centro universitÁrio filadÉlfia - unifil.br · consideraÇÕes sobre o poder constituinte ......

185

Upload: hoangcong

Post on 14-Dec-2018

223 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

CENTRO UNIVERSITÁRIO FILADÉLFIACENTRO UNIVERSITÁRIO FILADÉLFIACENTRO UNIVERSITÁRIO FILADÉLFIACENTRO UNIVERSITÁRIO FILADÉLFIACENTRO UNIVERSITÁRIO FILADÉLFIA

EEEEENTIDADE MANTENEDORA:NTIDADE MANTENEDORA:NTIDADE MANTENEDORA:NTIDADE MANTENEDORA:NTIDADE MANTENEDORA:INSTITUTO FILADÉLFIA DE LONDRINAINSTITUTO FILADÉLFIA DE LONDRINAINSTITUTO FILADÉLFIA DE LONDRINAINSTITUTO FILADÉLFIA DE LONDRINAINSTITUTO FILADÉLFIA DE LONDRINA

Diretoria:Sra. Ana Maria Moraes Gomes ......................PresidenteSr. Edson Aparecido Moreti ..........................Vice-PresidenteDr. Claudinei João Pelisson .........................1º SecretárioSra. Edna Virgínia C. Monteiro de Melo .......2ºVice-SecretárioSr. Alberto Luiz Candido Wust ....................1º TesoureiroSr. José Severino .........................................2º Vice-TesoureiroDr. Osni Ferreira (Rev.) ................................ChancelerDr. Eleazar Ferreira ......................................Reitor

indice.p65 29/10/2007, 21:431

3

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

REVISTA JURÍDICA da UniFilAno IV – nº 4 – 2007

Órgão de Divulgação Científica doCurso de Direito da UniFil - Centro Universitário Filadélfia

COORDENADOR DO COLEGIADO DO CURSO DE DIREITO:Prof. Dr. Osmar Vieira da Silva

COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICAS JURÍDICAS:Prof. Ms. José Valdemar Jaschke

PRESIDENTE DO CONSELHO EDITORIAL:Prof. Dr. Marcos Antônio Striquer Soares

SUPERVISORA EDITORIAL:Profª. Ms.Érika Juliana Dmitruk

REVISORA:Profª. Dra. Maria Cristina Viecili

BIBLIOTECÁRIANeiva Correa França Nakai

CONSELHO EDITORIALProf. Dr. Marcos Antonio Striquer Soares Profª. Ms. Érika Juliana DmitrukProf. Dr. Osmar Vieira da Silva Prof. Ms. José Valdemar JaschkeProf. Dr. Cézar Bueno de Lima Profª. Dra. Rozane da Rosa CachapuzProf. Dr. Everaldo Pinto Conceição Prof. Ms. Ademir SimõesProfª. Dra. Maria Cristina Viecili Profª. Ms. Renata Cristina O. A. SilvaProf. Ms. Antonio Carlos Lovato Profª. Ms. Maria de Fátima G. RossettoProfª. Ms. Sandra Cristina M. N. G. de Paula Prof. Ms. Mario Sergio LepreProfª. Ms. Luciana Mendes P. Roberto Prof. Ms. João Luiz Martins EstevesProfª. Ms. Deborah Lídia Lobo Muniz Profª. Drª. Martha Asuncion E. PradoProfª. Ms. Ana Claudia Duarte Pinheiro Prof. Ms. Henrique Afonso PipoloProfª. Ms. Maria Eduvirge Marandola

CONSELHO CONSULTIVOMin. José Augusto Delgado (UFRN) Prof. Dr. Gilberto Giacóia (FANORPI)Prof. Dr. Luiz F. Bellinetti (UEL) Profª. Drª. Maria de Fátima Ribeiro (UEL)Profª. Drª. Giselda Hironaka (USP) Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC)Prof. Dr. Arnaldo de M. Godoy (UEL) Profª. Drª. Jussara S. A. B. N. Ferreira (UEL)

indice.p65 29/10/2007, 21:433

CENTRO UNIVERSITÁRIO FILADÉLFIA

REITOR:Dr. Eleazar Ferreira

PRÓ-REITOR DE ENSINO DE GRADUAÇÃO:Prof. MSc. Reynaldo Camargo Neves

COORDENADORA DE CONTROLE ACADÊMICO:Profª. Esp. Helena Fumiko Morioka

COORDENADORA DE AÇÃO ACADÊMICA:Laura Maria dos Santos Maurano

PRÓ-REITOR DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO:Profª. Dra. Damares Tomasin Diazin

COORDENADOR DE PROJETOS ESPECIAIS E ASSESSOR DO REITOR:Prof. MSc. Reynaldo Camargo Neves

COORDENADOR DE PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS:Prof. Dr. Leandro Henrique Magalhães

COORDENADORES DE CURSOS DE GRADUAÇÃO:

Administração Prof. Luís Marcelo MartinsArquitetura e Urbanismo Prof. Ivan Prado JuniorBiomedicina Prof. Eduardo Carlos Ferreira TonaniCiências Biológicas Prof. João Antônio Cyrino ZequiCiências Contábeis Prof. Eduardo Nascimento da CostaCiência da Computação Prof. Sérgio Akio TanakaDireito Prof. Osmar Vieira da SilvaEducação Física Prof. Pedro Lanaro FilhoEnfermagem Profª.Rosângela Galindo de CamposFarmácia Profª.Lenita Brunetto BrunieraFisioterapia Profª.Suhaila Mahmoud Smaili SantosNutrição Profª.Ivoneti Barros Nunes de OliveiraPedagogia Profª.Marta Regina Furlan de OliveiraPsicologia Profª.Denise Hernandes TinocoSecretariado Executivo Profª.Izabel Fernandes Garcia SouzaSistema de Informação Prof. Sérgio Akio TanakaTeologia Prof. Joaquim José de Moraes NetoTurismo Profª.Michelle Ariane Novaki

Rua Alagoas, nº 2.050 - CEP 86.020-430Fone: (0xx43) 3375-7400 - Londrina - Paraná

www.unifil.br

indice.p65 29/10/2007, 21:435

7

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

SUMÁRIO

Linha de Pesquisa “Dogmática Jurídica, Desenvolvimento e ResponsabilidadeSocial”

TRABALHO, MEDO E SOFRIMENTO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO ASSÉDIO MORAL ...... 1 3Ana Paula Sefrin Saladini

DEVER DE DOCUMENTAÇÃO, ACESSO AO PROCESSO CLÍNICO E SUA PROPRIEDADE. UMAPERSPECTIVA EUROPÉIA ...................................................................................................................... 2 5André Gonçalo Dias Pereira

COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA ........................................................................ 3 6Demétrius Coelho SouzaVera Cecília Gonçalves Fontes

A TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS .......................................... 5 1Hylea Maria Ferreira

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE E PROPAGANDA DO GOVERNO ........... 6 4Marcos Antônio Striquer Soares

O PRINCÍPIO DO NÃO-CONFISCO NO DIREITO TRIBUTÁRIO .................................................... 7 7Mary Silvea Santana Vieira

O CONTEMPT OF COURT (desacato à ordem judicial) NO BRASIL ................................................ 9 1Osmar Vieira da Silva

CONTRATO: DO TRADICIONAL A CELEBRAÇÃO ELETRÔNICA – ASPECTOS FORMAIS .. 112Simone Vinhas de OliveiraValkíria A. Lopes FerraroVinicius Franco da SilvaWesley Tomaszweski

Linha de Pesquisa “Teorias do Direito do Estado e Cidadania”

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER CONSTITUINTE ..................................................................127Ana Carolina Miiller LopesAna Karina Ticianelli Möller

A INFLUÊNCIA DA TÓPICA NO PENSAMENTO DE PETER HÄBERLE E O SEU CONCEITO DEINTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ............................................................................................134Carolina V. Ribeiro de A. BastosEder Fernandes MônicaSamia Moda Cirino

O PRINCÍPIO DA INTEGRIDADE COMO MODELO DE INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA DO DI-REITO EM RONALD DWORKIN ......................................................................................................... 144Erika Juliana Dmitruk

indice.p65 29/10/2007, 21:437

8

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Estudos de Casos

PROTEÇÃO DA CRIANÇA EM FACE DA PUBLICIDADE DE MEDICAMENTOS INFANTIS1 .... 159Ester Okamoto Della CostaRaquel Sanchez de Lima

O PROCESSO DE ELABORAÇÃO E A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS PLANOS DIRETORES DEASSAÍ/PR E DE BELA VISTA DO PARAÍSO/PR ............................................................................... 176Miguel Etinger de Araujo Junior

Resenha

RESENHA - DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada ... 187Luciana Mendes Pereira Roberto

RESENHA - Resenha da obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman ................................................192Osmar Vieira da Silva

indice.p65 29/10/2007, 21:438

9

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

EDITORIAL

O instante de dar ao público um novo número da Revista Jurídica da

UniFil é sempre um momento de reflexão e revisão dos trabalhos desenvolvi-

dos pelo Conselho Editorial na publicação de cada número. É sempre uma

satisfação reunir textos sobre assuntos de relevante interesse para o Curso

de Direito da UniFil, assim como aceitar o convite de debate que cada texto

provoca. Essa alegria de elaboração e conclusão de cada número, entretan-

to, vem conjugada com a responsabilidade de se produzir um novo número a

ser publicado em um futuro próximo. A Revista Jurídica da UniFil , agora, já

no quarto ano de publicação, provoca a renova do ânimo para a produção de

um novo número, com novos textos, novos assuntos, novos debates. É a ale-

gria pela continuidade dos trabalhos acadêmicos, no intuito de aperfeiçoa-

mento do Curso de Direito, da Instituição onde ele se realiza, da sociedade.

No presente número da Revista, foi estabelecida uma divisão nova dos

trabalhos apresentados. Os artigos científicos foram divididos entre as duas

linhas de pesquisa do Curso de Direito da UniFil: 1.- Dogmática Jurídica,

Desenvolvimento e Responsabilidade Social; e 2.- Teorias do Direito do Esta-

do e Cidadania. Entre os artigos encontram-se trabalhos de ex-alunos do

Curso de Direito da UniFil, o que muito honra a todos. Como terceira parte,

dessa nova divisão, foram incluídos estudos de caso, apropriados para uma

área do conhecimento alocada entre as chamadas Ciências Sociais Aplica-

das. E uma quarta parte foi reservada a resenha.

Fica mais uma vez o convite a toda a comunidade acadêmica voltada ao

conhecimento jurídico para participar não só dos debates e questionamentos,

como também do próximo número da Revista Jurídica da UniFil

Conselho Editorial

indice.p65 29/10/2007, 21:439

Linha de Pesquisa “Dogmática Jurídica, Desenvolvimento e ResponsabilidadeSocial”

01-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4311

13

Ana Paula Sefrin Saladini

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

TRABALHO, MEDO E SOFRIMENTO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DOASSÉDIO MORAL

Ana Paula Sefrin Saladini*

O medo destrói a saúde mental dos trabalhadores de modo progressivo einelutável, como o carvão que asfixia os pulmões do mineiro com silicose.

(Dejours).

RESUMO

O presente trabalho aborda o problema do assédio moral no ambiente de trabalho. Partindo-se dadefinição do tema, é feita uma análise do panorama nacional da questão, abordando, ainda, asperspectivas legislativas. Na seqüência, analisa-se a responsabilidade do empregador. Discutem-se questões pertinentes ao medo e ao sofrimento inerentes ao trabalho, e do medo utilizado comoinstrumento pelo empregador, ora visando o incremento da produtividade, ora como mero exercícioarbitrário de poder. Por fim, verificam-se as conseqüências do medo e do sofrimento na saúde dotrabalhador.

Palavras-chave: Assédio Moral. Medo. Sofrimento. Abuso de Poder. Saúde.

WORK, FEAR AND SUFFERING: CONSIDERINGS CONCERNING THEMORAL SIEGE

ABSTRACT

The present work approaches the problem of the moral siege in the work environment. Breakingitself of the definition of the subject, an analysis of the national panorama of the question is made,approaching, still, the legislative perspectives. In the sequence, it is analyzed responsibility of theemployer. Pertinent questions to the inherent fear and the suffering to the work, and of the usedfear are argued as instrument for the employer, however aiming at the increment of the productivity,however as mere arbitrary exercise of being able. Finally, the consequences of the fear and thesuffering in the health of the worker are verified.

Keywords: Moral Siege. Fear. Suffering. Abuse of Being Able. Health.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente estudo visa distinguir duas situações específicas que podem desen-cadear transtornos mentais e de comportamento relacionados com o trabalho: o medo e o sofri-mento psíquico no ambiente de trabalho.

Ainda que, em algumas profissões, essas circunstâncias sejam inerentes aotrabalho, as práticas empresariais modernas, muitas vezes, têm incrementado a cultura do medo esofrimento nas relações de trabalho, ora como meio de incremento de produtividade, ora comomero exercício arbitrário de poder.

* Juíza do Trabalho Titular da Vara do Trabalho de Jacarezinho-Paraná. Especialista em Direito do Trabalho. Especialista emDireito Civil e Processo Civil. Professora de Graduação e Pós-Graduação.

01-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4313

14

Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Esse panorama leva ao desenvolvimento de doenças mentais relacionadas como trabalho, causando, a médio e longo prazo, perda de capacidade produtiva. Além disso, as situa-ções de medo e sofrimento criados pelo empregador têm sido qualificadas pela doutrina e jurispru-dência como práticas de assédio moral, capazes de gerar dever de indenizar.

2 ASSÉDIO MORAL

2.1 Definição

O assédio moral também é conhecido como mobbing (GUEDES, 2003, p.162)1 ou psicoterror. Uma das maiores autoridades internacionais no assunto é a psicanalista fran-cesa Marie-France Hirigoyen, que assim define assédio moral (HIRIGOYEN, 2003, p. 65):

Por assédio em um local de trabalho temos que entender toda e qualquerconduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, pala-vras, atos, gestos, escritos que possam trazer danos à personalidade, àdignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigoseu emprego ou degradar o ambiente de trabalho.

Heinz Leymann (apud MENEZES, 2003, p. 291), considerado pioneiro no as-sunto, identificou como doença profissional enfermidades de natureza psicossomática, derivadasdo mobbing, e definiu a figura do assédio moral nos seguintes moldes:

...a deliberada degradação das condições de trabalho através do estabeleci-mento de comunicações não éticas (abusivas), que se caracterizam pela re-petição, por um longo tempo, de um comportamento hostil de um superior oucolega(s) contra um indivíduo que apresenta, como reação, um quadro demiséria física, psicológica e social duradoura.

Destaca-se, de tais conceitos, a necessidade de a conduta ofensiva ser reitera-da: fatos isolados, ainda que ofensivos à integridade moral do empregado, não configuram o assé-dio moral. Isso porque o próprio termo assédio tem a conotação de insistência impertinente, perse-guição constante, estabelecimento de um cerco com a finalidade de exercer o domínio sobre apessoa assediada.

A prática tem propagação insidiosa, normalmente agregando abuso de poder emanipulação. Existe tanto na modalidade horizontal (entre colegas do mesmo nível hierárquico)quanto na vertical ascendente (assédio do subordinado ao superior hierárquico) e na vertical des-cendente (cerco do superior em relação ao subordinado). A situação mais comum é essa última,quando o superior agride ao subordinado, que, com medo de perder o emprego, acaba submetendo-se ao assédio, e termina por imputar a si mesmo a causa do cerco, acreditando na desqualificaçãopromovida pelo empregador, e atribuindo a si mesmo rótulo de incompetente, incapaz, despreparado,etc.

1 Segundo Márcia Guedes, o termo mobbing foi empregado pela primeira vez pelo etiologista Heinz Lorenz, ao definir ocomportamento de certos animais que, circundando ameaçadoramente outro membro do grupo, provocam sua fuga pormedo de ataque.

01-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4314

15

Ana Paula Sefrin Saladini

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

2.2 Panorama Nacional

Não obstante a doutrina indique que as práticas de assédio moral são tão anti-gas quanto o próprio trabalho organizado. No Brasil, até recentemente, a questão era pouco deba-tida, sendo, muitas vezes, confundida com situações gerais de estresse e conflitos naturais entreempregados (SALVADOR, 2002, p. 66)2 . Após a promulgação da Carta Constitucional de 1988,que assegurou de forma expressa a indenização decorrente de danos morais (art. 5º, X), o assuntopassou a ser objeto de estudos que começam a dar a real dimensão do problema.

Atualmente, a figura do assédio moral já se tornou conhecida dos trabalhadoresbrasileiros, em razão de políticas agressivas e cruéis de gerenciamento, podendo ser vista comosintomática desta época. Conforme Hádassa Dolores Bonilha Ferreira, o assédio moral (apudFERRARI, 2005, p. 82).

...é fruto de um conjunto de fatores, tais como a globalização econômicapredatória, vislumbradora somente da produção e do lucro, e a atual organi-zação do trabalho, marcada pela competição agressiva e pela opressão dostrabalhadores através do medo e da ameaça. Esse constante clima de terrorpsicológico gera, na vítima assediada moralmente, um sofrimento capaz deatingir diretamente sua saúde física e psicológica, criando uma predisposi-ção ao desenvolvimento de doenças crônicas, cujos resultados a acompa-nharão por toda a vida.

Em início de 2002, a médica do trabalho Margarida Barreto divulgou o resulta-do de uma pesquisa nacional sobre o assunto, desenvolvida para sustentar sua tese de doutorado naPUC-SP, que foi publicada no Jornal Folha de São Paulo, suplemento especial Folha Equilíbrio, em21.02.02, recebendo, ainda, intensa divulgação em outros órgãos de informação e na rede mundialde computadores. No estudo, que serve como referência a diversos trabalhos posteriores sobre otema, foram ouvidos 4.718 trabalhadores, dos quais 68% declararam que sofriam assédio no ambi-ente de trabalho várias vezes por semana 20% relataram que o assédio ocorria em média uma vezpor semana, e 12% afirmou que a prática era sofrida uma vez por mês. Esses números indicam queo assédio vem fazendo parte da rotina de trabalho do brasileiro. Dentre as principais ações deassédio apresentadas na pesquisa, destacaram-se: dar instruções confusas e imprecisas, atribuirerros imaginários, ignorar a presença do empregado em frente a outras pessoas, não cumprimentá-lo e não dirigir a palavra a ele, insinuar que o empregado tem problema mental ou familiar. Segundoa pesquisa, 89% das agressões partem do superior hierárquico.

No campo da prática cotidiana, o aumento do número de queixas é evidente:em 2002 foram registrados, nas delegacias regionais do trabalho brasileiras, 231 atendimentos emrazão de queixas de assédio moral; o ano de 2004 apontou um aumento de cerca de 110%, comregistro de 484 queixas (ANCHISES, 2006, p. 47).

Os trabalhadores trazem aos tribunais variado número de casos de abuso psi-cológico, através das reclamações judiciais. Destacam-se das notícias relatadas pela mídia algu-mas situações revoltantes: ridicularização pelo chefe em decorrência de características do empre-gado (tique nervoso, opção sexual, peso, altura, etc.); gerente que instala, por conta própria, câma-ra filmadora no banheiro reservado às empregadas, pretensamente para evitar furtos; insinuaçõessobre a manutenção do emprego depender de um “teste íntimo sobre as habilidades com sexooral”; submissão de empregados a detector de mentiras.

2 Luiz Salvador ressalta que essa perspectiva impedia práticas de diagnóstico e prevenção das situações de assédio moral.

01-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4315

16

Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Outras situações relatadas por empregados: o chefe que, chegando ao setorcom a garrafa de café fresco, indaga se os subordinados desejam tomar café; com a respostaafirmativa, em frente a todos, despeja o café quente no ralo da pia; o superior hierárquico que, apretexto de aumento de produtividade, faz o empregado vendedor que menos se destacou duranteo expediente usar, por ocasião da reunião diária com a equipe de vendas, um “chapéu de burro”, dotipo cônico, permanecendo sentado em um banco alto; o coordenador de equipe que manda “pagarprendas” como dançar uma música ridícula e com conotação sexual, fazer flexões ao estilo doexército, e uma gama de atividades criadas ora por uma mente perversa e arbitrária que buscaapenas se divertir à custa do sofrimento alheio, e que justifica sua conduta como técnica de“implemento de produção, técnica de venda ou treinamento de recursos humanos”.3

O problema não nasceu aqui, e nem é limitado ao Brasil. Num mundoglobalizado, as práticas de gestão também são generalizadas. Assim, nem mesmo a OrganizaçãoInternacional do Trabalho escapa de críticas: a revista semanal Época, edição de 27.09.2004, noti-ciou que a ONU acolheu queixa de assédio moral feita por empregado em face da OIT, suaempregadora.

Como forma de cientificar os trabalhadores, criando mecanismos de identifica-ção do problema e estratégias de defesa, diversos sindicatos, a exemplos dos sindicatos dos bancá-rios e dos sindicatos dos servidores públicos federais, vêm elaborando e distribuindo aos integran-tes da categoria profissional cartilhas alertando quanto às práticas de assédio.

2.3 Perspectivas Legislativa

Embora endêmica, a questão relativa ao assédio moral ainda carece de regula-mentação legal, no Brasil. Três importantes projetos de lei estão em trâmite na Câmara dos Depu-tados, para regulamentação e punição do assédio moral. O Projeto de Lei 5.970/01 altera disposi-tivos da CLT, e os Projetos de Lei 4.591/01 e 5.972/01 modificam dispositivos da Lei 8.112/90(Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das Autarquias e das Fundações Públi-cas Federais).

O Projeto de Lei 4.591/01 dispõe sobre a aplicação de penalidades à prática deassédio moral por parte de servidores públicos da União, das autarquias e das fundações públicasfederais a seus subordinados, vedando aos servidores públicos praticarem atitudes de cerco contraseus subordinados, e estabelecendo penalidades disciplinares que se estendem de advertência atédemissão, progressivamente, considerada a reincidência e a gravidade da ação. O projeto conceituacomo assédio moral todo tipo de ação, gesto ou palavra que atinja, pela repetição, a auto-estima ea segurança de um indivíduo, fazendo-o duvidar de si e de sua competência, implicando em dano aoambiente de trabalho, à evolução profissional ou à estabilidade física, emocional e funcional doservidor, incluindo, dentre outras: marcar tarefas com prazos impossíveis; passar alguém de umaárea de responsabilidade para funções triviais; tomar crédito de idéias de outros; ignorar ou excluirum servidor só se dirigindo a ele através de terceiros; sonegar informações necessárias à elabora-ção de trabalhos de forma insistente; espalhar rumores maliciosos; criticar com persistência; se-gregar fisicamente o servidor, confinando-o em local inadequado, isolado ou insalubre; subestimaresforços.

Dentre as justificativas apresentadas no projeto quanto à necessidade deregulação da questão, destaca-se o seguinte:

3 Essas situações foram relatadas por testemunhas à autora, em casos diversos, em sua experiência como Juíza do Trabalho.

01-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4316

17

Ana Paula Sefrin Saladini

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Sabe-se que o mundo do trabalho vem mudando constantemente nos últi-mos anos. Novas formas de administração, reengenharia, reorganização ad-ministrativa, entre outras, são palavras que aos poucos tornaram-sefreqüentes em nosso meio. No entanto, pouco se fala sobre as formas derelação no trabalho. O problema do ‘assédio moral’ (ou tirania nas relaçõesdo trabalho, como é chamado nos Estados Unidos) atinge milhares de traba-lhadores no mundo inteiro. Pesquisa pioneira da Organização Mundial doTrabalho, realizada em 1996, constatou que pelo menos 12 milhões de euro-peus já sofriam desse drama. Em nossa cultura competitiva, onde todosprocuram vencer a qualquer custo, urge adotarmos limites legais que preser-vem a integridade física e mental dos indivíduos, sob pena de perpetuarmosessa ‘guerra invisível’ nas relações de trabalho. E para combatermos defrente o problema do “assédio moral” nas relações de trabalho, faz-se neces-sário tirarmos essa discussão dos consultórios de psicólogos e tratá-lo nouniverso do trabalho.

O Projeto de Lei 5.972/01 também visa alterar dispositivos do Estatuto dosServidores Públicos Civis da União, a fim de estabelecer proibição expressa ao servidor público decoagir moralmente subordinado através de atos ou expressões reiteradas que tenham por objetivoatingir a sua dignidade ou criar condições de trabalho humilhantes ou degradantes, abusando daautoridade conferida pela posição hierárquica.

Especificamente quanto ao empregado submetido ao regime da CLT, o projetode lei visa estabelecer, como motivo para a rescisão indireta do contrato de trabalho, a prática, peloempregador ou seus prepostos, de coação moral, através de atos ou expressões que tenham porobjetivo ou efeito atingir sua dignidade e/ou criar condições de trabalho humilhantes ou degradan-tes, abusando da autoridade que lhe conferem suas funções, autorizando que o empregado perma-neça ou não no serviço até final da decisão do processo.

O projeto também prevê uma indenização pré-tarifada, quando demonstrada acoação moral, acrescentado à CLT o art. 484-A, que tem prevista a seguinte redação: “se arescisão do contrato de trabalho foi motivada pela prática de coação moral do empregador ou deseus prepostos contra o trabalhador, o juiz aumentará, pelo dobro, a indenização devida em caso deculpa exclusiva do empregador”.

Destacam-se, das justificativas do projeto, os seguintes argumentos:

O art. 7º, I, da Constituição Federal, assevera que é direito do trabalhadoruma ‘relação de trabalho protegida contra despedida arbitrária ou sem justacausa’, prevendo a estipulação legal de indenização compensatória, comessa finalidade. Nenhuma despedida é mais arbitrária e injusta do que aquelaque força o trabalhador a pedir, ele mesmo, a sua demissão, por lhe ter sidotornado insuportável o ambiente de trabalho, pela perseguição sistemática epela sua submissão a comportamentos vexatórios, humilhantes e degradan-tes, pelo que estamos convencidos da necessidade de aprovação, nesteParlamento, de normas que protejam o trabalhador dos efeitos deletériosdesses atos dos patrões ou de seus prepostos.

As justificativas apresentadas pelos autores dos projetos de lei bem indicam agravidade do problema e a urgência de adoção de medidas de contenção e prevenção de danos.

2.4 Responsabilidade Patronal

A falta de dispositivo legal específico não impediu o desenvolvimento da doutri-na e da jurisprudência em torno da questão do assédio moral, nem tem servido como barreira paraa aplicação de penalidades aos empregadores que assim procedem ou que permitem esses proce-

01-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4317

18

Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

dimentos por parte de seus prepostos, principalmente no âmbito da fixação de indenização aoempregado lesionado.

O assédio moral é ato cuja responsabilidade deve ser imputada ao empregador,que, como detentor do poder disciplinar, tem a obrigação de administrar tanto o conflito existenteentre empregados do mesmo grau hierárquico quanto o decorrente das próprias relações hierárqui-cas. Conforme Márcia Guedes (GUEDES, 2003, p. 162):

...tanto a administração rigidamente hierarquizada, dominada pelo medo epelo silêncio, quanto a administração frouxa, onde reina a total insensibilida-de para com valores éticos, permitem o desenvolvimento de comportamen-tos psicológicos doentes, que dão azo à emulação e à criação de bodesexpiatórios.

No âmbito internacional, têm sido deferidas indenizações de grande monta.Relata o advogado Luiz Salvador (SALVADOR, 2002, p. 68) que o assédio moral, no ambiente detrabalho, tem gerado, nos EUA, indenizações milionárias em favor dos assediados, transformando-se em um dos principais riscos financeiros das empresas. Cita os seguintes exemplos: a rede Wal-Mart foi condenada a pagar 50 milhões de dólares a uma empregada assediada moralmente, emdecorrência de observações chocantes quanto a seus dotes físicos; a Chevron foi condenada auma indenização superior a dois milhões de dólares a empregados por agressões ocorridas noambiente de trabalho; no Estado da Flórida uma empresa foi condenada a pagar indenização de237 mil dólares a um gerente que foi assediado por seu chefe.4

Embora seja tradição do direito brasileiro o deferimento de indenizações emvalores muito mais modestos, o cotidiano demonstra o crescimento do número de ações trabalhis-tas que denunciam a utilização de práticas de assédio como ferramentas de gestão e controleempresarial.

3 MEDO, SOFRIMENTO E TRABALHO

3.1 Medo e Sofrimento Inerentes ao Trabalho

O medo está presente em todos os tipos de ocupação profissional. Em algumasatividades, o risco à integridade física é inerente ao próprio trabalho desenvolvido, como nos casos detrabalhadores da área de segurança (policiais, agentes penitenciários, vigilantes, transportadores devalores), trabalhadores da construção civil, bombeiros, etc. Em outras funções, o medo é mais perso-nalizado pelas condições a que está exposto o trabalhador. Os riscos profissionais típicos são causa deinsegurança e medo no trabalho. Esse medo, implícito e impossível de deixar de existir, quando setrata de trabalho perigoso ou insalubre, implica desequilíbrio na carga psíquica do trabalho. As máscondições de trabalho trazem prejuízos ao corpo e ao espírito, citando-se, como exemplo, a ansiedaderesultante das ameaças à integridade física, classificada como “seqüela psíquica” do risco que anocividade das condições de trabalho impõe ao corpo (DEJOURS,1991, p. 78).

Paralelamente ao medo, encontra-se o sofrimento psíquico experimentado pelotrabalhador em razão de dificuldades características da atividade profissional exercida. Essa ativi-dade profissional pode ser estressante por si própria, ou ter como fator gerador do estresse esofrimento a frustração causada pelo trabalho monótono, repetitivo ou desgastante. Exemplo daprimeira modalidade é o caso dos controladores de vôo, que demonstraram à nação o grau dedesgaste dos integrantes da carreira depois do acidente aéreo fatal ocorrido em setembro de 2006

4 Ressalte-se que no Brasil as indenizações são de montante tímido, quando comparadas com a máquina judiciária americana,célebre por suas condenações milionárias em razão da teoria dos danos punitivos.

