cerâmica comum e barroco intemporal manuela almeida ferreira

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VI Encontro de Olaria Tradicional de Matosinhos 121 «... se ao cérebro da cabeça lhe ocorreu a ideia de uma pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, ou boneco de barro, o que ele faz é manifestar o desejo e ficar depois à espera, a ver o que acontece. Só porque despachou uma ordem às mãos e aos dedos, crê, ou finge crer, que isso era tudo quanto se necessitava para que o trabalho, após umas quantas operações executadas pelas extremidades dos braços, aparecesse feito. Nunca teve a curiosidade de se perguntar porque razão o resultado final dessa manipulação (...) se assemelha tão pouco ao que havia imaginado antes de dar instruções às mãos. Note-se que, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando pouco a pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto.» 1 Muita da olaria e da cerâmica vidrada portuguesa, na diversidade tecnológica, nas formas e nos cambiantes ornamentais que se lhe conhecem, desde um passado que começa no fim da Renascença e são reconhecíveis, em maior ou menor grau, ainda presentemente, é o repositório de várias diferentes estéticas eruditas. Autores como de Rocha Peixoto (1868 - 1909) e, depois, Emmanuel Ribeiro, chamaram a atenção para a persistência de formas da Antiguidade Clássica na olaria. 2 Precisemos que tais formas, clássicas ou pré-clássicas, remontando alto no tempo, são perpetuadas, exactamente como eram outrora, sem que a sua transmissão tenha sequer sido apoiada ─ e isso é o mais notável ─ em quaisquer livros de padrões. São disso exemplo hidrocerames como o asado do Carapinhal (Miranda do Corvo) e a ânfora do Barlavento algarvio, mas também um tipo de taça do Redondo, carenada à maneira de uma forma da tipologia de Dragendorf para o estudo da cerâmica romana que, no presente contexto, não nos parece indispensável precisar, e o cantil, disseminado um pouco por todo o país. a No que respeita a aspectos ornamentais, e cingindo-nos a um caso, parece-nos evidente que a técnica empregue na decoração, após vidragem das peças enchacotadas, mas anterior à cozedura do revestimento vítreo, praticada nas olarias do Redondo, deriva do esgrafito que foi profusamente praticado, entre os séculos XI e XVII, na área geográfica dos mundos bizantino e post-bizantino, de onde se disseminou para o ocidente da bacia do Mediterrâneo. 3 Para além desta filiação, e à medida que o nosso interesse sobre a olaria e a cerâmica portuguesas foi aumentando, fomos reunindo intuições várias sobre uma outra fonte, por assim dizer, das características deste artesanato, a saber, o estilo barroco. Tendo olhado, mais atentamente e sob esse prisma, não só a dita produção cerâmica, mas igualmente outros objectos artesanais hodiernos, fomos acumulando elementos que parecem legitimar a asserção Cerâmica Portuguesa e Barroco Intemporal Manuela Almeida Ferreira a A Patrícia Lopes e a Nuno Santos (Mosteiro de Sta. Clara-a-Velha - Coimbra) expressamos a nossa gratidão por terem acedido a realizar o tratamento de todas as imagens que ilustram este texto 1 José Saramago, A Caverna, Lisboa: Editorial Caminho, 2000, p. 82-83. 2 Cf., por exemplo, Ribeiro, s.d. [1924?] e Peixoto, 1899-1903. 3 Byzantine Glazed Ceramics..., 1999, p. 17-56 e 158-186 (Grécia, sécs. XI-XIII), p. 115-117 (Itália, sécs. XIV-XVI) e p. 249-265 (Gré- cia, séc. XVI).

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Trata-se de um texto, ao estilo do ensaio, que reflecte sobre material cerâmico arqueológico da Idade Moderna, na intersecção da Arqueologia, da História da Arte e da Etnologia.

