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Page 1: Cesário Verde introd - onossocanto.files.wordpress.com · DADOS BIOBIBLlOGRÁFICOS DE CESÁRIO VERDE José Joaquim Cesário Verde, primeiro de quatro filhos de José Anas-tácio

DADOS BIOBIBLlOGRÁFICOS DE CESÁRIO VERDE

José Joaquim Cesário Verde, primeiro de quatro filhos de José Anas-tácio Verde e de Maria da Piedade dos Santos, nasceu a 25 de Feve-reiro de 1855, em Lisboa. Seu pai era um comerciante de ferragens abastado, que também se dedicava à agricultura na sua propriedade rural em Linda-a-Pastora. Cesário Verde foi, assim, educado para as realidades práticas da vida, das quais a formação religiosa não “Nós ignoramos, sem religião,/Ao rasgarmos caminho, a fé perdida,”*), pelo que na sua poesia não se encontram referências a Deus ou qualquer preocupação metafísica. No Verão de 1857, a família viu-se forçada a instalar-se na sua quinta para fugir à peste que dizimava a capital: “Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre/E a Cólera também andaram na cida-de,/Que esta população, com um terror de lebre, / Fugiu da capital como da tempestade.”*. Apenas em Dezembro de 1858, a família se mudou novamente para a Rua dos Fanqueiros, onde tinha a sua loja: “Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa, /Triste de ouvir falar em órfãos e em viúvas,/E em permanência olhando o horizonte em brasa,/Não quis voltar senão depois das grandes chuvas."*, Em virtu-de dos pais fazerem a sua vida entre a capital e a sua quinta, Cesário Verde contatou, desde cedo, com a cidade e o campo. Desta vivência da infância guardou uma profunda impressão: “E o campo, desde en-tão, segundo o que me lembra,/É todo o meu amor de todos estes anos.”* Em 1865, Cesário Verde realizou o seu exame de instrução primária, sendo provável que tenha começado, por esta altura, a dar os primei-ros passos na sua atividade comercial ao balcão do estabelecimento do pai. Desta forma, foi educado para o comércio e para a agricultura. Contudo, é a partir de 1872 que, efetivamente, começou a trabalhar na loja paterna. Nesta época, havia já sete anos que vivia com a fa-mília na Rua do Salitre, em Lisboa, fazendo o percurso a pé até à loja de ferragens, o que lhe permitia observar e sentir a vida citadina da capital, cujo retrato traçou de modo objetivo e rigoroso na sua obra. Aquando da publicação dos seus primeiros versos no Diário de Notí-cias, em 1873, matriculou-se no Curso Superior de Letras que fre-quentou apenas algum tempo, depressa retomando a sua atividade no estabelecimento da família como correspondente comercial. Du-rante a sua passagem pela faculdade, Cesário Verde relacionou-se com os jovens letrados de então, mas sobretudo com Silva Pinto, “o mais devotado dos seus amigos”. Ao longo do ano de 1874, publicou vários poemas em diversos jornais e revistas, nomeadamente: “Cinismos”, “Responso”, “Cantos de Tris-teza”, “Esplêndida”, “Arrojos”, “Vaidosa”, “Cadências Tristes”; em 1875, “Desastre”, “Deslumbramentos”, “Humorismos do Amor”, “Ironi-as do Desgosto”; em 1876, “A débil” e “Nevroses”, este último editado no seu livro póstumo com o título de “Contrariedades”.No entanto, a sua produção poética foi bas tante incompreendida e duramente criti-cada pelos intelectuais da época como Ramalho Ortigão e Teófilo Braga, pelo que Cesário se refu giou cada vez mais na sua atividade comercial e agrícola sem, contudo, ter deixado de escrever. A partir de 1878, passou a viver em Linda-a-Pastora, publicando, por

1848 - Inauguração da iluminação a gás, no Chiado.

1856 - Abertura do caminho -de - fe r ro ; epidemia de cólero-morbo.

1857 - Epidemia de febre amarela.

1859 - Fundação do Curso Superior de Le-tras por D. Pedro V.

1865 - Questão Co-imbrã; fundação do Diário de Notícias. 1866 - Reuniões do Cenáculo. 1867 - Abolição da pena de morte. 1869 - Abolição da escravatura. 1871 - Realização da Conferências Demo-cráticas do Casino.

1875 - Fundação do Partido Operário So-cialista.1877 - O caminho de ferro chega ao Porto1878 - Instalação de candeeiros elétricos no Chiado.

