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CHARLENE SOARES DA SILVA “UMA EXPERIÊNCIA MÍSTICA ÀS AVESSAS” ESTUDO SOBRE A PARÓDIA RELIGIOSA EM A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR. Monografia apresentada como requisito para obtenção do grau de bacharel em Letras (Português) – ênfase em Estudos Literários. Curso de Letras do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Prof. Orientadora: Sandra M. Stroparo Curitiba 2007

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CHARLENE SOARES DA SILVA

“UMA EXPERIÊNCIA MÍSTICA ÀS AVESSAS” ESTUDO SOBRE A PARÓDIA RELIGIOSA EM A PAIXÃO SEGUNDO G.H.,

DE CLARICE LISPECTOR.

Monografia apresentada como requisito para obtenção do grau de bacharel em Letras (Português) – ênfase em Estudos Literários. Curso de Letras do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Prof. Orientadora: Sandra M. Stroparo

Curitiba 2007

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ii

AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha família e, especialmente, a minha mãe, que na

coragem de sua luta diária, tem demonstrado que a condição humana é

mesmo a da paixão.

Agradeço a meu marido pela paciência e compreensão. Mesmo sem

entender essa minha “cisma com barata”, ele sempre me apoiou.

Finalmente agradeço a professora Sandra não apenas pela orientação,

mas por acreditar neste trabalho. Em momentos em que pensei que não seria

possível realizá-lo, foi ela quem não me fez desistir.

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1

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO__________________________________________________2 Capitulo I – A PARÓDIA EM QUESTÃO______________________________6

Capitulo II – O CAOS____________________________________________13

Capítulo III – PROVAÇÃO________________________________________ 18

Capítulo IV – O PECADO_________________________________________23

Capítulo V – DANAÇÃO, REDENÇÃO E PAIXÃO _____________________ 30

Capitulo VI – CONCLUSÃO_______________________________________35

REFERÊNCIAS________________________________________________41

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2

INTRODUÇÃO

Ainda não há consenso entre a crítica atual sobre uma denominação

para a literatura contemporânea. Para críticos, como Linda Hutcheon1, a

literatura e as artes em geral vivem o chamado Pós-Modernismo, no entanto

essa afirmação ainda é um pouco controversa.

Em linhas gerais, o Pós-Modernismo é tido como resultado de um

momento histórico de falências de todo dogmatismo. Segundo seus teóricos, a

literatura atual se caracteriza pelo ceticismo diante das metanarrativas2, pela

descentralização do sujeito e, sobretudo, por uma forma fluida que rompe com

categorias tradicionais da narrativa (tais como tempo e espaço) e implode os

significados.

O prefixo “pós” não marca aí apenas a sucessão temporal de um

período, mas a representação de um tipo de produção cultural essencialmente

contraditória, histórica e política que rompe com a separação entre alta e baixa

cultura.

Muitas dessas características, é certo, não surgiram com o Pós-

Modernismo. A ruptura com a tradição, a crise da representação, a descrença

na validade e na permanência do discurso, a angústia pela perda da noção de

sujeito e o estranhamento são marcas já da modernidade.

Na poesia de Rimbaud, por exemplo, já podemos encontrar a mesma

ruptura da arte com a representação da realidade, a fragmentação textual, a

percepção de um sujeito que não existe de forma autônoma. Conforme

apontou esse autor, o fazer poético na modernidade se constitui por “um longo,

imenso e racional desregramento de todos os sentidos” 3.

O Pós-Modernismo, contudo, recupera essa experiência de arte e a

expande de tal forma que a torna marca da produção contemporânea. Nunca

1 Poética do Pós-Modernismo, passim. 2 Termo utilizado por Hutcheon para se referir aos discursos tradicionais e oficiais produzidos pelas instituições sociais. 3 Arthur Rimbaud, A carta do vidente. In: Oeuvres completes – correspondance. Trad. Sandra M. Stroparo.

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se viu em outra época, uma produção que se servisse tão abundantemente

dessas características para negar tudo o que é tradicional e estabelecido,

afirmando-se no estranhamento que provoca. Talvez por isso mesmo seja

difícil reconhecer o que é pós-moderno.

Independente de concordarmos com os teóricos do Pós-Modernismo,

em relação a uma denominação unívoca para a literatura atual, não podemos

deixar de reconhecer que certas considerações levantadas por essa teoria

trouxeram uma inegável contribuição para o estudo das obras

contemporâneas.

A teoria pós-moderna nos interessa, sobretudo, pelo reconhecimento

que faz, na arte contemporânea, de uma contundente crítica às narrativas

mestras, ou seja, aos discursos oficiais estabelecidos seja pela religião, pela

ciência ou pela arte. Deus, a natureza, a ciência perdem a sua autoridade

como fonte de verdades universais.

Seguindo esse raciocínio Baudrillard4, outro importante teórico do pós-

modernismo, afirma que com a implosão das metanarrativas, a sociedade

passou o valorizar o hiper-real. O simulacro passa a ser mais real do que a

realidade.

A crítica pós-moderna aos textos universais, entretanto, só se faz a partir

de e dentro do contexto desses discursos. Aproveitando-se dos textos da

tradição, a literatura atual subverte um passado que não quer perpetuar e de

que, ao mesmo tempo, não pode prescindir.

A paródia é para o nosso tempo, portanto, o recurso privilegiado de

criação artística, revelando o quanto a arte contemporânea se tornou auto-

reflexiva, o quanto ela se questionará sobre as possibilidades de seu discurso.

Como recurso responsável por desestabilizar convenções, por apontar nossos

paradoxos, a paródia nos dá uma reinterpretação crítica do passado.

É certo que a paródia não surgiu com o pós-moderno. Podemos

encontrar referências a sua utilização desde a literatura grega, entretanto, a

sua utilização em larga escala como um recurso capaz de realizar tanto a 4 Thomas Bonnici, O pós-modernismo. In: BONNICI, Thomas & ZOLIN, Lúcia Osana (Org.) Teoria Literária, p 259.

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mudança quanto a continuidade cultural, através da reelaboração e do

reconhecimento da tradição, é algo que se acentua na produção artística

contemporânea.

Na literatura brasileira o uso da paródia é também acentuado com o

modernismo de 22, no entanto, a paródia produzida por esses autores é a

paródia cômica e burlesca, cujo principal objetivo é ridicularizar e provocar riso.

É o que vemos, por exemplo, na produção de um Oswald de Andrade.

Clarice Lispector, entretanto, toma outra direção. A experiência paródica

de seus livros não tem nada de cômico, apresentando, ao contrário, um forte

tom irônico e questionador. Em 1943, quando é publicado seu romance Perto

do Coração Selvagem, ela já sinaliza uma mudança na sensibilidade artística.

Mas em 1964, com a publicação de A Paixão Segundo G.H., se torna evidente

o quanto a obra de Clarice já não pode ser compreendida como continuidade

da estética modernista.

Não se pretende como isso enquadrar a obra de Clarice em qualquer

classificação seja ela modernista ou pós-modernista. A produção desta autora

não se presta a qualquer tipo de enquadramento, pois sempre os ultrapassa.

Entretanto, a crítica contemporânea à sua produção parece não ter sido

suficientemente capaz de explicá-la. É por conta deste fator que retomamos

parte da crítica pós-moderna, a qual nos deu importantes fundamentos para

sua análise.

A Paixão Segundo G.H. rompe com as estruturas de tempo e de espaço,

mas principalmente com a linguagem e não pode ser interpretada apenas como

ruptura com a tradição. Como uma narrativa extremamente nova, ela efetua a

corrosão da linguagem e das estruturas narrativas, questionando-a como forma

de representação.

O resultado desse novo modo de composição é o surgimento de uma

anti-narrativa que vai do caos ao silêncio para, através da linguagem,

questionar o discurso literário.

Essa desconfiança sobre a linguagem parece se dar, sobretudo, através

da paródia, conforme se pretende mostrar aqui. O romance retomará a paixão

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5

de Cristo sobre um novo sentido. A experiência vivida pela personagem

continua ainda mística, no entanto, o objetivo alcançado difere muito dos ideais

cristãos.

Subvertendo o discurso religioso, essa narrativa se enquadra na mesma

desconfiança e ceticismo que a arte contemporânea sobre as metanarrativas.

O sentido cotidiano e desgastado do signo e subvertido ao longo da narrativa

de forma a evidenciar sua artificialidade e implodir as noções tradicionais do

significado.

Há um consenso entre a crítica em considerar essa obra como uma anti-

narrativa. Críticos como Benedito Nunes e Antônio Cândido já apontaram para

a dissolução das estruturas narrativas desta obra, no entanto, ainda não há um

estudo detido de todas as estruturas responsáveis por essa dissolução.

As observações destes críticos serviram para confirmar nossa hipótese

sobre o romance, mas também exigiam o desenvolvimento de estudos que as

tornassem objetos concretos, resultados de pesquisa. Analisar todas as

categorias narrativas que são subvertidas nesta obra exigiria um trabalho de

maior fôlego e extensão do que o pretendido por este trabalho.

Identificando, portanto, uma lacuna crítica nos estudos sobre A Paixão

Segundo G.H., pretende-se aqui, ao menos em parte, preenchê-la, através da

de um estudo mais profundo sobre o papel da paródia nesta obra. É essa

necessidade que este trabalho visa suprir.

