do grupo, eles fizeram muitas pesquisas sobre as
reduções, razão pela qual colocaram o nome de uma delas no grupo.
10 Centro de Tradições Gaúchas.
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Ela comenta inclusive, que tais estudos acabaram por subsidiar a reivindicação, da
substituição do nome da ―Praia do Jacaquá‖, localizada às margens do Rio Ibicuí, para ―Passo
da Catarina‖, tendo em vista que segundo ela:
“Os jesuítas estavam atravessando o Rio Ibicuí para ir até a redução catequizar os
índios e eles estavam carregando uma santa, que era a Santa Catarina. Só que eles
derrubaram a santa no rio quando estavam passando...por isso algumas pessoas
começaram a chamar Passo da Catarina. Então, o nome é esse, e não praia do
Jacaquá. (Diário de Campo 19/5/2013).
Apreende-se a partir do trabalho de campo realizado nos municípios de Cacequi, São
Francisco de Assis e Cacequi, que a presença indígena, embora presente no cotidiano dos
mesmos, tende a ser evocada, em grande medida, através de um ―processo de sacralização do
passado‖ (Todorov, 2002). Por outro lado, a partir de alguns relatos, percebe-se a importância
em apreender as formas pelas quais a etnicidade, aqui pensada em termos de indianidade,
atravessa as biografias dos ―bugres‖, ―mestiços‖ e ―butiazeiros‖, enquanto experiência
constantemente (re) elaborada e (re)significada entre aqueles que habitam uma pampa, também
ameríndia.
Considerações Finais (iniciais): a etnicidade enquanto experiência intersubjetiva
Ao assinalar que os estudos sobre os povos originários da América, assumiram o
contorno de ―estudos étnicos‖, em detrimento de estudos raciais, a antropóloga Claudia Briones
(1998) pontua que a noção de etnicidade passou a operar como uma categoria genérica chave, e
até mesmo excludente, para analisar os processos de construção e classificação da alteridade
sociocultural. Entretanto, a partir dos anos 1980, começa-se a criticar, desde ―os denominados
estudos raciais, a tendência explicativa de subsumir o racial no étnico e a insistir na necessidade
de diferenciar ambas formas de marcação‖ (Briones, 1998:16).
Entre as formas específicas de etnicidade que orientaram as formas de incorporação do
―outro‖, através da construção e classificação da alteridade sociocultural no Estado-Nação,
Briones (1998), destaca o conceito de ―aboriginalidade‖, o qual em relação às noções de raça e
etnicidade, ―se localiza em um cruzamento de caminho, que é mais histórico do que conceitual‖.
Segunda a autora, devemos nos interessar menos em saber se a aboriginalidade ―cirscunscreve
grupos étnicos ou grupos raciais e mais em saber como tem sido pincelado historicamente os
contornos de certos coletivos sociais na base de combinação de marcas seletivas e
complexamente biologizadas ou culturalizadas‖ (Briones, 1998: 20).
Por sua vez, Oliveira Filho (1990), ao considerar o ―étnico‖ enquanto uma invenção
colonial para situar e localizar a alteridade, a partir da produção de dados sensíveis e dados
concretos –como o censo, por exemplo – aponta a ocorrência de uma bifurcação teórica acerca
da etnicidade. Nesse caso, haveria uma abordagem instrumentalista, que explica a etnicidade por
20
critérios políticos que devem ser analisados em contextos específicos, tal como propõem autores
como Barth, Cohen, entre outros; e, por outro lado, uma abordagem primordialista, na qual se
situariam Geertz, Keyes, Bentley, identificando a etnicidade através de lealdades primordiais,
pautando-se na ideia de uma origem comum, tal como propõe Max Weber (1991).
Entretanto, Oliveira Filho (1999:30) considera ser necessário superar essa polaridade,
pois ambas as correntes apontam para dimensões constitutivas na medida em que ―a etnicidade
supõe necessariamente, uma trajetória, a qual é histórica e determinada por múltiplos fatores‖, e
do mesmo modo, uma origem ―que é uma experiência primária, individual, mas que também está
traduzida em saberes e narrativas aos quais vem se acoplar‖ (1999:30). Sob essa perspectiva,
prossegue o autor, ―o que seria próprio das identidades étnicas é que nelas, a atualização
histórica não anula o sentimento de referência à origem, mas até mesmo o reforça‖, pois é da
resolução simbólica e coletiva dessa contradição que decorre a força política e emocional da
etnicidade.
Pode-se concluir, a partir de narrativas configuradas por ―bugres‖ e ―mestiços‖, e
―butiazeiros‖ revisitadas nesse texto, a importância em enfocar a etnicidade, aqui pensada em
termos de indianidade, enquanto uma ―experiência primária, individual‖ e intersubjetiva,
perpassada por continuidades e descontinuidades históricas. Essa constatação traz desafios aos
estudos de etnologia ameríndia, quando estes não se desenvolvem junto a coletivos em processos
de etnogênese e de afirmação étnica, autoreferenciando a sua ―indianidade‖, sob a égide de um
etnômino ameríndio.
Desse modo, há que se lançar um olhar atento e uma escuta etnográfica sensível às
narrativas biográficas e etnobiográficas, com vistas a aprender as trajetórias sociais, as redes de
afinidade e parentesco, bem como as formas pelas quais a memória coletiva e os fluxos de
discursos em torno da indianidade, charrua ou guarani-missioneira, reconfiguram os saberes, as
práticas e as sociocosmologias que permeiam as noções de territorialidade entre aqueles que
habitam territórios que outrora configuraram uma pampa ameríndia, atualmente sob a égide de
dois diferentes estados-nação. Nesse sentido, a etnicidade, como uma experiência individual e
intersubjetiva, que persiste ao projeto de ―desindianização‖ lançado pelo estado- nação uruguaio
e brasileiro, não assume uma forma residual, mas sim agentiva, na medida possibilita
(re)configuração de identidades e pertencimentos. Para tanto, há a que se considerar a
―subjetividade dos entre-lugares‖ (De La Cadena, 2008) e as experiências diversas que eles
engendram em torno da etnicidade, para além de uma objetificação da alteridade do ―outro‖,
mas, a fim de compreender os processos e fluxos interativos que o atravessam enquanto um
sujeito histórico. Nesse caso, apoiando-se em De La Cadena (2008) não se trata somente de
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compreender categorias específicas de identidade ameríndia ou não-ameríndia, mas, sim
histórias individuais que desvelam múltiplas maneiras de ser, permanecer e significar o
ameríndio, configurando diferentes formas de indianidade.
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