chalmers, alan. a fabricação da ciência

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5/10/2018 CHALMERS,Alan.Afabricaodacincia-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/chalmers-alan-a-fabricacao-da-ciencia 1/91 A FAB DA CIl ALAN CHAUMERS "Espero que um exame detalhado da maneira como é fabricado (no sentido de 'fabricar': construir, elaborar) o legítimo conhecimento científico mostre como ele pode ser diferenciado de suas fabricações (no sentido de 'fabricar': montar)." ISBN 85-7139-059-2

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A FABDA CIl

A L A N C H A U M E R S

"Espero que um exame detalhado da

maneira como é fabricado (n o sentido

de 'fabricar': construir, elaborar) o

legítimo conhecimento científico mostre

como e le pode ser diferenciado de suas

fabricações (no sentido de 'fabricar':

montar)."

I S B N 85-7139-059-2

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Copyright © 1990 by Alan F. Chalmers

Título or iginal em inglês: Science and its fabrication

Copyright © 1994 da tradução brasileira:

Fundação Editora da UNESP(FEU)

Av. Rio Branco,1210

01206-904-SãoPaulo-SPTel./Fax: (011)223-9560

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileirado Livro, SP, Brasil)

Chalmers, Alan F., 1939 - AFabricação da ciência/A lan Chalmers;tradução de Beatriz Sidou . - São Paulo: Fundação Editora daU N E SP , 1994. - (Biblioteca básica) ,

Bibliografia.ISB N 85-7139-059-2

l. Ciência - Aspectos 2. Ciência - Filosofia 3. Ciência -História 4. Ciência- Metodologia I. Título. II. Série.

94-1012 CDD-500

índice para catálogo sistemático:

1. Ciências 500

OQACÃQB I B L I O T E C A C E N T R A L

H.»

EDITORA AFILIADA

j A. F. (Alan F ra ncis)

A fabricaçã o da ci ê n cia

50(091)/C438f(179116/02)

Hugo: Levantei cedo esta manhã porque decidi agir.

Este é o alvorecer do inesperado. Que horas são?

Joshua: Doze em ponto, senhor Hugo.

Jean Anouilh, O an d em volta da lua

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S UMÁR IO

9 Prefacio

11 Capítulo lA política da filosofia da ciência

1.1 A filosofia da ciência como questão política 1.2 A estratégiapositivista 1.3 Métodos e padrões historicamente contingentes1.4 A crítica da pseudociência

23 Capítulo 2Contra o método universal

2.1 Observações introdutórias 2.2 O recurso à natureza humana2.3 O recurso à física e sua história: positivismo e falsificacionismo2.4 Os métodos e padrões variáveisna física

39 Capítulo 3A meta daciência

3.1 Observações introdutórias 3.2 A ciência como busca dageneralidade 3.3 As primeiras tentativas para o estabelecimento

das generalizações eóricas 3.4 A generalidade e a experimentação:Galileu 3.5 A substituição do desenvolvimento pela certeza3.6 A meta da ciência

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g A L A N C H A L M E R S

61 Capítulo 4A observação objetivada

4.1 A s hipóteses empiristas sob ataque 4.2 A observação

teórico-dependente 4.3 A observação objetiva como realizaçãoprática 4.4 O significado e o caráter problemático dos dados

de Galileu sobre o telescópio 4- 5 As observações de Galileu

das luas de Júpiter 4.6 O tamanho dos planetas vistos pelo telescópio

85 Capítulo 5

O experimento

5.1 A produção e a rejeição dos resultados experimentais

5.2 As implicações para o empirismo 5.3 As implicações para

a filosofia da ciência de Popper 5.4 A defesa do experimentocontra o ataque dos céticos 5.5 O retorno do experimentador

109 Capítulo 6

A ciência e a sociologia do conhecimento6.1 A sociologia e o ceticismo em relação à ciência 6.2 O retratoinadequado que os sociólogos fazem de seus opositores

6.3 As origens sociais do conhecimento científico 6.4 A ênfaseinadequada na crença 6.5 A explicação sociológica restrita à m á ciência

129 Capítulo 7

Dois estudos de caso sociológicos

7.1 A teoria estatística e os interesses sociais 7.2 A explicação social

de Freudenthal para os Principia de Newton 7.3 Observações finais

151 Capí tu loSA dimensão social e política da ciência

8.1 Observações introdutórias 8.2 As oportunidades objetivas

e a escolha individual 8.3 A política da atividade científica8. 4 Colocando-se a ciência em seu lugar

165 Apêndice

A extraordinária pré-história da lei da retração

17 5 Bibliografia

PREFÁCIO

Este livro é uma seqüência de What is this thing called science?.Nesse livro, submeti algumas das explicações mais comuns da

ciência e seus métodos a minucioso exame crítico, mas não cheguei

a elaborar em detalhe nenhuma alternativa p^ira elas. Convenci-me

de que tal elaboração é necessária, sobretudo diante da amplitude

das críticas que, contra as minhas intenções, têm considerado

minha posição radicalmente cética, negadora de qualquer estatuto

distintivo, objetivo do conhecimento científico. Este livro contémuma ampliação e uma reelaboração do argumento de seupredeces-

sor. Persisto em minha rejeição às concepções filosófico-ortodoxas

do chamado método científico, mas demonstro como, não obstan-

te , com algumas ressalvas, é possível uma defesa da ciência como

conhecimento objetivo. Conseqüentemente, não tenho dúvidasde

que receberei o desdém de muitos filósofos, à minha direita, e de

sociólogos da ciência, à minha esquerda.

Em muitos pontos utilizei material publicado nos seguintesartigos: "Thecase against a universal ahistorical scientific method"

(O que há contraum método científico universal a-histórico, 1985);"A non-empiricist account of experiment" (Uma história não-empirista do experimento, 1984); "Galileo's telescopic observa-

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tions of Venus an d Mars" (A s observações telescópicas feitas po rGalileu de Vênus e Marte, 1985); "The sociology of knowledgean d the epistemological status of science" (A sociologia do conhe-cimento e o estatuto epistemológico da ciência, 1988); "Theextraordinary prehistory of the law of refraction" (A extraordinária

pré-história da lei da refração, 1975). Sou m uito grato aos editores,que d eram permissão pa ra utilizar este material aqui.

Agradeço também a Patrícia Bower e Verônica Leahy, qu epacientemente e com mu ita eficiência datilografaram o manuscrito,e a Wal Sutching, pela crítica proveitosa.

CAPÍTULO l

A POLÍTICA DA FILOSOFIA DA CIÊN CIA

1.1 A filosofia da ciência como questão política

"Nos tempos modernos a ciência é muito respeitada." Esta éa sentença qu e abre o livro do qual este é uma seqüência (Chalmers,1982). Quinze anos dando aulas numa faculdade de artes, bemcomo a inclinação para algumas formas da filosofia e da sociologiacontemporânea, me proporcionaram um a idéia da quantidade de

ressalvas de que essa afirmativa necessita. A ciência geralmente éconsiderada desumanizadora, dand o um tratamento insatisfatórioa povos, sociedades e natureza, nela considerados objetos. Aalegada neutralidade e isenção de valores da ciência é percebidapo r muita gente como não-autêntíca, idéia estimulada pelo fenô-meno, cada vez mais comum, do desacordo entre especialistas, emlados opostos de uma discussão politicamente suscetível acerca dasubstância do fato científico. A destruição e a ameaça de eliminaçãode nosso meio ambiente resultantes de avanços tecnológicos são

em geral consideradas algo qu e compromete a ciência. Existemaqueles qu e consideram a faculdade de artes muito deficiente edistanciada do mundo masculino e opressivo da ciência e voltam-se

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para o misticismo, as drogas ou para a filosofia francesa contem-porânea. Embora certamente reste o argumento de que um altoapreço pela ciência e uma generosa avaliação de seu campocons t ituam impor tante componente da ideologia contemp orânea,abun dam as posições oponentes.

O fato das questões que dizem respeito ao estatuto da ciênciaserem poli ticamente impo rtantes nã o escapou a muitos filósofos e,mais recentemente, a sociólogos da ciência. Foi assim que, em1973, Imre Lakatos (1978b, p . 6-7) resumiu o assunto numatransmissão radiofônica:

O problema da demarcação das fronteiras entre a ciência e a pseudo-ciência tem sérias implicações ... para a insti tucionalização da critica. A

teoria de Copérnico foi proibida pela Igreja católica em 1616 por serconsiderada pseudocientíf ica. Em 1820, fo i retirada do Index, porque àquelaal tura a Igreja acreditou que os fatos a haviam comprovado e, portanto, el ase tornara científica. O Comitê Central do Partido Comunista Soviético,em 1949, declarou pseudocientíf ica'a genética men deliana e matou os que

a defend iam em campos de concentração, como aconteceu ao acadêmicoVavilov (depois do assassinato de Vavilov, a genética mendeliana foireabilitada). Contudo, manteve-se o direito do part ido decidir o que écientífico e publicável e o que é pseudocientíf ico e passível de punição. Onovo establishment l iberal do Ocidente também exerce o direito de negar al iberdade d e palavra ao que é considerado pseudocientífico, como já se viuna discussão a respeito de raça e inteligência. Todos esses julgamentosinevitavelmente baseavam-se em alguma espécie de critério de demarcação.

Esta é a razão por que o problema dos limites entre a ciência e apseudociência não é um pseüdoproblema de filósofos de poltrona: ele temsérias implicações éticas e políticas.

N atura lmente , L akatos t inha grande consideração pela ciência,como Karl Popper, cujos passos apaixonadamente seguiu. Popper(l 966, p . 369) explica como a sua defesa da racionalidade em geral,e da ciência em particular , é uma tentativa d e ir contra o "relativis-mo intelectual e moral", considerado por ele a "principal doençafilosóficade nosso tempo". Não é incomum que os defensores de

um elevado estatuto da ciência vejam-se como defensores daracionalidade, da l iberdade e do modo de vida ocidental , já que,

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afinal de contas, "o que realmente está em jogo é nada menos qu eo fu turo progresso de noss a civilização " (Theocharis e Psimopou-los, 1987, p . 597).

Paul Feyerabend é um dos filósofos mais l idos que se opõe a

e zomba dessas venerações d a ciência. Segundo algumas de suasformulações mais radicais, as ati tudes atuais em relação à ciênciaeqüivalem a nada menos que uma ideologia representando umpapel afim ao que desempenhou o cristianismo na sociedadeocidental, algumas centenas de an os atrás, e da qual devemos noslivrar. Feyerabend (1975) diz que a ciência moderna não temcaracterísticas que a tornem superior e distinta do vodu ou da

astrologia. Em seu livro mais recente (l 987), ele glorifica um "adeusà razão", onde "razão " deve ser lida como o modo de racionalidadeque os filósofos, que defendem para ela algum a situação privilegia-

da, presumem dis t ingui r a ciência. N as últimas décadas, tornou-secada vez mais comum os sociólogos voltarem su a atenção para adimensão social da ciência e, em especial, para os processosimplicados na construção social do conhecimento científico. Essasinvestigações levaram a maioria deles a questionar as explicaçõesortodoxas atr ibuídas ao estatuto privilegiado da ciência, e algunsdeles a assumir posturas semelhantes à defendida por Feyerabend.Collins e Cox (1976), por exemplo, defend em explici tamente umponto de vista relativista intransigente, com o argumento de que

não há uma diferença intr ínseca entre o método da ciência e ométodo empregado por Marian Keech e seus seguidores paraconvencer os outros da autenticidade de sua manei ra de lidar co mseres extraterrestres.

As páginas qu e seguem contêm minha tentativa de esclareceressas discussões a respeito do estatuto da ciência. Uma investigaçãodetalhada da prática científica exigirá que nos una mos a Feyer-abend e ao s sociólogos contem porâneos na rejeição de boa parteda filosofia ortodoxa da ciência. Entretanto, procurarei resistir ao

relativismo radical freqüentemente defendido por esses autores etentarei elaborar uma defesa restrita daciência, interpretando o queacredito estar correto nas noções tradicionais da objetividade e

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isenção de valores da ciência. Ou melhor, espero que um examedetalhado da maneira como é fabricado (num certo sentido de"fabricar": construir, elaborar) o legítimo conhecimento científicomostre como ele pode ser diferenciado de suas fabricações (num

segundo sentido de "fabricar":montar). No capítulo final mostrarei

por que não desejo que minha defesa restrita do estatuto epistemo-lógico da ciência seja equiparada à defesa do tipo de atitude queprega "manter a política longe da ciência", atitude que deixa sem

questionamento o campo político, já incontestável dentro daciência.

1.2 A estratégia positivista

O principal objetivo dos positivistas lógicos, que floresceram

em Viena durante as décadas de 20 e 30 e cuja significativainfluência ainda persiste, era fazer a defesa da ciência e distingui-lado discurso metafísico e religioso, que a maioria deles descartava

como bobagem não-científica. Eles procuravam construir umadefinição ou caracterização geral da ciência, incluindo os métodosapropriados para suaconstrução e os critérios a que recorrer parafazer suaavaliação. Com isso emmãos, visavam defender a ciência

e criar dificuldades para a pseudociência, mostrando como aprimeira se ajusta àcaracterização geral, e a última não. Os detalhesda concepção de ciência oferecidos pelos |)ositivistas foram rejeita-dos ou radicalmente alterados nas últimas décadas. Não obstante,a estratégia geral contida em sua tentativa de defender a ciência

ainda tem muitos adeptos. Ou seja, como ainda pressupõemnormalmente os filósofos, cientistas e outros, para defender aciência devemos recorrer a uma explicação geral de seus métodos

e padrões. Além do mais, os positivistas não foram os primeiros a

tentar uma caracterização geral da ciência. O Novum organum deFrancis Bacon, o Discurso sobre o método de René Descartes e aCrítica da razão pura de Immanuel Kant sã o notáveis precursores

A FABRICAÇÃO DACIÊNCIA 15

esforços dos positivistas para elaborar uma explicação geral daciência e seus métodos.

A caracterização geral da ciência buscada pelos filósofos a que

m e referi pretendia ser universal e a-histórica. Universal, no sentidode que se tencionava qu e fosse igualmente aplicada a todas as teses

científicas. Os positivistas buscavam, por exemplo, uma "teoria

unif icada da ciência" (Hanfling, 1981, capítulo 6) que pudessemempregar para a defesa da fisica e da psicologia behaviorista eparacriticar com severidade a religião e a metafísica. A explicação quese buscava para a ciência seria a-histórica no sentido de que deveria

aplicar-se tanto às teorias passadas como às contemporâneas e àsfuturas. Por conveniência, refiro-me ao objetivo de defender aciência por meio do recurso a uma explicação universal e não-histórica de seus métodos e padrões como estratégia positivista, já

que esta foi uma proeminentecaracterística do positivismo lógico.Imre Lakatos e Karl Popper são dois eminentes filósofos da

ciência dos tempos recentes que adotam a estratégia positivista,ainda que, é claro, sejam bastante críticos em relação à particularexplicação da ciência oferecida pelos positivistas. Imre Lakatos

(1978, p. 168-9 e 189) acreditava que o "problema central nafilosofia da ciência" era "a questão de determinar as condiçõesuniversais sob as quais uma teoria é científica". Ele sugeria que asolução do problema "deveria oferecer-nos uma orientação a res-

peito de quando a aceitação de uma teoria científica é racional equando é irracional" e esperava que isso nos ajudasse a "criar leispara lutar contra ... a poluição intelectual". Lakatos recorria a sua

teoria da ciência para defender os físicos contemporâneos e criticar

o materialismo histórico e alguns aspectos da sociologia contem-porânea, expressando o caráter universal que atribuía à ciência,embora se u caráter a-histórico esteja evidente no uso que ele fezpara defender o caráter científico da revolução copernicana etambém da einsteiniana. Alan Musgrave (1974, p. 560) consideraa solução de Popper para o relatívismo "uma insistência empadrões objetivos absolutos". O próprio Popper (1972, p. 39;

seção 29) buscava demarcar o limite entre a ciência e a

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não-ciência em termos de um método que ele considerava caracte-rístico de todas as ciências, inclusive as sociais.

Não é incomum encontrarem-se os próprios cientistas em

atividade expressando a idéia de que uma explicação universal dométodo científico poderia ou deveria se r usada para defender oua judar a aperfeiçoar a ciência. Assim, dois físicos contemporâneos(Theocharis e Psimopoulos, 1987) insistem em que a prática e adefesa da ciência deveriam exigir um a definição mais razoável dométodo científico e deploram o quanto os cientistas em exercícioignoram essa definição. Chegam mesmo a atribuir a essa ignorân-cia o que consideram ser a doença atual da ciência. Outros cien-tistas tentaram analisar as controvérsias contemporâneas a respeitodos sistemas satisfatórios de classificação biológica voltando-se paraum a "estrutura filosófica dos critérios de teorias e metodologias

científicas" (Bock, 1973, p. 381) e considerando o problemarelativo à "natureza da ciência" (Gaffhey, 1979, p. 80).

Até que ponto é amplo e profundo o sentimento de que umadefesa da ciência deve seguir a estratégia positivista evidencia-se apartir da reação típica dos filósofos e sociólogos da ciência que

negaram a existência d e algo como um a explicação universal ea-histórica do método e padrões científicos capazes de orientar otrabalho dos cientistas ou de avaliar o mérito da ciência que estesproduzem. Essa reação parece motivada pelo pressuposto de que

o abandono da noção de um método ou conjunto de padrõesuniversais necessariamente encerra um ceticismo radical em rela-çã o à ciência, segundo o qual nenhuma teoria científica pode ser

considerada melhor do que qualquer outra; a ciência epistemolo-gicamente eqüivale à astrologia ou aovodu, e a avaliação das teoriascientíficas é questão de opinião ou gosto, atitude resumida peloslogan utilizadopo r Feyerabend (1975, p. 28) para caracterizarsu ateoria "anarquista" da ciência: "vale tudo". Theocharis e Psimo-poulos (1987, p. 597) estão tã o convencidos de que uma defesa daciência

exige recorrênciaa uma

explicaçãofilosófica do

métodocientífico qu e parecem deixar implícito qu e deveriam se r obstadosaqueles que, como eumesmo, insinuam outra coisa aosestudantes:

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 17

Podemos nos perguntar como é que muitas universidades pelomundo afora proporcionam a seus estudantes de ciência cursos formaiscompulsórios sobre os rigores do método científico. Em relação àsuniver-sidades que proporcionam cursos optativos sobre as tendências atuais na

filosofia da ciência, será que seus corpos dirigentes têm consciência do fatode que muitos professores desses cursos inclinam-se a sabotar o método

científico?

No próximo capítulo, exponho meu argumento contra aestratégia positivista, que considero bastante equivocada para os

qu e desejam defender a ciência. Em capítulos subseqüentes, mos-tr o por que a rejeição do método universal não tem conseqüênciasque possam causar quaisquer preocupações aos corpos dirigentesda s universidades.

1.3 Métodos e padrões historicamente contingentes

Digo que a reação comum de horror em relação ao abandonode um método ou conjunto de padrões a-históricos, que vê amudança como um abandono total da racionalidade, resulta deu m a falha na distinção entre a rejeição do método ou conjuntode padrões universais e imutáveis, por um lado, que defendo, e

a rejeição de todo método e padrão, por outro, a que resisto.Como já disse em outro texto (Chalmers, 1986, p. 26): "Nãoexiste nenhum método universal. Não existe nenhum padrãouniversal . Contudo, existem padrões a-históricos contingentesimplícitos nas atividades bem-sucedidas. Isso não significa umvale tudo em questões epistemológicas". N ã o s ã o apenas aquelesqu e adotam a estratégia positivista qu e deixam de fazer a distinçãoentre os métodos e padrões universais absolutos e os métodos epadrões contingentes sujeitos à mudança. Feyerabend (1975,p. 285), da mesma forma, não discrimina quando, depois de

minar asexplicações ortodoxas do método científico, conclui que"o restante sãoopiniões estéticas, opiniões de gosto, preconceitos

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metafísicos, ânsias religiosas, em resumo: o qu e resta sã o nossosanseios subjetivos".

Recorrendo-se aos padrões contingentes, idéia que defendo,será possível bloquear o caminho para um tipo de relativismo cétíco

às vezes apoiado por Feyerabend e por alguns dos sociólogos daciência, que discutiremos mais adiante neste livro? O fato de queum a resposta afirmativa não é uma resposta direta evidencia-se na

reação comum desses que adotam a estratégia positivista parapos turas como a minha. Isso fo i levantado, por exemplo, por BarryGower (l 98,8) em suacríticaaalgumasdeminhas idéias publicadasanteriormente. Se há padrões implícitos nas atividades bem-

sucedidas, como sustento, como essas atividades podem seravaliadas de fora? Mais especificamente: se a física aristotélica

incorporasse padrões aristotélicos e a física de Galileu incorporassepadrões galileanos, como poderíamos estar em posição de dizerque a física de Galileu é superior à aristotélica, como desejariamos defensores da ciência? Quando se adotam padrões aristotélicos,a física de Aristóteles é superior, ao passo que, adotando-se os

padrões galileanos, o julgamento é invertido. Tout comprendre, c'esttout pardonner (Compreender tudo é tudo perdoar), resume Gower(1988, p. 59). Para dizer que a física de Galileu é um avanço emrelação à física aristotélica não precisaríamos de algumsuperpadrãoaplicável a ambas? Isto não nos leva de volta à necessidade de um

método universal? Da mesma forma, meus oponentes podemobservar queexistem métodosepadrões inerentes na astrologiaouna parapsicologia e chegar à conclusão de que a minha posturanão deixa espaço para a crítica dessas atividades, já que eu me negoa recorrer aospadrões universais para avaliarosmétodos e padrõesimplícitos em quaisquer atividades, por mais distanciadas queestejam de qualquer ciência ortodoxa. Acompanhando essa linhada argumentação, os defensores da estratégia positivista podemdizer que não há meio caminho como esse a que aludi para falarde padrões contingentes implícitos nas atividades bem-sucedidas.Em relação à noção de sucesso aqui mencionada, meus críticospodem insistir, como Gower, que uso essa idéia gratuitamente, a

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 19

menos que eu tenha alguma caracterização universal do sucesso,

ão há meio caminho, como aparentemente insinua essa linha deargumentação. Ou temos padrões absolutos específicos para umaexplicação universal da ciência ou temos o relativismo cético, e a

opção entre a teoria evolucionária e a ciência da criação torna-se

urna questão de gosto ou de fé .

A tentativa que faço neste livro de apreender o campo entre o

método universal e o relativismo cético continua mais ou menosda seguinte forma. De modo bastante pragmático, e de olho noque a ciência física já conseguiu realizar, tento especificar qual é ameta da ciência. A meta da física é estabelecer teorias e leis

extremamente gerais e aplicáveis aomundo. O quanto essas leis eteorias são realmente aplicáveis ao mundo deve ser determinadono confronto entre elas e o mundo, da maneira mais rigorosa

possível, segundo as técnicas habituais existentes. Além do mais,compreende-se que ageneralidade e o graude aplicabilidade de leise teorias estão sujeitos a um constante aperfeiçoamento. Tendoassim especificado a meta da ciência, depois de havê-la elaboradoe ilustrado comexemplos, para torná-la um pouco menos inócua,e depois de argumentar que esta é uma meta não-utópica muitasvezes satisfeita na ciência, estou em posição de avaliar métodos epadrões combase no ponto devista a que eles atendem. Como ameta da ciência certamente terá de ser avaliada em relação a outros

objetivos e outros interesses, uma vez adotada essa meta, a extensãoalcançada pelos diversos métodos e padrões não é uma questãodeopinião subjetiva, mas de fato objetivo a ser determinado d ernaneira prática.

Os defensores da estratégia positivista normalmente se apre-sentam como defensores da ciência e da racionalidade, e seusopositores, como inimigos da ciência e da racionalidade. NestePonto, estão enganados. Ao adotar uma estratégia em defesa daciência condenada à falha, estão servindo de joguete nas mãos do

Movimento contra aciência, quetanto temem, e tornam o trabalhode Paul Feyerabend fácil demais. H. M. Collins (1983, p. 99-101),Urr * sociólogo da ciência de quem discordo em uma série de

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A L A N C H A L M E R S

oportunidades neste livro, expressa demodo admirávelo que tento

demonstrar:

Enquanto a autoridade científica é legitimada em relação a filosofiasinsatisfatórias da ciência, é fácil para os leigos desafiar essa autoridade. É

muito simples mostrar que a atividadecientífica em qualquer caso particularnão está de acordo com os cânones das filosofias que a legitimam. Estão

se cumprindo os temores daqueles qu e fazem objeção ao relatívismo combase em suas conseqüências anárquicas, não como resultado do relativis-mo, mas como resultante de uma confiança exageradamente prolongada

na s mesmas filosofias que se supõe cercarem a autoridade científica. Esta

cerca parece ser feita de palha. Se novas cercas tiverem de ser construídas,

elas deverão ter sua base na atividade científica.

Gosto de pensar que adefesada ciência que ofereço neste livro

é superior às defesas no estilo positivista, porque é sustentável e

porque deixa claro o terreno em que a ciência deve ser defendida.

1.4 A crítica da pseudociência

Neste livro procuro retratar a física como um empreendimento

objetivo e progressivo. A maneira como elaboro minha argumen-

tação exige um exame minucioso do que a física já realizou e de

como isto fo i realizado. Particularmente, a minha formulação dameta da ciência chegou a uma configuração bastante pragmática,

servindo aos tipos de leis e teorias estabelecidas pelo desenvolvi-

mento demétodos satisfatórios na física. Como a minha argumen-

tação assume essa fo rma , há limites necessários que determinam

atéque ponto minha análise pode servir debase para criticar áreas

do conhecimento estranhas à física. Se alguma área do conheci-

mento, como a psicologia freudiana ou o materialismo histórico

de Marx (para tomarmos dois dos alvos favoritos dos filósofos da

ciência), tivesse de receber uma crítica fundamentada no fato denão se ajustar à minha caracterização da física, isso implicaria que

todo conhecimento autêntico deve adaptar-se aos métodos e pa-

A FABRICAÇÃODA CIÊNCIA 21

drões da física. Não me sinto preparado para esta pressuposição epenso que seria muito difícil defendê-la.

À luz de minha análise, um tipo de crítica possível é contestar

pretensos conhecimentos apresentados como se fossem científicos

no mesmo sentido da física, talvez porque pretendam ter sidoconstruídos de acordo com métodos similares aos da física e,

conseqüentemente, apresentados como se tivessem um estatuto

epistemológico semelhante ao desta ciência. Se o criacionismo, a

parapsicologia, a eugenia ou o que Marian Keech diz a respeito dos

seres extraterrestres (Collins e Cox, 1976) são defendidos porserem considerados científicos no mesmo sentido em que a físicaé científica, acredito que as ponderações apresentadas neste livro

indiquem como se pode repudiar esse tipo de pretensão.

Quando nos voltamos para campos como o da teoria ouhistória social, dos quais plausivelmente se pode afirmar terem

objetivos um pouco diferentese, analogamente, métodos e padrões

também diferentes da física, minha explicação da ciência não tem

muito a oferecer, nem pretende ter muito a oferecer em relação à

maneira como as teorias nesses campos poderiam ser avaliadas.

N o máximo, minha análise e defesa da física podem ser tomadas

como indicação do modo de proceder em outros casos, ou seja, na

tentativa de identificar as metas implicadas, as práticas desenvolvi-

das para corresponder a essas metas e o grau de sucesso obtido.

N a penúltima seção de What is this thing called science.7, resumi

minha atitude em relação a essas questões da seguinte maneira:

Como agora está claro, acredito que não existe nenhuma concepçãoatemporal e universal da ciência e do método científico que possa atender

ao objetivo de avaliar todas as pretensões de conhecimento. Não temos osrecursos para chegar a isso e para defender essas idéias. Não podemos

defender ou rejeitar com legitimidade pontos do conhecimento porque elesse ajustem ou não a determinados critérios já prontos da cientifkidade. Acoisa é bem mais séria do que isso. Se, por exemplo, desejamos assumir

uma postura esclarecida sobre determinada versão do marxismo, teremosde investigar quais são esses objetivos, quais os métodos empregados parachegar a eles, até que ponto eles foram atingidos e quais as forcas ou fatores

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A L A N C H A L M E R S

que determinam seu desenvolvimento. Estaríamos então em posição deavaliar a versão do marxismo em termos da conveniência daquilo a quealmeja, do quanto seus métodos permitem qu e essas metas sejam atingidase dos interesses a que atende. (Chalmers, 1982, p. 169)

Espero que a discussão exposta nos próximos capítulos venha

a esclarecer e desenvolver m ais o conteúdo dessas observações epossa mostrar por que não sinto nenhuma necessidade de voltara elas.

CAPÍTULO 2

C O N T R A O M É T OD O U N I V E R S A L

2.1 Observações introdutórias

Como já indiquei an teriormente, os que defendem um estatutoprivilegiado para o conhecimento científico normalmente adotamo que d enominei estratégia positivista. Quer dizer: tentam definirum a certa metodologia universal a-histórica da ciência que especi-fique os padrões em relação aos quais se deva julgar as supostas

ciências. Popper e Lakatos, influentes filósofos da ciência, emboraantipositivistas em aspectos fundamentais, adotaram uma versãodessa estratégia. Em época mais recente, John Worrall (1988,P - 265 e 274) expressa muito enfaticamente sua fidelidade àestratégia positivista. Segundo Worrall, "estabelecer princípiosfixos para avaliação da teoria científica é a única alternativa aorelativismo", de mod o que, "sem os princípios invariáveis da boaciência, toda idéia de explicar-se o desenvolvimento da ciênciacorno um processo racional é seguramente abandonada". Da

Jttesma forma, Barry Gower (1988, p. 59) lamenta o fato'de qu ea idéia de um método característico da pesquisa científica não sejaPopular", e tenta resolver o problema.

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A L A N C H A L M E R S

N este capí tulo , exponho resumidamente as razões pelas quaisuma tentativa de defender a ciência recorrendo-se a uma explicaçãouniversal a-histórica es tá condenada . Suponhamos, em nome daargumentação, que existe uma categoria excepcional chamada"ciência" e um método científico universal regendo o seu progresso

e a sua avaliação. Como pod eriam os fi lósofos da ciência estabelecerum a caracterização satisfatória desta categoria, "ciência", e seumétodo? Que recursos têm os fi lósofos à sua disposição paradeterminar o que a ciência é ou deveria ser? Devo examinar umasérie de respostas possíveis e sustentar que elas são insatisfatórias.

2.2 O recurso à natureza humana

A s tentativas feitas por uma série de fi lósofos do século XVIIpara responder a minh a pergu nta concentravam-se na importânciada natureza humana. Colocada em termos bastante simples, suaposição pode ser caracterizada da seguinte m aneira: já que são sereshuma nos que produzem e que avaliam o conhecimento em gerale o conhecimento científico em particular , para compreender asdiversas maneiras pelas quais o conhecimento pode se r apropria-dam ente a dquirido d evemos levar em conta a naturez a de cada serh u m a n o que o adqui re e o avalia. Devemos analisar os aspectos

relevantes da natureza humana. Esses aspectos são a capacidadeque os seres humanos têm de raciocinar e sua capacidade deobservar o m u n d o por meio dos sentidos. Os racionalistas clássi-cos, como Descartes, concentraram-se no primeiro aspecto. A ssim,vemos que em seu Discurso sobre o método Descartes rejeitava ocos tume e a autor idade como fontes satisfatórias para a f unda me n-tação segura do conhecimento e decidira estudar por si mesmo,usando todas as forças de sua mente numa tentativa de livrar-sedos "muitos equívocos que possam obscurecer a luz da natureza

em nós e que nos deixam menos capazes de dar ouvidos à razão".Para ele, a natureza do con hecimento, suas origens e seus l imitesdeveriam ser entendidos em termos de nossa "luz natural da razão".

A F A B R I CA Ç ÃO DA C I Ê N C I A 25

xjo terreno dos empiristas, encontramos John Locke (1967,xxxii) explicando que, diante de certas questões epistemológicas

específicas, percebera que, antes de tratar dessas questões, eranreciso "examinar nossas próprias capacidades e verificar qu eobjetos de nossa compreensão eram ou não próprios para tal".

Entre essas capacidades, para L ocke, muito importante era, natu-ralmente, a capacidade dos seres humanos observarem o m u n d opo r meio dos sentidos. David Hume (1969, p. 42), buscando os

elementos empiristas na epistemologia de Locke, deixou muitoclaro que, em sua opinião, a natureza do conhecimento deve sercompreendida por meio da investigação da natureza dos sereshuma nos que o adquirem. Para citar suas próprias palavras:

É evidente que todas as ciências têm uma relação, maior ou menor,

com a natureza humana; e, por mais que qualquer uma delas pareçadistanciar-se disso, continuarão voltando a ela por uma ou outra passagem.Mesmo a matemática, a filosofia na tura l e a religião na tura l dependem emcerta medida da ciência do homem, pois estão além do conhecimento doshomens e são julgadas por suas forças e suas faculdades. É impossível dizerquais mudanças e aperfeiçoamentos poderíamos fazer nessas ciências seestivéssemos inteiramente ao corrente da extensão e da força do entendi-mento humano e pudéssemos explicar a natureza das idéias que emprega-mos e das operações que realizamos em nosso raciocínio.

A s teorias racionalistas e empiristas da ciência so frem de graves

problemas internos. Os racionalistas, quando tentavam justificarproposições advindas de um pensar claro como verdades absolutas,eram, com efeito, obrigados a adotar certas noções problemáticasevidentes por si mesmas. (Vale a pena lembrar que boa parte de

su a física, qu e Descartes tentou justificar recorrendo a seu métodoracionalista, termino u por revelar-se totalmente falsa.) Os empiris-ta s estavam diante de uma série de problemas relacionados àfalibilidade e ao campo restrito dos sentidos, e do problema dejustificar as generalizações qu e necessariamente ul trapassam a

evidência proporcionada por determinadas aplicações dos sentidos(o problema da indução - Chalmers, 1982, capítulos 2 e 3). EssesProblemas internos são graves e suficientes para desacreditar as

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tentativas filosóficas tradicionais de fundamentar um a teoria daciência combase na natureza humana. Contudo, não considero asdif iculdades internas com que se depararam o racionalismo e o

empirismo tradicional as principais razões para rejeitá-los comoexplicações satisfatórias da ciência. S ou da opinião de que aabordagem =geral qu e exige que se trace a natureza do conhecimentocientífico de acordo com a natureza dos seres humanos que oproduzem está fundamenta lmente equivocada.

O ser humano é moldado pela sociedade em que vive e oproblema de definir-se alguma essência imutável atrás de diferençassociais, culturais e históricas é notoriamente difícil. Sem sombrade dúvida, um aspecto essencial dos seres humanos é sua capaci-dade de pensar e de sentir. Entretanto, provavelmente de nadaadiantará buscar a naturezada ciência em seja lá p que de universal

existir nessa capacidade, pela simples razão de que, sejam quaisforem as resistências dos homens, os processos racionais, empíri-cos e experimentais que a ciência historicamente encerra mudame evoluem. Assim, por exemplo, o cálculo infinitesimal estava àdisposição dos cientistas que vieram depois de Newton e Leibniz ,mas não antes; era possível valer-se dele na sustentação de debatessobre infinitesimais, algo que não estava à disposição de Arquime-des. E, repito, depois qu e Galileu introduziu a técnica de teste dasleis científicas sob as condições artificiais de um experimentocontrolado, podia-se justificar a ordem física por trás do mundo

desordenado daexperiência comum de um modo antes impossível.Quando Galileu surgiu com o telescópio, abriu-seum novo campode dados para a ciência, que tornou redundante boa parte dosdados anteriores obtidos a olho nu. * Os fatos relativos a variaçõesnos procedimentos racionais e empíricos empregados na ciêncianão têm muito a ver com a natureza humana. A s diferenças entreos métodos de Arquimedes e Newton, Aristóteles e Galileu não

devem se r compreendidas em termos de suas respectivas naturezas,

Esses aspectos da flsica de Galileu são discutidos mais detalhadamente em outroscapítulos.

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 27

as em termos dos cenários epistemológicos em que estavam•mersos. A natureza do conhecimento científico, a maneira comoela deve se r justificada co m recurso à razão e à observação, mudahistoricamente. Para compreendê-la e identificá-la, devemos anali-sa r os instrumentos intelectuais e práticos que um cientista tinhaà mão em determinado contexto histórico. Tentar classificar o

método científico pela análise da natureza humana é examinarprecisamente o lugar errado.

2.3 O recurso à física e sua história:positivismo e falsificacionismo

Embora a abordagem tradicional da compreensão do conheci-mento e da ciência, centrada nas faculdadeshumanas, ainda tenhahoje um a grande influência na fi losofia ortodoxa da ciência, u m asérie de filósofos da ciência contemporâneos procura justificar suasexplicações da ciência e do método científico de maneiras bastantediferentes. Esses filósofos aceitam o que foi dito acima a propósitoda natureza humana e chegam à conclusão de que, se quisermoscompreender a ciência e seus métodos, devemos nos concentrarna própria ciência e nos métodos que ela incorpora, mais do quenos cientistas e em sua natureza. Os filósofos que adotam essaabordagem normalmente tomam a física e sua história como um

dos melhores exemplos do que seja a ciência. Assim, o desenvol-vimento de uma teoria científica satisfatória e de seus métodos é o

desenvolvimento da teoria que melhor corresponda à exemplarfísica. Uma explicação do método científico deve ser testada emrelação à história da fisica. Thomas Kuhn, Imre Lakatos e PaulFeyerabend são filósofos contemporâneos que dão uma atençãodetalhada à história da ciência inerente a essa abordagem. Eu diriaque, desse modo, as tentativas de justificar uma caracterização

universal da ciência e seu método enfrentam sérias dificuldadesque abalam esse projeto.

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Essa é uma grande dificuldade. S e exigimos que uma teoriasatisfatória da ciênciae seus métodos seja compatível com a históriae a prática contemporânea da física, então não temos nenhuma anosso dispor. Os melhores candidatos para uma explicação dométodo universal não passam no teste. Essa é a questão mais

importante qu e Feyerabend levanta em seu livro Contra o métodoe é também uma da s principais conclusões a que fui levado emmeu livro anterior. Tento aqui resumir a argumentação essencialdesse livro e de outros textos. Alguns- pormenores e acréscimosmais recentes aesses argumentos estão nos capítulos subseqüentes.

Os positivistas visavam mostrar que a ciência autêntica é"verificada" e mostra se r verdadeira ou provavelmente verdadeiraem relação a "sentenças protocolares" - fatos revelados a observa-dores cuidadosos por meio de seus sentidos. Contudo, relatórios

de observação sãopúblicos, passíveis de teste e de revisão, além debastante diferentes da concepção que tinham os positivistas sobreverdades indiscutíveis diretamente reveladas aosobservadores pormeio dos sentidos (Chalmers, 1982, capítulo 3). A afirmação de

qu e "a Terra é estática" fo i aceita como fato observável por milharesde anos antes que as novas teorias do movimento levassem à suarejeição e substituição durante a revolução científica. Se nosvoltamos para o experimento e seu papel na física contraposto à

simples observação, o problema para a idéia dos positivistas de quea ciência se baseia em fundamentos seguros fornecidos pelos

sentidos torna-se ainda maior, como veremos no capítulo 5.

Mesmo se admitirmos que os positivistas tiveram alguma baseobservacionalsegura para a ciência, a sua exigência de que as teoriascientíficas fossem verificadas em relação a essa base não pode se rrespondida. Inevitavelmente há uma lacuna lógica entre a provafinita seletiva disponível como suporte de exigências científicas e ageneral idade dessas mesmas exigências. Descobriu-se que os aspec-tos lógicos desse argumento são ampliados pela observação histó-rica de que muitas teorias científicas do passado (inclusive as

grandemente apreciadas, como amecânica newtoniana), ainda quebe m apoiadas po r diversas evidências, sã o deficientes e foram

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 29

superadas (I^ikatos, 1968). As exigências utópicas dos positivistastêm como conseqüência o fato de que as nossas mais respeitadasteorias científicas não são científicas por seus critérios, e reduzem-sea bobagens para os positivistas, que sustentam o ponto de vistade

qu e proposições não-verificáveis sã o realmente bobagens.