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I. A PARÓDIA EM QUESTÃO

Paródia foi o termo utilizado por Olga de Sá para caracterizar as

relações intertextuais presentes em A Paixão Segundo G.H. Segundo a autora,

há nesta obra um pólo paródico “constituído pela paródia séria, não burlesca,

que denuncia o ser pelo desgaste do signo, pelas figuras de contradição como

o paradoxo e oxímoro, “descrevendo” o que foi escrito (...) 5”. Embora aí a

autora não esclareça exatamente em que termos compreende este conceito,

seus apontamentos marcam uma aguda observação daquilo que, naquela

obra, ela chama de uma paródia séria.

De fato, a leitura de PSGH6 implica na compreensão de suas relações

intertextuais. Paródia, pastiche ou mera alusão? Essas são apenas algumas

das possibilidades de construção de intertextualidade que podem ser

representadas por figuras de linguagem que estão muito próximas, mas que

são, contudo, distintas. É preciso repensar o conceito de paródia e distingui-lo

das demais formas, se quisermos admiti-lo, como fez Olga de Sá.

PSGH é alicerçada em um diálogo com uma reelaboração (cabe aqui

avaliar se paródica o não) de textos religiosos. A começar pelo título, que

remete diretamente à história da Paixão de Cristo, encontramos em todo o

texto referências a textos bíblicos e a história de santos. A história narrada,

entretanto, não segue os moldes tradicionais de paródia.

Um dos primeiros fatores que chama a atenção quanto à singularidade

da suposta paródia presente em PSGH é o tipo de relação estabelecida entre o

texto de origem e o texto parodiado. Ao contrário do que preconizam alguns

prestigiados dicionários de literatura, a relação entre esses textos não se

realiza apenas no âmbito do cômico ou burlesco.

Segundo definição do dicionário Oxford de literatura, a paródia é:

5 Olga de Sá, “Paródia e Metafísica”. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Edição crítica. Coordenação de Benedito Nunes. 2ª ed. Madri – São Paulo: ALLCA XX – Scipione Cultural, 1997. Todas as referências a essa obra utilizarão essa versão. 6 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. Daqui em diante todas as referências a essa obra serão feitas pela abreviação PSGH.

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“Uma composição em prosa ou em verso em que os estilos característicos do pensamento e fraseado de um autor, ou classe de autores, são imitados de maneira a torná-los ridículos, em especial aplicando-os a temas caricatamente impróprios; imitação de uma obra tomando mais ou menos como modelo o original, mas alterado de maneira a produzir um efeito ridículo.” 7

Essa definição, se levada, exclusivamente, em consideração,

certamente excluiria de nossos estudos o termo paródia, obrigando-nos a

considerar a hipótese de pastiche ou de alusão para as referências

intertextuais da obra. Para compreender, entretanto, o que afirmou Olga de Sá,

é necessário, aprofundar o estudo sobre este termo seguindo outros teóricos.

Na Poética, Aristóteles atribui a origem da paródia a Hegemon de Tarso,

quando este utiliza o gênero épico para representar homens comuns, na vida

cotidiana, em oposição à convenção de representar seres superiores.

Hegemon teria sido o primeiro a realizar a inversão do gênero épico,

caracterizando assim a paródia como subversão de um gênero estabelecido.

Essa definição de paródia, embora correta à época, não se sustentou

nas suas diversas utilizações práticas, ou seja, nas próprias obras de arte dos

séculos posteriores. A paródia seguiu para novos âmbitos que não se limitavam

à distorção de um gênero. E é a partir de Bakhtin que a teoria sobre a paródia

ganha consistência e forma.

A noção de dialogismo é o cerne da teoria bakhtiniana e é também o

centro de sua concepção de linguagem. O diálogo representa a condição de

sentido do discurso. Para este teórico, a linguagem só existe enquanto dirigida

para o outro e por isso os discursos monofônicos (uma só voz) representam

uma ilusão. Nenhum discurso é autônomo ou independente. Simplificando,

poderíamos dizer que a distinção entre o monólogo e o diálogo está

simplesmente em evidenciar ou não o interlocutor.

De acordo com essa concepção, o sujeito perde o seu papel central e

uno para se desdobrar em um sujeito histórico e ideológico, o qual não carrega

nenhuma palavra propriamente sua, mas sim perspectivas de outras vozes.

Segundo Diana da Luz Pessoa de Barros:

7 Linda Hutcheon, Uma teoria da Paródia. p.48.

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8

“Emprega-se o termo polifonia para caracterizar um certo tipo de texto, aquele em que se deixam entrever muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos, que escondem os diálogos que os constituem. Reserva-se o termo dialogismo para o princípio constitutivo da linguagem e de todo o discurso.” 8

Pode-se concluir daí que os discursos apresentam diversas vozes,

representadas por diversas idéias e conceitos de um sujeito ao mesmo tempo

histórico e ideológico, cuja origem são outros discursos, com o qual o texto

dialoga. Nos textos monofônicos esses diálogos não deixam marcas, mas nos

polifônicos esse diálogo transparece de forma nítida, através de recursos tais

como a intertextualidade.

Portanto, segundo a teoria bakhtiniana, todo discurso é um ato de

linguagem que só se realiza a partir da interação com outros discursos pré-

existentes e essa relação dialógica se estabelece, na interação verbal, na

relação entre o enunciador e o enunciatário e no texto escrito através da

intertextualidade.

Com isso pode-se perceber que para Bakhtin a paródia é uma forma de

intertextualidade, a qual ele define da seguinte forma:

“Um autor pode usar o discurso de um outro para seus fins pelo mesmo caminho que imprime nova orientação significativa ao discurso que tem sua própria orientação e a conserva. Neste caso, esse discurso deve ser sentido como de um outro. Assim, num único discurso podem-se encontrar duas orientações interpretativas, duas vozes. Assim é o discurso parodístico, a estilização, o skaz estilizado.” 9

Essa definição é bastante interessante para se pensar o uso da paródia

contemporaneamente. Ainda hoje é consenso, conforme apontou Bakhtin, que

a paródia é um discurso no qual o autor emprega a fala de outro, mas introduz

nesta uma intenção diversa. Entretanto, essa definição em si só não basta para

dar conta de um fenômeno mais extenso e completo, presente tanto nos

romances e sátiras como na pintura, escultura e outras formas de arte do

nosso século. Os estudos feitos por Bakhtin associavam a paródia muito mais

ao gênero romanesco. É justamente esse tipo de limitação que o estudo de

Hutcheon vem suprir.

8 Diana Luz Pessoa de Barros, Dialogismo, Polifonia e Enunciação. In: FIORIN & BARROS (Orgs). Dialogismo, Polifonia e Intertextualidade. p.5. 9 Mikhail BAKHTIN, A poética de Dostoievski. In: FIORIN & BARROS (Orgs). Dialogismo, Polifonia e Intertextualidade. Trad. Leonor Lopes Fávero. p.53.

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Segundo Hutcheon, a paródia é neste século um dos maiores modos de

construção formal e temática de textos. Analisando diversas formas de

expressões artísticas que vão da música à literatura, da pintura ao cinema, a

autora aponta para a paródia como um modo de se chegar a um acordo com

os textos do passado e colocá-los em funcionamento de acordo com novas

necessidades.

Os artistas modernos, portanto, parecem ter plena consciência de que

toda mudança implica em continuidade e oferecem, através da paródia, uma

forma de reorganizar esse passado.

Para além das implicações estéticas, Hutcheon, assim como Bakhtin, vê

na paródia implicações ideológicas e sociais. A paródia representa um reflexo

da crise de nossa noção de sujeito como fonte constante e coerente de

significação, da singularidade romântica, da origem sacrossanta do texto e do

autor.

Em virtude da importância dada ao termo pela autora, é de se esperar

que esta não assuma simplesmente a mesma concepção de Bakhtin. Para

Linda Hutcheon não existem definições trans-históricas de paródia, mas

denominadores comuns a todas as definições. A paródia feita pela arte

contemporânea não é a mesma feita por Hegemon, a qual se limitava a

subverter um gênero. O tipo de paródia característico à nossa época é um

processo de revisão e reexecução, inversão e “transcontextualização” de obras

anteriores.

Segundo Hutcheon, portanto, a paródia é repetição com distância

crítica, marcando diferença, ao invés de semelhança. Essa definição, no

entanto, embora bastante simples, necessita de alguns esclarecimentos e a

autora propõe uma análise deste conceito em dois âmbitos: o formal e o

pragmático.

Com relação a seu âmbito formal, Linda defende que a paródia não é

mero empréstimo textual. A utilização de um texto pelo outro é um modo pelo

qual uma obra afirma-se como um gênero com raízes na realidade de tempo

histórico e espaço geográfico.

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A paródia, portanto, aproxima dois textos, mas acentua e dramatiza a

diferença entre ambos. A ironia é o mecanismo retórico que permite marcar

essa diferença. É uma estratégia formal que permite ao descodificador

interpretar e avaliar. A definição de paródia pode assim ser complementada

como: “uma forma de imitação caracterizada por uma inversão irônica”. 10

Essa inversão irônica, no entanto, nem sempre se faz às custas do texto

parodiado. Ao contrário das teorias de intertextualidade de Genette, Hutcheon

não reconhece paródia como sinônimo de intertextualidade, nem como

transformação mínima do texto. A “transcontextualização” paródica pode tomar

a forma de uma incorporação literal ou de um refazer de elementos formais.