* Poema “Nós”

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Docente: Ana Paula Ferreira

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essa altura, “Noitadas” e “Num Bairro Moderno”; em 1879, “Manhãs Brumosas”, “Cristalizações” e “Em Petiz”; e, no âmbito das comemora-ções do tricentenário da morte de Camões, em 1880, “O Sentimento dum Ocidental”, o que lhe valeu novamente fortes críticas mordazes, nomeadamente no Diário Ilustrado e na Tribuna do Povo.

1880 - Comemora-ção do tricentenário da morte de Camões.

Assim, desiludido e marginalizado, apenas em 1884, Cesário Verde surgiu a lume com o poema “Nós”, onde deixa transparecer o seu desencanto face a “tanta crueldade e tantas injustiças”, con-fessando amargamente que tem “momentos maus, tão tristes, tão perversos” a tal ponto que sen-te “só desdém pela literatura” e até despreza e esquece os seus “amados versos”. Por esta altura, já Cesário se sentia algo debilitado: a tuberculose minava-lhe o corpo e a alma. Durante o ano de 1885 agravou-se bastante o seu estado de saúde já precário pelo que,em 1886 mudou-se para Caneças e depois para os Paços do Lumiar, em busca de ares mais saudáveis mas, principalmente, duma cura. Em Junho, numa carta a Macedo Papança conde de Monsaraz, que conhecera em 1875 e de quem se tornara amigo, desabafou a sua apreensão: “Subitamente, chegam-me dúvidas, descrenças, terrores de futuro. Curo-me? Sim, talvez”. O milagre, no entan-to, não se deu e Cesário Verde à semelhança de sua irmã Júlia e seu irmão Tomás,acabou por morrer tuberculoso, a 19 de Julho desse mesmo ano. Em Abril de 1887, Silva Pinto, amigo “para a vida e para a morte”, editou O Livro de Cesário Verde no qual reuniu os poemas do poeta que, embora subestimado pelos seus contemporâneos, é hoje uma referência na literatura.

A POESIA DE CESÁRIO VERDE

Lisboa é, na época de Cesário Verde, uma cidade de contrastes, não só no aspecto arquitectóni-co, que opunha os bairros antigos aos modernos; mas também e sobretudo no desfasamento que havia entre os ricos e os pobres. Com o incremento da produção industrial e do número de pes-soas que iam para a cidade em busca de trabalho, a vida na capital tornou-se quase insustentá-vel: problemas de insalubridade pública agravavam o risco de contrair doenças. A taxa de mortali-dade era elevada, nomeadamente devido à tuberculose e à pneumonia. Dadas as condições de trabalho extremamente precárias, havia diariamente vítimas de acidentes laborais. O desespero do desemprego e de situações deploráveis de sobrevivência não raro conduziam ao suicídio. A poesia de Cesário Verde é, precisamente, o espelho desta realidade, onde se refletem os pe-quenos dramas da vida (ou a beleza da mesma). Na sua deambulação pelas ruas da cidade, o escritor observa atentamente o que o rodeia: capta os cheiros, os ruídos, as formas, o comporta-mento dos transeuntes e a sua linguagem, o interior das casas, das lojas e dos cafés; que o atra-em mas, simultaneamente, deprimem e nauseiam. Numa carta a Silva Pintor, Cesário afirma mesmo: “Eu não sou como muitos que estão no meio de um grande ajuntamento de gente e com-pletamente isolados e abstratos. A mim o que me rodeia é o que me preocupa.” É, pois, esta rea-lidade, sensorial e quotidiana, que surge retratada de forma singular e concreta na sua poesia, cujo caráter prosaico a aproxima da prosa ao narrar aspectos vulgares do quotidiano. No entanto, a par desta objetividade há, sem dúvida, a expressão subjetiva da realidade percepcionada pelo olhar do poeta, pelas impressões e sensações que esta lhe desperta: “E tangem-me, excitados, sacudidos,/O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato"1. A questão social

A crítica à sociedade dos fins do século XIX é uma das temáticas da poesia de Cesário Verde, “o poeta do olhar” sobre os espaços, o trabalho e as pessoas do quotidiano citadino. Através da sua visão do real, e da sua técnica realista, o poeta traça o retrato de Lisboa, das suas transforma-ções sócio-económicas e, mesmo, culturais; denunciando os contrastes e as injustiças sociais que o preocupam e revoltam: “Do patamar respondeu-lhe um criado:/Se te convém, despacha;