A rival mais importante do positivismo é a explicação falsifica-cionista da ciência, de Popper, aceita por muitos cientistas e

filósofos em atividade. Acho que não há objeções a fazer a algunsdos aspectos mais geraisda posição de Popper. A s teorias científicassã o falíveis e permanecem sujeitas a um aperfeiçoamento ousubstituição. Na medida em que as teorias dizem algo sobre omundo, elas devem se r aferidas em confronto co m ele. N a prática,a história da ciênciapode sercompreendida como a sobrevivênciada teoria mais apta em condições rigorosas de teste. No entanto,

essas concessões a Popper não chegam ao ponto de admitir queele tenha seguido com êxito a estratégia positivista e conseguidoformular uma explicação universal e a-histórica da metodologiacientífica. Se tentarmos extrair dos textos de Popper os critériosfalsificacionistas visando aceitar ou rejeitar teorias em uma ciênciaou designar áreas inteiras como científicas ou não-dentí f icas ,recairemos em problemas semelhantes àqueles a que - o próprioPopper mostrou - o positivismo estava sujeito. Ou seja, seformosrigorosos demais em relação a nossos critérios falsificacionistas,muitas de nossas mais admiradas teorias na física não poderão ser

consideradas boa ciência, ao passo que, se os atenuarmos, poucasáreas deixarão de assim qualificar-se.

Por exemplo, suponhamos que o falsificacionismo exija arejeição d as teorias falsificadas. Neste caso, a menos qu e este"falsificada" seja interpretado de maneira tã o branda a ponto dese r ineficaz, teorias científicas exemplares deixarão de corresponderà exigência. Por exemplo ainda, por toda su a história impressio-nantemente bem-sucedida, a astronomia de Newton enfrentouobservações incompatíveis com ela - que iam desde observações

sobre a órbita da L ua às da órbita do planeta Mercúrio. Natural-mente, há pontos lógicos que tornam a falha dos cientistas em

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acompanhar nossa estrita regra falsificacionista perfeitamente com-preensível e razoável. As situações realistas de teste na ciência sãomuito complexas; não apenas contêm a teoria que está sendotestada, mas uma série de outras pressuposições secundárias,condições iniciaise afins. Para ser comprovada, a teoria de Newton

sobre a órbita da Lua exigiu pressuposições sobre a forma da Luae seus movimentos internos, bem como sobre os da Terra,correções nas leituras do telescópio para permitir verificar-se arefração na atmosfera da Terra - e assim por diante. Mais tarde,foi possível poupar a teoria de Newton, localizando a causa dasaparentes falsificações em outros pontos do labirinto teórico.Transpirou depois que os problemas colocados pela órbita de

Mercúrio não poderiam ser eliminados dessa maneira. Contudo,seria muito implausível esperar que alguma regra felsificacionistaestivesse à altura de indicar previamente aos cientistas que resulta-

do esperar. É uma felicidade que os físicos do século XIX nãofossem felsificacionistas, como definido pela estrita regra conside-

rada, e que eles tenham continuado a desenvolver a teoria newto-niana, apesar do problema não-resolvido da órbita de Mercúrio.N ão seremos, assim, também forçados a fazer concessões, porexemplo, em relação aos criacionistas ou "cientistas da criação",

por terem fechado os olhos para os aspectos problemáticos dosregistros fósseis?

O próprio Popper nãodefende a regrafelsificacionistarigorosa

discutida acima. Ele reconhece que se deve dar uma chance paraque as teorias mostrem seu mérito e que elas não deveriam serdescartadas aos primeiros sinais de dificuldades.Como ele mesmo

diz (1974, p. 55): "Sempre sublinhei a necessidade de um certodogmatísmo - o cientista dogmático tem um papel importante adesempenhar. Se nos entregamos àcrítica muito facilmente, jamaisdescobriremos onde está a verdadeira força de nossas teorias". O

critério da demarcação usado por Popper para distinguir a ciênciada não-ciência pode ser dividido entre o que se poderia chamar

uma parte "lógica" e uma parte "metodológica". A parte lógicaadmite que, se uma teoria tiver de fezer alguma declaração mais

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 31

substantiva sobre como é o mundo, é porque deve haver maneiraspelas quais se pode reconhecer que ela tem algum problema. Ouseja, devem existir maneiras possíveis de admitir que o mundo édiferente do que diz a teoria. Essa é uma exigência razoável,

proveniente de uma concepção muito geral do que entendemos

po r conhecimento do mundo. Noentanto, o problema de Popper

é que ele se satisfaz co m esse leque amplo de teorias. Esse problematinha sido resolvido pela física de Aristóteles, para a qual o

movimento de um projétil impunha um problema. Fora resolvidopela astrologia, quando uma previsão nela baseada deixava deocorrer, e foi resolvido pela teoria de Freud, já que sua afirmaçãode que os sonhos são a realização de desejos é ameaçada pela

existência dos pesadelos e dos sonhos cheios de ansiedade, parausar um exemplo a que o próprio Popper se referiu (1983, seção18). A simples exigência de falsificabilidade, compreendida mera-

mente como possibilidade de um conflito entre as previsões deu ma teoria e algum resultado observável, embora suficiente paraeliminar afirmações como "estáchovendo" ou "não está chovendo"ou alguma paródia mais radicalda teoria freudiana ou da astrologia,admite bem mais do que os defensores da estratégia positivistagostariam de admitir como ciência autêntica.

O segundo aspecto metodológico do critério da demarcação dePopper fo i projetado para responder à dificuldade esboçada acima

e diz respeito ao caráter da estratégia apropriada a adotar diante de

falsificações aparentes. A s teorias deveriam ser expostas a críticase não deveriamse r modificadas de maneira ad hoc com a introduçãode acréscimos impossíveis de testar para resolver evidências pro-

blemáticas. Poderíamos argumentar que foi dessa maneira nada

científica que os aristotélicos eliminaram o problema imposto pelomovimento do projétil, introduzindo hipóteses impossíveis detestar sobre a força motriz do ar pelo qual aquele se movimentava,enquanto (pelo menos, segundo Popper) a resposta de Freud para0problema dos pesadelos foi igualmente insatisfatória.

O problema é que, se esse aspecto do critério de marcação delimites de Popper é formuladoco m vigor suficiente para te r alguma

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força, a física deixa de ser uma ciência. N ossas mais prezad as teoriasna f ísica enf ren tam e sempre invariavelmente enfrentaram proble-mas para os quais os f ís icos ou fecham os olhos ou respondem demaneira provisória. Porexemplo, no primeiríssimo documento emque apresentava os fundamentos de sua teoria cinética dos gases,em 1859, Maxwell (1965, p. 409) observava que "possivelmente ateoria não satisfazia a conhecida relação entre os dois caloresespecíficos de todos os gases". Todos os consideráveis êxitos dateoria cinética ocorreram depois que a dificuldade da teoria fo iavaliada. Ela não foi e l iminada até o advento da mecânica quântica.Os problemas que ocorrem na física atômica e nuclear contempo-rânea sãoeliminados com o uso de diversas técnicas de "renorma-

lização", que em geral se admite serem ad hoc. Por que uma teoriamuito boa, com um potencial não-detectado, seria rejeitada porenfrentar dificuldades que, segundo todas as aparências, só podem

se r resolvidas de man eira arbitrária? Qu e alternativas têm os físicosmodernos, senão dar prosseguimento ao desenvolvimento dosaspectos promissores da mecânica quântica, apesar de qualquermal-estar que sintam a respeito da renormalização? Se o critériofalsificacíonista de Popper receber uma formulação precisa para terforça normatizadora, terá conseqüências indesejáveis para a ciência.

A s dificuldades para o critério de demarcação de Popper quediscuti são precisamente aquelas apontadas por Lakatos. A s u ametodologia para os programas de pesquisa científica fo i criadacom uma alteração do falsificacionismo de Popper, de modo acorresponder a essas dificuldades. A metodologia de Lakatoscontém uma liberalização do critério falsificacionista de Popper.Um bom programa depesquisa invariavelmente depara com certasdificuldades, alguns fenôm enos recalcitrantes, mas não precisa se rabandonado por conta disso. As evidências conflitantes com asafirmações centrais de um programa tornam-se antes anomalias , enão falsificações. U m programa é científico se apresenta perspecti-va s para a pesquisa , e se essa pesquisa leva (pelo menos às vezes)

a êxitos na fo rma de novas previsões. As anomalias tornam-sefalsificações de um programa apenas quando este ésubstituído por

A F A B R I C A Ç Ã O D A C I Ê N C I A 33

outro que as explique melhor; po r exemplo, podemos dizer, co mbase em u ma perspectiva pós-einsteiniana, que a órbita de Mercú-ri o falsifica a teoria newtoniana,enquanto no século X IX er a apenasurna anomalia .

Um problema no critério de demarcação de Lakatos é a

ausência de força normat iva . N enhum programa de pesquisa podeser rejeitado por falsificação porque seu sucesso pode estar logo ali

adiante, de modo que "podemos racionalmente apegar-nos a um

programa degenerescente até este ser superado por um rival e

mesmo depois" (Lakatos, 1978, p. 117). Quem diria que os grandesêxitos, na form a de previsões confirmadas de modo impressiona n-te, estão à espera de programas dentro do marxismo ou dasociologia contemp orânea, para citar-se du as áreas de que Lakatosnão g osta.. .? Como instrum ento para combater a pseudociência, ametodologia de Lakatos é realmente muito rudimentar.

Uma segunda enorme dificuldade em sua metodologia provémdo quanto Lakatos a adaptou para que ela correspondesse à física

contemporânea (Feyerabend, 1976). Eledefende sua metodologiatestando-a em relação a episódios da história da física dos últimosduzentos anos, mais ou menos, geralmente aceitos como grandesrealizações científicas (Lakatos, 1978, p. 124). Dado esse fato, nã obasta presumir que o critério implícito para demarcação nessametodologia aplica-se a outras áreas que não a física. Mais um a vez,verifica-se que a metodologia de L akatos é um instrumento ineficaz

para combater a pseudociência.A dificuldade acima enfrenta todas as explicações da ciência e

seus métodos e padrões implícitos na estratégia de tentar justificarteorias gerais da ciência recorrendo-se à física e sua história.Quando sepresume que os métodos e padrões a que se chega dessamaneira sejam em geral aplicáveis à biologia, à psicologia, à teoriasocial e afins, tacitamente pressupõe-se que a física constitui oparad igma da boa ciência, a que todas as outras ciências devemaspirar. À prim eira vista existem razões amp lamen te reconhecidas

para rejeitar-se essa pressuposição. Os povos, as sociedades e ossistemas ecológicos não são objetos inanimados a serem manipu-

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lados da mesma maneira que os objetos da física. Os experimentosartificiais e o papel queestes desempenham na físicaprevisivelmen-te não são os meios, próprios ou possíveis, suficientes para su acompreensão. Enquanto as teorias sociais ou algumas das teoriaspsicológicas influenciam a disposição ou as ações das pessoas, elas

têm um efeito sobre os sistemas a que supostamente se aplicam deuma forma que as ciências físicas não têm. Há um sentido real emque, no desenvolvimento das ciências humanas e sociais, visamosantes mudar do que simplesmente interpretar o mundo. Em todocaso, este não é o lugar em que se vaidiscutir osproblemas especiaisde que se ocupam a teoria social, a ecologia e afins. Basta observarque Lakatos e os que seguem estratégia semelhante pressupõemque todo conhecimento científico autêntico deveria compartilharos métodos e padrões da física, posição essa difícil de defender epara a qual Lakatos não oferece nenhuma defesa.

2.4 Os métodos e padrões variáveis na física

Surge mais uma dificuldade para os que defendem os métodose padrões universais no momento em que se admite que osmétodos e padrões da física estão sujeitos à mudança e que estãosujeitos a essas mudanças precisamente nas ocasiões em que a física

f a z mais um avanço impressionante. Os cientistas alteram seusmétodos e padrões quando aprendem, na prática, o que se ganharácomessa mudança. Ironicamente, um excelente exemplo históricodesta minha argumentação está narrado num ensaio de Lakatospublicado postumamente (1978a). O argumento deste ensaioimpõe uma séria dif iculdade para a estratégia positivista contraria-mente defend ida por Lakatos.

A distinção entre a ciência e a não-ciência em geral aceita naépoca de Newton era uma versão da distinção que havia naAntigüidade entre episteme e doxa - entreo conhecimento genuínoe a mera opinião. Sustentava-se que o conhecimento científicogenuíno deveria consistir ou basear-se em verdades necessárias

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 35

estabelecidas pela razão, enquanto muitos acrescentavam estaexigência "essencialista" de que estas fossem verdades fundamen-tais, ou seja, verdades que não necessitavam de uma explicação. Ageometria euclidiana era muitas vezes tomada como ciência exem-plar, de acordo com esse ideal. A teoria do conhecimento de

Descartes, muito influente na época de Newton e considerada pelopróprio Newton a principal explicação da ciência a levar-se emconta para su a avaliação, deu expressão a uma idéia da ciênciabaseada em princípios evidentes e muito claros a priori. A teoriade Newton entrava em conflito co m essa concepção de ciência ecom os padrões científicos da época. Sua física, especialmente su aexplicação da gravidade, não podia ser comprovada por meio deprincípios evidentes. S ua concepção da ação gravitacional à distân-cia, longe de ser evidente, era em geral considerada ininteligível -

em certo sentido, essa era uma opinião aceita pelo próprio Newton,qu e admitia que, embora pudesse descrever a ação da gravidade,não poderia explicá-la. A teoria de Newton não proporcioríou asexplicações fundamentais.

Apesar de conflitante com os cânones aceitos da ciência, a

teoria de Newton funcionou muitíssimo bem na astronomia e nafísica terrestre. Estava claro que, colhidos os frutos dessa teoria, ospadrões teriam de ser mudados para incorporá-la. Foi precisamenteó que aconteceu. Os cartesianos "foram obrigados, quase contra a

vontade, a opor a tirania do evidente aos primeiros princípiosfundamentais e, assim, a mudar os padrões da crítica e d a demons-tração científica e até o próprio conceito de conhecimento" (Laka-tos, 1978a, p. 207).

Um trecho do ensaio de Lakatos (1978a, p. 201) resume asituação: "As grandes obras de arte podem mudar os padrõesestéticos e as grandes realizações científicas podem mudar ospadrões científicos. A história dos padrões é a história da interaçãodecisiva - e nem tão decisiva assim - entre os padrões e asrealizações". Desde que não se force demais a analogia com a arte,lfi so serve para resumir sucintamente a minha posição, poisexpressa o fato de que os padrões estão sujeitos à mudança diante

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A L A N C H A L M E R S

das realizações práticas. A minha análise da introdução do telescó-pio na astronomia que está no capítulo 4 émais um exemplo.

O reconhecimento de que os padrões estão sujeitos à muda nç adiante da prática poderia ser indicativo de que a busca por umametodologia universal a-histórica substantiva é fútil. É o que

realmente penso. Como poderia Lakatos então conciliar suaexpli-cação da grande t ransformação que Newton levou aos padrõescientíficos com sua defesa da estratégia po sitivista? Creio que aseguinte citação servirá de pista para qual teria sido a resposta deLakatos:

N ewton desencadeou o primeiro grande programa de pesquisa cientí-fica da história dos homens; ele e seus bri lhantes segu idores estabeleceramna prática as configurações básicas da metodologia científ ica. Nesse sentido,podemos dizer que o método de Newton criou a ciência moderna. (1978a,

p. 220)

A muda nç a nos métodos e padrões descrita por Lakatos é

interpretada por ele como, na prática, a descoberta dos métodos e

padrões corretos qu e presumivelmente seriam e são empregados d aíem diante de form a imutável para "ajudar-nos a criar leis para deter... a poluição intelectual" (Lakatos, 1974, p. 89).

Há du as razões pelas quais considero insustentável essa posiçãoque aqui atr ibuo a Lakatos. Em primeiro lugar, depois de haver

concordado que é perfeitam ente inteligível dizer que os métodos epadrões mudam diante d a prática, como fa z Lakatos em seu estudoda física de N ewton, não é razoável pressupor que semelhantesmuda nç a s não ocorram em outras ocasiões subseqüentes. Em

segundo lugar, é possível apresentar exemplos de muda nç a s nospadrões da física depois de Newton. Por exemplo, um padrãoimplícito na física do século X IX tratava de seu caráter determinista.Dadas as condições iniciais bem-definidas de um sistema, se udesenvolvimento posterior é determinado pelas leis da física.Sabe-se muito bem que o abandono do determinismo restrito na

mecânica quântica desconcertou Einstein e outros. Entretanto, sedesejamos aceitar e explorar as possibilidades práticas para o

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avanço que a mecânica quântica permitiu, devemos no s adaptar àsmudanças nos padrões que ela encerra. O advento da radioastro-

nomia d eu origem a discussões a respeito do que deve se r consi-derado evidência relevante na astronomia (Edge e Mulkay, 1976),análogas às que surgiram quando Galileu apareceu com o telescó-

pio. E m cada um desses casos, o resul tado fo i uma muda nç aprogressiva e significativa em alguns dos padrões implíci tos naastronomia experimental . D arei um terceiro exemplo hipotético,ma s instrutivo. Suponhamos, como algumas pessoas já acreditam,qu e o raciocínio dentro da mecânica quântica encerra uma nova"lógica quântica" qu e viola certos princípios clássicos da lógica.Nessa circunstância, o sucesso prático d a mecânica quântica cons-ti tuir ia uma boa razão para mudar nossos padrões lógicos nessecontexto. N em mesmo nossos ma is reverenciados padrões lógicossã o dados universalmente.

Outra conclusão a extrair d a ponderação qu e apresento a seguirreforça um argumento apresentado no f inal da seção 2.3. Seadmitimos o quanto os métodos e padrões da física são moldadospela prática, podemos reconhecer o quanto é precário tra nsferiresses métodos e padrões para ou tras áreas como a sociologia ou ahistória. Ainda assim, deve-se fazer precisamente isso, se tivermos

de empregar a estratégia positivista para deter a "poluição intelec-tual", como visava Lakatos, po r exemplo.

Neste capítulo, refleti sobre duas possíveis respostas para aquestão dos recursos que os filósofos têm à disposição paraestabelecer uma explicação a-histórica universal do método cientí-fico. Levei em consideração a natureza humana e também recorrià física e a sua história e afirmei que a questão não pode se rrespondida de m odo satisfatório lançando-se mão desses recursos,tt á um a outra possibilidade a ser aventada, que recorre ao objetivoda ciência: talvez seja possível estabelecer uma determinada meto-dologia, de fo r ma que ela seja a mais apropriada para contribuirPara a meta uma vez adotada para a ciência. Reflito sobre essa táticae dela extraio o que penso ter algum valor no capítulo seguinte.

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CAPÍTULO 3

A META DA C IÊNC IA

3.1 Observações introdutórias

Embora seja necessário falar muito mais sobre o que exporeiresumidamente, a meta da ciência pode ser entendida como aprodução do conhecimento do mundo, ao passo que o objetivo

da s ciências físicas, com as quais me preocupo neste livro, podese r entendido como aproduçãodoconhecimento domundo físico,

em oposição ao mundo social. Falando superficial e rapidamente,pode-se no mínimo avaliar a distinção que existe entre o objetivo

ou o interesse na produção do conhecimento e outros objetivos,como atender a interesses econômicos ou políticos de indivíduos,grupos ou classes específicos.* Eu diria, contra os céticos (entre osquais se pode incluir uma série de sociólogos contemporâneos),

que nas ciências físicas foram desenvolvidas técnicas devidamente

A idéia desenvolvida aqui tem certa afinidade com a compreensãode Althusser

(1966, capítulo 6 e p. 231) da produção do conhecimento,que ele consideravaanáloga à produção material. Essa visão althusseriana está claramente articuladaeampliada em Sutching (1983).

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A L A N C H A L M E R S

interpretadas para a produção do conhecimento que correspondeà meta da ciência. A seguir apresentarei um esboço caracterizadord a meta da ciência que, po r alto, serve para distingui-la d e outrasformas do conhecimento; depois, atendendo à história e à práticada fís ica, ofereço u m a caracterização mais detalhada d as metasimplícitas na ciência contemp orânea. Pode-se defend er métodos e

padrões d o pon to d e vista do quanto estes atendam à versão práticapossível da meta da ciência. *

Mui tos filósofos tradicionais abordam o problema da análiseda ciência procuran do elaborar uma caracterização geral do conhe-cimento genuíno para só então entender a ciência como um casoespecial dessa caracterização (ou, como interpretam os posi tivistaslógicos, como o caso único). N o capítulo anterior , já me referi àstentativas dos gregos antigos de extrair uma distinção geral entre oconhecimento autêntico e a simples opinião. L ogo no início da erada c iência moderna , encontramos John Locke (1967, capítulo l,seção 2) descrevendo seu propósito: "... investigar a origem, acerteza e a extensão do conhecimento hu ma no, jun to com as basese o grau de crença, opinião e concordância". David Armstrong(1973) estabelece uma versão especialmente clara das tentativas defi lósofos analíticos mod ernos de proporcionar uma caracterizaçãogeral do conhecimento com o algo just ificado, verdadeira crença oucoisa do gênero.

N ão seguirei nenhu ma abordagem gera l desse t ipo em minha

tentativa de carac terizar a meta d a ciência. Como já mostrei nadiscussão dos capítulos anteriores, não acredito que os fi lósofosdisponham de recursos que lhes permitam formular uma explica-çã o geral do conhecimento e suas metas, sem um exame detalhadode alguns exemplos reais do que é considerado conhecimento.Feito isso, creio que se torna bastante clara a existência dessadiversidade de tipos de conhecimento e que o esforço de encontrar

A F A B R I C A Ç Ã O DA C I Ê N C I A 41

* Outros (Po pper , 1979,p. 191-205; Wa tkins, 1985; Lau d an , 1984) recorreram à meta

da aencm para justificar suas metodologias, embora não da mesma manei r a ou coma mesm a concepção de meta para a ciência qu e elaboro aqui .

.„ caracterização do co nhecimento que ap reenda os aspectosrlistintivos de todos eles não está destinado a obter resul tado.Assim, além do que é normalmente considerado conhecimentocientífico, temos o conhecimento do cotidiano, que é o bom senso,

conhecimento que possuem os artesãos habil idosos ou ospolíticos espertos, o conhecimento contido nas enciclopédias ou

armazenado na mente de um especial ista em programas de audi-tório - e assim por diante. Além dedeixar deapreender os aspectosdistintivos de alguns ou de todos esses tipos variados de conheci-mento, as explicações mais tradicionais falham no momento emqu e passam a ser utópicas, pois especificam cri térios para oconhecimento genuíno que não podem ser satisfeitos. Esse é o

destino em que recaem as diversas tentativas pa ra a distinção entreo conhecimento e a mera opinião que recorrem às idéias do que é

necessário ou verdad e essencial , características do conhecimento

genuíno.Os comentários do parágrafo anterior mostram como defendo

uma abordagem pragmática para a especificação e adoção de m etas.Para serem úteis, e não fúteis, as metas não podem ser utópicas.Devem ser tais que se possa constatar um avanço em sua realização.E há mais: saber se a meta é ou não u tópica é algo que só se aprend ena prática. Nossas metas podem e devem ser modificadas diantedo que aprendemos sobre o que é possível realizar.

3.2 A ciência como busca da generalidade

Um aspecto do conhecimento científico que desejo esclareceré sua generalidade. S e tomamos exemplos incontestáveis do conhe-cimento científico (digamos, a geometria euclidiana e a lei dareflexão da luz conhecida pelos antigos, ou a mecânica newtonianae a teoria da relatividade de Einstein, d e épocas mais modernas),não é difícil avaliar a general idade das afirmações al i contidas. Os

teoremas da geometria aplicam-se igualmente aos domínios dacarpintaria , à topografia e à astronomia, enquanto a mecânica

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A L A N C H A L M E R S

newtoniana tanto se aplica ao s movimentos dos cometas quanto àoscilação de um pêndulo.

A importância da generalidade, de um ponto devista pragmá-

tico, está muito bem ilustrada pelo exemplo de Randall Albury

(1983, p. 44-5) da bomba da espinha dorsal do dragão. Era umabomba usada na sociedade chinesa tradicional para irrigar osarrorais. A água era carregada em paletes, que eram elevados em

ângulo reto por um mecanismo de bicicleta. Os detalhes dodesenho dessa bomba chinesa tradicional, especialmente .a formados paletes, variava de uma circunstância para outra, presumivel-mente como resultado da experiência prática dos que a utilizavam.

A bomba foi introduzida no Ocidente durante o século XVII e erausada em projetos hidráulicos e pelos bombeiros. N o séculoXVIII ,em sua Arquitetura hidráulica, De Belidor submeteu essa bomba a

u m a análise geométrica e mecânica e apresentou uma explicaçãogeral de seu funcionamento. C om auxílioda análisede De Belidor,é possível especificar-se a forma ideal do palete para uma determi-nada circunstância. Enquanto os chineses tradicionais possuíam oconhecimento artesanal baseado na experiência prática, o trata-mento de De Belidor constituía um conhecimento científico. Ageometria e a teoria das máquinas que ele usou eram gerais, no

sentido de que se aplicavam a qualquer situação mecânica; aresultante teoria da bomba da espinha dorsal do dragão poderia

ser empregada para projetar bombas destinadas tanto a circunstân-cias novas como às já conhecidas.

O exemplo anterior serve para expor a ligação que existe entrea generalidade e a utilidade. Embora a importância da ciência comorecurso para oferecer u m controle aperfeiçoado e amplo sobre anatureza tenha aumentado firmemente desde o momento darevolução científica, muitos desejariam resistir a uma identificaçãoestreita entre a ciência e sua aplicação prática. Diz-se que a ciência

busca a compreensão: o aperfeiçoamento d a tecnologia é umsubproduto desta compreensão aperfeiçoada. Essa idéia certamente

satisfazia ao s gregos antigos e aos filósofos medievais, muitos dosquais procuravam entender o mundo - a "realidade por trás das

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 43

arências" - sem nenhuma preocupação especial com asaplica-"es práticas. Talvez se possa dizer o mesmo dos cosmologistas

modernos, por exemplo. Os antigos buscavam o conhecimento

peral qu e explicasse o mundo cotidiano das aparências. Por exem-nlo, tomando como certas as mudanças observáveis qu e ocorrem

no mundo cotidiano, como o crescimento e a decadência, ocongelamento e aebulição, as mudanças das estações e assim por

diante, eles buscavam uma explicação do mundo que esclarecessecomo, emgeral, épossível amudança. Esse problema levou alguns

deles a propor uma teoria atômica, pela qual se explicaria aidentidade através da mudança em termos da persistência dosátomos antes e depois damudança, aopasso que um novo arranjo

desses átomos seria responsável pela mudança ern si. Demócritodizia que "na verdade só existem os átomos e o vazio". Se existealgo mais geral do que isso, talvezseja a teoria geral da relatividade,essencial para acosmologia moderna. Quer consideremos a ciência

em termos do controle material, quer em termos da compreensãoqu e ela permite, a generalidade é uma das características que adis t inguem.

Devo limitara ênfasena generalidade.A s características mpor-tantes d a ciência, mesmo da ciência contemporânea "pura", seperdem, se nos fixamos demais num quadro da ciência como buscade generalidades teóricas. lan Hacking (1983) ilustrou muito bem

como às vezes o experimento "tem vida própria" - o que éimportante. Por exemplo, ele descreve a maneira como DavidBrewster, personagem importante na ótica experimental na primei-ra metade do século XIX, descobriu muitas propriedades da luz,

Proporcionando assim material que seria*mais tarde incorporadoà teoria ondulatória da luz. "Brewster não estava testando ouComparando nenhuma teoria", observa Hacking (1983, p. 157),

ete tentava descobrir como a luz se comporta." Para dar umexemplo mais atual, Envin Hiebert (1988) descreveu como ostísicos que faziam experimentos nucleares foram levados pela

Prática a uma "onda de novas descobertas experimentais iniciada. Pela descoberta do nêutron, inclusive a fissão nuclear e as reações

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em cadeia auto-sustentadas", que pouco deviam aos desenvolvi-mentos da teoria nuclear.

Thomas Ku h n (1977) fa z uma esclarecedora distinção entre o

que chama de matemático e experimental ou ciência bacon iana no

século XVII. A matemática, assim como a mecânica newtoniana,

encerrava leis matemáticas co m elevado grau de generalização,enquanto a ciência baconiana trazia implícito o conhecimentoprático, baseado na experimentação do tipo tentativa e acerto. Estaúlt ima exigia uma investigação intencional do com portamento damatéria emsituações novas - "torcer o rabo do leão", como colocouBacon. Grande parte da ótica dos séculos XVII eXVIII entra nestacategoria, assim como a linha d e pesquisa que levou à máquina avapor e à Revolução Industrial. N enhu ma parte dessa pesquisaeficaz é entendida como bu sca da generalidade teórica. Ela pouco

deveu à teoria explicitamente form ulad a. A ciência bac oniana,comoprática sistemática edisseminada, era uma novidade históricano século XVII , e a eficácia da estratégia foi uma descobertahis tórica, que p ermanece um componente vital da atividade cien-tífica. Parte importante da meta da verdadeira ciência é a ampliaçãodos meios de, na prática, intervir no m u n d o físico e controlá-lo,sistematicamente torcendo o rabo do leão...

Acredito que existam duas razões para a existência e importân-ci a da ciência baconiana não tornar a minha ênfase na generalidade

um aspecto distintivo do conhecimento científico insatisfatório. Aprimeira exige considerações semelhan tes às ilustradas pela his tóriada bomba da espinha dorsal do dragão. Como e atéonde os efeitospráticos criados e percebidos em específicas situações experimen-tais podem ser explorados fora delas? Uma boa resposta p ara essaquestão num caso determinado requer uma boa compreensãoteórica da s ituação, o que é com provado pelos exemplos da ciênciabaconiana citados acima. Ap erfeiçoamentos drásticos no projetodas máquinas tornaram-se possíveis com a teoria geral da termodi-nâmica qu e evoluiu no século XIX, o controle da fissão nuclear

avançou mu ito d epois que as energias de ligação e s imilares foramcompreend idas, e a teoria ondulatória da luz , de Fresnel, abriu o

A FA B RIC A Ç Ã O DA C I Ê N C I A 45

campo para possibilidades práticas que iam muito além do quegrewster foi capaz de realizar. Sem desejar negar a amplitude eimportância da ciência baconiana contemporânea, suas generaliza-ções teóricas é que torn am a ciência diferente e mais poderosa quea tecnologia medieval.

Uma segunda razão para meu enfoque das generalizaçõesteóricas da ciência é que este aspecto da ciência te m sido o principalalvo dos ataques dos céticos ou dos relativistas intransigentes, maisdo que sua eficácia prática. Afina l de contas , no mundo contem-porâneo de computadores, transplantes cardíacos e energia nu-clear, é muito difícil negar a afirmação de que a ciência nos tenhalevado a meios aperfeiçoados para um controle prático do mu ndomaterial. Estou preocupado em defender os aspectos teóricos daciência da crítica cética equivocada, criando com isso espaço para

uma crítica da ciência mais eficaz, como a praticada na ciênciacontemporânea.Onde sãolevantadas d úvidas céticas a respeito dosaspectos mais práticos da ciência, como a objetividade da experi-mentação, eu a d efenderei.

S e adotamos o ponto de vista de que a meta da ciência é oestabelecimento degeneralizações quegovernem o comportamentodo mundo, é possível calcular que há nisso um problema funda-mental a ser resolvido. Como se poderá fundamentar esse tipo degeneralização? Há realmente u m pro blem a a ser resolvido, algo que

vem da reflexão de que o m u n d o à nossa volta é complexo edesordenado e por isso não é possível dis t inguir as regularidadesqu e poderiam constituir as generalizações científicas aplicáveis aele. Fora de algumas áreas da astronomia e da ótica não existemregularidades sem exceções a observar. Mesmo os prováveis opo-sitores que buscam regularidades comleis do tipo "objetos pesadoscaem direto no chão" ou "nascem bolotas no tronco doscarvalhos"são cont ra r iados muitas vezes em seu próprio jardim: primeiro,Pela queda das folhas no outono, e depois, pelas bolotasque caemem chão pedregoso ou são estragadas por geadas e passarinhos.

N a seção 3.3 tentarei esclarecer a na tureza do problema de comoas generalizações científicas devem ser fundam entadas pe lo exame

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seletivo da história da ciência e d a filosofia, para distinguir algumasda s soluções que têm sido oferecidas. Estaremos depoisemmelhorposição para avaliar essas soluções implícitas na ciência moderna.

3.3 As primeiras tentativas para o estabelecimento

das generalizações teóricas

Como se podem fundamentar as generalidades científicas semexceções, dada a natureza desordenada do mundo observável? Na

filosofia de Platão e Aristóteles há respostas para esse problema. Ainterpretação habitual da solução de Platão era pressupor que as

exigências de conhecimento aplicam-se com certeza apenas a um

mundo ideal, distinto do mundo natural em que vivemos, de modoque, por exemplo, a geometriaconstituiumconhecimentogenuínode um mundo de cubos e triângulos ideais e assim por diante - aque, na melhor das hipóteses, os objetos circulares e triangularesdo mundo real correspondem de maneira muito rudimentar. Essa

mudança esquiva-se do problema que apresentei a respeito dorelacionamento entre as generalizações abstratas que ocorrem noconhecimento científico e nos eventos desordenados do mundoreal, pois estes são irrelevantes para o conhecimento platônico. O

posicionamento de Platão não constitui exatamente a solução denosso problema para aqueles que buscam o conhecimento domundo real, por mais plausível que seja a matemática. A respostade Aristóteles para o problema é mais interessante. Ao admitir aocasional e até freqüente disparidade entre as exigências fundamen-tais de suas teorias danaturezae asobservações comuns, Aristótelesqualificava afirmações como "objetos pesados caem na direção docentro da Terra" e "sementes de oliveiras nascem em oliveiras'com expressões do tipo "na maioria dos casos" ou "via de regra'(Barnes, 1975). Em segundo lugar, Aristóteles distinguia o com-

portamento e as propriedades essenciais dos acidentais, de modoque, por exemplo, a queda de uma folha é essencial, ao passo que

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 47

sell vôo tremulante na brisa é acidental. O conhecimento só épossível quando diz respeito ao essencial.

Qualificar asgeneralizações com expressões como "na maioria

dos casos" é uma splução insatisfatória para nosso problema.Embora seja um expediente qu e funciona razoavelmente bem na

biologia so b circunstâncias normais, já que, por exemplo, namaioria do s casos as sementes de oliveira crescem em oliveiras,

existem impressionantes exemplos contrários em outras áreas.Tendo em mente o comportamento usual das folhas de outono,de penasemqueda (eassimpor diante), pode muito bem acontecerqu e o número de objetos em queda que descem verticalmente emdireção ao centro d a Terra esteja em minoria. A questão fo iretomada por muitos autores medievais, especialmente influencia-do s por Tomás de Aquino (Wallace, 1981, p. 132-5). Seu trata-mento continha uma assimetria entre a elucidação e a previsão.N ão é possível prever, por exemplo, que uma determinada sementecrescerá numaoliveira ou que uma pedra jogada descerá na vertical.A s ocorrências acidentais, como a intervenção dos pássaros ou dosventos, podem impedir que as coisas tomem seu rumo natural.Entretanto, conforme a argumentação de muitos peripatéticosmedievais, se uma semente nasce numa oliveira ou uma pedra caiverticalmente, isto pode ser explicado mediante referência a suaessência e às causas naturais atuantes. Essa forma de análise erachamada de raciocínio ex supositione. Ela se estendia à explicação

do s fenômenos naturais que só têm ocorrência rara, como aseclipses lunares e o arco-íris (Wallace, 1974). Não se pode preverquando ocorrerá um arco-íris, mas, quando ele aparece, sua causaPode se r atribuída à refração e dispersão da luz do So l pelas gotasda chuva.

Esse é portanto um desenvolvimento medieval de uma das

respostas de Aristóteles ao que coloquei como problema da típicaralta de consenso que existe entre as nossas teorias e os aconteci-Itlentos imediatamente observáveis. Diante disso, o raciocínio e x .

*u

í>ositione evita o problema. Entretanto, permanece um a dificul-tebásica, referente ao método pelo qual sechega a explicações

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causais dos fatos que, segundo esse modo de raciocínio, presume-

se , tenham ocorrido. Essa d i f i cu ldade está associada muito de perto

à segunda resposta de Aristóteles ao problema anteriormente

mencionado. Como se podem conhecer as generalizações que

regem o comportamento da luz encerradas na explicação do

arco-íris? Que técnicas precisamente Aristóteles oferecia para dis-tinguir o essencial do acidental? Nem Aristóteles nem seus suces-sores medievais tinham alguma resposta satisfatória para esse tipo

de questão. Por exemplo, na física aristotélica, a distinção entre o

movimento essencial e o acidental recai na noção de um cosmos

ordenado, esférico e centrado na Terra, sendo movimentos essen-

ciais aqueles que servem para manter esta ordem (Clavelin, 1974,

p. 12-21). Não é oferecido nenhum método sistemático para se

estabelecer a existência e o caráter desta ordem. Em geral, ela se

baseava nos pressupostos comuns da época, como a imobilidade

da Terra e a distinção entre o reino terrestre e o celestial. S.Gaukroger (1978, p. 124) diz que "a estrutura explanatória queAristóteles propõe que utilizemos é incoerente, pelo feto de que as

explicações dogênero requerido emprincípio não podem ser dadas".

Aristóteles era um empirista que acreditava que "a experiência deve

proporcionar os princípios de qualquer assunto" (Primeiros Analíti-cos, l, 30, 46a), mas a experiência não leva ao conhecimento das

causas necessárias, nem permite distinguir o essencial do acidental.

Não obstante, voltando-nos para filósofos antigos e medievais

talvez estejamos procurando uma resposta para o nosso problemano lugar errado. A f i n a l de contas, a nossa discussão do capítulo

anterior indicava que os filósofos ainda estão lutando para encon-

trar uma boa explicação da ciência, e este livro seria muito

redundante se isso já tivesse acontecido. Entremos na própria

ciência do passado, em vez de na filosofia passada, para ver se nelaexistem meios satisfatórios para dar fundamentos àsgeneralidades.

Os candidatos mais evidentes para o conhecimento científico

satisfatório estabelecido pelos gregos antigos são a geometria de

Euclides e a estática de Arquimedes. Esta última consiste na teoriado equilíbrio, dos centros de gravidade e dos corpos flutuantes.

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 49

Nessas ciências, as proposições aplicáveis ao mundo eram deduz i -das logicamente do que, na época, poderia ser plausivelmente

interpretado como princípios evidentes por si mesmos, ou axiomas.IsJão preciso estender-me sobre esse ponto em relação à geometria

euclidiana. A teoria do equilíbrio e dos centros de gravidade de

Arquimedes tratava os objetos como formas geométricas dotadasde peso. Esses objetos poderiam ser suspensos por fios sem peso

em braços rígidos apoiados por um eixo sem fricção. Os princípios

da teoria traziam implícita a geometria euclidiana, o pressuposto

de que os corpos tendem a se mover para baixo em virtude de seu

peso e ponderações sobre a simetria, considerada evidente. (Por

exemplo, pressupunha-se que, se dois pesos iguais fossem suspen-

so s em braços iguais de uma balança, haveria equilíbrio por causa

d a simetria da situação.) Nenhuma situação física real correspon-

derá com precisão às descrições da geometria euclidiana ou da

estática de Arquimedes. No entanto, quando as situações físicasmais ou menos se ajustam às descrições de Euclides ou Arquime-

des, presume-se que essas teorias da geometria e da estática

contenham prescrições mais ou menos aplicáveis a tais situações.

Quando se adota esse ponto de vista, tanto adianta testar a estática

de Arquimedes com a observação do comportamento de balanças

reais quanto a geometria euclidiana, com a medição e a soma dos

ângulos de um triângulo material. Temos então alguma explicação

para a relaçãoentre a teoria e a experiência que prova ser satisfatória

para uma boa diversidade de situações físicas estáticas.

Embora a ciência de Euclides e Arquimedes se baseasse em

princípios inicialmente evidentes, uma via de orientação mais

empírica para a generalidade está implícita na antiga astronomia.