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«... se ao cérebro da cabeça lhe ocorreu a ideia de uma pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, ou boneco

de barro, o que ele faz é manifestar o desejo e ficar depois à espera, a ver o que acontece. Só porque despachou uma

ordem às mãos e aos dedos, crê, ou finge crer, que isso era tudo quanto se necessitava para que o trabalho, após

umas quantas operações executadas pelas extremidades dos braços, aparecesse feito. Nunca teve a curiosidade de

se perguntar porque razão o resultado final dessa manipulação (...) se assemelha tão pouco ao que havia imaginado

antes de dar instruções às mãos. Note-se que, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando

pouco a pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos olhos é importante,

tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi

precisamente revelar o oculto.»1

Muita da olaria e da cerâmica vidrada portuguesa, na diversidade tecnológica, nas formas e nos cambiantes

ornamentais que se lhe conhecem, desde um passado que começa no fim da Renascença e são reconhecíveis, em

maior ou menor grau, ainda presentemente, é o repositório de várias diferentes estéticas eruditas.

Autores como de Rocha Peixoto (1868 - 1909) e, depois, Emmanuel Ribeiro, chamaram a atenção para a

persistência de formas da Antiguidade Clássica na olaria.2

Precisemos que tais formas, clássicas ou pré-clássicas, remontando alto no tempo, são perpetuadas, exactamente

como eram outrora, sem que a sua transmissão tenha sequer sido apoiada ─ e isso é o mais notável ─ em quaisquer

livros de padrões. São disso exemplo hidrocerames como o asado do Carapinhal (Miranda do Corvo) e a ânfora do

Barlavento algarvio, mas também um tipo de taça do Redondo, carenada à maneira de uma forma da tipologia de

Dragendorf para o estudo da cerâmica romana que, no presente contexto, não nos parece indispensável precisar,

e o cantil, disseminado um pouco por todo o país.a

No que respeita a aspectos ornamentais, e cingindo-nos a um caso, parece-nos evidente que a técnica empregue

na decoração, após vidragem das peças enchacotadas, mas anterior à cozedura do revestimento vítreo, praticada

nas olarias do Redondo, deriva do esgrafito que foi profusamente praticado, entre os séculos XI e XVII, na

área geográfica dos mundos bizantino e post-bizantino, de onde se disseminou para o ocidente da bacia do

Mediterrâneo.3

Para além desta filiação, e à medida que o nosso interesse sobre a olaria e a cerâmica portuguesas foi aumentando,

fomos reunindo intuições várias sobre uma outra fonte, por assim dizer, das características deste artesanato, a

saber, o estilo barroco. Tendo olhado, mais atentamente e sob esse prisma, não só a dita produção cerâmica, mas

igualmente outros objectos artesanais hodiernos, fomos acumulando elementos que parecem legitimar a asserção

Cerâmica Portuguesa e Barroco IntemporalManuela Almeida Ferreira

a A Patrícia Lopes e a Nuno Santos (Mosteiro de Sta. Clara-a-Velha - Coimbra) expressamos a nossa gratidão por terem acedido a realizar o tratamento de todas as imagens que ilustram este texto1 José Saramago, A Caverna, Lisboa: Editorial Caminho, 2000, p. 82-83.2 Cf., por exemplo, Ribeiro, s.d. [1924?] e Peixoto, 1899-1903.3 Byzantine Glazed Ceramics..., 1999, p. 17-56 e 158-186 (Grécia, sécs. XI-XIII), p. 115-117 (Itália, sécs. XIV-XVI) e p. 249-265 (Gré-cia, séc. XVI).

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segundo a qual se observa, nas Artes Decorativas portuguesas, uma sobrevivência nítida dos cânones barrocos.

Assim sendo, urgia rever a formação das características da produção cerâmica popular - não temamos o termo

«popular» -, pondo em equação não só o legado antigo, mas também o do barroco histórico.

Entre a Antiguidade e os séculos XVII-XVIII medeia um extenso período de História no decurso do qual

avulta, no domínio da cultura material, o legado islâmico. Viemos a apurar que o Islão manteve e desenvolveu

uma atmosfera artística que viria a proporcionar a poderosa expressão do barroco e o arreigar do gosto pelo

mesmo, tendo, por isso, sedimentado a propensão para estéticas complexas - ou seja, barroquizantes - nas épocas

subsequentes a este.

