charles darwin-a-origem-das-especies

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1 CHARLES DARWIN A Origem das Espécies Aos Leitores Decorridos quase dois séculos desde a primeira vez que esta obra foi publicada, ela continua sólida e robusta como uma montanha. E é isso que ela é: uma das monta- nhas mais altas que se ergueram na história da investigação científica do mundo em que vivemos, assim como é o seu próprio autor, o inglês Charles Darwin. Não se trata de uma obra surgida ao acaso, ao sabor da especulação filosófica, do pensamento mágico. Ela é o resultado de toda uma vida dedicada ao esforço humano de entender o funcionamento da Natureza com base nos fatos e evidências apresentados pela própria Natureza. Darwin reúne aqui o resultado do seu trabalho pessoal de muitas décadas, viajan- do incansavelmente pelos lugares mais recônditos do planeta em que vivemos, observan- do, medindo, testando, analisando e sintetizando coisas, até o momento em que se sentiu capacitado a concluir sua teoria de evolução das espécies. Apesar de solidamente ancorado em fatos e análises suas e de seus contemporâ- neos mais ilustres, desde a sua primeira edição esta obra tem sido vítima de desmoraliza- ção pública e difamação por parte daqueles que, de tão pequenos e insignificantes, se julgam acima das evidências dos fatos e evidências do mundo real. Gente cuja mente preguiçosa prefere ancorar-se em crenças vazias e despropositadas a respeito da Natu- reza, em vez de se dar ao trabalho de por em teste falsas verdades consideradas como intocáveis e definitivas. * * * * * * * * Ano 2003 E-book baseado na tradução de Joaquim da Mesquita Paul, médico e professor. publicada por LELLO & IRMÃO – EDITORES. 144, Rua das Carmelitas -PORTO

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  • 1. 1CHARLES DARWINA Origem das EspciesAos LeitoresDecorridos quase dois sculos desde a primeira vez que esta obra foi publicada,ela continua slida e robusta como uma montanha. E isso que ela : uma das monta-nhas mais altas que se ergueram na histria da investigao cientfica do mundo em quevivemos, assim como o seu prprio autor, o ingls Charles Darwin.No se trata de uma obra surgida ao acaso, ao sabor da especulao filosfica, dopensamento mgico. Ela o resultado de toda uma vida dedicada ao esforo humano deentender o funcionamento da Natureza com base nos fatos e evidncias apresentadospela prpria Natureza.Darwin rene aqui o resultado do seu trabalho pessoal de muitas dcadas, viajan-do incansavelmente pelos lugares mais recnditos do planeta em que vivemos, observan-do, medindo, testando, analisando e sintetizando coisas, at o momento em que se sentiucapacitado a concluir sua teoria de evoluo das espcies.Apesar de solidamente ancorado em fatos e anlises suas e de seus contempor-neos mais ilustres, desde a sua primeira edio esta obra tem sido vtima de desmoraliza-o pblica e difamao por parte daqueles que, de to pequenos e insignificantes, sejulgam acima das evidncias dos fatos e evidncias do mundo real. Gente cuja mentepreguiosa prefere ancorar-se em crenas vazias e despropositadas a respeito da Natu-reza, em vez de se dar ao trabalho de por em teste falsas verdades consideradas comointocveis e definitivas.* * * * * * * *Ano 2003E-book baseado na traduo de Joaquim da Mesquita Paul, mdico e professor.publicada por LELLO & IRMO EDITORES.144, Rua das Carmelitas -PORTO

2. 2DARWIN, Charles. A Origem das Espcies, no meio da seleo natural ou a lutapela existncia na natureza, 1 vol., traduo do doutor Mesquita Paul.Quanto ao mundo material, podemos pelo menos ir at concluso de queos fatos se no produzem em conseqncia da interveno isolada do poderdivino, manifestando-se em cada caso particular, mas antes pela ao dasleis gerais.WHEWELL, Bridgewater Treatises.O nico sentido preciso da palavra natural a qualidade de ser estabele-cido, fixo ou estvel; por isso tudo o que natural exige e supe qualquerfator inteligente para o tornar tal, Isto , para o produzir continuamente ouem intervalos determinados, enquanto que tudo o que sobrenatural ou mi-raculoso produzido uma s vez, e de um s golpe.BUTLER, Analogy of Revealed Religion.Para concluir, no deixeis crer ou sustentar, devido a uma idia muito acen-tuada da fraqueza humana ou a uma moderao mal entendida, que o ho-mem pode ir longe ou ser instrudo com a palavra de Deus, ou com a do livrodas obras de Deus, isto , em religio ou em filosofia; mas que todo o ho-mem se esforce por progredir cada vez mais numa e noutra, e tirando distovantagem sem jamais Parar.BACON, Advancement of Learning. 3. 3SUMRIONotcia Histrica .................................................................................................. 04Introduo ........................................................................................................... 14Captulo IVariao das espcies no estado domstico ........................................... 19Captulo IIVariao no estado selvagem .................................................................. 55Captulo IIILuta pela sobrevivncia ........................................................................... 75Captulo IVA seleo natural ou a perseverana do mais capaz .............................. 93Captulo VLeis da variao ...................................................................................... 149Captulo VIDificuldades surgidas contra a hiptese de descendnciacom modificaes ................................................................................... 184Captulo VIIContestaes diversas feitas teoria da seleo natural ...................... 228Captulo VIIIInstinto .................................................................................................... 273Captulo IXHibridez .................................................................................................. 311Captulo XInsuficincia dos documentos geolgicos .............................................. 348Captulo XIDa sucesso geolgica dos seres organizados ..................................... 381Captulo XIIDistribuio geogrfica ........................................................................... 413Captulo XIIIDistribuio geogrfica (continuao) .................................................... 447Captulo XIVAfinidades mtuas dos seres organizados; morfologia;embriologia;rgos rudimentares ........................................................... 472Captulo XVRecapitulaes e concluses ................................................................. 523Glossrio dos principais termos cientficos empregados nesta obra ................ 555Diagrama das Geraes ................................................................................... 572 4. 4NOTCIA HISTRICACOM RESPEITO AOS PROGRESSOS DA OPINIORELATIVA ORIGEM DAS ESPCIESANTES DA PUBLICAODA PRIMEIRA EDIO INGLESA DA PRESENTE OBRAProponho-me noticiar a largos traos o progresso da opinio relativamente origem das espcies. At h bem pouco tempo, a maior parte dos naturalistassupunha que as espcies eram produes imutveis criadas separadamente. Nu-merosos sbios defenderam habilmente esta hiptese. Outros, pelo contrrio, ad-mitiam que as espcies provinham de formas preexistentes por intermdio de ge-rao regular. Pondo de lado as aluses que, a tal respeito, se encontram nos au-tores antigos, 1Buffon foi o primeiro que, nos tempos modernos, tratou este as-sunto de um modo essencialmente cientfico. Todavia, como as suas opinies va-riavam muito de poca para poca, e no trata nem das causas, nem dos meiosde transformao da espcie, intil entrar aqui em maiores minudncias a res-peito dos seus trabalhos.Lamark foi o primeiro que despertou pelas suas concluses, um estudo s-rio sobre tal assunto. Este sbio, justamente clebre, publicou as suas opinies,pela vez primeira, em 1801; desenvolveu-as consideravelmente em 1809, na sua1Aristteles. nas suas Physicae Auscultationes (lib. II, cap. VIII, 2), depois de ter notado que achuva no cai para fazer crescer o trigo como no cai para o deteriorar quando o rendeiro o batenas eiras, aplica o mesmo argumento aos organismos e acrescenta (foi M. Clair Grece que menotou esta passagem): Qual a razo por que as diferentes partes (do corpo) no teriam na natu-reza estas relaes puramente acidentais? Os dentes, por exemplo, crescem necessariamenteincisivos na parte anterior da boca, para dividir os alimentos; os maiores, planos, servem para mas-tigar; portanto no foram feitos para este fim, e esta forma o resultado de um acidente. O mesmose diz para os outros rgos que parecem adaptados a determinado ato. Por toda a parte, pois,todas as coisas reunidas (isto , o conjunto das partes de um todo) so constitudas como se tives-sem sido feitas com vista em algum desiderato; estas formas de uma maneira apropriada, por umaespontaneidade interna, so conservadas, enquanto que, no caso contrrio, tm desaparecido edesaparecem ainda. Encontra-se aqui um esboo dos princpios da seleo natural; mas as ob-servaes sobre a conformao dos dentes indicam quo pouco Aristteles compreendia estesprincpios. 5. 5Philosophie Zoologique, e subseqentemente em 1815, na introduo sua His-toire Naturelle des Animaux sans Vertbres. Sustenta nas suas obras a doutrinade que todas as espcies, compreendendo o prprio homem, derivam de outrasespcies. Foi ele o primeiro que prestou cincia o grande servio de declararque toda a alterao no mundo orgnico, bem como no mundo inorgnico, o re-sultado de uma lei, e no uma interveno miraculosa. A impossibilidade de esta-belecer uma distino entre as espcies e as variedades, a gradao to perfeitaem certos grupos, e a analogia das produes domsticas, parece terem conduzi-do Lamark s suas concluses a respeito das transformaes graduais das esp-cies. Quanto s causas da modificao, procurou-as ele em parte na ao diretadas condies fsicas da existncia, no cruzamento das formas j existentes, esobretudo no uso e no uso, isto , nos efeitos do hbito. a esta ltima causaque parece ligar todas as admirveis adaptaes da natureza, tais como o longopescoo da girafa, que lhe permite pascer as folhas das rvores. Admite igualmen-te uma lei de desenvolvimento progressivo; ora, como todas as formas da vidatendem tambm ao aperfeioamento, ele explica a existncia atual dos organis-mos muito simples pela gerao espontnea.2Geoffroy Saint-Hilaire, como pode ver-se na sua biografia, escrita por seu fi-lho, j em 1795, tinha suposto que o que chamamos espcies no so mais quedesvios variados do mesmo tipo. Foi somente em 1828 que se declarou convenci-do que as mesmas formas se no perpetuam desde a origem de todas as coisas;parece ter considerado as condies de existncia ou meio ambiente como a cau-sa primordial de cada transformao,2 na excelente histria de Isidore Geoffroy Saint-Hilaire (Hist. Nat. Gnrale, 1859, t. II, p. 405)que encontrei a data da primeira publicao de Lamarck; esta obra contm tambm um resumodas concluses de Buffon sobre o mesmo assunto. curioso ver quanto o Dr. Erasmo Darwin, meuav, na sua Zoonomia (vol. I, p. 500-510), publicada em 1794, antecedeu Lamark nas suas idias eseus erros. Segundo Isidore Geoffroy, Goethe partilhava completamente as mesmas idias, comoprova a introduo de uma obra escrita em 1794 e 1795, mas publicada muito mais tarde. Insistiusobre este ponto (Goethe als Naturforscher, Peio Dr. Karl meding, p. 34), que os naturalistastero de procurar, por exemplo, como os bois e carneiros adquiriram os cornos, e no para queservem, um caso bastante singular a apario quase simultnea de opinies semelhantes, por-que se v que Goethe na Alemanha, o Dr. Darwin na Inglaterra, e Geoffroy Saint-Hilaire em Fran-a, chegam, nos anos de 1794-1795 mesma concluso sobre a origem das espcies. 