A cuidadosa observação dos céus trouxe um conhecimento geral

na forma de uma especificação das órbitas observadas do Sol, da

L ua e dos planetas, conhecimento suficiente para a previsão dos

eclipses e das conjunções e para servir de base a calendários

práticos. A lei da reflexão da luz é mais um exemplo do conheci-

mento geral estabelecido pelos antigos. Enquanto alguns, comoEuclides, tentavam argumentar em sua defesa recorrendo ao que

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consideravam princípios evidentes, Ptolomeu acreditava ser neces-sário testar a lei por meio da experimentação. Ptolomeu suspeitavatambém que houvesse uma lei regendo a refração e descreveuexperimentos projetados para determiná-la, ainda que nisso não

tenha tido muito sucesso. (Veja a minha avaliação um tanto

negativados

experimentosde

Ptolomeuem

Chalmers, 1975,que

é o Anexo deste volume.)

Apromessa oferecida por esses primeiros sucessos dos antigosnã o teve confirmação. N ão foram realizados grandes avanços emsu a contribuição para a busca do conhecimento científico aplicávelde maneira geral até a revolução científica. Retrospectivamente,

podemos verificar por que isso teria acontecido. As técnicasintroduzidas pelos antigos para o estabelecimento das generalida-des aplicáveis aos fenômenos complexos e desordenados do mun-do

real eram satisfatórias apenasem uma

série muito restritade

circunstâncias. A busca pelos princípios físicos evidentes teve um

sucesso limitado apenas em áreas onde o mundo cotidiano daexperiência comum oferecia uma boa base para a abstração deprincípios que poderiam ser interpretados como evidentes. Ocampo limitado e a confiabilidade desse procedimento tornam-seevidentes assim que o domínio daexperiência étranscendido. Hojesabemos, por exemplo, que a geometria euclidiana é violada naescala astronômica, enquanto a estática deArquimedes seria inútilpara prever o comportamento de uma balança numa nave espacial.

A avaliação dessas limitações só apareceu nos tempos modernos,naturalmente. Mais significativo para a nossa apresentação histó-rica é o fato de que, em muitas áreas, estavam totalmente ausentesos princípios qu e poderiam se r plausivelmente considerados evi-dentes por si. Foi exatamente esse o problema que surgiu quandoGalileu tentou levar as técnicas de Arquimedes da estática para oscorpos em movimento. O bom senso ou o mundo da experiênciacotidiana não nos propiciam princípios evidentes, capazes de nosproporcionar uma lei da queda, por exemplo.

Compreendemos hoje que os sucessos de orientação maisempírica dos antigos dependiam de certos aspectos muito impre-

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 51

visíveis de nosso mundo físico. Como, por acaso, nosso sistemasolar consiste em um Sol degrande massa acompanhado por meiadúzia de planetas demassa relativamente menor que não interagemde modo significativo,os movimentos da Terra e dos planetas são

suficientemente regulares para que as regularidades com algum

significado sejam discernidas pela observação empírica. De umaperspectiva moderna, podemos dizer que o sistema solar é umexemplo muito raro de uma instalação experimental convenienteque por acaso ocorreu naturalmente. O comportamento regulardos raios da luz sob uma ampla diversidade d e circunstânciascomuns também pode ser atribuído a configurações acidentais de

nosso mundo. A interação entre a lu z e os campos gravitacionaisé muito pequena e o comprimento de onda da luz visível é

suficientemente pequeno para minimizar os efeitos da difração no

nível macroscópico.Dadas as técnicas criadas pelos antigos, seu sucesso na deter-minação do conhecimento científico geral inevitavelmente limitou-se a uma série restrita de casos especiais.

3.4 A generalidade e a experimentação: Galileu

Na física de Galileuencontramos uma solução inovadora para

o problema de como devem ser autenticadas as generalizaçõescientíficas. Como indicado na seção anterior, pode-se dizer que o

principal objetivo da física d e Galileu era uma extensão das técnicasqu e Arquimedes havia empregado em sua estática para tratar doscorpos em movimento (Clavelin, 1974; Shea, 1972). Vejamoscomo isso levou Galileu a adotar um novo papel para a experimen-tação na ciência.

Em seus primeiros trabalhos sobre o movimento, encontramosGalileu tratando de situações idealizadas: balanças co m eixos se mfricção, esferas perfeitas rolando sobre planos inclinados perfeita-mente retos e coisas afins. Nesses trabalhos, Galileu indicava terconsciência do problema de como o tratamento dessas situações

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idealizadas se relaciona com os s is temas no mu ndo real e advertiaqu e "quem faz uma experiência sobre essa matéria nã o devesurpreender-se se ela falhar" (Galileu, 1960, p. 68). Contudo, issosignifica que a teoria de Galileu não pode ser legit imada pelorecurso à experiência. Uma vez que também se reconheça que

recorrer à evidência também é insatisfatório para nossos objetivos,podemos ver como, nessa fase, Galileu não conseguiu resolver onosso problema.

A física experimentada de Galileu continha um a soluçãoqualitativa. Suaciência domovimentoencerrava a tese de que todosos corpos tê m propensão natural a mover-se para baixo c om umaaceleração uniforme e que o movimento horizontal é preservado.Essas hipóteses combinad as pr odu ziram uma trajetória parabólicapara os projéteis. Galileu (1974, p. 223) sabia que em geral essas

afirmações não eram provenientes da experiência.

As conclusões abstratamente demonstradas são alteradas no concretoe são tão falsificadas que nem o movimento horizontal é igual, nem a

aceleração natural ocorre exatamente na proporção pressuposta, nem a

l inha do projéti l é parabólica - e assim por diante.

Uma razão fundamental pela qual os movimentos reais emgeral não correspondem ao s descritos na teoria de Galileu é aexistência de uma série de obstáculos de atrito ao movimento.

Considerando-se apenas o obstáculo que o ar impõe aos movimentosem questão aqui, descobre-se que ele os perturba a todos n u m a inf ini tudede maneiras, segundo as infinitamente inúmeras maneiras que variam asformas, os pesos e as velocidades das coisas móveis.

Devido a problemas desse tipo, as bases da teoria de Galileusó poderiam ser testadas em situações experimentais criadas espe-cialmente para isso. As mais famosas eram as experiências complanos inclinados. Galileu testou suas afirmações sobre a inércia ea queda livre rolando bolas de bronze "bem redondas e polidas"por um canal num cilindro que era o mais reto possível. Pararestringir a fricção a um mínimo, "dentro do canal foi colado um

A F A B R I C A Ç Ã O D A C I Ê N C I A 53

pedaço de pergaminho , o mais macio e limpo possível" (Galileu,1974, p-169). Os movimentos qu e serviram como exemplificaçõese testes d a teoria d e Galileu não são do tipo qu e surge espontanea-mente. Por exemplo, um a importante seqüência de movimentosinvestigada por Galileu tratava de uma bola qu e descia um plano

inclinado, era desviada para um plano horizontal e saía deste parauma queda livre (Drake, 1973). Foi necessário qu e Galileu criassesituações artificiais especialmente planejadas com o objetivo detestar sua teoria , reduzindo a um mínimo os efeitos indesejáveis.El e in t roduz iu um a série de técnicas para reduzir os obstáculos epara tra tar dos que restavam, e desde então elas se tornaram padrã oda atividade experimental (Koertge, 1977).

O quadro da ciência que melhor atende a teoria do movimentode Galileu pode ser resumido da man eira seguinte: as teorias e as

leis científicas descrevem as tendências que têm os sistemas decomportar-se de determinadas maneiras . N as s ituações físicas reais,essas tendências se combinarão de maneiras com plexas, de modoque poucas regularidades aparecerão no nível dos eventos obser-váveis. Fazendo um a intervenção experimental, podemos tentarisolar e investigar as tendências individuais e discernir as leis qu eas regem. Pressupõe-se então que essas leis, cuja demonstração écomprovada aqui e ali por meio de intervenções experimentais ,aplicam-se tanto ao mundo exterior quanto ao mundo in te rno d assituações experimentais (Bhaskar, 1978). Essa é a solução queGalileu deu ao problema da generalização e que se tornou lugar-comum na física.

E preciso impor algumas reservas ao caráter dessa "solução".N ão existe nenhuma garan t ia a priori de que as leis identificadasna atividade experimental continuem a ser aplicadas fora dassituações experimentais. O que se pode obter, pressupondo queisso aconteça, é algo qu e terá de ser aprendido na prática. O sucessoque a física goza desde G alileu é suficiente para confun dir o céticointransigente quanto a esse aspecto, e não pode se r superestimado.Embora a f ís ica tenha provado ser eficientíssima para tratar desituações tecnológicas maqu inadas art if icialmente, sua capacidade

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A L A N C HA L M E R S

para tratar do mundo natural é limitada fora de determinadosaspectos da astronomia. Isso é exemplificado pela notória feita deconfiabilidade das previsões meteorológicas ou , mais grave, pelaprecariedade de nossas avaliações do impacto ambiental das inter-venções tecnológicas no mundo natural.

U m a segunda ressalva necessária diz respeito à limitada ampli-tude que se pode dizer que Galileu tinha com relação à consciênciadas implicações de sua atividade experimental. Em minha interpre-tação, Galileu transformou a problemática meta da generalidadena ciência em uma forma que era viável em praticamente qualquergrau: "Identifique as generalidades em situações simples e, senecessário, artificialmente maquinadas, e pressuponha que essasgeneralidades continuem a aplicar-se a todas as situações, não

importa sua complexidade". Desnecessáriodizer que-Galileu não

interpretou dessa maneira suas inovações. Elecontinuou atraídopelo ideal euclidiano ou arquimediano e muitas vezes tentouapresentar sua teoria do movimento como derivada dos princípiosevidentes, reivindicação que não poderia ser sustentada complausibilidade e que era incompatível com sua experimentação(Wisan, 1978, p. 3-4).

Deve-se acrescentar ainda uma terceira ressalva: o método deGalileu de dividir os experimentos certamente não resulta nummétodo deestabelecer asgeneralidades com certeza.As implicaçõesepistemológicas da experimentação de Galileu são discutidas no

capítulo 5.

3.5 A substituição do desenvolvimento pek certeza

Já vimos antes como,a física de Galileu foi realmente um pontode partida para a idéia de que a ciência deveria basear-se emverdades evidentes por si mesmas, ao passo que no capítulo 2

vimos como a física de Newton, da mesma forma, foi um pontode partida para a concepção das leis científicas como verdades

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 55

fundamentais estabelecidas co m certeza. Essas mudanças, qu ecolocaram a física em seu caminho moderno, podem ser resumidaspela afirmação de que a ciência moderna substituiu a meta utópicapela certeza mediante a exigência de um aperfeiçoamento ou desen-volvimento constante. Essa exigência de desenvolvimento implica

qu e uma boa teoria deve noscontar alguma coisa que não sabíamosantes. O quanto uma teoria leva à boa previsão dos fenômenosqualitativamente novos torna-se especialmente significativo. (Aênfase no desenvolvimento e nas novas previsões é uma dascaracterísticas das filosofias da ciência de Popper e Lakatos.)

A importância dos tipos de consideração mencionados acimaaparece como significativa no conflito entre cartesianos e newto-nianos no final do século XVII e no início do século XVIII . Osnewtonianos, co m certa justificativa, argumentavam que a física

cartesiana podia explicar apenas os fenômenos já conhecidos, equ e mesmo isso só eraobtido por meio demecanismos necessárioscriados artificialmente co m essa finalidade. Assim, foram imagina-do s vórtices etéreos para explicar os movimentos conhecidos dos

planetas; foram postuladas correntes de partículas em duas viasemitidas pelos ímãs e f luindo ou caindo em sorvedouros de duasvias em materiais magnéticos para explicar os fenômenos magné-ticos. Em compensação, os newtonianos diziam, mais uma vezjustificadamente, atécerto ponto, que a mecânica newtoniana não

apenas explicava de maneira não-artificial os fenômenos conheci-dos, como os movimentos planetários, mas também podia preverfenômenos anteriormente desconhecidos, como a não-esfericidadeda Terra, a maneira exata como varia a aceleração da gravidade em

relação à distância do centro da Terra e, mais tarde, espetacular-mente, o retorno do cometa de Halley. O reconhecimento de queum dos méritos da teoria de Newton era a amplitude de novasdescobertas que ela propiciava fo i enfat izado, po r exemplo, em1728, em Uma visão da filosofia de sir haac Newton , obra em queH. Pemberton observava como ela "levou ao conhecimento de

coisas tais que, antes de sua descoberta, qualquer um considerariamenos que loucura até mesmo a simples conjetura de que

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56A L A N C H A L M E R S

nossas faculdades algum dia chegassem tão longe" (Worrall eCurrie, 1978, p. 212-3). De um ponto de vista contemporâneoprivilegiado, podemos acrescentar muitos exemplos espetacularesde novas previsões acertadas que a física possibilitou - um são asondas de rádio previstas pela teoria de Maxwell e produzidas po r

Hertz, outro é a curvatura dos raios de luz nos campos gravitacio-nais , prevista na teoria da relatividade geral de Einstein e d etectadapor Eddington.

A propriedade d a ênfase no desenvolvimento e aperfeiçoamen-to do conhecimento e o significado especial das novas previsõestê m apoio nas considerações gerais qu e apresentarei a seguir.Como já sublinhei , as pessoas não constróem o conhecimentosozinhas e a partir do nada. Nascemos todos e m um cenárioepistemológico onde já existe muito conhecimento e variados

métodos para su a produção, ampliação e aperfeiçoamento. N ãocoloco isso como uma verdade a priori. É concebível que osempiristas radicais estivessem corretos ao afirmar que as pessoasacumulam em mentes vazias o conhecimento a partir do que lhesé fornecido pelos sentidos; Descartes poderia estar certo ao dizerque as pessoas são capazes de estabelecer as verdades necessáriaspor m eio da luz natural d e sua razão. Entretanto, existem muitís-simas evidências qu e dizem respeito à natureza da percepção, d al inguagem, do aprendizado dos seres humanos, da história d o

conhecimento em geral, e d a história da ciência em particular , qu eindicam qu e eles não estavam certos. N ão existe nenhu m argumen-to de Arquimedes a partir do qual se possa construir e avaliar oconhecimento. N ão temos outra alternativa senão começar noponto em que ele estiver e tentar acrescentar ou aperfeiçoar oconhecimento existente com a uti l ização ou o aperfeiçoamento dosmétodos que temos à mão. A s novas exigências de conhecimentodeverão se r avaliadas em relação ao que já é conhecido ou aceito.Ou seja, elas serão julgadas pela extensão em que forem umaperfeiçoamento daquilo que veio antes. A capacidade de prevercorretamente novos fenômenos é, com certeza, importante sinalde tal aperfeiçoamento.

A F A B R I C A Ç Ã O D A C I Ê N C I A 57

onde a ciência moderna encerra uma substi tuição dohietivo da certeza pela meta do aperfeiçoamento ou desenvolvi-

mento, aí ela representa uma redução dos padrões que os antigossforcaram-se por superar . Representa a substi tuição de um objeti-

vo realizável por um utópico. Contudo, a discussão acima mostra

um sentido em que as exigências colocadas na ciência modernasão maiores do que as dos an tigos. A exigência de um desenvolvi-mento contínuo e especialmente da novidade qualitativa não éapenas uma exigência radical, mas algo que os antigos poderiamde maneira muito razoável considerar utópico. A extensão e asformas com que a moderna ciência tem sido capaz de se desenvol-ver e desvendar novos fenôm enos é uma descoberta ou percepçãode ordem prática, que não poderia ter sido prevista.

3.6 A meta da ciência

Diante do que foi dito até aqui neste capítulo, i remos pond erare resumir o que pode ser dito sobre a meta da ciência.

A física encerra o objetivo de estabelecer generalizações aplicá-veis ao mundo físico. É necessário haver meios de fundamentaressas generalizações. Pelo menos desde a época da revoluçãocientífica estamos em p osição de sa ber que essas generalizações (leis

e teorias) científicas nã o podem se r estabelecidas a priori; temostambém boa base para aceitar que a exigência de certeza é utopia.Contudo, a exigência de que nosso conhecimento esteja sempresendo transformado, aperfeiçoado e ampliado não é utopia.

A té q ue ponto essa concepção da meta da ciência serve desubsti tuto para o método universal rejeitado no capítulo anterior,evitando que se caia em algu m "vale tudo" radical? Se estamos a trásda meta da ciência, algumas recomendações muito gerais sobreMétodos e padrões podem ser defendidas por referência a minhacaracterização dela. Podemos pedir, por exemplo, que as candidatasa leis e teorias científicas sejam justificadas pelo confronto rigorosodelas com omundo, demodo a tentar estabelecer sua superioridade

A FA B RIC A Ç Ã O D A CIÊNCIA

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A L A N C H A L M E RS

em relação a outras concorrentes. Podemos acrescentar que, nafísica, um teste tã o severo (para usar a terminologia apropriada dePopper) normalmente tem implícita a experimentação artificial e o

fato de que o resultado positivo da previsão de novos fenômenosterá significado especial. Quaisquer métodos ou padrões mais

fundamentados do que essas afirmações bastante moderadas terãode ser produzidos na prática dentro das próprias ciências.

A s afirmações acima, que vão pouco além de pautas esquemá-ticasmuito mal-acabadas ou de uma orientação particular, embora

caindo um pouco aquém da metodologia fundamentada a quemuitos f i lósofos dedicaram longos textos, bastam para ajudar acombater as formas mais radicais do relativismo e do ceticismo.Em especial, as mudanças nos métodos, padrões e, se for o caso,

paradigmas fundamentados podem ser avaliadas do ponto devista

da amplitude em que estendem a meta da produção do conheci-mento aperfeiçoado e mais abrangente. Afirmo que isso pode serfeito; a ciência pode e freqüentemente tem sido praticada de uma

forma que atende predominantemente aos interesses da produçãodo conhecimento, mais do que é subserviente a outros interessesde classes, ideológicos ou pessoais. Um dos objetivos do restante'

deste livro é fundamentar isso em relação ao anarquismo deFeyerabend e ao relativismo dealguns sociólogos contemporâneosdo conhecimento. Entretanto, no capítulo final, afirmo que isso

nã o chega a ser uma assepsiad a ciência, que a imunize contra um acrítica social e política. Em vez disso, espero que minha análiselimpe o caminho para essa crítica.

A tentativa que fiz de especificar a meta da ciência deve conteralgumas ressalvas para eliminar alguns possíveis equívocos daminha posição. Embora eu acredite que uma boa concepção dasmetas da ciência possa vir a ser empregada para defender a ciênciado ceticismo radical e possibilite avaliações de exigências de conhe-cimento que têm pouca força normativa em relação a essa meta,

não desejo ser interpretado como alguém que considera a meta daciência um bem absoluto que necessariamente deve ser colocado

tina de outras metas. Poder-se-ia muito bem dizer que o problema, utilizar eqüitativamente o conhecimento científico que temos é

m problema de urgência maior do que a produção de mais

onhecimento científico na sociedade contemporânea.

Uma segunda ressalvaé aadmissão de que aatividade científica

e abusca de suas metas na nossa ou emqualquer outra sociedadeestão inevitavelmente entrelaçadas com outras atividades que têm

metas diferentes. Afi rmar , como o faço, que é possível distinguir oobjetivo da ciência de outros objetivos não é o mesmo queexpressar a tese de que as diversas atividades podem ser separadas.Falarei um pouco mais sobre essas ressalvas no capítulo 8.

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C A P I T U L O 4

A OBSERVAÇÃO OBJETIVADA

4.1 As hipóteses empiristas sobataque

Muitos dos que preferem a estratégia positivista e buscam um acaracterização geral da ciência e seu método consideram essencialqu e estes estejam baseados em fundam entos seguros. Em geral,pressupõem que são os nossos sentidos qu e proporcionam essesfundamentos e acreditam que a ciência se baseia em fatos "objeti-vos" determinados pelo uso cuidadoso dos sentidos.

A hipótese empirista relativa ao quanto uma observação obje-tiva para a ciência está a nosso disp or tem sido d uram ente criticadapelos filósofos da ciência nas últimas décadas. Eles sublinharam ocaráter não-determinado, passível de revisão e de falha, "teórico-dependente" da observação e suas afirmações. Eu mesmo adoteiessa l inha de raciocínio no capítulo 3 de What is this thing calledscience.7. Embora continue pensando qu e muita coisa está corretanessa crítica das hipóteses empiristas sobre as bases do conheci-mento, desejo opor resistência a uma conclusão qu e muitas vezes

dela é extraída e que, por exemplo, meus alunos repetidamentefazem: a de que a observação é necessariamente "subjetiva", de

ALAN CHALMERS A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 63

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modo que os "fatos" observáveis são relativos aos observadores edependem de sua psicologia, história e cultura.

Neste capítulo desejo resistir à reação subjetivista e relativista

à críticado empirismo, pela qual, parece, souparcialmente respon-sável. Explorarei o sentido em que a observação, do modo comoestá infiltrada na ciência, é objetiva, especialmente quando os

sentidos recebem o auxílio dos instrumentos apropriados. Contu-do, a minha defesa d a observação nã o servirá para socorrer oempirista que procura a observação para fornecer bases seguraspara o conhecimento. Contra esse empirista, direi, por exemplo,que, quando Galileu introduziu o telescópio na astronomia, houve

uma alteração nos padrões que regiam o que deveria ser conside-rado um fato observável - embora eu também diga, contra orelativista fanático, que a mudança de Galileu constituiu umprogresso, do ponto de vista da meta da ciência. Consideroinoportunas as tentativas de enfraquecer as explicações empiristasmediante o recurso aos aspectos subjetivos da observação. Nocapítulo 5 oferecerei o que acredito ser um argumento bem maisvigoroso contra a idéia empirista de que os sentidos podemproporcionar bases seguras para a ciência - argumento que nãoleva em conta os aspectos problemáticos da percepção.

4.2 A observação teórico-dependente

Uma linha deargumentação mais comum usada para contestar

a reivindicação empirista de que os fatos objetivos sã o "dados" aobservadores cautelosos pelos sentidos éenfatizar até que pontoasexperiências perceptivas das pessoas não são determinadas demaneira objetiva unicamente pelos aspectos físicos do que estásendo observado, mas influenciadas pelas expectativase pelo con-texto, inclusive o teórico, do observador. Assim, um leigo diantede um raio X do peito de alguém poderá ver apenas costelas

rodeadas de manchas, enquanto um radiologista verá cicatrizes e

utros indícios de infecçãoe doença; um microscopista experiente

verá células dividindo-se, onde James Thurber (l 933) vê apenas

urna "substância leitosa um tanto nebulosa". Um exemplo maisespecífico vem da história da geologia, a respeito das formações

horizontais que parecem estradas nas encostas das montanhas deGlen Roy,na Escócia.Os fatos observáveisdiferiam uns dos outros

segundoosdiferentes geólogos, aparentemente dependendode suabase teórica e de sua experiência passada. "As diferentes teorias

levavam a expectativas diferentes sobre a extensão e posição dasestradas; diferentes observadores apresentaram descobertas dife-rentes e adequadas" (Bloor, 1976, p. 21).

Essas reflexões perfeitamente legítimas sobre importantes as -pectos da percepção humana têm sido usadas pelos filósofos daciência para enfraquecer as hipóteses características dos empiristas

relativas aopapel da observação na ciência (Hanson, 1958; Kuhn,

1970). Não é difícil ver como essa linha de raciocínio pode levar auma posição totalmente relativista. O argumento continua mais oumenos assim: os empiristas estabelecem que a percepção humana

no s fornece fatos objetivos sobre o mundo, que constituem osfundamentos da ciência. Contudo, as percepções dos seres huma-nosnão são objetivas, mas grandemente influenciadas e moldadaspela subjetividade dos observadores, por sua base teórica, seuhistórico culturale suas expectativas epontosdevista.Acapacidade

de discernir o que são os fatos observáveisemdeterminada situaçãoirá variar de pessoa a pessoa, de cultura a cultura e de escola teórica

a escola teórica. Dada esta relatividade dos fatos observáveis, aciência neles baseada é igualmente relativa a pessoas, culturas ou

escolas teóricas.

As reflexões do tipo acima são hoje comuns na filosofia daciência; muitasvezes ocorrem sob o título de "observações teórico-dependentes". Embora eu endosse muitos pontos dessas discus-

sões, considero aênfase nos aspectos subjetivos ou psicológicos da

percepção de cada observador inoportuna e benéfica para osrelativistas intransigentes, por razões que em breve mostrarei. O

seguinte exemplo, exagerado, serve como ilustração disso.

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Em seu estudo da ciência de Galileu, feito para dar apoio a suaargumentação contra o método, Feyerabend (1975) diz que aaceitação da teoria de Copérnico defend ida por Galileu não apenasencerrava uma muda nç a na teoria, mas também no que eramconsiderados fatos empíricos. Antes da revolução de Cop érnico aciência continha fatos como "a Terra éestacionaria" e "o movimen-to de uma pedra que cai é reto", ao passo que, depois dela,aceitou-se que a Terra gira em torno de seu eixo e fisicamente semovimenta em torno do Sol, enquanto o componente direto do

movimento de uma pedra que cai se superpõe ao movimento daTerra, de modo que este movimento é na verdade "um misto dereto e circular". A ssim, Feyeraben d (1975, p. 89 e 187) diz que o

argumento desenvolvido por Gali leu em defesa da teoria deCopérnico continha uma " muda nç a de experiência" e uma "revi-são parcial de nossa l inguagem de observação" contrárias ao s

pressupostos dos empiristas ortodoxos.

Se examinamos os detalhes da concepção de Feyerabend arespeito dessa mudança na base observacional da ciência, desco-brimos que ela é atr ibuída a uma mu danç a sub jetiva ou psicológicanos observadores. Ele argumenta que, quando levamos em contaa descrição de uma situação feita por um observador, podemosabstratamente fazer uma distinção entre as sensações implícitas -ou seja, as experiências mentais por que passa um observador

diante da si tuação - e a descrição verbal da situação que oobservador adota, à luz dessas sensações. Feyerabend insiste que,embora para o propósi to da análise possamos distinguir entre asensação e a descrição verbal, na prática essas duas etapas sãoinseparáveis. Podemos dizer que um observador não tem primeirouma sensação diante de um a p edra que cai , e depois interpreta essasensação como ind icadora de um a pedra que cai verticalmente. Emvez disso, ele simplesmente vê a pedra caindo e depois sente-sedisposto a aceitar a afirmação de que "a pedra caiu". Feyerabendadmite que dividir os dois aspectos da observação, mesmo visando

uma análise, é uma simplificação que tem su as l imitações, já queas nossas sensações podem ser influenciadas pelo nosso modo de

expressá-las lingüisticamente. Pondo-se de lado essa ressalva, po -demos manter a distinção e reivindicar que, quando um observa-Jor está diante de uma situação e a descreve, automaticamente fa zurna associação entre a sensação e a descrição, entre a experiênciamental e a verbal aceita co m base na sensação. Feyerabend (1975,

p. 73) chama de "interpretações naturais" as "operações mentaisqu e seguem muito de perto os sentidos" e consti tuem a ligaçãoentre o ter-se um a sensação e aceitar-se um a descrição. A s interpre-tações naturais são inculcadas em nós desde o nascimento. N ós asadqui r imos durante o processo de aprendizado de uma l inguagem,pois elas no s capacitam a associar a l íngua às situações ob serváveis.E mais: as interpretações naturais incorporadas a uma l íngua e aum a cultura em algum momento se integram, de modo típico, aelas e se tornam parte do processo de observação de várias gerações.Conseqüentemente, su a natureza , e mesmo o fato de que estãopresentes, não é, para o indivíduo, prontamente manifesta.

Segundo Feyerabend, as observações de uma pedra queca i con-tinham uma interpretação natural , que era parte importante dosenso comum no início do século XVII, a qual Galileu precisoucontestar . Esse senso com um trazia implícita a idéia de um espaçoabsoluto essencialmente definido pelo sistema planetário e estelar ,com u ma Terra estacionaria em seu centro. Essa interpretação contémainda a noção do movimento absoluto nesse espaço. Pressupõe-se que

o movimento absoluto tenha efeitos observáveis e, de maneira geral,os sentidos registram fielmente os movimentos reais. U m observadorimbu ído dessas interpretações naturais automaticamente assume queo movimento observado da pedra emqueda é um movimento "real"no espaço absoluto. A observação dessa queda linear entra em conflitocom o resultado da teoria de Copérnico, que diz que o movimentodeve ser "um misto de reto e circular".A teoria, de Copérnicoé refutadado ponto de vista do senso comum no início do século XVII e das in-terpretações n aturais emp regadas automática e inconscientemen-te pelos que a intemalizaram. Afinal de contas, "como se poderia nã oter a consciência d o fato de que a pedra caindo traça um a traje-tória bastante ampliada pelo espaço!" (Feyerabend, 1975, p. 75).

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Os detalhes da explicação de Feyerabend de como Galileuproduz iu a mudança necessária nos fundamentos da observaçãoda ciência, de que já discordei em outro texto (Chalmers, 1986),não precisam nos ocupar aqui. Desejo enfatizar o quanto Feyer-abend interpreta essa mudança como uma mudança nas experiên-

cias subjetivas dos observadores, que ele considera como substitui-çã o de um conjunto de interpretações naturais por outro. Galileu"insiste numa discussão crítica para decidir quais interpretações

naturais podem ser mantidas e quais devem ser substituídas"

(Feyerabend, 1975, p. 73). "O primeiro passo de Galileu, nesseexame conjunto da doutrina copernicana e de uma interpretaçãonatural conhecida, m as impenetrável, consiste portanto em substi-tuir a úítima por uma interpretação diferente. Em outras palavras: eleapresenta um a nova linguagem para a observação" (Feyerabend,

1975, p. 78-9). Desse modo, ele "faz voltar os sentidos a sua posição

de instrumentos de sondagem" (Feyerabend, 1975, p. 78). Doponto de vista de Feyerabend, portanto, o campo de teste para asteorias continuam sendo as observações feitas po r cada observador.Tendo-se em mente que, para ele, as interpretações naturais sã o"operações mentais que seguem muito de perto os sentidos" e que

"estão tã o firmemente ligadas a suas reações que é difícil fazer um aseparação", a substituição de um conjunto de interpretações natu-rais por outro tem implícita a substituição de um conjunto deoperações mentais por outro. Assim, antes de Galileu, devido a

seu contexto histórico-cultural, a linguagem e outras experiênciasdo cotidiano do observador normal são programadas de uma formaque leva a um determinado conjunto de experiências de observação

e a uma correspondente linguagem de observação, enquanto o

observador que se submeteu ao remédio do Diálogo de Galileu ficaprogramado de uma maneira nova, que leva a um novo conjuntode experiências de observação e a uma nova linguagem de obser-vação. A mudança na linguagem da observação está localizadaemcada observador. Basicamente, é uma mudança psicológica.

Não acho muito convincente o argumento de Feyerabendcontra o empirismo. Tenho a impressão de que as experiências

por que passam os observadoresdo séculoX X ao observar as pedrascaírem, o Sol levantar e a Terra estacionaria pouco diferem do quesentiam os observadores do século XVII. Contudo, a relevância eo significado que um físico moderno atribuiria a essas experiências

são muito diferentes dos que lhes eram atribuídos pelos que seopunham à teoria de Copérnico no século XVII . Dá-se por certoqu e Galileu tenha transformado as bases de observação da ciência.

Ele o fe z introduzindo instrumentos, como o telescópio, que serádiscutido mais adiante neste capítulo, e o experimento controla-do, que já foi mencionado no capítulo anterior e cujas implica-

ções serão detalhadas no próximo. Entretanto, essas mudançastêm pouco a ver com as interpretações naturais que constituem

a estrutura psicológica das pessoas. Feyerabend equivocadamentecoloca a mudança da observação na ciência implícita na física deGalileu e, como veremos, subestima sua amplitude e seu signifi-

cado.

4.3 A observação objetiva como realização prática

O fato de ter a percepção elementos subjetivos e culturalmenterelativos não escapou ao s cientistas. Apenas devido a essa percep-ção evidente é que a necessidade de trocar a simples observação

pela observação efetuada em circunstâncias padronizadas, seguin-do procedimentos rotineiros, é valorizada. A simples observação étrocada pelo experimento medido e controlado. Dessa maneira,muitas das idiossincrasias da percepção humana podem ser supe-radas. Francis Bacon compreendeu essa questão já no século XVII ,ao escrever:

sempre que passo a um novo experimenta de qualquer sutileza (embora

em minha opinião esteja oorreto e eu o aprove), acrescento uma explicaçãoclara sobre como eu o realizei; pois os homens, sabendo exatamente como

cada argumento foi construído, poderão ver se há algum erro ligado a elee empenhar-se em criar provas mais confiáveis e mais requintadas, se tais

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provas puderem ser encontradas. Finalmente, interponho por toda parteadmoestações, escrúpulos e cautelas a serem tomadas, co m um religiosocuidado em el iminar, reprimir e até exorcizar todos os tipos de fantasmas.(Bur t t , 1967, p. 21)

Presumo que aqui o argumento usado por Bacon, e por mim

endossado, pode se r ilustrado pelo exemplo qu e darei a seguir. Ac h a m a d a "ilusão d a Lua" é u m fenômeno bastante comum. A L u aparece ter um diâmetro muito maior quando está próxima aohorizonte do que quando está alta no céu. Apercepção normal, setomada como guia confiável para o tamanho da Lua, é ilusória.Contudo, podemos fazer coisa melhor, em vez de confiarmos nossentidos se m ajuda nenhuma. Podemos, por exemplo, montar u mtubo de observação co m arames cruzados numa extremidade, deta l maneira que sua orientação poderá ser lida numa escala. O

ângulo subtendido pela Lua no ponto de observação pode serdeterminado alinhando-se os arames a cada lado da Lua de cadavez e observando a diferença nas leituras correspondentes d a escala.Isso pode ser feito quando a Lua está alta e pode ser repetidoquando el a está próxima ao horizonte. A identidade aproximadado resultado nos dois casos indica que o tamanho da Lua perma-nece imutável. A percepção normal, nesse caso, é realmenteilusória.

Aqueles que desejarem enfatizar a observação "teórico-depen-

dente" rapidamente apontarão a "teoria" encerrada em meu méto-do para observar o tamanho da Lua. Terão podido notar, muitocorretamente, que o significado atribuído ao alinhamento d o tubod e observação encerra u m a hipótese qu e vagamente pode se rafirmada como "a luz viaja em linhas retas", e que a competênciada observação do tamanho d a L u a feita pelo m eu método baseia-senestae emoutras hipóteses subjacentes. Seuargumento pode aindase r reforçado observando-se que, se um tubo de observação d o tipoque descrevo fosse usado para determinar a direção em que estáu m a estrela alinhada próxima ao Sol, ele daria u m resultado

incorreto porque, nessa circunstância, a luz da estrela é desviadapelo campo gravitacionaldo Sol.

N ão tenho questionamentos a fazer em relação a observaçõescomo essa. N ão desejo negar que a suficiência e o significadodosrelatos de observação dependem das hipóteses teóricas de váriostipos e,conseqüentemente, são passíveis de falha e revisão. Desejoapenas ilustrar com meu exemplo a questão de que a ausência de

uma base segura para a observação não se deve primordialmenteàs vicissitudes da percepção. A ciência desenvolveu técnicas pode-rosas para contornar esses problemas. Até onde se pode dar um

jeito de testar as teorias científicas po r meio de procedimentospadronizados que encerram a observação d e coisas como a leiturade ponteiros e dados de computador, ou a contagem dos cliquesde u m contador, os problemas qu e brotam d o caráter subjetivo dapercepção humana podem ser minimizados. As observações rele-vantes são objetivadas. É melhor deixar para os filósofos fanáticosa tarefa de argumentar que uma afirmação como "o ponteiro está

entre o dois e o três da escala" baseia-se na teoria e é passível defalha. A s razões para se rejeitar a afirmação de que a ciência temum a base segura para a observação estão em outro canto.

Um aspecto da percepção que os empiristas costumam deixarde lado e que os cientistas exploram é até que ponto nela estáimplícito um envolvimento e não uma passiva contemplação domundo. Até mesmo na percepção comum, cotidiana, podemosverificar a realidade de um objeto avistado - por exemplo, tocandonele ou movimentando a cabeça para ver se a imagem respondedamaneira adequada. Popper (l 972, capítulo 5)notou esse aspectoda percepção e mostrou que o não-problemático nas descrições domundo comum não é que sua verdade seja revelada a observadoresse m preconceito po r intermédio d os sentidos, mas que ela é capazde resistir a uma porção de testes simples. Um microscopistaobserva u m a célula vermelha do sangue nu m microscópio eletrô-nico e vê uma configuração de corpos densos. Será qu e elescorrespondem a estruturas na célula ou são artefatosdo microscó-pio? A célula está montada numa grade microscópica, cujos

quadrados estão rotulados. Vistos por meio do microscópio eletrô-nico, os corpos densos sã o percebidos e sua localizaçãona grade é

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anotada.A mesma amostra da célula na grade é então observadanum microscópio fluorescente que tem princípios físicos totalmen-te diferentes do microscópio eletrônico. O mesmo arranjo decorpos densos é observado nas mesmas localizações na grade.

Poderá haver alguma dúvida mais séria de que as estruturasobservadas (quaisquer qu e sejam) estejam realmente presentes nacélula (Hacking, 1983, capítulo 11)? São os resultados de nossas

intervenções práticas que emprestam objetividade e credibilidade

a relatórios de observação.

Uma idéia que tem apoio entre os filósofos da ciência, mas querejeito, retrata os fatos objetivos em que se baseia a ciência comoesses registros de observação com que prontamente concordam osobservadores normais diante da evidência trazida por seus senti-dos. Essa visão deconsenso das afirmaçõesdaobservação deixa delado a importância da habilidade e do conhecimento necessários

para a observação científica. Um bom radiologista consegue versinais de infecção num raio X, e um bom microscopista conseguever ascélulas sedividindo,quando a maioria dos observadores semum conhecimento mínimo não consegue. Se pensarmos que os

registros de observação (provisoriamente) aceitáveis são aquelesque passaram pelos testes mais rigorosos, uma forma de testar comrigor uma afirmação sobre o que deverá ser observado num micros-

cópio é pedir a um bom microscopista para dar uma olhada, emvez de procurar a opinião de James Thurber. A aceitabilidade de

um relato deobservação também não pode seratribuída aosimplesfato de que os especialistas concordam com ele. O fundamental éo quanto a afirmação suporta os testes objetivos. Os diagnósticos

dos radiologistas especializados podem estarequivocados e podemse r testados demaneiras independentes - por exemplo, buscando-se outros sinais para um a alegada infecção ou examinando-se

diretamente a área infectada por meio de uma cirurgia.

Os relatos de observação aceitáveis podem ser compreendidoscomo os que descrevem situações observáveis capazes de sobreviver

a testes que envolvem o uso especializado dos sentidos. Calculoque as análises sobre o significado e o rigor dos testes, além da

quantidade de testes disponíveis, serão teórico-dependentes emdiversos aspectos, de modo que os registros de observação terãofalhas em graus variados. (Podemos imaginar Ptolomeu testando efunda me n ta ndo rigorosamente sua declaração de que a Terra é

estacionaria pulando no ar para ver se ela se mexia embaixo.) Em

todo caso, não estou questionando a objetividade da observaçãona ciência por sua infalibilidade.

Minha insistência na ciência física exige que a observaçãoobjetiva conforme a minha caracterização esteja sujeita a umaimportante ressalva: a objetividade é uma realização prática. Emboraeu afirme que ela pode e é freqüentemente obtida, na física não há

garantia nenhuma de que isso se mostrará possível em todos oscasos. Blondlot, físico francês, dizia haver descoberto um novo tipode radiação (os raios N) e publicou instruções detalhadas sobrecomo ela deveria ser produzida e observada. Ele e os colegas

associados diziamver as variações na luminosidade numa tela, oque para eles constituía uma prova. Contudo, pesquisadores de

fora do laboratório foram incapazes de ver o que Blondlot insistiapoder ver. Blondlot alegava que seus críticos não tinham suficientecapacitação. Ou seja: as afirmações de Blondlot nã o passaram no stestesindependentes. Porexemplo, quando o físiconorte-americanoR. B. Wood eliminou o prisma que se supunha influenciar naprodução dos raios N, Blondlot, sem saber o que Wood fizera,

continuou observando sinais dos raios N na tela. Ma ry Tiles (l 984,

p. 60) resumiu admiravelmente a situação:

Insistir em que a observação experimentalexige o desenvolvimento dehabilidades especiaisna observação, que nem todos sã o capazes de obter,é algo que, em si, é incorreto. Os problemas só ocorrem quando [comoaconteceu no caso de Blondlot] falham todas as tentativasna confirmaçãoinstrumental indireta, de modo que a única evidência é perceptiva e porisso muito dependente da "sensibilidade" de cada observador. Nessasituação, o fenômeno torna-se irremediavelmente subjetivo.