Para a autora, os textos não geram nada se não forem apreendidos e

interpretados. A mera “transcontextualização” de texto não é capaz de gerar

nada sozinha, se o leitor não for capaz de decodificar essas referências. O

processo de comunicação é fundamental para o funcionamento da paródia.

“Quando falamos de paródia não nos referimos apenas a dois textos que se inter-relacionam de certa maneira. Implicamos também uma intenção de parodiar outra obra (ou conjunto de convenções) e tanto um reconhecimento desta intenção como capacidade de encontrar e interpretar o texto de fundo na sua relação com a paródia”. 11

A paródia exige a abertura para um contexto pragmático que leve em

conta a intenção do autor e o efeito sobre o leitor, a competência envolvida e a

sua descodificação.

Essa posição se justifica, quando pensamos no sentido etimológico

deste termo. O prefixo para- tem originalmente dois significados. O primeiro

deles é de oposição, contrário. Desta forma, a paródia seria mera oposição,

contraste entre textos, o que justificaria as paródias satíricas. O segundo

sentido é “ao longo de”, o que parece sugerir acordo, intimidade entre os

textos. Esse segundo sentido é o que permite alargar o escopo pragmático

deste termo e revela que a paródia também pode ser:

“A paródia é, pois, na sua irônica ‘transcontextualização’ e inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia”. 12

10 Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, p.17. 11 Ibid, p.34. 12 Ibid, p.48.

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11

Para pensarmos num novo âmbito para a paródia, entretanto, é

necessário esclarecer que o seu alvo é sempre outra forma de discurso

codificado. Em outras palavras, o seu alvo é intratextual, mesmo que o texto

parodiado não seja alvo de crítica.

Conforme já apontado, a inversão irônica é a principal característica da

paródia, mas esse não é um recurso meramente formal. Além de representar

uma antífrase, uma oposição ou contraste entre um sentido pretendido e um

afirmado, a ironia tem um importante papel pragmático: a ironia julga. Sua

função pragmática é sinalizar uma avaliação.

A paródia, portanto, se serve da ironia como recurso privilegiado para

marcar a diferença entre textos em um nível microcósmico, através da inversão

semântica, e num nível macrocósmico através da avaliação pragmática

proporcionada pela ironia.

A recusa pela ironia da univocalidade equipara-se à recusa, pela

paródia, da unitextualidade.

Dessa forma podemos perceber que nada na definição de paródia a

vincula, exclusivamente, à produção do ridículo. O ethos13 paródico vai do

ridículo mordaz à homenagem reverencial e melhor seria apontá-lo como não

marcado.

As paródias atuais não ridicularizam os textos que lhe servem de fundo,

Ulysses de Joyce é um grande exemplo de paródia que utiliza o texto de

Homero não como alvo de crítica, mas como padrão por meio do qual colocam

o contemporâneo sob análise.

Como conclusão tem-se que, ao nível formal, a paródia é sempre uma

estrutura paradoxal de sínteses contrastantes. Ao nível pragmático ela envolve

sempre uma avaliação decodificada pelo leitor através de recursos tais como a

ironia.

Depois de defini-la convém agora distingui-la das demais formas

intratextuais tais como a citação, a alusão, o pastiche e a sátira. Tanto a

13 O termo ethos é aqui entendido como uma reação intencionada inferida e motivada pelo texto.

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paródia como a citação e a alusão são formas de discurso indireto, ou seja, de

referência ao discurso de outrem. Aí reside a única semelhança entre os

termos, pois seus objetivos são bem distintos. A citação e a alusão, embora

sirvam-se de um outro discurso, não o utilizam de forma a tornarem-no parte do

texto produzido.Isto quer dizer que citação e alusão não exigem a mesma

necessária transcontextualização que a paródia.

Com relação ao pastiche a diferença entre os termos é mais tênue.

Ambos efetuam uma síntese bitextual entre textos, ambos têm um ethos não

marcado que vai do cômico ridículo à séria homenagem. Porém, enquanto a

paródia busca distanciar-se de seu modelo marcando sua postura crítica em

relação à obra parodiada, o pastiche acentua a semelhança entre as duas

obras. Essa é, segundo Hutcheon, a principal diferença entre os termos.

Em PSGH a “transcontextualização” textual é do tipo paródica e grande

parte da dificuldade em assim defini-la se deve à limitação de definições

tradicionais sobre o termo. A essência paródica é repetição com diferença

crítica, essa é a grande marca também da obra.

A paródia em PSGH não se constrói, como define Gennete, a partir da

reelaboração do texto de origem. A autora se utiliza de excertos modificados

dos textos bíblicos, porém a transcontextualização paródica se dá, sobretudo, a

partir do reaproveitamento de temas da Paixão de Cristo e da Criação, os quais

são retirados do contexto religioso cristão e colocados numa situação cotidiana:

uma mulher em um apartamento com uma barata.

Quase todos os 33 capítulos 14 articulam-se com temas como: provação,

pecado, danação e redenção, numa gradação que retoma desde a origem

mítica cristã do mundo e do pecado até ao sofrimento transformador da

Paixão.

14 Utilizamos aqui a terminologia capítulo, mas na obra as separação entre as partes não recebe qualquer denominação. Cremos que para fins de análise, a denominação capítulo é mais adequada.

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II. O CAOS

“Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à substância amorfa – a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e

distribuí-la pelos dias e pelas fomes – então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo a vida humanizada.” 15

A experiência do caos compõe o primeiro núcleo paródico presente em

PSGH. Constituído principalmente pelo primeiro capítulo, o caos se traduz,

tanto no conteúdo apresentado, quanto na forma da linguagem adotada,

exprimindo a contradição entre ser e linguagem, responsável pela

desarticulação do universo narrado.

Caos é, segundo a mitologia, o nome dado à primeira divindade a surgir

no Universo. O Caos representa uma força primitiva, vaga e amorfa que

antecede a criação da deusa Gaia (Terra). Os cristãos, utilizando-se de parte

desta simbologia, identificam o caos com um estado anterior à criação da Terra

por Deus. Em sentido corrente, caos é sinônimo de desorganização, confusão,

desordem.

Ao caos, portanto, associam-se as idéias do primitivo, do amorfo, do

desorganizado, que precedem à criação do cosmo ou, segundo os cristãos, à

criação do mundo por Deus. Todas essas concepções estão presentes na

Paixão.

Em PSGH, o caos se instaura a partir da dificuldade de um narrador

instável, estilhaçado, em produzir um discurso sobre a experiência vivida. A

narrativa se articula com uma voz em primeira pessoa que não é capaz ainda

de compreender o que lhe aconteceu, mas que precisa organizar os fatos

vividos em linguagem para tentar compreendê-los.

No dia anterior, G.H. sofrera uma grande e lenta dissolução que foi

responsável pela perda de sua identidade como antes era conhecida e por

torná-la um novo ser para o qual ainda não havia a segurança de qualquer

sistema social. A narradora, portanto, caracteriza-se como uma entidade 15 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.11.

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totalmente abalada em suas convicções, transformada pela experiência vivida

que ainda está sob o impacto dos sentimentos e sensações que essa

experiência desencadeou.

A experiência vivida por G.H. foi de tal forma transformadora que, para

confirmá-la, seria necessário transformar também o mundo inteiro, para que ela

pudesse novamente se ajustar a ele.

Essa contradição entre a experiência vivida e o mundo no qual G.H. se

conhecia e se afirmava determinam sua incompreensão, sua insegurança, sua

desconfiança na capacidade da linguagem, como ela a conhecera até então,

de dar conta dos fatos vividos.

“Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não saber como viver, vivi uma outra?”16 Se o mundo não faz mais sentido como era, a linguagem por ele

utilizada também não faz mais. Segundo a narradora, a palavra mente a coisa.

Entre a palavra e o seu significado, entre uma idéia e sua representação, há

sempre um abismo, uma impossibilidade.

Quando o sujeito não compreende a experiência vivida, cria

inevitavelmente uma outra do tamanho de sua compreensão. Criamos o mundo

através da linguagem e somos por ela também criados. G.H. precisará também

recriar a sua experiência através da linguagem.

“Só posso compreender o que me aconteceu, mas só me aconteceu o que eu compreendo – que sei do resto? o resto não existiu.”17 Dessa forma, a personagem afirma que criamos a experiência, de modo

a dar-lhe uma forma, um sentido humano. Segundo G.H., a visão do Todo não

é apreensível por nós, a visão da carne infinita é a visão dos loucos.

“Quem sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande dissolução? E que minha luta contra essa desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uma forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à substância amorfa – a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos...”. 18

Essa imagem é uma das representações mais consistentes do

incompreensível, do amorfo, do caótico. É necessário cortar a carne em mil

16 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.9. 17 Ibid, p.11. 18 Ibid, p.11.

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pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes para que ela não seja mais a

perdição e a loucura, mas a vida humanizada.

G.H. assume que não é possível retratar fielmente a realidade.

Precisamos da validação humana da experiência, mas esta não é portadora de

seu sentido verdadeiro, como se supunha. É preciso criar sobre o que

aconteceu para tornar os fatos em alguma medida apreensíveis. G.H. precisará

também recriar a experiência vivida através da linguagem.