01-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4318

19

Ana Paula Sefrin Saladini

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

e que vitimou 154 pessoas. Exemplo de trabalho desgastante e que gera frustração é relatado porDejours, quando se refere à categoria profissional de telefonista, que tem a frustração do profissi-onal explorado pela organização do trabalho, com canalização para a produtividade: a frustração setransforma em agressividade; a agressividade é canalizada para o atendimento rápido do interlocutor,empurrando-o a desligar mais depressa; esse procedimento leva a aumentar a produtividade, o quedeixa o profissional ainda mais exasperado, e, assim sucessivamente, num círculo vicioso que, àcusta de prejudicar a saúde mental do trabalhador, faz aumentar a produtividade em prol da empre-sa de telefonia (DEJOURS, 1991, p. 96-115).

A sociologia do trabalho indica que o processo de modernidade vem acarretan-do a piora do meio ambiente de trabalho. A automação, a adoção de sistemas de trabalho taylorista,mecanizado, dividido, submisso, controlado, repetitivo e vazio aumenta a angústia do trabalhador,que não vê coerência nem resultado no trabalho desenvolvido, trazendo repercussões negativas aseu equilíbrio mental, e, por conseqüência, à sua saúde como um todo. Saindo de um panoramataylorista, na pós-modernidade são adotados novos sistemas gerenciais que continuam a produzirestresse ocupacional.

Sidnei Machado observa, com propriedade, que (MACHADO, 2001, p. 46):

...O modo de produção capitalista, paradoxalmente, ao mesmo tempo que fazexaltação do trabalho, por meio da organização de seu processo, controla aatividade produtiva inibindo o enriquecimento das tarefas. A mecanização,inicialmente, e depois a automação impostas pela organização do trabalho,delimitando ritmos, cadências e tempo, vão revelar uma falta de adaptaçãodo homem às modernas condições de trabalho e produção. Esse ambiente deprodução tornou-se um fator de risco à saúde física e mental dos trabalhado-res. As novas formas de organização do trabalho e a introdução de novastecnologias tendem a intensificar ainda mais os fatores de risco no trabalhoem todo o mundo...

Essa realidade de medo e sofrimento não pode ser negada. Apesar do implementode novas técnicas de recursos humanos, não se têm desenvolvido práticas para melhorar as condi-ções de trabalho. Ao contrário, a assustadora realidade tem sido negada, ou, muitas vezes, assituações de medo e sofrimento são detectadas e têm sua energia canalizada para melhorar osíndices de produtividade empresarial, através de condutas que geram ainda mais sofrimento.

3.2 O Medo como Meio de Incremento de Produtividade

Embora o medo e o sofrimento sejam inerentes a alguns tipos de trabalho,existem situações em que são condições de trabalho criadas pelo empregador, visando, com suaexploração, o incremento da produtividade individual e o aumento dos ganhos do capital. ConformeDejours, a erosão da vida mental individual do trabalhador é útil para a implantação de um compor-tamento condicionado favorável à produção, e o sofrimento mental aparece como intermediárionecessário à submissão do corpo (DEJOURS, 1994, p. 96).

No mundo atual, infligir injustiça a outrem já é forma banalizada de gestão; aquestão do mal hoje se coloca de maneira totalmente nova, com o surgimento de condutas iníquasgeneralizadas, em contextos organizacionais diferentes do sistema fordiano, notadamente no qua-dro dos novos métodos de administração de empresas e gerenciamento (DEJOURS, 1999, p. 98):

Júlio Rocha adverte, no que diz respeito às relações humanas no meio ambientede trabalho, que são cada vez mais importantes as análises acerca de elementos psicológicos comoa pressão para o desempenho da atividade, que desencadeia a depressão e distúrbios emocionais(apud MELO, 2004, p. 278).

01-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4319

20

Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Analisando a obra de Dejours, Leonardo Wandelli (2004, p. 99) diagnosti-ca a manipulação do medo e do sofrimento do trabalhador como instrumentos úteis aos finsempresariais:

Manipulação do medo e do sofrimento: este é um processo que envolve aampliação da vulnerabilidade social, já mencionada, mas articulada no interi-or da empresa de maneira que ela sirva de instrumento à consecução dosobjetivos pretendidos pela organização. A ameaça velada ou expressa comobase de política de pessoal. O medo, assim, não é só o resultado da ameaçaou da vulnerabilidade, mas o ponto de partida da banalização do mal. (...)Enquanto se trabalha, além da ameaça de precarização, há o medo diante dosriscos de acidente ou doença do trabalho; o medo de não corresponder àsexpectativas dos superiores e consumidores; de ser descartado como inap-to. A pressão por resultados aumenta...

Essa manipulação do medo e do sofrimento inicialmente serve ao fim empresa-rial de incremento de produtividade: o empregado amedrontado e abalado psicologicamente acabapor acatar qualquer ordem, ainda que contrária ao seu próprio senso de ética; o abalo em seusistema nervoso pode acarretar um estado de confusão mental que chega a impedir o empregadode discernir o certo do errado. Dejours, depois de afirmar que não encontra diferenças entre abanalização do mal no sistema neoliberal e no sistema nazista, identifica entre ambos os sistemas“as etapas de um processo capaz de atenuar a consciência moral em face do sofrimento infligido aoutrem e de criar um estado de tolerância ao mal” (DEJOURS, 1999, p. 139).

Com a criação de um ambiente de trabalho hostil e a desestabilização emocio-nal do trabalhador, este se torna dócil e menos reivindicativo, moldado aos desejos do capital.Segundo estudo promovido pela Sociedade Cubana de Direito do Trabalho e Seguridade Social(SALVADOR, 2002, p. 67), isso acontece porque, em uma empresa orientada para o mercado,requer-se uma competitividade empresarial superior para poder sobreviver à pressão da economia,o que faz o empregador buscar os melhores talentos, assim como o pessoal mais dócil, manejável,capaz de assumir funções sem protestar.

Na jurisprudência, cada dia são mais freqüentes os casos de condenação deempregadores em razão de atos decorrentes da utilização do medo e do sofrimento como meios deincremento de produtividade. A título ilustrativo são citados dois exemplos:

1. O TRT Capixaba condenou uma empresa de comunicação por se utilizar de“dinâmicas de grupo”, em treinamentos e no dia-a-dia de trabalho, que eram consideradas vexatórias,como “dançar a dança da boquinha da garrafa e o bonde do tigrão”. Nessa ocasião o Regionalentendeu que:

...o empregador é responsável pela saúde emocional de seus empregados enão pode permitir que meros instrutores utilizem, de modo absolutamentetemerário, uma ferramenta científica própria da psicologia, cuja conseqüên-cia é tão-somente a humilhação e o constrangimento do trabalhador. (...) Osatos praticados pela recorrida ultrapassam os limites profissionais, porqueminam a saúde física e mental da vítima e nada têm de modernos (TRT, 17a

Região, RO 01294.2002.007.17.00.9 – Ac. 23.10.03 – Relatora Juíza Sônia dasDores Dionísio – LTr 68-03, março de 2004, p. 356-359).

2. O TRT do Rio Grande do Sul apurou a utilização, como política de incremen-to de produtividade, de humilhações e constrangimentos impostos a trabalhador que não cumpriametas estabelecidas. As alegações do empregado incluíam o relato de práticas como ser obrigado“vestir uma saia e desfilar em cima de uma mesa, enquanto os colegas gritavam ‘veado’”. Naanálise da prova, o Regional constatou o seguinte:

01-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4320

21

Ana Paula Sefrin Saladini

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

...a segunda testemunha informou que quando os vendedores chegavamatrasados, esqueciam uniformes, não atingiam as metas, pagavam prendas;que eram chamados de ‘filhos da p...’, ‘merda’; que tinham apertado suasnádegas em corredor polonês, que isso acontecia quando o empregado nãosabia responder ao ‘pinga fogo’...(TRT, 04a Região, RO 00887.2003.015.04.00.4– Ac. 8a Turma – Relator Juiz Carlos Alberto Robinson – DJRS 16.07.04.)

Embora tais práticas sejam utilizadas a pretexto de aumento de produtividade, éfato constatado pela psicologia que em médio e longo prazo produzem efeito contrário ao pretendi-do. O empregado, desgastado psicologicamente, vê diminuir sua capacidade de trabalho e produti-vidade; o cansaço emocional favorece o desenvolvimento de doenças, algumas decorrentes de umprocesso de somatização, o que acarreta ausências ao serviço, inclusive afastamentos com autori-zação médica (HIRIGOYEN, 2003, p. 66).5 Algumas doenças, como estresse agudo, alcoolismo esíndrome de bournout, podem ser decorrentes da exposição reiterada ao medo e sofrimento noambiente de trabalho.

3.3 O Medo Criado como Mero Exercício Arbitrário de Poder

Além do medo e do sofrimento utilizados como meio de incremento de produti-vidade não é raro depararmos com indivíduos perversos que, identificados como “empreendedorese pró-ativos”, são alçados a cargos de chefia e utilizam dessa posição para dar vazão à crueldade.

De acordo com levantamentos da OIT, a cada dia cresce a violência no ambi-ente de trabalho, com destaque para a pressão psicológica, consistente em atitudes como observa-ções e críticas destrutivas, segregação de pessoas do convívio social, difusão de rumores ou infor-mações falsas.

Práticas perversas e reiteradas de gestão abusiva são identificadas como assé-dio moral. Hirigoyen qualifica o indivíduo maldoso como “perverso”, vez que utiliza procedimentossemelhantes aos que eram usados nos campos de concentração, “atando” psicologicamente avítima, que fica impedida de reagir. O agressor criva a vítima de críticas e censuras, vigia, cronometra,deixando-a sem saber como agir e sem compreender o que acontece. Os instrumentos utilizadosde forma mais freqüente são a recusa à comunicação direta, a desqualificação através de comuni-cação não verbal (suspiros, levantar de ombros, olhares, silêncios) e “brincadeiras” perversas(ironias, zombaria, sarcasmo). O indivíduo que assedia leva a pessoa a desacreditar de si; provocao isolamento do empregado, não o convocando para reuniões, privando-o de informações, “arqui-vando” a pessoa sem lhe dar o que fazer (DEJOURS, 1991, p. 77),6 condutas que geram maisestresse que a mera sobrecarga física de trabalho. Também é prática usual a utilização de proce-dimentos vexatórios, como confiar à vítima tarefas inúteis ou humilhantes ou induzir o empregadoao erro. Não se descartam, ainda, as situações de assédio de caráter sexual, que também impri-mem sofrimento à vítima (HIRIGOYEN, 2003, p. 76-81).

Outra forma bem disseminada de assédio, e particularmente bem aceita porparte dos comandados, em razão de questões sociológicas, constitui na escolha dos empregados“favoritos” do chefe, que levam pequenas e reiteradas vantagens no dia a dia empresarial: sãobeneficiados na distribuição das tarefas, na opção de períodos de férias, na concessão de folgas eopção por compensação de horas de trabalho, o que provoca uma divisão desigual do trabalho.Conforme Dejours, a desigualdade na divisão do trabalho é uma arma de que se servem os chefes

5 Não se morre diretamente de todas essas agressões, mas perde-se uma parte de si mesmo. Volta-se para casa, a cada noite,exausto, humilhado, deprimido. E é difícil recuperar-se.

6 DEJOURS relata o caso de fábricas de automóveis, na França, que para isolar os empregados organizavam as linhas demontagem intercalando empregados de diversas nacionalidades diferentes (um árabe, um iugoslavo, um francês, um turco,um espanhol, um italiano, um português, etc.), de modo a, com o obstáculo da língua, impedir toda a comunicação duranteo horário de trabalho.

01-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4321

22

Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

a bel-prazer da própria agressividade, hostilidade ou perversidade. Essa discriminação da hierar-quia com relação aos trabalhadores faz parte integrante das táticas “guerrilheiras” de comando,uma vez que a criação de rivalidades e a discriminação asseguram um grande poder à supervisão(DEJOURS, 1991, p. 75-76).

3.4 Efeitos do Medo e do Sofrimento na Saúde do Trabalhador

Medo e sofrimento no trabalho são agentes desencadeadores de doenças psí-quicas, como estresse e depressão. O resultado da soma de sofrimentos psíquicos, muitas vezes,vem a ser a ruptura do equilíbrio psíquico, o que vai desencadear a psicopatologia.

Fiorelli e Malhadas (2003, p. 38), no estudo conjunto da psicologia e do direitodo trabalho, indicam os seguintes efeitos dessa ruptura do equilíbrio psíquico:

Aqueles empregados que (...) não conseguem superar as situações de risco,real ou imaginário, por eles percebidas, mostram-se potencialmente capazesde desenvolver estados continuados de tensão, predispondo-se a diversostipos de patologias ou psicopatologias. Daí resultam hipertensões, crises degastrite, úlceras, taquicardias e outras complicações; no campo psíquico,encontram-se a ansiedade, a depressão, a propensão à drogadição, etc. Atensão continuada contribui para a redução das defesas do organismo, faci-litando as ações de vírus e bactérias.

Wandelli (2004, p. 101) adverte que a prática da exploração tem como conse-qüência uma soma de sofrimentos: ao sofrimento psíquico decorrente de um mal padecido pelosujeito soma-se o sofrimento ético, “aquele experimentado pelo sujeito ao cometer atos que elepróprio condena moralmente”.

Há estudos demonstrando que o processo do assédio moral pode levar “à totalalienação do indivíduo do mundo social que o cerca, julgando-se inútil e sem forças e levando,muitas vezes, ao suicídio” (NASCIMENTO, 2004, p. 922). Na Suécia, estima-se que esse tipo depressão é causa de 10 a 15% dos suicídios (OLIVEIRA, 2002, p. 189). No Japão, já se criou umvocábulo próprio, karoshi, para designar a morte pelo excesso de trabalho. Esse trabalhar até aexaustão e morte pode ser decorrente, também, de práticas de assédio moral, utilizadas comoforma de pressão por melhores resultados no trabalho.

A vítima fica indefesa: se tenta reagir, provoca a contra-reação do agressor,através de uma hostilidade declarada, visando sua destruição moral, o que pode levar a seutotal aniquilamento psíquico, ou, em casos extremos, até mesmo ao suicídio. Se não reage,paulatinamente tem destruído seu amor próprio e segurança para desenvolver até mesmotrabalhos rotineiros.

4 CONCLUSÃO

O assédio moral tem sido objeto de diversos estudos em relação às suas hipó-teses e sintomatologia. Muitas vezes, entretanto, falta questionar o que leva o empregador a admitirou até incentivar tais práticas, bem como analisar os efeitos disso na vida privada do empregado.

Na atual cultura empresarial, o medo e o sofrimento do trabalhador têm sidoutilizados ora como meios de incremento da produção, sob o rótulo de sistema de gestão, ora comomera demonstração arbitrária de poder por parte de chefias despreparadas e que utilizam taispráticas como válvula de escape da própria perversidade e agressividade.

A rotina de causar medo e sofrimento pode configurar assédio moral. Diversosprojetos de lei estão em tramitação, buscando regular o assunto. Não obstante, a falta de legislaçãoespecífica não serviu de empecilho ao desenvolvimento de ampla doutrina e jurisprudência a res-peito da questão.

01-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4322

23

Ana Paula Sefrin Saladini

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Caso demonstrada a conduta de cerco por parte do empregador ou seusprepostos, seja pelo incentivo, seja pela tolerância, estará caracterizada a culpa empresarial. Emhavendo nexo de causalidade entre a conduta do empregador e o sofrimento causado no emprega-do, este terá direito à percepção de indenização. Os tribunais trabalhistas pátrios têm reconhecido,reiteradamente, a existência do problema, inclusive com condenação de empregadores ao paga-mento de indenizações.

O prejuízo social é ainda maior, uma vez que o trabalhador submetido à torturano trabalho pode perder sua capacidade laboral de forma temporária ou permanente. A sociedadenão pode permanecer inerte diante dessas situações, assistindo ao desmonte da saúde do trabalha-dor que busca ganhar seu pão. E não basta que o Poder Judiciário defira o pagamento de indeniza-ções às vítimas. Urge sejam tomadas medidas visando suprimir esse círculo vicioso de maldade esofrimento.

REFERÊNCIAS

ANCHISES, Nara. À flor da pele: meu trabalho é um estresse! Revista Anamatra. ano XVII, no.51, 2º semestre de 2006, p. 47-49.

CANÇADO, Patrícia, e NEVES, Maria Laura. Quando o chefe vira réu. Revista Época. SãoPaulo: no. 332, 27.09.2004, p. 08-11.

DEJOURS, Christophe. A Banalização da Injustiça Social. Rio de Janeiro: Fundação GetúlioVargas, 1999.

______. A carga psíquica do trabalho. In: DEJOURS, Christophe; ABDOUCHELI, Elisabeth;JAYET, Christian. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da Escola Dejouriana à análise darelação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas, 1994, p. 21/32.

______. A loucura do trabalho. 4. ed. São Paulo: Cortez-Oboré, 1991.

FIORELLI, José Osmir; MALHADAS JÚNIOR, Marcos Júlio Olivé. Psicologia nas relaçõesde trabalho: uma nova visão para advogados, juízes do trabalho, administradores e psicólogos.São Paulo: LTr, 2003.

FERRARI, Irany; MARTINS, Melchíades Rodrigues. Dano Moral – Múltiplos Aspectos nasRelações de Trabalho. São Paulo: LTr, 2005.

GUEDES, Márcia Novaes. Mobbing – violência psicológica no trabalho. Revista LTr. São Paulo:v. 2, fev. 2003, ano 67, p. 162/165.

HIRIGOYEN, Marie-France, (Trad.) KÜHNER, Maria Helena. Assédio Moral: a violênciaperversa no cotidiano. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

MACHADO, Sidnei. O Direito à Proteção ao Meio Ambiente de Trabalho no Brasil. SãoPaulo: LTr, 2001.

MELO, Raimundo Simão. Direito Ambiental do Trabalho e a Saúde do Trabalhador. SãoPaulo: LTr, 2004.

MENEZES, Cláudio Armando Couto de. Assédio Moral e seus efeitos jurídicos. RevistaLTr. São Paulo: v. 3, mar. 2003, ano 67, p. 291/294.

NASCIMENTO, Sônia A. C. Mascaro. O assédio moral no ambiente do trabalho. Revista LTr.São Paulo: v. 8, ago. 2004, ano 68, p. 922/930.

01-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4323

24

Trabalho, Medo e Sofrimento: Considerações Acerca do Assédio Moral

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador. 4. ed. SãoPaulo: LTr, 2002.

SALVADOR, Luiz. O Assédio Moral e a Saúde do Trabalhador. Genesis Revista de Direito doTrabalho. Curitiba: v. 115, jul. 2002, p. 66-74.

VILAS BOAS, Sérgio. Perseguição no Trabalho é Assédio Moral. Jornal Folha de São Paulo.Suplemento Folha Equilíbrio. São Paulo: 21.02.2002, p. 08-11.

WANDELLI, Leonardo Vieira. Despedida Abusiva: o direito (do trabalho) em busca de umanova racionalidade. São Paulo: LTr, 2004.

01-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4324

25

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

André Gonçalo Dias Pereira

DEVER DE DOCUMENTAÇÃO, ACESSO AO PROCESSO CLÍNICO E SUAPROPRIEDADE. UMA PERSPECTIVA EUROPÉIA

André Gonçalo Dias Pereira*

RESUMO

Neste texto apresentam-se os fundamentos, as finalidades e os objectivos que presidem ao deverde documentação dos médicos. Estuda-se o regime de vários ordenamentos jurídicos europeus deacesso ao processo clínico, verificando-se que a maioria das legislações admite o acesso directodo doente ao processo. Relativamente à questão da propriedade do processo clínico, observa-sehoje uma nova compreensão da questão, na medida em que a informação de saúde carece decautelas suplementares de protecção face aos avanços da genómica, pelo que, em Portugal, a Lei12/2005, de 26 de janeiro, outorgou a propriedade da informação de saúde ao paciente, sendo asunidades do sistema de saúde meras depositárias do processo clínico.

Palavras-chave: Processo Clínico. Acesso à Ficha Clínica. Propriedade do Processo Clínico.

DOCUMENTATION DUTY, ACCESS TO MEDICAL FILE AND ITSOWNERSHIP. A EUROPEAN OUTLOOK

ABSTRACT

This paper discusses the reasons, goals and objectives of the doctor’s duty to register. Secondly,the system of access to medical records in different European countries is analysed. Increasinglythe patient has the right to access directly to his/her medical file. Finally, taking into considerationthe challenges of genomics, a new perspective of the ownership of medical files is discussed. Inthat respect, recent Portuguese law (Law 12/2005, 26 January) states that medical information isowned by the patient.

Keywords: Medical data. Access to Medical File. Ownership of Medical Records.

1 FUNDAMENTOS E FINALIDADES DO PROCESSO CLÍNICO

É doutrina e jurisprudência segura por toda a Europa que os médicos e os hospi-tais estão obrigados a proceder à documentação e registo da actividade clínica.1 Os fundamentosdesta obrigação podem ser encontrados quer no plano do direito contratual, quer delitual, nomeada-mente através dos direitos de personalidade (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p. 481-482).2

No plano contratual, entende-se que há um dever lateral (Nebenpflicht) re-sultante do contrato médico de realizar uma documentação minuciosa, pormenorizada, cuidadosa ecompleta da actividade médica, cirúrgica e dos cuidados de enfermagem.

* Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-graduado em Direito Civil e em Direito da Medicina pelaUniversidade de Coimbra; Mestre e Doutorando em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra. SecretárioCientífico do Centro de Direito Biomédico; Membro do Conselho Nacional de Medicina Legal.

1 Numa análise muito resumida, podemos afirmar que os principais deveres dos médicos face aos doentes são: (1) respeitar asleges artis e assegurar cuidados de saúde de qualidade; (2) informar o paciente e obter o seu consentimento livre e esclarecido;(3) guardar sigilo e salvaguardar a protecção de dados pessoais e (4) fazer uma boa documentação clínica.

2 Na formulação do BGH (Supremo Tribunal Federal alemão), o dever de documentação tem origem delitual e contratual e éum requisito fundamental para a segurança do paciente no tratamento. Destarte, o dever de documentar impõe-se mesmoque entre o médico e o paciente não se tenha estabelecido uma relação contratual.

02-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4325

26

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Dever da Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Propriedade. Uma Perspectiva Européia

A obrigação de levar a cabo um perfeito registo da história clínica resulta tam-bém de um dever de cuidado do médico, de uma obrigação inserta nas leges artis(Therapiepflicht). Para que os cuidados de saúde sejam zelosos e organizados, impõe-se que omédico proceda ao registo e à documentação das consultas, exames, diagnósticos e tratamentosefectuados, sob pena de incorrer em responsabilidade civil.

As principais finalidades do dever de documentação consistem em garantir asegurança do tratamento, a obtenção da prova, o controlo dos custos de saúde e a facilidadede fundamentação dos honorários (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p.481).

Relativamente à segurança do tratamento, deve-se ter em conta que hoje sepratica uma medicina de equipa, com elevada tecnologia, pelo que o adequado registo das informa-ções médicas permite evitar acidentes graves. Pense-se no caso dramático da amputação de ummembro saudável devido a má comunicação entre o médico e o cirurgião. O direito a uma segun-da consulta ou a uma segunda opinião também contribui para a maior exigência relativamenteao dever de documentação.

A importância do processo clínico ou prontuário como meio de prova vem-seafirmando cada vez mais, seja nas acções de negligência médica, seja nas acções de consenti-mento informado. Nas primeiras, é sabido que só a reconstituição do iter do tratamento permiteaveriguar da culpa do médico; quanto às segundas, cada vez mais a doutrina apela a uma boadocumentação da informação e do consentimento em detrimento do burocratizado e estandardizadoformulário para consentimento (PEREIRA DIAS, 2004, p. 187, s. E 525 e s.).

Quanto ao controlo dos custos de saúde, um adequado registo da históriaclínica pode permitir grandes poupanças. Na verdade, uma das principais causas do exponencialaumento dos custos de saúde é a multiplicação de exames supérfluos e repetidos sobre o mesmopaciente.

Finalmente, a existência de uma boa documentação clínica facilita a funda-mentação dos honorários (Rechenschaftslegung).

A facilidade probatória e o facto de a documentação constituir um instrumentopara cobrança de honorários são finalidades criticadas por alguma doutrina neste contexto; toda-via, parece que é razoável e pragmático aceitar que estas são efectivamente finalidades importan-tes e legítimas do dever de documentação. Este dever tanto favorece o médico como o paciente epermite uma melhor execução do contrato (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p.485).

Finalmente, pode-se sintetizar os grandes objectivos da existência do processoclínico: (1) melhorar os cuidados de saúde prestados ao doente; (2) partilhar informação clínicaentre os profissionais de saúde; (3) diminuir o erro; (4) melhorar a forma como a informação éobtida, registada e disponibilizada; (5) garantir a mobilidade e acesso remoto; (6) melhorar o supor-te à decisão clínica; (7) acesso fácil a standards terapêuticos; e, por último, (8) a racionalização derecursos.

2 O DEVER DE DOCUMENTAÇÃO NO DIREITO PORTUGUÊS

No direito português, Guilherme de Oliveira defende que está previsto o deverjurídico de documentação. Este dever encontra-se vertido no art. 77º, n.º 1 Código Deontológicoda Ordem dos Médicos, que tem a seguinte redacção:

O médico, seja qual for o Estatuto a que submeta a sua acção profissional,tem o direito e o dever de registar cuidadosamente os resultados que consi-dere relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo, conser-vando-as ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas dosegredo profissional.

02-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4326

27

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

André Gonçalo Dias Pereira

Essa norma deontológica tem a virtualidade heurística de densificar o conteúdonormativo do art. 7º, al. e) do Decreto-Lei n.º 373/79, de 8 de Setembro (Estatuto do Médico),segundo o qual o médico tem o dever de “contribuir com a criação e manutenção de boas condi-ções técnicas e humanas de trabalho para a eficácia dos serviços” (OLIVEIRA, Guilherme de.SD, p. 36).

Outra base legal encontra-se nos artigos 573º e 575º CC, que regulam a obri-gação de “informação” e de “apresentação de documentos” (FIGUEIREDO DIAS; SINDEMONTEIRO, 1984, p.42). A afirmação desse dever de documentação tem também influênciana distribuição da carga probatória (VÁZQUEZ FERREYRA; TALLONE. 2000).3 O médicofica prejudicado no plano probatório não apenas se subtrair ou alterar documentos que têmimportância para esclarecer a controvérsia (art. 344.º, n.º2 do Código Civil), mas também se aredacção dos actos médicos for inexacta ou incompleta. De qualquer modo, convém reiterar queo processo clínico não constitui sempre uma verdade irrefutável e absoluta, pelo que deve seravaliada conjuntamente com os restantes elementos probatórios presentes no processo (GALÁNCORTÉS, 2001, p. 152).

Efectivamente, entende-se que o processo clínico pode ter uma importânciadecisiva num processo de responsabilidade médica. Entre nós, o art. 344º, n.º 2, CC estabelece ainversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a provaà parte onerada.4 O médico deve ser o primeiro a ter interesse em ser zeloso na conservação e noadequado registo da ficha clínica (TEIXEIRA DE SOUSA, 1996, p. 131).

Em suma, o processo ou ficha clínica é de grande importância na boa relaçãomédico–paciente e, simultaneamente, pode ajudar a controlar os ‘galopantes’ custos de saúde.Nesse sentido, as legislações modernas5 exigem que o médico registe as consultas e organize umprocesso onde deve incluir, entre outros, os exames, as análises, os apontamentos das consultas,formulários do consentimento, etc (DUPUY, 2002, p. 15 s.).

3 O CONTEÚDO DO DEVER DE DOCUMENTAÇÃO

O adequado cumprimento dever de documentação pressupõe o registo de vári-os itens, como, por exemplo: a anamnese, o diagnóstico, a terapia, os métodos de diagnósticoutilizados, o doseamento da medicação, o dever de informar para o consentimento, o relatório dasoperações; os acontecimentos inesperados, a mudança de médico ou de cirurgião, a passagempelos cuidados intensivos, o abandono do hospital contra a indicação médica, etc..

A forma da documentação também deve ser objecto do maior cuidado. Oshospitais vão uniformizando e sistematizando os prontuários, o que é salutar enquanto demonstra origor e o cuidado nesta tarefa; por outro lado, nos tempos modernos, assume especial atenção adocumentação electrónica.

3 A Cámara Civil y Comercial de Junín (Argentina), na decisão de 15-12-1994, decidiu que “constitui uma presunção contrao profissional a inexistência da história clínica ou a existência de irregularidades na mesma”. A falta do processo clínico privade um elemento valioso para a prova da responsabilidade médica e deve prejudicar a quem era exigível como dever decolaboração na difícil actividade probatória e esclarecimento dos factos. Através da prova por presunções, uma históriaclínica insuficiente constitui mais um indício que deverá ser tomado em consideração pelo tribunal na hora de analisar aconduta dos profissionais. Mas a necessária relação causal não pode deduzir-se apenas da existência de uma história clínicairregular..

4 Artigo 344.º, n.º2 do Código Civil – (Inversão do ónus da prova): “Há também inversão do ónus da prova, quando a partecontrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mandeespecialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.”

5 No plano histórico, encontram-se os primeiros documentos, com informações relativas aos pacientes, nos hospitais deBagdad nos séculos IX, X e XI da nossa era.

02-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4327

28

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Dever da Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Propriedade. Uma Perspectiva Européia

O registo da história clínica deve ser feito em devido tempo. Deve verificar-seuma relação imediata com o tratamento ou com a intervenção médica. Com efeito, se a documen-tação for realizada semanas ou meses depois da intervenção, pode-se defender, no caso de umprocesso de responsabilidade médica, uma inversão do ónus da prova, tal como nos casos deausência ou insuficiente documentação. A jurisprudência alemã entende que há uma relação deproporcionalidade entre a gravidade da intervenção e a exigência de documentar com brevidade.Assim, por exemplo, uma cirurgia de alto risco deve ser objecto de um registo minucioso e imedi-ato; intervenções de rotina podem ser registadas passado algum tempo (LAUFS; UHLENBRUCK,2002, p. 487).