A objetividade é uma realização prática, uma realização que

muitas vezes, ainda que não sem dificuldade, é obtida na física. Euacrescentaria que o quanto minha explicação da objetividade se

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aplica em outras áreas é algo qu e deixo inteiramente aberto. N ãoestou absolutamente certo se, como e até que ponto os antropólo-gos ocidentais conseguem objetividade ao investigar um a tribo depovos estranhos. Não tenho nenhuma competência especial paratratar dessas questões, difíceis mas importantes .

No restante deste capítulo, ilustro e desenvolvo minhas idéiassobre a observação na ciência por meio de um exemplo detalhadodo uso que Galileu fez do telescópio.

4.4 O significado e o caráter problemáticodos dados de Galileu sobre o telescópio

Interpreto a história da introdução dos dados telescópicos naastronomia como uma história da luta bem-sucedida de Galileupara ob jetivar e justificar esses dados. A minha versão pode ser ins-trutivamente comparada à de Feyerabend, por ele usada paraemprestar apoio à sua explicação anárquica da ciência. SegundoFeyerabend, a confiabilidade das observações telescópicas d e Gali-leu e a teoria de Co pérnico que lhe serviram de base foram refu-tadas pela experiência; o primeiro explorou a harmon ia entre essasduas idéias refutadas para obter apoio para ambas. Assim, elepro-moveu a causa copernicana "por m eio dehipóteses que eram expe-dientes e técnicas engenhosas de persuasão" (Feyerabend, 1975,p. 143). Embora eu afirme qu e esses exageros de Feyerabendpossam e devam se r evitados, veremos entretanto que a m u d a n ç adeGalileu encerrava uma t rans formação na observação astronômi-ca e nos padrões que regiam o que deve ser considerado evidênciasatisfatória para a ciência.

Num período de três meses, de dezembro de 1609 a fevereirode 1610, Galileu voltou o telescópio que havia construído para océu. O que viu teve impressionantes implicações na astronomia e,

em especial, na defesa da teoria de Copérnico. Ele se apressou empublicar O mensageiro da s estrelas (Galileu, 1957, p. 27-58), onde

apresentava essas primeiras descobertas; tornou-se então u m acelebridade internacional.

À primeira vista, essas revelações iniciais do telescópio ajuda-riam a causa de Copérnico, embora nã o na extensão que Galileudava a entender. Por exemplo, a aparência terrestre das montanhas

e crateras d a L u a i m p u n h a um problema para a distinção aristoté-lica entre a região celeste, etérea e incorruptível, qu e presumivel-mente incluía a L u a , e a região terrestre, mutável e corruptível. Asluas de Júpiter serviram para di fundi r um a objeção aristotélica àteoria de Copérnico, segundo a qua l o movimento conjunto emto rno do Sol atribuído à Terra por Copérnico tornava inexplicávelo fato da L ua pe rmanecer jun to com a Terra/Como os aristotélicosaceitavam a idéia do movimento de Júpiter, suas luas impunhampara eles um problema semelhante. N os anos seguintes a essasobservações iniciais, Galileu fe z outras , a inda mais significativas.

E le descobriu que os tamanhos aparentes de Ma r t e eVênus, vistospelo telescópio, variavam segu ndo as previsões da teoria de Co pér-nico, aocontrário dasobservações aolho nu, que mostravam poucam u d a n ç a no tamanh o aparente. N essas observações concentrava-se a acusação de Feyerabend, qu e dizia que os dados telescópicosde Galileu eram defendidos por meio de expedientes, comoveremos. O telescópio de Galileu revelou as fases de V ê n u s emostrou que elas aumentavam e diminuíam, conforme previraCopérnico.

N ão obstante, o emprego de dados telescópicos para darsuporte à teoria de Copérnico levanta a questão de por quedeveriam ser preferencialmente aceitos os dados do telescópio emvez dos dados correspondentes da observação a olho nu. Feyer-abend está certo em insis t ir na importância fundamental dessaquestão. Por que a evidência revelada pelas observações feitas pelotubo de Galileu, equipado co m lentes côncavas e convexas, deveriase r preferida às evidências obtidas diretamente pelo olho?

Jun to co m Feyerabend, notamos em primeiro lugar qu e Galileu

não estava de posse de uma teoria do telescópio e que , quandoquestionado, sua tentativa de oferecer uma era estrondosamente

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insatisfatória (Galileu, 1957, p. 245-6). Essa circunstância nãoimpôs nenhum problema muito sério para Galileu. O fato de que

as lentes refletem a luz e de que cada lente pode ampliar era muitoconhecido e havia sido explorado desde o final do séculoXII I para

a fabricação deóculos. Não era preciso muito para presumir-seque

a combinação de duas lentes fizessemelhor trabalho. Emsegundo

lugar, a necessidade de dar apoio às observações recorrendoexplicitamente à teoria podia serquestionada - seria possível dizer

que a confiança nos dados a olho nu não resulta do recurso a umateoria do funcionamento do olho. Passemos então às possíveisjustificativas da prática.

A veracidade das observações telescópicas de objetos terrestrespode ser demonstrada de maneira razoavelmente direta pelo fatode que os dados telescópicos podem serverificados pela observação

próxima, a olho nu, do objeto visto. Além do mais, a familiaridadeque temos com os cenários terrestres nos permite utilizar, cons-ciente ou inconscientemente, uma série de pistas ou deixas visuaisquando vemos um determinado cenário. Assim, por exemplo, asuperposição nos proporciona uma orientação paraa estimativa da

distância e tamanho relativos, em comparação com objetos detamanho conhecido. Quando lembramos que os telescópios deGalileu eram protótipos feitos por tentativa e erro usando lentespolidas à mão, podemos avaliar quantas aberrações elas devem ter

produzido. Quando os objetos vistos são conhecidos, é fácil para

o observador destacá-los dos acessórios enevoados que apareciamno telescópio ou, por exemplo, deixar de lado a curvatura e ocolorido vermelho e azul exibido na imagem do mastro de umnavio distante.

Quando o telescópio era voltado para os céus relativamente

desconhecidos, em geral faltavam esses amparos à percepção. Essadificuldade pode serconstatada nos relatórios do próprio Galileu.A maior d as crateras mostrada no desenho qu e Galileu fe z d a L u anão pode ser avistada com um telescópio moderno, nem pode ser

vista se a pessoa for até lá. Talvez o telescópio de Galileu seja oresponsável por esta cratera, comodizFeyerabend. Galileu admitia

qu e seu telescópio ampliava as estrelas muito menos do que os

planetas, mas não conseguiu explicar esta incongruência. Galileu

tinha diante de si problemas reais quanto à veracidade de seusdados telescópicos.

Um outro obstáculo no caminho da aceitação dos dados

telescópicos era uma idéiafilosófica da percepçãodos sentidos, queprovinha de Aristóteles e era aceita por muitos opositores deGalileu. Segundo essa idéia, os sentidos necessariamente produ-ziam informação confiável sobre o mundo, quando usados com

cuidado e sob condições normais. Ludovico Geymonat (1965,p. 45), biógrafo de Galileu, refere-se à crença "compartilhada po rmuitos estudiosos da época" de que "somente a visão direta podiaapreender a realidade", e Scipio Chiaramonti, um dos opositores

de Galileu, referia-se à idéia de que "os sentidos e a experiênciadevem ser nossos guias quando filosofamos" e "servir de critériopara a própria ciência" (Galileu, 1957, p. 248). Maurice Clavelin(1974, p. 384), num contexto em que faz a comparação entre aciência aristotélica e a de Galileu, diz que "a principal máxima dafisica peripatética era jamais fazer oposição à evidência dos senti-dos". Em contexto semelhante, Stephen Gaukroger (1978, p. 92)fala de "uma confiança fundamental e exclusiva na percepção dos

sentidos na obra de Aristóteles".

Era comum a defesa teleológica da confiabilidade dos sentidos.Entendia-se como su a função proporcionar-nos informação sobre

o mundo. Assim, embora os sentidos possam nos enganar emcircunstâncias anormais (por exemplo, no meio da neblina ouquando o observador está bêbado ou doente), não faz sentido

pressupor que sejam sistematicamente enganadores quando estãocumprindo a missão para a qual foram feitos. Irving Block (1961,p. 9), num artigo esclarecedor sobre a teoria da percepção dossentidos, de Aristóteles, caracteriza a visão deste filósofo desta

maneira:

A Natureza fe z tudo com uma finalidade, e a finalidade do Homemécompreender a N atureza através da ciência. Desse modo, seria uma

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contradição da N a tu re z a er moldado o Ho m e m e seus órgãos de tal maneiraqu e todo o conhecimento e a ciência fossem a priori falsos.

A idéia de A ristóteles teve eco em Tomás de A quino, séculosdepois:

a percepção do sentido é sempre verdadeira em relação a seus própriosobjetos ... pois, como regra geral, as forcas naturai s nã o falham ematividades próprias delas e, quando falha m, isso se deve a alguma anomalia.Assim, apenas em uma minoria de casos os sentidos analisam com

imprecisão seus próprios objetos e, mesmo então, somente por algumdefeito orgânico - por exemplo, quando as pessoas doentes e febris sentemamargo o paladar das coisas doces, porque sua l íngua está indisposta.(Block, 1961, p. 7)

A introdução do telescópio na ciência fo i contra a confiançana percepção nua dos sentidos, e sua escora teleológica; os contem-

porâneos de Galileu poderiam muito bem ter reagido a issodizendo, como Kuhn (1959, p. 226): "S e Deus quisesse que ohomem util izasse essa invenção para ad quirir conhecimento, eleteria dotado os homens de olhos telescópicos". Para que Galileuobtivesse a aceitação de seus dados telescópicos, fo i preciso que eleviolasse e alterasse "o próprio critério da ciência". Vejamos comoele conseguiu fazer isso.

4.5 As observações de Galileu das luas de Júpiter

N a seção 4.3 eu disse que a reação científica hab itual àsvicissitudes da percepção é tentar substi tuir a simples observaçãopela medição, dentro de procedimentos de rotina e sob condiçõespadronizadas. A observação de Galileu das luas de Júpiter é umexcelente exemplo dessa mudança.

Galileu em pouco tempo avaliou a necessidade de fixar otelescópio em um suporte estável. Ele também descobriu que as

imagens eram mais claras se a luz que entrava no telescópio pelalente convexa fosse restringida ao centro dessa lente por meio de

u m a tampa (Drake, 1978, p. 147). Quando Galileu, em janeiro de1610, avistou pela primeira vez as "estrelinhas" qu e acompanha-vam Júp iter pelo céu, os aspectos qualitativos de suas posições emnoites sucessivas levaram-no a acreditar qu e fossem satélites desteplaneta. No espaço de dois anos, Galileu criou um procedimentoobjetivo para m edir a separação dos satélites de Júpiter, o que lhepermitiu mon tar um longuíssimo argumento p ara a veracidade dasobservações telescópicas do s satélites e para as órbitas qu e lhesatribuía. Vale a pena descrever com algum detalhe o procedimentode Galileu (Drake, 1983, p. 128 ss).

U ma escala fo i anexada ao telescópio por meio de um anel, demaneira tal que o plano da escala estivesse perpendicular emrelação ao eixo do aparelho e pudesse deslizar para cima e parabaixo ao longo de seu comprimento. O observador, espiando pelotelescópio com um olho, podia ver a escala com o outro. Parafacilitar a leitura, a escala recebia iluminação de uma pequenalamparina. Com o telescópio voltado para Júpiter, a escala eraempurrada ao longo do tubo até que a imagem do planeta, vistoco m um olho, ficasse entre dua s marcas centrais na escala, vistasco m o outro olho. Feito isso, a posição de um satélite visto pelotelescópio podia ser lida na escala e a leitura correspondia a suadistância de Júpiter em múltiplos do diâmetro do planeta. Essediâmetro era uma unidade conveniente, pois empregá-lo comopadrão automaticamente resolvia o problema de sua aparente

variação, conforme o planeta se aproxima e se afasta da Terra.Onde necessário, Galileu podia transformar essa medida relativaem medidas absolutas do ângulo subtendido ao olho, dividindoos ângulos subtendidos pelas imagens na escala pela ampliação dotelescópio. Galileu criara um método para medir a ampliação deseus telescópios po uco depois d e começar a utilizá-los; esse m étodofo i descrito em O mensageiro das estrelas.

Usando os proced imentos acima descritos, Galileu pôde regis-trar o histórico diário das quatro "estrelinhas" que acompanhavam

Júpiter. Ele conseguiu mostrar que os dados estavam de acordoco m o pressuposto de que as estrelinhas eram na verdade satélites

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em órbita ao redor deJúpiter, comperíodos constantes. O pressu-posto não partiu apenas de avaliações quantitativas, mas tambémda observação mais qualitativa de que as "estrelinhas" às vezesdesapareciam da vista, conforme passavam pela frente ou por trásdo planeta.

Galileu estava em boa posição para defender a veracidade desuas observações das luas de Júpiter, apesar de serem elas invisíveisa olho nu. Com isso, obteve argumentos contra a insinuação deque elas eram uma ilusão produzida pelo telescópio, mostrandoqu e essa idéia tornava difícil explicar por que os satélites sóapareciam próximo a Júpiter e não em outros lugares. Galileutambém poderia ter invocado a coerência e repetibilidade de suasmedições, além de serem estas compatíveis com a hipótese de que

os satélites faziam a órbita ao redor de Júpiter co m periodicidade

constante.Os dados quantitativos deGalileu foram verificados porobservadores independentes, entre os quais alguns no ColégioRomano e na Corte Papal, em Roma. Galileu previu ainda outrasposições dos satélites e a ocorrência de trânsitos e eclipses, quetambém foram confirmadas por ele mesmo e pelos observadoresindependentes (Drake, 1978, p. 175-6 e 236-7).

A veracidade do que fo i visto no telescópio fo i logo aceita pelosobservadores competentes contemporâneos de Galileu, mesmopelos qu e inicialmente se opuseram a ele. É fato qu e alguns dessesobservadores jamais tenham conseguido discernir os satélites, masacredito que isso não tem maior significado do que a experiênciabastante comum de James Thurber, que não conseguiu distinguira estrutura da célula de plantas no microscópio. A força doargumento de Galileu para a veracidade de suas observaçõestelescópicas das luas de Júpiter origina-se na amplitude de testespráticos e objetivos pelos quais suas asserções passaram, comsucesso. Embora esse argumento ainda não fosse lá muito conclu-sivo, era incomparavelmente mais forte do" qu e qualquer outro em

defesa da idéia contrária de que os objetos avistados fossem ilusõesou artefatos produzidos pelo telescópio.

4.6 O tamanho dos planetas vistos pelo telescópio

Segundo a teoria de Copérnico, a distância de um planeta daTerra deveria variar bastante durante o curso das viagens de cadaum deles em torno do Sol. Quando um planeta está do mesmo

lado do Sol que a Terra, eleestará relativamente próximo, ao passoque, dooutro lado do Sol, estará relativamente distante. Adistânciade Marte em relação à Terra varia por um fator da ordem de oitoe, no caso de Vênus, por um fator da ordem de mais ou menosseis. Conseqüentemente, osdiâmetros dos planetas vistos da Terravariam em fatores semelhantes. Entretanto, quando visto a olhonu, Marte parece mudar detamanho por um fator nãomuito maiorqu e dois, enquanto a aparente mudança no tamanho de Vênus é

insignificante. Por essa razão, Galileu (1967, p. 334) em sua

descrição de Marte dizia qu e este planeta era um "feroz ataque" aosistema de Copérnico e que Vênus apresentava uma "dificuldadeainda maior". Quando os dois planetas sãoobservados no telescó-pio, a dificuldadeé eliminada. As mudanças no tamanho estão de

acordo com as previsões da teoria de Copérnico.Os tamanhos dos planetas vistos a olho nu entram emconflito

com a teoria deCopérnico; osdados correspondentes do telescópioa confirmam. Qual desses conjuntos de dados deve ser aceito? Aocontrário de Feyerabend, direi qu e Galileu obteve uma boa argu-mentação a favor dos dados telescópicos independente da compa-tibilidade desses dados em relação à teoria de Copérnico.

Galileu recorria ao fenômeno da radiação para ajudar a desa-creditar a observação dos planetas a olho nu e dizia qu e essefenômeno proporcionava fundamentações para que se preferisse aobservação ao telescópio. Ahipótese dele era que oolho "apresentaum a dificuldade própria" quando vê pequenas fontes de luzdistantes e brilhantes. Por causa disso, os objetos parecem "orna-dos comestranhos raios acidentais" (Galileu, 1967, p. 333). Assim,se as estrelas "são observadas com a visão natural, sem ajuda

nenhuma, elas se apresentam a nós não em seu tamanho simples(ou, digamos, físico), mas como irradiadas de um certo fulgor e

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c om uma franja de raios cintilantes" (Galileu, 1957, p. 46). Airradiação dos planetas é eliminada pelo telescópio.

Já que a hipótese de Galileu contém implícita a afirmação deque a irradiação é conseqüência da luminosidade, da pequenez eda distância da fonte avistada, ela pode se r testada alterando-se

esses três fatores de várias maneiras, muitas das quais não exigemo uso do telescópio e algumas claramente mencionadas por Gali-leu. A luminosidade de estrelas e planetas pode ser reduzidaquando eles sã o vistos através de uma nuvem, um véu negro, umvidro colorido, um tubo, um intervalo entre osdedos ou um buracode alfinete feito num cartão (Galileu, 1957, p. 46). A irradiação éeliminada dos planetas co m essas técnicas, de modo qu e eles"mostram seus globos perfeitamente redondos e bem-definidos",

ao passo que, no caso d as estrelas, ela jamais é totalmente elimi-nada, de modo qu e "jamais é vista a borda de sua periferia circular,

m as elas tê m antes a aparência de brasas cujos raios vibram emtorno e cintilam bastante" (Galileu, 1957, p. 47). No que dizrespeito à dependência da irradiação no tamanho aparente das

fontes de luz observadas,a hipótese d e Galileu é confirmada pelofato de que a Lua e o Sol não estão sujeitos à irradiação (Galileu,1967, p. 338). Esse aspecto da hipótese de Galileu e a dependência,a ela associada, que tem a irradiação da distância da fonte podemser submetidasa um teste terrestre direto. Uma lanterna acesa podese r vista de perto ou de longe, de dia ou de noite. Quando vista à

noite e à distância, luminosa em relação ao que a rodeia, ela parecemaior do que seu verdadeiro tamanho. Vista de dia ou de perto,na mão, o tamanho aparente corresponde ao tamanho real dalanterna. Galileu lembra isso para dizer qu e seus predecessores,entre eles Tycho Brahe e Clavius, deveriam ter procedido commaior cautela ao calcular o tamanho das estrelas.

N ão acreditarei qu e eles pensassem que o verdadeiro disco de umalanterna seria como parece na escuridão profunda , e não da maneira cornoépercebidoemambientes iluminados- pois asnossas luzes vistas delonge

à noite parecem grandes, mas bem de perto vê-se qu e suas chamas reaissão pequenas e estão circunscritas. (Galileu, 1967, p. 361)

A dependência da irradiação da luminosidade de uma fonterelacionada a seu ambiente é mais uma vez confirmada pelasestrelas no crepúsculo, quando parecem muito menores do que ànoite, e por Vênus, quando visto em plena luz do dia, parecendo"tão pequeno, que é preciso um a visão aguçada para vê-lo, embora

na noite seguinte pareça uma enorme lanterna" (Galileu, 1967,p. 361).

Esse último efeito nos oferece uma maneira aproximada paratestar a compatibilidade entre a teoria de Copérnico (e outras) e o stamanhos observados de Vênus, se m necessidade de evidênciatelescópica. O teste pode ser feito a olho nu, desde que as

observações sejam feitas ao crepúsculo. Há duas razõesqu e tornamesse teste difícil e não inteiramente satisfatório.

A primeira é que, sob essas condições, Vênus parece tão

pequeno que torna difíceis estimativas precisas de seu tamanhoaparente. A segunda é que é impossível fazer esse teste quandoVênus está perto de seus tamanhos máximo e mínimo aparentes,porque nesses momentos ele parece estar muito perto do Sol.Conseqüentemente, Vênus não pode se r observado à luz do diaporcausado brilho do Sol, mas apenas depois que o Sol desaparecee eleestá perto da Terra em seu maior tamanho, ou antes do Solsubir, quando o planeta está mais distante daTerra, em seu menortamanho. Contudo, pelo menos segundo Galileu, embora as

mudanças no tamanho de Vênus só possam ser observadas com

precisão ao telescópio, elas sã o "bastante perceptíveis a olho nu "(Drake, 1957, p. 131).

Assim, por uma razão prática muito clara, Galileu conseguiumostrar que o olho nu produz informações contraditórias quandose observa pequenas fontes de luz brilhantes e luminosas emrelação a seu ambiente, no domínio terrestre ou celeste. O fenô-meno da irradiação, para o qual Galileu dava um a série de provase d o qual fazia u m a demonstração mais direta com a lamparina,mostra que as observações a olho nu de pequenas fontes de luz

brilhantes não são confiáveis. Entre outras coisas, isso implica qu eas observações a olho nu de Vênus sãopreferíveis quando feitas à

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luz do dia, e não à noite, quando Vênus é brilhante em relação aseu ambiente. O primeiro tipo de observação, ao contrário desteúltimo, demonstra que o tamanho aparente deVênus varia nocor-rer do ano. Tudo isso pode ser dito sem qualquer referência ao

telescópio. Agora percebemos que o telescópio elimina a radiaçãose usado para observar os planetas e que, o mais importante, as varia-ções no tamanho aparente assim reveladas são compatíveis com asvariações observáveisaolho nu e à luz do dia - e assim começa a emer-gir um forte argumento a favor dos dados obtidos pelo telescópio.

A nossa discussão do método de Galileu para medição dos

movimentos das luas de Júpiter na seção 4.5 mostra como ele

conseguiu objetivar e quantificar su a avaliação telescópica dodiâmetro de um planeta no correr do ano. Asvariações observadasestavam precisamente de acordo com as previsões da teoria deCopérnico. Isso não era justificado. Nã o s e questionavam asobservações telescópicas do tamanho aparente dos planetas queserviam de base para a teoria de Copérnico, em relaçãoao s sistemasde Ptolomeu e Tycho Brahe, porque estes previam exatamente asmesmas variações de tamanho previstas por Copérnico. As varia-ções nas distâncias da Terra, que levam às mudanças previstas no

tamanho aparente, surgem no sistema ptolomaico porque osplanetas semovimentam mais perto e depois mais longe da Terra,conforme vãoatravessando osepiciclos sobrepostos aosdeferentes,,que posteriormente definem as rotas eqüidistantes da Terra. Elas

ocorrem no sistema de Tycho Brahe pela mesma razão que nosistema de Copérnico, já que o s dois sistemas sã o geometricamente

equivalentes. Derek J. de S. Price (1969) demonstrou de maneirabastante geral qu e deve se r assim, uma vez que os epiciclos dossistemas sã o ajustados para serem compatíveis com as posiçõesangulares observadas dos planetas e do. Sol. Osiander, em suaintrodução a Revoluções das esferas celestes de Copérnico, admiteque os tamanhos aparentes dos planetas era um problema nasgrandes teorias astronômicas desde a Antigüidade.

Portanto, as observações telescópicas das mudanças no tama-nho aparente dos planetas não poderiam ser justificadamente

utilizadas como evidência a favor da teoria de Copérnico, contraas outras teorias. Contudo, essas observações propiciaram um arazão para que os dados telescópicos fossem aceitos no campo daastronomia, além dos dados relacionados ao fenômeno da irradia-ção. Ao contrário de muitas observações a olho nu, as estimativastelescópicas dos tamanhos dos planetas eram compatíveis com

todas as teorias astronômicas da época de Galileu; su a aceitaçãoeliminava um problema queestivera presente na astronomia desdea Antigüidade.

A discussão acima sobre a introdução do telescópio na astro-nomia nos permite colocar em perspectiva o que veio a ser

conhecido como "observação teórico-dependente" e ilustra por queum a leitura subjetiva dessa tese deve se r rejeitada. S e a nossainterpretação de "objetivo" significa algo como "passível de testepor meio de procedimentos de rotina" e admitimos que os proce-

dimentos satisfatórios muitas vezes exigirão habilidades qu e pou-co s possuem, Galileu podia objetivar suas observações telescópicas.O mais importante é que elas conseguiram passar por uma sériede testes, como já vimos. O correto na tese da "observaçãoteórico-dependente" não é que a ciência seja desprovida de objeti-vidade, mas que a competência e a pertinência dos relatórios deobservação na ciência estão sujeitas a revisão. A observação naciência pode se r objetivada, mas nem por isso temos acesso afundamentações garantidas para a ciência. N a época em que as

inovadoras observações telescópicas foram aceitas po r terem pas-sado em testes objetivos, muitos relatórios de observação baseadosno olho nu eanteriormente aceitáveis tornaram-se inaceitáveis porsu a incapacidade de sobreviver ao s testes que as inovações deGalileu tornaram possíveis.

U m outro exemplo t i rado da ciência de Galileu reforçará aminha distinção entre aobservaçãoobjetiva, que acredito serviável,e a possibilidade'de um a base empírica segura e irretocável para aciência, qu e acredito ser um mito empirista. Em seu Diálogo a

respeito do s dois principais sistemas do mundo, Galileu (1967,p. 361-3) descreveu um método "objetivo" para medir o diâmetro

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de uma estrela. E le passava um cordão entre ele mesmo e a estrelainvestigada e o movimentava para frente e para trás, até que ocordão estivesse bloqueando o Sol. Galileu dizia que o ângulosubtendido ao olho pelo cordão era igual ao ângulo subtend ido aoolho pela estrela. Hoje sabemos que os resultados de Galileu eramum tanto quanto enganadores. O tamanho aparente de uma

estrela, percebido po r nós, d eve-se inteiram ente ao s efeitos atmos-féricos e a outros efeitos d e ruídos e não tem nenhuma relaçãodeterminada com o tamanho físico da estrela. A s medidas d eGalileu do tamanho d as estrelas baseavam-se na teoria, eram falhase hoje são rejeitadas. Contudo, essa rejeição nada tem a ver comos aspectos subjetivos da percepção. A s observações de Galileueram objetivas, no sentido de que encerravam procedimentos derotina que, se hoje repetidos, dariam mais ou menos os mesmosresul tados obtidos po r ele. N o próximo capítulo, reforçarei a

questão de que a ausência de bases seguras para a ciência não sedeve aos aspectos subjetivos problemáticos da percepção humana;farei u m a reflexão sobre certas características da experimentação naciência.

CAPÍTULO 5

O EXPERIMENTO

5.1 A produção e a rejeiçãode resultados experimentais

S e existem fund amen tos seguros para o conhecimento cientí-fico moderno, como pressupõem os filósofos ortodoxos, então,provavelmente, é o experimento que os fornece, e não a simplesobservação. Entretanto, alguns aspectos gerais da experimentaçãotêm tal configuração que os resul tados experimentais sã o bastanteimpróprios para consti tuir a base segura que esses "fundamenta-listas" procuram. Os resultados experimentais são constantementerejeitados, revisados, colocados de outra maneira ou consideradosirrelevantes por uma série de razões bastante sérias do ponto devista da atividade científica. O qu anto a base experimental da ciên-ci a é constantemente atual izada e transformad a nada tem a ver comproblemas associados à observação ou à percepção humana. Mes-mo que os sentidos nos proporcionem determinados fatos sobreo mundo observável , continuamos se m fundam entos seguros para

a ciência. Esses aspectos sã o óbvios e não apresentam problemas,uma vez que se considere o ponto de vista d a atividade científica

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rotineira oposto ao da filosofia da ciência empiris ta , como osexemplos seguintes mostrarão.

Meu primeiro exemplo dizrespeito à série deexperimentos deHeinrich Hertz, num período de dois anos, indo de 1886 a 1888e culminando na primeira produção controlada de ondas de rádio(Hertz, 1962).Além de revelar um novo fenômeno a serexploradoe desenvolvido experimentalmente, os resultados de Hertz tiveramgrande significado teórico. Eles trouxeram fortes evidências paraos aspectos fundamentais da teoria do campo eletromagnético de

Maxwell, contrária às teorias da "ação à distância" em voga nocontinente europeu. Era uma conseqüência da teoria de Maxwellque as correntes oscilatórias se propagassem, embora o próprioMaxwell não houvesse avaliado isso (Chalmers, 1973). De modogeral, os resultados de Hertz e o significado que ele lhes atribuíacontinuaram aceitáveisde um ponto devista moderno. Entretanto,

alguns de seus dados experimentais tiveram de ser substituídos euma de suas principais interpretações, rejeitada. Esses dois casosajudam a ilustrar o meu argumento contra os fundamentalistas.

Hertz conseguiu usar se u método experimental para medir avelocidade dasondasderádio que havia produzido. Seus resultadosmostravam que as ondas mais longas viajavam no a r a umavelocidade maior do que em fios, e mais depressa que a luz,enquanto a teoria de Maxwell previa que elas deveriam viajar à ve-locidade da luz tanto pelo ar como pelos f ios do aparelho d e Hertz.

Esses resultados eram insatisfatórios por razões das quais Hertz jásuspeitava. As ondas que se refletiam das paredes do laboratóriono aparelho causavam interferências indesejadas. Os comentáriosdo próprio Hertz (1962, p. H) sobre esses resultados problemáti-cos foram os seguintes:

O leitor talvez pergunte por que não me esforcei para resolver eumesmo a questão duvidosa, repetindo os experimentos. Naverdade, eu osrepeti, porém apenas descobri, como seria de esperar, que uma simplesrepetição sob as mesmas condições não pode eliminar a dúvida, mas antes

a aumenta. Só se pode chegar a uma decisão definitiva mediante experi-mentos realizados sob condições mais favoráveis. Essas condições mais

favoráveis significam salas maiores, que não estavam a meu dispor. Maisuma vezenfatizo a afirmação de que o cuidado nas observações não podecompensar a falta de espaço. Se não é possível desenvolver ondas longas,é evidente que elas não podem ser observadas.

Os resultados experimentais de Hertz eram deficientes porquesu a maneira de experimentar não servia para a tarefa. O compri-mento das ondas investigadas deveria se r pequeno em relação àsdimensões do laboratório, para eliminar a interferência indesejável.Como sabemos, em poucos anos os experimentos passaram a ser

realizados "sob condições mais favoráveis" e produziram velocida-des de acordo com as previsões teóricas.

Um ponto a ser enfatizado aqui é que os resultados experimen-tais sãoexigidos não apenas por serem satisfatórios, no sentido deconstituírem registros precisos de eventos experimentais, mas por

serem também apropriados ou significativos. Eles devem ser pla-

nejados para lançar lu z sobre alguma questão significativa expostaà natureza. Discernir o que é uma questão significativa,e sealgumexperimento específico é uma forma satisfatória de respondê-la,dependerá muito de como são compreendidas a situação prática ea teórica. Foi a existência de outras teorias sobre o eletromagnetis-mo e o fato de que um dos grandes contendores previu que asondas de rádio viajavam no ar com a velocidade da luz que tornoubastante significativa a tentativa de Hertz de medir a velocidadedessas ondas, embora fosse u m a compreensão d as propriedades

d e reflexão das ondas que tivesse levado à avaliaçãode que o aparatoexperimental de Hertz era insatisfatório. Esses resultados experi-mentais práticos foram rejeitados e logo substituídos, por razõesclaras e nada misteriosas para a física.

Assim como ilustra a questão de que os experimentos devemse r apropriados ou significativose de que os resultados experimen-tais sã o rejeitados ou substituídos quando deixam de ser experi-mentais, esse episódio na pesquisa de Hertz e em suas própriasreflexões sobre ele evidentemente mostra que a rejeição de suasmedidas da velocidade da luz nada tem a ver com problemas d apercepção humana. Não há razão alguma para duvidarmos de que

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Hertz tenha observado cuidadosamente se u aparelho, medindodistâncias , observando a presença ou ausência de faíscas naslacunas em seus detectores e registrando as leituras dos instrumen-tos. Pode-se pressupor qu e seus resultados eram objetivos, nosentido de que qualquer pessoa qu e repetisse essas experiênciaspoderia obter resultados semelhantes. O próprio Hertz sublinhava

esse ponto. O problema com seus resultados experimentais nãoadvinha de insuncências em suas observações, m as antes damaneira imprópria como ele realizava os experimentos. Hertz disseque "o cuidado nas observações não pode compensar a falta deespaço". Mesmo seconcordamos com os empiristas, acreditandoqu e Hertz tenha sido capaz de estabelecer fatos seguros po r meiod e observação cuidadosa, vemos que em si isso nã o bastava paraproduz ir resultados experimentais satisfatórios para a tarefa cientí-fica em questão.

A discussão acima pode ser compreendida como ilustração de

como aaceitabilidadedos resultados experimentais é teórico-depen-dente e como os julgamentos sobre ela estão sujeitos à mudançadurante o desenvolvimento da nossa compreensão científica. Emum nível mais geral, isso é ilustrado pela maneira como o signifi-cado da produção de ondas de rádio de Hertz mudou desde o seutempo. Na época em que Hertz as analisou, a teoria de Maxwell -que dizia que os fenômenos eletromagnéticos eram a manifestaçãodos estados mecânicos de um éter mecânico - previa as ondas de

rádio de uma forma que as teorias opostas d e ação à distância nã opreviam. Conseqüentemente, Hertz e seus contemporâneos pude-ra m analisar a produção d e ondas de rádio, entre outras coisas,como sendo a confirmação da existência do éter eletromagnético. Maisou menos duas décadas depois, a situação do problema teórico er amuito diferente.A teoria eletromagnética d e Maxwell, devidamentemodificada para incorporar o elétron, eliminou as rivais da ação àdistância, mas foi dificultada pela versão relativizada de Einstein,que descartavaa teoria do éter mecânico de Maxwell. Tanto a teoria

de Einstein como a de Maxwell previam que as ondas de luzviajavam na velocidade d a luz. Portanto, nesse contexto, quando

Hertz produziu essas ondas, não houve distinção entre as duasteorias, e assim isso não poderia se r considerado um a evidênciapara a existência do éter mecânico. Os resultados experimentais deHertz ainda sã o aceitos em geral, mas o significado a eles atribuídotransformou-se.

U m segundo exemplo, que diz respeito a medições do peso

molecular feitas no século XIX, ilustra ainda mais a maneira comoa pertinência e a interpretação dos resultados experimentais depen-dem do contexto teórico. As medições dos pesos moleculares deelementos ecomponentes deocorrência natural eram consideradasde primordial importância por muitos químicos no século XIX,especialmente pelos qu e preferiam a hipótese de Prout, de que oátomo de hidrogênio é um bloco fundamental de construção deque se compõem os outros elementos. Este último esperava que

os pesos moleculares relativos ao hidrogênio fossem próximos a

números inteiros. As complicadas medições dospesos molecularesefetuadas por importantes químicos experimentais no séculoX IXtornaram-se muito pouco importantes doponto devistadaquímicateórica, uma vez que se percebeu que os elementos de ocorrêncianatural contêm uma mistura de isótopos em proporções que nãotinham nenhum significado teórico. Essa situação levou o químicoF. Soddy a comentar seus resultados (Lakatos e Musgrave, 1974,p. 140) da seguinte maneira:

Há algo certamente aparentado, se não transcendendo a tragédia, no

destino que superou a obra de toda a vida desta galáxia de químicos do

século XIX, co m razão reverenciados po r seus contemporâneos comorepresentantes do auge e perfeição da medida científica precisa. Seusresultados duramente conquistados, pelo menos até o momento, parecemte r pouco interesse e significado, como a determinação do peso médio deum a coleção de garrafas, estando algumas cheias e outras mais ou menosvazias.

Mais uma vez observamos que os antigos resultados experi-mentais eram rejeitados como desimportantes e por razõesque não

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partem dos aspectos problemáticos da observação humana. Esses

químicos do século X IX eram "reverenciados por seus contempo-

râneos como representantes do auge e perfeição da medida cientí-

fica precisa", e não temos razão para duvidar da competência desuas observações e medições. Tambémnãoprecisamos duvidar de

su a objetividade. Não tenho dúvida nenhuma de que, se as suas

experiências fossem repetidas por alguns químicos contemporâ-neos qu e possuem as qualificações apropriadas, obter-se-iam resul-

tados semelhantes. Serem bem-efetuadasé uma condição necessá-ria, mas insuficiente para a aceitabilidade dos resultados experi-

mentais. Elas também devem se r significativas ou importantes paraalgum problema.

Os argumentos que uso com o auxílio de exemplos podemser resumidos de uma forma que acredito não ser contrária aoponto de vista das atividades da fisica e da química. A quantidade

de resultados experimentais considerados como teste satisfatóriopara a teoria contemporânea tem sido devidamente atualizada.Os velhos resultados experimentais são rejeitados como insufi-cientes por muitas e claras razões. Eles podem ser rejeitados

porque a experimentação não continha precauções satisfatóriascontra possíveis fontes de interferência, devido ao emprego deformas de avaliação insensíveis e a métodos ultrapassados dedetecção, porque os experimentos acabaram sendo considerados

incapazes de resolver o problema ou porque a questão para a qual

foram projetados não era mais reconhecida. Embora essas obser-vações possam ser consideradas comentários bastante óbviossobre a atividade científica rotineira, elas contudo apresentamsérias implicações para boa parte d a filosofia mais ortodoxa daciência, pois abalam a noção geral de que a ciência repousa sobrebases muito seguras. Os resultados experimentais constituem

provas empíricas de nossas teorias enquanto forem sendo cons-tantemente revisados e atualizados. A ciência não tem, nem deve

ter, bases seguras. Mais importante: as razões para isso não têm

muito a ver com os aspectos problemáticos da percepção dos sereshumanos.

5.2 As implicações para o empirismo

Uma das implicações deminhas reflexões sobre certos aspectos

mais comuns do experimento na ciência fo i suficientemente enfa-tizada na parte anterior: sua incompatibilidade com as pressuposi-ções empiristas de que são os sentidos que fornecem as basesseguras para a ciência. Por mais segurasqu e sejam consideradas asobservações dos sentidos, sozinhas elas não servem para fornecer

dados experimentais significativos para a ciência.

Ro y Bhaskar (1978) persuasivamente disse que a experimenta-

ção é incompatível com muitas concepções empiristas das leis cien-tíficas, segundo as quais estas são interpretadas como constantesassociações de fenômenos, à moda de Hume. Segundo essas

formulações, as leis científicas funcionam pelo esquema "sempreque um evento do tipo A ocorre, segue-se um evento do tipo B",ou, mais de acordo com o empirismo radical, "sempre que seobserva acontecer um fenômeno do tipo A, observa-se a seguir umfenômeno do tipo B". Um problema para essa idéia deriva do quediscuti no capítulo 3 sobre a situação que circundava Galileu,depois que ele introduziu o experimento na fisica.Existem poucasregularidades observáveis a discernir no mundo observável à nossavolta, de modo que, por exemplo, os que defendem generalizaçõescomo "objetos mais densos que a água afundam" sãorebatidos por

agulhas que f lutuam e insetos de água. O mundo natural não secomporta de maneira suficientemente regular, de modo a permitirdiscernir regularidades semexceções, embora o sistema solar quasesirva como uma exceção. Como demonstrou a nossa discussãosobre as inovações de Galileu, em certo sentido a experimentaçãoproporciona a resposta para esse problema. Podemos construirartificialmente situações físicas em que as regularidades do tipohumeniano obtêm, por exemplo, que uma determinada mudançana força da corrente exposta por um amperímetro seja sempre

seguida pelo mesmo deslocamento de um ponto numa tela fluo-rescente. Contudo, se essas regularidades, que em geral só se obtêm

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em situações experimentais artificiais, se identificam com as leiscientíficas, ficamos sem saber o que rege o comportamento do

m u n d o fora das situações experimentais. A idéia da associaçãoconstante talvez seja até compatível com os aspectos mais ordena-dos dos experimentos de Hertz , mas não permite que se invoquemleis para explicar como um sinal de rádio de força f lutuante chegaa Syd ney, na A ustrália , desde o meio do Pacífico. Se as leiscientíficas sã o identificadas com regularidades, na forma de asso-ciações constantes, é porque as situações irregulares não podemser consideradas sujeitas a leis. Isso entra em conflito com asuposição da ciência natural, que diz que os s inais de ondas curtasirregulares de rádio são regidos pelas equações de Maxwell tantoquanto o foram as ondas de rádio de Hertz.