Criar, contudo, não se confunde com mentir, com fazer com que as

coisas tenham apenas sentido humano:

“Não quero que me seja explicado o que de novo precisaria de validação humana para ser interpretado.” 19

“Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. (...) Entender é uma criação, meu único modo.” 20

Como, no entanto, utilizar essa linguagem que não é portadora da

verdade, mas sim um modo de criação, para relatar com fidelidade o que lhe

aconteceu? Como utilizar essa antiga e convencional forma de linguagem para

dar forma à perda?

O desafio de G.H. é, justamente, utilizar a linguagem, a forma

organizada para dar forma a uma experiência de desintegração, de perda da

identidade, ao amorfo. A linguagem tem que se deparar com seu avesso. Nas

suas próprias palavras: “traduzir o desconhecido para uma língua que

desconheço”.

Ao final do primeiro capítulo G.H. decide, enfim, iniciar o seu relato, mas

se debaterá até o fim da narrativa com essa contradição. Talvez apenas o

silêncio seja capaz de retratar fielmente ao que viveu, no entanto, é preciso

perseguir a longo caminho da linguagem para chegar até ele.

A paródia ao caos, portanto, é realizada, num primeiro plano, através da

criação de um universo narrativo de incompreensão, de desconfiança, de

entrega da personagem à desordem e a confusão que é paralela às definições

mais correntes de caos.

19 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.12. 20 Ibid, p.15.

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16

Entretanto, o caos tem aqui um sentido simbólico mais abrangente,

ultrapassando o sentido de desordem. O caos reflete a impossibilidade de

transformar a experiência vivida em linguagem, remetendo-nos à idéia caótica

de um mundo primitivo, sem formas, sem linguagem, cuja ancestralidade é

indissociável da idéia do Caos cristão – o vazio que antecede a criação. Afinal,

a idéia de um mundo sem linguagem é a idéia de um mundo caótico e primitivo,

a idéia de um mundo anterior ao Verbo, a Deus.

Segundo o livro do Gênesis, a Terra era um vazio sem forma, era trevas

e abismo até que Deus ordenasse o surgimento de tudo que nela se contém:

“E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz. E houve luz.” (Gênesis 1:2-3).

A criação do mundo se dá, portanto, a partir de palavras proferidas por

Deus ou, dito de outra forma, a criação do mundo se dá a partir de linguagem.

Essa afirmação é sustentada por outro trecho bíblico, segundo o qual Deus é

sinônimo do Verbo, da palavra.

“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por ele e sem ele nada do que foi feito se fez.” (João 1:1-3).

Dessa forma torna-se evidente que o caos clariceano retoma também a

simbologia do caos cristão, parodiando o seu significado com uma ironia

refinada.

O caos representa a idéia de um mundo sem linguagem e sem Deus

que, no texto, é percebido como nossa melhor parte, um mundo sem

acréscimos humanos, nosso mais essencial e primitivo significado: ele é o que

de mais fiel e real existem em nós.

Mas caos não se traduz só em tema. Ele faz parte também da forma, da

linguagem adotada, principalmente, no primeiro capítulo. A narrativa começa,

não por acaso, com uma ruptura marcada por seis travessões. O uso da

pontuação indica a separação da personagem narradora de seu mundo e o

mergulho no fluxo de consciência. A partir de então, temos um narrador em

primeira pessoa que tenta organizar um discurso que dê conta da experiência

que viveu no dia anterior.

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17

Situado, portanto, temporalmente depois da experiência que será

narrada pela personagem, o primeiro capítulo tenta organizar no tempo do

discurso o passado narrado, caracterizando-se essencialmente como um

capítulo digressivo. No entanto, o distanciamento entre o tempo do discurso e o

tempo da história não permite, como seria fácil supor, que a memória possa

articular com mais precisão os fatos vividos.

A personagem ainda está sob o impacto dos fatos vividos que não

compreende e por isso não consegue articular facilmente seu relato. O discurso

produzido por G.H. é hesitante, interrompido por incessantes interrogações,

comentários, digressões que produzem no leitor a mesma desconfiança que

G.H. tem sobre a linguagem.

“E - se a realidade é mesmo que nada existiu?! quem sabe nada aconteceu ?”21

“Mas como faço agora? Devo ficar com visão toda, mesmo que isso signifique ter uma verdade incompreensível?” 22

A narradora produz, através de idéias conflitantes e paradoxais, o

mesmo efeito caótico produzido pela temática textual, tornando o caos um

dado concreto percebido na leitura. Através da utilização de figuras de

linguagem tais como o paradoxo e o oxímoro, o texto vai desconstruindo toda

possibilidade de certeza sobre o signo, instaurando sua dificuldade, sua

impossibilidade de representação do real.

“E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive:” 23 (paradoxo)

“Estou desorganizada porque perdi o que não precisava?”24 (paradoxo)

“... experimentei a vivificadora morte.”25 (oxímoro).

“Todo momento de achar-se é um perder-se a si próprio.”26 (paradoxo).

Esse efeito concentra-se, sobretudo, no primeiro capítulo, onde não há

propriamente ação narrativa, mas sim uma grande digressão, no entanto, toda

a obra se constitui a partir desse questionamento sobre a linguagem aqui

iniciado. A narrativa parte do caos, da desorganização para uma tentativa de 21 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.11. 22 Ibid, p.11. 23 Ibid, p.9. 24 Ibid, p.9. 25 Ibid, p.12. 26 Ibid, p.12.

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criação de um discurso que possa, ao menos em parte, dar conta do vivido

para enfim assumir a desistência, cujo prêmio final é o silêncio.

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III. PROVAÇÃO

“Provação: significa que a vida está me provando. Mas provação significa que eu também estou provando. E provar pode se transformar numa sede cada vez mais

insaciável.” 27

O segundo pólo paródico presente em PSGH articula-se em torno da

experiência da provação. A narrativa subverte ironicamente o sentido cristão

do padecimento imposto para nos testar, impondo a G.H. a tentação através de

uma barata.

Segundo a liturgia cristã, as provas são instrumentos utilizados por Deus

para revelar nosso verdadeiro caráter. A provação é uma forma de sofrimento,

através do qual Deus nos experimenta e conhece o que há de verdadeiro em

nossos corações.

Ainda segundo os cristãos, há vários tipos de provas a que podemos ser

submetidos tais como doenças, perseguições ou tentações. A tentação é um

tipo de provação desencadeada por Satanás para induzir-nos ao pecado.

Na Bíblia, muitas vezes, provação e tentação são usadas como

sinônimos, porém é na indução ao pecado que reside a principal a diferença

entre ambas. Enquanto que a provação é provocada por Deus para nos tornar

cônscios de quem somos, a tentação, quando não é vencida, conduz

inevitavelmente ao pecado.

No livro do Gênesis é narrada a primeira provação imposta ao homem: a

tentação no paraíso. Depois de criar o primeiro homem e a primeira mulher do

mundo, Deus os coloca no jardim do Éden, uma espécie de paraíso mítico,

onde eles gozavam de prosperidade e vida eterna. Tendo direito e acesso a

tudo o que esse paraíso continha, ao homem só era proibido provar dos frutos

da árvore do conhecimento.

27 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.84.

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Ciente desta proibição, Satanás decide tentar homem e mulher,

utilizando-se de um animal. A serpente é o ser escolhido para levar Eva a

cometer o pecado. Fazendo-lhe crer que através da prova do fruto proibido,

Eva tornar-se-ia igual a Deus, a serpente faz com que ela prove do fruto

proibido e também induza Adão a prová-lo.

A partir de então o destino humano estará selado. Como homens

descendentes de Adão e Eva, somos também descendentes do pecado e por

isso estamos fadados à perda da imortalidade e à necessidade de trabalho

como forma de garantir o sustento.

A provação, portanto, carrega dois sentidos semânticos associados a

essa mitologia. O ato de provar pode significar experimentar, sentir o gosto,

mas também experimentar sofrimento, dar prova ou testemunho de uma

verdade, de uma realidade.

Em PSGH a experiência da provação carrega todos esses significados.

A prova a que é submetida G.H. é uma experiência de sofrimento e de

revelação e também uma experiência de provar, de experimentar pelo gosto.

Através de um fato absolutamente banal e corriqueiro, o aparecimento de uma

barata, essa personagem revela o seu verdadeiro caráter e comete um pecado.

G.H. é a personagem principal desta narrativa, identificada apenas por

suas iniciais Trata-se de uma mulher de vida mundana e superficial que está

presa às noções de bom senso, beleza e ordem. Construção da classe social a

que pertence, G.H. é a representação de um mundo alheado da sua realidade,

a qual se reflete em seu apartamento.

“Tudo aqui é réplica elegante, irônica e espirituosa de uma vida que nunca existiu em parte alguma: minha casa é apenas uma criação artística”. 28

É essa mulher que, tomada por profundo desejo de ordenar, decide

arrumar o quarto da empregada que se demitira no dia anterior, atravessando o

corredor escuro disposta a limpar o imundo.

Ao entrar no quarto da empregada, entretanto, G.H. é surpreendida por

um ambiente limpo, vazio, seco. O quarto já não servia mais a sua dupla

28 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.21.

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função de morada e depósito. Janair, a empregada recém demitida, criara ali

um espaço para si.

O quarto continha apenas uma cama, um velho guarda roupa, algumas

malas e uma inscrição na parede: um desenho a carvão de um homem, uma

mulher e um cão, formados apenas por contornos. Nenhum desses elementos,

entretanto, alterava o vazio do quarto que é comparado ao retrato de um

estômago vazio.

