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1 ESTRADA REAL Carlos Fernando de Moura Delphim Arquiteto do IPHAN I - A Estrada Real A Estrada Real foi criada no século XVII pela Coroa portuguesa com o objetivo de controlar e fiscalizar a circulação das riquezas e mercadorias que transitavam entre Minas, onde se minerava ouro e diamante, e Rio de Janeiro, onde se situava o porto pelo qual essas riquezas eram enviadas por navio a Portugal. Sendo proibida a utilização de qualquer outra via para circulação no interior do país, a Estrada Real era freqüentada por todo tipo de gente. Ambulantes, comerciantes, militares, nobres e membros da família real, músicos, aventureiros, viajantes, como os europeus que descreveram o país, bem como os responsáveis pelas idéias revolucionárias que disseminaram o sonho de liberdade que pretendia transformar o Brasil em uma república independente. Dentre esses sonhadores, o mais venerado e que teve o mais nefasto destino, Tiradentes, cujo corpo foi esquartejado e as partes expostas em pontos estratégicos ao longo da Estrada Real. Ao redor dos seus mil e duzentos quilômetros surgiram vilas, povoados e cidades. O fim do ciclo do ouro legou a Estrada Real ao oblívio, o que, de certa forma, permitiu sua preservação até os dias de hoje, quando cresce um grande interesse por sua recuperação e utilização turística. A Estrada Real é formada 162 municípios em Minas Gerais, oito no Rio de Janeiro e sete em São Paulo. Há também remanescentes de trechos no estado da Bahia a reclamar investigações e estudos mais aprofundados por parte dos órgãos culturais.

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Page 1: CF1 Estrada Real fileI - A Estrada Real A Estrada Real foi criada no século XVII pela Coroa portuguesa com o objetivo de controlar e fiscalizar a circulação das riquezas e mercadorias

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ESTRADA REAL

Carlos Fernando de Moura Delphim Arquiteto do IPHAN

I - A Estrada Real

A Estrada Real foi criada no século XVII pela Coroa portuguesa com o objetivo de controlar e fiscalizar a circulação das riquezas e mercadorias que transitavam entre Minas, onde se minerava ouro e diamante, e Rio de Janeiro, onde se situava o porto pelo qual essas riquezas eram enviadas por navio a Portugal.

Sendo proibida a utilização de qualquer outra via para circulação no interior do país, a Estrada Real era freqüentada por todo tipo de gente. Ambulantes, comerciantes, militares, nobres e membros da família real, músicos, aventureiros, viajantes, como os europeus que descreveram o país, bem como os responsáveis pelas idéias revolucionárias que disseminaram o sonho de liberdade que pretendia transformar o Brasil em uma república independente. Dentre esses sonhadores, o mais venerado e que teve o mais nefasto destino, Tiradentes, cujo corpo foi esquartejado e as partes expostas em pontos estratégicos ao longo da Estrada Real. Ao redor dos seus mil e duzentos quilômetros surgiram vilas, povoados e cidades.

O fim do ciclo do ouro legou a Estrada Real ao oblívio, o que, de certa forma, permitiu sua preservação até os dias de hoje, quando cresce um grande interesse por sua recuperação e utilização turística. A Estrada Real é formada 162 municípios em Minas Gerais, oito no Rio de Janeiro e sete em São Paulo. Há também remanescentes de trechos no estado da Bahia a reclamar investigações e estudos mais aprofundados por parte dos órgãos culturais.

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II - A Estrada Real e o IPHAN

Compete ao IPHAN, independentemente da ereção do Caminho da Estrada

Real como Monumento Nacional, promover, de forma articulada a outros órgãos voltados para a preservação do patrimônio cultural, todos os estudos necessários à preservação de qualquer bem de valor histórico, sobretudo de uma rota de tão elevado valor como é a Estrada Real. Tais estudos visam a levantar bens passíveis de tombamento, a inventariar sítios arqueológicos, paisagens culturais e outros, além de identificar manifestações de patrimônio imaterial. O IPHAN é um órgão surgido em uma época em que as maiores ameaças ao patrimônio pairavam apenas sobre uma ou outra edificação. Em seguida, passaram a ameaçar centros históricos urbanos até chegar às atuais proporções, em que frações significativas de território devem ser objeto de cuidados. Por isto, este Instituto deve, doravante, adotar medidas mais amplas e diversificadas para defesa do patrimônio nacional, dentre as quais o tombamento é apenas uma delas.

Pela Constituição da República Federativa do Brasil, o Poder Público, com

a colaboração da comunidade, deve promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro. Considerando que todo o percurso e a bacia natural e cultural envolvente da Estrada Real é composto por sítios e paisagens de grande valor natural, histórico e cultural aos quais o IPHAN deve conceder atenção, promovendo inventários, registros, vigilância, tombamentos e, quando necessário, desapropriações, bem como outras formas de acautelamento e preservação. Dentre essas novas formas de acautelamento, cite-se a chancela de paisagem cultural e a declaração de Itinerário cultural.