A discussão acima esclarece um problema de uma concepção

emp irista das leis científicas. Entreta nto, pelo menos desde a épocade Galileu, não é um problema para a ciência. A s provas que dãoapoio às leis científicas são obtidas em situações experimentaisartificiais, mas pressupõe-se que as le is assim identif icadas apli-quem-se também fora de tais s ituações, embora aqui sua s ituaçãose sobreponha a outras leis, levando a um com portamento irregularno nível das ocorrências . Do ponto de vista da física, não temosproblema para compreender que a tensão da superfície intervémpara impedir que a agulha afunde na água ou que diversas per-turbações atmosféricas e outras levam a irregularidades na força deum sinal de rádio. Na atividade científica moderna está implícitoo pressuposto de que os fenômenos naturais são regidos por leis,mas , no mundo natura l, esses fenômen os se justapõem de fo rmasmuito complexas. Por essa razão, a intervenção dos experimentosé necessária para desenterrar informações epis temologicamenteimportantes. E isso é incompatível com a interpretação das leiscomo regularidades empíricas e também indica por que as descri-ções da situação observável em geral não servem para constituir osblocos com que se constrói o conhecimento cientí f ico, segundo

muitos empiristas (cf. Feyerabend, 1981). Em geral, os eventosobserváveis sã o resultado de uma complexa com binação de diver-

sós processos se m nenhum significad o epistemológico necessário.hciência exige a produção e observação dos eventos importantes,eéoque o experimento procura facilitar.

5.3 As implicações para a filosofiada ciência de Popper

Um elemento essencial na construção do falsificacionismo de

Popper é a idéia do conteúdo empírico de uma teoria . SegundoPopper, na ciência buscam os teorias degrande conteúdo empírico;determinada mudança de teoria estará em andamento se a novateoria aceita tiver conteúdo empírico maior do que o de suapredecessora. A base que apoia essa concepção da meta da ciênciaé bastante clara: se pensamos no conteúdo em pírico de uma teoriacomo medida de suas afirmações para justificar o comportamentodo m u n d o , a preferência por teorias deg ra n d e conteúdo empíricosignifica apenas u ma preferênc ia pelas teorias que nos digammuita coisa sobre o mundo. A lém dis so , quanto mais amplas asexigências da teoria, m ais aberta ela estará a uma possível falsifica-ção. Dadas duas teorias opostas , a opção pela que t iver maiorconteúdo empírico eqüivale à opção pela mais falsificável (Popper,1972, p. 112-3). Exposta nesses termos gerais , a tese de Popper

parece muito plausível. Entretanto, quando examinamos emdetalhe a maneira como ele a desenvolve, descobrimos problemasgraves, provenientes do pape l da experimentação, qu e discutimosacima.

Popper (1972, p. 120) define o conteúdo empírico de umateoria como a classe de seus falsificadores potenciais. U m falsifica-dor potencial é uma combinação de afirmações sobre a observação(que Popper chama de "afirmações básicas") qu e entra em conflitoco m a teoria . A ssim, po r exemplo, a combinação de cinco posições

planetárias observadas que não estão numa elipse seria um falsifi-cador potencial da lei que diz que "os planetas se movimentam em

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elipse em torno do Sol". Normalmente, os falsificadores potenciaisencerram a especificação de um arranjo experimental planejado

para testar uma teoria junto com a descrição de um resultadoharmônico em relação ao que ela previa. Por exemplo, um falsifi-cador potencial para a lei da queda (d e Galileu) seria um a descriçãodo aparato experimental envolvido em sua experiência com o plano

inclinado, junto com os registros dos tempos da descida por

diversos comprimentos do plano incompatíveis com uma acelera-ção constante. Em compensação, uma descrição da caprichosadescida de uma fo lha não constitui u m falsificador potencial paraa teoria de Galileu. A introdução da resistência do ar ou do ventotorna a queda tortuosa compatível com as afirmações de Galileu

sobre a queda desimpedida. Os falsificadores potenciais de umateoria são aqueles resultados experimentais que, ocorrendo, arefutariam. O conteúdo empírico de uma teoria se identifica com

o conjunto de eventos que ela rege. As leis científicas são decretosproibitivos. Popper (l 972, p. 113) afirma claramente que as teoriasnada nos dizem sobre os eventos compatíveis com elas.

A identificação qu e Popper fa z do conteúdo de uma teoria co ma categoria d e seus falsificadores potenciais tem uma conseqüênciaindesejável. Segundo ele (1972, p. 113), é a classe de seus falsifi-cadores potenciais que determina o que uma teoria "diz" sobre omundo e representa "a informação empírica transmitida por uma

teoria". Não obstante, como já vimos, a não ser emcircunstâncias

excepcionais, como as que prevalecemno sistema solar, é somentepor meio de um experimento controlado que uma teoria poderáse r falsificada, de modo que a classe d os falsificadores potenciais

constituir-se-á d a especificação d os experimentos e de seus resulta-dos. A tese de Popper implica que o conteúdo de uma teoriaconsiste nos resultados experimentais que ela proíbe e, assim, nãodi z nada sobre o comportamento do mundo fora das situações

experimentais. A especificação da queda de uma ponte não seriaum falsificador potencial d a mecânica newtoniana. Essa queda

seria atribuída à fadiga do material, aos ventos fortes e coisas dogênero. No entanto, seus projetistas pressupõem que a mecânica

newtoniana se aplique à ponte - e com boas razões. Da mesma

form a) a descrição da queda irregular de uma folha na brisa deoutono não constituiria um falsificador potencial da teoria gravita-cional de Newton; mesmo assim, continuamos pressupondo quea gravidade atue sobre a folha durante su a queda segundo essateoria e atribuímos à ação da gravidadeo fato de que as folhas d e

outono normalmente caem no chão.Ao identificar o conteúdo de uma teoria com a classe de seus

falsificadores potenciais, Popper na verdade identifica o domínioda aplicabilidade da teoria com o domínio de suas situaçõessatisfatórias de teste. Em outro texto, Popper (1961, p. 117) ex-pressa uma concepção mais plausível. O trecho que importa diz o

seguinte:

O ponto crucial é este: embora se pressuponha que qualquer sucessão

real de fenômenos ocorra segundo as leis da natureza, é importantepercebermos que praticamente nenhuma seqüência de, digamos, três oumais fatos concretos causalmente associados ocorre segundo uma determi-nada lei da natureza. Se o vento balança uma árvore e a maçã de Newtoncaino chão,ninguém negará queesses fatospodem serdescritos emtermosde leis causais. Mas não existe uma única lei, como a da gravidade, nem

mesmo um único conjunto de leis que sirva para descrever a sucessão realou concreta de fatos causalmente associados; além da gravidade, teríamosde levar em conta as leis que explicam a pressão do vento, os movimentosbruscos do galho, a tensão no pedúnculo da maçã, o machucado sofrido

pela maçã com o impacto - e tudo isso ésucedido pelos processos químicosresultantes do machucado etc. A idéia de que qualquer seqüência ou

sucessão de fatos concretos (além de exemplos como o do movimento deum pêndulo ou o de um sistema solar) pode ser descrita ou explicada por

qualquer outra lei está simplesmente equivocada.

Aqui Popper admite que a maçã em queda é regida por leiscausais, como a da gravidade, mas reconhece também que aseqüência observada d e fatos nã o pode se r descrita po r qualquerlei, por qualquer "conjunto definido de leis". Esta última observa-çã o implica que as descrições da seqüência de fatos ocorridos

naquele breve período da história da maçã não constituem um

falsificador potencial de nenhuma le i causai. Popper (1972) chega

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pelas teorias que informam seu projeto ou interpretação, ou pelacrença do experimentador nessas teorias. Embora os detalhes deum arranjo experimental, assim como o significado associado aosresultados, dependam do julgamento do experimentador orientado

pela teoria, uma vez ativadaa aparelhagem, é a natureza d o mundoque determina o posicionamento de um ponteiro numa escala, oscliques do contador geiger, os relâmpagos numa tela e assim por

diante. Foi porque o mundo físico é como é que um experimentorealizado por Hertz em 1883 não apresentou nenhuma evidênciadetectável para o efeito eletromagnético dos raios catódicos; exata-mente porque o mundo écomo é que a aparelhagem mais adequadade J. J. Thompson produziu evidência detectável duas décadas maistarde (Hon, 1987). Foram as diferenças materiais dos arranjosexperimentais dosdoisfísicos que levarama resultados diferentes -e não as diferenças na s teorias sustentadas pelos dois.

O fato de serem os resultados experimentais determinados pelamaneira como o mundo funciona e não pelos pontos de vistateóricos dos experimentadores é que proporciona a possibilidadede testar-se a teoria em relação ao mundo. Isso não quer dizer que

se obtenha com facilidade resultados significativos, também não éuma negação de que o significado dos resultados experimentais

seja às vezes ambíguo e nem uma exigência de que os resultadosexperimentais e as conclusões deles extraídas sejam infalíveis.Estou argumentando contra o relativismo cético, não contra ofalibilismo. Ameta deproduzir resultados experimentais objetivos,

significativos e sem ambigüidade é um problema bastante sério.E m b o ra a priori nã o existam garantias de que essa dificuldadevenha a ser resolvida, a história e a prática da ciência mostram qu eisso geralmente é possível.

5.5 O retorno do experimentador

Nesses últimos anos os sociólogos têm lançado a dúvida céticasobre o papel do experimento na ciência. Admitindo o quanto a

suficiência e o significado a serem atribuídos ao s resultados expe-rimentais baseiam-se na reflexão teórica e em refinadas análisespráticas, eles concluem que há uma circularidade quando se

consideram os experimentos base satisfatória de teste para asteorias científicas. Alguém se referiu a esse problema como "oretorno do experimentador". Andrew Pickering (1981, p. 229),n u m a análise dos experimentos criados para detectar os quarks,escreveu o seguinte:

não se pode separar a avaliação de estar ou não suficientemente fechado

um sistema experimental da avaliação dos fenômenos que ele contém: sealguém acredita emquarks livres, o experimento de Stanford [noqual seus

realizadores julgaram ter detectado os quarks livres) está suficientementefechado; se não acredita, ele não está.

Collins (l985, p. 84) faz observação semelhante com referência

a experimentos criados para detectar as ondas gravitacionais degrande fluxo:

O que é resultado correto depende dasondas gravitacionais atingirem

ou não a Terra em fluxos detectáveis. Paraverificar isso, devemos construirum bom detector de ondas gravitacionais e fazer um exame. Contudo, não

saberemos se construímos um bom detector até que o tenhamos experi-mentado e obtido o resultado correto! E não sabemos qual é o resultado

correto até que ... e assim por diante, ad in/ initum.

Diante da existência desse círculo, que ele chama de "retornodo experimentador", Collins chega à conclusão de que as contro-vérsias na ciência não podem ser resolvidas com experimentosfeitos de maneira objetiva e científica. "Algumas táticas 'não-cien-tíficas' devem se r empregadas porque somente os recursos doexperimento são insuficientes" (Collins, 1985, p. 143). Por isso,abdicar das ondas gravitacionais d e grande fluxo foi "um processosocial (e político)" (Collins, 1981, p. 54). Nem mesmo os experi-

mentos paranormais apresentados como reveladores da vida emo-cional das plantas podem serconsiderados não-científicos. Sevocê

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acredita na paranormalidade, os experimentos sãoadequados, masse não acredita, eles não são.

E m b o ra eu acredite que os estudos de Collins e sociólogos de

semelhante mentalidade lancem uma luz interessante sobre anatureza e a complexidade do trabalho experimental, não penso

que suas conclusões radicais sejam garantidas - eles nem sãocorroborados po r seus próprios estudos. Para simplificar e esclare-ce r a dicussão, eu me concentro e m u m d o s estudos mais impor-tantes que Collins usa para sustentar sua tese: as investigaçõessobre a discussão relativa ao s experimentos criados para detectaras ondas gravitacionais, desde o momento em que Joseph Weberdeclarou havê-las detectado em 1969 até quando a discussão foiencerrada e o que Weber reivindicava foi desacreditado, mais oumenos em 1975 (Collins, 1985, capítulo 3).

Os experimentos foram criados para identificar os sinaisdevidos à suposta interação das ondas gravitacionais com umdetector e para distingui-los dos ruídos térmicos e outros. A forca

do sinal que Weber dizia ter detectado era tal que entrava emconflito com diversas ordens de magnitude que se deveriamesperar, segundo a teoria aceita na época, inclusivea darelatividadede Einstein. Os experimentos de Weber foram tratados com ce-ticismo, especialmente enquanto funcionavam próximos dos limi-tes do que poderia ser considerado estatisticamente significativo.A questão nem era tanto a existência d as ondas gravitacionais,as

quais eram comumente previstas depois da teoria de Einstein, masa existência das ondas gravitacionais de grande fluxo, que Weber

dizia te r detectado.

N o início d os anos 70 foram feitas tentativas de repetir oexperimento de Weber, mas elas deixavam de detectar sinaisestatisticamente significativos. Weber seguia duas linhas de inves-tigação que prometiam reforçar a sua tese. Em primeiro lugar, eledizia qu e havia correlações significativas entre sinais captados po rdetectores situados a milhares de quilômetros de distância; em

segundo lugar, u m a periodicidade d e aproximadamente vinte equatro horas, o que sugeria u m a correlação entre os sinais detec-

tados e a orientação da Terra em relação às estrelas. Essas duascorrelações reforçaram a reivindicação de que os sinais captadospor Weber eram causados por um fluxo de ondas gravitacionaisqu e atingiam a Terra vindos d e u m a determinada direção d oespaço. Não obstante, o argumento deWeber a favor da correlaçãoentre detectores separados fo i seriamente enfraquecido pela desco-berta de um erro em seu programa d e computador e pelo fato d eque alguns dos sinais dos detectores distantes que ele haviacomparado com o seu, os quais pressupunha terem sido gravadossimultaneamente, foram na verdade gravados comquatro horas de

diferença. As tentativas de Weber de embasar a correlação sideralnão tiveram êxito e esta acabou desaparecendo.

Um outro fator na discussão entre Weber e seus críticos diziarespeito ao tipo de sistema, incluindo circuitos e programas decomputador, usado para processar o sinal bruto que vinha do

detector. Esses críticos sabiam inferir do conhecimento geralmenteaceito o suficiente para mostrar que, para inúmeros t ipos de sinais,u m sistema linear seria mais satisfatório do que o sistema não-linearutilizado por Weber. Weber não conseguiu resultados estatistica-mente significativos usando um sistema linear. Eleconcluiu entãoque os impulsos qu e presumia serem causados pela absorção dagravidade têm um perfil incomum. Mais ou menos em 1975, atese de Weber deixou de convencer a comunidade científica, aexistência das ondas gravitacionais de grande f luxo foi negada e

aquela linha de pesquisa fo i abandonada.Collins usa esse e outros estudos do gênero para contestar o

estatuto epistemológico distintivo habitualmente atribuído ao co-nhecimento científico, e chega à conclusão de que as discussõescomplexas na ciência não podem ser resolvidas com recurso aoexperimento, por meios normalmente considerados "científicos".Elas sã o antes resolvidas como resultado de outras pressões sociaise políticas. Levando em consideração sua análise da controvérsiaacerca das ondas gravitacionais, eleconclui que não há "nenhumc

°njunto d e critérios 'científicos' qu e possa determinar a validadeda s descobertas nesse campo. O retorno do experimentador leva

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os cientistas a buscar outros critérios de qualidade" (Collins, 1985,p. 88), de modo que "deve-se empregar alguma tática 'não-científi-ca'" (Collins, 1985, p. 143). Elemostra que há maneiras possíveisde interpretar o argumento contra Weber, "observando falhas tais

em cada tendência que uma rejeição absoluta da tese do grandefluxo não seria a inferência necessária" (Collins, 1985, p. 91).

Como o "retorno do experimentador impede uma solução 'objeti-va'" (Collins, 1985, p. 151), são os interesses sociais e políticos da

comunidade científica que dão a preferência a um e não a outro

resultado igualmente aceitável. "Não é a regularidade do mundoque se impõe a nossos sentidos, mas a regularidade de nossa crençainsti tucionalizada que se impõe ao mundo" (Collins, 1985, p. 148).

As idéias de Collins são erradas e com certeza não têm apoio

em suas investigações. Sobretudo o retorno do experimentador,como o interpretam ele e outros, como Pickering, baseia-se numa

compreensão insuficiente da natureza e papel do experimento.

Um ponto quedeveriaserenfat izado como contrário àsreaçõesfanáticas e sem garantia ao peso da teoria do experimento é a

sensação de que os resultados experimentais são determinadosmais pela naturezado mundo físico do que pelas teorias aceitas ou

cogitadas pelos experimentadores ou intérpretes, como já salienta-do na seção 5.4. Weber teria realmente adorado que os sinais quesurgiam de seu aparato experimental apresentassem uma periodi-cidade de vinte e quatro horas, mas o mundo não cooperou.

Como Collins e sociólogos de mesma orientação, podemosaceitar que a competência e o significado de um resultado experi-mental sejam sensíveis em relação a suposições antecedentes. Oretorno do experimentador, da maneira formulada por Collins,qu e ameaça a idéia de que os testes experimentais possam ofereceruma base objetiva para a avaliação da teoria, só tem força se asasserções emteste - por exemplo, queexistem ondas gravitacionaisde grande fluxo ou quarks livres - formam parte das suposiçõesantecedentes que informam os experimentos planejados para testar

exatamente essas asserções. S e a suficiência dos experimentoscriados para testar a existência das ondas gravitacionais de grande

fluxo só pode se r julgadauma vez que se tenha um a posição sobreessa existência, então o tipo de circularidade invocada por Collinse Pickering é realmente conseqüente. Contudo, essa não é asituação que normalmente os cientistas experimentais enfrentam,nem corresponde à que Weber e seus críticos enfrentaram.

Instalada uma certa polêmica na ciência, a questão é chegar aresultados experimentais definitivos, que não contenham umjulgamento prévio do caso. Esses resultados experimentais depen-derão das suposições antecedentes e estas estarão sujeitas a ques-t ionamento. Se qualquer um a delas fo r questionada se m funda-mentação ou de maneira superficial, o questionamento deve ser

acompanhado por uma estratégia que possibilite a discriminaçãoentre a suposição questionada e a alternativa proposta. Isso corres-

ponde à meta geral da ciência caracterizada no capítulo 3, segundo

a qual a suficiência de nossas teses sobre o mundo deveria seravaliada em confronto com o mundo, de alguma maneira prática.S em grande esforço, os experimentos realizados por Weber e seuscríticos podem ser assim interpretados. Críticas à adequação dosdiversos resultados exigidos encerram uma série de pressupostos,m as não são do tipo que produz a circularidade invocada porCollins.Alguns resultados deWeber foramclaramente desacredi-tados combase, por exemplo, emcertas suposições compartilhadasa respeito do que constitui um programa de computador confiável.Outras críticas eram mais sutis. Observamos atrás que Weber foi

criticado por ampliar seus sinais utilizando um sistema não-linear,quando em geral se reconhecia que os sistemas lineares eram maissensíveis, de acordo co m certas suposições um tanto frágeis refe-rentes à forma dos impulsos. Weber aceitavaque o conhecimentopassado fosse a base dessa crítica e concluiu que os impulsos qu eemanavam de seu detector deveriam ter um perfil incomum. Seuscríticos estavam corretos ao insistir no caráter ad ho cdessa resposta.Para reforçar a tese de Weber seria preciso haver alguma evidênciaauto-suficiente desse perfil comum. Er a concebível que tal evidência

aparecesse. Um sistema de circuitos elétricos mais sensível poderiapermitir o diagnóstico da forma do impulso, por exemplo. Não

104 A L A N C H A L M E R S

obstante, Weber e os que o apoiavam não apresentaram esse tipo

A F A B R I CA Ç ÃO DA C I Ê N C I A 105

esse t ipo de questão, de modo que o fato de uma resposta tr iunfa r

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de evidência auto-suficiente. Existem razões científicas objetivasmuito boas para rejei tar as onda s gravitacionais de grande fluxocom base nas evidências que atualmente possuímos.

A maior parte das provas apresentadas por Coll ins para a

defesa da importância d os fatores "não-científicos" na controvérsia

sobre as ondas gravitacionais de grande fluxo originou-se dosresultados de entrevistas com os participantes. Collins (1985,p. 87) mostra que, entre as razões dadas pelos cientistas para aaceitação e rejeição dos resultad os experimentais, entravam fatorescomo a personalidade ou nacionalidade dos experimentadores,t a ma nho e prestígio dauniversidade deorigem, o fato dos cientistastrabalharem na indústr ia privada ou na academia, o estilo da

apresentação dos resul tados, e assim por diante. Entretanto, essasobservações não trazem nenhuma preocupação, sequer para as

mais ortodoxas concepções d a racionalidade científica. A s decisõesrotineiras tom ada s pelos cientistas a respeito das linha s de pesquisaa seguir e das estratégias a serem adotadas, em que experimentosconf iar e quais os que devem serquestionados, e assim por diante,naturalmente serão influenciadas por uma série de fatores subjeti-vos, como os indicados por Collins. Contudo, tais fatores não

poderiam determinar a acei tabilidade de exigências científicas; nadiscussão sobre as ondas gravitacionais, realmente não determina-ram.

Outro aspecto que Collins esclarece usando seu material deentrevistas é a natureza variável e mui tas vezes contraditória dascrenças e ju lgamentos dos cientistas. Assim, por exemplo, um

cientista considerava um ponto a favor o fato de ter sido feita numcomputador a análise estatística do experimento de Weber, en-quanto outro considerava isso um motivo de preocupação; algunsconsideravam as coincidências entre detectores separados muitosignificativas, outros discordavam; alguns achavam convincentesas provas da existência das ondas gravitacionais, outros não.Collins analisa essas provas de uma forma que dá suporte a suaidéia de que não existe uma única resposta científica correta para

sobre a outra deve ser explicado pelos fatores não-científicos. Aceitoe não me surpreendo com a variabil idade das opiniões e crençasdos cientistas, observada por Collins. Entretanto, transferir essadiversidade p ara o próprio conhecimento científico é algo que nãose justifica e me parece resul tante de uma identificação muito

próxima doconhecimento científico com as crenças e opiniões doscientistas. Basicamente, o que torna uma hipótese científica aceitá-ve l ou utilizável é a quantidade de oportunidades objetivas que elaoferece para a pesquisa futura ou a aplicação prática, ou seja: aquant idade de vias que se apresentam para investigação ou explo-ração futura , dados os recursos teóricos e tecnológicos existentes(Chalmers, 1982, capítulo 11). A socióloga Karin Knorr-Cetina

(1981, p. 8) expõe um ponto devista semelhante:

Onde encontramos o processo de validação em qualquer grau signifi-cativo, senão n o próprio laboratório? .. . O que é o processo de aceitação,senão um processo de incorporação seletiva dos resultados anteriores noprocesso constante da produção da pesquisa? Chamá-lo de processo deformação de opinião parece provocar um a série de conotações errôneas. ...O que temos, portanto, não é um processo de formação de opinião, masum processo em que determinados resultados sã o solidificados pela incor-poração contínua à pesquisa em andamento.

Depois de 1975, Weber e os que o apoiavam talvez tenhamcontinuado a acreditar intensamente nas ondas gravitacionais degrande fluxo, e seus oponentes, da mesma forma, em sua inexis-tência, mas isso tem muito pouco a ver com o destino da hipótesede Weber. O importante é que por volta de 1975 pouco havia afazer co m essa hipótese. Uma vez que as tentativas para consu bs-tanciar acorrelação entre detectores separados e acorrelação sideralhaviam fa lhado, e uma vez que Weber fora obrigado a lançar m ãode suposições impossíveis de testar sobre o perfil dos impulsos,não havia mais lugar para onde ele e os que o apoiavam pudessemse voltar, não havia nenhuma oportunidade objetiva a aproveitar,

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nenhuma forma de consolidar sua hipótese integrando-a àspesqui-sa s em andamento. Essa explicação "científica" da perda de inte-resse nas ondas gravitacionais de grande fluxo não recorre e nãoprecisa recorrer a interesses sociais e políticos extracientíficos.

Há duas ressalvas a fazer co m relação a essa resposta um tanto

conservadora ao .questionamento de Collins. Em primeiro lugar,a ciência é passível de falhas e de revisão, e está aberta. Pode-seprever maneiras deressuscitar ashipóteses deWeber.Certo avanço

na microeletrônica poderia tornar possível a identificação dosperfis incomuns dos impulsos postulados por Weber, abrindo

um a série de oportunidades para a pesquisa prática. Por sua vez,isso poderia desdobrar oportunidades para os teóricos procura-rem explicação para as ondas detectadas ou para os astrônomos

buscarem evidências auto-suficientes de sua origem. Até, ou a

menos que algo assim aconteça, as hipóteses de Weber perma-

necerão na geladeira da ciência. Em segundo lugar, deve-se admitirque poderia muito bem haverepisódios na ciência cujos resultados

fossem determinados por fatores sociais e políticos que não fun-

cionam no interesse da ciência, embora eu tenha argumentado,contra Collins, que o episódio envolvendo Weber e as ondasgravitacionais de grande fluxo não é um desses. Muitas d asquestões levantadas aqui, típicas nos debates dos sociólogos daciência contemporâneos, serão discutidas mais extensamente noscapítulos seguintes.

O estudo de Collins sobre a tentativa deWeber para detectaras ondas gravitacionais ilustra o fato de que a produção de dadosexperimentais pertinentes na ciência certamente não é uma questão

muito clara. Não obstante, também já argumentei, contra Collins,que problemas implícitos nem sempre são insuperáveis e que épossível obter resultados experimentais objetivos que tenham umarelação decisiva com a nossa avaliação de pretensos conhecimentos

científicos. Hertz apresentou boas provas da existência das ondasde rádio, enquanto Blondlot não conseguiu apresentar evidências

suficientes para a existência dos raios N, e Weber deixou deapresentar evidências satisfatórias para a existência das ondas

gravitacionais de grande fluxo. Sustento que esses incidentes

podem ser compreendidos satisfatoriamente em termos da metada produção do conhecimento científico e que não é necessário

recorrer a nenhuma espécie de fator extracientífico social oupolítico para avaliar aepistemologia dessas situações. Isso não querdizer que a meta da ciência possa ser atingida isolada de outras

metas e atividades, nem que a meta da ciência prevaleça ou deva

prevalecer sempre sobre outras metas. Questões como essa são

abordadas nos capítulos restantes deste livro.

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C A P Í T U LO 6

A CIÊNCIA E A SOCIOLOGIA

DO CONHECIMENTO

6.1 A sociologia e o ceticismo em relação à ciência

Uma idéia tradicional da objetividade na ciência diz que osméritos de uma teoria científica independem da classe, raça, sexoe outras característicasdas pessoas ou grupos que a abraçam. Se asinfluências provenientes dessas características dos indivíduos egrupos são chamadas de influências "sociais", pode-se dizer que,segundo essa idéia tradicional, o desenvolvimento e a avaliação da

ciência não estão sujeitos a uma explicação social. Muitos sociólo-go s contemporâneos negam que a ciência esteja imune à explicaçãosocial; seus pontos de vista constituem um ataque cético à objeti-vidade e ao estatuto epistemológico distintivo normalmente atri-buídos aoconhecimento científico. O que exporei a seguir fornecealguns dos muitos possíveis exemplos desse tipo de ceticismo.

Segundo David B loor (1982, p. 283), as leis científicas sã oProtegidas e tornam-se estáveis não por razões internas daciência,ftias "devido a sua pressuposta utilidade para os propósitos deJustificação, legitimação epersuasão social". David Tunrbull (l 984,P- 58 ) recorre ao s estudos sociológicos para defender su a idéia de

110 A L A N C H A L M E R S

que não há nada distintivo no conhecimento científico, sustentan-

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 111

mente subdesenvolvidas e o efeito da informática em nossas vidas,

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do que ele está "sujeito aos mesmos determinantes e influênciasque as outras formas de conhecimento". O detalhado estudo dotrabalho em laboratório de B. Latour e S.Woolgar (1979, p. 237)levou-os a negar qualquer distinção interessante entre a ciência e apolítica, enquanto H. M. Collins e G. Cox (1976) defendem

claramente uma idéia relativista intransigente da ciência, segundoa qual as estratégias de Marion Keech para convencer os outros darealidade de sua comunicação com os seres extraterrestres nãodifere muito das empregadas na ciência.

U ma refutação a afirmações céticas como essas exigirá umacuidadosa ponderação dos sentidos em que se pode dizer que aciência esteja sujeita a uma explicação social. Nesse contexto,muitas vezes se recorre a uma distinção entre o que sepode chamaraspectos "cognitivos" e "não-cognitivos" da ciência. Nos últimosestão implícitas coisas como a organização social da ciência, ainf luência da ciência sobre outros aspectos da sociedade e as in-f luências contrárias, qu e resultam no fato de que determinadosramos daciência tenham mais suporte do que outros. Larry L a u d a n(1977, p. 197), um dos opositores às atuais tendências na sociolo-gia do conhecimento, recorre a essa distinção. Como exemplo dequestões que exigem uma resposta sociológica, ele cita: "Por queforam fundadas determinadas instituições ou sociedades científi-cas, por que a reputação de um cientista decaiu, por que determi-

nado laboratório foicriado, quando e onde, ou por que o númerode cientistas alemães aumentou de modo impressionante entre1820 e 1860?". Nem mesmo os mais ortodoxos defensores daautonomia e da racionalidade da ciência negariam que a sociologiatem um papel na resposta a essas perguntas. A existência de umaautêntica sociologia não-cognitiva da ciência não é contestada,embora se deva dizer qu e esse campo abrange questões be m maisinquietantes do que as trazidas à tona por Laudan. Se entre elascolocamos problemas como a influência da ciência sobre o meioambiente, o potencial da engenharia genética, o abismo crescenteentre as sociedades tecnologicamente avançadas e as tecnologica-

a sociologia não-cognitivadaciência abrange os problemas sociais,políticos e morais mais inquietantes de nosso tempo.

Embora sua importância seja patente, um domínio legítimopara a sociologia não-cognitiva da ciência não está em discussão.Quando nos voltamos para os aspectos cognitivos da ciência é que

chegamos ao âmago da discussão entre os defensores tradicionaisda autonomia e racionalidade da ciência e alguns sociólogoscontemporâneos.David Bloor abre seu livro Knowledge and socialimagery (O conhecimento e a representação social, 1976, p. 1) com apergunta: "Asociologia doconhecimento pode investigar eexplicaro próprio conteúdo e anatureza do conhecimento científico?" - eprossegue, esboçando seu "vigoroso programa da sociologia do

conhecimento" planejado para dar uma resposta certa à pergunta.Ele acha que os sociólogos que se detiveram antes de dar uma

explicação social ao conteúdo da ciência sofrem de covardia. Bloore uma série de outros sociólogos de mentalidade semelhantetiverama coragem de tomar o conteúdo cognitivo da ciência comoobjeto de suas explicações sociológicas; os tradicionalistas normal-mente interpretam seus esforços como ameaça ao estatuto epistemo-lógico da ciência (veja também Mulkay, 1979, p. 60-2; Mackenzie,1981, p. 2-4).

É necessário, ainda, fazer mais um a distinção, antes de poder-mos identificar com precisão o terreno da disputa. Falando por

alto, essa é uma distinção entre a boa e a má ciência. Emboranegando a competência de uma explicação social do conteúdocognitivo da boa ciência, os opositores tradicionais da sociologiado conhecimento mostram-se prontos a considerar as causassociais invocadas quando se tem de explicar a má ciência ou aciência fora dos padrões. Assim, os tradicionalistas estão sempremais do que propensos a invocar as causas sociais para explicar ocaso Lisenko na Rússia ou a degeneração da física na Alemanhanazista, mas não consideram apropriado, porexemplo, buscar umaAplicação social para a substituição da mecânica clássica pelaquântica. Apresteza dos tradicionalistas em aceitar uma explicação

11 2 A L A N C HA L M E R S

social da má ciência é evidenciada pelo quanto eles se sentem à

A F A B R I C A Ç Ã O D A C I Ê N C I A 113

o estatuto distintivo da ciência, além das que os sociólogos normal-

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vontade com as explicações dos antropólogos para os estranhossistemas d e conhecimento d e tribos alienígenas, como a crença nafeitiçaria dos A zende, que lembr am aspectos da vida social dessepovo.

Os sociólogos tradicionais do conhecimento e seus contempo-

râneos mais radicais estão divididos na questão de estar ou não oconteúdo cognitivo de nossa melhor ciência sujeito a uma explica-ção social. No restante deste capítulo, procuro examinar analitica-

mente a essência da discussão.

6.2 O retrato inadequado que os sociólogosfazem de seus opositores

A argumentação usada por sociólogos em defesa da necessi-dade de uma explicação sociológica do conteúdo cognitivo daciência, procurando assim enfraquecer as idéias mais tradicionaisa respeito de seu estatuto epistemológico distintivo, mu itas vezes éa rru inada por um retrato inadequado eultrapassado, de inspiraçãopositivista, do que significam essas idéias tradicionais. Mulkay(l 979) prepara o camin ho para essa versão d a sociologia d a ciência,

rejeitando aquilo a que se refere como "idéia clássica" da ciência;David Bloor (1976) apresenta sua opinião como alternativa paraalgumas ou tras versões bastante rad icalizadas do racionalismo eempirismo; e Barry Barnes (1977) elabora su a tese em oposição à"explicação contemplativa", que encerra uma versão radical dateoria da correspondênciadaverdade baseada numa analogia coma pintura. Certamente me sinto contente em juntar-me aos soció-logos na rejeição desse tipo de idéias. Contudo, também assim sesentiria, por exemplo, Karl Popper, que os mencionados estudio-sos dificilmente aceitariam como colega na sociologia do conheci-mento. Há outras tentativas bem mais sofisticadas para defender

mente consideram ser a oposição.

Um exemplo que ilustra a minha opinião é a maneira comoMulkay (1979) organiza se u programa, crit icando a explicação"clássica". Os elementos dessa visão clássica identificada po r

Mulkay são os seguintes.Aciência pode estabelecer verdades sobreo m u n d o n a t u ra l na fo rma de leis universais da natureza; essas leissã o confirmadas lançando-se mão de afirmações factuais determi-nadas por meio de uma observação cuidadosa e isenta de precon-ceitos. Embora certos componentes teóricos da ciência possam iralém do que a observação pode determinar, pode-se fazer u m adistinção entre os níveis teórico e de observação. N este último, aciência apresenta um crescimento cumulativo. Os critérios pelosquais as exigências de conhecimento devem ser analisadas sãouniversais e a-históricos. A s conclusões da ciência são determina -

das pelo mundo físico e não pelo mund o social.Mulkay dedica o seg und o cap ítulo de seu livro à rejeição dessa

idéia já clássica. Ele recorre a um argumento usado por Hanson(1969) para insistir em que não se pode demonstrar que o mundofísico é regido por leis universais e que os argumentos normalmen-te apresentados para isso sã o circulares. El e enumera as diversasformas em que a tradicional distinção entre observação e teoria éprecária, e ilustra a possibilidade de revisão da evidência empírica.El e insis te aind a em que os critérios para a nalisar os méritos das

teorias não são universais , mas se baseiam no contexto e . estãosujeitos à mudança. Na medida em que esses critérios foremprodutos sociais, as conclusões da ciência não serão simplesmentedeterminadas pela natureza do mundo físico.

Seguramente Mu lkay está correto ao rejeitar o que chama deidéia "clássica", mas ele se equivoca ao descrevê-la como clássica,já qu e apenas a minoria dos filósofos da ciência contemporâneosdesejosos de defender o estatuto epistemológico d a ciência discor-daria dele. Por exemplo, a maior parte do que M ulkay rejeita nãoapenas é compatível com a filosofia da ciência de Popper, masc°nstitui a inda se u aspecto mais distintivo. O fato d e Popper negar

114 A L A N C H A L M E R S

que as teorias científicas possam ser provadas e insistir em seu

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 115

Bloor, 1982).As teorias científicas são indeterminadas pela evidên-

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permanente caráter hipotético não precisa de muita documentação.

Além do mais,ele rejeita a idéia de uma base segura para a ciência,e insiste em que as afirmações provenientes da observação estão

sobrecarregadas de teorias e são passíveis de revisão (Popper, 1972,capítulo 5). Ele sublinha que a observação e o experimento são

devidamente concebidos como intervenções ativas mais do que per-cepções passivas danatureza(Popper, 1979, Apêndice1), e destaca,

também, a importância das decisões que dependem do contextona aceitação ou rejeição de resultados de observações e experimen-

tos (Popper, 1972, p. 104-6). Ele observa que o conhecimento éum produto social, resultante da modificação do conhecimento

anterior, e, ainda, que não é estabelecido diretamente por meio deum embate com o mundo físico (Popper, 1979, p. 71). Talvez sepossa dizer que Popper atém-seà idéia "clássica" daciência atéonde

concorda com uma análoga teoria da verdade; mas, se considera-mos que seu critério da falsificabilidade especifica uma demarcaçãoabsoluta das fronteiras entre as ciências e as não-ciências ou aspseudociências, ele poderia ser interpretado como negador dadependência docontexto dealguns padrões científicos. Entretanto,temos apenas de nos voltar para Imre Lakatos, outro filósofo quetem antipatia pela sociologia do conhecimento e que se via comoelaborador das idéias de Popper, para encontrar alguém quedescarta uma teoria de correspondência da verdade (Hacking,1983, capítulo 8) e que explorou as maneiras como foram histori-

camente alterados os padrões científicos (Lakatos, 1978a). Poppere Lakatos são representantes exemplares de uma série de filósofoscontemporâneos qu e rejeitam a idéia clássica de Mulkay e tentam

defender mais satisfatoriamenteo estatuto epistemológico da ciên-cia. Conseqüentemente, ir contra esse estatuto epistemológicoexigirá muito mais do que a refutação de idéias tradicionaisdesacreditadas.

Outro argumento que se destaca nos textos dos sociólogos daciência e que trai sua caracterização precária da oposição é o queexporei a seguir (veja, por exemplo, Barnes e Bloor, 1982, p. 23;

cia. Portanto, fatores sociais extracientíficos entram no s processosqu e levam à seleção de uma entre as talvez inúmeras possíveisteorias compatíveis com a evidência. Um exemplo especialmente

claro dessa linha de argumentação encontra-se num interessantedocumentoem que David Bloor (l982) procura recuperar eaplicar

à ciência a tese de Durkheim e Mauss , de que "a classificação dascoisas reproduz a classificação do homem". Bloor emprega omodelo da rede de M ary Hesse para ilustrar a complexidade com

que se relacionam entre si as afirmações cientificas. Hesse usa aexpressão "condições de correspondência", para se referir às for-mas como as comunicações científicas sã o limitadas pela evidência

empírica, e a expressão "condições de coerência", para se referir aoutras restrições. Bloor (1982, p. 283) insiste em que é emcondições de coerência que devemos situar a entrada das relações

sociais na ciência. Ele utiliza temas encontrados no trabalho daantropóloga Mary Douglas para dizer qu e "certas leis sã o protegidas

e se tornam estáveis devido à sua pressuposta utilidade para finsde justificação, legitimação e controle".

