cesta de textos - arte da fala

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CESTA DE TEXTOS 1 , ARTE DA FALA J.W.Goethe: Canto dos espíritos sobre as águas A alma humana Semelha à água: Do céu descende, Ao céu ascende E renovada à terra desce, Eterna alternância... Jorra da alta Íngreme rocha O jato puro Que logo amável Pulverizando-se Vem ondulando A lisa pedra. E, leve, acolhido, Flana velado, Murmurinhando, Fundo abaixo. Erguem-se penhas À queda opondo-se. Segue insolente, Espumando raivoso Degrau em degrau Para o abismo. No leito plano Sai deslizando Vale adentro E, em liso lago, Pascem seu rosto Todos os astros. Vento é o amável Galante das ondas Mescla dos fundos Espuma ondulante. Alma humana Tu és como a água; Igual ao vento, Destino, és tu! FERNANDO PESSOA 8 poemas de “MAR PORTUGUÊS” - I - O INFANTE Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o mar unisse, já não separasse. Sagrou-se, e foste desvendando a espuma, E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, até ao fim do mundo, E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo. (Quem te sagrou criou-te português. Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal!) II- HORIZONTE Ó mar anterior a nós, teus medos Tinham coral e praias e arvoredos. Desvendadas a noite e a cerração, 1

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Cesta de Textos - Arte Da Fala

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Page 1: Cesta de Textos - Arte Da Fala

CESTA DE TEXTOS 1 , ARTE DA FALA

J.W.Goethe: Canto dos espíritos sobre as águas

A alma humanaSemelha à água:Do céu descende,Ao céu ascendeE renovada à terra desce,Eterna alternância...

Jorra da altaÍngreme rochaO jato puroQue logo amávelPulverizando-seVem ondulandoA lisa pedra.

E, leve, acolhido,Flana velado,Murmurinhando,Fundo abaixo.

Erguem-se penhasÀ queda opondo-se.Segue insolente,Espumando raivosoDegrau em degrauPara o abismo.

No leito planoSai deslizandoVale adentroE, em liso lago,Pascem seu rostoTodos os astros.

Vento é o amávelGalante das ondasMescla dos fundosEspuma ondulante.

Alma humanaTu és como a água;Igual ao vento,Destino, és tu!

FERNANDO PESSOA

8 poemas de “MAR PORTUGUÊS”- I - O INFANTE

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.Deus quis que a terra fosse toda uma,Que o mar unisse, já não separasse.Sagrou-se, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,Clareou, correndo, até ao fim do mundo,E viu-se a terra inteira, de repente,Surgir, redonda, do azul profundo.

(Quem te sagrou criou-te português.Do mar e nós em ti nos deu sinal.Cumpriu-se o Mar, e o império se desfez.Senhor, falta cumprir-se Portugal!)

II- HORIZONTE

Ó mar anterior a nós, teus medosTinham coral e praias e arvoredos.Desvendadas a noite e a cerração,As tormentas passadas e o mistério,Abria em flor o Longe, e o Sul sidério‘Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa -Quando a nau se aproxima ergue-se a encostaEm árvores onde o Longe nada tinha;Mais perto, abre-se a terra em sons e cores;E, no desembarcar, há aves, flores,Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveisDa distância imprecisa, e, com sensíveisMovimentos da esperança e da vontade,Buscar na linha fria do horizonteA árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte-Os beijos merecidos da Verdade

III - PADRÃO

O esforço é grande e o homem é pequeno.Eu, Diogo Cão, navegador, deixeiEste padrão ao pé do areal morenoE para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.Este padrão sinala ao vento e aos céusQue, da obra ousada, é minha a parte feita:O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano

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Ensinam estas Quinas, que aqui vês,Que o mar com fim será grego ou romano:O mar sem fim é Português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na almaE faz a febre em mim de navegarSó encontrará de Deus na eterna calmaO porto sempre por achar.

IV – O MONSTRENGO

O mostrengo que está no fim do marNa noite de breu ergue-se a voar;À roda da nau voou três vezes,Voou três vezes a chiar,E disse, “Quem é que ousou entrarNas minhas cavernas que não desvendo,Meus tectos negros do fim do mundo?”E o homem do leme disse, tremendo,“El-Rei D. João Segundo!”

“De quem são as velas onde me roço?