4 O ACESSO AO PROCESSO CLÍNICO

O processo clínico pode ser um instrumento importante na relação médico–paciente e também como meio de prova da informação fornecida e do consentimento obtido.6 Émister considerar apenas a comunicação do processo clínico ao paciente (MONIZ, 1997).

O acesso à ficha clínica, por parte do paciente, pode ter um regime diferenteconsoante se esteja numa fase extra-processual, pré-processual ou já em fase processual.

A doutrina alemã distingue: a) a fase extra-processual, em que a consultapode estar sujeita a algumas limitações temporais e objectivas (para protecção do interesse domédico em não ver devassadas as suas anotações pessoais e de terceiras pessoas); b) a fase pré-processual, em que o paciente pretende preparar uma acção de honorários ou de responsabilidadecivil (havendo também limitações para protecção do médico e de terceiros, bem como por razõesterapêuticas, sendo admissível limitar o aceso a paciente com problemas psiquiátricos que seriamgravemente prejudicados com o conhecimento integral do seu ficheiro clínico, devendo este seracompanhado e aconselhado por um médico); c) o direito de consulta durante um litígio emtribunal, em que a ficha clínica assume uma importância decisiva na clarificação dos factos, poden-do mesmo ser requerida ex officio pelo próprio tribunal. Quando seja entregue,7 a ficha clínicapassa a ser considerada como documento integrante do processo (Teil der Prozessakte) e não hárazões de índole terapêutica que justifiquem uma limitação ao direito de consulta do processo(LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p. 491).

Podemos acrescentar, à face do direito português, que, em caso de litígio, omédico tem o dever de cooperação para a descoberta da verdade (art. 519º, n.º1 CPC), “oqual impõe a obrigação de facultar à contraparte e ao tribunal os documentos que estão em seupoder. Quando pretenda fazer uso desses documentos, o paciente requererá que o médico de-mandado seja notificado para os apresentar dentro do prazo que o tribunal designar (art. 528º,n.º1 CPC); se o médico se recusar a fazê-lo, o tribunal apreciará livremente a sua conduta paraefeitos probatórios (art. 529º CPC), isto é, poderá, se assim o entender, dar como provados osfactos que o paciente se propunha demonstrar através desses documentos” (TEIXEIRA DESOUSA , SD, p. 134 e FIGUEIREDO DIAS/ SINDE MONTEIRO, SD, p. 28 e 32). Porém,terceiros (mesmo com interesses patrimoniais directos) têm direito de acesso ao processo ape-nas na medida em que os seus interesses tenham um valor superior ao direito de autodetermi-nação informativa do paciente.

Neste trabalho será apresentado apenas um breve quadro da legislação dealguns países europeus no que respeita ao acesso ao dossier médico numa situação extra-judicial.

6 A Declaração dos Direitos dos Pacientes prescreve que “à saída de um estabelecimento de tratamento, os pacientes deveriampoder, a seu pedido, obter um resumo escrito do diagnóstico, tratamento e cuidados que a ele dizem respeito” (2.9.)

7 Contudo, este é um processo complexo em que deve ser ouvida a Ordem dos Médicos, nos termos do art. 69.º e 73.º do CódigoDeontológico.

02-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4328

29

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

André Gonçalo Dias Pereira

4.1 O Direito de Consulta do Processo Clínico

Nesta fase o paciente não está em litígio nem pretende intentar uma acçãocontra o facultativo. Os fundamentos do direito de consulta encontram-se no contrato médico e naprotecção dos direitos de personalidade. O doente deve apresentar uma justificação para consultaro processo, porém essa justificativa não carece de revestir um especial interesse de protecção.

4.1.1 Posição Tradicional: O Acesso Indirecto

A maior parte das ordens jurídicas nos países latinos admitiam o acesso à histó-ria clínica, mas apenas através de um médico nomeado pelo paciente. Era o chamado sistema doacesso indirecto.

Em Portugal, mantém-se o acesso limitado, na medida em que só pode serefectuado por intermédio de um médico. Consagra-se assim o acesso mediato ou indirecto à fichaclínica. Esse direito de acesso indirecto à informação clínica, encontra-se previsto no art. 11º, n.º5 da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei de Protecção dos Dados Pessoais) e na Lei n.º 94/99,de 16 de Julho (Lei de Acesso aos Documentos Administrativos [LADA]). A Lei n.º 12/2005, de26 de Janeiro, Informação genética pessoal e informação de saúde) mantém esse regime,prescrevendo o artigo 3.º, n.º3: “O acesso à informação de saúde por parte do seu titular, ou deterceiros com o seu consentimento, é feito através de médico, com habilitação própria, escolhidopelo titular da informação.”

Esse sistema não é contrário ao art. 10º, n.º 3, da Convenção dos Direitos doHomem e a Biomedicina (DIÁRIO DA REPUBLICA, 2001), já que esta Convenção confere apossibilidade de os Estados parte adoptarem este modelo mais paternalista, “a título excepcional eno interesse do paciente.” Essa mediação tem em vista proteger o paciente de informações quepoderiam afectar gravemente a sua saúde. Este regime encontra evidente paralelismo com o pri-vilégio terapêutico, pelo que, após a Reforma do Código Penal de 1995 deveremos ser muitorestritivos na limitação da informação ao doente. Assim, esta limitação só se justifica “se issoimplicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em peri-go a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física o psíquica.”

Com efeito, o art. 3.º, n.º 2 da Lei 12/2005, prevê que: “O titular da informaçãode saúde tem o direito de, querendo, tomar conhecimento de todo o processo clínico que lhe digarespeito, salvo circunstâncias excepcionais devidamente justificadas e em que seja inequivo-camente demonstrado que isso lhe possa ser prejudicial, ou de o fazer comunicar a quem sejapor si indicado.”

Na esteira do direito alemão, porém, no acesso à documentação deve distin-guir-se entre “os elementos que contêm dados objectivos e aqueles que implicam valoraçõessubjectivas, bem como a notícia de dados fornecidos por terceiros (cônjuge ou parentes), emrelação aos quais não existe o direito de apresentação” (SINDE MONTEIRO, 1990, p. 427).8

Pelo que o médico que proceda à transmissão da informação ao paciente deve ter em conta osinteresses do médico e de terceiros.9

8 No mesmo sentido, cfr. as leis de Espanha e da Bélgica.9 Adiante este ponto será desenvolvido.

02-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4329

30

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Dever da Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Propriedade. Uma Perspectiva Européia

4.1.2 Nova Orientação: O Acesso Directo

As recentes leis de direitos dos pacientes, nos países latinos, têm vindo aadmitir o acesso de forma mais liberal.

Em Espanha, a Ley 41/2002, de 14 de Novembro,10 regula o acesso à históriaclínica, consagrando o direito de acesso livre e directo e o direito de obter cópia destes dados.Salvaguardando, porém, os direitos de terceiras pessoas à confidencialidade dos dados, o inte-resse terapêutico do paciente e o direito dos profissionais à reserva das suas anotaçõessubjectivas.11

A lei francesa de 4 de Março de 200212 confere aos pacientes o direito deaceder às informações médicas contidas no seu processo clínico. Mais concretamente, essa lei –quebrando a tradição gaulesa – consagra a possibilidade para o paciente de aceder directamenteà ficha clínica que lhe diz respeito. Anteriormente, o doente só podia tomar conhecimento dessasinformações através do intermédio de um médico.

A consagração do direito de acesso directo ao processo clínico é a resposta dolegislador às reivindicações das associações de utentes. Contudo, certamente assistiremos a algu-ma resistência por parte de alguns médicos. Para além de verem a sua ‘privacidade’ profissionaldevassada por esta lei, os médicos temem que o paciente fique mais exposto aos riscos de pressãodos empregadores e seguradores no sentido de conhecerem os seus prontuários (DUPUY, 2002,p.6).13

O legislador salvaguardou, porém, certas hipóteses para as quais este direito deacesso será indirecto. Assim acontece no caso de uma hospitalização compulsiva. Esta limita-ção justifica-se pela necessidade para o médico de dispor de um poder de controlo da difusão deinformação sobre a patologia ao seu paciente. Por outro lado, o direito de consulta do processorelativo a um menor não emancipado é exercido pelos titulares da autoridade parental. Contudo,também pode ter lugar a pedido do menor por intermédio do médico. O menor que quiser mantersegredo de determinado tratamento pode-se opor a que o médico comunique ao titular da autorida-de parental as informações relativas a essa intervenção. O médico deve fazer menção escritadessa oposição (DUPUY, 2002, p. 8).

Também na Bélgica se aceita, actualmente, o acesso directo ao seu processo.O art. 9, §2 da Lei Belga sobre Direitos dos Pacientes de 2002,14 reconhece o direito de consultara história clínica, mas considera que as anotações pessoais do profissional de saúde e os dadosrelativos a terceiros não são abrangidos por esse direito de consulta.

10 Ley 41/2002, de 14 de noviembre, básica reguladora de la autonomía del paciente y de derechos y obligaciones enmateria de información y documentación clínica.

11 Artículo 18. Derechos de acceso a la historia clínica.: “1. El paciente tiene el derecho de acceso, con las reservas señaladasen el apartado 3 de este artículo, a la documentación de la historia clínica y a obtener copia de los datos que figuran en ella.Los centros sanitarios regularán el procedimiento que garantice la observancia de estos derechos. 2. El derecho de acceso delpaciente a la historia clínica puede ejercerse también por representación debidamente acreditada. 3. El derecho al acceso delpaciente a la documentación de la historia clínica no puede ejercitarse en perjuicio del derecho de terceras personas a laconfidencialidad de los datos que constan en ella recogidos en interés terapéutico del paciente, ni en perjuicio del derechode los profesionales participantes en su elaboración, los cuales pueden oponer al derecho de acceso la reserva de susanotaciones subjetivas. 4. clínica de los pacientes fallecidos a las personas vinculadas a él, por razones familiares o de hecho,salvo que el fallecido lo hubiese prohibido expresamente y así se acredite. En cualquier caso el acceso de un tercero a lahistoria clínica motivado por un riesgo para su salud se limitará a los datos pertinentes. No se facilitará información queafecte a la intimidad del fallecido ni a las anotaciones subjetivas de los profesionales, ni que perjudique a terceros.”

12 Loi no 2002-303 du 4 mars 2002 relative aux droits des malades et à la qualité du système de santé.13 Todavia, o art. 45 do Code de Déontologie médicale dispõe que “independentemente do dossier clínico previsto na lei, o

médico deve ter para cada paciente uma parte de observações que lhe é pessoal; essa ficha é confidencial e inclui os elementosactualizados, necessários às decisões diagnósticas e terapêuticas”. Alguns autores entendem que essas fichas também sãocomunicáveis se o paciente o solicitar. Outros entendem que tal medida apenas iria sobrecarregar o processo de informaçãomédica. Que o doente possa, se quiser, aceder à informação médica que lhe diz respeito, parece adequado, mas seria maisjudicioso ater-se ao espírito da norma do Código Deontológico, isto é à sagacidade do médico.Jean-Marie Clément, receiaque se caminhe para uma formalização excessiva das relações médico–paciente quando nesta relação deveria presidir aconfiança. “Le droit des usagers devient un droit des consommateurs de soins et à ce titre, on verse d’une confiance à unedéfiance, avec toutes les conséquences d’une telle modification”.

14 Loi relative aux droits du patient du 22 août 2002.

02-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4330

31

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

André Gonçalo Dias Pereira

Nos países do norte da Europa, o acesso directo ao processo clínico é já tradi-cional. Nos Países Baixos (segundo o art. 456 BWB – Código Civil holandês),15 odireito de acessoà totalidade do processo é reconhecido ao paciente, exceptuando as informações susceptíveis delesar a vida privada de terceiras pessoas (CLÉMENT, JM. 2002, p. 16).

Na Dinamarca, o direito de acesso ao processo clínico abrange todas as infor-mações, incluindo as notas pessoais ou, por exemplo, os comentários a uma radiografia, mascada pedido é examinado e a consulta pode ser directa ou com a ajuda de um médico.

Na Alemanha, a lei autoriza o acesso directo aos “dados objectivos” do pro-cesso (resultados de exames, radiografias, troca de correspondência entre médicos) mas restringeà autorização dos médicos o acesso aos elementos subjectivos (anotações pessoais, por exem-plo). Assim, o acesso ao “dossier” pode estar sujeita a algumas limitações temporais e objectivas(para protecção do interesse do médico em não ver davassadas as suas anotações pessoais e deterceiras pessoas). O BGH (Bundesgerischtshof) – Tribunal Federal alemão – limita o direito deacesso aos resultados de índole objectiva, científica e às referências a tratamentos, especialmenteno domínio da medicação e relatórios sobre cirurgias. Está vedado o direito de acesso a valoraçõessubjectivas do médico, como a reprodução de impressões pessoais sobre o paciente ou sobre osseus familiares. O médico e/ou o hospital/ clínica têm o direito de esconder essas observações,desde que seja notório que isso se verificou (LAUFS; UHLENBRUCK, 2002, p.489).

Também no Reino Unido se consagra o direito de acesso do paciente à infor-mação de saúde. Todavia, a lei mantém uma excepção, na medida em que o acesso pode sercondicionado caso a informação possa causar um grave dano ao paciente (‘likely to cause seriousharm’) (MASON & Mc CALL SMITH, 1999, p. 210).

Podemos concluir que a evolução no direito comparado vai no sentido de con-ceder ao paciente o direito de acesso directo ou imediato ao processo clínico (Luis MARTINÉZ-CALCERRADA; LORENZO, 2001).16

Vejamos o seguinte quadro comparativo:

15 Nos Países Baixos, o contrato médico está regulado no Código Civil de 1992, no livro 7 referente aos contratos emespecial. Veja-se Ewoud HONDIUS/ Annet van HOOFT, “The New Dutch Law on Medical Services”, Netherlands InternationalLaw Review, XLIII, 1-17, 1996. Sobre o direito holandês, cfr., tb., Loes MARKENSTEIN, “Country Report The Netherlands”,in Jochen TAUPITZ (Ed.), Regulations of Civil Law to Safeguard the Autonomy of The Patient…, pp. 741 e ss.

16 Sobre esta matéria, na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, cfr. Decisões de 28-1-2000; 7-12-99; 9-6-1998; 27-8-1997; 25-2-1997.

02-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4331

32

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Dever da Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Propriedade. Uma Perspectiva Européia

5 A QUESTÃO DA PROPRIEDADE DO PROCESSO CLÍNICO

A questão da propriedade da ficha clínica dá origem a freqüentes dificuldadesterminológicas e confusões conceptuais. O termo “propriedade” é aqui usado em sentido amplo,querendo significar titularidade ou domínio sobre a informação contida no processo.

Normalmente a lei não se pronuncia claramente sobre essa questão. Por isso, adoutrina costuma analisar este problema tendo em conta os seguintes aspectos: a quem incumbe aconservação do “dossier”? Tem o doente direito de acesso directo ao processo clínico (DUPUY,2002, p. 192)? Tem o médico direito de propriedade intelectual sobre os registos clínicos (MASON& Mc CALL SMITH, 1999, p. 211)?

No direito francês, a questão da propriedade do dossier é muito controversa.Para Dupuy, (2002, p. 9) a unidade de saúde está obrigada ao dever de conservação, o que lheconfere uma responsabilidade ligada à sua obrigação de arquivamento em boas condições e decomunicação ao paciente quando este o desejar. Mas este dever não é assimilável às prerrogativas(próprias do direito de propriedade) de fructus, de usus e de abusus sobre o “dossier”. O médico,por seu turno, tem o direito de propriedade intelectual de uma parte variável do seu conteúdoe nomeadamente das suas notas pessoais; contudo não é considerado depositário do “dossier”.Por outro lado, o paciente não tinha, tradicionalmente direito de acesso directo ao “dossier”, o queconstituía uma limitação importante. Actualmente, segundo Olivier Dupuy, (2002) e à luz da Leifrancesa de 4 de Março de 2002, que cria a regra de acesso livre e directo do paciente ao “dossiermédical”, o paciente deve ser considerado o proprietário do processo clínico.

Em sentido contrário, a Lei da Galiza,17 que admite o acesso directo ao pro-cesso clínico, diz claramente que a Administração de Saúde é proprietária da “história clínica”18 .Assim, ao contrário do que defende Dupuy, não parece que se possa extrapolar do regime deacesso à história clínica a resposta para a questão da propriedade.19

Em Portugal, onde o acesso é indirecto, este argumento serviria para afirmarque o médico ou o Hospital são os proprietários. Neste sentido, aliás, o art. 77º, n.º 2 do CódigoDeontológico da Ordem dos Médicos afirma que “a memória escrita do médico pertence-lhe”.20

Na opinião do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, “a informação constante doficheiro clínico é um direito do doente que em qualquer momento pode solicitar que lhe seja fornecidaou enviada a médico à sua escolha. O ficheiro, em si, é propriedade do médico sendo a única

17 A Comunidade Autónoma da Galiza regula esta matéria na Ley 3/2001, de 28 de mayo, com as modificações introducidaspela Ley 3/2005, de 7 de marzo, de modificación de la Ley 3/2001, de 28 de mayo, reguladora del consentimientoinformado y de la historia clínica de los pacientes. Estas modificações visam adaptar a lei da Comunidade Autónoma àlegislação nacional do Reino de Espanha: Ley 41/2002, de 14 de noviembre, básica reguladora de la autonomía delpaciente y de derechos y obligaciones en materia de información y documentación clínica.

18 O artigo 19 prescreve: “1. El paciente tiene el derecho de acceso a la documentación de la historia clínica y a obtener copiade los datos que figuran en la misma. Los centros sanitarios regularán el procedimiento que garantice la observancia de estosderechos. Este derecho de acceso podrá ejercitarse por representación debidamente acreditada. 2. En los supuestos deprocedimientos administrativos de exigencia de responsabilidad patrimonial o en las denuncias previas a la formalización deun litigio sobre la asistencia sanitaria se permitirá que el paciente tenga acceso directo a la historia clínica, en la forma y conlos requisitos que se regulen legal o reglamentariamente. (…) 4. El derecho al acceso del paciente a la documentación de lahistoria clínica no puede ejercitarse en perjuicio del derecho de terceras personas a la confidencialidad de los datos queconstan en ella recogidos en interés terapéutico del paciente, ni en perjuicio del derecho de los profesionales participantesen su elaboración, los cuales pueden oponer al derecho de acceso la reserva de sus anotaciones subjetivas.

19 Afirma o artigo 15 relativo à “Propiedad y Custodia:” “1. Las historias clínicas son documentos confidenciales propiedadde la Administración sanitaria o entidad titular del centro sanitario, cuando el medico trabaje por cuenta e bajo ladependencia de una institución sanitaria. En caso contrario, la propiedad corresponde al medico que realiza la atenciónsanitaria.” 2. La entidad o el facultativo propietario es responsable de la custodia de las historias clínicas y deberá adoptartodas las medidas precisas para garantizar la confidencialidad de los datos o de la información contenida en ellas. (…)

20 Artigo 77.º (Processo ou Ficha clínica e exames complementares): “1. O Médico, seja qual for o Estatuto a que se submetaa sua acção profissional, tem o direito e o dever de registar cuidadosamente os resultados que considere relevantes dasobservações clínicas dos doentes a seu cargo, conservando-as ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas dosegredo profissional. 2. A ficha clínica do doente, que constitui a memória escrita do Médico, pertence a este e não àquele,sem prejuízo do disposto nos Artigos 69.º e 80.º 3. Os exames complementares de diagnóstico e terapêutica, que constituema parte objectiva do processo do doente, poderão ser-lhe facultados quando este os solicite, aceitando-se no entanto que omaterial a fornecer seja constituído por cópias correspondentes aos elementos constantes do Processo Clínico.”

02-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4332

33

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

André Gonçalo Dias Pereira

forma de preservar a liberdade de transcrição e o registo de elementos de uso pessoal, e queo médico pretende salvaguardar de qualquer exposição de outra pessoa./ Nas organizaçõescomplexas, públicas ou privadas, em que vários médicos registam no mesmo processo clínico, esteé da responsabilidade do Director Clínico da instituição nos termos do Código Deontológico emvigor.” Todavia, os novos ventos que sopram na medicina poderão vir a impor um reequacionamentodo problema. A informação genética poderá conduzir a uma nova perspectiva da propriedade dainformação de saúde e do processo clínico.

Com efeito, um novo argumento para a discussão prende-se com o facto de,actualmente, a nova medicina preditiva ou predizente impor a necessidade de tutela reforçada dosdados de saúde, em especial a informação genética, já que a informação de saúde se afirma comoum objecto de exploração comercial. Essa nova perspectiva pode justificar o regime inovadorprevisto na Lei n.º12/2005, de 26 de Janeiro (Informação genética pessoal e informação desaúde), que no seu artigo 3º, n.º 1 dispõe:

A informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultadosde análises e outros exames de subsidiários, intervenções e diagnósticos, épropriedade da pessoa, sendo as unidades do sistema de saúde os deposi-tários da informação, a qual não pode ser utilizada para outros fins que nãoos da prestação de cuidados e investigação em saúde e outros estabeleci-dos em lei.

Parece paradoxal que uma lei que mantém, como vimos, o regime conservadorde acesso indirecto ao processo clínico afirme peremptoriamente que o utente é proprietário dainformação. Assim, a ligação que DUPUY faz entre acesso directo e propriedade também não severifica aqui.

Ademais, importa ter em conta a subtileza da Lei 12/2005: não se afirma que opaciente é proprietário do dossier, qua tale, mas sim da informação de saúde.

Na Sociedade da Informação em que se vive, a informação de saúde, em espe-cial a informação genética são um valor mercantil importante, pelo que as ameaças à autodetermi-nação informacional se fazem sentir com particular importância. Na nova economia – dominadapelo investimento na genética, na genómica, na seqüenciação do genoma humano e suas aplica-ções médicas – as informações de saúde podem converter-se num “produto” apetecível(FUKUYAMA, 2002). Basta pensar nas bases de dados genéticos da Islândia, da Estónia ou deTaiwan, ou nos problemas levantados pelo já clássico caso Moore, decidido pelo Supremo Tribunalda Califórnia.21 Assim sendo, compreende-se que, partindo da distinção entre processo clínico einformação de saúde, se defenda que esta última é propriedade do paciente(MASON & McCALL SMITH, p. 211).22

Trata-se de uma opção legislativa controversa.23 Por outro lado, o legisladorparece não ter tomado em consideração a necessidade de conciliar os interesses do paciente comos interesses do médico e de terceiros.

Com efeito, a lei apenas admite que se não apresente todo o processo clínicoem “circunstâncias excepcionais devidamente justificadas e em que seja inequivocamentedemonstrado que isso lhe possa ser prejudicial.”24

21 Moore v. Regents of the University of California, 793 P.2d 479 (Cal. 1990).22 Fica assim comprometido o entendimento tradicional segundo o qual o médico seria titular do direito de propriedade

intelectual sobre as informações registadas. “…the ownership of the contained intellectual property – ie the copyright – isheld by the person who has created the notes or his employer, an not by the subject of those notes.”

23 O Código Deontológico, no art. 77.º, n.º 3 já distinguia a informação objectiva relativa ao paciente, prevendo que: “Osexames complementares de diagnóstico e terapêutica, que constituem a parte objectiva do processo do doente, poderão ser-Ihe facultados quando este os solicite, aceitando-se no entanto que o material a fornecer seja constituído por cópiascorrespondentes aos elementos constantes do Processo Clínico.”

24 Segundo o art. 3.º, n.º2: “O titular da informação de saúde tem o direito de, querendo, tomar conhecimento de todo oprocesso clínico que lhe diga respeito, salvo circunstâncias excepcionais devidamente justificadas e em que seja inequivo-camente demonstrado que isso lhe possa ser prejudicial, ou de o fazer comunicar a quem seja por si indicado.

02-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4333

34

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Dever da Documentação, Acesso ao Processo Clínico e sua Propriedade. Uma Perspectiva Européia

Não parece, pois, ter em conta os interesses do médico e de terceiros, talcomo acontece, por exemplo, na lei belga, que prescreve (art. 9, §2): “as anotações pessoais doprofissional de saúde e os danos relativos a terceiros não entram no quadro do direito de consul-ta.”25

Poderemos interpretar extensivamente essa excepção de forma a respeitar osinteresses do médico de manter reserva sobre as suas anotações pessoais e a confidencialidade deinformações de saúde de terceiras pessoas?

Se considerarmos que a pessoa tem o “direito de propriedade” sobre a suainformação de saúde – “incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e ou-tros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos” – como prescreve o n.º1 do art. 3.º,parece razoável afirmar que neste conceito não se incluem informações de saúde relativas aterceiros, nem as anotações pessoais do médico.

Esta interpretação faz jus à necessidade de “concordância prática” entre valo-res constitucionais conflituantes26 e pode ser defendida à luz do art. 18.º, n.º2 da Constituição daRepública,27 na medida em que só assim se respeita o princípio da proporcionalidade e o respeitopelo “núcleo essencial” (CANOTILHO, 192, p. 628) do direito à intimidade da vida privada efamiliar de terceiros (art. 26.º, nº1 CRP) e do próprio médico (LAUFS/ UHLENBRUCK, 2002,p. 491).

6 CONCLUSÃO

O cabal cumprimento dever de documentação constitui um dos pilares essenci-ais nos quais assenta a relação médico-paciente e encontra-se consagrado no direito português,nomeadamente no art. 77.º, n.º1, do Código Deontológico da Ordem dos Médicos.

Por toda a Europa, incluindo nos países latinos, vem-se confirmando o direitode acesso directo do paciente ao processo clínico, abandonando-se um certo paternalismo médicoque ainda vigora em Portugal.

A questão da propriedade tem vindo a ser evitada pela maioria dos legisladores,mas alguns vão-se pronunciando (por exemplo, na Galiza e em Portugal) em sentidos divergentes.A doutrina deve tomar em consideração os dados da nova economia e da nova medicina, intima-mente influenciados pelos avanços na genética, na genómica e na farmacogenética e compreenderque a tese da propriedade do paciente sobre a informação médica talvez seja a que melhorprotege o cidadão perante as ameaças que se vão fazendo sentir ao seu direito à autodetermina-ção informacional.

Finalmente, há que se a avançar com uma interpretação do n.º 2 do art. 3.º daLei 12/2005, de 26 de Janeiro, que visa conciliar os interesses e valores constitucionais em conflito,garantindo a protecção do direito à intimidade da vida privada e familiar de terceiros e do própriomédico.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Carlos Ferreira de. “Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico”. In: Direi-to da Saúde e da Bioética. Lisboa: AAFDL, 1996.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1992.

25 Cfr. também o art. 18.3 lei espanhola de direitos dos pacientes (Ley 41/2002, de 14 de Novembro).26 Ou, numa perspectiva juscivilística, a colisão de direitos que é regulada no art. 335.º do Código Civil: “1. Havendo colisão

de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmenteo seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.”

27 A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo asrestrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

02-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4334

35

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

André Gonçalo Dias Pereira

CLÉMENT, Jean-Marie Droits des Malades, Bordeaux: Les Études Hospitalières, 2002.

COMISSÃO NACIONAL DE PROTECÇÃO DE DADOS, Deliberação n. 51/2001: <http://www.cnpd.pt/bin/decisoes/2001/htm/del/del051-01.htm>.

DIAS, Jorge Figueiredo; MONTEIRO, Jorge Sinde. Responsabilidade Médica em Portugal,Lisboa: Ministério da Justiça, 1984.

DUPUY, Olivier. Le dossier Médical. Bordeaux:Les Études Hospitalières, 2002.

______ . L’information médicale, information du patient et information sur le patient. Bordeaux:Les Études Hospitalières, 2002.

FUKUYAMA, Francis. Our Post-Human Future. 2002.

GALÁN CORTÉS, Júlio César. Responsabilidad Médica y Consentimiento Informado. Madrid:Civitas, 2001.

HONDIUS, Ewoud; HOOFT, Annet van. «The New Dutch Law on Medical Services». NetherlandsInternational Law Review. XLIII, 1996, 1-17.

LAUFS, Adolf; UHLENBRUCK, Wilhelm. Handbuch des Arztrechts, München: Beck. 2002.

MARKENSTEIN, Loes. “Country Report The Netherlands”. In: TAUPITZ, Jochen (Ed.).Regulations of Civil Law to Safeguard the Autonomy of The Patient at the end of their life -an international documentation. Berlin [etc.]: Springer, 2000.

MARTINÉZ-CALCERRADA, Luís; LORENZO, Ricardo de. Tratado de Derecho Sanitário.Tomo II, Madrid: Colex, 2001.

MASON & Mc CALL SMITH. Law and Medical Ethics. 5t. ed. London: Edimburgh: Dublin:Butterworths, 1999.

MONIZ, Helena. “Notas sobre a Protecção de Dados pessoais Perante a Informática (O CasoEspecial dos dados Pessoais Relativos à Saúde)”. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. 7,1997.

MONTEIRO, Jorge Sinde. Responsabilidade Civil por Conselhos, Informações ou Recomen-dações. Coimbra: Almedina, 1990.

OLIVEIRA, Guilherme de. “Auto-regulação profissional dos médicos”. Temas de Direito daMedicina. 2. ed.Coimbra: Coimbra Editora, 2005.

PEREIRA, André Gonçalo Dias. “Formulários para prestação do Consentimento: uma propostapara o seu controlo jurídico”. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica dePetrópolis. 2001, p. 65-90.

______ . O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente. Estudo de Direito Civil.Coimbra: Coimbra Editora, 2004.

SOUSA, Miguel Teixeira de. “Sobre o ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médi-ca”. Direito da Saúde e Bioética. Lisboa: AAFDL, 1996.

VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto; TALLONE, Federico. Derecho Médico y mala praxis, Ro-sário: Juris, 2000.