6. 6Um pouco tmido nas suas concluses, no acreditava que as espcies e-xistentes estivessem em via de modificao; e, como seu filho diz, pois umproblema reservado inteiramente ao futuro, supondo mesmo que o futuro podetomar conta dele. O Dr. W. C. Wells, em 1813, dirigiu Sociedade Real umamemria sobre uma mulher branca, cuja pele, em certos pontos, se assemelha de um negro, memria que s foi publicada em 1818 com os seus famosos TwoEssays upon Dew and Single Vision. Admite distintamente nesta memria o prin-cpio da seleo natural, e foi a primeira vez que publicamente a sustentou; masaplica-a apenas s raas humanas e a certos caracteres particulares. Depois deter notado que os negros e os mulatos escapam a certas doenas tropicais, verifi-ca primeiramente que todos os animais tendem a variar num certo grau, e secun-dariamente que os agricultores aperfeioam os animais domsticos pela seleo.Em seguida acrescenta que o que, neste ltimo caso, efetuado pela arte, pa-rece s-lo igualmente, mas mais lentamente, pela natureza, para a produo devariedades humanas adaptadas s regies que habitam; assim, em meio das vari-edades acidentais que puderam surgir entre alguns habitantes disseminados naspartes centrais da frica, algumas eram sem dvida mais aptas que outras parasuportar as doenas do pas. Esta raa devia, por conseguinte, multiplicar-se, en-quanto que as outras desapareceriam, no s porque no podiam resistir s do-enas, mas ainda porque lhes era impossvel lutar contra os seus vigorosos vizi-nhos. Depois das minhas notas precedentes, no se pode duvidar que esta raaenrgica no fosse uma raa escura. Ora, persistindo sempre a mesma tendnciapara a formao de variedades, deviam surgir, no decorrer do tempo, raas cadavez mais negras; e a raa mais negra, sendo a mais prpria para adaptar-se aoclima, devia tornar-se a raa predominante, seno a nica, no pas particular ondetomou origem.O autor estende em seguida estas mesmas consideraes aos habitantesbrancos dos climas mais frios. Devo agradecer a M. Rowley, dos Estados Unidos,ter chamado, por intermdio de M. Brace, a minha ateno para esta passagemda memria do Dr. Wells.O venervel e reverendo W. Herbert, mais tarde deo de Manchester, es- 7. 7crevia em 1822, no 4., volume das Horticultural Transactions, e na sua obra asAmaryllidaces (1837, p. 19, 339), que as experincias de horticultura tm esta-belecido, sem refutao possvel, que as espcies botnicas no so mais queuma classe superior de variedades mais permanentes. Aplica a mesma opinioaos animais e v que as espcies nicas de cada gnero foram criadas num esta-do primitivo muito plstico, e que estes tipos produziram ulteriormente, principal-mente pelo cruzamento e tambm por variao, todas as nossas espcies existen-tes.Em 1826, o professor Grant, no ltimo pargrafo da sua memria sobre asespongilas (Edinburgh Philos. Journal, 1826, t. xiv, p. 283), declara nitidamenteque acredita que as espcies derivam de outras espcies, e que se aperfeioamno correr das modificaes que vo sofrendo. Apoiou-se nesta mesma opinio nasua 55. conferncia, publicada em 1834 no jornal The Lancet.Em 1831, M. Patrick Matthew publicou um tratado com o ttulo Naval Timberand Arboriculture, no qual emite exatamente a mesma opinio que M. Wallace eeu expusemos no Linnean Journal, e que vou desenvolver na presente obra. Infe-lizmente M. Matthew enunciou as suas opinies laconicamente e em passagensdisseminadas num apndice a uma obra tratando de assunto muito diverso; pas-sariam at despercebidas se M. Matthew no chamasse a ateno para elas noGuardeners Chronicle (7 Abril 1860). As diferenas em os nossos modos de verno tm grande importncia. Parece crer que o mundo foi quase despovoado emperodos sucessivos e povoado de novo em seguida; admite, a ttulo de alternati-va, que novas formas podem produzir-se sem auxlio de molde ou germe anteri-or. Julgo no compreender bem algumas passagens; parece-me, todavia, que dmuita importncia ao direta das condies da existncia. Contudo, estabele-ceu claramente todo o poder do princpio da seleo natural.Na sua Description Physique des Iles Canaries (1836, p. 147), o clebregelogo e naturalista Von Buch exprime nitidamente a opinio de que as varieda-des se modificam pouco a pouco e se tornam espcies permanentes que no maisso capazes de cruzar-se.Na Nouvelle Flore de lAmrique du Nord (1836, p. 6), Rafinesque exprimia- 8. 8se assim: Todas as espcies podiam ser outrora variedades, e muitas variedadestornaram-se gradualmente espcies, adquirindo caracteres permanentes e particu-lares; e um pouco mais adiante (pg. 18) acrescenta: excetuando os tipos primi-tivos ou ancestrais do gnero.De 1843 a 44, no Boston Journal of Nat. Cet. U. S. (t. IV, pg. 468), o pro-fessor Algemam exps com talento os argumentos pr e contra a hiptese do de-senvolvimento e da modificao da espcie; parecia pender para o lado da variabi-lidade.Os Vestiges of Creation apareceram em 1844. Na 10 edio, muito melho-rada (1853), o autor annimo diz (p. 155): A proposio na qual se pode pararaps numerosas consideraes, que as diversas sries de seres animados,desde os mais simples e mais antigos at aos mais elevados e mais recentes,so, pela providncia de Deus, o resultado de duas causas: primeiramente, deuma impulso comunicada s formas da vida; impulso esta que as arremessanum tempo dado, por via de gerao regular, atravs de todos os graus de organi-zao, at s Dicotiledneas e Vertebrados superiores; estes graus so, alm dis-so, pouco numerosos e geralmente marcados por intervalos no seu carter org-nico, o que torna muito difcil na prtica a apreciao das afinidades; secundaria-mente, de uma outra impulso respeitante s foras vitais, tendendo, na srie dasgeraes, a apropriar, modificando-as, as conformaes orgnicas s circunstn-cias exteriores, como a nutrio, a localidade e as influncias metericas; so es-sas as Adaptaes do telogo natural. O autor parece acreditar que a organiza-o progride por saltos, mas que os efeitos produzidos pelas condies de exis-tncia so graduais. Sustenta com bastante fora, baseando-se sobre razes ge-rais, que as espcies no so produes imutveis, mas no vejo como as duassupostas impulses possam explicar cientificamente as numerosas e admir-veis co-adaptaes que se notam na natureza; como, por exemplo, podemos to-mar nota da marcha que devia seguir o picano para se adaptar aos seus hbitosparticulares. O estilo brilhante e enrgico deste livro, ainda que apresentando nasprimeiras edies poucos conhecimentos exatos e uma grande falta de prudnciacientfica, assegurou-lhe logo um grande xito; e, em minha opinio, prestou servi- 9. 9os chamando a ateno para o assunto, combatendo os prejuzos e preparandoos espritos para a adoo de idias anlogas.Em 1846, o veterano da zoologia, M. J. dOmalius dHalloy, publicou (Bull.de lAcad. roy. de Bruxelles, vol. XIII, p. 581) uma excelente memria, ainda quebreve, na qual emite a opinio de que mais provvel que as espcies novas te-nham sido produzidas por descendncia com modificao do que criadas separa-damente; o autor tinha j exprimido esta opinio em 1831.Na sua obra Nature of Limbs, p. 86, o professor Owen escrevia em 1849:A idia arqutipo est encarnada no nosso planeta por manifestaes diversas,muito tempo antes da existncia das espcies animais de que so atualmente aexpresso. Mas, at agora, ignoramos inteiramente a que leis naturais ou a quecausas secundrias tm sido submetidas a sucesso regular e a progresso des-tes fenmenos orgnicos. No seu discurso na Associao Britnica, em 1858,fala (p. 51) do axioma da contnua potncia criadora, ou do destino preordenadodas coisas vivas. Mais adiante, a propsito da distribuio geogrfica, acrescen-ta: Estes fenmenos abalam a crena em que estvamos de que o aptrix daNova Zelndia e o tetras urogallus L. da Inglaterra tenham sido criaes distintasfeitas numa ilha e s para ela. til, alm disso, lembrar sempre que o zologoatribui o nome de criao ao processo sobre o qual nada se conhece. Desenvol-ve esta idia acrescentando que todas as vezes que um zologo cita exemplos,como o precedente, para provar uma criao distinta numa ilha e para ela, querdizer somente que no sabe como o tetras urogallus L. se encontra exclusivamen-te neste lugar, e que esta maneira de exprimir a sua ignorncia implica ao mesmotempo a crena numa grande causa criadora primitiva, qual a ave, assim comoas ilhas, devem a sua origem. Se ns relacionarmos as frases pronunciadas noseu discurso umas com as outras, parece que em 1858 o clebre naturalista noestava convencido que o aptrix e o tetras urogallus L. tenham aparecido pelaprimeira vez nos seus pases respectivos, sem que se possa explicar como e por-qu.Este discurso foi pronunciado aps a leitura da memria de M. Wallace eminha, sobre a origem das espcies da Sociedade Lineana. Quando da publica- 10. 10o da primeira edio da presente obra, fui, como muitos outros, to completa-mente enganado por expresses como a ao contnua do poder criador, quecoloquei o professor Owen, com outros paleontlogos, entre os partidrios convic-tos da imutabilidade da espcie; mas parecia-me que foi um grave erro da minhaparte (Anatomy of Vertebrates, vol. iii, p. 796). Nas precedentes edies da minhaobra conclu e mantenho ainda a minha concluso, segundo uma passagem quecomea (ibid., vol. i, p. 35), por estas palavras: Sem dvida a forma-tipo, etc.,que o professor Owen admitia a seleo natural como podendo ter contribudo emalguma coisa para a formao de novas espcies; mas parece-me, segundo umaoutra passagem (ibid., vol. iii, p. 798), que isto inexato e no demonstrado. Deitambm alguns extratos de uma correspondncia entre o professor Owen e o re-dator principal da London Review, que pareciam provar a este ltimo como a mimmesmo, que o professor Owen pretendia ter emitido antes de mim a teoria da se-leo natural. Tive uma grande surpresa e grande satisfao com esta notcia;mas, tanto quanto possvel compreender certas passagens recentemente publi-cadas (Anat. of Vertebrates, in, p. 798), estou cado ainda no erro total ou parcial-mente. Mas tranqilizo-me, vendo que outros, como eu, acham tambm difceis decompreender e conciliar entre si os trabalhos de controvrsia do professor Owen.Quanto ao simples enunciado do princpio da seleo natural, inteiramente indi-ferente que o professor Owen o tenha apresentado primeiro do que eu ou no,porque os dois, como prova este esboo histrico, temos, desde h muito, comopredecessores o Dr. Wells e M. Matthew.M. Isidore Geoffroy Saint-Hilaire, nas conferncias feitas em 1850 (resumi-das na Revue et Mag. de Zoologie, Janeiro 1851), expe, em breves termos, asrazes que lhe fizeram crer que os caracteres especficos so fixados para cadaespcie, enquanto se perpetuar no meio das mesmas circunstncias; e modificam-se se as condies ambientes tendem a mudar. Em resumo, a observao dosanimais selvagens mostra j a variabilidade limitada das espcies. As experinciassobre os animais selvagens tornados domsticos, e sobre os animais domsticosque voltaram ao estado selvagem, demonstram-na mais claramente ainda. Estasmesmas experincias provam, alm disso, que as diferenas produzidas podem 11. 