De quem as quilhas que vejo e ouço?”Disse o monstrengo, e rodou três vezes,Três vezes rodou imundo e grosso,“Quem vem poder o que só eu posso,Que moro onde nunca ninguém me visseE escorro os medos do mar sem fundo?”E o homem do leme tremeu, e disse,“El-Rei D. João Segundo!”

Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as reprendeu,E disso no fim de tremer três vezes,“Aqui ao leme sou mais do que eu:Sou um Povo que quer o mar que é teu;E mais que o mostrengo, que me a alma temeE roda nas trevas do fim do mundo,Manda a vontade, que me ata ao leme,De El-Rei S. João Segundo!”

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Page 3: Cesta de Textos - Arte Da Fala

V – FERNÃ0 DE MAGALHÃES

No vale clareia uma fogueira.Uma dança sacode a terra inteira.E sombras disformes e descompostasEm clarões negros do vale vãoSubitamente pelas encostas,Indo perder-se na escuridão.

De quem é a dança que a noite aterra?São os Titãs, os filhos da Terra,Que dançam da morte do marinheiroQue quis cingir o materno vulto –Cingi-lo, dos homens, o primeiro –Na praia ao longe por fim sepulto.

Dança, nem sabem que a alma ousadaDo morto ainda comanda a armada,Pulso sem corpo ao leme a guiarAs naus no resto do fim do espaço:Que até ausente soube cercarA terra inteira com seu abraço.

Violou a Terra. Mas eles nãoO sabem, e dançam na solidão;E sombras disformes e decompostas, Indo perder-se nos horizontes,Galgam do vale pelas encostasDos mudos montes.

VII – MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu salSão lágrimas de Portugal!Por te cruzarmos, quantas mães choraram,Quantos filhos em vão rezaram!Quantas noivas ficaram por casarPara que fosse nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a penaSe a alma não é pequena.Quem quer passar além do BojadorTem que passar além da dor.Deus ao mar o perigo e o abismo deu,Mas nele é que espelhou o céu.

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Page 4: Cesta de Textos - Arte Da Fala

VII – PRECE

Senhor, a noite veio e a alma é vil.Tanta foi tormenta e a vontade!Restam-nos hoje, no silêncio hostil,O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,Se ainda há vida ainda não é finda.O frio morto em cinzas a ocultou:A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia -,Com que a chama do esforço se remoça,E outra vez conquistemos a Distância –Do mar ou outra, mas que seja nossa!

VIII – ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA

Os Deuses da tormenta e os gigantes da terraSuspendem de repente o ódio da sua guerraE pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus.Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,Primeiro um movimento e depois um assombro.Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro,E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flautaCai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões,O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.

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Page 5: Cesta de Textos - Arte Da Fala

GONÇALVES DIAS: Canto do Piaga (trechos)

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Page 6: Cesta de Textos - Arte Da Fala

Ó Guerreiros da Taba sagrada,Ó Guerreiros da Tribo Tupi,Falam Deuses nos cantos do PiagaÓ Guerreiros, meus cantos ouvi.

Esta noite –era a lua já morta –Anhangá me vedava sonhar;Eis na horrível caverna, que habito,Rouca voz começou-me a chamar.

O meu sangue gelou-se nas veias,Todo inteiro – ossos, carnes – tremi,Frio horror me coou pelos membros,Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo,Ó Guerreiros, o espectro que eu vi.Falam Deuses nos cantos do Piaga,Ó Guerreiros, meus cantos ouvi!

Por que dormes, ó Piaga divino?Começou-me a Visão a falar,Por que dormes? O sacro instrumento

De per si já começa a vibrar.

Tu não viste nos céus um negrumeToda a face do sol ofuscar;Não ouviste a coruja de diaSeus estrídulos turva soltar?

Tu não viste dos bosques a comaSem aragem – vergar-se e gemer,Nem a lua de fogo entre nuvens,Qual em vestes de sangue, nascer?

E tu dormes, ó Piaga divino!E Anhangá te proíbe sonhar!E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,E não podes augúrios cantar?!

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,Ouve os sons do fiel Maracá;Manitôs já fugiram da Taba!Ó desgraça! Ó ruina! Ó Tupá!

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Page 7: Cesta de Textos - Arte Da Fala

CECÍLIA MEIRELES

EPIGRAMA

A serviço da Vida fui,A serviço da Vida vim;

Só meu sofrimento me instrui,Quando me recordo de mim.