Abandonando o espaço público e social da sala, onde o senso estético e

de ordenação predominam, G.H. dirige-se ao espaço privado da área de

serviço, onde Janair criara um espaço apenas suficiente à vida.

Do modo como a empregada o deixara, o quarto não poderia pertencer

ao resto do apartamento. Ele representava uma ausência, um vazio que

incomodava. Era preciso tomar posse daquele ambiente novamente. A decisão

de limpar o quarto é uma tentativa de reintegração de posse, que, entretanto,

será rapidamente malograda pelo surgimento de uma barata.

Embora portadora de um sentido simbólico, a barata, aqui não é um ser

alegórico, mas o animal real, responsável por provocar asco e medo em

mulheres. Esse animal representa vida na nudez do quarto, a vida que levará

G.H. a se despersonalizar, ela é o ser responsável pelo desencadeamento da

experiência de despersonalização da personagem e pelo seu rompimento com

o sistema. A barata é quem desencadeia a tentação de G.H.

Inicialmente a presença da barata desperta em G.H. a capacidade de

violência, o desejo de matar. Diante do repugnante e do imundo, a personagem

fica entregue aos seus instintos mais primitivos, colocando-se no mesmo nível

da natureza. Assassinar a barata é a maneira pela qual a personagem tenta

trazer de volta o mundo como ela o conhece.

Disposta, portanto, a matar a barata, G.H. fecha em um só golpe a porta

do guarda-roupa sobre o corpo do animal, mas não alcança o intento

pretendido. A barata, ainda viva, expele sua massa branca para fora do corpo

ferida. Faltava ainda um golpe, mas ao ver sua vítima agonizando G.H. recua.

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22

G.H. está, portanto, diante de um ambiente que lhe é profundamente

hostil pela presença de vida que ela ignorava. Janair e a barata são os

verdadeiros habitantes do quarto, os seres pelos quais ela sempre guardou

indiferença, ódio e até repugnância.

Ao olhar para o corpo da barata, entretanto, tem início um processo de

reconhecimento e identificação, que a levará a provar da massa branca da

barata.

G.H., vendo e sendo vista pela barata, toma consciência da vida no

outro. A vida que é essência e matéria-prima de tudo o que existe. A mesma

matéria-prima, a mesma matéria do Deus que forma todas as coisas e que está

presente nela, em Janair e na barata. Presa pela cintura na porta do guarda-

roupa, a barata é como qualquer fêmea, “pois o que é esmagado pela cintura é

fêmea”.29

“Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru, matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama- era lama, e nem sequer lama úmida e ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentidão as raízes de minha identidade.”30

“A vida se vingava de mim, e a vingança consistia apenas em voltar, nada mais.” 31

A barata representa, portanto, o apelo de um mundo anterior ao

humano, animal que chama G.H. para sua identidade mais pura. A barata era a

vida que olhava para G.H. Um ser cru, repugnante, matéria-prima de tão

primitivo. G.H. vê a barata e reconhece nela sua identidade mais profunda. O

seu ser também vinha de uma fonte anterior à humana.

“Era isso então. É que eu olhara a barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda. Em derrocada difícil, abriam-se em mim passagens duras e estreitas.” 32

Conforme aponta Benedito Nunes33 o olhar inumano, anterior e contrário

ao seu cotidiano, subtrai a identidade de G.H. e a leva a dar o passo em

direção à desordem.

29 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.60. 30 Ibid, p.38. 31 Ibid, p.46. 32 Ibid, p.38. 33 Benedito Nunes, O itinerário místico de G.H. In: O drama da linguagem. p.61.

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23

A barata assemelha-se a uma mulata. À morte, a barata, pode ser

Janair, mas também pode ser a própria G.H.. A barata é a própria vida

pulsando.

“A barata não tem nariz. Olhei-a, com aquela sua boca e seus olhos: parecia uma mulata à morte. Mas os olhos eram radiosos e negros. Olhos de noiva. (...)” 34

Através deste processo de identificação entre a barata e G.H., a

existência de vida é percebida no outro, a existência fora de si. A barata seduz

G.H. com seus cílios, lábios e boca e mostra que tudo o que é vivo é feito do

mesmo.

Nessa paródia à provação cristã, portanto, o quarto de Janair se

transfigura em deserto pela sua associação à secura, ao vazio e solidão.

“E na minha grande dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? eu estava no deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamava como um cântico monótono chama. Eu estava sendo seduzida e ia para essa loucura promissora.”35

A barata é a transfiguração da serpente, o animal que impele G.H. a

realizar o ato proibido, a prova do interdito, do imundo, através de sua sedução.

“A barata que enchia o quarto de vibração enfim aberta, as vibrações de seus guizos de cascavel no deserto.” 36

A utilização da palavra provação em PSGH, portanto, não é algo

aleatório, mas que remete parodicamente à provação cristã, através da

retomada de vários textos bíblicos.

O primeiro texto retomado é o Gênesis, de onde é utilizada a idéia de

uma provação, de um teste, através da prova pelo sabor de algo proibido. Do

Gênesis também é a referência à serpente, na qual a barata se transforma.

A transformação do quarto em deserto, por outro lado, parodia uma série

de significados religiosos atribuídos ao deserto que é um local tradicional de

provação.

Para os judeus, por exemplo, o deserto é o local de uma realidade

ambivalente: por um lado ele é a experiência de um tempo árido e terrível e por

outro é o tempo em que se experimenta a maior intimidade com Deus, que

remetem principalmente aos livros do Êxodo e do Deuteronômio. 34 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.37. 35 Ibid, p.40. 36 Ibid, p.39.

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Outro importante significado atribuído ao deserto está contido no Novo

Testamento, no livro de Mateus, onde é narrada a tentação de Cristo por

Satanás. Ali o deserto aparece como metáfora da privação e do sofrimento que

nos prepara para a alegria e abundância, através da fé em Deus.

Todos esses sentidos são, no entanto, subvertidos em PSGH, trazendo

para uma experiência moderna a essência do sentido místico revelado pela

provação.

O sofrimento da personagem é ter que se deparar com a pobreza, com

a miséria, com o sujo, com o feio, com tudo o que é contrário ao seu mundo

puramente estético. A partir deste encontro com um mundo que ela sempre

quis ignorar, a personagem terá que reconhecer que Janair e a barata também

sempre estiveram vivas ali e que há vida em diversas formas. G.H. percebe

que tanto ela quanto Janair e a barata são feitas do mesmo e só por mera

criação humana é que se crêem distintas.

O quarto transformado em deserto representa sim um espaço de

privação e de sofrimento, mas não propriamente a privação vivida por G.H. O

quarto é o retrato da vida miserável a que estava submetida Janair, o que G.H.

terá que admitir e reconhecer.

A serpente não é aqui a representação de Satanás, mas uma simples

barata que, com sua natureza imunda e marginal, impõe a G.H. o

reconhecimento de uma condição de vida totalmente avessa à sua concepção

de mundo organizado.

Confirmando a teoria de Linda Hutcheon, a paródia é repetição com

diferença, transcontextualização com reversão irônica. A reelaboração da

provação cristã aplicada a um contexto cotidiano e banal, torna o confronto

entre uma mulher e uma barata uma experiência mística, transformadora, mas

que ironicamente não leva à transcendência.

A provação de G.H. é, portanto, aceitar e reconhecer a vida em todas as

formas, depois de passar pelo sofrimento da despersonalização. A provação,

no entanto, a levará a cometer o pecado.

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IV. O PECADO

“O pecado renovadamente original é este: tenho que cumprir a minha lei que ignoro, e se eu não cumprir a minha ignorância, estarei pecando originalmente contra a vida.” 37

Em PSGH, o pecado é assumido em termos absolutamente paradoxais

e conflitivos. A narradora afirma que revive o pecado original, o qual,

entretanto, é compreendido em termos contrários à tradição religiosa.

Depois de prender a barata sob o guarda-roupa para tentar matá-la, G.H

vive uma experiência de repugnância e sedução, um misto de nojo e fascínio

que lhe faz abandonar sua vida cotidiana e reverte seu espaço cotidiano numa

paisagem onírica e alucinatória. Essa experiência paradoxal é a náusea, a

qual representa um mal estar súbito do corpo que é transmitido à consciência e

que revela, por meio do fascínio do objeto visto, uma nova realidade.

Conforme aponta Benedito Nunes, aproximando a náusea sartreana da

náusea vivida por G.H.:

“Em Sartre como em Clarice, a náusea, que neutraliza o poder dos símbolos, é o ponto de ruptura do sujeito com sua praticidade diária. Foi possuída pela náusea, ao contemplar face a face a barata esmagada que G.H. soçobrou na existência anônima das coisas que se tornou partícipe, desligando-se da linguagem e do eu ao mesmo tempo. “ 38

A náusea representa, portanto, o ponto de ruptura entre G.H. e o seu

mundo e a sua queda aos apelos de um mundo inumano, abissal, que

reivindicava a sua vida, a raiz de sua identidade.

Ao contrário da náusea sartreana, entretanto, a náusea vivida por G.H.

não se converte em experiência do absurdo injustificável da existência humana.

Em PSGH, ela é uma experiência vivida por meio de um êxtase místico que

estabelece a relação de participação entre o sujeito humano e a realidade não

humana, através do ritual.