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Docente: Ana Paula Ferreira1 Poema “Cristalizações”

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não converses./Eu não dou mais./E muito descansado,/Atira um cobre lívido, oxidado.”2. Cesário não compactua com esta atitude de desdém do “criado” para com a “regateira” “rota” e “pequeni-na” e, ainda que se integre numa classe social privilegiada, é do contato com os mais humildes que recebe “As forças, a alegria, a plenitude”. Por conseguinte, o sujeito lírico apoia os desfavorecidos, as vítimas da opressão e da segregação citadinas, os que sofrem injustiças como é, por exemplo, o caso da “vizinha” no poema “Contrari-edades” que, tuberculosa e sozinha, tem de lidar sempre pois “Mal ganha para sopas ... “ e “deve a conta na botica!”, o que desperta a compaixão do poeta: “Que mundo! Coitadlnha!”. Ainda que em circunstâncias díspares das da vizinha, também Cesário se sente vítima da sociedade, expri-mindo claramente a sua revolta: “Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,/Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,/Um folhetim de versos”. Deste modo, a poesia de Cesário não se limita à pura apresentação do real, mas é antes a de-núncia dos dramas e injustiças sociais e das diferenças de classes geradoras de situações de de-sigualdades desumanas e humilhantes: “Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!/Que vida tão custosa! Que diabo!”3

O binómio cidade/campoDa vivência de Cesário Verde, desde a infância, entre o espaço citadino de Lisboa e o ambiente campestre de Linda-a-Pastora resulta a dicotomia cidade/campo na sua poesia. Com efeito, é em torno desta dualidade que o poeta organiza os seus poemas e define a sua identidade. Através do seu olhar perscrutador, Cesário recria o real com exatidão. A cidade surge em íntima relação com a poluição, a prisão, a opressão, a doença e a morte: “E eu desconfio, até, de um aneurisma! Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;/À vista das prisões, da velha Sé, das cruzes,/Chora-me o coração que se enche e que se abisma”4, A partir da descrição do quotidiano citadino, facilmente se adivinha a sua preferência por um espaço mais puro e natural como é o campo: “E o campo, desde então, segundo o que me lembro,/É todo o meu amor de todos estes anos!"5. Note-se, no entanto, que este não aparece ligado ao bucolismo ou ao devaneio poético, mas é antes um espaço real, com o qual o poeta se identifica e de cujas atividades (agrícolas) participa: “Hoje eu sei quanto custam a criar/As cepas, desde que eu as podo e empo./Ah! O campo não é um passatempo/Com bucolismos, rouxinóis, luar.”6, É também no campo, a sua ter-ra-mãe, que o poeta supera as suas limitações, colhe a sua força inspiradora, os temas e o estí-mulo para escrever: “No campo; eu acho nele a musa que me anima:/A claridade, a robustez, a acção."7. Daí que, não raro, se associe Cesário ao mito de Anteu, pois também este ser gigantes-co ia buscar a sua força à terra, sua mãe, para derrotar os estranhos que abordassem a costa da Líbia. O campo é, por oposição à cidade, sinónimo de liberdade, de fertilidade, de saúde e de vida: “Olá! Bons dias! Em Março/Que mocetona e que jovem/A terra! Que amor esparso/Corre os trigos, que se movem/Às vagas dum verde qarço!"8. Da paisagem campestre, Cesário canta os prazeres da lide rural e o dia-a-dia dos camponeses, com os quais se identifica e simpatiza. Pelo contrário, na cidade, o sujeito poético sente-se aprisionado, enjoado, perturbado, doente. Comove-se com o sofrimento do próximo, do trabalhador explorado que, na ânsia de aqui encon-trar melhores condições de vida, se vê confrontado com injustiças sociais. Desmascara os explo-radores dos pobres e a burguesia ociosa. Faz a apologia dos simples, dos humildes, dos margina-lizados: “Hoje entristeço. Lembro-me dos coxos,/Dos surdos, dos manhosos, dos manetas./Sulcavam as calçadas, as muletas>"9, E, no seu deambular pela cidade, o escritor capta

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Docente: Ana Paula Ferreira

2 Poema “Num Bairro Moderno”3 Poema “Cristalizações”4 Poema “O Sentimento dum Ocidental - Noite Fechada”.5 POema “Nós”.6 Poema “Nós”7 Poema “De Verão”.8 Poema “Provincianas”.9 Poema “Em Petiz - Os Irmãozinhos”.