(Mas toda mágoa se dilui:permanece a vida sem fim.)

RODA DE JUNHO Senhor S. João,Me venha ajudar,Que as minhas mazelasEu quero deixar,E os reinos da terraPerder sem pesar!

No fogo do chão,No fogo do ar,Queimei meus pecadosPara lhe agradar! O seu carneirinhoPrometo enfeitarCom rosas de prata,Jasmins de luar,Servir-lhe de joelhosBem doce manjar!

Em águas de rioEm águas de mar,Senhor S.João,Me venha banhar! A noite da festaNão deixe passar!Não durma, Santinho,No céu nem no altar!Quem está padecendoNão pode esperar!

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Page 8: Cesta de Textos - Arte Da Fala

CANÇÃO DO CARREIRO

Dia claro,vento sereno,roda, meu carro,que o mundo é pequeno.

Quem veio para esta vida,tem de ir sempre de aventura:uma vez para a alegria,três vezes para a amargura.

Dia claro,vento marinhoroda, meu carro,que é curto o caminho.

Riquezas levo comigo;impossível escondê-las:beijei meu corpo nos rios,dormi coberto de estrelas.

Dia claro,vento do monte,roda, meu carro,que é perto o horizonte.

Na verdade, o chão tem pedras,mas o tempo vence tudo.Com água e vento quebra-asem areia de veludo...

Dia claro,vento parado,roda, meu carro,para qualquer lado.

Riquezas comigo levo.Impossível encobri-las:troquei conversas com o ecoe amei nuvens intranqüilas.

Dia claro,de onde e de quando?Roda, meu carro,pois vamos rodando ...

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Page 9: Cesta de Textos - Arte Da Fala

Bolhas

Olha a bolha d’águaNo galho!Olha o orvalho!

Olha a bolha de vinhoNa rolha!Olha a bolha!

Olha a bolha na mãoQue trabalha!

Olha a bolha de sabãoNa ponta da palha:Brilha, espelhaE se espalhaOlha a bolha!

Olha a bolhaQue molhaA mão do menino:

A bolha da chuva da calha!

Tanta tinta

Ah! menina tontaToda suja de tintaMal o sol desponta!

(sentou-se na ponte,muito desatenta...e agora se espanta:quem é que a ponte pintacom tanta tinta?...)

A ponte apontae se desaponta.A tontinha tentalimpar a tinta,ponto por pontoe pinta por pinta...

Ah! a menina tonta!Não viu a tinta da ponte!

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Page 10: Cesta de Textos - Arte Da Fala

Os carneirinhos

Todos querem ser pastores,Quando encontram de manhã,Os carneirinhosComo carretéis de lã.

Todos querem ser pastoresE ter coroas de floresE um cajadinho na mãoE tocar uma flautinhaE soprar numa palhinhaQualquer canção.

Todos querem ser pastoresQuando a Estrela da ManhãBrilha só, no céu sombrio,E, pela margem do rio,Vão descendo os carneirinhosComo carretéis de lã...

O mosquito escreve

O mosquito pernilongoTrança as pernas, faz um M,Depois, treme, treme, treme,

Faz um O bastante oblongo,Faz um S

O mosquito sobe e desce.Com artes que ninguém vê,Faz um Q,Faz um U e faz um I.

Esse mosquitoEsquisitoCruza as patas, faz um T.E aí,Se arredonda e faz outro O,Mais bonito.

Oh!Já não é analfabeto,Esse inseto,

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Page 11: Cesta de Textos - Arte Da Fala

Pois sabe escrever seu nome.

Mas depois vai procurarAlguém que possa picar,Pois escrever cansa,Não é criança?

E ele está com muita fome.

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Page 12: Cesta de Textos - Arte Da Fala

TROMBETEIA A TEMPESTADE

Ruth Salles

Vai e vem voando o vento, faz a festa na floresta,fino e forte qual navalha, vira a folha, que farfalha.

Rasga os ramos e os derruba, Gira, gira, em disparada, Fere a terra e a rodopia, espiral desenrolada.

Logo a leve luz da lua já se aninha em negra nuvem.Nessa névoa, a lua alada lá se anula e não é nada.