11ser de valor genrico. Na sua Histoire Naturelle Gnrale (vol. 11, 1859, p. 430),desenvolve concluses anlogas.Uma circular recente afirma que desde 1851 (Dublin Medical Press, p. 322),o Dr. Freke emitiu a opinio de que todos os seres organizados derivam de umanica forma primitiva. As bases e o tratamento do assunto diferem totalmente dasminhas, e, como o Dr. Freke publicou em 1861 o seu ensaio sobre a Origem dasespcies por via de afinidade orgnica, seria SuPrfluo da minha parte dar umresumo qualquer do seu sistema.M. Herbert Spencer, numa memria (publicada pela vez primeira no Leader,Maro de 1852, e reproduzida nos seus Essays em 1858), estabeleceu, com umtalento e uma habilidade notveis, a comparao entre a teoria da criao e o de-senvolvimento dos seres orgnicos. Tira os argumentos da analogia das produ-es domsticas, das transformaes que sofrem os embries de muitas esp-cies, da dificuldade de distinguir espcies e variedades, e do princpio de gradaogeral; conclui que as espcies tm sofrido modificaes que atribui mudana decondies. O autor (1855) estudou tambm a psicologia partindo do princpio daaquisio gradual de cada aptido e de cada faculdade mental.Em 1852, M. Naudin, botnico distinto, num trabalho notvel sobre a origemdas espcies (Revue Horticole, p. 102, reproduzido em parte nos Nouvelles Archi-ves du Musum, vol. 1, pg. 171), declara que as espcies se formam do mesmomodo que as variedades cultivadas, o que atribui seleo exercida pelo homem.Mas no explica como atua a seleo no estado selvagem. Admite, como o deoHerbert, que as espcies na poca da sua apario eram mais plsticas do quehoje. Apia-se sobre o que ele chamava o princpio de finalidade, potncia miste-riosa, indeterminada, fatalidade para uns, para outros vontade providencial, de quea ao incessante sobre os seres vivos determina, em todas as pocas da exis-tncia do mundo, a forma, o volume e a durao de cada um deles, em razo doseu destino, na ordem das coisas de que faz parte. esta potncia que harmoniza cada membro no conjunto apropriando-o funo que deve desempenhar no organismo geral da natureza, funo que tem 12. 12para ele a sua razo de ser.3Um gelogo clebre, o conde Keyserling, em 1853 (Bull. de Ia Soc. Geolg.,2.1 srie, vol. x, pg. 357), sugeriu que, do mesmo modo que as novas doenas,causadas talvez por algum miasma, tm aparecido e se tm espalhado no mundo,da mesma forma grmenes de espcies existentes puderam ser, em certos pero-dos, quimicamente afetados por molculas ambientes de natureza particular, e darorigem a novas formas.No mesmo ano de 1853, o Dr. Schaaffhausen publicou uma excelente bro-chura (Verhandt. des Naturhist. Vereirs der Preuss. Rhein Lands, etc.), na qualexplica o desenvolvimento progressivo das formas orgnicas sobre a Terra. Julgaque numerosas espcies persistem h muito tempo, sendo modificadas algumassomente, e explica as diferenas atuais pela destruio das formas intermedirias.Assim as plantas e os animais vivos no esto separados das espcies atingidaspor novas criaes, mas devem considerar-se como seus descendentes por via degerao regular.M. Lecoq, botnico francs muito conhecido, nos seus tudes sur la Go-graphie Botanique, vol. i, p. 250, escreveu em 1854: V-se que os nossos estu-dos sobre a fixao ou variao da espcie nos conduzem diretamente s idiasemitidas por dois homens justamente clebres, Geoffroy Saint-Hilaire e Goethe.Vrias outras passagens esparsas na obra de M. Lecoq deixam algumas dvidassobre os limites que assinala s suas opinies sobre as modificaes das esp-cies.Nos seus Essays on the Unity of Worlds, 1855, o reverendo Baden Powelltratou magistralmente a filosofia da criao. No se pode demonstrar de uma ma-neira mais marcante como a apario de uma espcie nova um fenmeno re-3Parece resultar das citaes feitas em Untersuchungen ber die Entwickelungs-Geselze, deBronn, que Unger, botnico e paleontlogo distinto, tornou pblica, em 1852, a opinio de que asespcies sofreram um desenvolvimento e modificaes. DAlton exprimiu a mesma opinio em1821, na obra sobre os fsseis, na qual colaborou com Pander. Oken, na sua obra mstica Natur-Philosophie, sustentou opinies anlogas. Parece resultar dos ensinamentos contidos na obraSur lEspce, de Godron, que Bory Saint-Vicent, Burdach, Poiret et Pries admitiram todos a con-tinuidade da produo de novas espcies. Devo juntar que em 34 autores citados nesta notciahistrica, que admitem a modificao das espcies, e rejeitam os atos da criao isolados, h 27que escreveram sobre ramos especiais de histria natural e geologia. 13. 13gular e no casual, ou, segundo a expresso de sir John Herschell, um proces-so natural por oposio ao processo miraculoso.O terceiro volume do Journal of the Linnean Society, publicado em 1 de Ju-lho de 1858, contm algumas memrias de M. Wallace e minhas, nas quais, comoeu constato na introduo do presente volume, M. Wallace enuncia com muita cla-reza e preciso a teoria da seleo natural.Von Baer, to respeitado entre os zologos, exprimiu em 1859 (ver Prof.Rud. Wagner, Zoologisch-Anthropologische Untersuchungen, p. 51, 1861), a suaconvico, fundada sobretudo nas leis da distribuio geogrfica, que formas atu-almente distintas no mais alto grau so descendentes de um progenitor nico.Em Junho de 1859, o professor Huxley, numa conferncia perante a institu-io real sobre os tipos persistentes da vida animal, fez os seguintes reparos: difcil compreender a significao dos fatos desta natureza, se supusermos quecada espcie de animais, ou de plantas, ou cada tipo de organizao, foi formadoe colocado na Terra, a longos intervalos, por um ato distinto do poder criador; e necessrio tambm lembrar que uma suposio tal tambm pouco apoiada pelatradio ou revelao, que muitssimo oposta analogia geral da natureza. Se,por outra parte, ns considerarmos os Tipos persistentes do ponto de vista da hi-ptese de as espcies, em cada poca, serem o resultado da modificao gradualdas espcies preexistentes, hiptese que, posto que no provada, e tristementecomprometida por alguns dos seus aderentes, ainda a nica a que a fisiologiapresta um apoio favorvel, a existncia destes tipos persistentes pareceria de-monstrar que a extenso das modificaes que os seres vivos devem ter duranteos tempos geolgicos fraca relativamente srie total de transformaes pelasquais tm passado.Em Dezembro de 1859, o Dr. Hooker publicou a sua Introduction to theAustralian Flora; na primeira parte desta magnfica obra, admite a verdade da des-cendncia e das modificaes das espcies, e apia esta doutrina com grandenmero de observaes originais.A primeira edio inglesa da presente obra foi publicada a 24 de Novembrode 1859, e a segunda a 7 de Janeiro de 1860. 14. 14INTRODUOAs relaes geolgicas que existem entre a fauna atual e a fauna extinta daAmrica meridional, assim como certos fatos relativos distribuio dos seres or-ganizados que povoam este continente, impressionaram-me profundamentequando da minha viagem a bordo do navio Beagle,4na qualidade de naturalista.Estes fatos, como se ver nos captulos subseqentes deste volume, pare-cem lanar alguma luz sobre a origem das espcies - mistrio dos mistrios - paraempregar a expresso de um dos maiores filsofos. Na minha volta a Inglaterra,em 1837, julguei eu que acumulando pacientemente todos os fatos relativos a esteassunto, e examinando-os sob todos os pontos de vista, poderia talvez chegar aelucidar esta questo. Depois de cinco anos de um trabalho pertinaz, redigi algu-mas notas; em seguida, em 1844, resumi estas notas em forma de memria, ondeindicava os resultados que me pareciam oferecer algum grau de probabilidade;depois desta poca, tenho constantemente trabalhado para o mesmo fim. Escu-sar-me- o leitor, assim o espero, de entrar nestas mincias pessoais; e se o fao, para provar que no tomei deciso alguma menos pensada.A minha obra est atualmente (1859) quase completa. Ser-me-o, contudo,necessrios alguns anos ainda para a terminar, e, como a minha sade est longede ser boa, os meus amigos tm-me aconselhado a publicar o resumo que faz oobjeto deste volume. Uma outra razo me tem decidido por completo: M. Wallace,que estuda atualmente a histria natural no arquiplago malaio, chegou a conclu-ses quase idnticas s minhas sobre a origem das espcies. Em 1858, este s-bio naturalista enviou-me uma memria a este respeito, pedindo-me para a comu-nicar a sir Charles Lyell, que a enviou Sociedade Lineana; a memria de M. Wal-lace apareceu no III volume do jornal desta sociedade. Sir Charles Lyell e o Dr.Hooker, que esto ao corrente dos meus trabalhos - o Dr. Hooker leu o extrato domeu manuscrito feito em 1844-aconselharam-me a publicar, ao mesmo tempo emque a memria de M. Wallace, alguns extratos das minhas notas manuscritas.4A relao da viagem de M. Darwin foi recentemente publicada em francs com o titulo de: Via-gem de um naturalista volta da Terra, 1 vol. in-8., Paris, Reinwald. 15. 15A memria que faz o objeto do presente volume necessariamente imper-feita. Ser-me- impossvel referir-me a todas as autoridades a quem atribuo certosfatos, mas espero que o leitor confiar na minha exatido. Alguns erros poderopassar, sem dvida, no meu trabalho, posto que eu tenha tido o mximo cuidadoem apoiar-me somente em trabalhos de primeira ordem. Demais, eu deveria limi-tar-me a indicar as concluses gerais a que cheguei, citando apenas alguns e-xemplos, que, julgo eu, bastariam na maior parte dos casos. Ningum, melhor doque eu, compreende a necessidade de publicar mais tarde minuciosamente todosos fatos que servem de base s minhas concluses; ser este o objeto de umaoutra obra. Isto tanto mais necessrio quanto, sobre quase todos os pontos, po-dem invocar-se fatos, que, primeira vista, parecem tender para concluses abso-lutamente contrrias quelas que defendo. Ora, no se pode chegar a um resulta-do satisfatrio a no ser pelo exame dos dois lados da questo e pela discussodos fatos e dos argumentos; isto coisa impossvel nesta obra.Lamento muito que a falta de espao me impea de reconhecer o auxliogeneroso que me prestaram muitos naturalistas, dos quais alguns me so pesso-almente desconhecidos. No posso, contudo, deixar passar esta ocasio sem ex-primir o meu profundo reconhecimento ao Dr. Hooker, que, durante estes quinzeltimos anos, ps minha inteira disposio os seus tesouros de cincia e o seuexcelente critrio. Compreende-se facilmente que o naturalista que se entrega aoestudo da origem das espcies e que observa as afinidades mtuas dos seresorganizados, as suas relaes embriolgicas, a sua distribuio geogrfica, a suasucesso geolgica e outros fatos anlogos, chegue concluso de que as esp-cies no foram criadas independentemente umas das outras, mas que, como asvariedades, derivam de outras espcies. Todavia, admitindo mesmo que esta con-cluso seja bem estabelecida, seria pouco satisfatria at que se pudesse provarcomo as inumerveis espcies, habitando a Terra, foram modificadas de maneiraa adquirir esta perfeio de forma e co-adaptao que excita por to justo ttulo anossa admirao. Os naturalistas assinalam, como nicas causas possveis svariaes, as condies exteriores, tais como o clima, a alimentao, etc. Podeisto ser verdade, num sentido muito limitado, como ns veremos mais tarde; mas 16. 