A partir da náusea, G.H. passa a reconhecer na barata, algo familiar,

conhecido. Segundo a personagem, a barata também deveria ser fêmea. O

37 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H . p.63. 38 Benedito Nunes, O mundo da náusea e o fascínio da coisa. In: O drama da linguagem. p.121.

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seu corpo preso pela cintura à porta do guarda-roupa, os seus olhos

comparados a dois ovários, tudo isso despertava em G.H. uma idéia de

feminilidade que aproxima o animal e a mulher. Mas não é só isso, tanto G.H.,

quanto a barata representam sujeitos bi-partidos. A barata está fendida pela

porta e G.H. pela sua existência real e neutra e a vida artificial que criou.

A personagem percebe que há algo comum, primeiro que é matéria

bruta de todos os seres. Até esse momento, ela não era capaz de reconhecer

vida além dos limites de sua classe social. Os seus sentidos estavam viciados

pelo gosto, pelas convenções, pela “sentimentação”39 humana e não lhe era

possível sentir o gosto do neutro, da matéria bruta de todas as coisas.

Se a barata é esse ser aparentemente tão nefasto, porque foi criada pelo

mesmo Deus que, segundo as sagradas escrituras, criou G.H. e Janair. Se o

imundo é tão ruim, porque então Deus o criou?

“Eu me sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos. Por que foi que a Bíblia se ocupou tantos dos imundos, e fez uma lista de animais imundos e proibidos? por que se, como os outros, também eles haviam sido criados? E por que o imundo era proibido? Eu fizera o ato proibido de tocar no imundo.” 40

A sede de saber, a curiosidade malsã, que remetem tanto ao mito

fáustico quanto ao desejo de conhecimento adâmico, consomem a

personagem. Haveria vida na barata? A mesma vida que é matéria bruta em

G.H., também faria parte da barata?

“Eu tinha que cair na danação de minha alma, a curiosidade me consumia.”41

G.H. precisa saber, mas para isso terá que abandonar o mundo como

conhecia e romper com suas noções de ordem, de belo, de senso. Para saber

o que é a vida, G.H. terá que estar à altura da natureza mais primitiva,

humilhar-se e ceder aos seus instintos ignorados. Em última instância, terá que

conhecer a vida, através de seu extremo oposto: a morte da barata.

Para romper sua ignorância e sentir a verdadeira identidade das coisas,

G.H. abandona sua forma humana e se entrega ao ritual.

39 Termo utilizado por Clarice Lispector em PSGH para indicar a criação sentimentos. 40 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.46, grifo meu. 41 Ibid, p.39.

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O termo ritual é um conceito abrangente e marcado por várias

interpretações, das quais nos interessa, aqui, apenas no seu sentido mais

essencial, cujo significado é recuperado na experiência mística de G.H..

Em linhas gerais, o ritual pode ser definido como uma forma de interação

que marca uma ruptura no tempo cheia de significado próprio. O ritual é um

processo que implica na associação de símbolos a gestos e ações que tenham

um sentido especial para quem os pratica, correspondendo, portanto, a uma

representação simbólica de um conceito, de uma idéia.

Segundo Gennep, os rituais podem marcar também uma passagem,

dando expressão simbólica ao fato de que uma pessoa ou um grupo social

passava para uma nova etapa da vida ou mudava algum aspecto significativo

de seu status social. Exemplos desses rituais, chamados ritos de passagem,

são os casamentos, os funerais, ordenações e posses para novos cargos etc42.

Os ritos de passagem, ainda segundo Gennep, têm todos uma ordem

comum: há primeiro uma separação do indivíduo de suas condições prévias,

depois um estágio de transição e finalmente a incorporação a uma nova

condição ou reagregação à antiga ordem.

O ritual vivido em PSGH é uma experiência de comunhão, de ingestão

sacrílega de um animal que remete ao ritual católico da eucaristia, mas que

também está associado a rituais primitivos de incorporação.

Na primeira fase deste ritual, G.H. rompe com sua condição prévia

através da náusea e do reconhecimento de si na figura da barata. Depois desta

fase é que tem início a própria experiência simbólica, cuja representação se dá

na ingestão da matéria de dentro da barata e corresponde a perda da

identidade de G.H. como antes era conhecida.

Conforme aponta Benedito Nunes43, a experiência de desapossamento

da individualidade, de perda da identidade só se dá com a ingestão da barata.

G.H. quer livrar-se de todo acréscimo e para isso precisa redimir-se na própria

42 Citado por Mariza Peirano, Rituais ontem e hoje. passim 43 O itinerário místico de G.H. In: O drama da linguagem, p. 65.

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coisa numa espécie de comunhão negra, sacrílega e primitivista em que se

assimila a vida divina na própria matéria viva.

A ingestão da massa da barata representa o ponto máximo deste

pecado transmutado em ritual de redenção. A manducação é uma espécie de

comunhão sacrílega que remete, sem dúvida, ao ritual da eucaristia. A partir

desse momento, G.H. revive a origem do mundo e se une à divindade. Para

esse pecado não há danação, nem transcendência, apenas o gosto do neutro e

de um Deus indiferente.

Simplificando, pode-se dizer que o pecado de G.H. consiste

basicamente em provar da matéria expelida pelo corpo da barata, contrariando

a proibição bíblica de tocar no imundo. No entanto, o pecado cometido por

G.H., além de uma transgressão a uma interdição bíblica, representa a

realização de um ritual místico às avessas em que o imundo é o objeto de

comunhão.

Historicamente a noção de pecado está associada a contextos

religiosos, correspondendo a qualquer ato de desobediência à vontade Deus.

Segundo a perspectiva judaico-cristã, o pecado é uma violação de um

mandamento divino, que não está necessariamente ligada a uma falta moral.

Esse discurso foi criado, principalmente, a partir do livro do Gênesis.

Teólogos como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, baseando-se no do

ato o de desobediência cometido pelo homem ainda no paraíso, conceituaram

o pecado como toda ação, palavra ou cobiça cometida contra as leis divinas.

Para os cristãos, o pecado revela nossa natureza fraca, nossa inclinação

para o Mal. Como criaturas que falham e pecam, desde a criação, somos

naturalmente incitados a fazer o mal, embora possamos escolher não fazê-lo.

Essa possibilidade de escolha nos faz responsáveis pelos atos que

cometemos.

A conseqüência mais imediata do pecado é a culpa, o sofrimento, mas

há outros tipos de punição, de acordo com a gravidade do ato cometido. A

mais severa punição imposta ao homem é a danação, que corresponde à

condenação da alma ao Inferno. Para livrar-se dessas penas, cabe ao homem

o arrependimento e a expiação como forma de unir-se novamente à divindade.

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Segundo a Psicologia e a Sociologia, entretanto, o pecado é um

instrumento utilizado pela Igreja para provocar no homem a consciência sobre

seus atos e submetê-lo à culpa.

O conceito de pecado, portanto, está marcado por uma concepção cristã

de mundo, segundo a qual a transgressão de um preceito religioso implica em

uma necessária culpa e expiação.

A experiência vivida por G.H., entretanto, reverte parodicamente esse

conceito de pecado, transformando-o numa experiência ritualística que remete

a vários elementos da tradição: desde o pecado original até a eucaristia,

passando pelo mito fáustico, pelos ritos de passagem até os rituais sacrílegos

do Sabath. Toda essa multiplicidade de referências dá à obra inúmeras

possibilidades de leitura dentre as quais destacamos principalmente a de

Benedito Nunes que associa essa experiência aos rituais de ascese e a de

Afonso Romano de Sant’Anna que a associa aos rituais de passagem.

Para a análise aqui proposta, entretanto, as referências cristãs são

definidoras. Embora essas referências em seu sentido tradicional sejam a todo

o momento parodiadas, é a partir delas que a obra se estrutura.

Conforme já exposto, segundo a ortodoxia cristã, o pecado constitui um

ato consciente e voluntário de desobediência às leis divinas. A ação cometida

por G.H., embora não seja totalmente voluntária, caracteriza-se como pecado

por se opor diretamente ao texto do Levítico:

“Tudo o que anda sobre o ventre, e tudo o que anda sobre quatro pés, ou que tem mais pés, entre todo o réptil que se arrasta sobre a terra não comereis, porquanto são uma abominação. Não façais a vossa alma abominável por nenhum réptil, nem neles vos contamineis, para não serdes imundos por eles.”44

Segundo esse texto, ao homem é proibido provar, tocar ou alimentar-se

dos seres ditos imundos. Embora a barata não seja aí explicitamente citada,

podemos enquadrá-la entre todos os seres que rastejam e que, por andarem

sobre o próprio ventre assim como a serpente, são ditos imundos.

No momento em que G.H. transgrediu o interdito bíblico, cometeu, sim,

um pecado pela concepção original, porém o que é ressaltado nessa ação

44 Levítico 11:42:43, grifo nosso.

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transgressora não é nem culpa, ou arrependimento, mas uma revelação. Ao

provar da barata, G.H. descobre que o imundo não é imundo e que tudo o que

é vivo é feito do mesmo. O imundo é apenas a raiz das coisas. O imundo é o

ser sem acréscimo, nunca enfeitado.

Essa concepção de pecado é por si só bastante revolucionária. Como

definido, inicialmente, pela narradora, na Paixão, a transgressão consiste em

cumprir uma lei ignorada, mas uma lei. A lei que é seguir o instinto humano, o

lado animal e natural que há em nós.