02-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4335

36

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Compromisso de Ajustamento de Conduta

COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA

Demétrius Coelho Souza*Vera Cecília Gonçalves Fontes*

RESUMO

O presente texto visa destacar alguns aspectos mais importantes em torno do chamado termo deajustamento de conduta, que é um dos métodos alternativos para a solução de conflitos, notadamentena área ambiental, visando, por conseguinte, a fazer com que o causador do dano assuma obriga-ção de dar, fazer ou não-fazer, sempre objetivando a evitar mal maior, ou seja, a lesão a bemjurídico.

Palavras-chave: Termo. Ajustamento. Conduta. Solução. Conflitos. Proteção. Bem Jurídico.

COMMITMENT OF BEHAVIOR ADJUSTMENT

ABSTRACT

The present text aims to point some of the relevant aspects involving the institute known as conductadjustment term, that is one of the methods of solving legal issues, mainly in the environmentalarea. Through this institute, the damage author must assume an obligation to repare the damage inorder to avoid a higher prejudice, that is, the lesion of a legal good.

Keywords: Term. Adjustment. Conduct. Solution. Conflicts. Protection. Legal Good.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo pretende abordar e fazer algumas considerações em tornodo instituto conhecido como compromisso ou termo de ajustamento de conduta, justamente por seconstituir em um método alternativo à solução de conflitos nos quais estejam inseridos interessesdifusos, coletivos e individuais homogêneos, quer na fase pré-processual (inquérito civil), quer naprocessual, ou seja, quando já há ação civil pública em andamento. Não se pretende, pois, esgotaro assunto em sua plenitude, mas tão somente trazer à tona alguns tópicos para reflexão. Assim,cabe inicialmente destacar que o compromisso ou termo de ajusta-mento de conduta foi introduzi-do no ordenamento jurídico brasileiro pelo art. 211 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº8.069/90) ao afirmar que “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compro-misso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, o qual terá eficácia de título executivoextrajudicial”, segundo magistério de Luis Roberto Proença (2001, p. 120-1).

* Especialista em Direito Empresarial (UEL) e em Filosofia Jurídica e Política (UEL). Mestrando em Direito pela UEM.Professor de Direito Civil na PUCPR, Campus Londrina e na UniFil. Advogado.

* Bacharel em Direito. Especialista em Direito Ambiental (UEM). Mestranda em Direito pela UEM.

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4336

37

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes

Logo em seguida, aproveitando-se desse mesmo dispositivo, o art. 113 do Códi-go de Defesa do Consumidor1 (Lei nº 8.078/90) introduziu um parágrafo, o sexto, ao art. 5º da Leida Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), passando a viger com a seguinte redação: “Os órgãospúblicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua condutaàs exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”.

Comparando-se ambos os textos legais, percebe-se que houve, com a altera-ção introduzida pelo art. 113 do CDC, o acréscimo do termo “cominações”, justamente para viabilizara previsão de sanções para os casos de descumprimento das obrigações assumidas no instrumento,compromisso ou termo de conduta.2 Aliás, ensina José dos Santos Carvalho Filho (2001, p. 208)que “para haver efetividade jurídica, é obrigatório (e nunca facultativo!) que no instrumento deformalização esteja prevista a sanção para o caso de não cumprimento da obrigação”.

O compromisso ou termo de ajustamento de conduta (TAC) se fez presente,ainda, em alguns outros textos legais, mencionando, a título exemplificativo, a Lei nº 8.884/94, quedispôs sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica e a Lei nº 9.605/98,que dispôs sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas aomeio ambiente.3

De qualquer sorte, o compromisso de ajustamento de conduta consagra a “hi-pótese de transação, pois destina-se a prevenir o litígio (propositura de ação civil pública) ou a pôr-lhe fim (ação em andamento), e ainda dotar os legitimados ativos de título executivo extrajudicial oujudicial, respectivamente, tornando líquida e certa a obrigação” (MILARÉ, 2004, p. 819).

Essa transação, porém, não deve ser analisada à luz das normas de direito civil(CC, arts. 1025-1035), justamente por não versar sobre direitos patrimoniais disponíveis. Algunsautores, nesse particular, chegam até mesmo a afirmar não ser correta a utilização do termo “tran-sação”, nem dizer tratar-se de uma revisitação ao instituto, sob pena de restar alterada a naturezada transação. Trata o instituto, portanto, “de um comprometimento ao ajuste de conduta às exigên-cias legais, instituto novo, que existe per se, com suas próprias características” (FIORILLO,RODRIGUES e NERY, 1996, p. 177).

Como justificar, então, a possibilidade de se transacionar direitos indisponíveis?Realmente, em um primeiro momento não há que se falar em disponibilidade dos direitos ou inte-resses difusos, coletivos e individuais homogêneos quando objeto de defesa coletiva. No entanto, arealidade demonstrou ser mais interessante, em alguns casos, a celebração de um acordo entre oente legitimado e aquele que está violando o interesse protegido pela norma do que o enfrentamentode um processo judicial, o que é sabidamente moroso e custoso para ambas as partes. Daí osurgimento do compromisso de ajustamento de conduta como uma verdadeira opção no sentido dese buscar uma solução mais rápida e eficaz para os problemas apresentados, constituindo o termoou compromisso, ainda, verdadeira tentativa de desafogar o Poder Judiciário. Diante desse quadro,

1 Neste particular, observa Édis Milaré que “quando da edição do Código de Defesa do Consumidor, vetou-se o § 3º do art. 82(que introduzia o compromisso de ajustamento em matéria de relações de consumo) e promulgou-se o art. 113 (queintroduziu o mesmo compromisso em matéria de quaisquer interesses individuais), o que acabou por suscitar dúvida quantoà vigência do atual § 6º do art. 5º da Lei 7.347/85. Segundo Hugo Nigro Mazzilli, o argumento usado pelos que sustentavamo veto a tal parágrafo fundou-se no fato de que teria havido equívoco na promulgação do art. 113 em sua íntegra, pois eramanifesta a vontade do Presidente da República de vetar o compromisso de ajustamento, intento este exteriorizado porexpresso nas razões do veto a outro dispositivo da mesma lei (o parágrafo único do art. 92). Esse argumento, ainda queverdadeiro no tocante à mens legislatoris, não é, porém, suficiente para induzir à existência do veto do instituto constanteno art. 113, pois este dispositivo foi regularmente sancionado e promulgado, em sua íntegra, como se pode aferir do exameda publicação oficial da Lei 8.078, de 11.09.1990, publicado no Diário Oficial da União do dia imediato, em ediçãoextraordinária” (Notas sobre o compromisso de ajustamento de conduta. In: Antônio Herman Benjamin (Org.). Direito,água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, p. 571 e 572). In: Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência,glossário. 3. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 818-819.

2 Explica Hugo Nigro Mazzilli que o compromisso de ajustamento de conduta é também conhecido por “termo de ajustamentode conduta” justamente por ser tomado a termo. In: A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: meio ambiente,consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 19 ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 367.

3 Dispõe o art. 79-A da Lei nº 9.605/98 que “os órgãos ambientais integrantes do SISNAMA [...] ficam autori-zados a celebrar,com força de título executivo extrajudicial, termo de compromisso com pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pelaconstrução, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais,considerados efetiva ou potencialmente poluidores”.

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4337

38

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Compromisso de Ajustamento de Conduta

José dos Santos Carvalho Filho (2001, p. 202) elabora um conceito em torno do termo ou compro-misso de ajustamento de conduta: “é o ato jurídico pelo qual a pessoa, reconhecendo implicitamenteque sua conduta ofende interesse difuso ou coletivo, assume o compromisso de eliminar a ofensaatravés da adequação de seu comportamento às exigências legais”.

A título elucidativo, menciona-se o seguinte exemplo: determinada empresa, aocelebrar um compromisso de ajustamento de conduta, compromete-se a não mais depositar resídu-os sólidos (lixo) em local não apropriado e sem as mínimas condições de higiene, evitando, comisso, a possibilidade de poluir manancial de água e contribuir para a má qualidade de vida dapopulação local. Um outro exemplo pode igualmente servir para o esclarecimento do assunto: oMinistério Público do Trabalho celebra compromisso de ajusta-mento de conduta com determinadomunicípio com vistas a fazer com que o ente público adote medidas para evitar o trabalho infantilem determinada localidade, protegendo, assim, a criança e o adolescente em todas as suas possí-veis formas.

Deste modo, com a celebração do ajuste de conduta (e com alusão ao primeiroexemplo acima dado), o ente legitimado não mais promoverá ação civil pública em desfavor daempresa (muito embora os demais co-legitimados ainda possam fazê-lo). Esse fato, por si só, podeser benéfico para o causador do dano à medida que evitará gastos e naturais preocupações advindasde um processo judicial. Em contrapartida, caso o acordo não seja cumprido, valerá o mesmo comotítulo executivo extrajudicial (§ 6º, art. 5º da LACP), podendo o ente legitimado executá-lo combase nas normas previstas no Código de Processo Civil, ocasião em que se farão incidir as“cominações” previamente estabelecidas.

2 INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS

Como já mencionado, o termo ou ajustamento de conduta é utilizado nosentido de buscar soluções para questões envolvendo diretos difusos, coletivos e individuais homo-gêneos. Daí a importância, antes de se seguir adiante, de algum delineamento em torno dessesdireitos ou interesses.4

Segundo se depreende do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, a defe-sa dos interesses ou direitos difusos dos consumidores e vítimas poderá ser exercida individual-mente ou a título coletivo. E seu parágrafo único determina que a defesa coletiva será exercidaquando se tratar de:

I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Códi-go, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pes-soas indeter-minadas e ligadas por circunstâncias de fato.

II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos desteCódigo, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo,categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária poruma relação jurídica base.

III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos osdecorrentes de origem comum.

4 Muito embora possa haver alguma distinção entre os termos “interesse” e “direito”, serão aqui utilizados como sinônimos.Em relação ao conceito de interesse, aliás, observa Marcelo Abelha Rodrigues que o “interesse é uma relação entre umsujeito e um objeto. Relação essa que tem por pontos de contato a aspiração do homem acerca de determinados bens quesejam aptos à satisfação de uma exigência sua. Feita essa dissecação do conceito de interesse, fica claro que no seu esqueletoestão presentes: um sujeito com necessidade e um objeto idôneo para satisfazer essa mesma necessidade”. In: Instituiçõesde Direito Ambiental: parte geral. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 20-21. Rodolfo de Camargo Mancuso, de suaparte, observa que “o interesse interliga uma pessoa a um bem da vida, em virtude de um determinado valor que esse bempossa representar para aquela pessoa. A nota comum é sempre a busca de uma situação de vantagem, que faz exsurgir uminteresse na posse ou fruição daquela situação”. In: Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed., SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 19-20.

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4338

39

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes

Percebe-se da simples leitura desses incisos, portanto, que os direitos difusossão metaindividuais (ou transindividuais), isto é, transcendem à pessoa, com indeterminação abso-luta de titulares, sendo o objeto indivisível e estando as pessoas ligadas entre si por uma situação defato. É o que ocorre, por exemplo, em relação ao meio ambiente (CF/88, art. 225)5 , exemploclássico de interesse ou direito difuso, até porque todos temos o direito de viver em um meioambiente sadio e ecologicamente equilibrado, alheio às mais diversas degradações humanas.

Nos direitos ou interesses coletivos, o objeto é também indivisível (tal como nosdireitos difusos), mas a origem encontra fundamento em uma relação jurídica base comum, sendoo grupo determinável. É o que ocorre, por exemplo, com o “direito de classe dos advogados de terrepresentante na composição dos Tribunais (CF, art. 94)”, como bem aponta Teori Albino Zavascki(2006, p. 45).

Aliás, a redação do inc. II (interesses coletivos), supra transcrito, faz crer queo titular é um grupo, categoria ou classe de pessoas. O vínculo que permite identificar (rectius =determinar) vem descrito da seguinte maneira na norma em comento: ligadas entre si ou com aparte contrária por uma relação jurídica base. Significa dizer que o grupo, a categoria ou a classede pessoas estão ligados entre si (relação institucional como uma associação, um sindicato, umafederação etc.) ou, alternativamente, é possível que esse vínculo jurídico emane da própria relaçãojurídica existente com a parte contrária. Imagine-se, nesse sentido, o seguinte exemplo: o sindicatode determinada classe de trabalhadores propõe ação judicial visando compelir o dono de umaempresa a fornecer aparelhos auriculares a seus funcionários por conta do barulho excessivoprovocado pelas máquinas ali existentes. A ação é julgada procedente e o dono da empresa, então,passa fornecer tais aparelhos, não apenas, porém, àqueles trabalhadores sindicalizados, mas sim atodos que necessitam dos aparelhos, justa-mente por versar a questão sobre direitos coletivos,abrangendo a decisão judicial toda a classe, categoria ou grupo de pessoas ligadas entre si.

Por fim, os direitos individuais homogêneos, onde o grupo é determinável, oobjeto divisível e a origem é comum. É o que ocorre em relação ao direito dos adquirentes aabatimento proporcional do preço pago na aquisição de mercadoria viciada (CDC, art. 18, §1º, inc.III). No entanto, não se pode perder de vista que o direito individual homogêneo, embora admitauma defesa coletiva, que se justifica por sua origem comum, permanece sempre um direito indivi-dual, podendo a pessoa, se assim o desejar, manejar ação individual na defesa de seus interesses.

Todavia, como bem observa Teori Albino Zavascki (2006, p. 46), “nem sempresão perceptíveis com clareza as diferenças entre os direitos difusos e os direitos coletivos, ambostransindividuais e indivisíveis [...]”. Nesse particular, não se poderia deixar de reproduzir a precisalição de Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 55-6):

Para identificar corretamente a natureza de interesses transindividuais ou degrupos, devemos, pois, responder a essas questões: a) O dano provocoulesões divisíveis, individualmente variáveis e quantificáveis? Se sim, estare-mos diante de interesses individuais homogêneos; b) O grupo lesado éindeterminável e o proveito repara-tório, em decorrência das lesões, éindivisível? Se sim, estaremos diante de interesses difusos; c) O proveitopretendido em decorrência das lesões é indivisível, mas o grupo édeterminável, e o que une o grupo é apenas uma relação jurídica básicacomum, que deve ser resolvida de maneira uniforme para todo o grupo? Sesim, então estaremos diante de interesses coletivos.

Nesse mesmo sentido, leciona Marcelo Abelha Rodrigues (2004, p. 36):

5 O art. 225 da Constituição Federal de 1988 está redigido nos seguintes termos: “todos têm direito ao meio ambienteecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Públicoe à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4339

40

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Compromisso de Ajustamento de Conduta

O legislador brasileiro optou por conceituar os interesses coletivos latosensu, distinguindo-os em difusos, coletivos propriamente ditos e individu-ais homogêneos. Essa conceituação se deu no art. 81, parágrafo único, incs.I, II e III do Título III do CDC. No caso da alínea a, temos que uma soma denecessidades individuais sobre objetos vários ou divisíveis configura a somade interesses individuais que podem alcançar, dependendo da situação, umafeição coletiva (entre nós é o interesse individual homogêneo). Portanto,não é na sua essência um direito coletivo, porque resulta da soma de interes-ses individuais. O seu tratamento jurídico é que pode vir a ser coletivo,dependendo das razões políticas do legislador. No caso da alínea b, temosque os sujeitos possuem as necessidades individuais comuns por causa daindivisibilidade do bem que os irá satisfazer. Neste caso estaremos diantedos interesses essencialmente coletivos, que, por sua vez, se esgalham emdifusos e coletivos. [...]

Pode-se concluir, pela rasa leitura dos incs. I e II do art. 81, parágrafo únicodo CDC, que o divisor de águas entre o interesse difuso e o interesse coletivoé o aspecto subjetivo. Assim, se o critério objetivo foi o determinante paracolocá-los na vala comum dos interesses essencialmente coletivos, foi ocritério subjetivo que o legislador adotou para diferenciar um de outro.

Cabe por fim destacar, consoante os ensinamentos de Nelson Nery Junior eRosa Maria de Andrade Nery (1995, p. 112), que “o que determina a classificação de um direitocomo difuso, coletivo, individual puro ou individual homogêneo é o tipo de tutela jurisdicional que sepretende quando se propõe a competente ação judicial”, o que leva a crer que o mesmo fato podedar ensejo à pretensão difusa, coletiva ou individual. Esse pensamento, porém, não é compartilhadopor toda a doutrina.

Feitas essas breves considerações em torno dos chamados direitos difusos,coletivos e individuais homogêneos, volta-se ao tema anteriormente proposto, sem perder de vistaque o termo ou ajustamento de conduta é um meio previsto em lei para que as partes cheguem aum acordo, obrigando-se uma a respeitar ou não mais violar direitos ou interesses dessa natureza eoutra a não propor ação judicial, justamente por conta da celebração desse acordo, o que evitariadissabores naturais advindos de um processo judicial.

3 NATUREZA JURÍDICA

Qual a natureza jurídica do termo ou compromisso de ajustamento de conduta?A doutrina pátria ainda não é pacífica em torno do assunto. Para alguns, como é o caso de FernandoGrella Vieira (2002, p. 270), o compromisso de ajustamento de conduta seria uma espécie detransação, com peculiaridades próprias e distintas da figura comum aplicável às obrigações mera-mente patrimoniais, de natureza privada. Para outros, como é o caso de Hugo Nigro Mazzilli (2006,p. 366), o compromisso de ajustamento seria “um título executivo extrajudicial, por meio do qual umórgão público legitimado toma do causador do dano o compromisso de adequar sua conduta àsexigências da lei”. E continua o autor:

Como tem natureza bilateral e consensual, poderíamos ser tentados aidentificá-lo como uma transação do direito civil. Não seria correto, porém,esse raciocínio. Se tivesse mesmo a natureza de transação verdadeira e pró-pria, seria um contrato, porque suporia o poder de disposição dos contraentes,que, por meio de concessões mútuas, preveniriam ou terminariam o litígio(CC, art. 840).

Entretanto, o compromisso de ajustamento de conduta não é um contra-to; nele o órgão público legitimado não é o titular do direitotransindividual, e, como não pode dispor do direito material, não podefazer concessões quanto ao conteúdo material da lide. Nem se diga que o

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4340

41

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes

compromisso teria natureza contratual porque o órgão público nele tambémassumiria uma obrigação, qual seja a de fiscalizar o seu cumprimento. Essaobrigação decorre do poder de polícia da Administração, não tendo carátercontratual, tanto que, posto omitida qualquer cláusula a respeito no instru-mento, mesmo assim subsistiria por inteiro o poder de fiscalizar.

É, pois, o compromisso de ajustamento de conduta um ato administrativonegocial por meio do qual só o causador do dano se compromete; o órgãopúblico que o toma, a nada se compromete, exceto, implicitamente, a nãopropor ação de conhecimento para pedir aquilo que já está reconhecido notítulo.

Há, porém, aqueles que entendem ser o compromisso de ajustamento umafigura jurídica própria que não se confundiria com a transação. Nessa linha (e parece-nos maisacertadamente), encontram-se Celso Antônio Pacheco Fiorillo, Marcelo Abelha Rodrigues, RosaMaria de Andrade Nery e Luis Roberto Proença. Por fim, e de forma bem singela, afirma José dosSantos Carvalho Filho (2001, p. 202) que “a natureza jurídica do instituto é, pois, a de ato jurídicounilateral quanto à manifestação volitiva, e bilateral somente quanto à formalização, eis que neleintervêm o órgão público e o promitente”.

4 CARACTERÍSTICAS

Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 366-7) aponta as principais características docompromisso ou termo de ajustamento de conduta: a) é tomado por termo por um dos órgãospúblicos legitimados à ação civil pública; b) não há concessões de direito material por parte doórgão público legitimado, mas sim a assunção de obrigações por parte do agente causador do dano(obrigações de fazer ou não fazer); c) dispensam-se testemunhas instrumentárias e participaçãode advogados; d) o compromisso constitui título executivo extrajudicial; e) não é colhido nem ho-mologado em juízo; f) o órgão público legitimado pode tomar o compromisso de qualquer causadordo dano, mesmo que este seja outro ente público (só não pode tomar compromisso de si mesmo);g) é preciso haver no próprio título as cominações cabíveis, embora não necessariamente a impo-sição de multa.

Realmente, em que pese nada dispor a lei sobre o assunto, o compromisso deajustamento não pode ser celebrado de forma verbal ou tácita, até por conta do princípio da publi-cidade (CF, art. 37), que tem como uma de suas manifestações a instrumentalização formal dasmanifestações de vontade. O compromisso, por conseguinte, deve ser escrito e devidamente for-malizado.

Em relação às obrigações de fazer e não fazer, Luis Roberto Proença (2001, p.127) chama atenção para o também possível acordo em relação às obrigações de dar, justamentepor não existir óbice legal algum.

Em relação às testemunhas, afigura-se possível a celebração do ajuste sem suaparticipação, até por conta do teor do próprio § 6º do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública. Todavia,questão interessante é trazida a lume pelo trecho do acórdão abaixo reproduzido, o qual informaque um município, ao celebrar um termo ou ajustamento de conduta, por exemplo, não pode aodepois alegar eventual dificuldade financeira para justificar seu eventual descumprimento. Essaalegação, como sói esclarecer, não tem o condão de afastar a exigibilidade do título, veja-se:

O termo de compromisso de ajustamento firmado entre o Ministério Públicoe a Municipalidade, com o fim de solucionar problemas constatados nosistema de drenagem urbana do Município, é título executivo, consoantedispõe o art. 5º, § 6º, da Lei nº 7.347/85 (ação civil pública), incluído pela Leinº 8.078/90 (Código do Consumidor). Precedentes do TJRGS e do STJ.Descumprimento das obrigações constantes no termo. Dificuldades finan-ceiras do município. A alegação de dificul-dades financeiras do Município

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4341

42

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Compromisso de Ajustamento de Conduta

para justificar o descumprimento do termo não tem o condão de afastar aexecutividade do título, firmado espontaneamente pelo Prefeito Municipal,que detinha competência para tal. Obras e estudos de sanea-mento básico,medidas de interesse da saúde pública, somado à circunstância de que a suanão-realização pode comprometer o patrimônio histórico daquele Municí-pio. Apelação desprovida, por maioria (Apelação Cível nº 70013257944, 22ªCâmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relatorDesembargador Eduardo Zietlow Duro, julgado em 15.12.05).

Em relação à participação dos advogados, com todo o respeito à lição do Prof.Hugo Nigro Mazzilli, sua ausência pode ser temerária aos fins objetivados pelo TAC. Ora, se écerto que compromisso de ajuste de conduta é pactuado para a prevenção ou reparação do dano ainteresses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, é igualmente certo que ocompromitente (aquele que se obriga a adequar sua conduta às exigências da lei) necessita de umaboa assessoria jurídica até mesmo para saber se as medidas necessárias à adequação não infrin-gem outra lei. Em outros termos, de nada adiantará ao compromitente celebrar um compromissode ajustamento de conduta se, para honrar seu cumprimento, violar outras tantas disposições le-gais. Portanto, a assessoria jurídica se revela extremamente importante, justificando-a a própriaimportância dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Há, também, a hipótese de o compromisso ser colhido e homologado em juízo.Realmente, observa Édis Milaré (2004, p. 819) que

apesar de a norma referir-se a ajuste extrajudicial (realizado no inquérito civilou em procedimento avulso, sem homologação judicial), nada obsta sejaefetivada também em juízo (realizado no processo ou levado em procedimen-to avulso à homologação judicial). Na primeira hipótese, o compromissoimplica o arquivamento implícito do inquérito, com sua homologação peloConselho Superior do Ministério Público, qualificando-se como título exe-cutivo extrajudicial. Na segunda hipótese, a homolo-gação da transação éfeita pelo juiz e obtém-se título executivo judicial.

Digno de nota, ainda, a possibilidade de se prever, no próprio corpo do compro-misso de ajuste de conduta, a cominação cabível em caso de descumprimento da obrigação assu-mida, sendo a mais comum a imposição de multa diária, denominada pela doutrina francesa de“astreintes”. Assim é que o compromisso de ajustamento, por ter eficácia de título executivoextrajudicial, substitui a fase processual de conhecimento, restando daí a possibilidade de preverpena pecuniária diária em caso de descumprimento da obrigação assumida. Nesse sentido, obser-va Luis Roberto Proença (2001, p. 132) que

Dentre os novos poderes assegurados ao juiz da execução, previu o art. 645do Código de Processo Civil, possa ele fixar, ao despachar a inicial de execu-ção fundada em título extrajudicial, multa diária pelo atraso no cumprimentode obrigação de fazer ou de não fazer. Assim, não se exige a fixação destamulta no compromisso, para que este tenha eficácia. Por outro lado, se não énecessária, é sempre útil prevê-la expressamente no termo do ajuste, comomeio psicológico de obtenção voluntária dos compromissos assumidos.

Um cuidado, porém, se impõe: o de imposição de cominações elevadas ouexcessivas. De fato, a multa tem caráter pedagógico e preventivo, prestando-se não apenas afazer com que a obrigação assumida seja cumprida, mas também a dissuadir o compromitente deoutras práticas irregulares ou ilícitas no futuro. E, revelando-se excessiva, pode o magistrado redu-zir seu valor. É o que restou decidido no seguinte acórdão:

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4342

43

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes

A multa diária acordada em termo de ajustamento firmado perante o Ministé-rio Público, em caso de inadimplemento de obrigação de fazer decorrente dedano ambiental, pode ser reduzida pelo juiz se excessiva. Art. 645 do CPC.Hipótese em que a multa diária correspondente a dois salários mínimos semostra desproporcional à renda do compromitente. As normas do Código deDefesa do Consumidor não se aplicam ao termo de ajustamento de condutaem matéria ambiental. Recurso provido. Voto vencido (Apelação Cível nº70007750243, 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,relatora Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza, julgado em11.05.04).

Assim, em sendo excessiva a multa constante no TAC, revela-se possível suadiminuição pelo magistrado. Tal redução, porém, “deve ser prudentemente estabelecida pelo juizem face das peculiaridades do caso” (DINAMARCO, 1998, p. 294), justamente para que nãomotive o devedor a continuar inadimplente com sua obrigação. Nesta perspectiva,

não haveria justificativa para reduzir o juiz a multa fixada no compromisso deajustamento, se mesmo ela não se mostre suficiente para fazer o devedorrealizar aquilo a que se comprometeu. Assim, deve aquela possibilidade deredução de multa ser utilizada com ponderação pelo juiz, tendo em vista ascircunstâncias do caso concreto e, sempre, o objetivo de dar efetividade aoordenamento jurídico (PROENÇA, 2001, p. 136).

Luis Roberto Proença (2001, p. 136-7) sustenta, ainda, a possibilidade de omagistrado aumentar o valor da multa caso entenda ser insuficiente o valor constante no compro-misso de ajustamento de conduta. Para tanto, justifica seu entendimento com base na efetividadedo processo, ou seja,

se é do propósito das reformas realizadas em nossa sistemática processualobter a efetividade da jurisdição, conferindo ao juiz poderes para garanti-la,dentre os quais o de suprir, ex officio, o omissão da previsão de multa noscasos de títulos extra-judiciais (art. 645 do CPC), e o de aumentá-la, se consi-derar insuficiente aquela fixada nos títulos judiciais (art. 644 do CPC), não hárazão para que se entenda não poder fazê-lo no caso de execução baseadaem títulos extrajudiciais.

Por derradeiro, em que pese não terem sido mencionadas por Hugo NigroMazzilli, aponta Luis Roberto Proença duas outras características em relação ao assunto em apre-ço: a primeira relacionada a um princípio de congruência e a segunda relacionada ao objeto docompromisso de ajustamento de conduta, podendo ser parcial ou total. Em relação a um princípiode congruência, diz o autor que

a atuação dos órgãos públicos em geral deve obedecer a um princípio decongruência entre as suas competências ou atribuições e o objeto do com-promisso de ajustamento. Assim, por exemplo, parece claro que a intençãodas normas ora comentadas é a de que um município possa firmar a avençacom um infrator, nos assuntos que lhe toca. Não haveria sentido, e, destemodo, mostrar-se-ia inválido tal instrumento, se, por exemplo, um determina-do município pactuasse com infrator de normas urbanísticas de outro muni-cípio (PROENÇA, 2001, p. 123).

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4343

44

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Compromisso de Ajustamento de Conduta

O próprio autor, porém, vislumbra a possibilidade de, em casos de suma impor-tância, como a preservação do meio ambiente, por exemplo, um município celebrar um compromis-so de ajustamento de conduta com empresa situada em outro município, o que seria plenamentejustificável pelo interesse maior a ser protegido e resguardado.

Por fim, deve-se registrar que o compromisso de ajustamento pode ser integralou parcial. Integral será quando esgotar todas as conseqüências jurídicas de um conjunto de fatos.Parcial, ao contrário, será o compromisso referente a apenas alguns dos fatos ou conseqüênciasadvindas desses fatos, relegando-se o restante para o prosseguimento das investigações no inqué-rito civil ou para a propositura da ação civil pública.

A esta última hipótese, Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 369) também atribui onome de “compromissos preliminares”, fazendo menção, inclusive, à Súmula nº 20 do ConselhoSuperior do Ministério Público do Estado de São Paulo, redigida nos seguintes termos:

Quando o compromisso de ajustamento tiver a característica de ajuste preli-minar, que não dispense o prosseguimento de diligências para uma soluçãodefinitiva, salientado pelo órgão do Ministério Público que o celebrou, oConselho Superior homologará somente o compromisso, autorizando o pros-seguimento das investigações.