16seria absurdo atribuir a simples causas exteriores a conformao do picano5, porexemplo, de que as patas, a cauda, o bico e a lngua esto admiravelmente adap-tadas para ir agarrar os insetos debaixo da casca das rvores. Seria igualmenteabsurdo explicar a conformao do visco e as suas relaes com muitos seresorganizados distintos pelos nicos efeitos das condies exteriores, do hbito, ouda vontade da prpria planta, quando se pensa que este parasita tira a sua nutri-o de certas rvores, que produzem gros que certas aves devem transportar, eque d flores unissexuadas, o que necessita a interveno de certos insetos paraconduzir o plen de uma flor a outra., pois, da mais alta importncia elucidar quais so os meios de modifica-o e de co-adaptao. A princpio, pareceu-me provvel que o exame atento dosanimais domsticos e das plantas cultivadas devia oferecer o campo mais propcioa estudos que explicassem este obscuro problema. No me enganei; reconhecilogo, com efeito, que os nossos conhecimentos, por mais imperfeitos que sejamsobre as variaes no estado domstico, nos fornecem sempre a explicao maissimples e menos sujeita a erro. Seja-me pois permitido juntar que, na minha con-vico, estes estudos tm a mxima importncia e que so ordinariamente muitodesprezados pelos naturalistas.Estas consideraes levam-me a consagrar o primeiro captulo desta obra ao es-tudo das variaes no estado domstico. A veremos que muitas das modificaeshereditrias so pelo menos possveis; e, o que igualmente importante, oumesmo mais importante ainda, veremos que influncia o homem exerce acumu-lando, por seleo, ligeiras variaes sucessivas. Estudarei em seguida a variabi-lidade das espcies no estado selvagem, mas ver-me-ei naturalmente forado atratar este assunto a largos traos; no se poderia, com efeito, trat-lo completa-mente a no ser citando longa srie de fatos. Em todo o caso, discutiremos aindaassim quais so as circunstncias mais favorveis variao. No captulo seguin-te consideraremos a luta pela existncia entre os seres organizados em todo o5designao comum a diversas pequenas aves passeriformes, da famlia dos lanideos, de plu-magem geralmente pouco vistosa, bico forte e adunco e cauda longa (alimentam-se de insetos epequenos vertebrados e podem usar pequenos espinhos na captura das presas). 17. 17mundo, luta que deve inevitavelmente fluir da progresso geomtrica do seu au-mento em nmero. a doutrina de Malthus aplicada a todo o reino animal e a todoo reino vegetal. Como nascem muitos mais indivduos de cada espcie, que nopodem subsistir; como, por conseqncia, a luta pela existncia se renova a cadainstante, segue-se que todo o ser que varia, ainda que pouco, de maneira a tornar-se-lhe aproveitvel tal variao, tem maior probabilidade de sobreviver, este ser tambm objeto de uma seleo natural. Em virtude do princpio to poderoso dahereditariedade, toda a variedade objeto da seleo tender a propagar a sua no-va forma modificada.Tratarei com mais mincias, no quarto captulo, este ponto fundamental daseleo natural. Veremos ento que a seleo natural causa quase inevitavelmen-te uma extino considervel das formas menos bem organizadas e conduz aoque se chama a divergncia dos caracteres. No captulo seguinte, indicarei as leiscomplexas e pouco conhecidas da variao. Nos cinco captulos subseqentes,discutirei as dificuldades mais srias que parecem opor-se adoo desta teoria;isto , primeiramente, as dificuldades de transio, ou, por outros termos, comoum ser simples, ou um simples organismo, pode modificar-se e aperfeioar-se,para tornar-se um ser altamente desenvolvido, ou um organismo altamente consti-tudo; em segundo lugar, o instinto, ou o poder intelectual dos animais; terceiro, ahibridade, ou a esterilidade das espcies e a fecundidade das variedades quandose cruzam; e, em quarto lugar, a imperfeio dos documentos geolgicos. No ca-ptulo seguinte examinarei a sucesso geolgica dos seres atravs dos tempos;no duodcimo e dcimo terceiro captulos, a sua distribuio geogrfica atravs doespao; no dcimo quarto, a sua classificao ou afinidades mtuas, quer no es-tado de completo desenvolvimento, quer no estado embrionrio. Consagrarei oltimo captulo a uma breve recapitulao da obra inteira e a algumas notas finais.Ningum se pode admirar que haja ainda tantos pontos obscuros relativa-mente origem das espcies e das variedades, se refletirmos na nossa profundaignorncia sobre tudo o que se prende com as relaes recprocas dos inmerosseres que vivem em redor de ns. Quem pode dizer a razo por que tal espcie 18. 18mais numerosa e mais espalhada, quando outra espcie vizinha muito rara etem um habitat muito restrito? Estas relaes tm, contudo, a mais alta importn-cia, porque delas que dependem a prosperidade atual e, creio firmemente, osfuturos progressos e a modificao de todos os habitantes da Terra. Conhecemosainda bem pouco das relaes recprocas dos inmeros habitantes da Terra du-rante os longos perodos geolgicos passados.Ora, posto que numerosos pontos sejam ainda muito obscuros, se bem quedevem ficar, sem dvida, inexplicveis por bastante tempo ainda, vejo-me, contu-do, aps os estudos mais profundos e uma apreciao fria e imparcial, forado asustentar que a opinio defendida at a pouco pela maior parte dos naturalistas,opinio que eu prprio partilhei, isto , que cada espcie foi objeto de uma criaoindependente, absolutamente errnea. Estou plenamente convencido que asespcies no so imutveis; estou convencido que as espcies que pertencem aoque chamamos o mesmo gnero derivam diretamente de qualquer outra espcieordinariamente distinta, do mesmo modo que as variedades reconhecidas de umaespcie, seja qual for, derivam diretamente desta espcie; estou convencido, en-fim, que a seleo natural tem desempenhado o principal papel na modificaodas espcies, posto que outros agentes tenham nela partilhado igualmente.* * * * * * * * * * * 19. 19CAPITULO IVariao das espcies no estado domstico- Causas da variabilidade.- Efeitos do hbito.- Efeito do uso ou no uso dos rgos.- Variao por correlao.- Hereditariedade.- Caracteres das variedades domsticas.- Dificuldade em distinguir as variedades e as espcies.- As nossas variedades domsticas derivam de uma ou muitas espcies.- Pombos domsticos, suas diferenas e origem.- A seleo aplicada desde h muito, seus efeitos.- Seleo metdica e inconsciente.- Origem desconhecida dos nossos animais domsticos.- Circunstncias favorveis ao exerccio da seleo pelo homem.CAUSAS DA VARIABILIDADEQuando se comparam os indivduos pertencentes mesma variedade ousubvariedade das nossas plantas j de h muito cultivadas e dos nossos animaisdomsticos mais antigos, logo se nota que ordinariamente diferem mais uns dosoutros que os indivduos pertencentes a uma espcie ou a uma variedade qual-quer no estado selvagem. Ora, se pensarmos na imensa diversidade das nossasplantas cultivadas e dos animais domsticos, que tm variado em todos os tem-pos, logo que sejam expostos a climas e tratamentos os mais diversos, chegamosa concluir que esta grande variabilidade provm de que as nossas produes do-msticas foram produzidas em condies de vida menos uniformes, ou mesmo umtanto diferentes daquelas a que a espcie-me foi submetida no estado selvagem.H tambm algum tanto de exato na opinio sustentada por Andrew Kniglit, isto ,que a variabilidade pode em parte ter origem no excesso de nutrio. Parece evi-dente que os seres organizados devem, durante muitas geraes, ser expostos anovas condies de existncia, para que se produza neles qualquer variao a-precivel; mas tambm evidente, que, desde que um organismo comeou a va- 20. 20riar, continua ordinariamente a faz-lo durante numerosas geraes. No se pode-ria citar exemplo algum de um organismo varivel que tenha cessado de variar noestado domstico. As nossas plantas h longo tempo cultivadas, tais como o trigo,ainda produzem novas variedades; os animais reduzidos de h muito ao estadodomstico so ainda susceptveis de modificaes ou aperfeioamentos muitorpidos.De modo que posso julgar, depois de ter por muito tempo estudado esteassunto, que as condies de vida parecem atuar de duas maneiras distintas: dire-tamente sobre o organismo inteiro, ou sobre certas partes somente, e indiretamen-te afetando o sistema reprodutor. Quanto ao direta, devemos lembrar-nos que,em todos os casos, como o fez ultimamente notar o professor Weismann, e comoeu incidentalmente demonstrei na minha obra sobre a Variation ltat Domesti-que,6devemos lembrarmos, disse eu, que essa ao est sujeita a dois fatores:natureza do organismo e natureza das condies.O primeiro destes fatores parece ser muito mais importante, porque, tantoquanto o podemos julgar, variaes quase semelhantes se produzem algumasvezes em condies diferentes, e, por outro lado, variaes diferentes se produ-zem em condies que parecem quase uniformes. Os efeitos sobre a descendn-cia so definidos ou indefinidos. Podem considerar-se como definidos quando to-dos, ou quase todos os descendentes de indivduos submetidos a certas condi-es de existncia durante muitas geraes, se modificam da mesma maneira. extremamente difcil especificar a extenso das alteraes que tm sido definiti-vamente produzidas deste modo. Todavia, no se pode ter dvida relativamentes numerosas modificaes muito ligeiras, tais como: modificaes no talhe pro-venientes da quantidade de nutrio; modificaes na cor provenientes da nature-za da alimentao, modificaes na espessura da pele e suas produes proveni-entes da natureza do clima, etc.Cada uma das variaes indefinidas que encontramos na plumagem dasaves das nossas capoeiras deve ser o resultado de uma causa eficaz; portanto, sea mesma causa atuasse uniformemente, durante uma longa srie de geraes,6De la Variation des Animaux et des Plantes ltat Domestique. Paris, Reinwald. 21. 21sobre um grande nmero de indivduos, todos se modificavam provavelmente damesma maneira. Fatos tais como as excrescncias extraordinrias e complicadas,conseqncia invarivel do depsito de uma gota microscpica de veneno forne-cida pelo cnipe7, provam-nos que modificaes singulares podem, entre as plan-tas, resultar de uma alterao qumica na natureza da seiva.A mudana das condies produz muito mais vezes uma variabilidade inde-finida do que definida, e a primeira goza provavelmente de um papel muito maisimportante que a segunda na formao das nossas raas domsticas. Esta varia-bilidade indefinida traduz-se por inmeras pequenas particularidades que se nopodem atribuir, em virtude da hereditariedade, nem ao pai, nem me, nem a ou-tro parente afastado. Diferenas considerveis aparecem mesmo por vezes nosfilhos da mesma ninhada, ou em plantas nascidas de gros provenientes da mes-ma cpsula. A longos intervalos, vem-se surgir desvios de formao fortementepronunciados para merecer a qualificao de monstruosidades; estes desvios afe-tam alguns indivduos, em meio de milhes de outros nascidos no mesmo pas ealimentados quase da mesma maneira; todavia, no pode estabelecer-se umalinha absoluta de limite entre as monstruosidades e as simples variaes. Podemconsiderar-se como efeitos indefinidos das condies de existncia, sobre cadaorganismo individualmente, todas estas alteraes de conformao, quer sejampouco, quer muito pronunciadas, que se manifestam num grande nmero de indi-vduos vivendo em conjunto. Poderiam comparar-se estes efeitos indefinidos aosefeitos de um resfriamento, que afeta diferentes pessoas de modos indefinidos,segundo o seu estado de sade ou a sua constituio, traduzindo-se nuns porbronquite, noutros por coriza, neste pelo reumatismo, naquele pela inflamao dediversos rgos.Passemos agora ao que eu chamei ao indireta da alterao das condi-es de existncia, isto , as alteraes provenientes de modificaes que afetemo sistema reprodutor. Duas causas principais nos autorizam a admitir a existnciadestas variaes: a extrema sensibilidade do sistema reprodutor para toda a alte-7casta de moscas que constituiu a quarta praga bblica do Egito 22. 