Retomemos o fio à meada com José Queirós:

«No século VIII, os Árabes trouxeram para a Península, onde habitaram mais de seiscentos anos, a indústria da

faiança colorida e translucidamente esmaltada.

A influência árabe actuou sobre a cerâmica peninsular, acompanhando sucessivas gerações até aos nossos dias.»

(...)

«... a nossa faiança teve os seus inícios na arte árabe, assim como esta (...) foi (...) inspirada pela arte bisantina e

pela arte persa...»

(…)

«Todas as peças de asas descaídas descendem da ânfora greco-romana, em que os próprios Árabes se inspiraram

também…»

(…)

A ânfora romana é, por assim dizer, a mãe da esbelta forma de grande número de espécimes cerâmicos

portugueses…» 4

Não temos encontrado, nos escritos dos autores estrangeiros da actualidade, relativamente à cerâmica dos seus

países, a consciência desta filiação nem do barroquismo que lhe é inerente. Além-Pirinéus, foram os do século XIX

que, compreensivelmente, apreciaram devidamente os aspectos do exotismo de que está imbuída esta produção.

Quanto aos estudiosos da cultura material do Sul da França, não demonstram tal noção, e desconhecemos o

que a este respeito possa ter sido assinalado em Itália. É nos textos de autores espanhóis, e nos de alguns outros

estudiosos da cultura islâmica, que o assunto é nitidamente expresso. Ouçamos Owen Jones:

«La luz que entra atravñes de vidrios o celosías proyecta dibujos sobre las superficies interiores ya en si decoradas

y borra la separación entre lo lleno y lo vacio.»

A propósito do trabalho dos metais, que a cerâmica muito imitou, escreveu o mesmo:

« [...entre as diversas técnicas do trabalho dos metais sobressaíram]... el arte de incrustar dibujos en oro y plata,

en bronce o latón.»

E referiu-se, ainda, à complexidade da decoração:

«... En tanto que el Oriente islámico, poco a poco, resolvió los arabescos en interpretaciones naturalistas y el

4 Queirós, 1907, Cap. II («In-fluências das formas romanas e da cerâmica árabe»), p. 31-32

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Magreb y al-Ándalus los desarollaron según un centelleante juego de líneas próximo al carácter del rococó,

Egipto y Siria conservaron con fidelidad los tipos de arabesco, que habían llegado a su plenitud. [do fim da

dinastia Fatimida para a dinastia Mameluca]».

Sobre a importância do jogo de luzes e tocando o tema barroco do horror vacui, notou que o

«damasquinado, que viene a relacionar este trabajo com Damasco... El trabajo musulmán de incrustación en

metales alcanzó su perfección a mediados del siglo XII, y continuó con la misma calidad durante dos siglos.»5

Ao damasquinado, porque ele orna em profusão, ou «renda», as superfícies das peças equivalem, na cerâmica,

a decoração com palhetas de mica e a decoração por incrustação de grãos de quartzo, ou de mármore, que

encontramos, respectivamente, na olaria minhota e na de Nisa. Pois não se chama «rendeira» à mulher que orna

a olaria empedrada alentejana?

Sinais dos tempos, já que só recentemente - na post-modernidade, como usa dizer-se -, o barroco histórico foi

reabilitado, e foi considerado o seu prolongamento, como néo-barroco, ou barroco post-moderno, para cá dos

séculos XVII-XVIII. Sinal público, mais evidente talvez do que a investigação levada a cabo nos meios académicos,

embora deles emergente e, de resto ligado, em primeira instância, à análise literária, foi a publicação, ainda que

efémera, nos anos oitenta do século XX, da revista Claro-Escuro – Revista de Estudos Barrocos.