5 OS LEGITIMADOS À CONFECÇÃO DO AJUSTAMENTO

O rol dos legitimados ativos à ação civil pública ou coletiva encontra-se previs-to no artigo 5º, § 6º da Lei 7.347/85 (LACP), combinado com o artigo 82 da Lei 8.078/90 (Códigode Defesa do Consumidor). Todavia, nem todos os legitimados podem firmar compromisso deajustamento de conduta do agente causador do dano a interesses meta-individuais. Nesse particu-lar, observa Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 363) que

só podem tomar o compromisso de ajustamento de conduta os órgãos pú-blicos legitimados à ação civil pública ou coletiva .Quais são esses ór-gãos públicos legitimados? Para alguns, são todos os legitimados à açãocivil pública, excetuada apenas a associação civil. Numa outra interpretação,grosso modo, poderíamos dizer que estão autorizadas a celebrar compromis-sos de ajustamento as pessoas jurídicas de direito público interno e seusórgãos, não as sociedades civis , nem as fundações privadas, nem os sindi-catos, nem as entidades da administração indireta, nem as pessoas jurídicasque, posto com participação acionária do Estado, tenham regime jurídicopróprio de empresas privadas. Assim, a rigor, não estariam incluídos na con-dição de “órgãos públicos legitimados”: a) as associações civis; b) os sin-dicatos; c) as sociedades de economia mista; d) as fundações privadas; e)as empresas públicas.

Tem-se, assim, que com relação à legitimação dos órgãos públicos para cele-brar termo ou compromisso de ajustamento de conduta, há que se analisar se agem na qualidade deprestadores ou de exploradores de serviço público com finalidade lucrativa, em condições de em-presas de mercado. Nesse passo, na tentativa de apontar uma solução para a controvérsia, HugoNigro Mazzilli (2006, p. 363) relaciona três categorias de legitimados, a partir do exame do rolacima mencionado, veja-se:

a) a daqueles legitimados que, incontroversamente podem tomar compro-misso de ajustamento: Ministério Público, União, Estados, Municípios, Dis-trito Federal e Órgãos Públicos, ainda que sem personalidade jurídica, espe-cificamente destinados à defesa de interesses difusos, coletivos e individu-

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4344

45

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes

ais homogêneos. São os órgãos pelos quais o Estado administra o interessepúblico, ainda que integrem a chamada administração indireta (comoautarquias, fundações públicas ou empresas públicas), nada obsta a quetomem compromissos de ajustamento quando ajam na qualidade de entesestatais.

b) a dos legitimados que, incontroversamente não podem tomar o compro-misso: as associações civis, os sindicatos e as fundações privadas;

c) a dos legitimados em relação aos quais cabe discutir à parte se podem ounão tomar compromisso de ajustamento de conduta, como as fundaçõespublicas e as autarquias, ou até as empresas públicas e as sociedades deeconomia mista.

Ainda com relação aos legitimados para celebrar o TAC vale registrar a críticafeita por José Emmanuel Burle Filho e Wallace Paiva Martins Júnior, que, sendo citados por ÉdisMilaré (2005, p. 902), assim se manifestam:

[...] a melhor interpretação, que se ajusta ao sistema jurídico vigente, é a queencontra na expressão órgãos públicos (mercê da má técnica legislativa) aindicação de todas as entidades que compõem a Administração Pública direta,indireta ou fundacional, e que, independentemente da personalidade jurídi-ca de cada uma, desenvolvam precipuamente atividades de interesse públi-co, o que permite incluir as sociedades de economia mista e as empresaspúblicas como detentoras da prerrogativa de firmar compromisso de ajusta-mento de conduta desde (é claro) que esta esteja inserida entre os objetivoslegais e estatutários do ente, de modo a prevenir litígio para o qual estavalegitimada. Excluir-se, tout court , as entidades paraestatais da possibilidadede firmarem compromissos de ajustamento de conduta é equipará-las à [sic]entidades genuinamente privadas (como as associações co-legitimadas), oque não se adequa ao ordenamento jurídico.

Daniel Roberto Fink (2002, p. 128), de sua parte e com relação ao especialenfoque dos órgãos públicos legitimados (especificamente as empresas públicas e as sociedadesde economia mista) igualmente assevera que:

Burle e Martins admitem que essas pessoas jurídicas possam celebrar ajus-tamento de conduta baseados no argumento de que, se é verdade que têmregime jurídico de empresas privadas, não é menos certo que o Estado parti-cipa de sua criação e gerenciamento, marcando-lhes com o signo público. Écerto, ainda, que prestam serviços de utilidade pública e realizam atividadesque envolvem o interesse público, ainda que seja uma atividade econômica,mas sempre de interesse coletivo. Em abono a seu argumento, ajuntam umasérie de restrições impostas a seu funciona-mento, exatamente tendo emvista a participação do Estado na realização da atividade (por exemplo, restri-ções a privilégios fiscais; submissão a licitação pública; investidura em em-pregos mediante concurso, entre outros ).

A seguir, o posicionamento de Hugo Nigro Mazzilli (2006, p. 103):

Parece-nos que, quando se tratar de órgãos pelos quais o Estado administrao interesse público, ainda que da chamada administração indireta (comoautarquias, fundações públicas ou empresas públicas), nada obsta a quetomem compromissos de ajustamento de conduta quando ajam na qualidade

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4345

46

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Compromisso de Ajustamento de Conduta

de entes estatais (quando prestem serviço público). Contudo, para aquelesórgãos dos quais o Estado participe, quando concorram na atividadeeconômica em condições empresariais, não se lhe pode conceder essa prer-rogativa de tomar compromissos de ajustamento de conduta, sob pena deestimular desigualdades afrontosas à ordem jurídica, como é o caso dassociedades de economia mista ou das empresas públicas, quando ajam emcondições de empresas de mercado.

Todavia, há na doutrina quem reconheça legitimidade também às associações:é o caso do posicionamento adotado por Fernando Grella Vieira (2002, p. 271), para quem

A associação terá legitimidade se a questão lhe for pertinente. Não é possí-vel que uma entidade associativa que tenha por finalidade, segundo seusestatutos, por exemplo, a proteção do meio ambiente ponha-se a tutelarinteresse atinente à esfera do consumidor, de deficientes, etc. Da mesmaforma, a pertinência e os limites da ofensa é que nortearão a legitimidade dasfundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, em cadacaso, diante do que dispuser seus atos constitutivos quanto à finalidadeinstitucional ou objeto social.

Afirma ainda Fernando Grella Vieira (2002, p. 272) que em razão de a Lei7.347/85 (LACP) permitir a assistência (art. 5º, § 2º), “a mesma colaboração pode formalizar-sena tomada de compromisso extrajudicial”, o que somente corrobora a afirmação anterior-mentefeita no sentido de se permitir a participação de advogados quando da confecção do TAC. E, emrelação à legitimação do Ministério Público, menciona ainda o mesmo Fernando Grella Vieira(2002, p. 272-3) duas limitações decorrentes de sua qualidade de legitimado, a primeira decorrentedo federalismo e a segunda da destinação institucional do próprio Ministério Público, veja-se:

Há duas limitações, entretanto, ao exercício dessa competência pelo Minis-tério Público: A primeira decorre do federalismo. Os Ministérios Públicosestaduais têm a competência limitada à esfera da respectiva UnidadeFederada. Bem por isso a Lei 7.347/85, quando trata da legitimidade ativa,expressa que será admitido o “litisconsórcio facultativo entre os MinistériosPúblicos da União, do Distrito Federal e dos Estados na defesa dos interes-ses e direitos de que cuida esta Lei”. Se os interesses ofendidos são deâmbito regional, dizendo respeito a mais de um Estado, ou se são de âmbitonacional, não pode determinado Ministério Público estadual, ainda que tam-bém interessado, com exclusividade, promover isoladamente a tutela. A se-gunda restrição prende-se à destinação institucional do Ministério Público,definida na Constituição Federal, de órgão defensor de interesses sociais eindividuais indisponíveis, o que vale dizer que nem sempre os interessescoletivos ou os chamados interesses individuais homogêneos poderão sertutelados pela Instituição, se deles não despontar a presença de interessepúblico primário (art. 127, caput, c/c o art. 129, IX, da CF).

A defesa de interesses de grupos determinados de pessoas só pode ser feitapelo Ministério Público quando restar evidenciado o interesse de toda a coletividade. É o queocorre, por exemplo, quando o Ministério Público ajuíza ação civil pública na defesa de algunsidosos pleiteando vaga em determinado hospital público. E, com base em Hugo Nigro Mazzilli,conclui Fernando Grella Vieira que, se não houver interesse da coletividade, a defesa dos interes-ses individuais deveria ser feita através da própria legitimação ordinária (que é, aliás, a regra nodireito processual civil brasileiro), devendo cada qual ajuizar ação autônoma, sob pena de ferir-se adestinação institucional do Ministério Público. Ao apontar o outro aspecto limitador da atuação doMinistério Público, prossegue o autor (2002, p. 273):

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4346

47

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes

De outro lado, sob o ponto de vista da natureza do interesse difuso, hálimitação material absoluta quanto à possibilidade de transação quando setrata de patrimônio público e da moralidade administrativa, na forma da Lei8.429, de 02.06.1992, que dispõe “sobre as sanções aplicáveis aos agentespúblicos nos casos de enriqueci-mento ilícito no exercício de mandato, car-go, emprego, função na Administração Pública direta, indireta e fundacional.

A última limitação apontada esclarece, assim, que os atos passíveis de seremtipificados como atos de improbidade, nos termos da Lei 8.429/92 com penas que vão desde amulta até a perda do cargo, mandato ou função, suspensão dos direitos políticos e proibição decontratar com o Poder Público etc., são atos cuja punição constitui-se em atividade privativa dajurisdição.

Todavia alguns autores chegam a sustentar a tese de que o ajustamento deconduta deve ser aceito em casos envolvendo certos atos de improbidade administrativa. É o caso,por exemplo, do agente político que se arrepende de ter auferido determinada vantagem ilícita e, delivre e espontânea vontade, resolver devolver o numerário recebido aos cofres públicos. O enten-dimento, porém, é rechaçado por vários outros doutrinadores pátrios.

5.1 O Artigo 79-A da Lei 9.605/98

Por força da Medida Provisória nº 1.949-22, de 30.03.2000, foi inserido na Lei9.605/98 o artigo 79-A, informando ser possível aos

órgãos ambientais integrantes do Sisnama, responsáveis pela execução deprogramas e projetos e pelo controle e fiscalização dos estabelecimentos eatividades suscetíveis de degradarem a qualidade ambiental, celebrar, comforça de titulo executivo extrajudicial, termo de compromisso com pessoasfísicas ou jurídicas responsáveis pela construção, instalação, ampliação efuncionamento de estabeleci-mentos e atividades utilizadoras de recursosambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidoras.

Nesse particular, entende o Promotor de Justiça do Meio Ambiente em SãoPaulo, Daniel Roberto Fink, tratar-se de nova modalidade de termo de ajustamento de conduta,para o qual estão legitimados os órgãos integrantes do SISNAMA (Sistema Nacional do MeioAmbiente – lei 6938/81). Sustenta o autor (FINK, 2002, p. 129): “Evidentemente estamos diante deuma nova modalidade de termos de ajustamento de conduta, que, se é o mesmo na naturezajurídica transacional, guarda muita dessemelhança em outros aspectos”.

Aliás, entende o referido doutrinador que a expressão “entidades” abriga asentidades paraestatais (sociedades de economia mista, empresas públicas, fundações e autarquias),desde que destinadas à execução de programas e projetos e ao controle e fiscalização dos estabe-lecimentos e atividades suscetíveis de degradarem a qualidade ambiental. Conclui, pois, o autor(FINK, 2002, p. 130): “o dispositivo novo ampliou o rol de partes capaz de celebrar o ajustamentode conduta em defesa do interesse público transindividual penal”.

Com a devida vênia, o dispositivo acrescentado à Lei nº 9605/98 apenas e tãosomente explicitou os entes que já possuíam legitimidade ativa para a celebração do ajustamentode conduta, não tendo o condão de acrescentar novidade no que diz respeito à legitimidade ativapara a celebração de um TAC.

6 PUBLICIDADE DO COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA

Em relação à publicidade, posiciona-se Paulo Affonso Leme Machado (2005,p. 364) no sentido de que o acordo deverá tornar-se público antes de ser assinado. Eis suas pala-vras: “um dos pilares fundamentais do Direito Ambiental é a informação ampla, veraz, rápida e

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4347

48

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Compromisso de Ajustamento de Conduta

institucionalizada. Havendo transparência, os interessados poderão trazer para os órgãos públicosenvolvidos outros subsídios ou a opinião de segmentos sociais diversos.” Na seqüência, prossegueo autor:

não se conseguiu ainda a publicação prévia do termo de ajustamento deconduta. Mas já se caminhou, de forma expressiva, para o acesso ao conteú-do do termo de ajustamento de conduta – TAC. A Lei 10.650, de 16.04.2003,determina que a lavratura de termos de compromisso de ajustamento deconduta seja publicada no Diário Oficial (art. 4º, IV). Não se trata de publicarum resumo do termo, mas sua integralidade. A divergência de pontos devista não impedirá o acordo em primeira instância administrativa. A via dorecurso à instância administrativa – como o Conselho Superior do Ministé-rio Público –, contudo, não ficará fechada aos discordantes.

Há, ainda, o posicionamento de Geisa de Assis Rodrigues (2006) que, em artigointitulado “A Participação da Sociedade Civil na Celebração do Termo de Ajustamento de Condu-ta”, afirma que a transparência revela a face democrática do ajuste, manifestando-se nos seguin-tes termos:

A publicidade é fundamental para garantir o controle de seus termos pelasociedade e permitir que se averigúe se ele não representou nenhum tipo delimitação ao direito protegido, bem como para garantir sua eficácia, porquetodos da sociedade podem contribuir na fiscalização do cumprimento dascláusulas avençadas.

Frise-se que não há previsão legal no sentido de se impor a obrigatoriedade deinstrumentos de participação para elaboração e celebração do ajuste. Porém, tal como se afirmou,a observância da publicidade pode ser justificada ante a necessidade de se observar o PrincípioDemocrático. Também de se salientar que a decisão definida acerca do ajuste será sempre doórgão legitimado, vez que a norma não prevê qualquer espécie de submissão desta decisão àdeliberação – quando e se houver – da sociedade, até por uma questão de se evitar a possibilidadede manipulação. Em síntese, pode-se dizer que o que se defende é a participação da sociedade civil– à qual se dará publicidade – na elaboração do ajustamento, não se deixando de lado ainda aparticipação de grupos cujos interesses coletivos estejam envolvidos no ajuste.

7 A (DES)NECESSIDADE DE SER O COMPROMISSO DE AJUSTAMENTOHOMO-LOGADO PELO CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO

É controversa na doutrina a exigibilidade ou não de homologação do compro-misso de ajustamento de conduta pelo Conselho Superior do Ministério Público. O que é de todorecomendável, porém, é que o órgão que celebrou o ajuste fiscalize seu cumprimento, justamentepara que o teor do acordo seja efetivamente observado e cumprido. Nesse sentido, a lição de ÉdisMilaré (2005, p. 904):

De qualquer forma, havendo ou não previsão na lei local quanto à necessi-dade de homologação do compromisso pelo Conselho superior, é recomen-dável, sempre, que o órgão que o celebrou fiscalize o seu efetivo cumprimen-to, para que não se protele, em nome do controle interno, a defesa do bemjurídico de interesse coletivo.

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4348

49

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Demétrius Coelho Souza e Vera Cecília Gonçalves Fontes

Aqui, não se deve olvidar as questões de ordem prática, ou seja, será que todosos termos de ajustamento devem ser levados, necessariamente, ao conhecimento do ConselhoSuperior do Ministério Público? Parece que não. Isto não quer dizer, porém, que aquele que cele-brou o TAC não fique atento ao seu fiel cumprimento e faça cumprir, via tutela jurisdicional, asdeterminações nele contidas. Assim, parece não haver a necessidade de ser o compromisso homo-logado, mas, em contrapartida, é imperioso que o órgão legitimado fique atento ao seu fiel cumpri-mento, sob pena de o ajuste perder suas próprias características e finalidades. Nesse sentido, alição de Luis Roberto Proença (2001, p. 130-1), para quem

Se não houver a previsão na respectiva Lei Orgânica do Ministério Públicoda homologação do compromisso de ajustamento pelo Conselho Superior,como condição de sua eficácia, então bastará a sua pactuação pelo órgão deexecução, para que tenha eficácia imediata, restando ao Conselho Superiorapreciar, em reexame, eventual ocorrência de ‘arquivamento implícito’.

No mesmo sentido, ensina Fernando Grella Vieira (2002, p. 284-5) que “o con-trole pelo Conselho Superior é dispensável, seja sob o enfoque de que o inquérito – por ter atingidosua finalidade – reclamaria formal arquivamento, seja quanto à eficácia e à exeqüibilidade docompromisso firmado”. O tema, todavia, pode ser objeto de regula-mentação pelas normas quedisciplinam a forma de atuação e as atribuições dos órgãos do Ministério Público. Assim, não éindispensável que o compromisso seja remetido, sempre, ao Conselho Superior do Ministério Públi-co, nada impedindo, porém, que haja determinação expressa nesse sentido, o que deverá constarna Lei Orgânica do Ministério Público.

8 CONCLUSÕES

Como se viu no primeiro tópico deste trabalho, o termo ou ajustamento deconduta é um modo pelo qual é dada ao autor do dano a oportunidade de cumprir as obrigaçõesestabelecidas, comprometendo-se o ente legitimado, de sua parte, a não propor ação civil públicaou a pôr-lhe fim, caso esta já esteja em andamento. Com isto, busca-se evitar processos extrema-mente custosos, desgastantes e morosos para ambas as partes, fazendo com que o autor do danopratique ou se abstenha de praticar o ato inquinado de lesivo, sempre com vistas a atender o bemmaior objeto do acordo. Assim, desde que cumprido o ajuste, terá o compromisso alcançado seuobjetivo, sem a necessidade de se movimentar toda a máquina judiciária. É, portanto, um meiorápido e eficaz para a solução de problemas. E, na hipótese de não ser cumprido o TAC, poderá omesmo ser executado desde logo, eis que constitui título executivo extrajudicial, revelando-se des-necessária qualquer outra discussão em torno dos comportamentos que o instituíram.

REFERÊNCIAS

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Pública: comentários por artigo. 3. ed. Rio deJaneiro: Lumen Juris, 2001.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

FINK, Daniel Roberto. Alternativa à Ação Civil Pública Ambiental (reflexões sobre as vantagensdo termo de ajustamento de conduta). Ação Civil Pública: lei 7.347/1985 – 15 anos. MILARÉ,Édis (Coord.). 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4349

50

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Compromisso de Ajustamento de Conduta

FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 6 ed. São Paulo:Saraiva, 2006.

FIORILLO, Celso Antônio; RODRIGUES, Marcelo Abelha; NERY, Rosa Maria Andrade. Direi-to Processual Ambiental Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros,2005.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

MAZZILLI, Hugo Nigri. A Defesa dos Interesses Difusos em juízo: meio ambiente, consu-midor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 19. ed. São Paulo: Sa-raiva, 2006.

______. Revista de Direito Ambiental, ano 11, nº 41. São Paulo: Revista dos Tribunais. janeiro-março de 2006.

MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 3. ed. São Paulo: Re-vista dos Tribunais, 2004.

______. Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 4. ed. São Paulo: Revista dosTribunais, 2005, p. 902.

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Princípios do processo civil naConstituição Federal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

PROENÇA, Luis Roberto. Inquérito Civil: atuação investigativa do Ministério Público a serviçoda ampliação do acesso à Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

RODRIGUES, Geisa de Assis. A Participação da Sociedade Civil na Celebração do Termode Ajustamento de Conduta. Disponível em:

<http://www.esmpu.gov.br/publicacoes/ meioambiente/pdf/Geisa_de_A.pdf>. Acesso em: 30 jul.2006.

RODRIGUES, Marcelo Abelha. Instituições de Direito Ambiental: parte geral. São Paulo: MaxLimonad, 2002.

______. Ação Civil Pública e Meio Ambiente. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,2004.

SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

VIEIRA, Fernando Grella. A Transação na Esfera da Tutela dos Interesses Difusos e Coletivos:Compromisso de Ajustamento de Conduta. Ação Civil Pública: lei 7.347/1985 – 15 anos. MILARÉ,Édis (Coord.). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

ZAVASCKI, Teoria Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e

tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

03-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4350

51

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Hylea Maria Ferreira

A TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS*

Hylea Maria Ferreira**

RESUMO

Análise do instituto da antecipação de tutela no ordenamento jurídico brasileiro com ênfase na suaaplicabilidade, face aos juizados especiais cíveis – estaduais e federais – apresentando os requisi-tos essenciais para sua concessão e abordando as principais divergências doutrinárias a fim decontribuir com uma possível solução para os conflitos da aplicação da lei especial.

Palavras-chave: Tutela Antecipada. Juizados Especiais Cíveis Federais. Juizados Especiais CíveisEstaduais.

THE ANTICIPATED GUARDIANSHIP IN HEADQUARTERS OF SPECIALCOURTS CIVIL COURT JURISDICTION

ABSTRACT

Analysis about the institute of anticipated judicial protection in brazilian juridical order tiring itsaplicability face to the Small-Claim Civil Courts – statual and federal – introducing the essencialrequirements for its judicial concession and approaching the principal doutrinaries divergences inorder to contribute with a possible resolution for the existents disagreement of especial law’saplication.

Keywords: Anticipated Judicial Protection. Small-Claim Federal Civil Courts. Small-Claim StateCivil Courts.

1 INTRODUÇÃO

A evolução social aproximou as relações entre as pessoas. Conseqüentemen-te, de algumas dessas relações restaram litígios, os quais, não sendo resolvidos de modo pacífico,levam os litigantes a invocar o Poder Judiciário. Com o número crescente dessas relações, tornou-se crescente também o número das demandas judiciais, fator contribuinte para a morosidade pro-cessual. O reclamante, que visa ao reconhecimento de seu direito, resta prejudicado com a demorado desenrolar dos procedimentos, enquanto para o reclamado, a lentidão torna-se cômoda.

Com o advento da Lei 8.952/94, surge a possibilidade da antecipação de tutelanas diferentes sortes de processos, a exemplo de outros países que lograram sucesso com a ado-ção do instituto. O objetivo maior era não só o de atualizar o Código de Processo Civil vigente, mastambém de garantir maior efetividade à prestação jurisdicional. Assim, o novo instituto inserido noCódigo de Processo Civil, em seu art. 273, deu legalidade à antecipação dos efeitos da sentença,obedecendo aos requisitos (i) da existência de prova inequívoca, (ii) da verossimilhança das alega-ções, (iii) do fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, (iv) do abuso de direito dedefesa ou do manifesto propósito protelatório do réu.

*O presente artigo é resultado de monografia de conclusão do curso de graduação em Direito, escrita sob a orientação do prof.Ms. Henrique Afonso Pipolo.

**Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Filadélfia – UniFil – e pós-graduanda em Filosofia Moderna e Contempo-rânea: Aspectos Éticos e Políticos pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. E-mail: [email protected]

04-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4351

52

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis

Com efeito, objetivando semelhante efetividade aos trâmites processuais, foipromulgada a Lei 9.099/95 que rege os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Essa lei inovadoratraz em seu conteúdo a possibilidade das ações menos complexas e de menor valor serem proces-sadas de uma maneira mais célere e informal, sem a necessidade do cumprimento das formalida-des do rito ordinário.

Ao entender que grande parte das ações cíveis, ajuizadas atualmente, são jus-tamente aquelas de caráter menos complexo e cujos valores discutidos não ultrapassam a alçadalegal, então, é de se entender também que, apesar de regidos por todos os princípios norteadores,os Juizados Especiais Cíveis são passíveis da morosidade processual.

A Lei 9.099/95 silenciou a possibilidade da antecipação da tutela em sede deJuizados Especiais. Ainda, quedou-se silente quanto à aplicação subsidiária do CPC quando aquelafor omissa. Assim, provoca-se a indagação quanto à possibilidade da antecipação da tutela juntoaos Juizados. A doutrina tem se mostrado positiva, bem como os juízes têm aplicado positivamentea tutela antecipada nos Juizados Especiais.

Em 2001 foi promulgada a Lei 10.259 que dispõe sobre a instituição dos JuizadosEspeciais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal. A nova lei aproveitou as disposições daLei 9.099/95 e traz, no seu texto, as adequações do procedimento já existente ao âmbito da JustiçaFederal.

2 DOS REQUISITOS

Para que seja admissível a concessão do tutela antecipada, a lei versou sobrecinco requisitos que devem estar presentes na causa – (i) da existência de prova inequívoca, (ii) daverossimilhança das alegações (iii) do fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação,(iv) do abuso de direito de defesa ou (v) do manifesto propósito protelatório do réu. Não é neces-sário que todos estejam presentes para que seja possível a aplicação do instituto, mas como funda-mento do pedido da tutela, devem estar expostos no processo, concorrentes entre si ou não.

Primeiramente, analisa-se a prova inequívoca, que pode ser entendida como oresultado produzido por iniciativa do réu, que exprime condições claras e irrefutáveis, não sendopossível admitir-se erro ou engano quanto à sua apreciação.

Carreira Alvim ensina que prova inequívoca será aquela que apresente altograu de convencimento, afastando de si qualquer dúvida razoável ou, em outros termos, cuja auten-ticidade ou veracidade seja provável (apud CARNEIRO, 2002, p. 21).

Importante salientar que a prova inequívoca tampouco se confunde com o fumusboni iuris do processo cautelar. Na lição de Kazue Watanabe (apud CARNEIRO, 2002, p. 22),

o juízo fundado em prova inequívoca, em prova que convença bastante, quenão apresente dubiedade, é seguramente mais intenso que o juízo assentadoem simples ‘fumaça’, que somente permite a visualização de mera silhueta oucontorno sombreado de um direito.

A rigor, deve-se entender que não existe prova perfeitamente inequívoca, noaspecto de ser irrefragável, pois com o decorrer do processo a prova pode recair em dúvida, como advento de novas provas ou fatos que comprovem com mais severidade aspectos contrários àprova anteriormente oferecida. Também, não há que falar da prova inequívoca sem associá-la àverossimilhança dos fatos alegados, uma vez que as provas oferecidas têm por finalidade a de-monstração da veracidade dos fatos apresentados. A verossimilhança consiste então na plausibilidade,na perspectiva de que os fatos são possíveis ou reais, ainda quando descabidos de provas especí-ficas (SANTORO, 2000, p. 11).

Trata-se este de um elemento subjetivo que complementa a prova apresentadapara convencer o magistrado da necessidade da concessão da tutela antecipada. O Juiz deveanalisar não somente se a prova é inequívoca, de onde não se resta dúvidas, mas deve considerar

04-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4352

53

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Hylea Maria Ferreira

também se a prova tem nexo com as alegações e que estas sejam cabíveis e possam ser tomadascomo verdadeiras (SANTORO, 2000, p. 11). Assim sendo, pode-se dizer que o processo requeruma verdade formal, que deve ser alcançada com a verossimilhança das alegações e a provainequívoca, ao passo que a verdade real é quase sempre inatingível, posto que um só fato podecomportar várias interpretações.

Quanto ao terceiro requisito - o receio de dano irreparável ou de difícil repara-ção – tem-se que não se confundi-lo com a ameaça, propriamente dita. A primeira impressão quese tem sobre o conceito de ameaça é que esta é ocasionada por ação do réu, que visa prejudicar oameaçado, através de coação física ou moral, direta ou indireta. Eis então por que aqui não se falaem ameaça de dano, mas tão somente em receio, pois este pode vir a ser conseqüência de culpa doréu, quando este age sem o animus (MIRABETE, 2000, p. 139-140)1 de provocar a situação, masacaba por dar ensejo à situação que, conseqüentemente, gera a insatisfação do autor. Mesmo queo desprazer do autor seja ocasionado pela má-fé do réu, o receio é mais como um temor subjetivoda parte, que advém de atos concretos que o colocam em situação de desconforto na iminência deque lhe seja causado prejuízo (THEODORO JR., 2000, p. 415).

Cumpre ressaltar que o receio de dano experimentado pelo autor não partesomente em face de ação ou omissão do requerido, mas também dos inconvenientes da demoraque toma o impulso processual, que, a seu turno, também poderia gerar danos que comprometamsubstancialmente os direitos da parte autora.

Já o abuso do direito de defesa vislumbra-se quando o réu deduz pretensãocontra fato incontroverso ou opõe resistência infundada contra direito expresso e indubitável doautor (SANTORO, 2000, p. 15), ou ainda, empregando meios ilícitos ou escusos para urdir situaçãode defesa e protelar o deslinde da demanda, se beneficiando com a manutenção do status quo(CARNEIRO, 2002, p. 33).

Aqui, o réu está mais próximo da postura de litigante de má-fé, assumindocomportamento que corrobora com a sua intenção de retardar o pleito, evitando a solução doconflito. Como dito anteriormente, enquanto este conflito gera irrefragável condição de desconfor-to ao autor, para o réu traz uma situação de extrema comodidade.

Este quarto requisito ainda apresenta um desdobramento – o abuso do direitode recorrer – resultante da interposição de recursos com intuitos protelatórios. Mesmo que ao réuseja garantido seu direito de recorrer da sentença, o recurso, por motivos legais, há de prosperarante à apresentação de fundamentos compatíveis com a causa, caso diverso do que se verifica nagrande parte dos recursos existentes, onde implicitamente, identifica-se seu objetivo protelatório.

Diante dessas possibilidades, a tutela antecipada também pode ser consideradauma mantenedora da ética e dos bons costumes, posto que sana a má-fé do réu que pretenderetirar o impulso natural do processo, trazendo o autor mais próximo do seu direito (CARNEIRO,2002, p. 34).

Há quem defenda a tese de que o manifesto propósito protelatório e o abuso dedefesa do réu são situações homônimas. Não obstante, entre ambos os requisitos paira uma tênuediferenciação. O abuso de direito de defesa pode ser caracterizado pela resistência infundada quese contrapõe ao direito do autor, ou pelo emprego de meios ilícitos ou dispensáveis para forjarsituação de defesa com o intuito de protelar a pretensão do autor (THEODORO JR., 2000, p. 414).Já o manifesto propósito protelatório do réu abrange os atos do réu com maior amplitude. Não écaracterizado pelo abuso, posto que o réu utiliza ao seu favor direitos previstos em lei.