22rao nas condies exteriores; a grande analogia, provada por Klreuter e outrosnaturalistas, entre a variabilidade resultante do cruzamento de espcies distintas ea que se pode observar nas plantas e nos animais criados em condies novas ouartificiais. Um grande nmero de fatos testemunham a excessiva sensibilidade dosistema reprodutor para esta alterao, mesmo insignificante, nas condies am-bientes. Nada mais fcil que domesticar um animal; nada, porm, mais difcil quelev-lo a reproduzir-se no cativeiro, mesmo que a unio dos dois sexos se efetuefacilmente. Quantos animais se no reproduzem, posto que deixados quase emliberdade no seu pas natal! Atribui-se ordinariamente este fato, ainda que semrazo, a uma corrupo dos instintos. Muitas plantas cultivadas rebentam comtodo o vigor, e, contudo, produzem raramente gros, ou at nada produzem. Tem-se descoberto, em alguns casos, que uma alterao insignificante, um pouco degua a mais ou a menos por exemplo, numa poca particular do crescimento, ar-rasta ou no na planta a produo de gros. No posso entrar aqui nas minciasdos fatos que recolhi e publiquei noutra parte a respeito deste curioso assunto;todavia, para mostrar como so singulares as leis que regem a reproduo dosanimais cativos, posso verificar que os animais carnvoros, mesmo os provenien-tes dos pases tropicais, se reproduzem com bastante facilidade nos nossos pa-ses, salvo, contudo, os animais pertencentes famlia dos plantgrados; assimcomo tambm posso notar que as aves carnvoras no pem quase sempre ovosfecundos. Muitas plantas exticas produzem apenas um plen sem valor como odas hbridas mais estreis. Vemos, pois, de um lado, animais e plantas reduzidasao estado domstico reproduzirem-se facilmente no estado de cativeiro, posto quesejam muitas vezes raquticas e doentes; e por outro lado, indivduos, tirados mui-to novos s suas florestas e suportando perfeitamente o cativeiro, admiravelmentedomesticados, na fora da idade, e sadios (eu poderia citar numerosos exemplos),de que o sistema reprodutor, sendo seriamente comprometido por causas desco-nhecidas, cessou de funcionar. Em presena destas duas ordens de fatos, paraestranhar que o sistema reprodutor atue to irregularmente quando funciona nocativeiro, e que os descendentes sejam um pouco diferentes dos pais? Posso a-crescentar que, da mesma forma que certos animais se reproduzem facilmente 23. 23nas condies menos naturais (por exemplo, os coelhos e os fures encerradosem gaiolas), o que prova que o seu sistema reprodutor no foi afetado pelo cativei-ro; assim, tambm, certos animais e certas plantas suportam a domesticidade ou acultura sem variar muito.Alguns naturalistas sustentam que todas as variaes esto ligadas ao atoda reproduo sexual; certamente um erro. Citei, com efeito, noutra obra, umaextensa lista de plantas que os jardineiros chamam plantas loucas, isto , plantasnas quais se v surgir de repente um rebento apresentando qualquer carter novo,e por vezes diferente por completo dos outros rebentos da mesma planta. Estasvariaes dos gomos, se pode empregar-se esta expresso, podem propagar-sepor seu turno por enxerto ou mergulhia, etc, ou algumas vezes mesmo por semen-teira. Tais variaes se reproduzem raras vezes no estado selvagem; so, porm,bastante freqentes nas plantas cultivadas. Podemos concluir, pois, que a nature-za do organismo desempenha o papel principal na produo da forma particularde cada variao, e que a natureza das condies lhe est subordinada; com efei-to, vemos muitas vezes na mesma rvore, submetida a condies uniformes, ums gomo, entre milhares de outros produzidos anualmente, apresentar de improvi-so caracteres novos; vemos, demais, renovos pertencendo a rvores distintas,colocadas em condies diferentes, produzirem quase a mesma variedade -rebentos de pessegueiros, por exemplo, produzirem pssegos vermelhos, e re-bentos de roseira comum produzirem rosas de musgo.A natureza das condies no tem, pois, talvez mais importncia neste ca-so do que a natureza da fasca, comunicando o fogo a uma massa de combust-vel, para determinar a natureza da chama.EFEITOS DOS HBITOS E DO USO OU NO USO DAS PARTES; VARIAO PORCORRELAO; HEREDITARIEDADEA mudana dos hbitos produz efeitos hereditrios; poderia citar-se, porexemplo, a poca da florao das plantas transportadas de um clima para outro. 24. 24Nos animais, o uso ou no uso das partes tem uma influncia mais considervelainda. Assim, proporcionalmente ao resto do esqueleto, os ossos da asa pesammenos e os ossos da coxa pesam mais no canrio domstico que no canrio sel-vagem. Ora, pode incontestavelmente atribuir-se esta alterao a que o canriodomstico voa menos e marcha mais que o canrio selvagem. Podemos aindacitar, como um dos efeitos do uso das partes, o desenvolvimento considervel,transmissvel por hereditariedade, das mamas das vacas e das cabras nos pasesem que h o hbito de ordenhar estes animais, comparativamente ao estado des-ses rgos nos outros pases. Todos os animais domsticos tm, em alguns pa-ses, as orelhas pendentes; atribui-se esta particularidade ao fato de estes animais,tendo menos causas de alarme, acabarem por se no servir dos msculos da ore-lha, e esta opinio parece bem fundada.A variabilidade est submetida a muitas leis; conhecem-se imperfeitamentealgumas, que em breve discutirei. Desejo ocupar-me somente aqui da variaopor correlao. Alteraes importantes que se produzem no embrio, ou na larva,trazem quase sempre alteraes anlogas no animal adulto. Nas monstruosida-des, os efeitos de correlao entre as partes completamente distintas so muitocuriosos; Isidore Geoffroy de Saint-Hilaire cita exemplos numerosos na sua grandeobra sobre este assunto. Os tratadores admitem que, quando os membros socompridos, a cabea o tambm quase sempre.Alguns casos de correlao so extremamente singulares: assim, os gatoscompletamente brancos, e que tm os olhos azuis, so ordinariamente surdos;todavia, M. Talt provou recentemente que o fato limitado aos machos. Certascores e certas particularidades constitucionais vo ordinariamente em conjunto; eupoderia citar muitos exemplos notveis a este respeito nos animais e nas plantas.Segundo um grande nmero de fatos recolhidos por Heusinger, parece que certasplantas incomodam os carneiros e os porcos brancos, enquanto que os indivduosde cor carregada delas se nutrem impunemente. O professor Wyman comunicou-me recentemente uma excelente prova do que digo. Perguntou a alguns lavrado-res da Virgnia a razo por que s tinham porcos de cor negra; e eles responde-ram que os porcos comiam a raiz do lachnanthes, que cora os ossos de rosa e 25. 25que lhes faz cair os cascos; isto produz-se em todas as variedades, exceto navariedade negra. Um deles ajuntou: Escolhemos, para os tratar, todos os indiv-duos negros de uma ninhada, porque so os nicos que tm condies para vi-ver. Os ces desprovidos de plos tm a dentio imperfeita; diz-se que os ani-mais de pelo longo e spero so predispostos a ter os cornos longos e numero-sos; os pombos de patas emplumadas tm membranas entre os dedos anteriores;os pombos de bico curto tm os ps pequenos; os pombos de bico longo tm osps grandes. Resulta, pois, que o homem, continuando sempre a escolher, e, porconseguinte, a desenvolver uma particularidade qualquer, modifica, sem inteno,outras partes do organismo, em virtude das leis misteriosas da correlao.As leis diversas, absolutamente ignoradas ou imperfeitamente compreendi-das, que regem a variao, tm efeitos extremamente complexos. interessanteestudar os diferentes tratados, relativos a algumas das nossas plantas cultivadasde h muito, tais como o jacinto, a batata, ou mesmo a dlia, etc.; realmente pa-ra admirar ver por que inmeros pontos de conformao e de constituio as vari-edades e subvariedades diferem ligeiramente entre si. A sua organizao parecetornar-se plstica por completo e afastar-se ligeiramente da do tipo original.Toda a variao no hereditria sem interesse para ns, mas o nmero ea diversidade dos desvios de conformao transmissveis por hereditariedade,quer sejam insignificantes, quer tenham uma importncia fisiolgica considervel,so quase infinitos. A melhor obra e mais completa que temos sobre o assunto ado Dr. Prosper Lucas. Nenhum tratador ps em dvida a grande energia das ten-dncias hereditrias; todos tm por axioma fundamental que o semelhante produzo semelhante, e apenas alguns tericos pem em dvida o valor deste princpio.Quando uma diviso de estrutura se reproduz muitas vezes, quando a procuramosno pai e no filho, muito difcil dizer se este desvio provm ou no de alguma coi-sa que atuou tanto num como noutro. Mas, por outra parte, quando entre indiv-duos, evidentemente expostos s mesmas condies, qualquer desvio muito raro,devido a algum concurso extraordinrio de circunstncias, aparece num s indiv-duo, em meio de milhes de outros que no so afetados, e vemos aparecer estedesvio no descendente, a simples teoria das probabilidades fora-nos quase a 26. 26atribuir esta apario hereditariedade. Quem no tem ouvido falar dos casos dealbinismo, de pele espinhosa, de pele felpuda, etc, hereditrios em muitos mem-bros de uma mesma famlia? Ora, se os desvios raros e extraordinrios podemrealmente transmitir-se por hereditariedade, com mais forte razo se pode susten-tar que desvios menos extraordinrios e mais comuns podem igualmente transmi-tir-se. A melhor maneira de resumir a questo seria talvez considerar que, em re-gra geral, todo o carter, qualquer que seja, se transmite por hereditariedade eque a no transmisso exceo.As leis que regulam a hereditariedade so pela maior parte desconhecidas.Qual a razo porque, por exemplo, uma mesma particularidade, aparecendo emdiversos indivduos da mesma espcie ou espcies diferentes, se transmite algu-mas vezes e outras se no transmite por hereditariedade? Porque que certoscaracteres do av ou da av, ou de antepassados mais distantes, reaparecem noindivduo? Porque que uma particularidade se transmite muitas vezes de umsexo, quer aos dois sexos, quer a um s, mas mais comumente a um s, aindaque no exclusivamente ao sexo semelhante? As particularidades que aparecemnos machos das nossas espcies domsticas transmitem-se muitas vezes, querexclusivamente, quer num grau muito mais considervel no macho s; ora, istoum fato que tem extraordinria importncia para ns. Uma regra muito mais impor-tante e que sofre, creio eu, poucas excees, que em qualquer perodo da vidaque uma particularidade aparea de princpio, tende a reaparecer nos descenden-tes numa idade correspondente, algumas vezes mesmo, um pouco mais cedo. Emmuitos casos, no pode ser de outra maneira; com efeito, as particularidades he-reditrias que apresentam os cornos do grande touro s podem manifestar-se nosseus descendentes na idade adulta pouco mais ou menos; as particularidades queapresentam os bichos-da-seda no aparecem tambm a no ser na idade corres-pondente em que o bicho existe sob a forma de larva ou crislida. Mas as doenashereditrias e alguns outros fatos levam-me a crer que esta regra suscetvel demaior extenso; com efeito, ainda que no haja razo aparente para que uma par-ticularidade reaparea numa idade determinada, tende contudo a representar-seno descendente da mesma idade que o antepassado. Esta regra parece-me ter 27. 