O DEPAM deverá encaminhar às superintendências de Minas Gerais, Rio

de Janeiro e São Paulo solicitação de levantamento do maior número de bens de valor natural e cultural existentes ao longo da Estrada Real, trabalho que será

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enriquecido pela parceria com órgãos públicos e organizações civis de cada estado e de seus municípios.1

III - A Estrada Real como Itinerário Cultural

A Estrada Real é um itinerário cultural, segundo a definição do ICOMOS. Um itinerário cultural poderia ser comparado a uma bacia hidrográfica, que definida pelo conjunto de terras que faz a drenagem da água proveniente de mananciais e das precipitações para um curso de água principal. Deve-se entender como Itinerário cultural da Estrada Real, não apenas o via de circulação principal, mas toda a área geográfica circundante, onde quer que se encontrem sítios e paisagens de valor cultural.

A Estrada Real formou-se de forma análoga a uma bacia hidrográfica. Diferentes sítios naturais e assentamentos humanos instalaram-se pelos desníveis dos terrenos que a circundam, gerando uma bacia cultural, uma rede cuja medula espinhal é o cordão representado pela estrada, ramificando-se pelas áreas mais altas e mais baixas do território no qual se insere, e incluindo tudo aquilo que ali existe de representativo, sob o ponto de vista lato senso de patrimônio cultural, conforme definido pena Constituição Federal.

A definição de Estrada Real deve incluir não apenas as terras existentes ao longo da estrada mas ainda todo o conjunto de sítios e paisagens existentes em seus outros caminhos, sejam eles afluentes ou subafluentes

1 Verifica-se que a opinião do arquiteto Carlos Fernando vem de encontro às iniciativas

tomadas, em 2005, pelo coordenador deste projeto, ao solicitar a aprovação deste projeto de pesquisa à FAPEMIG

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A Estrada Real, uma unidade fisiográfica limitada por divisores topográficos, é um sistema que integra conformações de relevo e drenagem reunindo diversificadas manifestações culturais segundo inúmeros variáveis e fatores climáticos, geológicos, geomorfológicos, hidrológicos, históricos, culturais , de uso da terra e outros.

A Estrada Real é um itinerário cultural por excelência, recomendando-se, como modelo para orientar a ação de cada superintendência regional do IPHAN, o método sugerido pela proposta de versão definitiva para uma Carta de Itinerários Culturais, elaborada pelo Comitê Científico Internacional de Itinerários Culturais do ICOMOS. Tal método irá também se aplicar a outros roteiros e caminhos no país como, por exemplo, a Trilha da Retirada da Laguna que se inicia no Paraguai e termina no Mato Grosso do Sul, a Rota dos Tropeiros, mencionada por José Saia Neto, o Caminho da Imigração em Santa Catarina, a Rota da Erva Mate, que liga o Rio Grande do Sul a Mato Grosso do Sul, incluindo outros países sul-americanos.

Pela definição do ICOMOS o Itinerário Cultural é uma nova categoria de

patrimônio cultural que a UNESCO distingue, dentre outras características, da modalidade Paisagem Cultural, por desenvolver-se em torno de um elemento axial, no caso, a Estrada Real. Esse caráter inovador e multidimensional anexa novos valores qualitativos e quantitativos à teoria e à prática da preservação do patrimônio cultural.

Como a Paisagem Cultural, o Itinerário Cultural representa processos

complexos, instáveis, mutáveis, interativos, dinâmicos e evolutivos entre o homem e a natureza. Representa também a relação entre as diferentes relações humanas e as diferentes formas culturais, refletindo a rica diversidade de aportes dessas distintas contribuições ao patrimônio cultural.

Há muita similitude entre os dois conceitos e a forma de geri-los. Como a

Paisagem Cultural, o Itinerário Cultural revela, ao longo do tempo, o conteúdo patrimonial de fenômenos em constante mobilidade, sujeito a intercâmbios que se processam e se manifestam ao longo das vias de comunicação e de acesso, que permitem seu fluxo e que foram deliberadamente usadas e colocadas a serviço de um fim concreto e determinado. Nisto reside a grande diferença da Paisagem Cultural e do Itinerário Cultural com o tombamento. Os dois primeiros lidam com uma substância instável, enquanto o tombamento aplica-se com maior perfeição a bens mais estáveis.

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Um Itinerário Cultural harmoniza, integra e não se choca com outras

categorias de bens culturais atuais e pretéritos como monumentos, paisagens naturais, paisagens agro-pastoris, áreas silvestres, cidades e sítios históricos, étnicos, industriais, arqueológicos, geológicos, paleontológicos e outros. Define um sistema conjunto, realça seus significados, relaciona e articula os componentes em uma visão plural, mais completa e mais justa da história, favorecendo a comunicação entre diferentes grupos sociais, promovendo e consolidando a compreensão de valores até então isolados e contribuindo para a cooperação na defesa do patrimônio cultural brasileiro.