Esta mudança - a passagemda indeterminaçãodasteorias pela

evidência para a presença de influências outras, além do conheci-mento, que têm inf luência na ciência - érápida demais e fa z muitasconcessões às explicações tradicionais da ciência a que se opõemos sociólogos. O aspecto lógico segundo o qual há uma infinida-

de de afirmações universais compatíveis com um dado conjuntofinito de relatórios de observação leva os filósofos empiristastradicionais da ciência à conclusão de que há uma infinidade de

teorias científicas compatíveis com a evidência oferecida. Natural-

mente, isso contraria totalmente as situações com que se deparana ciência real, onde oscientistas muitas vezes lutam para descobrirqualquer teoriaviável compatível com alguma evidência problemá-

tica. O argumento da indeterminação dá uma atenção insuficienteao desenvolvimento daciência. O conhecimento novo surge comoresposta a problemas que emergem com o conhecimento anterior.Seas teorias inovadoras devem ser inteligíveis, não há outra opção

116 A L A N C H A L M E R S

senão usar , modificar ou ampl iar os conceitos existentes r > o

A F A B R I CA Ç ÃO D A C I Ê N C I A 117

Jade e ao estatuto epistemológico distintivo norm almente atr ibuí-a

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analogias com outros conceitos existentes, ao mesmo tempo emque, se eles tiverem alguma utilidade, devem ao menos oferecer apromessa d e alguma possível l inha viável de investigação. A stentativas de analisar essas idéias em termos de simplicidade(Popper, 1972, capítulo 7) , coerência e progressividade (Lakatos

1974) ou grau de fertilidade (Cha lmers, 1982, capítulo 11) servemcomo indicadores d o fato de não ser possível pressupor que aindeterminação necessariamente leve à introdução de fatores so -ciais extracientíficos na ciência.

A pos ição que defendi nos capítulos anteriores deste livrocontém u m a visão da ciência qu e oferece aspectos fundamentaisde sua prática social. Os relatórios de observação e os resultadosdo experimento são produtos sociais e h u m a n o s que surgem emconseqüência d a discussão e das experiências. Co ntudo , de man ei-

ra geral, su a aceitação e, sempre qu e necessário, su a rejeição ou suatransformação podem ser compreendidas em termos da meta daciência, sem que se tenha d e recorrer a fatores sociais mais amplos.N o capítulo anterior procurei mostrar que essa era a questão nacontrovérsia em torno das tentativas de detectar as ondas gravita-cionais, e por isso ia contra a concepção sociológica mais radicalde Collins daquele episódio. Embora os resul tados da ciência nãosejam "determinados pelo mundo físico" em conseqüência dealgum confronto direto, como dir ia o empirista radical , os experi-

mentos são planejados para que o mundo físico desempenhe umpapel decisivo na aceitação ou rejeição dos resul tados. Eu já disse,especialmente no capítulo 2, que os m étodos e padrões da ciênciasão, historicamente, produtos sociais imprevisíveis e sujeitos àmuda nç a , masprocuro compensar o que sepoderia entender comoas conseqüências relativistas radicais, indicando de que maneiraessas mud anças podem ser compreendidas em termos da meta daciência, ponto que i lustrei em m inha narrativa sobre como G ali leuintroduz iu o telescópio na astronomia. Se os sociólogos da ciênciapretendem defen der a tese social do conteúdo cognitivo d a ciência

de forma a oferecer base pa ra um ceticismo em relação à objetivi-

do a el > devem fazer mais do que combater filosofias da ciênciaradicais e bastante ul trapassadas.

6.3 A s origens sociais do conhecimento científico

S e avaliamos as declarações para sujeitar conteúdo e naturezado conhecimento científico à explicação sociológica, temos de serclaros a respeito do que deve ser explicado e do que significa um aexplicação. Uma forma de construir o argumento é compreendera explicação de algum fato de conhecimento científico qu e encerrea história de como esse conhecimento foi elaborado. S e entende-m os dessa m aneira os argumentos dos sociólogos, estarei prepara -

do para admitir que o conteúdo do conhecimento científico estásujeito a uma explicação sociológica. Freqüentemen te, os con ceitose métodos empregados para o bem da ciência têm suas origens nomundo socia l fora d a atividade científica numa concepção maisrestrita. Uma explicação sociológica das origens do conhecimentocientífico mu itas vezes está co rreta.

O caminho que levou D arwin à teoria da evolução é um bomexemplo. A visão darwin iana da seleção natural foi bastante in-f luenciada pela idéia de M althus de que o taman ho das populações

humanas tem um limite natural , porque um aumento i l imitado aslevaria a esgotar o suprimento al imentar . S ua tese foi uma contri-buição para as d iscussões sociais da época, que, entre outras coisas,estavam ligadas ao problema da pobreza. Os argumentos deDarwin para a t ransformação das espécies e para a maneira comoocorria essa transmutação eram influenciados pelo conhecimentodas técnicas dos criadores profissionais. Não há dúvida de que umaexplicação correta do surgimento da teoria da evolução até amatur idade e além d a teoria de Darwin no s leva a ultrapassar asfronteiras d o discurso científico, abrangend o fatores sociais maisamplos (Young, 1969, 1971).

118 A L A N CHALMERS

Voltando à física, um segundo exemplo vem da teoria cinética

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 119

pretar e avaliar a teoria de Darwin desse ponto de vista, mas, além

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dos gases, apresentada por James Clerk Maxwell no século XIX.A s técnicas estatísticas qu e Maxwell empregou para deduzir aspropriedades macroscópicas dos gases dos movimentos aleatóriosdas moléculas constituintes valiam-se de técnicas criadas por teóri-cos sociais para tratar das regularidades em fenômenos sociais,

como as taxas de natalidade ou as de crime (Porter, 1981).S e interpretar um componente do conhecimento científico é

dar uma explicação plenamente satisfatória de como ele surgiu,podemos desde já admitir qu e muitos fatores normalmente trata-

dos por sociólogos serão pertinentes - e nesse caso, tambémpodemos dizer que existe realmente um papel para uma sociologiado conhecimento científico. Entretanto, há um outro gênero de

"explicação" do conhecimento científico. Podemos procurar expli-ca r e avaliar como e até que ponto um exemplo de conhecimento

científico funciona como tal. Pode-se levar emconta até que pontoele realmente contribui para a meta da ciência. Assim, voltando aoexemplo de Darwin, podemos procurar identificar a descrição de

seleção e evolução presente nos textos do cientista. Podemoslevantar questões sobre sua coerência interna e seus relacionamen-tos com as evidências, e compará-las com as teorias rivais nesseaspecto. Tais questões, além de legítimas, são precisamente as

significativas quando estamos interessados no estatuto epistemoló-gico da teoria de Darwin. Mais do que isso, as respostas para elasindependem de reflexões sobre as origens sociais das idéias deDarwin. A própria teoria darwiniana não está acima da crítica, deum ponto de vista epistemológico. Em especial, os próprios textosde Darwin não deixam suficientemente claro o que é exatamente

o mecanismo da seleção e como este mecanismo postulado foiestabelecido. Esse é um ponto especialmente importante, porquena época de Darwin em geral aceitou-se ó fato de que a evoluçãoocorre e ocorreu. O que se discutia era a explicação correta domecanismo da evolução (Young, 1971).

No capítulo 3 tentei fazer uma cautelosa articulação da meta

da ciência moderna. Meu argumento é que tem cabimento inter-

disso, essa meta era na realidade adotada e defendida no métodousado pela biologia na época. A meta dos teóricos evolucionistasda época era apresentar uma explicação satisfatória do mecanismoda evolução, embora eles também participassem de outras ativida-des com metas diferentes, como a religião e a política. As questões

sobre o que há de satisfatório na teoria deDarwin como explicaçãodo mecanismo da evolução distinguem-se das questões sobre suaorigem ou os diversos usos ideológicos feitos dela. Se os sociólogosdo conhecimento preferem argumentar que uma explicação decomo a teoria funciona enquanto conhecimento e como elacontribuipara ameta daciência encerra outros fatores sociais alémdos internos da própria ciência, tenho de discordar deles.

A posição que adoto aqui pode ser tratada como uma versãod a distinção tradicional entre o chamado modo de descoberta e o

modo dejustificação. Segundo essa distinção, amaneira comoumateoria vem a ser proposta é um tipo de questão, que exige umaresposta histórica, ao passo que a forma pela qual ela é justificadacomo conhecimento satisfatório é outra espécie de questão, queexige uma resposta epistemológica. Não tenho nenhuma objeção

a fazer se minha posição for assim caracterizada, desde que seadmita uma série de ressalvas. Em primeiro lugar, o método dejustificação é para mim delimitado em termos de uma explicaçãoda meta da ciência, e não por referência a uma definição específica

do método ou racionalidade científica. Em segundo lugar, háalgumas questões históricas pertinentesaométodo de justificação,

como Lakatos e seus seguidores já enfatizaram (Musgrave, 1974a;

Nickles, 1987). A necessidade de uma teoria constituir um avançoem relação à teoria questionada, e a importância de previsõesinovadoras nesse contexto, introduz um elemento histórico nodomínio da justificação. Em terceiro lugar, não se deve considerarque meu argumento de que a meta daciência e as correspondentesquestões epistemológicas podem se r claramente distinguidas deoutras metas e outros gêneros implique que a produção do

conhecimento científico possa ser isolada deoutras atividades, algo

120A L A N C H A L M E RS

que retomarei no capítulo 8. Em quarto lugar, a distinção entre as

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 121

Um exemplo é abase que Poisson inadvertidamente proporcionou

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questões da origem e a s questões do mérito científico nã o deve se rconsiderada algo qu e desvalorize as investigações da primeira. Ainovação científicae o avanço de uma ciência especializada podemacontecer po r meio de alguma informação ou fato de fora da es-pecialidade, que tenha importantes implicações, porexemplo, para

a organização institucional d a ciência e para a educação científica.

6.4 A ênfase inadequada na crença

A discussão entre os sociólogos do conhecimento científicoeseus oponentes freqüentemente parte do pressuposto de que sãoas crenças dos cientistas que devem ser explicadas. Laudan (1981,p. 173) diz, po r exemplo, que os sociólogos a que se opõe afirmam

poder proporcionar "uma explicação sociológica da razão por queos cientistas adotam praticamente todas as crenças sobre o mundoque eles mesmos criam".

Em outro texto já apontei (Chalmers, 1982, capítulos 10 e 11)por que me coloco ao lado de Popper, e considero também oenfoque na s crenças e convicções pessoais algo bastante insatisfa-tório para compreender a natureza da ciência e seu progresso.Raramente estamos em posição de saber alguma coisa sobre ograude convicção que um cientista tem da teoria em que trabalha, nem

precisamos conhecê-lo, quando estamos preocupados emcaracte-rizar ou avaliar o caráter científico de seu trabalho. Não tenhonenhuma idéia do quanto a convicção de Weber a respeito das

ondas gravitacionais degrande fluxo foi influenciada pela pesquisadescrita no capítulo anterior. Minha caracterização e avaliaçãoda-quele episódio baseiam-se ou recaem sobre as ponderações feitas,os argumentos oferecidos e os experimentos realizados, mais doque em ponderações sobre a crença dos cientistas envolvidos. Nãoé incomum os cientistas trabalharem em cima de teorias de quenão estão plenamente convencidos para rejeitá-las com fundamen-

tação e, com isso, às vezes contribuírem para seu desenvolvimento.

à teoria ondulatória da luz, de Fresnel, no século XIX.A tentativade Poisson d e desacreditar a teoria, demonstrando que ela teria a"absurda" conseqüência de que um ponto brilhante deveria ser

observado no centro do lado sombrio de um disco opaco devida-mente iluminado, deu para trás, quando o ponto brilhante foi

observado no experimento. Dados alguns dos aspectos problemá-ticos da mecânica quântica contemporânea, não estou muito certodo que significaria uma crença a respeito dela, mas tenho umarazoável idéia do que significa desenvolvê-la, compará-la com amecânica clássicaem diversos aspectos e testar experimentalmentesuas conseqüências.

A insuficiênciade uma atenção dada às crenças dos cientistasquando se tenta caracterizara ciência te m recebido muito apoio deum a socióloga contemporânea da ciência. Karin Knorr-Cetina

(1981, p. 8), com base em seus estudos sobre o trabalho emlaboratório, insiste em que émuito insatisfatório pensar no desen-volvimento da ciência em termos de formação d as crenças ouconvicções dos cientistas. Diz ela que um resultado científico éaceito não porque os cientistas preferem acreditar nele, mas emfunção de haver sido incorporado ao "processo constante deprodução da pesquisa", de modo qu e "chamá-lo de processo deformação de opinião parece provocar uma série de conotaçõesequivocadas".

Enquanto continuarmos identificando o conhecimento cientí-

fico com as crenças dos cientistas, inevitavelmente estaremosforçados a adotar um a versão da discussão tradicional sobre oquanto se deve atribuir essas crenças a razões ou causas. Segundoo ponto devista tradicional, ascrenças são racionais atéonde sãoconstituídas à luz de boas razões, e irracionais enquanto sã o produ-zidas por causas psicológicas e sociológicas. Laudan (1977, p. 198)

adere a uma determinada versão desta distinção em sua crítica àsociologia d a ciência:

O intelectual historiador do conhecimento procurará explicar por que

alguém acreditaria em alguma teoria conversando sobre os argumentos e

A L A N C H A L M E R S

evidências a favor ou contra ela e as oponentes. O sociólogo cognitivo, por

outro lado, geralmente tentará explicar por que se deveria acreditar numa

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 123

mesmo quando aprendemos de maneira convincente que cada pessoa ougrupo de pessoas acredita em um conjunto de proposições, não temos uma

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teoria em função das circunstâncias sociais, econômicas, psicológicas einstitucionais em que se encontrava o agente. Ambos tentam resolver omesmo problema (ou seja: a convicção de algum agente histórico), aindaque seus métodos para solucioná-lo sejam tão diferentes quanto são quase

incomensuráveis.

A visão de L a u d a n é que o conhecimento cognitivo da boa

ciência deveria serexplicado recorrendo-se a razões e que as causas

sociológicas só têm de ser lembradas quando a ciência seextravia.Ahistória social ou "externa" daciência é subserviente em relação

à história intelectual e "interna" da ciência (Laudan, 1977, p. 208).

Parece-me que, ao identificaruma teoria científicacom acrençaou convicção de algum agente histórico, Laudan escolheu um

terreno muito impróprio para defender seu ponto de vista. Como

já mostrei acima, raramente estamos em posição de avaliaro quesã o realmente as convicções do s cientistas e, sejam lá quais foremelas, estou certo de que essas convicções e sua intensidade serãoinfluenciadas por uma enorme série de fatores psicológicos e

sociológicos, além de argumentos e razões. Num dos principaisexemplos de Laudan para um a convicção racional (2 + 2 = 4) , essacrença será inf luenciada at é pela maneira como fo i aprendida epela ironia a qualquer tentativa de negá-la. Acho muitíssimoimplausível a idéia, sugerida por La uda n , de que William Charle-ton talvez tivesse aceitado a filosofia mecânica por motivos pura-

mente racionais.

Hábastante campo para um estudo sociológico das crenças dos

cientistas e sua ligação com coisas tais como a classe de origem.Não obstante, tendo em mente a distinção entre o conhecimentocientífico e aconvicção pessoal, tais estudos em si não constituemuma explicação sociológica do conteúdo cognitivo daciência. Restaaí o problema do relacionamento entre as crenças dos cientistas eo conteúdo cognitivo do conhecimento científico que eles produ-ze m e desenvolvem. Mais uma vez, minha posição tem o apoio de

Knorr-Cetina (l983, p. 116):

resposta para a pergunta see como essas proposições compreendem fatores

sociais, ne m se ou como os fatores sociais influenciam a sobrevivência eaceitação das afirmações de conhecimento. Em outras palavras, a questãoepistemológica de como se constitui e é aceito isto a que chamamosconhecimento não está resolvida ...

Até agora, a discussão nos levou a reconhecer que há campopara uma análise sociológica das origens do conhecimento cientí-fico,das convicções dos cientistas e dos aspectos "não-cognitivos"da ciência. São análises sérias, que podem ser importantes. Con-tudo, elas não chegam a oferecer uma explicação sociológica doconteúdo cognitivo da ciência, no sentido de demonstrar comocertos exemplos de conhecimento científico funcionam comoconhecimento. Resta fazermos um a avaliação da posição tradicio-

nal que permite uma explicação sociológica da má ciência, mas nãoda boa.

6.5 A explicação sociológica restrita à má ciência

É comum dizer que uma explicação sociológica do conteúdocognitivo da ciência só tem cabimento nos casos em que a ciência

se extraviou. Segundo essa visão, quando a ciência avança, se u

progresso é explicável em termos de uma dinâmica "racional"própria, de modo que é desnecessário haver uma explicação socio-lógica qu e recorra a influências externas. Recentemente, Laudan eLakatos nos deram versões diferentes dessa afirmação. Segundo oprimeiro, "a sociologia do conhecimento poderá intervir paraexplicar asconvicções apenas eunicamente seessas convicções nãopuderem ser explicadas em termos de seus méritos racionais", demodo que "a aplicaçãoda sociologia cognitiva aquestões históricasdeve aguardaros resultados preliminaresda aplicaçãodos métodosda história intelectual a essas questões" (Laudan, 1977, p. 202 e

208). O segundo diz que "o aspecto racional do desenvolvimento

124A L A N C H A L M E R S

científico é plenam ente explicado pela lógica pessoal da descoberta

A F A B R I C A Ç Ã O D A C I Ê N C I A 125

atividade com metas específicas, quando suas ações contribuem

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científica", qu e talvez tenha d e ser complementada por explicaçãoexterna apenas para esclarecer "os fatores residuais não-racionais"(Lakatos, 1978, p. 118).

David Bloor é apenas um entre muitos sociólogos contempo-

râneos que veementemente discordam do que ele considera umatentativa injustificada de restringir o campo da explicação socioló-gica. Bloor (1976, p. 6-7) caracteriza a atitude a que se opõe co mproposições d o tipo "nada ob riga as pessoas a fazerem coisas certas,mas algo faz com que se equivoquem", de onde "o s aspectosracionais da ciência se sustentam porque são autônomos e seexplicam por si. As explicações empíricas ou sociológicas limitam-se ao irracional". Acho inútil adiscussão deBloor, porque éradical,pouco indulgente e bastante injustificada a maneira como apresen-ta a postura de seus oponentes.A seguir, exponho a defesa de uma

versão da concepção tradicional, que diz que certos gêneros deexplicação sociológica do conteúdo cognitivo da ciência não têmcabimento. Não obstante, a minha tese certamente não tem seme-lhança com os exageros de Bloor , nem é idêntica àsdefendidas por

L a u d a n e Lakatos.

A analogia seguinte ajudará a ilustrar a minha posição. Supo-nhamos que está havendo uma partida de futebol; imaginemos quea bola aterrissa aos pés de um jogador que está bem na frente da

rede do campo oposto, e o goleiro não está ali. N esse contexto,

não consideraríamos necessária uma explicação para a ação dojogador, que chuta a bola para dentro da rede - ou melhor ,consideraríamos óbvia uma explicação "interna", dadas as regrasdo futebol. Por outro lado, se o jogador, em vez de chutar a bola efazer um gol, tirasse do bolso uma faca e um garfo e tentassecomê-la, ele estaria fazendo algo desprovido de sentido no contextodo jogo. Seria necessário uma explicação externa, talvez recorren-do-se a informações sobre a saúde mental do jogador. Natu ralmen-te, esse é um exemplo radical, mas ele ilustra a maneira por ondese pode extrair umaverdadeira distinçãoentre a explicação internae a externa. Num contexto em que os atores se empenham numa

para essa meta, não é preciso haver nenhuma explicação queexamine mais do que a natureza da atividade. Isso não quer dizerqu e o futebol seja alguma atividade de essência divina, não-sujeitaa qualquer tipo de explicação. Pode-se levantar uma série de ou trosquestionamentos sobre as origens do jogo, as funç ões psicológicase sociais a que ele atende, a economia de sua profissionalização -e assim por diante. Certamentehá contextos em que épreciso umaexplicação sociológica do futebol. Noentanto, num contexto ondeestão implícitos o jogo e suas regras, as ações dos jogadores sãocompreendidas internamente de modo bastante satisfatório, amenos que não estejam de acordo com os objetivos do jogo.

Pode-se usar uma semelhante argumentação com respeito àsatitudes radicais visadas por B loor em sua defesa de uma aborda-ge m simétrica em sua sociologia do conhecimento. A lgum asopiniões expressas por W. Hamlyn contêm a assimetria a queBloor temaversão. Segundo Hamlyn, "asmaneiras como podemosperceber alguma coisa podem ser divididas em duas classes: as

certas e as erradas. Uma forma de perceber algo - a maneira certa- pode ser distinguida de todas as outras". A maneira certa "nãodeixa espaço para a explicação científica, já que não é exigidanenhuma" . Seduas l inhas de igual comprimento sãovistas comolinhas de igual comprimento, "nada fa z com que elas pareçam te rigual comprimento", porque elas "são assim mesmo" (B loor, 1981,

p. 205). Posso concordar quando Bloor rejeita essas afirmações deHamlyn até o ponto em que elas negam que a percepção humanadeva ter alguma explicação. É perfeitamente legítimo perguntarcomo funciona a percepção dos seres hum anos, tanto qua ndo elafunc iona bem, quan to quando nos ilude. Contudo, não é muitodifícil modificar a posição de Hamlyn de maneira a preservar u macerta assimetria e ao mesmo tempo evitar a idéia de que, de certamaneira, a percepção correta é sua própria explicação. Numcontexto em que tacitamente se concorda com o funcionamentodo mecanismo da percepção, não será preciso recorrer a nenhuma

explicação especial para esclarecer por que as pessoas vêem o que

126A L A N CHALMERS

estão vendo. Nesse contexto, se Macbeth diz que vê um punhal àsu a frente, não é preciso nenhuma explicação quando há um

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 127

já mencionei, e isso será mais detalhado no capítulo 8, longe deinsignif icantes, essas questões encerram os problemas sociais e

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punhal, masé necessário haver uma explicação "externa" - talvez

algo sobre seuestado psicológico - se nãohouver nenhum punhal

ali. Com certeza há aqui uma assimetria, embora Hamlyn não atenha caracterizado devidamente.

Embora as analogias entre a ciência, por um lado, e o futebole a percepção humana, por outro, tenham seus limites, elas servempara ilustrar a maneira como se deve entender e explicar interna-mente a ciência competente, em relação à meta e à característica daatividade. Questões como por que a teoria ondulatória da luz

superou a teoria das partículas, por que a tese de Blondlot sobreos raios N e a de Weber sobre as ondas gravitacionais de grandefluxo foram rejeitadas pela comunidade científica e como e por queos resultados da pesquisa de Hertz sobre a eletricidade foram

incorporados tão rapidamente à física, são respondidas de modomais satisfatório internamente em relação à meta da ciência, que éproduzir conhecimento geral capaz de tratar da natureza do mundode maneira superior, mais competente e mais ampla do que oconhecimento anterior. Buscar uma resposta externa para essasquestões na classe social, na nacionalidade de origem e outrascaracterísticasdoscientistas éalgo tãoinadequado quanto procuraruma explicação semelhante para o motivo pelo qual um jogadorse aproveita do descuido do goleiro. Os tradicionalistas estãobastante corretos ao insistir em que os méritos de uma teoria devamser avaliados independentemente da psicologia, da classe social e

de outras características dos que a propõem.

Quando reivindico um domínio legítimo para a história inter-na da ciência e para a explicação e avaliação interna e não-socioló-

gica, não estou obrigado a negar qualquer outra explicação para aciência, nem a considerar a ciência sua própria explicação, queavança segundo um modo de racionalidade divino e eterno. Aexistência e a extensão da atividade científica em nossa sociedadee seus inter-relacionamentoscomoutras atividades sociais, políticas

e econômicas sãoquestões que exigem análise e explicação. Como

políticos mais urgentes de nossa época. Os métodos e os padrõesimplícitos na . atividade científica estão sujeitos à mudança, equalquer mudança exige explicação. Entretanto, num contextoonde a meta da ciência é adotada, essas explicações podem antes

ser explicadas internamente em relação às descobertas e desenvol-vimentos teóricos e práticos, e não externamente, em relação ainteresses de classee afins. Naturalmente, sequalquer pressupostoque permita mudança em métodos e padrões e negue uma racio-nalidade universal e eterna éconsiderado umaproposição socioló-gica, devo considerar-me um sociólogo da ciência. Nessa circuns-tância, o que me distingue dos sociólogos mais radicais é o quanto

insisto em que a ciência, seus métodos e técnicas de progressopodem e devem ser compreendidos internamente em função desu a meta geral de produzir conhecimento, mais do que em funçãode outras finalidades ou interesses. Isso não significa adotar oponto de vista ingênuo de que a ciência pode ser uma atividadepraticada isoladamente em relação a outros interesses, nem queesses outros interesses jamais devem ou deveriam ser obstáculospara que se atinja o objetivo da ciência. Apenas insisto em que épossível e importante fazer a distinção entre a meta de produzir oconhecimento científico e outras metas, e que essa distinção éessencial para uma explicação e uma avaliação satisfatória daciência.

No próximo capítulo tentarei tornar um pouco mais concretasas reflexões acima, um tanto quanto abstratas, mediante um exame

cuidadoso de dois estudos detalhados em que se tenta explicarsociologicamente o conteúdo cognitivo da ciência.

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C A P Í T U L O 7

DOIS ESTUDOS DE CASO SOCIOLÓGICOS

7.1 A teoria estatística e os interesses sociais

O primeiro aspecto qu e analiso é a investigação sobre ainf luência dos interesses sociais sobre o desenvolvimento da teoriaestatística no final do século XIX, um estudo de Donald Mackenzie(1978 e 1981), citado freqüentemente como exemplar (Barnes eMackenzie, 1979; Shapin, 1982). Mackenzie defende um a versãomuito forte da sociologia do conhecimento, observando qu e "nin-

guém duvida qu e haja algum relacionamento entre a ciência e ocontexto social em que ela se desenvolve" (1981, p. 2). Depois, elefa z a distinção entre um a versão forte e uma versão frágil desserelacionamento. Segundo a primeira, as influências sociais podeminf luenciar coisas como o ritmo do progresso da ciência e a direçãoem que o apoio social é canalizado. No q ue s e refere à influênciano conteúdo da ciência, segundo a versão fraca da sociologia daciência, as influências sociais só distorcem a ciência, desviando-ade seu caminho. Onde as influências sociais interpenetram se uconteúdo, o resultado é a má ciência. Segundo a versão forte d asociologia da ciência, as influências sociais podem afetar o conteú-

130 A L A N C H A L M E R S A F A B R I C A Ç ÃO D E CIÊNCIA 131

do da boa ciência. Mackenzie esforça-se para exemplificar aversãofortemostrando como os interesses sociais afetaram o conteúdo da

A s teses substantivas da eugenia a respeito da hereditariedadee do mérito social eram normalmente ampliadas por um programa

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estatística matemática na Inglaterra, na virada do século.

Os interesses sociais de que fala Mackenzie em sua explicaçãosociológica são os de profissionais da classe média na época.Embora Mackenzie nã o afirme utilizar a idéia de classe em sentidotécnico marxista ou qualquer outro, a natureza e a participação daclasse média profissional é razoavelmente clara. E la consiste empessoas que trabalham por um salário, e não nas que vivem do

capital, mas se distinguem do proletariado porque seu trabalho éuma atividade mental e não manual. A entrada nessa classe se dá

por meio da educação e da instrução, e não pelo nascimento,riqueza ou posição aristocrática recebidas por herança. Esses pro-fissionais eram os guardiães de áreas de conhecimento eespeciali-zação e seu poder derivava de acordo com a importância do papel

social que esse conhecimento e especialização desempenhavam.Era de interesse da classe média profissionalizada maximizar aimportância desse papel, mantendo ao mesmo tempo rigorosocontrole sobre seus participantes.

A eugenia, desenvolvida na virada do século na Inglaterra, fo iutilizada para atenderaos interesses daclasse profissional. Segundoessa teoria social, o "mérito civil", exatamente como a "habilidademental", era uma característica inata, fixa, herdada de cada pessoa.Somente os que possuíam essa característica inata em alto grauconseguiam passar pelas exigências de um aprendizado profissio-nal. Desse modo, a classe profissionalizada podia se r consideradanaturalmente superior,não apenasemrelaçãoàclasse operária, quepoderia servista como trabalhadora manual, devido à ausência dehabilidade mental de seus membros, mas também em relação àclasse aristocrática e às comunidades empresariais, já que a aquisi-çã o de riqueza ou herança de uma linhagem aristocrática não eranenhuma garantia de habilidade mental. Interpretava-se uma hie-rarquia social com os profissionais mais hábeis no topo como uma

hierarquia natural, do ponto de vista da eugenia.

social planejado para melhorar a composição genética d a raçahumana. Por exemplo, foram propostas diversas medidas paradesestimular ou evitar a natalidade entre os paupérrimos, oscriminosos e os deficientes mentais, e foram propostos prêmiospara estimular um a elevada taxa de natalidade na classe profissio-nal. O programa da eugenia servia para melhorar a força dosprofissionais que possuíam o conhecimento dos processos consi-derados naturais que estavam subordinados aosprocessos sociais.

Vamos admitir que, sujeita às ressalvas sobre as quais o próprioMackenzie chama a atenção (1981, p. 46-50), a eugenia proporcio-nasse uma oportunidade para a classe média profissionalizadaaperfeiçoar seus interesses. O próximo passo na argumentação deMackenzie é a ligação que há entre a eugenia e o desenvolvimentoda estatística. A articulação e a documentação da herança pressu-posta na eugenia exigia o desenvolvimento de boas técnicas esta-tísticas. É pela análise desses fatos em poder dos que propunhama eugenia, como Francis Galton e Karl Pearson, qu e Mackenzievisa oferecer uma tese forte para a determinação social da ciência.S eu estudo pretende mostrar como os interesses da classe médiaprofissionalizada entraram no próprio conteúdo da estatísticamatemática. Vejamos at é onde ele consegue isso, concentrando-nos na obra de Galton e Pearson.

Francis Galton passou a vida entre a elite inglesa. Ele mesmoconta qu e suas primeiras reflexões sobre a hereditariedade foraminf luenciadas pelos elos de parentesco que havia notado entre os

intelectuais em Cambridge. Convenceu-se de que os laços de pa-rentesco entre os que tinham excepcional habilidade mental erammais amplos do que seria de esperar se a habilidade mentalestivesse distribuída de maneira mais aleatória. A s pr imeiras idéiasde Galton sobre a hereditariedade co m toda certeza originaram-seem certos aspectos de sua experiência social. O contexto teóricoem que ele desenvolveu suas teorias sobre a hereditariedade era o

do naturalismo, uma visão que floresceradepois de Darwin e que

132A L A N C H A L M E R S

er a uma área cuja influência os cientis tas profissionais lutavam par aretirar da autoridade religiosa. Em seus textos, Galton claramente

A F A B R I C A Ç Ã O D E C I Ê N C I A 133

Pearson deugrande contribuição à estatística quantitativa - elerefinou as técnicas de Galton e estendeu-as às distribuições multí-

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expressou a necessidade de substituir a autoridade religiosa por um"sacerdócio científico" (Mackenzie, 1981, p. 55).

Galton pôde extrair do erro existente a teoria p ara as técnicasestatísticas necessárias para suas preocupações eugênicas. Com-

preendia-se que os erros numa m edição flutuassem estatisticamenteem torno de um valor mediano, de acordo com o que hojechamaríamos de distribuição normal. Galton adaptou essas técni-cas para tratar da variabilidade de características dos seres hum a-nos, como a altura, entre os membros de uma população. Noentanto, mais do que simplesmente ajustar a teoria do erro, Galtonteve de ampliá-la; nisso ele deu contribuições fund amentais para aestatística quantitativa. P ara a explicação qu antitativa da desc endên-cia qu e buscava, Galton teve de aprender a tratar das variáveis

dependentes da estatística. Ele precisava especialmente tratar dorelacionamento qu e havia entre a distribuição de uma variável(como a altura) em gerações sucessivas. Foi nesse contexto queGalton desenvolveu os conceitos qu e hoje chamamos de regressãoe correlação em distribuições normais de duas variáveis.

A eugenia de Galton e sua estatística foram retomadas edesenvolvidas por Pearson. Este último era realmente um membroda classe média intelectual profissionalizad a. Ele abraçava um tipode socialismo semelhante ao dos fabiano s, que visava reforma s, em

que o poder baseado na riqueza da burguesia seria substituído pelopoder baseado no conhecimento e nas habilidades mentais . Aeugenia cabia muito bem nesse programa, como já vimos, ePearson considerava eugenia e socialismo inseparáveis. Comoprofessor de matemática aplicada no University College de L o n -dres, emcolaboração com W. F. R.Weldon, professor dezoologia,Pearson procurou uma sólida base matemática para a teoriaevolucionária de Darwin. Foi instalado um laboratório biométricoe um de eugenia, e lançada um a revista especializada, a Biometrika-Mais tarde, Pearson herdou de Galton a cátedra de professor deeugenia, financiada por dinheiro legado por este.

variadas. Mackenzie (1981, capí tulo 7; 1978) ilustra o quanto aspreocupações de Pearson com a eugenia e os interesses sociais aque ela servia penetraram no âmago de sua obra sobre a técnicaestatística, pela análise de uma discussão entre Pearson e um deseus antigos discípulos, Gill Yule. Era uma discussão sobre amaneira correta de medir as associações entre os dados relaciona-dos ao mundo biológico, especialmente as características dos sereshumanos . Para as variáveis cont ínuas , mensuráveis e normalmentedis tribuídas, como a altura, podiam-se construir coeficientes decorrelação de um modo que na época era uma via direta eindiscutível. O problema estava nos dados relacionados a fenôme-nos que não eram mensuráveis num a escala contínua, como a cordos olhos e a inteligência. Pearson desenvolveu medidas paraassociação entre esses dad os, combase na hipótese de que houvessealguns fatores variáveis subjacentes, distribuídos de m aneira n or-m al ou um tanto regular. Yule considerava insegura essa hipótesee absurda a hipótese d e Pearson relativa à série de variáveis isoladasem que estava particularmente interessado (por exemplo, mortoou vivo, inoculado ou não-inoculado). Yule criou então medidaspragmáticas de associação para duas variáveis arranjadas lado alado em dois quadro s (por exemplo, vacinado ou não, vivo ou não)que se ajustavam a suas necessidades práticas. Pearson consideravaas medid as de Yule teoricamente insignificantes e mostrou que asmedidas reais do grau de associação variavam, conforme o númerode medidas d iferentes empregadas. Yule respondeu que, se depa-

rasse com a mesma medida no decorrer de uma determinadainvestigação, suas medida s correspondiam às necessidades práticaspara qu e haviam sido planejadas e não deixavam contradições.Mackenzie explica essa divergência de pontos de vista em termosdos interesses em jogo. O empenho de Pearson em suas medidasé atribuíd o aos t ipos de correlações encerradas em su as hipóteseseugênicas, ao passo que o de Yule é atribuído a seus interesses maispragmáticos relativos à melhoria dos problemas sociais entre ospobres. Mackenzie não procu ra explicar o ponto de vista deYuleern termos de interesses sociais mais amplos, m as ins inua que a

Preocupação com a eliminação das causas de inquietação entre os

134 A L A N C H A L M E RS

pobres correspondia ao s interesses de uma classe em decadência aque a família de Yule pertencia, de maneira que temos "a possibi-lidadede que interesses sociais específicos sustentassema estatística

A FABRICAÇÃO D E CIÊNCIA 135

compatível com a tese de que a estatística incorporasse interessesde classes profissionais num sentido mais rigoroso.

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não-eugênica de Yule e dos que o apoiavam" (Mackenzie, 1981.p . 182).

O parágrafo acima ilustra o tipo de argumento encontrado nostextos d e Mackenzie, embora naturalmente eu reconheça te r omi-

tido muitos detalhes interessantes. Acredito que a explicação deMackenzie para a entrada dos interesses sociais na atividadecientífica exemplifica um a versão fraca da explicação sociológica, enão uma versão forte, que ele visa consolidar. E m especial,

Mackenzie não mostra que os interesses sociais penetram noconteúdo da estatística matemática com força suficiente para darapoio a sua argumentação (veja Yearley, 1982; Woolgar, 1981).

Embora seja verdade que ascontribuiçõesdeGalton e Pearson

para a estatística tenham aparecido no contexto de investigaçõessobre a hereditariedadecom implicações na eugenia, esses avançostiveram uma aplicação bastante generalizada. O próprio Galton

realizou pesquisas estatísticas sobre o peso das sementes de ervilha

e a estatura dos seres humanos, por exemplo, nenhuma das quaistinha pertinência direta para a eugenia. Em relação a algumas das

inovações de Pearson, Mackenzie (1981, p. 90) observa que suasdefinições "eram na verdade gerais, mas está claro que o homem

era o organismo a que elas basicamente tencionavam aplicar-se".Isso implica que os interesses sociais estariam presentes nas

intenções de Pearson, mais do que a própria estatística. Mackenzieadmite que muitos foram trabalhar com Pearson para aprender

coisas que poderiam aplicar em áreas distantes da eugenia. W. S.Gosset, por exemplo, aplicou os métodos de correlação parcial emúltipla desenvolvidos na escola d e Pearson para melhorar astécnicas da fabricação da cerveja, aumentando assim a fortuna daArthur Guinness and Son, para quem trabalhava (Mackenzie,1981, p. 111-3). O fato de ter a estatística utilidade para a eugeniae por isso atender aosinteresses da classe média profissionalizada,podendo também atender aos interesses da burguesia, não é

Se passamos daestatística matemática para aeugenia, para cujo

desenvolvimento fo i ut i l izada, é possível identificar a presença deinteresses sociais no conteúdo desta última. Muitos dos pressupos-

to s essenciais d a eugenia tinham pouca justificação quando avalia-dos do ponto de vista da produção de conhecimento, mesmo

quando eram vistos no contexto mais restrito da teoria da heredi-

tariedade e não no contexto mais amplo de um programa social.A idéia de que os seres humanos possuíssem uma inerentecaracterística de "mérito cívico" e que essa característica fossedistribuída normal ou regularmente de alguma forma er a simples-mente pressuposta e não questionada. As evidências a que serecorreu para dar apoio aos pressupostos da eugenia - como aobservação de que em geral os filhos da elite intelectual tendiam

por suaveza sermembros desta elite - poderiam estar diretamente

sujeitas a uma explicação do meio social. Contudo, houve poucaou nenhuma pesquisa para fazer a discriminação entre essas

explicações conflitantes. Não tenho a menor dúvida de que grande

parte do conteúdo da eugenia deve ser explicado com relação aosinteresses sociais a que atendia, em oposição ao quanto funcionavacomo conhecimento. Não obstante, essa é uma explicação socialda "má ciência" - que corresponde à explicação sociológica fraca,oposta à forte.

Mesmo que eu esteja correto ao negar que o conteúdo da

estatística matemática nã o está suficientemente explicado recorren-do-se aos interesses sociais mais amplos, há muito nessa atividade

que justifica uma explicação sociológica; Mackenzie proporcionavaliosas contribuições nessa direção. Certamente é correto dizerqu e uma explicação das causas dos avanços na estatística nomomento em que estes aconteceram e do quanto essa atividade

obteve apoio social e base institucional está muito associada àeugenia e ao quanto esta serviu ao s interesses da classe médiaprofissionalizada da época. N ã o é fácil especificar a forma precisaque as explicações sociológicas assumiriam e não acho que Mac-

136A L A N C H A L M E R S A FA B RIC A Ç Ã O DE C I Ê N C I A 137

kenzie tenha conseguido esclarecer essa questão. E le rejeita muitoclaramente a idéia de que as suas explicações sociológicas tencio-

análise da institucionalização da ciência, a análise de Mackenziecorresponde melhor a suas afirmações não-individualis tas .

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nam explicar a psicologia ou as motivações das pessoas e rejeitauma visão determinista , segundo a qual as idéias de uma pessoasão causadas por seu histórico social (Mackenzie, 1981, p. 92).Mackenzie nesse ponto discorda da caracterização da explicação

sociológica utilizada por L a u d a n em sua crítica da sociologia doconhecimento, onde ele diz:

qualquer explicação da sociologia cognitiva deve, no mínimo, af i rmar um

relacionamento causai entre um a certa convicção x d e algum pensador y ea situação social z de y. Ela estará fazendo isso (se é que as explicações dasociologia sã o "científicas" em algum sentido) ao recorrer a uma lei geralque diz que todos (ou a maioria dos) que acreditam na si tuação do tipo zadotam as convicções do t ipo x. (Laudan, 1977, p. 217)

A s explicações que se adaptam a esse padrão nã o apenasinexistem na sociologia, como em geral também inexistem emqualquer outra ciência. (Se as folhas de outono caem no chão,podemos recorrer àgravidade para explicar por quê. Contudo, nem

todas as folhas caem no chão. Muitas das folhas das árvores dom eu j a rd im sã o levadas para o telhado e entopem as minhascalhas.) E tem mais: a discussão no capí tulo anterior mostra porqu e considero insatisfatória a atenção qu e L a u d a n dá às convicçõespessoais, ponto com o qual M ackenzie parece às vezes concordar,m as se m nenhuma congruência.