O manifesto propósito protelatório do réu se caracteriza então pela utilizaçãode direito próprio com o objetivo de retardar o andamento processual, inclusive quando ciente deque o ato por si praticado não é passível de reconhecimento, ante à jurisprudência, súmulas e textode leis existentes (ALVIM apud CARNEIRO, 2002, p. 35). Tem-se então uma conduta temerária,que se exprime além da via processual, materializada pelos atos de direito que não atingem direta-mente o processo.

1 Em sua obra Manual de Direito Penal, Mirabete, ao tratar das teorias sobre o dolo, traz uma análise crítica em relação àconcepção psicodinâmica, inspirada em Freud, que vem a definir o dolo como uma atitude interior de adesão aos própriosimpulsos intrapsíquicos anti-sociais, onde predomina a idéia do animus, que vem a ser, neste caso, a má-fé criminosa doagente.

04-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4353

54

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis

3 DA REVOGAÇÃO E MODIFICAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA

A tutela antecipada tem caráter provisório, conforme § 3º. do art. 273 do CPC.Esse caráter é também evidenciando ante à possibilidade de revogação ou modificação do provi-mento antecipado a qualquer tempo, disposto no § 4º. do referido codex.

A sentença de mérito não está condicionada à decisão interlocutória que con-cedeu a antecipação da tutela, de modo que, após instrução, é permitido ao juiz outro convencimen-to, de forma que o pleito possa ser improcedente ou procedente somente em parte. (MARINONI,1997, p. 158). Se improcedente, revogam-se os efeitos concedidos em sede de antecipação, resta-belecendo o status quo ante, com a decorrente responsabilidade objetiva do autor pelos prejuízosque a providência tenha eventualmente causado ao demandado. Caso a sentença seja parcialmen-te procedente, esta pode modificar a abrangência do provimento antecipado, seja diminuindo ouaumentando os direitos antecipados ao autor.

4 OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS

Além de estabelecerem toda uma estrutura principiológica singular, os Juizadosespeciais também contemplam rito e procedimento diversos daqueles apresentados pelo CPC(MARINONI; ARENHART, 2003, p. 714).

Houve quem discutisse que a lei dos Juizados, na verdade, estaria a criar umnovo órgão do Poder Judiciário, uma espécie de tribunal inferior, de forma que a Lei 9.099/95deveria ser considerada inconstitucional. Todavia, não se observa qualquer criação, tampoucomudanças na estrutura judiciária existente. O legislador apenas observou a necessidade de criaçãode um novo órgão integrante da Justiça Ordinária, sem o vício de qualquer inconstitucionalidade(ROCHA, 2002, p. 11-12).

Em 2001 foi promulgada a Lei 10.259, para regular a matéria no âmbito daJustiça Federal, observando-se suas peculiaridades. A nova norma veio a complementar a Lei9.099/95, sendo a este submetida, quando o objeto assim permitir.

Atualmente, entende-se que a Lei dos Juizados criou, em verdade, ummicrosistema judiciário, adequado às causas cíveis de menor complexidade e com valores limita-dos, detentor de princípios e regras próprias, com a incumbência de ampliar o acesso à justiça edescarregar os demais órgãos jurisdicionais.

5 OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ESTADUAIS

O procedimento adotado nos Juizados é hialinamente diverso daquele adotadopelo Código de Processo Civil, pois tem como escopo fundamental atender aos critérios informati-vos da Lei 9.099/95, bem como oferecer mecanismos adequados aos interesses pleiteados nestesórgãos (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 722-723).

A lei autoriza a comunicação dos atos através de qualquer meio idôneo decomunicação, o que contribui com os princípios que regem os Juizados. As partes podem serintimadas de um despacho via fax, as testemunhas arroladas poderão ser notificadas através de umtelefonema, a citação pode ocorrer por carta registrada, mediante aviso de recebimento em mãospróprias...

Quanto ao tempo, os Juizados possuem a prerrogativa do art. 12, que permite arealização de atos processuais no período noturno, devidamente regulado pela organização judiciá-ria competente de cada região. Quanto ao lugar, a prática dos atos prefere o foro do órgão, porémnada impede que possam ser praticados além da sede dos Juizados, quando assim aprouver: visto-rias de imóveis, colheita de depoimento das pessoas enumeradas no art. 144 do CPC.

Ainda, só são reduzidos a termo escrito os atos que se demonstrarem essenci-ais, afastando o formalismo que reveste o procedimento da Justiça Comum. Aliás, todo ato produ-zido nos autos, mesmo que revestido de vícios formais ou materiais, uma vez que atinja sua finali-

04-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4354

55

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Hylea Maria Ferreira

dade no processo, sem causar prejuízo para nenhuma das partes, há de ser considerado um atoválido e legítimo.

Inexistem, ainda, nos Juizados causas que tramitem em segredo de justiça, demaneira que todo e qualquer ato processual é, por força de lei, um ato público, contrariamente aoprocedimento comum, onde muitas vezes, em razão da matéria, o segredo de justiça é essencialpara não submergir a efetividade da prestação jurisdicional.

As audiências também possuem procedimento especial, pois são presididaspela pessoa do conciliador, quando da audiência preliminar de conciliação, e pelo juiz leigo, quandoda audiência de instrução e julgamento. Ainda que estes profissionais sejam assistidos a todo omomento pelo magistrado togado, são considerados auxiliares da justiça e possuem a autonomianecessária para efetividade dos atos aos quais foram designados.

A inexistência de cobrança do pagamento de custas, taxas e emolumentos, emprimeiro grau de jurisdição, também é prerrogativa dos Juizados. Em que pese no procedimentocomum as partes possam requerer o benefício da justiça gratuita, salvaguardado pela Lei 1060/50,nos Juizados o benefício independe de requerimento, ou seja, ainda que a parte tenha condições dearcar com as sucumbências, dela nada será cobrado, salvo as exceções legais, pela interposição derecurso após a sentença de primeira instância transitada em julgado, ou ainda quando condenadapor litigância de má-fé (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 723-724).

A representação técnica através de advogado também não é exigida em pri-meira instância, até o limite de vinte salários mínimos. Neste ponto a doutrina diverge quanto àcapacidade postulatória das partes, entendendo, de um lado, que a parte poderá atuar no processoaté a sentença final, enquanto outra corrente entende necessária a presença do causídico depois defrustrada a audiência conciliatória, quando passaria o processo a exigir do demandante conheci-mento técnico inerente do profissional advogado, sem o qual poderia restar a parte em prejuízoirreparável.

6 OS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS

Quase tudo que fora dito quanto aos Juizados Especiais Estaduais, também seaplicara aos Juizados Especiais Federais. Porém impende destacar as características exclusivaspresentes no âmbito da Justiça Federal. Ao contrário do que se observa no procedimento comumno âmbito da Justiça Federal, nos Juizados Federais a Fazenda Pública não conta com privilégiosprocessuais, como prazos estendidos, diante de seu caráter público (art. 9º).

Também, a Lei 10.259/01 outorgou ao autor o direito de eleger um representan-te legal judicial, ainda que não seja necessário (art. 10). Em parte, esta permissão pode ser justificadapor algumas situações costumeiras nas causas de matéria previdenciária. Primeiramente, é cediçoque uma subseção judiciária federal é responsável por vários municípios. É inequívoco concluir quequase a totalidade das ações previdenciárias são pleiteadas por pessoas idosas ou inválidas, queobjetivam o benefício da aposentadoria, auxílios ou pensão. Unindo ambas as situações é fácilperceber que uma ampla quantidade de requerentes teria dificuldades de se locomover até a sededo juizado, o que contrariaria aquele fim de garantir o acesso à justiça, de modo que se faz legítimoe eficaz a representação judicial de pessoa física que não possua a mesma investidura que a figurado causídico. Ainda na esfera federal, pode-se observar a possibilidade de realização de períciatécnica, quando o laudo pericial for essencial ao deslinde da causa.

Talvez o ponto mais importante que possa ser inserido singelamente neste pon-to do artigo é o permissivo do art. 8º, § 2º, que prevê a possibilidade de recebimento de petições erealização de demais atos processuais através da via eletrônica. Esta regra deu origem ao E-proc2 ,já utilizado em todos os Juizados da 4ª região, com resultados bastante agradáveis.2 O E-proc é o Sistema de Processo Eletrônico dos Juizados Especiais Federais da 4º Região. Sua utilização tem trazido

resultados excelentes, principalmente por diminuir custos, facilitar o acesso aos autos para ambas as partes e ensejar maiorceleridade nas ações abrangidas pelos juizados. Atualmente está sendo desenvolvido um projeto em Brasília, sob o gestão deseu criador, Giscard Stephanou, que visa a implantação do E-proc em todos os JEFs do Brasil. Existem nas outras regiões daJustiça Federal processos eletrônicos com funcionamento semelhante ao E-proc, mas nenhum alcançou o mesmo nível deeficiência.

04-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4355

56

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis

Todas as pessoas envolvidas no processo demandado nos Juizados Federais –advogados, servidores da justiça federal, funcionários e procuradores das autarquias, fundações eempresas públicas federais – são habilitados no E-proc através da assinatura de um termo decompromisso e recebem um senha pessoal e intransferível, que deverá ser utilizada para o acom-panhamento do processo judicial.

Conhecido também como juizado virtual, o procedimento do E-proc vem sedemonstrando uma verdadeira “mão-na-roda” na garantia do acesso à justiça e no cumprimentodos preceitos fundamentais dos Juizados. O processo se torna mais célere, e, conseqüentemente,mais eficaz, diminui as despesas do cartório, pois quase extingue a utilização do papel3 e aindafacilita a vida dos procuradores que atuam perante o órgão, que podem acompanhar os atos simul-taneamente, sem ter que se deslocarem de seus escritórios e gabinetes até a sede da JustiçaFederal.

Nos Juizados Federais, o cumprimento pecuniário da sentença não dependeráde expedição de precatórios. Os pagamentos poderão ser feitos através de Requisição de Paga-mento de Valor – RPV, no prazo máximo de sessenta dias, a contar da requisição feita pelo juiz, porofício, sendo que este também poderá seqüestrar numerário das contas dos entes públicos, noscasos de descumprimento (BOCHENEK. 2004. p. 172).

Por fim, destaca-se o texto do art. 4º da Lei 10.259/01 que, ainda hoje, suscitagrande polêmica acerca da hipótese de apreciação de medidas cautelares em sede de Juizados,porém, tratar-se-á do tema com mais afinco, a seguir.

6.1 O art. 4º da Lei 10259/01

Prescreve o dispositivo: “Art. 4o. O Juiz poderá, de ofício ou a requerimentodas partes, deferir medidas cautelares no curso do processo, para evitar dano de difícil reparação”.Resta entender: qual foi a verdadeira pretensão do legislador ao dispor sobre medidas cautelares,inclusive quando é sabido que o projeto original da lei 10.259 continha a expressão “medidas urgen-tes” no texto do art. 4º?

As tutelas cautelares não se confundem com a tutela antecipatória. Apresen-tam requisitos distintos e cada qual busca objetivos diversos.

A dificuldade, porém, se encontra-se em diferenciar medida cautelar de tutelacautelar e processo cautelar. Marília Lourido dos Santos, citando Humberto Theodoro Junior(1998)nensina que a tutela cautelar se realiza através do processo cautelar, e constitui uma novaface da jurisdição, um tertium genus que contém a um só tempo as funções do processo deconhecimento e de execução, e tem por elemento específico a prevenção. Já a medida cautelar émais ampla, tem a finalidade de prevenção ou precaução de outro direito, a ser invocado posterior-mente.

Seja qual for a nomenclatura, é certo que a doutrina é pacífica ao pronunciarque, em sendo cautelar, via de regra, será acessória e se sujeitará a um processo principal. Porém,em se tratando de Juizados, a face de seus princípios, dentre eles o da informalidade e da celeridade,“não há necessidade de autuação própria do pedido cautelar, podendo ele ser formulado por sim-ples petição” (BOLLMAN, 2004, p. 36).

Portanto, não há que se confundir a tutela cautelar com a tutela antecipatória.A primeira é prevista na lei especial e pelos fundamentos dela deve ser procedida, e não pelospreceitos da norma geral do CPC, que certamente exigiria a formalidade da autuação apartada daação principal. Outrossim, não se deve generalizar o termo “medidas cautelares” e inserir a tutelaantecipada como sua espécie. Esta também será possível nos Juizados, como a frente se verá, masnão pelos fundamentos no art. 4º, e sim pelos defendidos motivos da possibilidade da aplicaçãosubsidiária do CPC em sede do órgão especial.

3 Informações no site do Tribunal Regional da 4ª Região dão conta que já foram distribuídos aproximadamente 140 milprocessos virtuais, o que significa uma economia de cerca de R$ 2.800.000,00 com papel e outros insumos de cartório.Disponível em: <www.trf4.gov.br/trf4/upload/arquivos/emagis_prog_cursos/jef_eproc.ppt>. Acessado em: set. 2006

04-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4356

57

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Hylea Maria Ferreira

7 A APLICABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO CPC NOS JUIZADOS ESPECIAISCÍVEIS

É legítima a aplicação do CPC às lacunas da Lei 9099/95, por meio de analogia,observando a não contrariedade com a norma específica. Neste sentido, defende Misael MontenegroFilho (2005, p. 68):

A Lei Maior garantiu o direito de ação, abrindo as portas do judiciário paraque as pessoas que se sentem lesadas apresentem ações formais perante orepresentante do poder em análise, impondo a formação de um processo.Porém, evidente que o direito de ação não se limita a assegurar o acesso aorepresentante do Poder Judiciário. No momento em que o processo é forma-do, o Estado se torna devedor de uma resposta jurisdicional, não necessari-amente de mérito, segundo a teoria eclética desenvolvida por Liebman, exi-gindo-se do autor que preencha as condições da ação (...). Percebendo quea lei especial prega a celeridade do processo (...) não nos parece lógico negara antecipação da tutela no âmbito dos órgãos especiais, já que o seu deferi-mento estará sempre apoiado no princípio em estudo.

A presente situação elucida a necessidade de se estudar e praticar os métodoshermenêuticos na interpretação da lei. A análise exclusiva da letra fria da lei, tão somente quanto àsua sintática, não expressa a mens legislatoris, tendo em vista que, em se aplicando somente estemétodo restritivo de interpretação, não seria possível buscar solução para os casos que a lei deixoude prescrever.

Hans Kelsen já ensinava, em sua obra Teoria Pura do Direito, que o direito éum sistema que é, em si mesmo, bastante, pois as normas que o compõem contém em si a possibi-lidade de solucionar todos os conflitos levados à apreciação dos magistrados ou órgãos jurisdicionaiscompetentes.

Leciona o jurisfilósofo (1998, p. 273):

(...) uma ordem jurídica pode sempre ser aplicada por um tribunal a um casoconcreto, mesmo na hipótese dessa norma jurídica, no entender do Tribunal,não conter qualquer norma geral através da qual a conduta do demandanteou acusado seja regulada de modo positivo. (...) quando não houver a normajurídica singular, que expresse qual postura deverá ser adotada no casoconcreto, sempre será possível a aplicação da ordem jurídica, o que é, tam-bém, a aplicação do direito.

Norberto Bobbio (1999, p. 114-116), por sua vez, aperfeiçoou esse raciocínio ediscorreu sobre a Completude do Ordenamento Jurídico: não existe caso que não possa ser regu-lado por uma norma extraída do sistema, excluindo-se a possibilidade de haver lacunas, ou seja,falta de normas que regulem os fatos.

Desta sorte, é imprescindível que se admita a hipótese de aplicação secundáriado CPC ante aos Juizados Especiais Cíveis – Estaduais ou Federais - pois o que se pretende éalcançar a justiça e não impor obstáculos à sua perpetuação, diante da omissão equivocada dolegislador.

04-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4357

58

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis

8 CABIMENTO DA TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAISCÍVEIS ESTADUAIS

O motivo que talvez possa justificar mais adequadamente a antecipação dosefeitos da sentença nos Juizados é a dinâmica do princípio da celeridade. Esse princípio relaciona-se intrinsecamente com a tutela antecipada nos Juizados, como pressuposto fundamental. Ora, seos Juizados são competentes para processar determinada ação, mister também ousar dizer que aojuízo cumpre tomar todas as providências devidas para o cumprimento da função jurisdicional.

Outrossim, a regra do art. 273 do CPC pode ser muito bem aplicada, comresultados satisfatórios ao que se pretende, pois não apresenta conflitos com a lei especial. Senão,veja-se a decisão:

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA - ANTECIPAÇÃO DA TUTELA -POSSIBILIDADE NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS - DECISÃO QUE NÃOSE REVELA TERATOLÓGICA - DENEGAÇÃO DA ORDEM. A antecipaçãoda tutela é cabível nos Juizados Especiais Cíveis, tratando-se de medida quese coaduna perfeitamente com os modernos princípios de celeridade da pres-tação jurisdicional com justa distribuição do ônus da demora processualentre as partes. São cabíveis a tutela acautelatória e a antecipatória em sededos Juizados Especiais Cíveis, em caráter incidental. (II Encontro Nacionaldos Coordenadores de Juizados Especiais, Cuiabá, dezembro de 1997) Écompatível com o rito estabelecido pela Lei nº 9.099/95 a tutela antecipatóriaa que alude o art. 273 do Código de Processo Civil. (Enunciado nº 06, do 1oEMJERJ) Decisão que, em antecipação de tutela determinou o bloqueio datransferência de veículo perante o Detran em razão de garantia da satisfaçãode obrigação pelo Impetrante, é medida acautelatória facultada ao Juízo, quenão se revela teratológica. Denegada a ordem. (TJPR. 2006.0003477-7. Rel.Jose Sebastião Fagundes Cunha. 28/07/2006).

Seja sob qual posicionamento for, importa é que é hialino o entendimento de quea tutela não só é cabível nos Juizados Especiais Cíveis, como também se demonstra necessária,com o escopo de atingir a finalidade da prestação jurisdicional, ainda que no contexto das pequenascausas.

9 CABIMENTO DA TUTELA ANTECIPADA EM SEDE DE JUIZADOS ESPECIAISCÍVEIS FEDERAIS

Ao tratar da tutela antecipada no âmbito dos Juizados Especiais Federais nãose deve concluir que ela encontra-se prevista na lei, diante do exposto no art. 4º da Lei 10.259/01(ver item 6.1). Aquele dispositivo trata das medidas cautelares e não da medida satisfativa que seperfaz na tutela antecipada. Esta é igualmente possível de ser concedida na sede do órgão especial,porém, pelos seus próprios fundamentos.

Vilian Bollmann (2004, p. 38) defende que a tutela é possível nos Juizados pelosmotivos da possibilidade da aplicação supletiva do Código de Processo Civil face à lei especial,assim como ante ao princípio da celeridade e da efetividade da jurisdição, pois condiz com o “espí-rito” dos Juizados Especiais. Assim, inexiste incompatibilidade entre os Juizados Especiais Fede-rais e a tutela antecipada, pois “ambos constituem mecanismos de salvaguarda da efetividade dodireito material, seja pela adoção de procedimento mais célere, seja pela produção, em tempopresente dos efeitos de uma futura sentença”.

Observe também a decisão proferida pela Turma Recursal do Estado da Bahia:

04-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4358

59

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Hylea Maria Ferreira

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO CONTRA DECISAO. FORNECIMENTOGRATUITO DE MEDICAÇÕES A PACIENTE PORTADOR DE HTLV-I. LEGI-TIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECES-SÁRIO COM O ESTADO E MUNICÍPIO. INCOMPETÊNCIA DO JUIZADOESPECIAL FEDERAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. ANTECIPAÇÃO DE TU-TELA NOS JUIZADOS ESPECIAIS. POSSIBILIDADE. REQUISITOSAUTORIZADORES DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA CONCEDIDA PRE-SENTES. RECURSO DESPROVIDO. 1. Inexiste ilegitimidade passiva da Uniãopara o fornecimento de medicamento, pois a Constituição Federal e a Lei nº8.080, de 19.09.90, que dispõe sobre o Sistema Único de Saúde, estabelece aresponsabilidade solidária da União, Estados, Distrito Federal e Municípiosde prover as condições indispensáveis ao pleno exercício do direito à saúde.2. Considerando-se a obrigação concorrente da União, Estado e Municípiode prover a atenção à saúde, nada obsta que a decisão antecipatória datutela se volte apenas contra a União, se os outros entes políticos nãodispõem da medicação pleiteada. 3. Não ocorrendo nenhuma das situaçõesde exclusão legalmente previstas, não há que se falar em incompetência doJuizado Especial Federal. 4. Cabível a antecipação dos efeitos da tutela nosJuizados Especiais Federais como medida de urgência prevista no art. 273,inciso I, do CPC, efetuando-se uma interpretação não literal do art. 4º da Leinº 10.259/2001, conforme exige o art. 5º, da Lei de Introdução ao CódigoCivil, como também considerando a aplicação supletiva do Código de Pro-cesso Civil. 5. Comprovada a existência nos autos de prova inequívoca dadoença da Recorrida (Paraparesia Espástica Tropical, causada pelo vírusHTLV-I), bem como o fundado receio de dano irreparável à saúde, sem ofornecimento do medicamento necessário, deve ser mantida a decisão queantecipou os efeitos da tutela. 6. Recurso desprovido (Turma Recursal dosJuizados Especiais Federais da Seção Judiciária do Estado da Bahia. Recur-so Inominado. 2004.33.00.762691-0. Rel. Rosana Noya Weibel Kaufmann. 16/12/2005) (grifo nosso).

O subsistema dos Juizados Federais possui, ainda, uma característica peculiar:a de tratar de causas de natureza alimentar ou salarial, quando das ações de direito previdenciário.

Portanto, a antecipação dos efeitos do mérito se faz mais que necessária, poiso direito em questão pode estar a retirar do requerente verbas de caráter alimentar, ou seja, essen-ciais à própria subsistência.

Nesse sentido se manifestou também J. E. Carreira Alvim (2005):

A antecipação da tutela, como se vê, é realmente necessária (...) nas causasprevidenciárias, em que o INSS, muitas vezes, suspende, manu militari,benefícios previdenciários regularmente concedidos ao segurado, sob merasuspeita de fraude. Certa vez, reformei uma decisão de um juiz de primeirograu, dando efeito ativo a um agravo de instrumento, num caso em que foracancelado o benefício previdenciário, e esse juiz denegara a tutela antecipa-da porque não vira “fumus boni juris” e o “periculum in mora”, a daremsuporte ao provimento antecipatório, como se o beneficiário não tivesse odireito de alimentar-se até que se resolvesse o mérito da causa.

Com relação à sua concessão ex oficio, adota-se o entendimento de que épossível e necessário. Negar que a antecipação da tutela possa ocorrer de ofício por ato do juiz énegar, do mesmo modo, as garantias que à lei outorga ao requerente, leigo, de propor ação sem arepresentação judicial. Ora, não se pode exigir que a parte autora possua conhecimento técnicopara apontar ao remédio legal do seu litígio, tampouco prosperará a idéia de que o magistrado nãopossa vir a reconhecer este remédio pelo seu próprio impulso (SANTOS, 2005).

04-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4359

60

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis

10 A TUTELA ANTECIPADA NO ÂMBITO RECURSAL DOS JUIZADOSESPECIAIS CÍVEIS

Conforme preceitua a regra do art. 43 da Lei 9099/95, os recursos serão rece-bidos apenas do efeito devolutivo, sendo outorgado ao juiz a possibilidade de utilizar-se do efeitosuspensivo somente para evitar o dano irreparável para a parte. Assim sendo, a lei dos Juizadospreceitua a regra de que sempre será possível a execução provisória da sentença, salvo aquelescasos em que, mesmo em caráter provisório, a execução possa vir a acarretar prejuízos para aparte executada.

A tutela antecipada poderá ser concedida no âmbito recursal, face aos juizadosespeciais cíveis, nos casos em que, sendo julgada improcedente a ação em primeiro grau, o reque-rente continue a apresentar os requisitos exigidos pelo art. 273 do CPC, não apreciados às vistas dojulgador da primeira instância. Portanto, uma vez observados presentes os requisitos autorizadoresda concessão da tutela antecipada, poderá ser concedida no âmbito recursal, respeitando os limitesda execução provisória.

William Santos Ferreira (2000, p. 244) aduz suas justificativas para a admissãoda tutela antecipada no âmbito recursal. Entre tais fundamentos, ensina que, no âmbito recursal, oprocesso é dotado de mais elementos, portanto, é mais maduro, o que traz maior segurança naverificação dos requisitos do art. 273 do CPC.

Em consonância, cumpre ressaltar que, no procedimento comum, uma vez re-cebido o recurso somente no efeito suspensivo, contra esta decisão caberá o agravo de instrumen-to, requerendo o efeito ativo da tutela antecipatória. Porém, tratando a lei dos juizados de umprocedimento especial, um subsistema judiciário, não é possível a interposição de agravo de instru-mento, posto que a Lei 9099/95, nos arts. 41 e 42, versou sobre os recursos passíveis na sede doórgão especial, excluindo-se a referida modalidade.

Para dirimir tal questão, a Turma Recursal Única do Paraná já se consolidou arespeito:

MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO INOMINADO PARA A TURMARECURSAL. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE. INVIABILIDADE DE SER EXER-CIDO PELO ÓRGÃO A QUO. É cabível, excepcionalmente, a impetração deMandado de Segurança para a Turma Recursal quando o ato judicial atacadosubtraiu da sua competência o exame do recurso inominado previsto na Lei9.099/95 contra a sentença. Não é lícito ao Juízo a quo exercer o juízo deadmissibilidade recursal nos Juizados Especiais Cíveis. Esse controle deadmissibilidade recursal somente poderá ser exercido pelo Juízo a quo nashipóteses de recursos manifestamente incabíveis e em processos com certi-dão do trânsito em julgado da sentença que se pretende revisar. SEGURANÇACONCEDIDA. (TJDF, Classe do Processo: DIVERSOS NO JUIZADO ESPECI-AL ; Registro do Acórdão Número: 105833. Órgão Julgador: Turma Recursaldos Juizados Especiais; Rel. Angelo Canducci Passareli. DJ: 15/06/1998) .

Portanto, não sendo possível a interposição de agravo de instrumento, a suaferramenta mais próxima será o mandado de segurança, pois se trata da garantia constitucional aosatos ilegais praticados pela autoridade pública. Outra questão pertinente é quanto à competênciapara julgar o mandado de segurança interpelado em face da decisão do magistrado atuante nosJuizados Especiais.

Com o intuito de pacificar o entendimento, o STJ proferiu a seguinte decisão:

JUIZADOS ESPECIAIS. MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO DEAUTORIDADE DE PRIMEIRO GRAU. Competência do órgão que, em se-gundo, se constitui em instancia revisora de seus atos. decisão por unanimi-dade, negar provimento ao recurso ordinário. (STJ, Órgão Julgador - TER-

04-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4360

61

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Hylea Maria Ferreira

CEIRA TURMA Relator Ministro EDUARDO RIBEIRO ROMS 6710/SC; (96/0005778-8) Data da Decisão 08/10/1996 Fonte DJ DATA: 25/11/1996 PG: 46201).

Assim, não obstante as diversas polêmicas que permeiam a questão dos recur-sos contra decisões interlocutórias nos Juizados, o direito existente não poderá deixar de ser apre-ciado por falta da previsão legal, de forma que, ainda que não seja o instrumento totalmente ade-quado, o mandado de segurança é a ferramenta que tem a possibilidade de garantir o direito derecurso.

11 CONCLUSÃO

A tutela antecipada foi inserida no ordenamento brasileiro ante à necessidadede um instrumento adequado para suprir os casos práticos que demonstravam a necessidade de umreconhecimento mais amplo e concreto do que aqueles possíveis mediante às ações cautelares,utilizadas erroneamente nestes casos, antes da vinda a lume deste badalado instituto.

Com o seu reconhecimento, o ordenamento jurídico brasileiro viu-se diante dasatisfação proporcionada por um remédio há muito necessitado, utilizado perante a comprovaçãohábil de seus requisitos autorizadores. Não obstante, com o surgimento da Lei 9.099/95, originou-setambém um novo procedimento. A nova lei criara os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, ummicrosistema que se apresentou para aprimorar a garantia do direito de ação e da satisfação dafunção jurisdicional.

Os Juizados Especiais se mostraram como uma ferramenta jurisdicional aces-sível a toda a população, antes limitada pela simplicidade de suas demandas ou pelas burocracias eformalidades jurisdicionais. Em que pese seu amplo acesso, a morosidade também se revelounestes órgãos.

A Lei 9099/95 omitiu-se quanto à aplicação subsidiária do CPC. Uma explica-ção plausível para tanto é a de que existiria certa contrariedade entre a previsão supletiva do CPC,face aos objetivos pretendidos com a criação do órgão especial. Prever a necessidade da aplicaçãodo CPC antes mesmo das instalações dos Juizados, seria considerar o sistema especial falido,antes mesmo do início de suas atividades. Os Juizados nasceram como um órgão autônomo, po-rém, a estrutura jurisdicional apresentada não fora suficiente para conter os anseios sociais.

Defende-se a tese de que é possível a aplicação da tutela antecipada em sededos Juizados Especiais Cíveis – Estaduais ou Federais – porquanto o instituto apresentado pelanorma geral não conflita com a lei especial. Pelo contrário, contribui com a eficácia da celeridademotivadora daqueles órgãos, aproximando a parte do seu direito material.

Também, defende-se a tese da possibilidade da aplicação da antecipação dosprovimentos do mérito ex officio pela pessoa do magistrado. Como dito, os Juizados são norteadospelo seu próprio sistema principiológico, dentro os quais o da informalidade, que, inclusive, veio apermitir que as partes possam pleitear ação judicial desacompanhadas de advogado. Assim, permi-tiu a lei, em outras palavras, que aquele que não detenha conhecimento técnico jurídico possa atuarem causa própria, destarte, sem que isso lhe cause conseqüências aquém dos seus direitos.