Não barroca ao mesmo título a que falamos de barroco a propósito, por exemplo, da Arquitectura dos sécs. XVII

e XVIII, outrossim revestida de pendor barroquizante nos aparece, pois, a cerâmica portuguesa contemporânea,

embora não seja detectável, nos estudos dos nossos primeiros etnólogos, que foram etnólogos-filólogos, asserções

das quais se desprenda tal noção. Todos, com excepção de Teófilo Braga (1843-1924), evitaram, inconsciente ou

intencionalmente, o uso, sequer, do termo «barroco». Nos textos de Teófilo Braga, lográmos lobrigá-lo quando

escreve, sobre a ourivesaria, que ela

«...foi entre nós o reflexo passivo da Arquitectura, imitando mesmo a sua policromia nos esmaltes; o gosto ou estilo

bisantino (sic), as criações da construção gótica ou ogival, o misto da renascença greco-romana produzindo o

gótico florido (a que em Portugal se chama o estilo manuelino), o barroco e rococó da época jesuítica e pombalina,

tudo isto aparece imitado nos inúmeros produtos da Ourivesaria portuguesa...». 6

«Barroca» e «rococó», mas também «bisantina»: ora não é verdade que estética bizantina e estética islâmica só

dificilmente são destrinçáveis ?

Rocha Peixoto notou, ao referir-se a certas estatuetas das olarias de Prado, que os

«seres fictícios»

e as

«monstruosidades»,

no seu

«naturalismo ingénuo»,

5 Cit. por Jones em artigo tirado da Internet.6 Braga, 1995 (1ª ed. 1885), p. 128-129.

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por elas representadas, concordavam bem com os homólogos do século XVIII,7 mas não assinala que, em última

análise, tais seres fictícios e monstruosos foram bem ao gosto do barroco histórico, que assim passa em silêncio, ao

mesmo tempo que reforça a tendência para procurar, em matrizes mediterrânicas muito recuadas, tal inspiração.

Omite, consequentemente, um elo da cadeia do gosto pelas formas bizarras, da Antiguidade aos nossos dias.

Utiliza, todavia, o termo «brutesco»8 por «grotesco», vocábulo que faz equivaler a «bárbaro»,9 e ambos são evocados

quando se trate de realizações materiais da época de transição que foram os séculos XVII e XVIII, verosimilmente

com o intuito de diminuir a arte e o artesanato do período barroco.

Lê-se na descrição, de Rocha Peixoto, de uma tabula votiva do século XVIII:

«As figuras contornam-se como títeres parados, em atitudes cuja intenção dramática se volve em postura

grotesca.»10

Eugenio d’Ors, delfim catalão do regime de Franco cujos interesses andaram, embora, muito arredados da arte

popular, deixou como principal legado, no que toca ao que nos interessa, duas ideias fulcrais:

a) o barroco não foi unicamente o estilo dos séculos XVII e XVIII, já que uma

tendência barroquizante remonta à Antiguidade Oriental;

b) a expressão «acabada» do barroco histórico (séculos XVII-XVIII) é a janela

manuelina do Convento de Cristo de Tomar.

Fenómenos artísticos como a decoração, por adição sucessiva de matéria, como o que se observa nos cálices

romanos renanos com decoração dita vermicular, e polícroma, do Baixo Império, e nos «Fidalgos» de Estremoz

(fig. 1a e 1b), parecem apoiar a teoria da intemporalidade, senão do barroco tout court, pelo menos do mesmo

espírito que veio a informar o barroco histórico. Quanto à janela de Tomar, a profusão decorativa que nela é

observável justificará a segunda das ideias aduzidas por d’Ors.

As peças com que vimos exemplificando a ideia de um verosímil barroco intemporal, no seio das artes do fogo, não

são barrocas, naturalmente, ao mesmo título a que falamos de barroco a propósito das criações da cultura material,

imóvel como móvel, dos séculos XVII e XVIII; outrossim, surgem revestidas de roupagens barroquizantes.

Rocha Peixoto, ele, não havia podido impedir-se de execrar a Arquitectura dos santuários de Lamego e de Braga,

como, aliás, deplorara a Escultura11 (barrocas, adjectivo que não emprega). Ora a Arquitectura (e a Escultura que

a ela anda associada) é a referência primeira de qualquer Arte Decorativa. Por isso não surpreende encontrar, na

cantaria de uma casa de Tomar, a mesma cadeia de anéis contíguos que aparece, no séc. XVII, no vidro de Veneza,

ou façon de Venise, e na faiança e na olaria empedrada de Nisa, no presente como no passado (fig. 2c-d), de diversas

estações arqueológicas e, designadamente, na olaria dessa índole do Convento de Sta. Clara de Moura.12

Não terão efectivamente os Portugueses, como quer Eugenio d’Ors, uma propensão natural para barroquizar?