Mackenzie deixa de apresentar uma caracterização geral satis-fatória da forma de sua explicação sociológica. Ele nos d iz que suaanálise social indica um a "correspondência" entre convicções einteresses sociais (Mackenzie, 1981, p. 92). Ele declara, ainda, qu e"nós podemos ... algumas vezes discutir, proveitosamente, covic-ções ind ividuais co m perspectivas sociais (Mackenzie, 1981, p. 73).Contudo, essas observações podem ser interpretadas no sentidofraco e não são boas caracterizações de um programa forte na

sociologia do conhecimento. Em outro texto, que encerra uma

A credito que a análise que M ackenzie fa z dos interesses sociaisligados ao desenvolvimento da estatística na Inglaterra entre 1865e 1930 estaria melhor se colocada da maneira que exponho a

seguir. Em primeiro lugar, a nossa análise sociológica deveria

procura r entender a s ituação social de maneira tal que se identifi-cassem os diversos grupo s ou classes sociais e seus interesses. N esseponto, não tenho nada de especial a discutir sobre a maneira comoMackenzie identifica a classe média profissionalizada e seus inte-resses. Feito isso, pode-se identificar as maneiras como a eugeniaproporcionou oportunidades que poderiam ser exploradas nointeresse dessa classe. Uma vez que também se admite que odesenvolvimento da eugenia exigiu o desenvolvimento da estatísti-ca matemática, estamos em posição de compreender como o

desenvolvimento desta últ ima proporcionou oportunidades parapromover os interesses sociais da classe média profissionalizada.A c h o que isso é o máximo a que uma análise geral pode chegar.Dentro desse quadro, teses como "a estatística se desenvolveu naInglaterra na virada do século porque proporcionava oportunida-des para atender aos interesses da classe média profissionalizada"tê m força explicativa enquanto nã o estiverem exigindo que asconvicções e os motivos particulares das pessoas sejam identifica-dos e deduz idos de sua posição social.

O quanto foram aproveitadas as diversas opo rtunidades, porquem e de que maneira, é uma questão acidental que só poderáser resolvida como resultado de uma pesquisa histórica e que não

está sujeita a uma explicação sociológica geral. A análise deMackenz ie resolve esse t ipo de contingência de muitas maneiras .Por exemplo, su a história de como Pearson nasceu numa classemédia em ascensão, como ele reagia à pobreza e à miséria daIngla terra vitoriana e à "superf icialidade complacente" (M ackenzie,1981, p. 75) da Universidade de Cambr idge , como ele veio aconhecer os diversos tipos de socialismo durante uma visita à

Alemanha , e assim por diante, é algo que mostra como Pearson

138A L A N C H A L M E R S

chegou a uma boa posição para promover os interesses de sua classemediante o desenvolvimento daestatística matemática. Traduzindo

A FABRICAÇÃO DE CIÊNCIA 139

ele deixa de esclarecer exatamente a forma qu e deve assumir a suaexplicação social do conhecimento cognitivo. Ele não dá uma

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isso nos termos empregados por Mackenzie, podemos compreen-der que a "correspondência" entre a eugenia e os interesses da

classe média profissionalizada fosse uma oportunidade para apromoção de tais interesses, que Pearson, dada a natureza de seu

conhecimento damatemática, estava em boa posição deaproveitar,e que realmente aproveitou.Resumindo: concordo comMackenzie que há espaçopara uma

análise social da estatística matemática na Inglaterra durante operíodo em .questão e concordo que ele traz boas contribuiçõespara esse tipo de análise, embora também haja espaço paraesclarecimentos a respeito d a forma precisa qu e assumem essasexplicações sociais. Isso é suficiente para contrabalançar uma visãopurista e conservadora de que a busca do conhecimento nasinstituições acadêmicas prossegue segundo sua própria dinâmica,sem nenhuma ligação com interesses políticos ou sociais maisamplos. O apoio material para o desenvolvimento da estatística noUniversity College de Londres estava estreitamente associado ao

movimento pela eugenia, como Mackenzie mostra. Além disso, asteorias da eugenia, em oposição à estatística matemática, atendiamao s interesses da classe média profissionalizada em grau be m maiordo que atendiam à meta da produção de conhecimento. Não obs-tante, seja qual for a importância atribuída à análise de Mackenzie,nego que ele tenha oferecido uma explicação social do conteúdo

da estatística matemática suficiente para fundamentar su a tesesobre a determinação social da boa ciência.

7.2 A explicação social de Freudenthal

para os Principia de Newton

Como já vimos, um ponto fraco na tentativa de Mackenzie

para explicar socialmente a estatística matemática é o fato de que

resposta satisfatória à indagação de Knorr-Cetina sobre como asproposições teóricas em si incorporam fatores sociais (Knorr-Cetina, 1983, p. 116). O mesmo não se pode dizer da elaboraçãode Gideon Freudenthal (1986) sobre uma explicação sociológica

de determinados aspectos da física de Newton. Freudenthal não sesatisfaz em apontar paralelos ou correspondências entre as teoriascientíficas, por um lado, e as relações ou concepções sociais, poroutro. Eleantes seesforça por traçar o caminho preciso por ondeas relações sociais entram no conteúdo da física de Newton.Vejamos até que ponto ele consegue fazer isso.

Freudenthal não procura dar uma origem social a todo oconteúdo dos Principia.Ele não busca uma explicação social paraas leis do movimento e a lei da gravidade. N o entanto, Freudenthal

procura demonstrar como outros pressupostos significativos nosPrincipia têm origem e sustentação nas relações sociais. Apresentoa seguir um esbo"çoda via que ele traça apartir das relações sociais,levando ao conteúdo cognitivo daciência de Newton. A mudançasocial do feudalismo para as formas primitivas do capitalismo gerauma concepção de sociedade em que esta deve ser compreendidaem termos dos bens essenciais das pessoas que a compõem. Essaforma de explicação t ransforma-se nu m princípio filosófico geral,em que os bens dos conjuntos explicam-se em termos dos bensessenciais de suas partes. Quando aplicado ao contexto da física

newtoniana, esse princípio tem efeitos determinados em certaporção de seu conteúdo. Como Freudenthal, levo emconta algumdetalhamento do processo de entrada das relações sociais na físicana ordem oposta em que se alega que isso tenha ocorrido,começando pela identificaçãodos aspectosdos Principia qu e devemser explicados socialmente.

O primeiro alvo de Freudenthal para uma explicação social éa concepção de Newton do espaço absoluto, cuja defesa está nos

Principia - a famosa experiência do balde, relacionada com a

rotação de duas partículas ligadas por uma mola. Adeformação da

140 A L A N CHALMERS

superfície daáguano baldeemrotação e aextensão damola unindoas partículas foram tomadas por Newton para indicar a presençade uma rotação relativa a um espaço absoluto que existe indepen-

FABRICAÇÃO DE CI ÊNCI A 1 4 1

Freudenthal diz que há um pressuposto no s Principia que, seadmitido, elimina essas dificuldades. É a hipótese de que o mundomaterial secompõe departículas iguais, cada uma destas possuindo

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dente da matéria. O segundo dentre os alvos de Freudenthal é adistinção qu e Newton fa z entre as propriedades essenciais euniversais da matéria. Contudo, do ponto de vista de Newton,aparentemente há uma exigência mais forte para que um atributo

seja considerado universal. Por exemplo, Newton deixa be m claroque a extensão é uma qualidade universal e também essencial doscorpos, embora a gravidade, sendo u m atributo universal, nã o sejaum atributo essencial. E m terceiro lugar, Newton definia "quanti-dade de matéria" como produto da densidade e do volume,enquanto em outro ponto dos Principia densidade é definida comoa massa porvolume unitário. Aqui há uma aparente circularidade,se fazemos a verdadeira identificação de "massa" co m "quantidadede matéria". O quarto alvo para a explicação social de Freudenthal

que levo em consideração é o argumento de Newton que parte dofato de que os materiais diferem em densidade para chegar à con-clusão de que eles devem conter espaços vazios em graus variados.

Todas as asserções do s Principia observadas no parágrafoanterior são problemáticas. Os experimentos com um balde emrotação ou com um par de partículas poderiam se r interpretadoscomo indicadores de movimento em relação às estrelas, po rexemplo, ao passo que se acompanhamos Newton e pressupomosque o movimento absoluto fo i determinado, isso continua insatis-

fatório para estabelecera conclusão a que-ele chegou, d e ^ q u e omovimento ocorre num espaço independente da matéria. Comrespeito à distinção entre as qualidades universais e as essenciais,é difícil ver que conseqüências poderiam advir da hipótese de queum a qualidade é essencial, além de estar presente em todos oscorpos observados ou em que foram feitas experiências. A circula-ridade aparente encerrada na discussão de Newton sobre a densi-dade é evidentemente um problema, embora existam muitasexplicações alternativas imediatas para asdensidades diferenciadasem relação à que ele considera necessária.

as mesmas qualidades essenciais, qualidades que uma partículacontinuaria a possuir mesmo estando sozinha no espaço vazio.Porconveniência, passarei a referir-me a isso como a "hipótese dapartícula elementar". Para compreender a argumentação de Newton

para a rotação absoluta, pressuponha que é significativo conceber obalde rodando num espaço preexistente, que estaria vazio, não

fosse pela su a presença. À luz da hipótese da partícula elementar,podemos compreender por que Newton nega o estatuto dequali-dade essencial à gravidade, mesmo estando ela presente em todosos corpos encontrados no mundo. Segundo Newton, um a partículasozinha no espaço vazio, embora continue possuindo a extensão, po rexemplo, não possuiria gravidade. Se entendemos como "quanti-dade de matéria" um "número de partículas elementares", então a

quantidadede

matériaé

realmenteo

volume multiplicado peladensidade da s partículas. Contudo, já que as partículasnão podemse r diretamente observadas e contadas, a quantidade de matéria e,po r isso, a densidade nã o podem se r medidas, neste sentido.Entretanto, como sepode medir - oucomparar - massas evolumes,podemos dar uma definição operacional d a densidade como massadividida pelo volume. N ã o há circularidade, porque há duas concep-ções de densidade implícitas,uma das quais apenas é mensurável. E,por f im, uma vez pressuposto qu e diferentes materiais sã o consti-tuídos de partículas elementares iguais, então as diferentes densidades

nã o exigem a existênciade graus variadosde espaço entre as partículas,conforme a conclusão de Newton.

Uma forma vigorosa da hipótese da partícula elementar não éexplicitada por Newton nos Principia, embora haja evidênciasindiretas de que ele a adotou aqui e ali em seus textos. Uma versãomais frágil formulada com clareza por Newton é a seguinte:

A extensão, dureza, impenetrabilidade, mobilidade e força de inércia

do todo resultam da extensão, dureza, impenetrabilidade, mobilidade e forçade inércia das partes; dal concluirmos que as menores partículas de todos

A L A N C H A L M E R S

os corpos sejam também extensas, duras e impenetráveis, e móveis, edotadas de suas próprias forcas de inércia. E esse é o fundamento de toda

a filosofia.* (Freudenthal, 1986, p. 22)

A FABRICAÇÃO DE CIÊNCIA 143

partícula elementar veio a ser considerada evidente? Essas são asquestões referentes às relações sociais que Freudenthal sedispôs aresponder.

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Como Freudenthal, percebemos que Newton não defende essaafirmação. Ele a expressa como se fosse evidente. Em relação àposição mais forte, explicitada por Freudenthal na forma da

"hipótese da partícula elementar", o principal argumento queNewton realmente coloca éque, uma vezadmitidos,os argumentose hipóteses dos Principia, que deoutro modo seriam problemáticos,fazem sentido. U ma explicação plausível da razão por que elejamais explicitou todos os componentes da hipótese da partículaelementar, e por que não se encontra nenhum argumento a favordeles nos textos de Newton, é que este os considerava evidentes.Ou seja, ele os aceitava como reais sem necessidade de maiores

garantias.

S e aceitamos a reconstrução de Freudenthal da hipótese da

partícula elementar, seupapel e seu estatuto, estaremos emposição

de avaliaro que ele visavaem sua explicação social paraos Principia.Ahipótese de que o mundo material deve serexplicado em termosdas propriedades ouqualidades essenciaisque oconstituem - ondepropriedade essencial se compreende como uma propriedade (ou

qualidade, ou atributo) que uma partícula possuiria se estivessesozinha no espaço - funciona como um princípio evidente nosPrincipia, e, embora não tivesse,.nenhuma influência no conteúdo

da física que era passível de comprovação empírica na época, oprincípio tinha efeitos determinados nas hipóteses substantivas

expostas. Como se explica essa situação? Como a hipótese da

* Discordode Freudenthal em um pequeno detalhe.Os argumentos de N ewton, queFreudenthal procura tornar convincentes com a introdução da tese da partículaelementar, requerem apenas que as par t ículas tenham a mesma densidade e não,como ele insiste,qu e sejam também do mesmo tamanho.Além do mais, o uso doplural - "forças de inércia" - por Newton, associadoàspartículas,é uma ndicaçãode que ele não pressupõe qu e sejam todasdo mesmo amanho. CorrigirFreudenthalnesse pequeno detalhe não dá maior impulsopara descartarse u argumento - razãopor que restrinjo minha critica a uma nota de rodapé.

Freudenthal traça as origens do percurso da hipótese de

Newton, chegando às concepções individualistasda sociedade qu eapareceram no século XVII, quando a sociedade feudal deu lugar

às primeiras formas do capitalismo e o mercado passou a desem-penhar um papel cada vez mais fundamental. Começamos com ofato de que a sociedade feudal tornava-se cada vez mais inviávelcom ocrescimento dascidadese a interdependência cadavezmaior

de cidades e países. O aumento da importância do mercado, queveio logo depois de um aumento na complexidade e interdepen-dência, fez com que os comerciantes pudessem acumular riquezae poder, não apenas por direito de nascimento, mas aproveitandoas oportunidades proporcionadas poresse mercado - e, ao mesmo

tempo, cada ve z mais os camponeses tinham possibilidade d eabandonar a terra e a jurisdiçãod o senhor feudal para tornarem-setrabalhadores assalariados nas cidades. A s sociedades capitalistasque iam surgindo precisavam se r compreendidas e justificadas.Uma alternativa para a concepção da sociedade evidentementehierarquizada, segundo a clássicaformulação de Tomás de Aquino,tornava-se uma necessidade teórica e política. Thomas Hobbesreagiu a esse questionamento no início do século XVII , especial-mente em seu Leviatã, e mais tarde, nesse mesmo século, segui-ram-se outras propostas, inclusive a notavelmente formulada pelo

contemporâneo de Newton, John Locke. Freudenthal chama aatenção parao fato hoje muito bemcompreendido deque, emboraas diversas concepções da sociedade formuladas po r diversos

teóricos diferissemem aspectos fundamentais , elas tinham algo emcomum: todas procuravam explicar a sociedade referindo-se àsqualidades essenciais das pessoas que a integravam, qualidades que

se considerava possuírem independentemente de sua existência nasociedade.

A té aqui a análise aponta para um paralelo impressionante

entre o relacionamento entre indivíduo e sistema, segundo cons-

144A L A N C H A L M E R S

tavam na física de Newton, por um lado, e as concepções dasociedade que surgiam e eram aceitas no século XVII , po r outro.Contudo, Freudenthal deixa claro que não se satisfaz com esse

A FABRICAÇÃO DE CIÊNCIA 145

tornou-se parte da filosofia primeira. Hobbes a aplicava ao mundofísico, por exemplo, quando pensavanasqualidades que um corpoteria se fosseoutra vez criado noVácuo, concluindo qu e teria apenas

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paralelo, no sentido de que significasse um a explicação. Depois deobservar o aparecimento de uma concepção individualista dasociedade como reação a mudanças sociais, ele deseja traçar o

caminho preciso pelo qualumaversão desse individualismo entrouna física newtoniana. Segundo Freudenthal, esse caminho passapela filosofia, e ele procura mostrar como Newton seguiu Hobbes,ao extrair da teoria social uma concepção filosófica geral dorelacionamento entre elemento e sistema, que veio a considerarevidente e depois aplicou em sua física.

Freudenthal enfatiza o quanto a teorizaçãode Hobbes poderiase r considerada u m programa político planejado para combater asrelações sociais feudais e a concepção hierárquica da sociedade qu e

er a usada para justificá-la e para favorecer o surgimento d a novaforma da sociedade. Devemos rejeitar a visão de que as idéias deHobbes eram um reflexo inconsciente das relações contratuaisevidentes no mercado, já que, em sua época, as relações feudaisainda persistiam e foram sentidas po r ele, embora como algo a quese opor e a ser substituído. Ele aproveitou as relações contratuaisque existiam entre proprietários independentes no mercado eafirmou qu e elas seriam a própria base para um a análise d asociedade, aventurando-se então num projeto para fundamentarsuas teorias. Esse projeto tinha implicações políticas nas etapas

relativas à substituição das relações sociais feudais pelas relaçõesbaseadas em contratos entre indivíduos livres e autônomos.

N os séculos XVII e XVIII , era comum a distinção de três ramosda filosofia: a filosofia social, a filosofia natural e a philosophia prima(metafísica ou filosofia primeira). Esta última er a considerada umcorpo de generalizações abstratas aplicáveis tanto à filosofia socialquanto à natural. Freudenthal observa que a tese de Hobbes deque a sociedade poderia se r compreendida em termos d as qualida-des essenciais dos indivíduos de que se compunha tornou-se um

princípio filosóficogeralem seus textos - ou seja: esse pressuposto

a qualidade da extensão. A generalizaçãoda hipótese qu e relacio-nava elemento e sistema à filosofiaprimeira e daí à filosofianaturalt ambém ajudou o programa político de Hobbes, porquanto este

servia para enfraquecer a idéia da relação entre elemento e sistemaqu e permeava a filosofia medieval, a teoria social e a ciência natural,onde os sistemas eram teoricamente anteriores a seus elementos,A teoria de Hobbes era um ataque à idéia de uma hierarquiacentralizada em três frentes na s relações da sociedade feudal: afilosofia primeira, a filosofia social e a filosofia natural.

O programa político de Hobbes teve êxito na medida em queforam aceitas as idéias do relacionamento entre elemento e sistemaque ele introduziu em sua teoria social, passando daí à filosofia

primeira e à filosofia social. Freudenthal documenta isso nãoapenas co m relação a Newton, mas também em relação a outros,como Jean-Jacques Rousseau e Adam Smith. Talvez seja possívelresumir a explicação social d e Freudenthal para a aceitação doprincípio de que o todo deve ser entendido em função dasqualidades essenciais d e suas partes, da maneira qu e exporei aseguir. Esse princípio fora aceito porque atendia ao s interesses do sque o adotavam e propagavam e porque podia ser pronta econvincentemente exemplificado recorrendo-se ao caráter da s rela-ções de troca no mercado, cada vezmais importante, e também

recorrendo-se a analogias mecânicas, como a explicação das pro-priedades de um relógio em função das propriedades desuas partes.

A té aqui a história de Freudenthal é satisfatória; chegamosagora a um ponto em que podemos entender como Newton veioa adotar e a considerar evidente a idéiade que se deve compreenderu m sistema em função das qualidades ou propriedades essenciaisd e suas partes. Freudenthal leva a análise ainda mais longe, paramostrar como alguns pormenores eram formulados na primeirafilosofia de Newton e como, àquela altura, forjou-se uma ligação

entre a ciência e a concepção individualista da sociedade. Em sua

146 A L A N C H A L M E R S

filosofia, Newton dizia que a nossa experiência d e movimentarvoluntariamente uma perna ou um braço estabelece como óbvio o

fato de que nós, como seres humanos, temos o livre-arbítrio e de

A FABRICAÇÃO DE CIÊNCIA 147

explicado em função das propriedades de suas partes. Entretanto,

como está claro na explicação de Freudenthal, isso se aplica tanto

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que amatéria que resolvemos movimentar épassiva. O argumentode Newton visa determinar ao mesmo tempo o conceito deliberdade como qualidade essencial dos indivíduos e a passividade,

como propriedade essencial da matéria.S ão traçados outros pormenores da análise social, chegando até

a situação social específica qu e estava diante de Newton. N ãoapareceria uma sociedade de proprietários independentes previstapor Hobbes. Ao contrário, surgiu uma sociedade capitalista, com a

maior parte da terra e outros meios de produção nas mãos depoucos. Isso não aconteceu sem uma luta política, onde houve aeliminação dos Niveladores, luta em que Newton tomou partido eque na Inglaterra culminou com uma solução conciliatória com o

rei. Um poder limitado qu e permaneceria co m este justificava-se po rsernecessário para amanutenção de uma ordem socialque de outro

modo não aconteceria. Na verdade, o sistema nessa sociedade nãopode ser considerado totalmente recorrendo-se às qualidades essen-ciais de suas partes: é preciso uma intervenção externa. Descobri-mos precisamente o mesmo gênero de situação retratada na física deNewton: as propriedades físicas do sistema do mundo não podemser atribuídas às propriedades físicas dos corpúsculos que o consti-tuem. Devido à falta deelasticidade dascolisões entre os corpúsculose devido ao movimento introduzido no mundo por meio de nossas

ações voluntárias, a quantidade total do movimento nã o será auto-maticamente conservada. Como já percebemos, a gravidade tam-

bém não pode ser explicada pelas propriedades essenciais doscorpos. Nesses dois casos, encontramos Newton e os que oapoiavamrecorrendo à intervenção divina. Deus é o administrador dorelógio

do mundo, assim como o rei é o administrador da sociedade.

Posso aceitar a linha geral da explicação de Freudenthal, qu ediz como as teorias individualistas da sociedade surgiram comoreação à mudança social e como elas foram transformadas por

muitos em um princípio filosófico geral, em que o todo deve ser

a Hobbes como a Newton. Como a física de Hobbes era bastantediferente da física de Newton (por exemplo, Hobbes achava que

suas partículas possuíam apenas a propriedade essencial daexten-são), d eve-se acrescentar algo ao simples individualismo ou atomis-

m o para Freudenthal poder completar su a explicação social. Comojá vimos, Freudenthal acrescentou alguns detalhes à concepçãofilosófica de Newton do livre-arbítrio e de sua idéia de Deus comoadministrador do mundo; essas duas visões são retraçadas atéaspectos da postura política de Newton a respeito de questõessociais de sua época. Essas idéias de Newton eram de fato ampla-

mente aceitas e exploradas pelos anglicanos ortodoxos e pelospolíticos do Whig, que ocupavam posições sociais semelhantes ouqu e adotavam posturas políticas iguais às de Newton (Jacob, 1976).Contudo, essas idéias não eram adotadas universalmente. Acredito

qu e elas poderiam se r antes consideradas extensões ideológicas dafísica de Newton, em vez de partes dela. Esse ponto é reforçadopelo fato de que outros físicos puderam interpretar a física newto-niana de maneiras que radicalmente diferem dos aspectos da

interpretação do próprio Newton que Freudenthal explica emtermos sociais. Por exemplo, Clerk Maxwell afastou-se radicalmen-te da hipótese da partícula fundamental ao utilizar a mecânicanewtoniana para desenvolver sua teoria do campo eletromagnético,em que os fenômenos localizados sã o entendidos em função da

mecânica de um meio material contínuo que tudo permeia, aopasso que Thomson e Tait (1879, p. 222) partiram da concepçãoda matéria passiva de Newton, porque ela teria "um poder inato

de resistir à influência exterior".

Aanálise deFreudenthal nãopode sertomada como explicaçãodo conteúdo cognitivo da boa ciência. Aliás, Freudenthal tambémnão a apresenta dessa maneira - mas faz claramente a distinçãoentre os aspectos dos Principia que têm justificação científica (como,Por exemplo, as leis do movimento) e os que não têm. Precisamentee

stesúltimos eleprocura explicar socialmente. Aqui sepode objetar

148 A L A N C H A L M E R S

que es tou usando o benefício da perspectiva do tempo paradistinguir as partes boas e ruins da física de Newton. E m nome daargumentação, imaginemos que as hipóteses socialmente explica-

A F A B R I C A Ç Ã O D E C I Ê N C I A 149

O mundo natura l não se comporta de um modo para oscapitalistas e de outro para os social istas, de um modo para ascul turas ocidentais e de outro para as cul turas orientais. Uma

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das por Freudenthal acabaram sendo just ificadas. Imaginemos quea ciência contemporânea possibilite a medição dos movimentosrelativos ao espaço absoluto e a detecção e contagem dos corpús-

culos de N ewton. E u dir ia que um a boa resposta seria que,enquanto certas hipóteses tiveram origem nas muda nç a s e teoriassociais do século XVII, elas apenas receberam interpretação ejustificação científicas satisfatórias séculos depois. Estaríamos emsituação semelhante à das inovações de Darwin em relação aostextos de Malthus e aocontexto social que os inspirou.

A análise qu e Freudenthal faz dos Principia de Newton (queescolhi como exemplo p orque era a melhor, m ais detalhada e maiscuidadosa explicação social da ciência que pude encontrar) nãopode ser considerada uma boa explicação social para o conteúdocognitivo da boa ciência. Entretanto, isso não diminui de modoalgum a importância e o interesse de seu estudo e de outros do

gênero. A melhor parte de sua análise m ostra como as hipótesesque têm origens sociais e políticas e atendem a interesses sociais e

políticos podem faci lmente penetrar na ciência mascaradas de boaciência. Nem mesmo os Principia de Newton, que se poderiaesperar servirem de excelente exemplo da ciência pura, estavamlivres desse tipo de incursões. Não se pode aceitar sem questiona-mento que tudo o que se propõe em nome da ciência, ostensiva-

mente justificado como seus interesses e metas, atenda realmentea esses interesses e contribua para essas metas. Isso é tão verdad eirohoje quanto o foi na época de Newton.

7.3 Observações finais

A essa altura é bom que eu faça algumas observações geraispara resumir o resul tado de minh a crítica da sociologia da ciência

neste capítulo e no precedente.

guerra nuc lear em grand e escala, que a ciência tornou possível, nosdestruiria a todos, seja qual for a classe, o sexo ou a cultura. N oentanto, de lugares-comuns como esse não se poderia dizer que,

estandoimplícito na ciência a elaboração de

generalizaçõesque

caracterizem de modo satisfatório o mundo na tura l , a suficiênciadessa caracterização não tem na da a ver com as predisposições ouinteresses dos indivíduos ou grupos que a elaboram e adotam?

Os sociólogos radicais que defendem uma visão cética daciência poderiam responder assim a essas observações: o conceitod as generalizações sobre o m u n d o , cuja suficiência é avaliadaindependente de características sociológicas dos indivíduos ou

comunidades que as elaboram e defendem, é, na melhor dashipóteses, um ideal irrealizável e, na pior d as hipóteses, não temsentido. As pretensões de conhecimento e as evidências apresen-tadas, os critérios p or qu e são avaliada s, são produ tos sociais ecomo tais inevitavelmente moldados por interesses sociais. Devidoao tipo de seres sociais que som os e aos mod os de elaborar e testaro conhecimento disponível, é inevitável que interesses, como os

de classe, acabem entrando na ciência.

Assim expostas, as hipóteses dos sociólogos podem ser inter-pretadas como hipóteses empíricas. Como tais, eu as considerofalsas. Af i r mo que a comunidade científica tem sido capaz dedesenvolver m étodos e técnicas para elaborar e testar as pretensõesde conhecimento que podem e mui tas vezes realmente contribuemobjetivamente para a meta d a ciência. A minha discussão sobre aobservação e o experimento nos capítulos 4 e 5 foi planejada paramostrar como na prática é possível criar testes objetivos paraverificar a suficiência das teses, e eu mostrei qu e esse é o caso emsituações escolhidas pelos próprios céticos como favoráveis a seuposicionamento. Mostrei , por exemplo, como as transformaçõesd e fatos e padrões real izadas po r Galileu e usadas por Feyerabend

como base para um ceticismo radical podem ser compreendidas

150 A L A N C H A L M E R S

como u m passo objetivo à frente, do ponto de vista da meta d aciência. Também demonstrei que a rejeição das hipóteses experi-mentais de Weber com respeito às ondas gravitacionais, usadas

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por Collins para ilustrar a maneira como interesses sociais epolíticos externos entram na ciência, pode ser compreendida emfunção de haver falhado ern testes objetivos e não ter se dado be mna crítica autêntica. Weber ficou sem ter para onde ir. O avanço

objetivo na direção da meta da ciência pode e tem sido feito, o que

não significa que se mostrará possível em todos os casos, nem queseja realizado segundo métodos inalteráveis ou em relação apadrões imutáveis.

Os estudos sociológicos, como os que descrevi neste capítulo,mostram como interesses outros podem influenciar a atividadecientífica. N ã o h á base para presumir complacentemente que aatividade científica prossiga de maneira determinada, única ou atéprincipalmente, pela meta d a produção de um conhecimento

científico adequado. A atividade científica inevitavelmente está

interligada a outras, com outros objetivos e que atendem a outrosinteresses. Entretanto, a meu ver, em nada ajuda uma boa com-preensão dessa situação deixar de lado ou contestar o que acreditose r um a distinção muito clara entre a meta d e produzir umconhecimento científico adequado e outros objetivos.

C A P Í T U LO 8

A DIMENSÃO SOCIAL E POLÍTICA DA CIÊNCIA

8.1 Observações introdutórias

O ponto essencial de meu exemplo referente às concepções

radicais relativistas ou céticas da ciência pode se r assim resumido:

a meta das ciências naturais é ampliar e aperfeiçoar nosso conhe-cimento geral do funcionamento do mundo natural. A competên-cia de nossas tentativas relacionadas a isso pode se r avaliada

comparando nossas hipóteses de conhecimento com o mundo,

por intermédio dos mais rigorosos testes experimentais e de

observação existentes. Embora não exista nenhum método ouconjunto de padrões universais para dirigir essa busca do conheci-

mento, e embora sempre esteja presente a possibilidade de que oobjetivo sejadistorcidopela entrada subreptícia deoutros interesses

co m objetivos diferentes, a meta pode ser, e em geral é, atingida.O mundo natural é corno é, independentemente de classes, raça

ou sexo dos que tentam conhecê-lo; o mérito científico das teoriasqu e constituem nossa tentativa de caracterizá-lo deveria se r igual-mente independente desses fatores. Apesar do caráter social d e

todaatividade científica,

osmétodos

e asestratégias para construir

152 A L A N C H A L M E R S

um conhecimento objetivo, ainda que passível de falha e imprová-vel, do mundo natural foram desenvolvidos na prática e tiveramsucesso.

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 153

at é um determinado balcão de brinquedos na Woolworth, ondeestava exposta uma meia dúzia de artigos, todos com preço de doisxelins, e m e convidou a escolher. C om certa consternação, vi-me

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Deixando-se de lado a negação do método universal e oreconhecimento de que a ciência é falha e sua atividade inerente-mente social, as observações anteriores podem ser entendidas de

maneira indiscutivelmente conservadora. C om elas se poderiaconcluir que não considero u m a análise política e social da ati-vidade científica apropriada em qualquer sentido mais forte, e

pode-se supor que acredito que tudo esteja muito bem na ciênciacontemporânea e assim continuará sendo enquanto ela permane-ce r autônoma e ao abrigo das influências políticas e sociais. Issoestá longe de ser o que penso. Este capítulo final é a tentativa dedeixar clara a minha visão.

8.2 As oportunidades objetivase a escolha individual

Em poucas palavras, meu principal argumento é este: emboraa meta daciência possa ser diferenciada deoutras metas e avaliaçõesepistemológicas distintas de outras avaliações, a atividade científicaencerrada na busca dessa meta nã o pode estar separada d e outrasatividades qu e servem a outros objetivos. Passo agora para a ela-boração desse ponto a partir do que pode parecer uma direçãoimprovável - ou seja, uma crítica do papel fundamental normal-mente atribuído àescolha do indivíduo na atividade e no progressoda ciência. Começarei com uma historinha autobiográfica.

Num sábado, pouco antes do Natal, meu pai foi enviado emum a expedição d e compras natalinas, e eu, com uns cinco anos d eidade, deveria acompanhá-lo. N a hora, meu pa i não gostou muitoda idéia e das responsabilidades dessas compras, e por isso oclimaestava tenso. Um de seus deveres era comprar um presente para

mim, e ele orquestrou esta compra d a seguinte maneira: levou-me

diante daquelas opções se m graça at é que, pressionado para tomaruma decisão, acabei escolhendo um trenzinhode brinquedo meiobobo. Voltamos para casa, cumprida a missão de meu pa i e

radicalmente revisadas as minhas estimativas sobre os méritosdaquela festiva ocasião. Uma das diversas perguntas levantadas po rminha mãe a respeito da sensatez das diversas compras concentra-va-se na satisfação que eu teria com meu presente. "Foi ele queescolheu", respondeu prontamente m eu pai. Minhas faculdadesracionais nã o estavam suficientemente desenvolvidas para que eupudesse articular a maneira como havia sido logrado, mas é claroque sabia que realmente isso acontecera. Talvez naquele momentotenha entrado em jogo algum impulso edipiano que me empurrouna direção de uma carreira na filosofia. De qualquer maneira, eu

gostaria de apresentar a moral que tirei da história: quando aspessoas têm de fazer escolhas, todos os determinantes mais impor-tantes já ocorreram.

Considero relevante na filosofia ortodoxa d a ciência um aênfase insatisfatóriana escolha da teoria. Normalmente se pressu-põe que a questão do por que uma teoria suplanta a outra deve serexplicada em termos dasopções racionais dos cientistas. Amudan-ça da teoria é identificada com a escolha da teoria. Considero essau m a identificação enganadora e insatisfatória. Certamente existemproblemas quando se deve formular quais são os critérios para aescolha da teoria* - os filósofos que já tentaram discutir a questãonão chegaram a nenhum consenso. Os próprios cientistas têm emgeral u m a certa dificuldade para compreender a natureza d oproblema, não falando da capacidade de apresentarem uma solu-ção. Acredito que o fenômeno de cientistas escolhendo entre

Th o mas Kuhn (1977a) identifica alguns dos problemas associados às tentativas deconstruir o progresso científico em função de escolhas feitas segundo critérios raci-

onais, embora su a resposta para o problema seja muito diferente da minha.

154 A L A N CHA LME RS A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 155

teorias opostas usando critérios racionais é mais uma invenção daimaginação do filósofo analítico.Os cientistas fazem experimenta-ções, deduzem as conseqüências das teorias, comparam-nas com

as outras, modificam-nas diante dos problemas e assim por diante.

tadas, o efeito é que a teoria B avança enquanto a teoria A ficaestagnada. Essa concepção da atividade científica não é muitodiferente de uma explicação do desenvolvimento econômico emum a (hipotética) sociedade capitalista livre. Nesse caso, embora o

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N um outro texto escrevi:

Muitos cientistas contribuem de modo independente co m suas habi-lidades independentes para o desenvolvimento e articulação da física,

exatamente como muitos trabalhadores juntam seus esforços na construção

de uma catedral. Eexatamente como um operário especialista er n chaminés

pode estar muito feliz e inconsciente da implicação que há em algumadescoberta sinistra dos trabalhadores que estão cavando próximo aos

alicerces, um teórico ilustre pode muito be m desconhecer a importância dealguma nova descoberta experimental para a teoria em que trabalha.(Chalmers, 1982, p. 116)

Como é que a teoria muda e o progresso científico resulta dessaatividade? Em outros textos (Chalmers, 1979, 1980) apresentei aidéia do "grau de fertilidade" de uma teoria para ajudar a responder

à pergunta. Uso a expressão para me referir à amplitude de opor-tunidades para desenvolvimento que a teoriaoferece nu m determi-

nado contexto prático ou teórico, amplitude de linhas de desenvol-vimento que são possibilidades reais que uma teoria desdobra,dados os recursos teóricos e experimentais disponíveis. Armadoscom essa concepção, podemos caracterizar a mudança da teoria

como algo mais ou menos de acordo com o que exponho a seguir.

Suponhamos que a teoriaA tem dificuldades criadas pela teoriaB. Suponhamos ainda que existe uma porção de cientistas com ascapacidades, recursos e estruturas mentais apropriadas para traba-lhar sobre teorias opostas. Nesse tipo de circunstância, é bastanteprovável que as oportunidades de desenvolvimento que de fatoexistem mais cedo ou mais tarde acabarão sendo aproveitadas.Conseqüentemente, se a teoria B realmente proporciona maiorespossibilidades de desenvolvimento que a teoria A, e desde quealgumas das oportunidades de produzir resultados sejam aprovei-

desenvolvimento não seja controlado por nenhum plano racional

dobal, ele é compreensível e explicável em função das oportunida-des objetivas de obter lucros e das maneiras como são aproveitadas

essas oportunidades. Examinando a mudança da teoria do modoque defendo, podemos por exemplo entender por que a versão deFresnel da teoria ondulatória da luz suplantou a teoria da s partícu-las de luz no início da década de 30 do século passado, uma vezque a versão de Young para a teoria ondulatória não obtivera

sucesso trinta anos antes. Os desenvolvimentos da s técnicas damatemática para tratar de ondas num meio elástico, nas primeirasdécadas do século XIX, tiveram como conseqüência o fato de que

as oportunidades para o desenvolvimento da teoria ondulatóriaestavam disponíveis para Fresnel, mas não para Young. Para

explicar a vitória da teoria ondulatória sobre a das partículas nã oprecisamos evocar a idéia de cientistas, armados com critériosracionais para a escolha de sua teoria, optando racionalmente po rpermanecer com a teoria das partículas no início do século, masoptando pela teoria ondulatória por volta de 1830 (Worrall, 1976).

Encontrei ressonâncias dessas minhas idéias largamente negli-genciadas sobre a mudança da teoria num lugar inesperado; suaexploração nos dará uma entrada instrutiva na dimensão social epolítica da atividade científica. A passagem seguinte, parte da qual

utilizei no capítulo 6, foi tirada de um livro interessante e informa-tivo, Th e manufacture o f knoivkdge (A fabricação do conhecimento) ,da socióloga Karin Knorr-Cetina:

Já escutamos dizer que, na prática, a validação ou aceitação sãoconsideradas parte do processo de formaçãodo consenso, qualificado como"racional" por alguns filósofos e "social" por alguns sociólogos da ciência.Entretanto, racional ou social, é aparentemente um processo de formaçãode opinião e, como tal, localizadoem algum outro ponto que não a própria

156 A L A N CHALMERS A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 157

investigação científica ... Contudo, onde encontramos o processo devalidação, em qualquer grau mais significativo, senão no própr io laboratório?Senão no processo de tomada de decisões de laboratório, pelo qual urnresultado, método ou interpretação proposta anteriormente vem a ser

aceita se m questionamento o que pressupõe ser a minha explicaçãoda teoria da mudança: sempre haverá cientistas com as capacidadese os recursos apropriados para aproveitar as oportunidades para a

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preferido sobre outros e incorporado aos novos resultados? O que é o

processo de aceitação, senão a incorporação seletiva de resultados anterioresao constante processo de produção da pesquisa? Chamá-lo de processo deformação de opinião parece provocar uma série de conotações equivocadas.

Ainda nã o temos tribunais de ciência para a formação oficial da opiniãoco m poder legislativo na condução da pesquisa futura. Considerar oconsenso um agregado da s opiniões científicas pessoais é enganador, pois:(a) po r falta de votação regular da s opiniões, nã o temos acesso às opiniõespredominantes, gerais ou medianas dos cientistas importantes, e (b) é

lugar-comum na sociologiao fato de as opiniões terem um relacionamentocomplexo e amplamente desconhecidocom a ação.Assim, mesmo quandosabemos qual é a opinião dos cientistas, não saberíamos que resultadosseriam coerentemente preferidos na pesquisa real. Não temos aí um pro-cesso de formação de opinião, mas um processo em que certos resultadossão consolidados pela constante integração à pesquisa em andamento. Issosignifica que o locus da consolidação é o processo da investigação cientifica

... as seleções pelas quais os resultados da pesquisa são construídos nolaboratório, (l981, p. 8)

Se nivelamos o uso da expressão "formação de opinião", deKnorr-Cetina, com o meu uso da "escolha racional da teoria", há,

eu diria, uma acentuada semelhança em nossos pontos de vista.Onde quero dizer que uma teoria prospera quando as oportunida-de s objetivas que ela oferece para a pesquisa são aproveitadas,Knorr-Cetina diz que um resultado se consolida até onde é in-

tegrado à pesquisa em andamento. Entretanto, as maneiras comoelaboramos nossas posições sã o bastante diferentes, e é acompa-nhando Knorr-Cetina que obtemos uma boa visão da dimensãosocial da atividade cientifica.