Ao se deixar seduzir e provar da barata, G.H. toma consciência de si

mesma como se toma consciência de um sabor. Assim como Adão e Eva, é

através da prova do fruto proibido que se chegará ao conhecimento.

“É que nesses instantes, de olhos fechados, eu tomava consciência de mim assim como se toma consciência de um sabor: eu toda estava com sabor de aço e azinhavre, eu toda era ácida como um metal na língua, como planta verde esmagada, meu sabor me veio todo à boca.” 45·

Provando da barata, G.H. está se colocando também no mesmo nível

desse ser. Ela e a barata faziam parte de um mesmo plano e não havia mais

diferença entre ambas para Deus.

G.H. como era conhecida morria, se desumanizava para entrar no seio

da natureza. O tempo se torna um agora. Entrar não era pecado, mas era a

danação de sua vida como ela conhecia anteriormente.

“Eu sabia que entrar não era pecado. Mas é arriscado como morrer. Assim como se morre sem saber para onde, e esta é a maior coragem de um corpo. Entrar só era pecado porque era a danação de minha vida, para a qual eu depois não pudesse mais regredir. Eu talvez já soubesse que, a partir dos portões, não haveria diferença entre mim e a barata. Nem aos meus próprios olhos nem aos olhos do que é Deus.” 46

Mas não é apenas através da violação do interdito bíblico que G.H.

comete um pecado. A experiência ritualística que compõe esse ato é também

uma inversão do sentido original do ritual eucarístico, o qual será aqui

transformado em ritual sacrílego.

O ritual de eucaristia consiste em uma celebração, na qual os cristãos

recebem o pão (representado pela hóstia) e o vinho, repetindo os atos que

Cristo fez na última ceia. A ingestão do pão representa o corpo de Cristo 45 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.36. 46 Ibid, p.53.

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concebido sem pecado, que foi oferecido na cruz para nos salvar, da mesma

forma que o vinho é a representação do sangue derramado para remissão de

nossos pecados na Paixão. A Eucaristia representa, portanto, o próprio

sacrifício de Cristo na cruz, o qual é instituído como prática ritualística para

perpetuar o sacrifício da cruz, encher nossa alma de graça e nos fazer crer na

vida eterna, através da ressurreição.

A paródia ao pecado se constitui a partir de uma idéia de pecado

original, contida no Gênesis que se pode resumir como o desejo de provar pelo

gosto algo proibido. O novo fruto deste pecado está, entretanto, explicitamente

proibido a humanidade no livro do Levítico que não nos permite provar do

imundo.

Para G.H., no entanto, o pecado representa uma possibilidade de

redenção. Ingerir a barata representa uma possibilidade de arrependimento

pelo tratamento dispensado, por exemplo, a Janair. Provar da barata a

colocaria no mesmo nível que o mais abjeto dos seres, no qual ela também se

reconhecia e é por isso que ela transforma o seu ato transgressor em um ritual.

A ritualização da manducação é a tentativa de tornar sua experiência

uma espécie de comunhão com o Deus e de conhecer a si mesmo em

essência.

Para G.H., o ritual é a marca de Deus. Nosso único destino. Pelo pecado

original, foi revelada nossa verdadeira condição de seres que falham, que

faltam, mas é através desse mesmo pecado que nos aproximamos de Deus.

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V. DANAÇÃO E PAIXÃO

"Então - então pela porta da danação eu comi a vida e fui comida pela vida. Eu entendia que meu reino é deste mundo. E isto eu entendia pelo lado do inferno em

mim. Pois em mim mesma eu vi como é o inferno."47

A danação é a conseqüência do pecado cometido por G.H. Ao provar da

massa da barata, a personagem reconhece que estará condenada ao Inferno,

mas essa força demoníaca que dela se apossa não é mais punição. Na

“mística ao revés”48 vivida pela personagem, a danação se converte em

redenção e a paixão passa a ser a única marca da existência humana.

De fato, quando G.H. prova da barata, conhece o Inferno, mas este só

existe nela mesma. O inferno de G.H. é simplesmente a aceitação da dor, a

falta de piedade pelo destino humano, é uma grande indiferença que tudo

absorve.

Esse inferno não é, então, punição, mas a nossa própria condição de

existência. É o que existe de concreto antes da criação de um conceito artificial

de humanidade que ignora nosso destino fatal.

A experiência da danação vivida pela narradora é, portanto,

compreendida em termos absolutamente paradoxais. É um misto de gozo e de

dor, de lágrima e riso que resumem a negação da esperança e da

humanização, para afirmar a verdadeira condição humana: nossa sujeição à

dor.

Ao libertar-se de todo acréscimo, de toda a sua artificialidade, G.H.

percebe que ser humano se transformou num ideal, quando deveria ser o modo

pelo qual seguimos simplesmente aquilo que é o humano.

“O mundo não tem intenção de beleza, e isto antes teria me chocado: no mundo não existe nenhum plano estético, nem mesmo o plano estético da bondade, e isto antes me chocaria. A coisa é muito mais que isto. O Deus é maior que a bondade com sua beleza.”49

47 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.77. 48 Termo cunhado por Luís Costa Lima em seu ensaio “A mística ao revés de Clarice Lispector”. 49 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.102.

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Toda a idéia de humanização está baseada apenas numa esperança. A

esperança de uma vida melhor, a esperança de dias melhores, enfim, a idéia

de que algo pode ser melhor em algum outro lugar ou em outro tempo que

nunca se realiza. É preciso ser simplesmente o já, afirma G.H.

A negação dessa possibilidade de vida melhor, além da nossa

existência, é em essência a negação da própria idéia tradicional de

transcendência e de Deus.

Conforme aponta Benedito Nunes50, na maioria das religiões, Deus e o

homem ocupam necessariamente planos ontológicos distintos. O homem é

marcado pela carência, pela falta, e está num plano inferior, enquanto que a

divindade, representando a promessa de uma nova vida e da salvação, está

sempre num plano superior.

A relação entre Deus e o homem, portanto, se dá sempre através de

uma promessa de união que só pode ser cumprida através da ascensão do

homem ao plano divino, ou seja, através da transcendência.

Ao contrário dessa ascensão, no entanto, o que G.H. experimenta com a

manducação é uma grande indiferença. A tentativa de comunhão de sua alma

com Deus resulta na percepção de que o que se quer é apenas uma divindade

humana. Não precisamos de alma. Deus que não é nem bom, nem mal, é

apenas indiferente. Deus é a vida indiferente que segue seu rumo interessada

somente em caminhar.

A ritualização da manducação, portanto, não resulta, como seria

esperado, no acontecimento de algo extraordinário. G.H. não é fulminada pela

fúria divina, nem tão pouco encontra a comunhão de sua alma com um plano

supra-real que é Deus.

Depois do mergulho no abismo da consciência, da identidade, através

da realização do ritual, apenas o cotidiano retorna com sua força indiferente.

Como observou Luís Costa Lima51, a experiência mística vivida por G.H. não

50 O itinerário místico de G.H. In: O drama da linguagem, p. 69. 51 Luís Costa Lima, A mística ao revés de Clarice Lispector. In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Ed. Crítica. Coord. Benedito Nunes.

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leva a sua alma à comunhão com Deus, mas ao seu encontro com as coisas

que compõem o real, o presente humano.

A experiência mística de G.H. não é algo transcendente, mas que se

realiza na prática diária e cotidiana, através do reconhecimento da vida e do

divino. O divino para G.H. é o real. Não há alma imaterial. O milagre é uma

anomalia.

A danação experimentada pela narradora, portanto, não representa a

condenação ou punição a martírios que não sejam próprios da condição

humana.

Contrariando a doutrina cristã segundo a qual a danação representa a

condenação eterna da alma humana ao Inferno, resultado de um ato grave e

voluntário de desobediência às leis divinas (pecado mortal) que nos faz perder

a graça divina, PSGH subverte, através da paródia, a idéia tradicional de

danação.

Na Paixão o pecado também leva à danação, porém a perda da graça

divina, a experiência do Inferno, é percebida como algo positivo e revelador.

G.H. não quer mais ser partícipe de uma relação com o divino que é baseada

apenas na esperança, na transcendência, e que não reconhece a condição real

de nossa existência. A perda da graça divina é o reconhecimento de Deus

simplesmente no real.

G.H. nega a idéia tradicional de existência de um Deus providencial,

pessoal e transcendente. Deus é o que existe. Não é nome próprio, mas

substantivo comum, essência de todas as coisas e é por isso que a partir de

sua experiência G.H. irá se referir a ele como "o Deus", com o artigo definido.

“Porque o Deus não promete. Ele é muito maior do que isso: Ele é, e nunca pára de ser. Somos nós que não agüentamos essa luz sempre atual, e então a prometemos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já. O presente é a face hoje do Deus.” 52

Ao contrário do que afirmam os textos religiosos, Deus é uma figura

sempre atual e presente. Ele quer que sejamos com Ele o mundo. Segundo

52 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.94.

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G.H., podemos ser como Deus, mas não vê-lo, mas para isso é necessário o

despojamento de tudo o que é o humano.