27um alto valor para explicar as leis da embriologia. As presentes notas s se apli-cam, naturalmente, primeira apario da particularidade, e no causa primriaque pode ter atuado sobre os vulos ou sobre o elemento macho; assim, no des-cendente de uma vaca desarmada e de um touro de longos cornos, o desenvolvi-mento dos mesmos, posto que se manifeste somente muito tarde, evidentemen-te devido influncia do elemento macho.Visto que aludi ao regresso dos caracteres primitivos, posso agora tratar deuma observao feita muitas vezes pelos naturalistas; isto , que as nossas varie-dades domsticas, voltando vida selvagem, retomam gradualmente, mas invari-avelmente, os caracteres do tipo original. Tem-se concludo deste fato que se nopode tirar do estudo das raas domsticas qualquer deduo aplicvel ao conhe-cimento das espcies selvagens. Em vo procuro descobrir em que fatos decisi-vos se pode apoiar esta assero to freqentemente e to ardilosamente reno-vada; seria muito difcil, com efeito, provar-lhe a exatido, porque podemos afir-mar, sem receio de nos enganarmos, que a maior parte das nossas variedadesdomsticas, as mais fortemente caracterizadas, no poderiam viver no estado sel-vagem. Em muitos casos, no sabemos mesmo qual a sua origem primitiva; -nos, pois, quase impossvel dizer se o regresso a esta origem mais ou menosperfeito. Alm disso, seria indispensvel, para impedir os efeitos do cruzamento,que uma nica variedade fosse posta em liberdade. Contudo, como certo que asnossas variedades podem acidentalmente regressar ao tipo ancestral por algunsdos seus caracteres, parece-me bastante provvel que, se consegussemos che-gar a aclimatar, ou mesmo a cultivar durante muitas geraes, as diferentes raasde couve, por exemplo, num solo muito pobre (neste caso, todavia, seria necess-rio atribuir qualquer influncia ao definida da pobreza do solo), voltariam, maisou menos completamente, ao tipo selvagem primitivo. Que a experincia desseresultado ou no, isso pouca importncia tem do ponto de vista da nossa argu-mentao. porque as condies de existncia seriam completamente modificadaspela prpria experincia. Se pudesse demonstrar-se que as nossas variedadesdomsticas apresentam uma grande tendncia ao regresso, isto , se pudesseestabelecer-se que tendem a perder os caracteres adquiridos, quando mesmo fi- 28. 28quem submetidas s mesmas condies e sejam mantidas em nmero consider-vel, de maneira tal que os cruzamentos pudessem parar, confundindo-os, os pe-quenos desvios de conformao, reconheo eu, neste caso, que no poderamosconcluir das variedades domsticas para as espcies. Mas esta maneira de verno encontra prova alguma em seu favor. Afirmar que no poderamos perpetuaros nossos cavalos de tiro e os cavalos de corrida, o nosso boi de longos e de cur-tos cornos, as nossas aves de capoeira de raas diversas, os nossos legumes,durante um nmero infinito de geraes, seria contrrio ao que nos ensina a expe-rincia de todos os dias.CARACTERES DAS VARIEDADES DOMSTICAS; DIFICULDADE DE DISTINGUIRENTRE AS VARIEDADES E AS ESPCIES; ORIGEM DAS VARIEDADES DOMSTI-CAS ATRIBUIDA A UMA OU A MUITAS ESPCIESQuando examinamos as variedades hereditrias ou as raas dos nossosanimais domsticos e plantas cultivadas e as comparamos s espcies muito pr-ximas, notamos ordinariamente, como j dissemos, em cada raa domstica, ca-racteres menos uniformes que nas espcies verdadeiras. As raas domsticasapresentam freqentemente um carter um tanto monstruoso; entendo por issoque, posto que diferentes umas das outras e das espcies vizinhas do mesmo g-nero por alguns leves caracteres, diferem muitas vezes em alto grau por um pontoespecial, quer as comparemos umas s outras, quer sobretudo as comparemos espcie selvagem de que mais se aproximam. Alm disto (e salvo a fecundidadeperfeita das variedades cruzadas entre si, assunto que discutiremos mais tarde),as raas domsticas da mesma espcie diferem entre si da mesma maneira queas espcies vizinhas do mesmo gnero no estado selvagem; mas as diferenas,na maior parte dos casos, so menos considerveis. necessrio admitir que esteponto est provado, porque julgadores competentes salientam que as raas do-msticas de muitos animais e de muitas plantas derivam de espcies originais dis-tintas, enquanto que outros, no menos competentes, as consideram apenas co-mo simples variedades. Ora, se existisse uma distino bem ntida entre as raasdomsticas e as espcies, esta dvida no se apresentaria to freqentemente. 29. 29Tem-se repetido muitas vezes que as raas domsticas no diferem umas dasoutras por caracteres de valor genrico. Pode demonstrar-se que esta asserono exata; todavia, os naturalistas tm opinies muito diferentes quanto ao queconstitui um carter genrico, e, por conseguinte, todas as apreciaes atuais so-bre este ponto so puramente empricas. Quando eu explicar a origem do gneronatural, ver-se- que no devemos de modo algum esperar encontrar nas raasdomsticas diferenas de ordem genrica.Estamos reduzidos a hipteses desde que tentamos avaliar o valor das di-ferenas de conformao que separam as nossas raas domsticas mais vizinhas;no sabemos, com efeito, se elas derivam de uma ou muitas espcies mes. Seri-a, portanto, um ponto muito interessante a elucidar. Se, por exemplo, pudesseprovar-se que o Galgo, o Sabujo, o Caador, o Espanhol e o Buldogue, animaiscuja raa, como sabemos, se propaga to puramente, derivam todos de umamesma espcie, eStvamos evidentemente autorizados a duvidar da imutabilidadede grande nmero de espcies selvagens estreitamente ligadas, a das raposaspor exemplo, que habitam as diversas partes do globo. No creio, como veremosem breve, que a soma das diferenas, que constatamos entre as nossas diversasraas de ces, se tenha produzido inteiramente no estado de domesticidade; julgo,ao contrrio, que uma parte destas diferenas provm da descendncia de esp-cies distintas. Apesar das raas muito caractersticas de algumas outras espciesdomsticas, h fortes presunes, ou mesmo provas absolutas de que descendemtodas de uma origem selvagem comum.Tem-se pretendido muitas vezes que, para os reduzir domesticidade, ohomem escolheu animais e plantas que apresentam uma tendncia inerente ex-cepcional variao, e que possuam a faculdade de suportar os mais diferentesclimas. No contesto que estas aptides tenham aumentado muito o valor da mai-or parte dos nossos produtos domsticos; mas como poderia um selvagem saber,quando aprisionou um animal, se esse animal era suscetvel de variar nas gera-es futuras e suportar as mudanas de clima? Acaso a fraca variabilidade do ju-mento e do pato, a pouca disposio da rena para o calor ou do camelo para ofrio, impediram a sua domesticao? 30. 30Estou convencido de que, se se tomassem no estado selvagem animais eplantas em nmero igual ao dos nossos produtos domsticos e pertencendo a umgrande nmero de classes e pases, e se se fizessem reproduzir no estado do-mstico, durante um nmero igual de geraes, variariam em mdia tanto comotm variado as espcies mes das nossas raas domsticas atuais. impossvel decidir, com respeito maior parte das nossas plantas hmais tempo cultivadas e dos animais reduzidos h longos sculos domesticida-de, se derivam de uma ou mais espcies selvagens. O argumento principal daque-les que crem na origem mltipla dos animais domsticos repousa sobre o fato deencontrarmos, desde os tempos mais remotos, nos monumentos do Egito e nashabitaes lacustres da Sua, uma grande diversidade de raas. Muitas delastm uma semelhana marcante, ou so mesmo idnticas com as que existem ho-je. Mas isto s faz recuar a origem da civilizao, e prova que os animais foramreduzidos domesticidade num perodo muito anterior ao que julgamos presente-mente. Os habitantes das cidades lacustres da Sua cultivavam muitas espciesde trigo e de aveia, as ervilhas e as papoulas para da extrarem leo e o cnha-mo; possuam muitos animais domsticos e estavam em relaes comerciais comas outras naes. Tudo isto prova, claramente, como Heer o fez notar, que tinhamprogredido consideravelmente; isto, porm, implica tambm um longo perodo an-tecedente de civilizao menos avanada, durante o qual os animais domsticos,tratados em diferentes regies, puderam, variando, dar origem a raas distintas.Depois da descoberta dos instrumentos de slex nas camadas superficiais de mui-tas partes do mundo, todos os gelogos acreditaram que o homem brbaro existiunum perodo extraordinariamente afastado, e sabemos hoje que no h tribo, pormais brbara que seja, que no tenha domesticado o co.A origem da maior parte dos animais domsticos ficar duvidosa para sem-pre. Mas devo acrescentar que, depois de laboriosamente haver recolhido todosos fatos conhecidos relativos aos ces domsticos de todo o mundo, fui levado aconcluir que muitas espcies selvagens de candeos deviam ter sido aprisionadas,e que o seu sangue corre mais ou menos misturado nas veias das nossas raasdomsticas naturais. No pude chegar a nenhuma concluso precisa relativamen- 31. 31te aos carneiros e s cabras. Aps os fatos que M. Blyth me comunicou sobre oshbitos, voz, constituio e formao do touro de bossa indiano, quase certo queele descende de uma origem primitiva diferente da que produziu o nosso touroeuropeu. Alguns crticos competentes crem que este ltimo deriva de duas outrs origens selvagens, sem pretender afirmar que tais origens sejam ou no con-sideradas como espcies. Esta concluso, bem como a distino especfica queexiste entre o touro de bossa e o boi ordinrio, foi quase definitivamente estabele-cida pelos admirveis estudos do professor Rtimeyer. Quanto aos cavalos, hesitoem crer, por motivos que no posso desenvolver aqui, e demais contrrios opi-nio de muitos sbios, que todas as raas derivam de uma s espcie. Tenho tra-tado quase todas as raas inglesas das nossas aves de capoeira, tenho-as cruza-do, tenho-lhe estudado o esqueleto, e cheguei concluso que provm todas deuma espcie selvagem ndica, o Gallus bankiva; tambm a opinio de M. Blyth ede outros naturalistas que estudaram esta ave na ndia. Quanto aos patos e aoscoelhos, de que algumas raas diferem consideravelmente entre si, evidente quederivam todas do pato comum selvagem e do coelho selvagem.Alguns autores tm levado ao extremo a doutrina de as nossas raas do-msticas derivarem de muitas origens selvagens. Julgam que toda a raa que sereproduz puramente, por ligeiros que sejam os seus caracteres distintivos, teve oseu prottipo selvagem. Sendo assim, deveriam existir pelo menos uma vintena deespcies de touros selvagens, outras tantas de carneiros, e muitas espcies decabras da Europa, das quais muitas na Gr-Bretanha somente. Um autor sustentaque deviam existir na Gr-Bretanha onze espcies de carneiros selvagens que lheeram prprios! Quando nos lembrarmos que este pas no possui hoje um mam-fero que lhe seja particular, que a Frana tem apenas alguns, muito poucos, quesejam distintos dos da Alemanha, e que o mesmo se d na Hungria e na Espanha,etc., mas que cada um destes pases possui muitas espcies particulares de tou-ros, de carneiros, etc., necessrio ento admitir que um grande nmero de raasdomsticas tiveram origem na Europa, porque de onde poderiam elas vir? E omesmo se d na ndia. certo que as variaes hereditrias desempenharam umpapel importante na formao das raas to numerosas de ces domsticos para 32. 