Um a diferença em nossas respectivas abordagens é que, en-quanto estive preocupado com questões macroteóricas, como asubstituição da teoria das partículas pela teoria ondulatóría da luz,Knorr-Cetina se concentra nos microestudos do trabalho de labo-ratório. Uma segunda diferença é o fato de que Knorr-Cetina não

práticacientista ou um grupo de cientistas dependem de uma série deimprevistos, como a disponibilidade do equipamento, matérias-primas, literatura, assistência técnica e financiamento necessários.

Prosseguindo na questão de como as condições materiais e sociaisnecessárias para a pesquisa são correspondidas, em situaçõesespecíficas ou de modo mais geral, logo temos revelado até queponto a prática científica encerra e nã o pode se r separada de ques-tões sociais e políticas mais amplas.

8.3 A política da atividade científica

Os fatores que se ocultam po r trás da satisfação da s condiçõesmateriais necessárias para o trabalho científico envolvem umaampla série de interesses outros que não a produção do conheci-mento científico. Esse ponto é grafkamente ilustrado por BrunoLatour (1987, p. 153-7) num trecho impressionante, em que elecompara a atividade cotidiana de uma cientista nurn importantelaboratório californiano com o diretor do laboratório, a quem serefere como "o chefe". A cientista se considera interessada no

desenvolvimento da ciência pura e desinteressada das questõespolíticas ou sociais. Procura distanciar-se do governo e do setorprivado, para concentrar-se em sua pesquisa pura. Em compen-sação, o chefe está sempre envolvido em atividades políticas em

todos os níveis, o que muitas vezes lhe vale a zombaria da

cientista.O exemplo de Latour trata da pesquisa de uma nova substância,

o pandorin, que promete ter grande significado na fisiologia. Nalista das atividades em que o chefe se envolve numa semanacomum, estão as seguintes, entre outras: negociações com as

158 A L A N CHA LME RS A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 159

grandes companhias farmacêuticas a respeito do possível patente a-mento do pandorin; um encontro com o ministro da Saúdefrancês, onde será discutida a possibilidade de abertura de um novo

as atividades do chefe. Se, por exemplo, investigamos o suficientea respeito da origem dos fundos para qualquer área de pesquisa nafísica, nos Estados Unidos, quase sempre damos de fren te com osinteresses dos militares e do Departamento de Defesa no desen-

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laboratório na França; uma reunião na Academia Nacional de

Ciência, em que o chefe defende a necessidade de mais umsubdepartamento; reunião da diretoria da revista médica Endocri-nology, onde pede mais espaço para sua área e reclama de conse-lheiros que pouco sabem sobre a disciplina; uma visita ao mata-douro local, em que discute a possibilidade de decapitar ovelhasde modo a causar menos danos ao hipotáíamo; reunião nauniversidade, onde propõe um novo programa de curso contendomais biologia nuclear e informática; discussão com um cientistasueco sobre os instrumentos recentemente criados por ele paradetectar peptídeos e possíveis estratégias para desenvolvê-los; ediscurso na Associação dos Diabéticos.

Continuemos acompanhando Latour, voltando nossa atenção

para o trabalho da cientista no laboratório pouco depois. Desco-brimos que ela conseguiu empregar um novo técnico, o que foipossível graças a uma bolsa recebida da Associação dos Diabéticos;há também dois novos estudantes já formados que entraram nocampo através dos novos cursos criados pelo chefe. Sua pesquisabeneficiou-se com amostras mais limpas de hipotáíamo, que sãoagora recebidas do matadouro, e com um novo instrumento de

grande sensibilidade, recentemente adquirido da Suécia, que au-menta sua capacidade de detectar traços insignificantes de pando-

rin no cérebro. Os resultados preliminares de sua pesquisa serãopublicados numa nova seção de Endocrinology. Ela está refletindosobre um novo cargo que lhe foi oferecido pelo governo francês,para a implantação de um laboratório na França.

Se a cientista da história muito realista de Latour considera-seenvolvida na ciência pu ra, que não é perturbada por questões po-líticas e sociais mais am plas, ela está muito enga nada. A satisfaçãodas condições materiais, que é um pré-requisito para a realizaçãode sua pesquisa, só pode ser obtida como resultado da atividadepolítica, qu e encerra um a série de interesses sociais, como ilustram

volvimento dos modernos sistemas armam entistas. E. L. Woollett(l 980, p. 109) expõe a situação, num artigo revelador: "... qualquerpessoa com o diploma de física que leia o Relatório Anual da

Secretaria da Defesa admitirá a man eira essencial como o progressoda ciência está hoje associado ao 'progresso' nos mode rnos siste-mas armamentistas". Minha insistência em fazer uma distinçãoentre aciência e outras atividades com metas difere ntes deixa poucomais qu e farelos para a análise do sociólogo.

O simples fato de que a atividade científica não pode ser

separada das outras que atendem a outros interesses não implicae m si que o objetivo da ciência esteja subvertido. A análise um

tanto conservadora e funcionalista da organização institucional da

ciência de Robert Merton (1973) mostra isso muito bem. Mertonacredita que a ciência é governada por normas que definem ocódigo apropriado de comportamento dos cientistas, normas deuniversalismo, desinteresse, comunismo e ceticismo organizado.Presume-se que a fidelidade a essas normas leve adiante a meta daciência. Contudo, cada cientista tem suas próprias normas einteresses, como a aquisição de riqueza,fama e poder, por exemplo.Me rton diz que a meta da ciência se concilia com os interesses doscientistas por meio do sistema institucionalizado de recompensas

e penalizações. Dessa maneira, os cientistas são coagidos a agir demodo a atender os interesse s da ciência, porque é exatamente estaforma de agir que resulta nas recompensas que atendem a seuspróprios interesses. Naturalmente,háoutros interesses em jogo naatividade científica, como os monopólios profissionais, governa-mentais e dos setores privados; o descuido em relação a estes éum a das falhas da análise de Merton. Entretanto, ela serve paramostrar que a ciência não é automaticamente subvertida quandohá outros interesses envolvidos. Podemos ilustrar mais esse ponto,observando que foi uma feliz coincidência entre alguns aspectos

160 A L A N CHA LME RS A FABRICAÇÃODA CIÊNCIA 161

dos interesses da ciência e os da burguesia que permitiu que a

ciência prosperasse na maré da revolução científica (veja tambémBartels e Johnston, 1984).

discernir a razão para isso. Do ponto devista dos proprietários dasminas, o problema que pressionava não era tanto a segurança da

mina, mas o fato de que as operações em minas ricas de carvão se

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8.4 Colocando-se a ciência em seu lugar

Neste livro estive preocupado em identificar e caracterizar a

meta da ciência, distinguindo-a de outras atividades com diferentesobjetivos. Disso não se deve concluir que eu considere a meta da

ciência algum bem absoluto e sem restrições, necessariamente

superior a outras metas. Um exemplo ajudará a colocar a glorifica-ção irrestrita da ciência dentro de uma perspectiva mais realista.

Humphrey Davy inventou em 1815 a chamada lâmpada de

segurança dos mineiros. Não há nenhuma dúvida de que isso

tenha sido uma bem-lograda conseqüência de uma pesquisa cien-tífica pura (possivelmente realizada por Faraday), que envolvia a

determinação da temperatura de ignição do metano e a eficácia de

um véu de arame atuando como barreira para a temperatura. J. A.

Paris, um dos biógrafos de Davy, referiu-se a essa pesquisa bem-

sucedída como "orgulho da ciência, triunfo da humanidade e glóriada época em que vivemos" (Albury e Schwartz, 1982, p. 13), e,

mais recentemente, a Union Carbide Chemicals and Plastics

exaltou as virtudes da pesquisa de Davy e comparou suas contri-buições para a humanidade às da Union Carbide. "Afinal de

contas, Humphrey Davy acendeu uma lâmpada para benefício dahumanidade e não desejamos que ela se apague" (Aíbury e

Schwartz, 1982, p. 13). Isso não é muito incomum em relação à

maneira como o valor intrínseco da ciência é retratado e glorifícado.

No entanto, como Albury e Schwartz (1982) mostram, um

exame mais circunspecto da história real desse episódio nos levaauma avaliação bem mais moderada. Um efeito imediato da intro-dução da lâmpada de Davy nas minas de carvão fo i um a u m e n t oacentuado no número de explosões e fatalidades. Não é difícil

tornavam inacessíveis por causa da acumulação do metano. O

problema deles, que era o que expuserama Davy, era saber como

fazer os mineiros entrarem nas minas perigosas, cheias do gás

venenoso. A pesquisa de Davy proporcionava uma resposta, mas,

naturalmente, sua lâmpada estava longe de ser perfeita. O véu

poderia soltar-se, as correntes de ar poderiam soprar a chama para

fora e as partículas de carvão que se grudavam em seu exterior se

tornariam vermelhas com o calor. Os mineiros admitiam que oproblema mais sério nas minas era uma ventilação precária. Eles

percebiam que as principais fatalidades depois de uma explosão

ocorriam por sufocação pelo monóxido e dióxido de carbono, emconseqüência da explosão. Eles propunham medidas como oaprofundamento de mais poços, mas essas sugestões foram em

geral deixadas de lado, presumivelmente devido aos custos queencerravam. Os mineiros poderiam ser perdoados pelo ceticismo

a respeito de qualquer afirmação de que o progresso da ciência é

um bem sem reservas.

Existem hoje situações comparáveis a essa. Diante dos efeitos

adversos que a ciência possibilita, como a aniquilação nuclear ou

danos menos adversos ao meio ambiente, é razoável ern muitos

contextos reivindicar que um uso socialmente mais eqüitatívo do

conhecimento científico que temos é um problema de maior ur-

gência do que a produção de mais conhecimento científico. Mesmoquando basta atribuir grande prioridade à aquisição do conheci-

mento científico, resta a questão de qual das muitas linhas possíveisde pesquisa científica deveria ser seguida. Resta então a questão:que espécie de ciência desejamos? É inquestionável que uma

grande força por trás da direção do desenvolvimento da ciênciaocidental é proveniente dos interesses militares e econômicos dasagências governamentais e dos interesses aliados das corporaçõesmultinacionais. Muitos de nós desejariam que as coisas fossem

diferentes e que a ciência se tivesse desenvolvido em direções mais

162 A LA N CHA LME RS

de acordo com os interesses e as necessidades da s pessoas comuns.De qualquer maneira, a ciência tem de ser avaliada e articuladasegundo outros interesses e valores. As avaliações e as lutas políticasaí encerradas não são por si só receptivas às soluções científicas.

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 163

evitar a conversa obscurantista sobre os interesses da humanidadeem geral, que esteve em evidência em nosso exemplo sobre asexageradas glorificações da ciência de Davy, para adm itir a varieda-

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Essa última observação mostra a necessidade de controle doslimites e finalidade do conhecim ento científico. A explicação das

ciências que defendi os interpreta com métodos e padrões especí-ficos, desenvolvidos na p rática, para corresponder a metas especí-ficas. Uma vez compree ndidas dessa man eira, pode-se perceber quemuitos problem as caem fora de seu campo. Me smo se restringimosa discussão ao comportamento do mun do físico, quand o lemb ra-mos até que ponto as teorias científicas se apoiam nas evidênciasproduzidas sob condições artificiais de uma experimentação con-trolada, podemos avaliarque as situações complexas no mundo realestão além do controle de uma análise cientifica completa. Porexemplo, embora a ciência contemporânea seja muito capaz de

produzir respostas precisas para as questões que dizem respeito àmeia-vida de diversos componentes do lixo radioativo ou ao q uantoo vidro de borossilicato se desintegra quando exposto a determinadosgraus de umidade, as precisas conseqüências a longo prazo doprovável resultado das dive rsas técnicas de dispor o lixo nuclea r nãopodem ser determinadas cientificamente porque nosso conhecimen-to científico não é gerado para tratar da complexidade de situaçõesna vida real, como a que se obtém quando o lixo nuclear é encerradoem vidro de borossilicato e enterrado em buracos profundos ou

lançado em órbita planetária! Embora seja importante admitir queo conhecimento científico é um poderoso auxílio para nossasintervenções tecnológicas, mecânicas e ambientais no mundo epara nossa compreensão de seus possíveis efeitos, reconhecer aslimitações da ciência em relação a isso é um corretivo necessáriopara as mistificações e exageros que normalmente acompanham as

reivindicações dos tecnocratas (veja, por exemplo, Lowe, 1987)-

Ultrapassamos o legítimo domínio da ciência quando introdu-zimos questões a respeito da conveniência e segurança das diversasintervenções tecnológicas no mundo. Nesse ponto, é importante

de de interesses associados a diversas pessoas, grupos e classes epara admitir qu e esses interesses freqüentemente entram e mconflito. Quando a segurança de uma usina de energia nuclear estáem questão, por exemplo, isso faz enorme diferença do ponto devista daqueles cuja segurança será avaliada, sejam proprietários dausina, trabalhadores ou habitantes da s redondezas, sejam os indus-triais que poderão comprar energia abundante a um preço baixo.Os esforços para transformar a análise do risco em uma ciência,de modo a que a segurança de uma usina de energia se expresseem alguma medida objetiva, obscurecem os conflitos políticosimplícitos eproporcionam uma impressão ilusória da precisão com

que essas projeções são possíveis.

Bastante influente, mas sem muita base, a ideologia de nossa

época envolve um a extensão da ciência be m além de seus limitesverdadeiros, de modo que os problemas sociais e políticos sãoconstruídos como se fossem científicos e as "soluções" oferecidasde maneira a obscurecer as questões sociais e políticas em jogo.Por exemplo, temos extensões ilegítimas da biologia e da teoriaevolucionária na forma do darwinísmo social e da sociobiologiacolocadas como explicações dos fenômenos sociais, disfarçandoassim as realidades políticas e servindo para justificar os diversosgêneros de opressão, como a dos pobres, das mulheres ou das

minorias raciais; em época mais recente testem unhamos umatendência crescente para reduzir as questões sociais a questõeseconômicas, tratadas por uma (pseudo)ciência da economia. Estámuito além do escopo deste livro explorar questões dessa impor-tância. Contudo, um a compreensão correta da natureza da ciência,dos tipos de realização de que é capaz e também de suas limitaçõesé pré-requisito para tratá-la de m aneira satisfatória.

Não estou absolutamente sozinho ao refletir sobre as tendên-cias sociais no mundo contemporâneo com desânimo e susto. Ogolfo entre ricos epobres eentre os países desenvolvidos e os países

164 A L A N C HALM ER S

subdesenvolvidos se amplia, o ambiente está sendo destruído epaira a ameaça da eliminação da vida. Os problemas sociais epolíticos que e stão a nossa frente são urgentes e vitais. Não pensoque esta causa seja auxiliada por concepções da ciência como

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conspiração capitalista masculina ou como algo impossível dedistinguir da magia negra ou do vudu.

E agora o me u nariz começou a sangrar...

APÊNDICE

A EXTRA ORDINÁRIA PRÉ-HISTÓRIADA LEI DA REFRAÇÃO

Esta lei diz que, quando um raio de luz passa de um meio a

outro, a proporção do seno do ângulo de incidência para o senodo ângulo de refração é uma característica constante do par demeios. A lei foi descoberta experimentalmente por Marriott, teori-camente resolvida de maneira independente po r Descartes e cha-mada de le i de Snell.

Os estudos teóricos e experimentais da reflexão datam daAntigüidade. Euclides certamente já conhecia a lei da reflexão lápelo ano 300 a. C. e, no início do século II d. C., Ptolomeu realizouexperiências para fundamentá-la. Ptolomeu também realizou o que

parece ter sido o primeiro estudo detalhado da lei da refração.Ocuparemos-nos aqui da história, começando pela obra de Ptolo-meu .

O primeiro aspecto interessante da notável série de eventosqu e levaram à descoberta da lei de Snell está no fato de Ptolomeuhaver subrepticiamente adaptado suas descobertas e xperimentaisde modo a que se conformassem a uma idéia preconcebida. Aseguir, depois da queda do Império Romano, cientistas árabestomaram para si a tarefa de aperfeiçoar os resultados obtidos porPtolomeu. Eles adotaram métodos mais sofisticados para o ajuste

166 A L A N CHA LME RS

dos resultados experimentais. Enquanto isso, na Europa ocidental,

foram perpetradas outras fraudes com mentalidade menos mate-

mática. Essa história extraordinária aproxima-se do fim quando as

duas tradições convergem em Kepler, que quase conseguiu desco-

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 167

de refração; (2) que os raios normais para a superfície não são

refratados; e (3) que a quantidade da refração depende da densida-

de dos meios. Apresentou também algumas desigualdades. Porexemplo, mostrou que se i t e i2 são dois ângulos de incidência e

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brir a lei da refração.

A Ótica de Ptolomeu já não existe mais. Uma versão árabe do

original grego também se perdeu. No entanto, foi feita umatradução latina daversão árabe em meados do século XII, que ainda

existe. Há uma tradução para o inglês de trechos pertinentes ao

nosso tema em Cohen e Drabkin (1985, p. 271-81). Para a

finalidade deste texto, presuma-se que essa versão inglesa da tra-

dução latina da interpretação do original grego corresponde ao que

Ptolomeu realmente tenha escrito.

Os experimentos de Ptoíomeu com a refração diferem muito

pouco daqueles com que nos aborrecemos na escola. Para investi-gações numa interface ar-água a experiência é feita da maneira que

exporei a seguir. Um disco circularde cobre, com a circunferênciamarcada por intervalos de um grau, era apoiado a um plano vertical

com um diâmetro coincidindo com uma superfície de água. Ummarcador colorido era fixado ao centro do disco, na interface

ar-água. Um segundo marcador era fixado à circunferência acima

da água, de modo a que a linha de união dos dois marcadores

definia um raio de incidência. Um terceiro marcador podia sermovimentado em torno da circunferência do disco abaixo da

superfície da água até que, visto de cima, estivesse alinhado com

os dois marcadores já mencionados. A linha que unia esse terceiromarcador ao centro do disco correspondia então ao raio refratado.Dessa maneira, Ptolomeu registrava os ângulos de refração, r, que

correspondiam a ângulos de incidência, i, que iam de l O a 80 graus,a intervalos de 10 graus. Ele realizou investigações semelhantes

sobre a refração em interfaces ar-vidro e água-vidro empregando

um semicilíndro de vidro.

Ptolomeu fe z comentários qualitativos sobre os resultados. Por

exemplo, ele observou: (1) que o raio de incidência e os raios

retratados ficam num plano perpendicular em relação à superfície

se ^ e r2 são os ângulos de refração correspondentes, e se i2 > ii,então t2 / t'i > f i / " f \ - Ptolomeu não afirmou que t é proporcional a

r como alguns historiadores afirmam - por exemplo, A. C.

Crombie(1962, p. 120).

Além de suas observações qualitativas, Ptolomeu apresentou

resultados numéricos, sem comentá-los. As duas primeiras colunas

da Tabela l mostram esses resultados em relação a sua investigação

numa interface ar-água, que têm uma certa regularidade. Os valores

consecutivos de r diferem entre si por uma quantidade que decresce

uniformemente, conforme aumenta r. As segundas diferenças são

constantes e iguais a meio grau. Como outros já fizeram antes,

especialmente A. Lejeune (1946), eu diria que Ptolomeu adaptou

suas leituras experimentais de maneira a que tivessem essa regula-ridade. Restringindo-me inicialmente ao trabalho de Ptolomeu na

interface ar-água, apresento quatro argumentos que sustentam

minha acusação.

Em primeiro lugar, como a regularidade nos resultados dePtolomeu não corresponde à situação real expressa na lei de Snell,é bastante improvável que os resultados equivocados possuíssem

aleatoriamente essa regularidade. O segundo argumento dizrespei-

to às discrepâncias entre os resultados citados por Ptolomeu e os

"verdadeiros" valores para r mostrados na terceira coluna daTabela l, calculados a partir de i usando um índice de refração de

l ,33. Na parte superior e na inferior da tabela, a discrepância entre

os valores de Ptolomeu e os valores corretos são maiores do que

se pode razoavelmente atribuir a um erro experimental. Para

determinar esse fato, repeti o experimento de Ptolomeu, recons-

truindo seu aparelho da maneira mais fiel possível e seguindo namedida do possível suas instruções bastante claras. Utilizando uma

escala de nove polegadas de diâmetro, descobri que r poderia sermedido muito folgadarnente em relação ao quarto de grau mais

168 A L A N CHA LME RS

próximo, com exceção do maior ângulo de refração, onde o erropoderia ser da ordem de até um grau. Admite-se que o uso de umaescala de três polegadas de diâmetro leve a erros prováveis muitomaiores, mas não há razões para acreditar que Ptolomeu tenha

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 169

O quarto ponto, que empresta plausibilidade à tese de quePtolomeu adaptou sua s leituras para que as segundas diferenças semantivessem constantes, é o fato de que as tabelas astronômicasbabilônicas que retratavam a distância angular traçada pelo Sol em

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preferido usar um a escala tão inconvenienteme nte pequen a. Pto-lomeu nã o especifica as dimensões de seu aparelho.

Tabela l - Resultados experimentais de Ptolomeu comparadosaos valores corretos

Resultados d e P t o l o m e u r corre to

r ° Calcu lado p a r a u m índicede refração de 1,33

1020

30

40

50

60

70

80

8

151/2

221/2

29

35

401/2

451/2

50

14°

22°

28°

35°

40°

44°

47°

30'

54'

5'

54'

10'

37 '

57'

46'

Em terceiro lugar, há evidências de que Ptoíomeu realmenteacreditasse qu e houvesse uma relação precisa entre i e r, pois e leahrmou ter demonstrado "que esse tipo de curvatura (refração) nãoocorre em ângulos iguais, m as que os ângulos, medidos a partirda perpendicular, têm um relacionamento quantitativo preciso"K*>hen e Drabkin, 1958, p. 272). Ptolomeu nã o ofereceu nenhu-m a prO em apoio a essa afirmação, a menos qu e a ordem de seusresultados seja considerada essa evidência.

me ses sucessivos (que e le muito p rovavelmente conhecia) possuís-sem precisame nte essa configuração. As séries matemáticas que osantigos conheciam muito bem, como a seqüência dos quadrados

dos números naturais, também a possuem. Vale a pena observarque, a essa altura da história, a idéia de uma função matemáticacontinua qu e liga um a variável a outra ainda estava por serdesenvolvida. Se existisse algum "relacionamento quantitativocontínuo" ligando i e r, as tabelas do tipo qu e estamos discutindoconstituiriam os únicos instrumentos matemáticos de que dispu-nha Ptolomeu para expressá-lo.

O fato de que os valores .para r que Ptolomeu registrou diferemmais dos valores corretos nos dois extremos da tabela do que no

meio sugere a idéia de que Ptolomeu tenha começado a partir domeio da tabela dos valores medidos, que podemos considerarestarem a meio grau em relação aos valores corretos, e adaptado osvalores no s dois extremos até que as segundas diferenças fossemconstantes e iguais a meio grau. Portanto, e le estava preparado parapermitir que as leituras adaptadas funcionasse m como as registra-das, segundo o método mais do que testado e muito conhecidopelos estudantes de ciência.

Até aqui, o argumento contra Ptolomeu referiu-se apenas aresultados para uma superfície ar-água. O argumento fica muitomais forte quando se observa que as outras duas tabelas deresultados de Ptolomeu, para as interfaces ar-vidro e água-vidro,mostram precisamente a mesma regularidade. A s segundas dife-renças são mais uma vez constantes e iguais a meio grau.

Diante do que se disse acima, a referência que G. Sarton (l927 ,p. 268) faz ao trabalho de Ptolomeu na ótica como "a mais notávelinvestigação experimental da Antigüidade", e a observação deB. Farrington (l 963, p. 294), de que "ob servamos aqui, como em

170 A L A N C H A L M E R S

outros textos, uma combinação de intuição e sistema característicado homem", assumem um certo ar de ironia.

As investigações óticas dos antigos cientistas árabes foram a

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 17 1

muitas vezes referiam-se à importância da experimentação na

ciência; contudo, po r seus estudos sobre a lei da refração é bemdifícil sustentar a tese de Crombie (1962), de que em sua obrapodem-se constatar as origens do moderno método experimental.

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primeira seqüência ao trabalho de Ptolomeu. Aqueles cientistasconheciam bem a Ótica de Ptolomeu e procuraram aperfeiçoá-lade diversas mane iras. Alhazen (965-1039 d. C.) escreveu um gran-

de tratado sobre a ótica e inúmeros trabalhos de menor importân-cia. Ele procurou aperfeiçoar as descobertas experimentais dePtolomeu criando um aparelho mais elaborado, cujo principalaperfeiçoamento era a substituição dos marcadores de Ptolomeupor um raio estreito de luz do Sol ou por uma vela. Alhazen chegoua adm itir que os resultados de Ptolomeu não era m exatos, em boraainda os empregasse quando procurava resultados das proprieda-des de concentração de uma esfera de vidro. Não citou nenhumade suas próprias medições de r.

Mais significativo para a nossa história é o trabalho realizadotrês séculos mais tarde po r al-Farisi. Al-Farisi aceitava a ordem quehavia nos resultados de Ptolomeu e lutou para aperfeiçoá-los, não

através de experimentos, mas empregando métodos "aperfeiçoa-dos" de cálculo. Utilizand o as leituras de P tolomeu onde r corres-pondia a i = 40° e i = 50° numa interface ar-vidro, al-Farisiclaramente utilizou um método "refinado", emprega ndo séries com

a primeira, segunda e terceira diferenças constantes para calcular rpara valores de i que iam de 1° a 17 ° em intervalos de um grau.Os valores resultantes de r diferem mais dos valores corretos do

que os de Ptolomeu. As técnicas empregadas por al-Farisi e ramcomuns entre os astrônomos árabes e provinham da astronomiada Babilônia, já citada. A o relacionar um a variável a outra usand otabelas de complexidade cada ve z maior, os cientistas árabesaproximaram-se mais da idéia de uma função contínua (paradetalhes, veja Schrarnm, 1965).

Ao contrário de sses primeiros cientistas árabe s, seus contem-porâneos da E uropa ocidental eram muito m enos sofisticados eadotaram uma abordagem mais qualitativa sob a influência dostextos de Aristóteles. Os autores medievais da Europa ocidental

Segundo Crombie, Robert Grosseteste foi um dos pioneiros dométodo experimental. Grosseteste dizia que a reflexão e a refraçãoda luz poderiam se r mais bem estudadas com as experiências.

Contudo, a lei da refração que ele propunha - ou seja: o ângulode refração é ametade do ângulo de incidência - pode ser refutadamuito simplesmente por meio do experimento. A discrepânciaentre a reverência ao experimento, por um lado, e a ausência deresultados concretos obtidos com a experimentação real, por outro,é ainda mais marcante nos textos do cientista da Silésia, Witelo.Passemos agora ao trabalho deste último.

Mais ou menos em 1270, Witelo escreveu um livro sobre aótica com b ase em todas as fontes que estavam à sua disposição,

inclusive as obras de Ptolomeu e Alhazen. Por nada menos quetrês séculos e meio esta foi a obra clássica da ótica - não apenasdevido à abrangência do tema, mas também porque, ao contráriode seus predecessores, estava escrita em latim legível. Nesse livro,Witeío discutia a refração. Uma de suas afirmações sobre ela éseguida por este trecho:

A comprovação dessa hipótese depende de experimentações feitas co minstrumentos, e não de outros tipos de demonstração. Portanto, quandose deseja encontrar a mane ira corno os raios de luz são refratados e m um

segundo meio transparente mais denso do que o primeiro, como na água,que é mais densa que o ar (supondo que se use o instrumento descrito por

Alhaz en) . . . (Crombie , 1962, p. 2Í9)

Witelo prosseguia, descrevendo detalhadamente um apare*"°para mensuração do s ângulos de refração que era uma versãoaperfeiçoada do de Alhazen. Com esse aparelho, ele poderia medirT para os raios qu e passavam em qualquer uma das duas direçõespelas interfaces ar-água, ar-vidro e água-vidro. Os resultados

172 A L A N CHA LME RS A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 17 3

citados por ele estão na Tabela 2. As diferenças entre i e r foram,incluídas nas tabelas de Witelo. O erro de subtração na primeiralinha é de Witelo.

Examinemos em primeiro lugar os resultados relativos a ar-

aparentemente baseava-se numa interpretação equivocada de Pto-lomeu, que escrevera em sua Ótica-.

Nossa proposição é a de que a quantidade da refração é a mesma no sdois tipos de passagens, mas as duas refrações são de tipo diferente. Em

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água. Com exceção da primeira leitura, esses são idênticos aos dePtolomeu e é provável que Witelo os tenha copiado. Seus resulta-dos relativos a ar-vidro são perfeitamente idênticos aos de Ptolo-meu . O fato de Witelo estar preparado para mudar a primeiraleitura é muito significativo. Sua modificação elimina a ordem portrás das leituras e mostra que ele não havia percebido essa ordem.Ele não conhecia as técnicas da matemática, que seus contempo-râneos árabes conheciam muito bem.

Tabela 2 - Os resultados "experimentais" de Witelo

Ar-água

10

20

30

405060

7080

7°15°22°29°35°40°

45°50°

r

45'

30'

30'

0'

0'

30'

30'0'

2

io

4°7

111519

2430

o

o

o

o

o

o

- r

5 '

30'

30'

0'

0'

30'

30'0'

12°

24 °

37 °

51°

65°

79°

94°110°

Água-ar

r

5'

30'

30'

0'

0'

30'

30'0'

2

47

11

1519

24

r

o

o

o

o

o

o

o

30°

- i

5

30)

30'

0

0

30

300

y

'j

Passemos agora à segunda metade da tabela de Witelo. Comoos raios que passam da água para o ar sofrem uma reflexão internatotal para grande s ângulos de incidência, um a espiada de um olhomoderno mostra que os resultados são absurdos e não poderiamser provenientes de me dições experime ntais. Não é difícil verificarcomo Witelo calculou esses ângulos de refração. Seu cálculo

sua passagem de um meio mais rarefeito (ou menos denso) para um maisdenso, o raio se inclina para a perpendicular, enquanto na passagem deum meio mais denso para um menos denso, ele se inclina para fora da

perpendicular. (Cohen e Drabkin, 1958, p. 279)

Essa é uma definição bastante descuidada da lei da reversibili-dade. Witelo interpretou isso da seguinte maneira: para determi-nado ângulo de incidência, um raio que passa do ar para a água édefletido por x graus na direção normal, e então um raio qu e passada água para o ar no mesmo ângulo de incidência será defletidopo r x graus do normal.

O fato de serem as leituras de Witelo em parte copiadas e emparte calculadas de uma teoria falsa e de que, em especial, osegundo conjunto tenha pouco a ver com o que realmente acontecereduz bastante a credibilidade e o significado do s sermões desteautor sobre a importância do experimento.

Nos três séculos que seguiram os eventos que acabo dedescrever, os europeus ocidentais tomaram conhecimento de umnúm ero cada vez maio r de textos árabe s e gregos. Os cientistas doRenascimento eram muito mais sofisticados em questões de mate-mática do que seus predecessores - e eram menos aristotélicos. Naprimeira década do século XVII, a pessoa mais notável para a nossa

história é Kepler, qu e voltou se u imenso conhecimento teórico paraum estudo sobre a ótica. Sua primeira fonte foi o texto de Witelo.Quando eleverificou o que pensava serem os resultados de Witelosobre a refração (que sabemos serem de fato de Ptolomeu), seuconhecimento das técnicas do s astrônomos fo i suficiente parafazê-lo perceber imediatamente a ordem que havia po r trás das lei-turas. Contudo, Kepler discordava de que o relacionamento entrei e r fosse aquele; estava convencido de que o relacionamentocorreto deveria assumir a forma de uma função tr igonométr ica.Kepler testou urn a série de funções trigonométricas em relação ao

17 4A LA N CHA LME RS

experimento. Tentou i - r = k sec i, 2i - r - k sen i, itan i - k tan r,

tan i ~ sen (i - r), l - tan i cot (i - r) = k tan i (aqui e le começa aentrar em desespero), l - tan i cot (i - r) = k sen i, i - r = k{ + k2 se ci, e finalmente, l - tan i cot (i - r) = k j + k2 sen i. Nenhuma dessas

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fórmulas mostrou-se satisfatória, e a essa altura Kepler aceitou a

derrota.

A descoberta da lei correta não estava muito longe. Talvez os

descobridores tenham sido três. Os manuscritos discutidos por

Shirley (1951) que estão no Museu Britânico mostram que Tho-

mas Harriott descobriu experimentalmente a lei por volta de 1616,embora não a houvesse divulgado. Snell também descobriu a lei

talvez pouco antes de 1626, pois ela é mencionada em seus

manuscritos. Também não a divulgou e até hoje não está muito

clara a maneira como chegou a ela. Descartes obteve teoricamente

a lei do seno, talvez á por volta de 1619, e foicom certeza o primeiro

a publicá-la, em 1637. Sabra (1967, capítulo 4) persuasivamente

afirma que Descartes chegou à lei independente e possivelmenteantes de Snell, ao contrário do que dizem outros autores. Para um

físico moderno, a atribuição à Descartes não é muito convincente,

pois baseia-se em falsos pressupostos e não tem argumentação lá

muito conclusiva. Entretanto, Sabra mostrou que a argumentação

de Descartes tem muito sentido, quando se considera sua teoria

dentro de seu contexto histórico.

A história da lei da refração certamente é um golpe em qualquer

idéia mais simplória de uma ciência progredindo uniformemente

através de cuidadosas generalizações a partir de resultados deobservação e experimento. O grotesco dos pesquisadores antigos

serve para mostrar que o método experimental que a ciência

moderna aceita sem discutir nem sempre existiu. A habilidade

artesanal que a experimentação exige, a cuidadosa eliminação das

fontes de erro, a repetição e a crítica das leituras e interpretações,

a estimativa de erros prováveis e assim por diante gradualmente

foram aparecendo durante o século XVII, e deve muito a pioneiros

como Kepler e Galileu. Quando pensam na natureza, os cientistas

modernos são muito mais hábeis do que foi Ptolomeu.

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ÍNDICE DE AUTORES

Albury, D.,160, 17 5Albury, R., 42, 175

al-Farisi, 170Alhazen,170-1

Althusser, L, 39,175Anscombe, E., 17 5Aquino, T. de, 47, 76, 143Aristóteles, 26 , 31, 46-8,75-6,170Arquimedes, 26,48-50, 56Armstrong, D., 40, 175

Bacon, R, 14 ,44 ,67-8

Barnes, B., 112, 114,129, 17 5Barnes, J., 46, 175Bartels.D., 160, 17 5Bhaskar, R., 53,91,175Block, L, 16,175Blondlot,R., 71,106,126

Bloor, D., 63,109, 111, 114, 115,124-5,1 7 5 - 6

BockJ.W., 7 6 , 17 6Brahe, T., 80, 82Brewster, D., 43, 45Burt t ,E .A. , 68, 176

Chalmers, A. F., 11, 17, 21, 25, 28, 50,66,105,116,120,154,176

Charleton.W., 12 2Chiaramonti, S., 75Clavelin, M., 48, 51,75, 17 6Clavius, C., 80Cohen, M. R., 166,168,173, 17 6Collier.A., 97, 176Collins, H. M., 13, 19, 21, 99-106, 110,

116,150,177Copérnico, N., 64-5, 72-3, 79 , 81-3

Cox,G., 13, 21,110,176-7Crombie .A. C., 1 6 7 , 1 71 , 1 77

Currie, G., 56, 181

Darwin.C., 117-9,131-2, 14 8Davy, H. , 160-3De Belidor, 42Demócrito, 43Descartes, R., 14, 24-5,35, 56, 165,174

Douglas, M., 115Drabkin, I. E, 166, 168, 173,17 6Drake, S., 53, 77 ,81 ,177Durkheim.E., 11 5

184A 1 A N CHA LME RS

Eddington, A., 56Edge.D.O., 37, 177EínStein,A.,36,41,56,88,100

Euclides,48-9,165

Farr ington, B., 169, 177

Kuhn.T., 27, 44, 63, 76, 153, 178-9

Lakatos, L, 12 , 15, 23, 27, 29, 32-7, 55,89,114,116,119,124,179

Latour, B., 110, 157,158, 179Laudan, L, 40,110, 120-4, 136, 179

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 185

Schwartz,]., 160, 175

Shapin, S., 12 9Shea.W. R.,51,181Shir ley,]. R . , 1 7 4 , 18 1Smith .A. , 145

Snell.W., 165, 174

Weber.J. , 100-6, 120, 126, 150

Weldon,W. F. R., 132

Wisan.W. L, 54, 181

Witelo, 171-3

Wood, R. B., 71

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Feyerabend, P. K., 13, 16-9, 27-8, 33, 58,

' 6 4 - 7 , 7 2 - 3 , 7 4 , 7 9 , 9 2 , 1 4 9 , 1 7 7Fresnel, A. J., 44, 121,155

Freud, S., 31

Freudenthal, G., 138-48, 17 7

Gaífcey, E. S.,16,177

Galileu, 18, 26, 37, 50-4, 62, 64-7, 72-84,91,94,116,149,174,177-8

Galton.F. , 131-4Gaukroger , S.,48, 78,178

Geach, P.T., 175

Geymonat, L, 75, 178

Gosset,W. S., 134Gower .B. , 18, 23,178

Grosseteste, R., 171

Hacking, L, 43, 97,114,178

Hamlyn.W., 125

Hanfl ing, O., 15, 178

H anson, N. R., 63, 70,113, 178

Harriott,T., 165, 174

Hertz , H., 56, 86-9,92,98 ,106,126,178Hesse, M., 115

Heibert, E.,43,178

Hindess, B., 97Hobbes.T., 143-7

Hon, G., 98, 178Howson, C., 178

H u m e , D., 25,178

Jacob, M. C., 147,178Johnston, R., 160, 175

Keech, M ., 13,21, 110

Kepler ,] . , 166, 173-4Knorr-Cetina, K. D., 105, 121-2, 139,

155-6,178Koertge, N ., 53, 178

Letbniz, G.W.,26Lejeune, A., 167, 179Locke .J. , 25, 40, 143,179

Lowe, L, 162, 175

Mackenzie , D., 111,129-38,175,180

Malthus,T. R., 117,148

Marx, K., 20Mauss, M., 115

Maxwell, J. C., 32, 56, 86, 88, 92, 118,

147,180

Merton, R. K., 159, 180

Mulkay, M., 37 , 111-4, 177-8 ,180Musgrave , A., 15, 89, 119, 179-80

Newton , L , 26, 29-30, 34-6, 54-5, 95,

130-48

Nickles.T. , 119,180

Paris, J. A., 16 0Pearson, K., 131-4,138Pemberton, H., 55

Pickering, A., 99, 102, 180

Platão, 46Poisson, S. D., 121

Popper , K. R., 12, 15, 23, 29-32, 40, 55,58,69,93-6,112-4,116,120,180

Porter.T. M., 118, 180Price, D. J. de S., 82, 180

Prout, W., 89

Psimopoulos, M ., 13, 16, 181

Ptolomeu, 50, 71 ,82 ,165-74

Rorty, R., 97, 180Rousseau,}.-}. , 14 5

Sabra, A.]., 174,180

Sarton, G., 169, 180Schramm, M ., 170, 18 1

Soddy, F., 89

Suchting.W., 39,181

Tait, P., 147,181Theocharis, T., 13, 16,181

Thomson, W., 147, 181Thurber,]., 63, 70, 78, 181

Tiles, M., 71,181

Turnbull , D., 109, 181

Wallace, W., 47, 181

Watk ins , ] . , 40, 181

Woolgar.S., 110,134,179, 181

Wooüett, E. L, 159,181

Worrall, J., 23, 56,155, 181

Yearley, S-, 134, 181

Young.R., 117-8,182

Young, T., 155

Yule .G. , 133-4