No Inferno do seu próprio sofrimento, G.H. reconhece que:

“Eu não sou Tu, mas mim és Tu. Só por isso é que jamais poderei Te sentir direto: porque és mim.” 53

Essa afirmação aparentemente tão contraditória resume a concepção

que G.H. faz de sua relação com o divino. Para ela o sujeito, representado pelo

pronome eu, que é gramaticalmente sempre o agente da ação, não pode ser

esse Tu identificado como Deus. Ao contrário, ela afirma que somente um mim,

o pronome objeto e, se quisermos ir mais longe, o sujeito despido de

identidade, de construção humana é que é capaz de sentir o que é Deus.

É justamente que aconteceu com G.H. ao provar da barata e perder sua

identidade. Só assim é que lhe foi possível saber o que é Deus: através de um

eu desapossado de si mesmo e que é identificado como mim.

Para G.H. nossa relação com Deus é guiada exclusivamente pela

necessidade: a fé e a fome. Nossa carência determina o quanto de Deus

teremos. Deus nos usa, pois ele precisa ser amado e para que o amemos é

necessário precisar de tudo, estar vazio. Essa é a chave da paixão.

Só temos de Deus o que nos basta. É por isso que quanto mais

precisarmos, mais Deus teremos. Nossa nostalgia, portanto, não é do Deus

que nos falta, mas de nós mesmos que não somos bastante. Sentimos falta de

nossa grandeza impossível.

Deus nos usa e não impede que também o usemos. Nós é que ainda

não estamos preparados para usá-lo numa intertroca. Deus está sempre.

Como está o leite, a flor ou o minério que, se ainda foi explorado, não é

responsável por não ter sido usado.

G.H. conclui que tudo está. Assim como, por exemplo, o remédio para a

cura do câncer está. Se não o descobrimos é porque certamente ainda não

precisamos não morrer de câncer.

53 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.85.

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A revelação do amor também é uma revelação de carência.

Abandonando a esperança, G.H. celebra a própria carência, assume sua falta e

em última instância a sua condição de vida.

Temos que assumir a promessa que se cumpre: a realidade. E para

isso abandonar a idéia de beleza e de bondade, o plano estético. G.H. precisou

passar pelo Inferno para poder reconhecer que há um modo muito mais

profundo de amar que prescinde desse plano estético

A partir da danação, G.H. reconhece que sua vida anterior era

exatamente o seu mal, pois era apenas a imaginação de uma esperança de

algo melhor. Era preciso encontrar a redenção, mas a redenção no real, no

hoje, no já.

Mas, ao contrário da redenção cristã, a redenção de G.H. teria de se dar

na própria coisa. Ter nojo seria negar a sua primeira vida. Não precisa

transcender mais. Teria de cometer o anti-pecado, comendo a barata e

atravessando uma sensação de morte. Mas ao comer a barata, G.H. percebe

que também não está preparada para admitir uma vida maior que a sua.

G.H. transcende o próprio ato de comer da barata, crendo que com isso

teria a maior transmutação de si em si mesma. Ela dá a esse ato uma

valoração máxima, quando na verdade acaba por tentar cuspir o corpo

ingerido, demonstrando que só está preparada para a vida humana.

De fato, se G.H. sentiu algum remorso por não reconhecer a vida

presente na barata e em Janair ela coloca na possibilidade de comer a barata

uma forma de redenção: ato máximo. No entanto, ela não faz nada

verdadeiramente por aquelas figuras, mas por si mesma. Através da barata,

G.H. quer conhecer-se a si mesma.

A experiência de G.H. é, portanto, uma experiência psicológica de

sofrimento e descoberta que reinterpreta a história da paixão de Cristo. Livre,

no entanto, de toda a noção convencional de moralidade, essa narrativa afirma

que a paixão, o sofrimento é em essência a condição humana.

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“E é aceita a nossa condição como a única possível, já que ela é o que existe e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão. A condição humana é a paixão de Cristo.”54

Temos que aceitar sem piedade por nós mesmos a nossa condição.

Nesse sentido, a figura de Jesus Cristo representa o divino real. Cristo é

o ser que vai da promessa à realização. Através de sua morte, de seu

sofrimento, ele salva a humanidade, mas para isso ele precisará agüentar toda

a sorte de suplícios.

Para G.H. assim também é a vida humana. Temos que assumir nossas

faltas, nossa miséria, nosso destino fatal sem tentar enfeitá-lo, torná-lo mais

bonito e irreal. O sofrimento é sim a condição do homem. A dor não é alguma

coisa que acontece, mas o que somos.

G.H. também irá sofrer, se despersonalizará. Irá construir toda uma voz

até chegar à conclusão de que apenas a mudez é capaz de revelar o que

viveu. A desistência será sua última revelação.

54 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.112.

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VI. CONCLUSÃO

Conforme se pretendeu evidenciar, a paródia é o principal recurso de

composição de PSGH. Através do diálogo paródico com textos da tradição,

especialmente os religiosos, a narrativa amplia suas possibilidades de

significação quase que indefinidamente podendo ser lida como uma

experiência mística individual e até como uma nova releitura bíblica.

A utilização da paródia nesta obra não se dá no sentido mais tradicional

do termo que a associa ao cômico e burlesco, mas através de uma

reelaboração irônica séria de temas e conceitos religiosos que são fundadores

da moralidade cristã e por extensão de todo um passado coletivo herdado ao

Ocidente.

A Paixão retoma temas extremamente caros à tradição religiosa, cujas

referências estão quase sempre no antigo testamento e que são aplicados a

um contexto absolutamente cotidiano para romper com os significados

tradicionais e convencionais.

Por sua vez, a utilização do sagrado num contexto extremamente

secular e até profano ironiza a dimensão dogmática dada aos textos religiosos

de que a obra se serve, contribuindo para a tese da autora de que a

experiência religiosa não é algo transcendente, mas uma experiência atual e

concreta de ligação com a vida.

Não por acaso, a narrativa começa no caos, ou seja, com uma

desarticulação tanto do discurso, quanto das idéias que representam e

parodiam um mundo sem linguagem que remete diretamente a idéia do Caos

cristão.

Assim como no Gênesis Deus diz faça-se luz, e a luz é feita, também

G.H. acredita que tudo o que existe é criado pela linguagem, ainda que essa

não seja capaz de retratar fielmente a realidade. A ironia paródica neste caso

fica por conta da subversão do “fantástico” neste ato. A chave da criação para

G.H. não é crer no sobrenatural, mas interpretá-lo de forma racional, secular.

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De fato, afirma G.H. só podemos reconhecer a luz a partir do momento em que

podemos denominá-la. “Eu tenho à medida que designo”55, afirma a

personagem.

Decidida a organizar esse caos em linguagem, a narradora dá inicio

então ao relato de sua experiência, mas faz questão de exprimi-la de forma

paradoxal. Para G.H. um discurso simplesmente afirmativo não teria qualquer

sentido, afinal subverter o discurso religioso para simplesmente afirmar outro é

pretender perpetuar outra verdade universal que não está em parte alguma.

Assim, para retomar a experiência da provação cristã num contexto que

nos fizesse sentido é que a narrativa se utiliza do confronto entre uma mulher

bem situada financeiramente, artificial e alienada com um mundo de privação,

sofrimento e miséria, representado por Janair e pela barata. O reconhecimento

desta realidade torna-se para a narradora um grande teste, um sacrifício pelo

qual a personagem precisará passar.

A paródia à provação não se dá, entretanto, pela simples existência do

sofrimento. As associações entre sabor e saber, a prova pelo gosto, a

transfiguração da barata em serpente, retomam o livro do Gênesis e a temática

do pecado original, ou seja, a primeira provação imposta ao homem. Note-se

que assim como no Paraíso, G.H. também não pode resistir.

A associação do quarto de Janair ao deserto remete, por outro lado, a

vários significados atribuídos a este termo que estão desde as tentações

vividas por Cristo no deserto (Mt 4) até a fuga do judeus do Egito (Êx). Nesses

contextos, o deserto é um local hostil e árido que gera sofrimento e privação,

mas que prepara para a comunhão espiritual. Em PSGH, entretanto, o quarto

só permitirá a comunhão com a vida.

Ao contrário de Adão e Eva, ao cometer o pecado, G.H. não pretende

ser igual a Deus. O pecado é algo necessário para lhe aproximar de sua

natureza real, humana.

Apenas provando do imundo é que G.H. poderá se libertar de sua

pureza fácil, artificialmente construída. É por isso que ela afirma que cometeu

55 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. p.113.

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o anti-pecado, o ato necessário para se aproximar de uma realidade não-

humana, mas que é viva e que assume nosso caráter de ser carente.

A manducação parodia diretamente o ritual da eucaristia. O ritual de

ingestão do corpo de cristo representado pela hóstia e a referência de G.H.

para ingerir a barata e tentar a comunhão com o divino. A ironia neste caso é

que este ato só leva ao conhecimento da própria coisa, sem nenhuma

transcendência.

Depois de “pecar”, G.H. espera pela danação, por ser condenada ao

Inferno, mas nada de extraordinário acontece. A morte da barata só é capaz de

fazê-la reconhecer a verdadeira condição humana de sofrimento. Assim com a

natureza da barata admitia que ela fosse morta por um ser que fosse maior do

que ela, também a humanidade deveria admitir seu destino fatal, sem criar

esperanças artificiais.

A dor, o sofrimento, a paixão, é a condição humana por excelência.

Sem a transcendência, G.H. reconhece que o divino é o real.

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V. REFERÊNCIAS

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