Parece-nos é que o fenómeno, por assim dizer, nunca foi analisado fora do contexto do barroco histórico, e ainda

menos quando se lida com mobiliário doméstico geralmente pouco sumptuoso, pelo menos na óptica dos tempos

em que vivemos, como são a olaria de vermelho e a olaria de negro.

7 Peixoto, 1967, p. 121.8 Peixoto, 1967, p. 135.9 Peixoto, 1965, p. 119, 135, 162.10 Peixoto, 1967, p. 122 – O autor vê nelas uma marca da «tradição cristã paganizada».

a) Cálice. Renânia. Séc. IV. In Florilège…, s.d. [c. 1965], est. s.n.b) «Fidalgo». Estremoz . Fotografado pela autora em Portalegre.

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Muito vulgar é igualmente, de facto, uma casa na praia da Vieirinha, no Sudoeste alentejano, que alguém

(construtor ou proprietário, ou terceiros, pouco importa) decorou de forma, em última análise, controversa. Os

motivos que nas paredes se observam (fig. 2a), só aparentemente alusivos apenas ao mar, tornam-na uma criação

naïve exactamente como as criações do Facteur Cheval, tanto mais que a obra foi inclusivamente assinada, e

exemplo de barroco naïf pela sobrecarga, ou excesso, de elementos ornamentais. Alguns destes são próprios do

barroco erudito (albarradas), organizados em concomitância com símbolos privilegiados do lirismo português

(guitarra).

E, se à literatura contemporânea atendermos, notar-se que Aquilo Ribeiro, Mário Cláudio e José Saramago, pelo

menos, são reconhecidos como autores «barrocos».

Sobre o primeiro escreveu o Nobel da Literatura, a quem, por ocasião da entrega do galardão, pela Academia

sueca, certa imprensa estrangeira atribuiu o epíteto de «escritor barroco»:13

«Aquilino é um enorme barroco, solitário e enorme, que irrompeu do chão no meio da álea principal da nossa florida

e não raro deliquescente literatura da primeira metade do século. (...) Não o souberam geralmente compreender

os neo-realistas, aturdidos pela exuberância verbal de algum modo arcaizante do Mestre, desorientados pelo

comportamento “instintivo” de muitas das suas personagens, tão competentes no bem como no mal, e mais

competentes ainda quando se tratava de trocar os sentidos do mal e do bem, numa espécie de jogo conjuntamente

jovial e assustador, mas, sobretudo, descaradamente humano. Talvez a obra de Aquilino tenha sido, na história da

literatura portuguesa, um ponto extremo, um ápice...».14

De uma das obras mais emblemáticas de uma fase já revoluta da escrita de Mário Cláudio, a biografia recriada de

Rosa Ramalho, citaremos expressões fundamentais de um texto que, a nosso ver, e na esteira de Luiz Francisco

Rebelo,15 traduz nítida «barroquofilia»:

«Imagino no que redundariam, de resto, essas cerimónias fúnebres, de um grotesco capaz de novamente aniquilar,

se acaso ressuscitasse, o credor delas, com os três ou quatro amigos superstites do falecido, a arrastar seu mito,

ainda, de um Paris inexcedível, adossados às bengalas e às canadianas, como que ritualmente empalhados para o

ataúde de primeira. E já calculo no que descambaria o velório, com Lucinda a pontificar, a submeter os presentes,

de parceria com as duas disformes primas da Barca, a uma série interminável de mistérios gozosos e dolorosos e

gloriosos, debitados numa voz tremelicante.»16

«E que, talvez, o dito monsenhor Nicotra, por ser enfatuado e pequenino, ao escancarar-se um guarda-roupa de

paramentos, cobiçara os baroquíssimos sapatos do passado Dom Rodrigo Moura Mendes, de seda bordada e tacão

alto, que lhe permitiriam descerrar bem os braços, sobre a assembleia do culto, a fazer ressoar, pelo côncavo das

abóbadas, aquela voz estentória de tenor consumado.»17

E que é A Caverna, senão uma imensa alegoria neobarroca ?