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através dos sentidos (em particular do olhar) a realidade que o cerca e que denuncia na sua poe-sia, demonstrando uma preocupação social profunda e sincera: “Descalças! Nas descargas de carvão,! Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;/E apinham-se num bairro aonde miam ga-tas,/E o peixe podre gera os focos de infecção”10. A cidade adquire, assim, contornos de grande negatividade; ligando-se, igualmente, a este espa-ço um sentimento de humilhação social: os doentes são abandonados'!11, o povo é oprimido e dominado pelos poderosos12, e também estética, em que o poeta se revolta pelo facto de se sentir incompreendido em relação à sua poesia e “Por causa de um jornal lhe rejeitar, há dias,/Um folhe-tim de versos.”13. “Num Bairro Moderno”, por exemplo, o campo invade simbolicamente a cidade através da “visão de artista” do sujeito lírico que transforma “os simples vegetais” - que uma “regateira” traz na sua “giga” - num “ser humano”, num “novo corpo orgânico” de formas femininas, deixando transpare-cer o desejo de evasão do poeta de um espaço que o oprime para um outro que o liberta.

A imagem da mulherA mulher, em Cesário, surge integrada e intimamente relacionada com os dois espaços em que o poeta se movimenta. Na sua poesia, a mulher citadina é apresentada como fria, altiva, artificial, dominadora, desumana e destrutíva14: corroborando, precisamente, a descrição da cidade: “Contam que tens um modo altivo e sério,/ Que és muito desdenhosa e presumida,/E que o maior prazer da tua vida,/Seria acompanhar-me ao cemitério./[ ... l/Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,/A déspota, a fatal, o figurino,/E afirmam que és um molde alabastrino,/E não tens coração como as estátuas/[ ... l/Po-rém eu sei que tu, que como um ópio,/Me matas, me desvairas e adormeces.”15. Este tipo de mulher fatal reduz o poeta à condição de servo que se anula face à indiferença de que é vítima, gerando um sentimento de humilhação: “E eu vou acompanhando-a, corcovado,!No trottoir, como um doido, em convulsões,/Febril, de colarinho amarrotado,/Desejando o lugar dos seus truões,!Sinistro e mal trajado.”16. Pelo contrário, a mulher campesina desperta no sujeito poético um amor puro e libertador, que facilmente se associa ao campo: “Talvez já te esquecesses, ó bonina,!Que viveste no campo só comigo,! Que te osculei a boca purpurina,/E que fui o teu sol e o teu abrigo”17. Este tipo de mulher angélica, ainda que eventualmente integrada na cidade, é frágil, despretensiosa e autêntica pelo que o poeta não se sente obrigado a prostrar-se diante dela, antes a protege e estima. Saliente-se, contudo, que entre o poeta e a mulher amada cria-se sempre um distanciamento devido não só a incompatibilidades físicas: “Eu que sou feio, sólido, leal,/A ti, que és bela, frágil, assustada,! Quero estimar-te, sempre, recatada,/Numa existência honesta, de cristal.”'18; como também psico-lógicas e/ou morais intransponíveis: “A ti, que és ténue, dócil, recolhida,!Eu, que sou hábil, prático, viril.”19; pelo que o seu isolamento é praticamente inevitável. Há, ainda, ao longo dos seus poemas a referência à mulher que trabalha: “rota, pequenina”, “ma-gra, enfezadita” como a hortaliceira de “Num Bairro Moderno”; “lívida” e “tísica” como a “pobre en-gomadeira” de “Contrariedades”; hercúlea, galhofeira e varonil como as varinas de “O Sentimento dum Ocidental - Ave-Marias”. Esta mulher trabalhadora é cantada pelo poeta que se compadece da sua condição social, muitas vezes, desumana e discriminatória; denunciando, assim, as injus-tiças de uma sociedade que se aproveita das fraquezas dos menos favorecidos.

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Docente: Ana Paula Ferreira

10 Poema “O Sentimento dum Ocidental - Ava-Marias”11 Por exemplo em “Contrariedades”12 Por exemplo, em “Humilhações”13 Poema “Contrariedades”.14 No retrato que traça da mulher citadina fria e fatal, aproxima-se de Baudelaire15 Poema “Vaidosa”.16 Poema “Esplêndida”.17 Poema “Setentrional”.18 Poema “A Débil”19 Poema “A Débil”