REFERÊNCIAS

CARREIRA ALVIM, J.E. Juizados Especiais Federais. Revista Júdice. Mato Grosso, ano IV, n.11, abril. 2002. Disponível em:

<http://www.mt.trf1.gov.br/judice/jud11/Juizados_Especiais_Civeis_Federais.htm>

Acesso em: 03 mai. 2005.

04-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4361

62

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais Cíveis

ARENHART, Sérgio Cruz; MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conheci-mento. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Brasília: UnB, 1999.

BOCHENEK, Antonio César. Competência Cível. Da Justiça Federal e dos Juizados Especi-ais Cíveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

BOLLMAN, Vilian. Juizados Especiais Federais. Comentários à Legislação de Regência.São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados Especiais Cíveis Estaduais e Federais. 2. ed. Rio deJaneiro: Lúmen Júris, 2005.

CARNEIRO, Athos Gusmão. Da Antecipação da tutela. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. 3. 3. ed. São Paulo:Malheiros, 2004.

FRIGINI, Ronaldo. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis. 2. ed. São Paulo: JHMizimo, 2004.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LOPES, João Batista. Tutela Antecipada no Processo Civil Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Sarai-va, 2003.

MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Antecipatória, Julgamento Antecipado e Execução Ime-diata da Sentença. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

______ . A Antecipação da tutela. 3. ed. São Paulo: Malheiro, 1997.

MIRABETE, Julio Fabrini. Juizados Especiais Criminais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2000.

______. Manual de Direito Penal. v. 1. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2000.

MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil. Medidas de Urgência,tutela antecipada e Ação Cautelar, Procedimentos Especiais. v. 3. São Paulo: Atlas, 2005.

MORAES, Silvana Campos. Juizado Especial Cível. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

ROCHA, Felipe Borring. Juizados Especiais Cíveis. Aspectos Polêmicos da Lei 9009/95. Rioda Janeiro: Lúmen Júris, 2002.

SANTORO, Gláucia Carvalho. Tutela Antecipada: A Solução. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

SILVA JUNIOR, Valdecy José Gusmão da. A antecipação de Tutela nos Juizados Especiais. JusNavigandi, Teresina, a. 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3293>. Acesso em: 04 mai. 2005.

SANTOS, Marília Lourido dos. Tutela Cautelar e Tutela Antecipatória (âmbito e diferençasdos institutos). Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, dez. 1998. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=871>. Acesso em: 06 out. 2006.

04-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4362

63

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Hylea Maria Ferreira

SANTOS, Raimundo Nonato Silva. A Tutela Antecipada em Sede de Juizados Especiais. Asso-ciação Cearense de Magistrados. Disponível em: <http://www.acmag.com.br/HTML/tutela_ant_je.htm>. Acesso em: 16 fev. 2005.

THEODORO JR., Humberto. Processo Cautelar. São Paulo: Livraria e Editora Universitária deDireito, 2000.

______ . Curso de Processo Civil. v. 3. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

TUCCI, José Rogério Cruz e. Tempo e Processo: uma análise empírica das repercussões dotempo na fenomenologia processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correira de; TALAMINI, Eduardo. Cur-so Avançado de Processo Civil. v. 1. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

ZAVASCKI. Teori Albino. Antecipação da tutela. São Paulo: Saraiva. 1997.

04-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4363

64

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PUBLICIDADE E PROPAGANDA DOGOVERNO

Marcos Antônio Striquer Soares*

RESUMO

Analisa a dimensão constitucional do princípio da publicidade, como publicidade obrigatória e ne-cessidade de publicação ou comunicação, como publicidade obrigatória sem necessidade de publi-cação ou comunicação, havendo aí a possibilidade de publicidade resumida. Constata-se a possibi-lidade da proibição de publicidade, bem como a publicidade desnecessária ou impossível. Por fim,analisa o art. 37, § 1º da Constituição onde é encontrada a publicidade autorizada ou propagandados órgãos públicos.

Palavras-chave: Princípio da Publicidade. Propaganda. Princípio Republicano. Princípio Demo-crático.

THE CONSTITUTIONAL PRINCIPLE OF THE ADVERTISING ANDPROPAGANDA OF THE GOVERNMENT

ABSTRACT

It analyzes the constitutional dimension of the principle of the advertising, as obligator advertisingand publication necessity or communication, as obligator advertising without publication necessityor communication, having there the possibility of summarized advertising. It is evidenced possibilityof the prohibition of advertising, as well as the unnecessary or impossible advertising. Finally, itanalyzes art. 37, § 1º of the Constitution where the advertising authorized or propaganda of thepublic agencies is found.

Keywords: Principle of the Advertising. Propaganda. Republican Principle. Democratic Principle.

1 PUBLICIDADE DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS: A PUBLICIDADE COMO ATO DEDIVULGAR, DE TORNAR PÚBLICO

Por estranho que pareça às gerações mais novas, a publicidade referente abens e interesses públicos, no Brasil, somente nos últimos anos, vem ganhando a importânciaexigida pelo princípio republicano. Antes da Constituição de 1988, embora a publicidade fosseexigida, ela não tinha a dimensão atual.

Conferir a este princípio expressão constitucional, como ocorre no sistemajurídico brasileiro, tem explicação histórica. A marcha dos fatos da histórianacional deixou marcas de uma administração privada praticada no Estadocom os recursos do povo e, pior ainda, com a esperança do povo em que o

* Mestre e doutor em Direito do Estado/Direito Constitucional pela PUC/SP; professor de Direito Constitucional na UniFil;professor de Direito Constitucional na graduação, na especialização e no mestrado em Direito Negocial da UEL.

05-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4364

65

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Marcos Antônio Striquer Soares

quanto praticado era feito para atendimento de suas necessidades mais pri-márias. (...) Por isso, a falta de limites bem definidos ou bem respeitados entreo público e o privado, no desempenho estatal das atividades administrati-vas, justifica a inclusão expressa da publicidade como princípio constitucio-nal da Administração (ROCHA, 1994, p. 239).

A partir da década de 50, acentuando-se nos anos setenta, surge o empenhoem alterar a tradição de ‘secreto’ predominante na atividade administrativa.A prevalência do ‘secreto’ na atividade administrativa mostra-se contráriaao caráter democrático do Estado. A Constituição de 1988 alinha-se a essatendência de publicidade ampla a reger as atividades da Administração, in-vertendo a regra do segredo e do oculto que predominava. O princípio dapublicidade vigora para todos os setores e todos os âmbitos da atividadeadministrativa (MEDAUAR, 2004, p. 149-150).

Na pesquisa bibliográfica, realizada para este trabalho, foram encontradas pou-cas linhas sobre o tema em textos mais antigos, vindo a figurar com mais freqüência em textosposteriores a 1988.

A origem da palavra “publicidade” é encontrada no Dicionário de Comunica-ção de Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Barbosa (1998, p. 481), com sentido jurídico, e designa, aprincípio, o “ato de divulgar, de tornar público”, vindo a adquirir, no século 19, também um significa-do comercial: qualquer forma de divulgação de produtos ou serviços, através de responsabilidadede um anunciante identificado. Portanto, na origem, a expressão tem um sentido jurídico e significaato de divulgar, de tornar público. Somente depois é que veio a adquirir o sentido comercial utilizadocomo sinônimo de propaganda.

O significado original do termo, registrado com sentido jurídico, permanece atéhoje no campo da Ciência do Direito. Quando se fala em “publicidade”, nesta seara do conheci-mento, esta-se referindo ao “ato de divulgar, de tornar público”. Este fato é de fundamental impor-tância para este estudo, pois quando a lei impõe ao administrador público o dever de publicar algo,não lhe impõe o dever de fazer propaganda, mas, simplesmente, de divulgar algo.

A publicidade, no âmbito dos órgãos públicos, é exigência expressa da Consti-tuição brasileira, em diversos dispositivos. Contudo, conforme já se pode detectar pelos textosacima citados, o termo tem mais de um significado. No caput do art. 37, ela aparece como “prin-cípio”. No art. 84, IV, onde se encontra a competência do presidente da República para “fazerpublicar as leis”, a publicidade é exigida como condição de aperfeiçoamento da lei produzida peloEstado. Já no art. 93, IX, o qual determina que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judici-ário serão públicos”, excetuado o interesse público, a publicidade não tem nenhuma das caracterís-ticas anteriores: não é um princípio e, embora seja necessária para não haver nulidade do julgado,não é o tipo de publicidade – ao menos no sentido exposto no dispositivo – que exija publicação(uma das formas de publicidade). O §1º, do art. 37, traz outro tipo de publicidade, muito diferentedas examinadas, trata-se de propaganda dos órgãos públicos. “Publicidade” na Constituição de1988 é, portanto, conceito polissêmico, ou seja, a expressão é utilizada, conforme explicação deCanotilho e Vital Moreira, em sentidos diversos no texto constitucional, cabendo ao intérpreteprecisar a “intenção” (sentido) com que esses conceitos são utilizados nos vários preceitos daConstituição. “Perante cada utilização de um conceito polissêmico haverá que analisar cuidadosa-mente qual o sentido que lhe cabe nessa circunstância” (CANOTILHO e MOREIRA, 1984, p.48). Deve-se, portanto, examinar as possibilidades de significado do termo “publicidade”.

05-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4365

66

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo

2 PUBLICIDADE OBRIGATÓRIA: A PUBLICIDADE COMO PRINCÍPIOCONSTITUCIONAL E COMO REGRA CONSTITUCIONAL

A Constituição brasileira, conforme visto, traz a exigência de publicidade emdiversos dispositivos constitucionais. Em cada um deles, contudo, podem-se encontrar caracterís-ticas de princípios ou de regras. Esta bipartição das características da norma jurídica vem sendoafirmada em Direito Constitucional: princípios e regras têm sido apresentados como espécies denorma,1 é a posição aceita por grande parte da doutrina atualizada, encontrada nos estudos maisrecentes sobre o assunto. Paulo Bonavides (202, p. 228-266) traz o desenvolvimento das idéias queculminaram nessa teoria (princípios e regras como espécies de normas). Conforme apresentecaracterísticas de “princípio” ou de “regra”, a exigência de publicidade terá efeito diferente nomundo jurídico.

O “princípio constitucional” é a norma jurídica caracterizada como base dosistema jurídico, dotada de um alto grau de abstração, contém pouca densidade semântica e maiorconteúdo axiológico, dependente da ação do intérprete para sua aplicação, e tem como funçãoexpressar valores do povo e do Estado2 , dar unidade e harmonia ao sistema jurídico e orientar ainterpretação da Constituição. Para se entender a publicidade dos órgãos públicos, deve-se desta-car que o princípio é norma jurídica e, como tal, produz efeitos jurídicos, obrigando a todos; tem altograu de abstração e pouca densidade semântica, o que indica vários significados e várias possibili-dades de interpretação e aplicação, exigindo a intermediação do intérprete, o qual utiliza a lei, asentença, o ato administrativo, o contrato e, até mesmo, o costume para dar vida ao princípioconstitucional.

As regras constitucionais são normas jurídicas de maior densidade semântica ede aplicação direta, sem necessidade de qualquer intermediação entre ela e o fato disciplinado, jáque são dotadas de conteúdo axiológico, a ser determinado pelo intérprete.

De um modo geral, tratar de publicidade, no âmbito de órgãos e funções públi-cas, é falar de publicidade obrigatória. Em princípio, tudo o que diga respeito aos órgãos públicos esuas respectivas funções deverá ter publicidade, transparência. Duas exceções podem ser apre-sentadas: a publicidade proibida por determinação da Constituição e a publicidade desnecessária,das quais se tratará adiante. Interessa, neste instante, esclarecer as exigências de publicidade, oumelhor, os casos de “publicidade obrigatória”.

As exigências de publicidade obrigatória devem ser divididas em duas possibi-lidades: publicidade “com divulgação obrigatória” e publicidade “sem divulgação obrigatória”. Ain-da que a doutrina trate o assunto de um modo genérico, percebe-se que, em alguns casos, o PoderPúblico não tem obrigação de proceder à publicação ou comunicação de dados retidos em seusdepartamentos; outras vezes, pelo contrário, o aperfeiçoamento do dado retido nos órgãos públicosdepende de veiculação dele aos interessados.

1 Canotilho explica: “Salienta-se, na moderna constitucionalística, que à riqueza de formas da constituição corresponde amultifuncionalidade das normas constitucionais. Ao mesmo tempo, aponta-se para a necessidade dogmática de uma clarifi-cação tipológica da estrutura normativa. [...]. A teoria da metodologia jurídica tradicional distinguia entre normas eprincípios (Norm-Prinzip, Principles-rules, Norm und Grundsatz).” O autor abandona esta distinção, preferindo outra: “(1)– as regras e princípios são duas espécies de normas; (2) – a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre duasespécies de normas” (Direito constitucional, 6ª ed., Coimbra, Almedina, 1993, p.154-166).

2 Explicando a titularidade da soberania, Miguel Reale escreve: “A soberania é substancialmente da Nação e só juridicamenteé do Estado, o que quer dizer que, socialmente (mais quanto à fonte do poder), a soberania é da Nação, mas juridicamente(mais quanto ao exercício do poder) a soberania é do Estado” (Teoria do Direito e do Estado, 5ª ed., São Paulo, Saraiva,2000, p. 157).

05-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4366

67

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Marcos Antônio Striquer Soares

2.1 A publicidade como princípio constitucional e a desnecessidade de publicação oucomunicação

A publicidade como princípio contém a exigência genérica de publicidade (dara público, veicular, informar, prestar contas). Tudo o que se refere ao Estado exige publicidade e aausência desta é exceção encontrada na própria Constituição. A publicidade, como princípio cons-titucional, serve de orientação para todo e qualquer comportamento do Estado. “Comportamento”aqui tem um conteúdo importante, pois significa tudo que o Estado, ou parte dele, faz que envolvaação ou reação.3 Envolve o conjunto de atitudes e reações dos órgãos públicos, do Estado em facedo meio social.4 “Comportamento”, aqui, envolve inclusive a omissão, já que a omissão, no Direito,pode caracterizar-se como falta de ação ou uma reação indevida diante de uma imposição de lei. Adoutrina tem utilizado os termos “atividade e atos da administração ou atos estatais”, entre outros,para expressar esse conjunto de ações e reações dos órgãos públicos. Sem descartar estes, prefe-re-se aquele termo, por ser mais abrangente.

Da Constituição brasileira podem ser extraídos os seguintes princípios referen-tes à publicidade: da “publicidade” (art. 37, caput – afeto à função administrativa); da “publicidadee motivação das decisões judiciais e administrativas” (art. 93, IX e X – afetos ao Poder Judiciárioe às funções jurisdicional e administrativa); do “direito à informação” (art. 5º, XXXIII, pelo qualtodos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou deinteresse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade,ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado – éimportante ressaltar que tal direito não se restringe à informação somente de interesse do indivíduo,mas também de interesse coletivo ou geral); e da “publicidade dos atos processuais” (art. 5º, LX,pelo qual a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidadeou o interesse social o exigirem).

A publicidade como princípio não impõe a divulgação pelo Diário Oficial ououtro meio qualquer de publicidade5 , de tudo o que diga respeito ao Estado a todo e qualquerindivíduo. Exige, sim, a disponibilidade das informações, a possibilidade de acesso às informaçõesa todo e qualquer cidadão. Quando surge uma lei impondo a publicidade de certo comportamentodo Estado, de contrato, por exemplo, nasce a regra jurídica.

Tratando do processo administrativo, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari(2001, p. 84) asseveram: salvo as ressalvas estabelecidas e as decorrentes de razões de ordemlógica, o processo administrativo deve ser público, acessível ao público – ao público em geral e nãoapenas às partes diretamente envolvidas. Salvo determinação regular de tramitação sigilosa, nadapode impedir a vista de autos ou mesmo a obtenção de certidões.

3 No Dicionário Houaiss encontra-se: “2. tudo que um organismo, ou parte dele, faz que envolva ação e resposta à estimulação[...]. 3. reação de um indivíduo, de um grupo ou de uma espécie ao complexo de fatores que compõe o seu meio ambiente[...].” (Antônio Houaiss; Mauro de Salles Villar, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001,p. 777).

4 No Dicionário Aurélio encontra-se: “conjunto de atitudes e reações do indivíduo em face do meio social” (Aurélio Buarquede Holanda Ferreira, Novo dicionário da língua portuguesa, p. 441).

5 Geraldo Ataliba esclarece: “Publicar um ato é fazê-lo público. A publicação mais solene que há está em mandá-lo para o DiárioOficial. Entretanto, não seria possível, nem necessário, que todos os atos administrativos fossem publicados. Muitosdespachos – por circunstâncias que se ligam aos processos em que se produzem, esfera de interessados, ou outras razões –embora sejam públicos, não vão para o DO. Entretanto, públicos que são, por definição, consideram-se publicados noinstante que são praticados.” Na página seguinte, completa o autor: “como todo ato administrativo é público (do conheci-mento do povo, por definição) não se requer saia no Diário Oficial. Publicado ele já foi desde que prolatado. [...] O que dáeficácia ao ato é sua prolação e inserção num processo administrativo. Não a publicação no DO. Isto só se requer para atosnormativos ou atos externos” (Eficácia de ato administrativo – publicação, Revista de Direito Público, São Paulo, v. 25, n.99, jul./set. 1991, p. 19 e 20).

05-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4367

68

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo

Muitas das atividades dos órgãos públicos, portanto, não são publicadas oucomunicadas à sociedade ou aos cidadãos e isto não fere o princípio da publicidade. Pelo contrário,o princípio dá à Administração Pública a orientação de transparência, o que vale dizer disponibilida-de dos dados ali retidos à sociedade. No entanto, não impõe a divulgação de tudo o que ocorre nointerior dos órgãos públicos. Esses dados, que não são de publicação obrigatória, mas ficam dispo-níveis à consulta da sociedade, dependem da solicitação de interessado, cabendo ao Estado prestá-los nesse instante. O agente público é obrigado a prestar a informação solicitada conforme osdados constantes do órgão público, sem omissão alguma, sob pena de ser responsabilizado crimi-nalmente6 , além da punição administrativa cabível.

A possibilidade da legislação infraconstitucional exigir expressamente a publi-cação ou comunicação de determinados atos (por exemplo, as regras sobre citação e intimaçãocontidas no Código de Processo Civil) nasce dessa exigência genérica de publicidade dos compor-tamentos dos órgãos públicos, ou, precisamente, do princípio da publicidade. O legislador ordináriopode, portanto, criar as regras jurídicas referentes à publicidade com base no princípio da publicida-de contido na Constituição. Se o princípio da publicidade traz a obrigação genérica de disponibilizaçãode dados, de transparência dos órgãos públicos, a criação de regra cobrando publicação ou comu-nicação será legítima.

Enquanto princípio constitucional, a publicidade tem o conteúdo desta espéciede norma jurídica, anteriormente referida como norma jurídica, caracterizada como base do siste-ma jurídico, dotado de um alto grau de abstração, com pouca densidade semântica e maior conteú-do axiológico, e dependente da ação do intérprete para sua aplicação, tendo como função expres-sar valores do povo e do Estado, dar unidade e harmonia ao sistema jurídico e orientar a interpre-tação da Constituição.

Além disso, o conceito de princípio dado por Celso Antônio Bandeira de Melloé bastante significativo para a compreensão da publicidade como tal: princípio

[...] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicercedele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas com-pondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão einteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistemanormativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico (2001, p.771-772).

Assim, a publicidade como princípio constitucional não impõe a publicação e acomunicação de todo e qualquer ato dos órgãos públicos, mas exige que estes o tenham comoorientação de todo e qualquer comportamento, pois, como princípio, a exigência de publicidade énúcleo do sistema jurídico, a partir do qual surgirão todos os demais comportamentos dos órgãospúblicos. Não é a exigência de publicação de um ato tal ou qual, mas a disponibilidade das informa-ções, a possibilidade de acesso às informações às quais todo e qualquer cidadão tem direito.

São relevantes, ainda, as explicações de Lucia Valle Figueiredo (2004, p. 62):“decisões secretas, editais ocultos, mesmo a publicidade restrita ao mínimo exigido por lei (e co-nhecida de pouquíssimos), não atendem, de forma alguma, aos princípios constitucionais e, sobre-tudo, à transparência da Administração”. Depois de tudo o que foi dito sobre princípios constituci-onais, devemos concordar com a autora, visto que estes argumentos são importantes para orientaro aplicador da lei. Significa que o intérprete deve privilegiar sempre a publicidade. Como princípioconstitucional, a publicidade tem essa marca indelével.

6 O artigo 299 do Código Penal dispõe: Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou neleinserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação oualterar a verdade sobre fato juridicamente relevante: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público,e reclusão, de um a três anos, e multa, se o documento é particular. Parágrafo único. Se o agente é funcionário público, ecomete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assento de registro civil, aumenta-se a penade sexta parte.

05-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4368

69

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Marcos Antônio Striquer Soares

2.2 A publicidade como regra constitucional e a necessidade de publicação oucomunicação

A publicidade terá caráter de “regra jurídica” sempre que houver exigência depublicação ou comunicação do comportamento do órgão público. Isto é, decorre de imposiçãoencontrada em norma jurídica. Esta pode trazer a exigência de publicação ou comunicação7 (for-mas de publicidade) ou pode falar, também, em publicidade, genericamente, mas impondo a divul-gação dessa determinada manifestação do órgão público de modo específico, por exemplo, comdivulgação no Diário Oficial.

A Constituição, em algumas passagens, apresenta regras exigindo publicidade.Podemos classificar como regra constitucional o art. 5º, XXXIV, letra b (que autoriza o “direito deobtenção de certidões em repartições públicas”), o art. 84, IV (impõe ao presidente da Repúblicao dever de “fazer publicar as leis”) e o art. 8º, da lei complementar nº95/98 (que contém a exigênciade publicação das leis). Em outros casos, a exigência de publicação ou comunicação (a regra depublicidade) vem fixada em legislação sem status constitucional (nos Códigos de Processo Civil ede Processo Penal, por exemplo). Nestes casos, a regra tem fundamento no princípio da publicida-de, com origem constitucional.

Note-se que a publicidade como regra jurídica, obrigatória em razão de imposi-ção de norma jurídica, deve cumprir o mínimo do que for determinado na norma. Contudo, pararespeitar ao princípio da publicidade, para atender à exigência de transparência implícita no princí-pio, a publicidade advinda de imposição de regra deve ser o mais amplo possível, podendo ostermos estritos da determinação da lei ser insuficiente. O princípio da publicidade exige que ainterpretação amplie o máximo possível as possibilidades de divulgação dos comportamentos doEstado. Assim, a interpretação da regra jurídica que impõe determinada publicidade deve ser am-pliada no sentido de dar maior efeito a essa regra.

2.3 Publicidade resumida

A publicidade dos atos dos órgãos do Estado pode ser resumida. Isto tem sidoencontrado em lei (lei 8.666/93, com a redação dada pela lei 8.883/94 – arts. 21 e 61, § 1º) e,inclusive, na Constituição de São Paulo8 . Contudo, tal possibilidade não abrange todos os compor-tamentos do Estado: “as leis, códigos e outros atos normativos (regulamentos, instruções, regimen-tos) devem ser publicados integralmente”(GASPARINI, 2001, 119).

O enorme número de editais de concursos e licitações a serem publicadosdetermina que se divulgue, nos meios oficiais, apenas resumos daqueleseventos, definindo-se, sempre, onde e quando se poderão obter todos osdados que interessam ao público e que, portanto, têm que ser a ele acessí-veis. Não se rompe, por aqui, o princípio da publicidade por meio de publica-ções em meios oficiais. Apenas não se pode exigir que os custos com aque-las divulgações completas dos atos onerem os cofres públicos (ROCHA,1994, p. 246).

7 Celso Antônio Bandeira de Mello explica que publicação e comunicação são formas de publicidade (Ato administrativo edireito dos administrados, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, p. 47). No mesmo livro, p. 52, o autor apresenta trêsmodalidades de comunicação: a citação, a notificação e a intimação.

8 Constituição do Estado de São Paulo, art. 112: As leis e atos administrativos externos deverão ser publicados no órgãooficial do Estado, para que produzam os seus efeitos regulares. A publicidade dos atos não normativos poderá serresumida.

05-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4369

70

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo

A publicidade resumida não fere o princípio da publicidade (tampouco os prin-cípios republicano e democrático). Ela serve para evitar gastos excessivos, desde que tenha comoconteúdo básico – a publicação oficial – o mínimo de informações necessárias para que o povosaiba do que se trata, o local onde o documento pode ser encontrado na íntegra e, ainda, estar, aíntegra do documento, disponível ao cidadão para consulta (respeitando-se a imposição do “direitoà informação”, art. 5º, XXXIII da Constituição, pelo qual todos têm direito a receber dos órgãospúblicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão pres-tadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescin-dível à segurança da sociedade e do Estado).

Examinando os contratos, Bernardo de Souza (1999, p. 66) explica:

[...] só razões práticas e relevantes de economia fizeram com que não seexigisse a publicação dos contratos, em sua íntegra, na imprensa oficial. Estahomenagem à economia pública, entretanto, não pode redundar em franquiaao segredo, em desatenção ao princípio constitucional da publicidade, nemem violação do direito fundamental de acesso à informação.

Leon Frejda Szklarowsky, num estudo sobre as diversas peculiaridades queenvolvem a publicidade dos contratos administrativos, esclarece que a lei de licitação mandoupublicar todos os contratos, exceto aqueles cuja licitação foi dispensada: “quer a lei que se publi-quem todos os contratos ou seus aditamentos, qualquer que seja o valor ainda que desonerados;entretanto avisa que há uma ressalva, que não pode ser preterida” (1996, p. 97) – da licitaçãodispensada9 . Demócrito Ramos Reinaldo (1998) adverte, porém, que constitui prática inconstitucionala publicação, nos órgãos oficiais, de decisões administrativas de tal modo resumidas que impeçamao povo, em geral, e ao Ministério Público, em particular, cientificar-se de seu conteúdo. “Publicaruma “decisão” ou um ato administrativo sem um mínimo de justificação que possibilite a compre-ensão [...] equivale a não publicar”.

Conforme já salientado por Lucia Valle Figueiredo (2004, p. 62): “mesmo apublicidade restrita ao mínimo exigido por lei”, não atende, de forma alguma, à transparência daAdministração. O respeito às exigências de publicidade prescritas em lei responde ao princípiorepublicano e ao princípio democrático e impõe uma interpretação que dê maior eficácia a estesprincípios. Significa que o intérprete deve privilegiar sempre a publicidade, especialmente quandohouver dúvida na aplicação da “regra” jurídica.

3 PUBLICIDADE PROIBIDA

Conforme se viu, a publicidade nas diversas atividades do Estado brasileiro,desempenhada por seus mais diversos órgãos, é exigência expressa da Constituição. Este é oprincípio, esta é a orientação fundamental, é a orientação geral que atinge todas as situações etodas as pessoas. Contudo, “situações existem nas quais a prévia divulgação das ações a seremempreendidas pode torná-las inúteis” (FERRAZ e DALLARI, 2001, p. 83) ou a divulgação deinformação pode comprometer direito do responsável por ela ou de terceiros. A Constituição abre,assim, exceções a essa orientação geral, permitindo o sigilo.

9 Maria Garcia assevera: “A publicidade é elemento da essência do processo licitatório: se a lei busca preservar o atendimentoao princípio da isonomia no acesso dos interessados à realização das obras, serviços e todas as modalidades ad negotia dosparticulares com a Administração Pública e, por outro lado, garantir a seleção ou escolha da proposta mais vanjajosa aointeresse público – a publicidade dos atos desse processo demonstra-se de fundamental importância.” Depois de analisar oprincípio da publicidade, a autora passa a coteja-lo com as diversas passagens da lei de licitação onde consta exigência depublicidade (Censura e comunicação social, Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n.34, jan./mar.2001, p. 10 e seguintes). Hely Lopes Meirelles é rigoroso, quando trata da publicidade da licitação: “Não há, nem podehaver, licitação sigilosa. Se seu objeto exigir sigilo em prol da segurança nacional, será contratado com dispensa da licitação.Nunca, porém, haverá licitação secreta, porque é da sua natureza a divulgação de todos os seus atos e a possibilidade deconhecimento de todas as propostas abertas e de seu julgamento” (Licitação e contrato administrativo, 11ª ed., São Paulo,Malheiros, 1997, p. 27).

05-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4370

71

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Marcos Antônio Striquer Soares

Registram-se os seguintes dispositivos do art. 5º da Constituição Federal queimpõem restrições à publicidade – trata-se de regras constitucionais: o inciso XXXIII, na partefinal, autoriza o sigilo, como exceção à exigência de publicidade, para os casos em que “sejaimprescindível à segurança da sociedade e do Estado”; o inciso LX trata da publicidade dos atosprocessuais, autoriza restrições à publicidade “quando a defesa da intimidade ou o interesse socialo exigirem”; o inciso XIV, pelo qual é assegurado a todos o acesso à informação, resguarda o“sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”; o inciso XXXVIII, letra b, reconhe-ce a instituição do júri e assegura “o sigilo das votações”. O art. 93, IX, na parte final tambémautoriza o sigilo no Judiciário como exceção: “podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitara presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.Ainda pode ser incluído neste rol o art. 53, § 6º, pelo qual os “deputados e senadores não serãoobrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício domandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações”.

Para Carlos Ari Sundfeld (2003, p. 179) o

sigilo, a autorizar a denegação da informação ou da certidão, só se justificaem duas situações, de caráter excepcional: quando for imprescindível à se-gurança da sociedade e do Estado (ex.: sigilo com relação aos planos milita-res, em tempo de guerra) ou quando a publicidade violar a intimidade dealgum particular (ex.: sigilo, em relação a terceiros, dos dados clínicos depacientes internados em hospital público). Afora esses casos, quem solicitainformação ao Estado tem o direito de obtê-la, o que é mera decorrência dacidadania.