11 Peixoto, 1967, p. 129 e 162.12 Rego e Macias, 1993, p. 155, nº 18. 13 « José Saramago, un Nobel Baroque» in Le Soir, 9.10.1998, p. 11. É citada uma passagem justificativa do texto do júri sueco : «… grâce à ses paraboles soutenues par l’imagination, la compassion et l’ironie, rendu sans cesse à nouveau tangible une réalité fuyante». 14 Jornal de Letras, Artes e Ideias, ano XX, nº 776, Junho de 2000, p. 17.15 Jornal de Letras, Artes e Ideias, ano XX, nº 775, Junho de 2000, p. 22-23.16 Cláudio, Mário, Rosa, Lisboa: Imprensa Nacional, 1988, p. 93.17 Idem, ibidem, p. 111.18 Rego e Macias, 1993, p. 156, nº24.

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Mas é às Artes Decorativas, e em particular à cerâmica, que queremos reportar-nos.

Sugerimos, com convicção, que, cronologicamente, foi a estética islâmica o primeiro agente que conformou a

tendência barroquizante destas Artes, em cuja versão popular, ou folclórica, aquela viria a plasmar-se, na época do

barroco histórico, que foi o momento em que se fixou tudo quanto constitui, hoje, o objecto da Etnografia. Ou,

dito de outro modo, uma vez tendo a moda do barroco erudito caído em desuso no seio das classes dominantes,

foi no folclore - outro termo que temos de deixar de recear - que se perpetuaram os seus traços mais salientes.

De design muçulmano, saídos dos tempos áureos do Islão, são os espigões que se erguem das asas dos hidrocerames

(fig. 2b), ou até de formas eruditas como é o caso do barroquíssimo açucareiro da fig. 2c. Daremos, como

exemplos da matriz barroca na cerâmica popular do século XX, duas, por assim dizer, jarras de altar empedradas

(fig. 3a) e uma torteira rectangular de faiança, moldada, artefacto alentejano a que abaixo voltaremos, enquanto

que as cantarinhas das fig. 2b e 5c-d constituem mostra da simbiose da estética islâmica com a da época do barroco

histórico: pois não é apanágio dos recipientes para líquidos islâmicos, o bocal em forma de taça? De raiz ainda

muçulmana é o motivo de olho que orna taças de perfil sinuoso, do séc. XVII, do Convento de Sta. Clara de

Moura18 e do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha de Coimbra. Entre outras fontes materiais disseminadas por boa

parte do país, as platibandas de muitas casas alentejanas guardam dele memória.

a) Casa na praia da Vieirinha. Fotografada in loco pela autora.b) Bilha. Museu da Olaria – Barcelos. Foto da autora.

a) Olaria empedrada. Museu Nacional de Arqueologia. Foto da autora. b) Prato. Redondo. Fotografado pela autora em Castelo de Vide.

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No que toca a influências do Extremo Oriente, cujas características não deixaram de ter o seu papel na configuração

da estética islâmica, como é sabido, o prato da Fig. 3b atesta a vitalidade, no século XX e na mais chã produção

de cerâmica comum vermelha e vidrado plúmbeo, da gramática decorativa das faianças outrora ditas «contrafeitas

da China» do século XVII.

Se a casa da praia da Vieirinha ostenta o tema barroco da albarrada, uma torteira de faiança do Cercal, com que

ali deparámos, prolonga a vida de um outro motivo ornamental coevo, a saber, a vieira, frequente no mobiliário e

na ourivesaria do período do barroco histórico.

Os colos dilatados em anel e os recipientes de pança lenticular com orifício central abundaram no artesanato

muçulmano, os primeiros em metal, em vidro e em cerâmica (fig. 4a-c), os segundos nestas duas últimas matérias-

primas. As formas de perfis dinâmicos e as formas orgânicas, como a cabaça (fig. 4c), são também características da

olaria islâmica e, em geral, meridional, por oposição às formas sobre o cilíndrico ou de pança pouco proeminente

do mundo anglo-saxão e, em suma, germânico. Ora os perfis das primeiras apresentam-se-nos animados de um

movimento que se não encontra nos das segundas.

a) Bilha. Museu Paroquial de Palhaça – Oliveira do Bairro. Foto da autora.b) Moringue. Bisalhães. Colecção da autora.c) Cabaça. Museu da Olaria – Barcelos. Foto da autora.