A grande força inovadora do conceito Itinerário Cultural é revelar o

conteúdo do patrimônio dentro de um quadro tão instável e em constante mobilidade que é a paisagem, girando, todavia, em torno de um eixo, no caso a Estrada Real, uma via de comunicação fisicamente determinada e caracterizada por uma dinâmica própria e específica e pela funcionalidade histórica a serviço de um fim concreto e determinado.

A Estrada Real reúne, resulta e reflete movimentos interativos de pessoas e

de intercâmbios multidimensionais, contínuos e recíprocos. Bens, idéias, conhecimentos e valores entre povos, paises, regiões ou continentes ao longo de consideráveis períodos de tempo. Gera uma fecundação múltipla e recíproca, no espaço e no tempo, das culturas afetadas que se manifestam tanto em seu patrimônio tangível quanto intangível. Integra as relações históricas e os bens culturais associados a sua existência em um sistema dinâmico.

Todos os Itinerários Culturais acham-se inscritos em um contexto natural e

cultural, para os quais contribui caracterizando, enriquecendo e conferindo novas dimensões e significados, em um processo interativo. O conceito apóia-se necessariamente na existência de elementos tangíveis, dos quais, neste caso, a Estrada Real é o centro ordenador. Esses elementos representam o testemunho patrimonial e a confirmação física de sua existência. Entretanto, seu sentido e significado são conferidos por fatores intangíveis. Muitos elementos relacionados

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com a funcionalidade da rota histórica constituem condições básicas para as manifestações patrimoniais tangíveis. Citem-se postos de armazenamento, postos fiscais e alfandegários, locais de parada e descanso, fazendas e outras propriedades rurais, pontes, aquedutos, pomares, quintais, jardins, cafezais, lugares sagrados, de culto e devoção. Construções coloniais, edificações religiosas como cemitérios, igrejas, capelas, ermidas, herdades, hospitais. Mercados, portos, construções militares e industriais, pontes, meios de comunicação e transportes, jazidas, minas, pedreiras, minerações e outros estabelecimentos comerciais e industriais ligados a produção, que reflitam as aplicações e avanços técnicos, científicos e sociais de diferentes épocas. Núcleos urbanos, paisagens culturais, museus, unidades de conservação, reservas ecológicas, locais de prática de esportes como o trekking, roteiros de caminhada pela fé, por ecoturismo, passeios de aventura, estações de águas minerais, lugares onde se pode desfrutar de culinária típica, dentre muitos outros, além de todos os outros elementos culturais de caráter imaterial que atestam o diálogo entre os habitantes instalados ao longo do percurso do Itinerário Cultural.

Segundo o ICOMOS, o conceito de Itinerário Cultural constitui um conjunto

de valor superior a cada um de seus elementos e mesmo à soma dos elementos que o integram e que lhe conferem sentido. O valor dessas partes reside em seu interesse comum, plural e participativo, sendo recomendável o tratamento integral de todos os elementos patrimoniais incluídos em um Itinerário Cultural. A diversidade desses elementos é uma alternativa na luta contra os processos de homogeneização cultural.

Além de evidenciarem-se por meio do traçado histórico de caráter físico e

dos elementos patrimoniais, os Itinerários Culturais contêm um fator dinamizador que atua como fio condutor pelo qual circulam influências culturais recíprocas. Os Itinerários Culturais permitem a que o patrimônio possa ser apreciado em sua autêntica dimensão espacial e histórica, o que contribui para a conservação integral e sustentável do conjunto.

O Itinerário Cultural é inseparável do entorno geográfico que contribuiu para

configurar-lhe o traçado. Conecta e relaciona geografia e diversificados bens patrimoniais formando um todo unitário; distingue-se do entorno territorial natural ou cultural, urbano ou rural, que definem um ambiente impregnado tanto de valores de natureza física como imaterial, indispensável para sua compreensão, conservação e desfrute. Em uns trechos do entorno predominam formações naturais como florestas, grutas, cursos e quedas d’água, formações que são sempre impregnadas de valores culturais universais ou locais. Em outros, urbanos ou rurais, muitas vezes despontam elementos isolados como cruzeiros, muros de pedra, mosteiros, oratórios, passos da via-sacra, capelas, ermidas, pontes. A delimitação da zona de entorno deve marcar, com precisão, rigor e clareza, uma zona de transição com o ambiente circundante, bem como zonas de amortização de impactos.

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Os trabalhos com o itinerário Cultural, só podem ser bem sucedido quando integrados com o maior número possível de parceiros institucionais. Prefeituras, universidades, agências de turismo, associações de moradores e outros. A preservação dos bens que compõem o itinerário cultural deve ser competência de órgãos federais, estaduais e municipais que devem promover todo as atividades mencionadas neste Parecer para sua preservação.

Carlos Fernando de Moura Delphim DEPAM/RJ/IPHAN