Trombeteia a tempestade, se encadeia, e desce, e dança,canta e toca na vidraça.Que tormenta! Que mudança!

(Um sussurro sobe e soa, um zumbido zine e zoa: é o som que sai da casaque agasalha uma pessoa.)

Quase cai aquela casa! E o lugar foi-se alagando... Mas agora o quadro acalma, cada gota vai secando.

Tudo espaça e logo passa, toda bulha vai embora. Já se espalha a bruma baça, brilha o astro em boa hora.

Como a chuva encharca o chão! Eu me ajeito, gotejando, me queixando, a gracejar, relaxando... bocejando...

Page 13: Cesta de Textos - Arte Da Fala

Ruth Salles

SACI-PERERÊ

Saci-pererê,duende encantadomãozinha furada,barrete encarnado.

No redemoinho,do meio do pó,surgiu o negrinhode uma perna só.

De pito na boca,olhando brejeiro,tramou travessuras,entrou no terreiro.

Apagou meu fogo,azedou o feijão,fez trança no rabodo meu alazão.

Puxou bem as caudasde todos os bois,juntou num só nóe fugiu depois.

Saci-pererêsó faz confusão.Tirou a banqueta,e eu sentei no chão.

A ARANHA

Uma aranha tece a teia,meia volta e volta e meia;solta o fio e salta lá,vai de volta e volta cá.Sem ter régua nem esquadro,já reforça assim o quadro.Dentro dele é que ela tece,gira, gira e sobe e desce.Como brilha rendilhadaessa teia inacabada!Pois ainda um fio agorasai da teia para fora.

Page 14: Cesta de Textos - Arte Da Fala

Nessa linha bem comprida,eis a aranha escondida!Quando o fio treme bem,ela sabe que já temlá na teia uma presapara a sua sobremesa.

Page 15: Cesta de Textos - Arte Da Fala

Início de “Prólogo no Céu” do Fausto de Goethe

trad. Jenny Klabin-Segall

RAFAEL:

Ressoa o sol no canto aladodos orbes no infinito espaço,e seu percurso pré-traçadovence com majestoso passo.Anima os anjos a visãode inescrutável harmonia:da obra máxima a imensidãopasma, qual no primeiro dia.

GABRIEL:

E em ronda arrebatada e eternagira o esplendor do térreo mundo;radiante luz do céu se alternacom mantos de negror profundo; ao pé da rocha a fúria vasta do mar espuma pelas eras,e rocha e mar consigo arrastao curso infindo das esferas. MIGUEL:

E rugem furacão e ventoda terra ao mar, do mar a terra,formando um vasto encadeamentoque efeitos sem limite encerra.Fulgura o raio arrasadorque do trovão precede a via;mas cantam núncios teus, Senhor,o suave curso de teu dia.

OS TRÊS:

Anima os anjos a visãode inescrutável harmonia:e de Tua obra a imensidãopasma, qual no primeiro dia.

Page 16: Cesta de Textos - Arte Da Fala

Princípios métricos arquetípicos épicos em Homero e hinos religiosos: Hexâmetro dactílico:

Sal-ve De-mé-ter, mãe Ter-ra que cui-da de to-das as plan-tas, = + + = + + = + ( + = +) + = + + = + + = + (+ = + +)

Mos-tr<a aos> mor-tais co-mo de-vem a-rar com cui-da-do seus cam-pos = + + = + + = + (+ = +) + = + + = + + = + (+ = + +)

Vem e se-mei-<a as> se-men-tes e col-he de-pois to-do tri-go = + + = + + = + ( + = +) + = + + = + + = + ( + = + +)

Lo-go de-bul-h<a as> es-pi-gas e guar-da seus grãos es-co-lhi-dos = + + = + + = + ( + = +) + = + + = + + = + ( + = + +)

Mõe ca-da grão e fa-bri-ca a fa-rinh-<a e> de-pois faz o pão = + + = + + = + ( + =) + + = + + = + + = ( + + = + + )

Texto:

Salve Deméter mãe terra / que cuida de todas as plantas,Mostra aos mortais como devem / arar com cuidado seus camposVem e semeia as sementes / e colhe depois todo trigoLogo debulha as espigas / e guarda seus grãos escolhidosMõe cada grão e fabrica / a farinha e depois faz o pão.

Ruth Salles

Page 17: Cesta de Textos - Arte Da Fala