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A policromia dos «Fidalgos» de Estremoz e da olaria do Redondo, e o contraste proporcionado pela técnica do

empedrado, ao gosto islâmico e barroco, associam-se numa notável taça do Museu da Olaria de Barcelos (fig. 5a)

cuja forma, cujas asas torsas e cujo empedrado (neste caso interno) 19 têm paralelo na olaria arqueológica dos

séculos XVII e XVIII, alguma da qual figura nas telas seiscentistas de Josefa d’Óbidos (fig. 6a-b).*b

«Pedrar» ou «empedrar» vasilhas de barro é prática que já no séc. XVI existia, ao serviço do gosto pelo

preenchimento das paredes dos vasos. (Afinal, não é certo que, nas artes ditas «maiores», o barroco foi preparado

pelo maneirismo?) Empedrar era mesmo prática mais disseminada pelo país do que é actualmente.*c

As cantarinhas minhotas decoradas com mica branca, dita moscovite (fig.5b), apresentam caras de putti

rechonchudos que são os continuadores dos mascarões da Renascença e do barroco, evocando mitologias já caídas

no esquecimento, embora, ou que remetem para o fantástico acima referido. Remontará a decoração com palhetas

de mica ao barroco? Pelo menos, assim o parecem atestar os dados de trabalhos arqueológicos levados a cabo no

Porto e em Tibães que permitiram datar do séc. XVII olaria de barro negro de Prado decorada desse modo (fig.

5c).20 Já Queirós deu como sendo da época de D. João II (ou manuelina?) uma infusa muito semelhante.21 (fig.

5d)

b Estamos grata a Clara Milhazes por nos ter permitido observar os espécimes em reserva.c Agradecemos a Olinda Sardinha, que com clarividência soube dis-cernir elementos do carácter barroco na cerâmica pedrada, como sejam as «superfícies onduladas» e a «simetria na disposição dos elementos decora-tivos» (Sardinha, 1990-1992, p. 496 e 500), o apoio prestado quando da nossa deslocação ao Museu Nacional de Arqueologia.19 Ferreira, 1995, p. 160, est. 7/1; Rego e Macias, 1993, p. 155, nº18.20 A Paulo Dórdio ficamos a dever a cortesia da fotografia da bilha da Casa do Infante (fig. 5c). 21 Queirós, 1987, p. 31, gr. 4.22 Em 1659 ou no ano seguinte, estando Madame d’Aulnoy de visita a Espanha, recebeu, do Marquês de Nisa, «búcaros de Portugal, que son jarroncitos de arcila sigelada, guar-necidos de filigrana…». In Garcia Mercadal, 1962, p. 192.23 Stevens, 1705, p. 217: «Es-tremoz – (...) Here is made a curious Sort of Earthen Ware, much us’d in Portugal for Water…».

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a) Taça coberta. Nisa (?). Museu da Olaria – Barcelos. Foto da autora.b) Cantarinha decorada com mica. Braga. Museu da Olaria – Barcelos. Foto da autora.c) Cantarinha. Mosteiro de Tibães. Cortesia de Paulo Dórdio.d) Infusa. Lisboa. Época de D. João II ou D. Manuel I. In Queirós, 1907, p. 31.

Outro sinal de que a olaria empedrada gozou de favor na época barroca é o facto de vasos desse tipo ornamental

fazerem objecto de presentes entre nobres,22 a crer nas fontes de arquivo, e de virem referidos em narrativas de

viagens de estrangeiros como artefactos muito apreciados.23

Tal parece ter sucedido, em suma, à vasta variedade de produções barrocas avant-la-lettre - entre as quais se

integra a janela manuelina de Tomar, paradigma do barroco, segundo d’Ors - , cujo exame parece validar a ideia

de que barroquizar foi de todos os tempos, pelo menos, em Portugal.