32os quais admito, contudo, muitas origens distintas. Quem poderia acreditar, comefeito, que muitos animais assemelhando-se ao Galgo italiano, ao Rafeiro8, aoBuldogue, ao Fraldiqueiro9e ao Espanhol de Blenheim, tipos to diferentes dostipos dos candeos selvagens, tivessem existido no estado primitivo? Tem-se afir-mado muitas vezes, sem prova segura, que todas as nossas raas de ces pro-vm do cruzamento de um pequeno nmero de espcies primitivas. Mas,apenasse obtm, pelo cruzamento, formas intermedirias entre aos pais; ora, se quere-mos explicar assim a existncia das nossas diferentes raas domsticas, necess-rio se torna admitir a existncia anterior das formas mais extremas, tais como oGalgo italiano, o Rafeiro, o Buldogue, etc., no estado selvagem. De resto, tem-seexagerado muito a possibilidade de formar raas distintas pelo cruzamento. Estprovado que pode modificar-se uma raa pelos cruzamentos acidentais, admitin-do, todavia, que se escolhem cuidadosamente os indivduos que representam otipo desejado: mas seria muito difcil obter uma raa intermdia entre duas raascompletamente distintas. Sir J. Sebright tentou numerosas experincias com estefim, mas no pde obter resultado algum. Os produtos do primeiro cruzamentoentre duas raas puras so bastante uniformes, algumas vezes mesmo perfeita-mente idnticos, como tenho constatado nos pombos. Nada parece, pois, maissimples; quando, porm, se cruzam estes mestios entre si durante muitas gera-es, no mais se obtm dois produtos semelhantes e as dificuldades de opera-o tornam-se manifestas.RAAS DO POMBO DOMSTICO, SUAS DIFERENAS E SUA ORIGEMPersuadido que vale sempre mais estudar um grupo especial, decidi-me,aps madura reflexo, pelos pombos domsticos. Tenho tratado todas as raasque pude obter por compra ou por outra maneira; alm disso, tm-me sido envia-8diz-se de ou co de casta que serve para guardar gado 33. 33das peles provenientes de quase todas as partes do mundo; estou principalmenteagradecido por estas remessas ao honorrio W. Elliot, que me fez aperceber deespecmenes da ndia, e ao honorrio C. Murray, que me expediu exemplares daPrsia. Em todas as lnguas se tm publicado tratados sobre pombos; algumasdestas obras so muito importantes, pois que ascendem mais remota antiguida-de. Associei-me a muitos criadores importantes e fao parte dos dois Pigeons-clubs de Londres. A diversidade das raas de pombos verdadeiramente admi-rvel. Se se compara o Correio ingls com o Cambalhota de face curta, fica-seimpressionado pela enorme diferena do bico, condizendo com diferenas corres-pondentes no crnio. O Correio, e mais particularmente o macho, apresenta umdesenvolvimento pronunciado da membrana carunculosa da cabea, acompanha-do de grande alongamento das plpebras, de largos orifcios nasais e grande a-bertura do bico. O bico do Cambalhota de face curta parece-se com o de um par-dal; o Cambalhota ordinrio possui o hbito singular de elevar-se a grande alturadesordenadamente, e depois fazer no ar uma cambalhota completa. O Runt(pombo-galinha romano) uma ave grande, de bico longo e macio e grandesps; algumas sub-raas tm longo pescoo, outras longas asas e longa cauda. OBarbado est aliado ao pombo-correio; mas o bico, em lugar de ser longo, largoe muito curto. O Pombo de papo tem corpo, asas e patas alongadas; o enormepapo, que tumefaz com orgulho, d-lhe um aspecto bizarro e cmico. O pombo-gravata tem o bico curto e cnico, e uma ordem de penas riadas sobre o peito;tem o hbito de dilatar ligeiramente a parte superior do esfago. O Cabeleira temas penas de tal maneira erriadas na parte dorsal do pescoo, que formam umaespcie de capucho; proporcionalmente ao tamanho, tem as penas das asas e dopescoo muito alongadas.O Trombeta, ou Pombo tambor, e o Pombo que ri, fazem ouvir, assim comoindica o seu nome, um arrulho muito diferente do das outras raas. O Pombo deleque tem trinta ou mesmo quarenta penas na cauda, em vez de doze ou catorze,nmero normal em todos os membros da famlia dos pombos; tem estas penas toostentadas e to erriadas, que, nas aves de raa pura, a cabea e a cauda se9diz-se de ou co que gosta de estar no conchego do colo das mulheres 34. 34tocam; mas a glndula olefera completamente atrofiada. Poderamos ainda indi-car algumas outras raas menos distintas.O desenvolvimento dos ossos da face difere enormemente, tanto pelo com-primento como pela largura e curvatura, no esqueleto das diferentes raas. A for-ma, assim como as dimenses do maxilar inferior variam de uma maneira muitoacentuada.O nmero das vrtebras caudais e das vrtebras sagradas varia tambm damesma forma que o nmero de costelas e das apfises, assim como a sua largurarelativa. A forma e a grandeza das aberturas do esterno, o grau de divergncia eas dimenses dos ramos da forquilha, so igualmente muito variados. A larguraproporcional da abertura do bico; o comprimento relativo das plpebras; as dimen-ses do orifcio das narinas e as da lngua, que no esto sempre em correlaoabsolutamente exata com o comprimento do bico; o desenvolvimento do papo eda parte superior do esfago; o desenvolvimento ou atrofia da glndula olefera; onmero de penas primrias da asa e da cauda; o comprimento relativo das asas eda cauda, quer entre si, quer com relao ao corpo; o comprimento relativo daperna e do p; o nmero de escamas dos dedos; o desenvolvimento da membra-na interdigital so outras tantas partes essencialmente variveis.A poca em que as aves novas adquirem a plumagem perfeita, bem comoa natureza da plumagem de que os filhotes so revestidos na sua ecloso, variamtambm; e igualmente a forma e tamanho dos ovos. O vo e, em certas raas, avoz e os instintos, apresentam diversidades notveis. Enfim, em certas varieda-des, os machos e as fmeas chegam a diferir algum tanto uns dos outros.Poder-se-ia facilmente reunir uma vintena de pombos tais que, se se mos-trassem a um ornitlogo, e se lhe dissessem que eram aves selvagens, ele osclassificaria certamente como outras tantas espcies distintas. No creio mesmoque qualquer ornitlogo consentisse em colocar num mesmo gnero o Correioingls, o Cambalhota de face curta, o Runt, o Barbado, o Pombo de papo e oPombo de leque; ele o faria tanto menos que se lhe poderiam mostrar, por cadauma destas raas, muitas subvariedades de descendncia pura, isto , de esp-cies, como lhes chamaria certamente. 35. 35Por considervel que seja a diferena que se observa entre as diversas ra-as de pombos, estou completamente da opinio comum dos naturalistas que osfazem descendentes do Pombo torcaz (Columbia livia), compreendendo debaixodeste termo muitas raas geogrficas, ou subespcies, que s diferem umas dasoutras por pontos insignificantes. Exporei sucintamente muitas das razes que melevam a adotar esta opinio, porque so, at certo ponto, aplicveis a outros ca-sos. Se as nossas diversas raas de pombos no so variedades, se, numa pala-vra, no derivam do Torcaz, devem derivar de sete ou oito tipos originais pelo me-nos, porque seria impossvel produzir as nossas raas domsticas atuais por cru-zamentos recprocos de um nmero menor. Como, por exemplo, produzir umPombo de papo cruzando duas raas, a no ser que uma das raas ascendentespossua o enorme papo caracterstico? Os supostos tipos originais devem todos tersido habitantes dos rochedos como o Torcaz, isto , espcies que no se empolei-ram nem fazem ninhos voluntariamente sobre as rvores. Mas, alm da Columbialivia e as suas subespcies geogrficas, somente se conhecem duas ou trs ou-tras espcies de pombos dos rochedos e no apresentam qualquer dos caracteresprprios s raas domsticas. As espcies primitivas devem, pois, ou existir aindanos pases em que tm sido originariamente reduzidas domesticidade, e nestecaso escapavam ateno dos ornitlogos, o que atendendo ao talhe, aos hbitose ao notvel carter, parece impossvel; ou foram extintas no estado selvagem. ,porm, difcil exterminar aves que fazem ninho beira dos precipcios e dotadasde vo poderoso. Demais o Torcaz comum, que tem os mesmos hbitos que asraas domsticas, no foi exterminado nem nas pequenas ilhas que cercam aGr-Bretanha, nem nas costas do Mediterrneo. Seria pois fazer uma falsa supo-sio admitir a extino de um to grande nmero de espcies tendo os mesmoscostumes que o Torcaz. Alm disso, as raas domsticas, de que temos faladomais acima, foram transportadas para todas as partes do mundo; algumas, porconseguinte, devem ter sido levadas ao seu pas de origem; nenhuma, contudo,voltou ao estado selvagem, ainda que o pombo comum, que no outro seno oTorcaz sob forma muito pouco modificada, se tenha tornado selvagem em muitoslugares. Enfim, a experincia prova-nos bem o quanto difcil obrigar um animal 36. 36selvagem a reproduzir-se regularmente em cativeiro; todavia, admitindo a origemmltipla dos nossos pombos, necessrio se torna tambm admitir que sete ou oitoespcies pelo menos foram aprisionadas pelo homem num estado semi-selvagempara as tornar perfeitamente fecundas no estado de cativas.H um outro argumento que me parece ter um grande valor e que pode a-plicar-se a muitos outros casos: que as raas de que temos falado, posto quesemelhando-se de uma maneira geral ao Torcaz selvagem pela constituio, hbi-tos, voz, cor e pela maior parte da sua conformao, diferenciam-se dele, todavia,por muitos outros pontos. Debalde se procuraria, em toda a grande famlia dasColumbdeas, um bico semelhante ao do Correio ingls, ao do Cambalhota de fa-ce curta ou ao do Barbado; penas erriadas anlogas s do Cabeleira; papo com-parado ao do Pombo de papo; penas caudais comparveis s do pombo-pavo.Seria necessrio, pois, admitir, no s que homens semi-selvagens aprisionaramcompletamente muitas espcies, como ainda, por acaso ou intencionalmente, es-colheram as espcies mais extraordinrias e mais anormais; era necessrio admi-tir ainda que todas estas espcies se extinguiram em seguida ou ficaram desco-nhecidas. Um tal concurso de circunstncias improvvel no mais alto grau.Merecem meno alguns fatos relativos cor dos pombos.O Torcaz azul-ardsia com os flancos brancos; na subespcie ndica, aColumbia intermedia de Strickland, os flancos so azulados; a cauda apresentauma orla carregada terminal e as penas dos lados so exteriormente limitadas debranco na base; as asas tm duas barras negras. Em algumas raas semidoms-ticas, bem como em algumas absolutamente selvagens, as asas, alm das duasorlas negras, so pontilhadas de negro. Estes diversos sinais no se encontramreunidos em qualquer outra espcie da famlia. Ora, todos os sinais que acabamosde indicar so por vezes e perfeitamente desenvolvidos at ao bordo branco daspenas exteriores da cauda, nas aves de raa pura pertencendo a todas as nossasraas domsticas. Alm disso, quando se cruzam os pombos, pertencentes a duasou mais raas distintas, no oferecendo nem a colorao azul, nem qualquer dossinais que acabamos de expor, os produtos destes cruzamentos mostram-se mui-to dispostos a adquirir rapidamente estes caracteres. Limitar-me-ei a citar umexemplo que entre tantos outros observei. Cruzei alguns pombos-paves brancos 37. 37xemplo que entre tantos outros observei. Cruzei alguns pombos-paves brancosda raa mais pura com alguns Barbados negros - as variedades azuis do Barbadoso to raras que no conheo um s exemplar em Inglaterra -: as aves que obti-ve eram negras, cinzentas e manchadas. Cruzei igualmente um Barbado com umpombo Spot, que uma ave branca com a cauda vermelha e uma mancha verme-lha no alto da cabea, e que se reproduz fielmente; obtive mestios acinzentadose manchados. Cruzei ento um dos mestios barbado-pavo com um mestiobarbado-spot, e obtive uma ave de um to belo azul como nenhum pombo de raaselvagem, tendo os flancos brancos, possuindo a dupla orla negra das asas e aspenas externas da cauda orladas de negro e limitadas de branco! Se todas as ra-as de pombos domsticos derivam do Torcaz, estes fatos explicam-se facilmentepelo princpio bem conhecido da reverso aos caracteres dos antepassados; masse se contesta esta origem, necessrio forosamente admitir uma das duas hi-pteses seguintes, hipteses o mais improvveis possvel: ou todos os diversostipos originais eram coloridos e marcados como o Torcaz, posto que nenhuma ou-tra espcie existente apresente estes mesmos caracteres, de modo que, em cadaraa separada, exista uma tendncia reverso de cores e caractersticas; ou en-to cada raa, mesmo a mais pura, foi cruzada com o Torcaz num intervalo deuma dezena ou ainda mais de uma vintena de geraes - digo uma vintena degeraes, porque no se conhece exemplo algum de produtos de um cruzamentoque tenham voltado a um antepassado de sangue estranho afastado deles por umnmero de geraes mais considervel. - Numa raa que foi cruzada apenas umavez, a tendncia reverso a um destes caracteres devidos a este cruzamentodiminui naturalmente, contendo cada gerao sucessiva uma quantidade sempremenor de sangue estranho. Mas, quando no tem havido cruzamento e existenuma raa a tendncia a regressar a um carter perdido durante muitas geraes,esta tendncia, depois do que fica dito, pode transmitir-se sem enfraquecimentodurante um nmero indefinido de geraes. Os autores que tm escrito sobre ahereditariedade tm, muitas vezes, confundido estes dois casos assaz distintos dareverso.Enfim, assim como pude constatar pelas observaes que tenho feito ex- 38. 38pressamente sobre as mais distintas raas, os hbridos ou mestios provenientesde todas as raas domsticas do pombo so perfeitamente fecundos. Ora difcil,seno impossvel, citar um caso bem estabelecido tendente a provar que os des-cendentes hbridos provindos de duas espcies de animais nitidamente distintosso completamente fecundos. Alguns autores julgam que uma domesticidade pormuito tempo prolongada diminui esta grande tendncia esterilidade. A histria doco e a de alguns outros animais domsticos torna esta opinio muito provvel, sese aplicar s espcies estreitamente aliadas; mas parece-me em extremo temer-rio generalizar esta hiptese at supor que espcies primitivamente to distintas,como so hoje os Correios, os Cambalhotas, os Papudos e os Paves tenhampodido produzir descendentes perfeitamente fecundos inter se.Estas diferentes razes, que sempre bom recapitular, isto , a improbabi-lidade de outrora o homem ter reduzido ao estado domstico sete ou oito espciesde pombos, e sobretudo faz-los reproduzir neste estado livremente; o fato de se-rem desconhecidas por toda a parte estas supostas espcies no estado selvagem,e de as espcies domsticas se no tornarem selvagens em parte alguma; o fatode estas espcies apresentarem certos caracteres muito anormais, comparando-as com todas as outras espcies de columbdeas, posto que se assemelhem aoTorcaz sob quase todos os aspectos; o fato de a cor azul e os diferentes estigmasnegros reaparecerem em todas as raas, quer se conservem puras, quer se cru-zem; enfim, o fato de os mestios serem perfeitamente fecundos - este complexode razes leva-nos a concluir que todas as nossas raas domsticas derivam doTorcaz ou Columbia livia e das suas subespcies geogrficas.Juntarei, em apoio desta opinio: primeiro, que o Columbia tivia ou Torcazse mostra, na Europa e na ndia, suscetvel de uma domesticidade fcil, e que huma grande analogia entre os seus hbitos e a conformao de todas as raasdomsticas; segundo, que, ainda que o Correio ingls ou o Cambalhota de facecurta difiram consideravelmente do Torcaz por certos caracteres, se pode, contu-do, comparando as diversas subvariedades destas duas raas, e principalmenteas provenientes de pases afastados, estabelecer entre o Torcaz e elas uma sriequase completa ligando os dois extremos (podem estabelecer-se as mesmas s- 39. 39ries em alguns outros casos, mas no com todas as raas); terceiro, que os princi-pais caracteres de cada raa so, em cada uma delas, essencialmente variveis,tais como, por exemplo, as carnculas e o comprimento do bico no Correio ingls,o bico to curto do Cambalhota, e o nmero de penas caudais no Pombo pavo (aexplicao evidente deste fato ressaltar quando tratarmos da seleo); quarto,que os pombos tm sido objeto dos mais extremos cuidados da parte de um gran-de nmero de amadores, e que foram reduzidos ao estado domstico h milharesde anos nas diferentes partes do mundo. O documento mais antigo que se encon-tra na histria relativamente aos pombos ascende quinta dinastia egpcia, cercade trs mil anos antes da nossa era; este documento foi-me indicado pelo profes-sor Lepsius; por outra parte, M. Birch ensina-me que o pombo est mencionadonum boletim de refeio da dinastia precedente. Plnio diz-nos que os Romanospagavam os pombos por um preo considervel: Chegou-se, diz o naturalista lati-no, a tomar conta da sua genealogia e da sua raa. Na ndia, pelo ano 1600, Ab-ker-Khan fazia to grande caso dos pombos, que o seu pombal tinha pelo menosvinte mil exemplares. Os monarcas do Iro e do Turo enviavam-lhe aves muitoraras; em seguida o cronista real acrescenta: Sua majestade, cruzando as ra-as, o que ainda no tivera sido feito at ento, melhorou-as extraordinariamen-te. Nesta mesma poca, os Holandeses mostravam-se tambm amadores depombos como o tinham sido os antigos Romanos. Quando tratarmos da seleo,compreender-se- a grande importncia destas consideraes para explicar a so-ma enorme de variantes que os pombos apresentam. Veremos ento, tambm,como se faz com que muitas vezes as diferentes raas ofeream caracteres mons-truosos. necessrio, por fim, indicar uma circunstncia extremamente favorvelpara a produo de raas distintas, e que os pombos machos e fmeas se unamde ordinrio para a vida, e que se possam tratar muitas raas diferentes numamesma gaiola.Acabo de discutir muito largamente, e contudo de uma maneira insuficiente,a origem provvel dos nossos pombos domsticos; se tal fiz, foi porque, quandocomecei a tratar dos pombos e a observar as diferentes espcies, eu estava tam-bm pouco disposto a admitir (sabendo com que fidelidade as diversas raas se 40. 40reproduzem), que derivassem todas de uma nica espcie me, e se tivessemformado desde o momento em que foram reduzidas ao estado domstico, como oestaria qualquer naturalista em aceitar a mesma concluso com respeito a nume-rosas espcies de pardais ou de qualquer outro grupo natural de aves selvagens.Uma circunstncia me feriu sobretudo, que a maior parte dos tratadores de ani-mais domsticos, ou os cultivadores com os quais estou em contato, ou de quetenho lido as obras, esto todos firmemente convencidos que as diferentes raasde que cada um se tem ocupado em especial, derivam de outras tantas espciesprimitivamente distintas. Perguntai, assim como eu o fiz, a um clebre tratador debois de Hereford, se no poderia fazer derivar o seu gado de uma raa de longoscornos, ou que as duas raas derivassem de uma origem comum, e ele se rir devs. Nunca encontrei um tratador de pombos, de galinhas, de patos ou de coe-lhos, que no estivesse inteiramente convencido que cada raa principal derivassede uma espcie distinta. Van Mons, no seu tratado sobre peras e mas, recusa-se categoricamente a acreditar que espcies diferentes, um pippin Ribsion e umama Codlin, por exemplo, possam descender de sementes de uma mesma rvo-re. Poder-se-iam citar uma infinidade de outros exemplos. A explicao deste fatoparece-me simples: fortemente impressionados, em razo dos seus longos estu-dos, pelas diferenas que existem entre as diversas raas, e ainda sabendo bemque cada uma delas varia ligeiramente, pois que somente ganham prmios nosconcursos escolhendo com cuidado estas leves diferenas, os tratadores ignoramcontudo os princpios gerais, e recusam-se a tomar em linha de conta as levesdiferenas que se foram acumulando durante um grande nmero de geraes su-cessivas.Os naturalistas, que sabem bem menos que os tratadores sobre as leis dahereditariedade, que no sabem mais a respeito dos elos intermedirios que ligamentre si longas sries genealgicas, e que, contudo, admitem que a maior partedas nossas raas domsticas derivam de um mesmo tipo, no poderiam tornar-seum pouco mais prudentes, e no zombarem da opinio de que uma espcie, noestado natural, pode ser a posteridade direta de outras espcies? 41. 41PRINCIPIOS DE SELEO ANTIGAMENTE APLICADOS E SEUS EFEITOSConsideremos agora, em algumas linhas, a formao gradual das nossasraas domsticas, quer derivem de uma espcie nica, quer derivem de muitasespcies vizinhas. Podem atribuir-se alguns efeitos ao direta e definida dascondies exteriores de existncia, alguns outros aos hbitos, mas necessrioseria ser bem ardiloso para explicar, por tais causas, as diferenas que existementre o Cavalo de tiro e o Cavalo de corrida, entre o Perdigueiro e o Galgo, entre oCorreio e o Cambalhota. Um dos caracteres mais notveis das nossas raas do-msticas, que vemos entre elas adaptaes que no contribuem em nada para obem-estar do animal ou da planta, mas simplesmente para vantagem e caprichodo homem. Determinadas variaes teis ao homem so provavelmente produzi-das sucednea e gradualmente por outras; alguns naturalistas, por exemplo, jul-gam que o Cardo penteador armado de ganchos, que no pode substituir qualquermquina, muito simplesmente uma variedade do Dipsacus selvagem; ora, estatransformao pode manifestar-se numa s semente. Igualmente provvel que otenha sido para o co Tournebroche, sabe-se, pelo menos, que o carneiro Anconsurgiu de uma maneira sbita. Mas necessrio, se compararmos o cavalo de tiroe o cavalo de corrida, o dromedrio e o camelo, as diversas raas de carneirosadaptadas quer s plancies cultivadas, quer s pastagens das montanhas, e deque a l, segundo a raa, apropriada tanto a um como a outro uso; se compa-rarmos as diferentes raas de ces, de que cada uma til ao homem sob pontosde vista diversos; se compararmos o galo de combate, to inclinado luta, comoutras raas to pacficas, com as poedeiras perptuas sem nunca chocarem, ecom o galo Bantam, to pequeno e to elegante; se considerarmos, enfim, essalegio de plantas agrcolas e culinrias, as rvores que ensombram os nossosvergis, as flores que adornam os nossos jardins, umas to teis ao homem emdiferentes estaes e para tantos usos diversos, ou somente to agradveis vis-ta, necessrio procurar, penso eu, alguma coisa a mais que um simples efeito devariabilidade. No podemos supor, com efeito, que todas estas raas tenham sidosimultaneamente produzidas com toda a perfeio e toda a utilidade que tm hoje; 42. 42sabemos mesmo em muitos casos, que no tem sido assim. O poder de seleo,de acumulao, que possui o homem, a chave deste problema; a natureza for-nece as variaes sucessivas, o homem as acumula em certas direes que lheso teis. Neste sentido, pode dizer-se que o homem criou em seu proveito raasteis.O grande valor deste princpio de seleo no hipottico. certo que mui-tos dos nossos mais eminentes criadores tm, durante a simples idade de um ho-mem, modificado consideravelmente os seus gados e seus rebanhos. Para bemcompreender os resultados que tm obtido, indispensvel ler algumas das nu-merosas obras que tm consagrado a este assunto e ver os prprios animais. Oscriadores consideram ordinariamente o organismo de um animal como um ele-mento plstico, que podem modificar a seu bel-prazer. Se no tivesse falta de es-pao, poderia citar, a este respeito, numerosos exemplos compilados de autorida-des altamente competentes. Youatt, que, mais que qualquer outro, conhecia ostrabalhos dos agricultores, e que por si mesmo era um excelente juiz em questesde animais, admite que o princpio da seleo permite ao agricultor, no somentemodificar o carter do seu rebanho, mas transform-lo inteiramente. a vara m-gica por meio da qual pode apresentar as formas e os modelos que lhe agrada-rem. Lorde Somerville diz, a propsito