De qualquer modo, o cidadão tem direito de receber informações do Estado10 ,ou por meio do Diário Oficial, ou nos balcões dos órgãos públicos, quando solicitada. A negação depublicidade somente pode ser aceita quando fundamentada na própria Constituição.

As leis infraconstitucionais podem apresentar proibição de publicidade11 , des-de que estejam adequadas às exceções previstas na Lei Maior. Tratando das exceções feitas àpublicidade, Geraldo Ataliba explica que o princípio republicano não permite, nem tolera a existên-cia de ato administrativo secreto: “as ressalvas que o art. 5º da Constituição faz são as mais estritase, como exceção, devem merecer interpretação restritiva” (1991, p. 18-19). Enfim, todo e qualquerdispositivo infraconstitucional que excepciona a exigência de publicidade somente pode ser aceitose e na medida em que estiver adequado às exceções permitidas pela própria Constituição12 .

10 Ainda cabem outras passagens da literatura jurídica para corroborar essa lição: Embora voltado para o campo processual, otexto de Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco diz claramente: “Mas osigilo só pode ser temporário, enquanto estritamente necessário, não podendo sacrificar o contraditório, ainda que diferido”(Teoria geral do processo, 20ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 70). Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “podeocorrer que, em certas circunstâncias, o interesse público esteja em conflito com o direito à intimidade, hipótese em queaquele deve prevalecer em detrimento deste, pela aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre oindividual” (Direito administrativo, 17ª ed., São Paulo, Atlas, 2004, p. 75).

11 Citamos a seguir, apenas como exemplo, alguns dispositivos infraconstitucionais que apresentam exceções à exigência geralde publicidade: Art. 198 do Código Tributário – sigilo de informações com vistas ao melhor desempenho da arrecadaçãofazendária; Art. 155 do Código de Processo Civil – segredo de justiça; Art. 20 do Código de Processo Penal – sigilo noinquérito policial; Art. 792, § 1º do Código de Processo Penal – restrição a publicidade de audiência, sessão ou ato processual;Art. 8º da lei 9.296, de 24-07-96 – referente a interceptação telefônica.

12 Tratando da publicidade do contrato administrativo, Hely Lopes Meirelles explica: “a publicação do contrato é formali-dade exigida pelas normas administrativas, como consectário da natureza pública dos atos da Administração, salvo os queforem previamente considerados sigilosos por razões de segurança nacional. Esclareça-se desde logo que os contratosresultantes de licitação não podem ser sigilosos, porquê, se o fossem, seriam firmados com dispensa de licitação. Mas alicitação e o contrato podem ter anexos classificados como sigilosos em qualquer grau, casos em que esses documentos sóserão entregues aos licitantes e contratados mediante compromisso de manutenção de sigilo” (Licitação e contrato adminis-trativo, p. 178).

05-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4371

72

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo

4 PUBLICIDADE DESNECESSÁRIA

Conquanto a publicidade seja regra indispensável, a partir dos princípios repu-blicano e do Estado democrático de direito, é possível aceitar alguns casos em que não seja neces-sária, por ser impossível ou absolutamente irrelevante. Para Celso Ribeiro Bastos (1992, p. 45), apublicidade, caracterizada como divulgação das decisões administrativas, não é exigida quando asdecisões administrativas têm interesse exclusivamente interno.

Explica Celso Antônio Bandeira de Mello (1981, p. 43)13 que, apesar de nor-malmente a formalização do ato administrativo ser escrita, “pode haver atos administrativos reve-lados de outra forma: verbal ou mímica. Ocorrerá quando a índole dos atos (ordens para assuntosrotineiros, gestos de um guarda de trânsito) reclame estas formas de expressão. Referem-se nor-malmente a atos que requerem execução imediata”

Régis Fernandes de Oliveira (1980, p. 33-34) traz passagem esclarecedora:

Costuma a doutrina falar em atos não produtores de efeitos jurídicos (porexemplo, convites, comunicações etc.). Tais atos, efetivamente, não podemser tidos como administrativos, uma vez que não produzem qualquer efeitojurídico. Mas, se a lei lhe atribui qualquer relevância (efeito) será tido comoato administrativo. Por exemplo, um parecer, ainda que facultativa sua adoção,quando previsto, é requisito de legitimidade de procedimento, sempre quesua audiência seja obrigatória. [...] Não há, pois, necessidade que o atointerfira em esfera jurídica de terceiro. Mesmo os atos internos são tidoscomo administrativos, uma vez que produzem efeitos jurídicos. Assim, asordens dadas de superior a inferior hierárquico constituem-se atos adminis-trativos. [..] O ato pode, pois, ser introverso ou extroverso, alcançando osimples âmbito interno da administração ou repercutindo na esfera jurídicade terceiros. Necessário, no entanto, para ser qualificado como ato adminis-trativo que o sistema normativo lhe atribua alguma relevância.

Assim, não terão, portanto, publicidade, atos não-escritos (ordens verbais, si-nais ou gestos) quando não realizados em público; trata-se de publicidade impossível. Alguns co-municados internos (com alcance no âmbito interno da administração), não-caracterizados comoatos administrativos (e não-incorporados a um processo administrativo), serão, alguns deles, abso-lutamente irrelevantes fora dos órgãos públicos, mas terão importância tão somente para a tramitaçãointerna das decisões da administração.

Também será desnecessária a publicidade quando o indivíduo, antes da publi-cação ou comunicação, praticar o ato exigido. É o que ocorre, por exemplo, quando a parte semanifesta no processo depois da juntada da sentença, mas antes ainda de sua publicação – desdeque não haja direitos indisponíveis em jogo. Em circunstâncias como esta, o gasto público serádesnecessário.

13 Celso Antônio Bandeira de Mello também faz referência a atos administrativos produzidos por sinais (como, por exemplo,o sinal de trânsito) e cartazes convencionais (como por exemplo, os indicadores de mão e contramão), mas não têminteresse direto pelo nosso trabalho, no que diz respeito à publicidade desnecessária, por isto não há que citá-los no corpodo texto.

05-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4372

73

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Marcos Antônio Striquer Soares

5 PUBLICIDADE AUTORIZADA: PROPAGANDA DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS

A última espécie de publicidade que ainda precisa ser exposta é a publicidadedos órgãos públicos, prevista no § 1º, do art. 37 da Constituição. Ali se encontra um tipo totalmentediferente de publicidade. Não se trata de princípio da publicidade, uma vez que este está inserido nocaput do mesmo art. 37. É uma regra constitucional, mas não impõe ao Estado a publicidade detais atos, como condição de seu aperfeiçoamento, ou seja, mesmo que a Administração não tornepúblicas aquelas obras que está realizando, referidas no § 1º, do art. 37, elas existirão e tomarão odevido espaço no mundo real e também poderão gerar conseqüências no mundo jurídico, obvia-mente. É regra jurídica que não impõe uma publicidade, mas “autoriza” a publicidade dos atos,programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos.

O dispositivo constitucional em questão não impõe a publicação ou comunica-ção (formas de publicidade) de todos os atos, programas, obras, serviços e campanhas, porque istoseria inviável economicamente. Por outro lado, esse dispositivo também não obriga a Administra-ção a deixar as informações disponíveis para quem as procure nos balcões dos órgãos públicos,pois esta idéia provém do princípio da publicidade que já consta do caput e não está sendo repetidano § 1º. Consta ali uma permissão para a Administração veicular informações referentes a seusatos, programas, obras, serviços e campanhas sempre que entender necessário levá-las a público,não para divulgar simplesmente, mas cumprindo objetivos específicos.

Os objetivos dessa publicidade indicam a necessidade de interação dos órgãospúblicos com a sociedade, em vista de um ponto específico, uma obra, por exemplo. O objetivopode ser educar, informar ou orientar a sociedade. A interação, nesse caso, não é mera transmis-são de dados, mas pressupõe a necessidade da comunicação de um interesse do governo, isto é,para o bom andamento dos serviços públicos surge a necessidade da sociedade receber tais infor-mações, caso contrário não será preciso levá-las a público. Essa necessidade de interação indicaque a publicidade em questão não é mera divulgação de dados, mas tem por fim incutir na mentedas pessoas tais dados seja para educar, seja para informar ou ainda para orientar a sociedade.Nessa condição, pode-se denominá-la de propaganda dos órgãos públicos, posto que ela tem sem-pre, no fundo, ao menos uma intenção persuasiva.

O § 1º, do art. 37 da Constituição também contém uma regra constitucional.Ele possibilita a “publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicosos quais deverão ter caráter educativo, informativo ou de orientação social”. O dispositivo emquestão determina comportamento específico, não é dotado de alto grau de abstração e exige açãodeterminada, ou seja, a divulgação de atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãospúblicos deverá perseguir uma dentre três finalidades possíveis: educar, informar e/ou propor ori-entações sociais.

Tanto o objeto da publicidade como os objetivos propostos não possuem altograu de abstração, pelo contrário, são verbetes com conteúdo específico e com significado aferívelpor interpretação literal. É regra jurídica, portanto, com grau de abstração reduzido e aplicaçãodireta,14 tem “observância imediata, não necessitando para sua aplicação de qualquer regulamen-tação” (GASPARINI, 2001, p. 129) (tem conteúdo semântico suficiente para incidir diretamentesobre a realidade social). Esta convicção também é encontrada na jurisprudência15 .

14 A regra jurídica inscrita no § 1º, do art. 37 da Constituição é norma jurídica de eficácia plena, nos termos da classificação daaplicabilidade das normas constitucionais proposta por José Afonso da Silva: “são de eficácia plena as normas constitucionaisque: a) contenham vedações ou proibições; b) confiram isenções, imunidades e prerrogativas; c) não designem órgãos ouautoridades especiais, a que incumbam especificamente sua execução; d) não indiquem processos especiais de sua execução;e) não exijam a elaboração de novas normas legislativas que lhes completem o alcance e o sentido, ou lhes fixem o conteúdo,porque já se apresentem suficientemente explícitas na definição dos interesses nelas regulados”. Em seguida, o autorcompleta: estabelecem conduta jurídica positiva ou negativa com comando certo e definido, incrustando-se, predominante-mente, entre as regras organizativas e limitativas dos poderes estatais, e podem conceituar-se como sendo aquelas que,desde a entrada em vigor da constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais,relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quisregular (Aplicabilidade das normas constitucionais, 6ª ed., São Paulo, Malheiros, 2003, p. 101.

15 “AÇÃO POPULAR – Propaganda e publicidade oficial de município – Artigo 37, § 1º, da Constituição da República –Aplicação – Norma de eficácia plena – Desnecessidade de regulamentação – Recurso não provido” – 17ª Câm. Civ. doTribunal de Justiça de São Palulo, JTJ/SP, LEX, v. 166, mar. 1995, p. 9.

05-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4373

74

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo

O § 1º do art. 37 da Constituição também é exemplo de regra jurídica bastantecarregada de conteúdo axiológico. Ao indicar a publicidade como meio de divulgação de atos,programas, obras, serviços e campanhas, e ao estabelecer certos objetivos a serem atingidos (edu-cação, informação ou orientação social), essa regra transmite valores protegidos pela sociedade,os quais devem ser protegidos pela via judicial, quando não observados. A publicidade, no caso,enquanto instrumento de condução dos interesses do Estado, é meio para busca de certos objetivosde governo – objetivos do povo, também, portanto - quais sejam: a educação, a informação ou aorientação social, todos surgidos das decisões de governo que afetam diretamente o povo.

Por outro lado, Eros Roberto Grau (1997, p. 92) explica que é impossível ima-ginar, de antemão, todas as circunstâncias possíveis de aplicação de uma regra, por isso é que elassão enunciadas em linguagem de textura aberta, configurando, mercê da abstração e generalidadeque as caracterizam, um esquema formal potencialmente idôneo a compreender um número inde-finido de casos, sob a única condição de que tais casos sejam redutíveis a tal esquema. Não sepode esquecer, então, que as normas são, por definição, genéricas e abstratas. Princípios e regrasseguem essa linha, sendo possível afirmar, no entanto, que aqueles possuem grau de abstraçãomuito elevado e pouca densidade semântica, ao passo que estas têm menor grau de abstração emaior densidade semântica. Especialmente quanto à regra do § 1º, do art. 37, em questão, a situa-ção não é diferente, ela tem textura aberta para incidir sobre um número indefinido de pessoas eabranger inúmeras circunstâncias reais, ela incide imediatamente sobre o fato concreto. Somentese podem aceitar dois tipos de atos intermediários entre tal dispositivo e sua realização no mundodos fatos: o ato administrativo e/ou uma decisão judicial (quando da correção de ato administrativoirregular).

6 SÍNTESE DAS ESPÉCIES DE PUBLICIDADE

Depois de tudo o que foi estudado sobre a publicidade, no âmbito dos órgãospúblicos, é possível concluir dizendo que, por vezes, encontra-se na Constituição brasileira a exi-gência de publicidade como princípio, por vezes como regra. De qualquer modo, quando se fala empublicidade dos órgãos públicos deve-se enquadrá-la em uma das seguintes possibilidades:

1- Como “publicidade obrigatória” (esta espécie contém duas subespécies: a“publicidade obrigatória com necessidade de publicação ou comunicação”, ou seja, com divulgaçãopelo órgão oficial de imprensa ou por comunicação direta ao interessado – é regra jurídica; e“publicidade obrigatória sem necessidade de publicação ou comunicação”; isto ocorre sempre quea informação ficar à disposição do povo nos órgãos públicos – é princípio constitucional. Quandoobrigados a divulgar seus atos, os órgãos públicos poderão fazer “publicidade resumida”);

2- Como “publicidade proibida” – decorre de disposição expressa da Constitui-ção, sendo regra constitucional;

3- Como “publicidade desnecessária ou impossível”;4- Como “publicidade autorizada”, qualificada como propaganda dos órgãos

públicos ou propaganda governamental – também é regra constitucional.

REFERÊNCIAS

ATALIBA, Geraldo. Eficácia de ato administrativo – publicidade. Revista de Direito Público,São Paulo, v.25, n.99, p.14-21, jul./set. 1991.

BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil:promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1992. t.3, v.3.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

05-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4374

75

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Marcos Antônio Striquer Soares

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6.ed. Coimbra: Almedina, 1993.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portugue-sa anotada. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editores, 1984.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.Teoria geral do processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. São Paulo: Malheiros,2001.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Riode Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administrativo. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

GARCIA, Maria. Censura e comunicação social. Revista de Direito Constitucional e Interna-cional, São Paulo, n.34, p.99-104, jan./mar. 2001.

GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Malheiros,1997.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,2004.

MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros,1997.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ato administrativo e direito dos administrados. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 1981.

______. Curso de direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Ato administrativo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,1980.

REALE, Miguel. Teoria do direito e do Estado. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

REINALDO, Demócrito Ramos. A publicidade dos atos e decisões administrativos. Revista dosTribunais, São Paulo, v.87, n.751, p.91-93, maio 1998.

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. BeloHorizonte: Del Rey, 1994.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6.ed. São Paulo: Malheiros,2003.

SOUZA, Bernardo de. A publicidade dos contratos da administração pública. Interesse Público,Sapucaia do Sul, v.1, n.1, p.47, jan./mar. 1999.

05-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4375

76

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio Constitucional da Publicidade e Propaganda do Governo

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

SZKLAROWSKY, Leon Frejda. A publicidade e os contratos administrativos. Revista de DireitoAdministrativo, Rio de Janeiro, v. 204, p.85-102, abr./jun. 1996.

05-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4376

77

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Mary Silvea Santana Vieira

O PRINCÍPIO DO NÃO-CONFISCO NO DIREITO TRIBUTÁRIO*

Mary Silvea Santana Vieira**

RESUMO

O presente artigo tem como objeto o estudo de não confisco preceituado no artigo 150, IV daConstituição Federal, bem como analisar a sua aplicabilidade, dentro da sistemática tributária bra-sileira. O Princípio do Não-Confisco é uma limitação ao poder de tributar imposta ao Legisladorinfra-constitucional, configurando uma proteção ao contribuinte. Sendo assim, este trabalho preo-cupa-se em delimitar a linha a partir da qual o tributo passa a ter efeito confiscatório.

Palavras-chave: Princípio do Não-Confisco. Contribuinte. Tributos. Limitações ao Poder deTributar.

THE PRINCIPLE OF THE NO CONFISCATION IN THE TAX LAW

ABSTRACT

This article consists in the study of the principle of non-confiscation specified in Article 150, IV ofthe Federal Constitution, and examine its applicability, in the Brazilian tax system. The principle ofnon-confiscation is a limitation to the tax imposed by the Federal Constitution to the infra legislator,setting a protection to the taxpayer. So this article focuses on defining the line from which thetribute will take confiscatory effect.

Keywords: Principle of the No Confiscation. Taxpayer. Taxes. Limiting the Tax Power.

1 INTRODUÇÃO

O objetivo do presente artigo é trazer para reflexão a importância do DireitoTributário ser estudado de forma humanística. É incontestável que não só ele, pois o Direito existepara a proteção dos direitos inerentes à pessoa humana, mas especificamente o Direito Tributáriodeve ser o instrumento de efetivação dos direitos fundamentais e não de sua violação, comofreqüentemente ocorre.

É através do tributo, muitas vezes tido por injusto, que o Estado tem condição eobrigação de redistribuir a riqueza, garantir o mínimo existencial e dar condição aos menos favore-cidos, de uma vida digna, enfim, para fazer valer plenamente os direitos fundamentais de toda asociedade.

O estudo do tema, ora introduzido, necessita de maior aprofundamento. A pou-ca doutrina específica sobre o princípio do não-confisco no direito pátrio revela essa dificuldade.Isto posto, é colocada a seguinte indagação: Será possível mensurar, exatamente ou aproximada-mente, até onde deve o cidadão contribuir sem estar sendo lesado, ou confiscado pelo Estado?Onde passa a linha tênue entre o confisco e o não-confisco?

Qual seria então a carga ideal, pois parece que o Estado é um devorador.Quanto mais aumenta a carga tributária, como se tem visto e sentido nos últimos anos, percebe-seque a contraprestação estatal está cada vez mais caótica e sucateada em se tratando de saúde,educação e segurança.

*O presente artigo é resultado de monografia de conclusão do curso de graduação em Direito, escrita sob a orientação do prof.Ms. Antonio Carlos Lovato.

**Mary Sílvea Santana Vieira, Bacharel em Direito, formada pela UNIFIL e Administradora de Empresas formada pela UEL.

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4377

78

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário

De maneira geral, o conceito de confisco é identificável e tem sido tratadocomo sendo a absorção da propriedade particular pelo Estado, sem justa indenização. Quando issose dá por meio de tributo, está-se diante do confisco em matéria tributária.

A Constituição da República de 1988 (art. 150, inc. IV) preceituou limitaçõesao poder de tributar, trazendo como um desses limites a vedação aos entes federados de utilizartributo com efeito de confisco. É certo também que o Estado, por força de seu poder de império,tem o direito de exigir dos cidadãos contribuições compulsórias para a realização de suas finalida-des de promoção do bem comum. Entretanto, em um Estado Democrático de Direito, esse poder élimitado pelos diversos princípios, direitos e garantias individuais inseridos na Constituição da Repú-blica Federativa do Brasil.

No intuito de esclarecer esses limites, a doutrina pátria tem-se limitado a afir-mar que confiscatório é o tributo que excede a capacidade contributiva, sem, no entanto, fornecercritérios objetivos para sua verificação. A afirmação de que é confiscatório o tributo que aniquilatotal ou parcialmente propriedade particular também não resolve suficientemente o problema, jáque é fácil identificar sua extinção completa, porque representa 100% do bem. Mas, e quanto àmutilação parcial? Qual seria o limite?

Como decorrências dessas indagações, surgem outras não menos interessan-tes: é o tributo, isoladamente considerado, que é confiscatório ou é a carga tributária total suportadapelo contribuinte que atinge as raias do confisco? A vedação constitucional é absoluta ou comportaexceções? A quem é dirigida? Atinge somente os impostos ou aplica-se também às demais espéci-es tributárias?

Para discorrer sobre o tema, serão analisados diversos aspectos jurídicos, atése chegar a conclusão de que só é possível obter o conceito de “não-confisco” mediante o estudode cada caso concreto que se vislumbre pela frente. É somente pela apreciação de cada situaçãoconcreta de instituição de tributo novo ou de aumento de tributo já existente que se poderá verificarse realmente houve respeito ao princípio do “não-confisco”.

O tributo com efeito de confisco, destruindo a propriedade privada, aniquila aprópria base de sustentação do sistema, pois a existência de propriedade privada é a viga mestrapara a própria existência do sistema tributário, pois sem a propriedade privada não há o que setributar.

2 O TRIBUTO

2.1 Conceito e natureza jurídica

O conceito de tributo está explicitado no artigo 3º do Código Tributário Nacio-nal, (CTN), que prescreve de modo adequado as características essenciais e necessárias para aidentificação dessa categoria jurídica, diferenciando-a de outras figuras semelhantes.

Prescreve o artigo 3º: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, emmoeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em leie cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.

Segundo o doutrinador Ruy Barbosa Nogueira (1999, p. 155),

os tributos são receitas derivadas que o Estado recolhe do patrimônio dosindivíduos, baseado no seu poder fiscal (poder de tributar, às vezes consor-ciado com seu poder de regular), mas disciplinado por normas de direitopúblico que constituem o Direito Tributário.

Na concepção de Geraldo Ataliba (2004, p. 53), tributo é:

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4378

79

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Mary Silvea Santana Vieira

a expressão consagrada para designar a obrigação ex lege, posta a cargode certa pessoas, de levar dinheiros aos cofres públicos. É o nome queindica a relação jurídica que se constitui no núcleo do direito tributário, jáque decorre daquele mandamento legal capital, que impõe o comportamen-to mencionado.

Dessa forma pode-se concluir que o tributo consiste de uma obrigação compul-sória, isto é, obrigatória, instituída por lei, representada por um valor em dinheiro e que não consti-tua penalidade por algum ato ilícito.

A natureza jurídica do tributo é definida pelo fato gerador, conforme explícitono artigo 4º do CTN.

Alfredo Augusto Becker (1972, p. 399), discorre sobre o tema, nos seguintestermos:

... o único critério científico jurídico que permite aferir a natureza jurídica dotributo é o critério da base de cálculo (núcleo da hipótese de incidência). Onúcleo (base de cálculo) confere gênero jurídico do tributo e os elementosadjetivos atribuem a espécie jurídica àquele gênero.

O referido autor ainda observa o seguinte na mesma obra (1972, p. 260):

A natureza jurídica do tributo (e a do dever jurídico tributário) não depende dadestinação financeira ou extrafiscal que o sujeito ativo da relação jurídica viera dar ao bem que confere a consistência material ao tributo que foi ou deve serprestado. Nenhuma influência exerce sobre a natureza jurídica do tributo, acircunstância de o tributo ter uma destinação determinada ou indeterminada....

Dessa forma ao se observar o fato gerador de uma obrigação e comparar comas hipóteses autorizadas pela Constituição Federal para a instituição de tributos, é que definirá seaquela obrigação tem caráter tributário ou não.

2.2 Histórico

2.2.1 Histórico dos Tributos no Direito Comparado

Os tributos “provinham do chamado Patrimônio Real, eram obtidos, sob a for-ma de rendimentos, extraídos do patrimônio dominial, cuidados pelos chefes dos clãs, reis ou impe-radores, sob as formas várias, dos dízimos, das vintenas, dos quintos, cisas, etc” (FERREIRA,1986, p. 14).

Segundo o autor Benedito Ferreira (1986, p. 14):

A origem do imposto fiscal remonta a tempos que se perderam no pretéritoda humanidade. Historiadores ilustres, em todas as épocas, invariavelmente,procuraram registrar, ao descreverem usos e costumes das civilizações, osseus sistemas tributários. Heródoto,...escrevendo e informando-nos, a co-brança de impostos em razão do chamado vínculo de Jurisdição Fiscal, aoshabitantes dos antigos impérios que povoaram as regiões dos rios Tigre,Orange e Eufrates, há mais de quatro mil anos, anteriores a Era cristã. Segun-do Heródoto, tributava-se 10% sobre a produção, que se constituíam na“décima” e a quota de contribuição de cada um às despesas do Estado,devida por todas as camadas sociais.

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4379

80

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário

Na Índia tributava-se a exportação de especiarias, produtos medicinais e es-sências, e também a prosperidade da Mesopotâmia teve seu epicentro não só no comércio, masprincipalmente aos tributos impostos aos povos conquistados,

Salomão explorou de forma sábia a estratégica posição geográfica de sua pá-tria, situada entre o Egito e a Mesopotâmia e vários países asiáticos, “que lhe pagavam direitos etaxas sobre as mercadorias que por ali transitavam” (FERREIRA, 1986, p. 15).

Cita ainda o referido autor onde incidiam os tributos na Grécia Antiga:

tributavam as indústrias e profissões, como também, os direitos aduaneiros;aplicavam multas e confiscos, tributos sobre bens e pessoas, rendas oulucros, que atingiam, mais e especialmente, os mil e duzentos cidadãos maisricos. Cresciam as alíquotas na medida das necessidades, especialmente nasguerras.

Com a organização do ordenamento jurídico do Império Romano, o DireitoTributário desenvolveu-se sobremaneira, pois já eram individualizadas algumas espécies tributári-as, como “impostos”.

O já citado autor ainda traz a seguinte informação:

O desmoronamento do fabuloso Império romano, segundo as anotações deSêneca, Plínio e mesmo Montesquieu, teve seu fulcro na desagregação doscostumes, especialmente no terrível desajuste familiar do Patriciado, nasorgias promovidas com os recursos públicos, e que foram gerando a desor-ganização do Estado, e, consequentemente, a desobediência às leis, e, final-mente, a imposição de tributos, com alíquotas cada vez mais insuportáveis,aos contribuintes, aos que trabalhavam e produziam... arbitrariamente, de-cretavam impostos sobre os pobres, sobre as mulheres separadas ou divor-ciadas, sobre os celibatários, sobre os escravos, até as portas estavam sujei-tas à insânia tributária. A seguir, passaram a cobrar imposto sobre o casa-mento e, finalmente, Vespasiano, como Imperador, não tendo, talvez, mais oque tributar, instituiu o imposto sobre a urina (FERREIRA, 1986 p. 16)

Segundo o jurista Aliomar Baleeiro (1969, p. 26),

as Finanças Públicas tiveram desde a Antiguidade, precursores queincidentalmente comentaram aspectos da atividade financeira ou discutirammedidas de política fiscal, muito embora só houvesse logrado a consistênciae a posição de disciplina autônoma no século XIX.

Nas palavras de Aliomar Baleeiro (1969, p. 27), pode-se constatar que:

São Tomás de Aquino (1226-1274) admitia a tributação em caso de escassezdas rendas patrimoniais dos príncipes e aconselhava a constituição do te-souro como reserva para os maus dias. Mateo Palmieri (1405-1475) defendeua proporcionalidade dos tributos contra os critérios progressivos, que arepública florentina então ensaiava. Na Renascença e início da idade moder-na, surgem os pensadores políticos de maior envergadura acentuando acorrelação entre a economia privada e as finanças públicas.

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4380

81

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Mary Silvea Santana Vieira

Saliente-se que Maquiavel, o autor do “Príncipe”, em seus escritos repelia ailimitação dos tributos impostos pelo Estado. Também é importante registrar que o Direito Consti-tucional moderno teve sua raiz principal na Carta Magna de 1215, na Inglaterra Medieval e revelaa idéia de impor limites ao poder de tributar (COELHO, 1999, p. 54).

2.2.2 Histórico dos Tributos no Direito Brasileiro

Segundo Benedito Ferreira (1986, p. 36), um marco importante do histórico dostributos no Brasil foi a vinda de D. João VI para o Brasil, pois em linhas gerais:

Abriram-se os portos ao comércio com todas as nações amigas, promoveu-se a construção de novos portos, melhoraram-se os existentes, fomentou-see protegeu-se a indústria e o comércio interno e externo. Em matéria detributos e sistema fazendário fiscal, embora tenha sido benéfica para o Brasilcomo um todo, a vinda de D. João VI não representou nenhum alívio para oscontribuintes, sendo mantidos, na sua inteireza, os impostos existentes, esobrecarregada mais ainda a carga fiscal. (...) Como a receita não conseguiaultrapassar a casa dos 4 mil contos de réis, através do recém criado Banco doBrasil, tivemos o início do endividamento interno e externo em que nosencontramos até os dias atuais. E, também, a origem da nossa inconseqüente“fúria tributária”, que premia os malandros usuários do “jeitinho” e liquidacom os contribuintes corretos.

Arnaldo Godoy (2003, p.147) disserta, em sua obra Direito e Literatura, oposicionamento de Monteiro Lobato a respeito do Estado, tributo e confisco.

Lobato relutava em entender a miséria que se espargia entre nós, país tãorico de recursos. Defendeu ardentemente o domínio de nossos recursosnaturais, ponderou acerca da função do Estado, defendendo um Estadomínimo, destinado a garantir as liberdades individuais.

Na mesma obra, Arnaldo Godoy cita o livro de Monteiro Lobato, Idéias deJeca Tatu, que faz uma menção crítica e cínica ao fisco, conforme se pode observar; “ao descre-ver a chegada da Família Real portuguesa ao Brasil, Lobato chama a atenção para o desembarquede um personagem: O Fisco - um canzarrão tremendo de dentuça arreganhada – é conduzido noaçamo por vários meirinhos”.

Na seqüência cita também a obra Na Antevéspera, em que Monteiro Lobatofaz críticas ao fisco, narrando o seguinte fato histórico:

Portugal só organizou uma coisa no Brasil - Colônia: o Fisco, isto é, o sistemade cordas que amarram para que a tromba percevejante siga sem embaraços.Quem lê as cartas régias e mais literatura metropolitana enche-se de assom-bro diante do maquiavélico engenho luso na criação de cordas. Cordas tran-çadas de dois, de três, de quatro ramais; cordas de cânhamo, de crina, detucum, de tripa; cordas estrangulatórias de espremer o sangue amarelo ecordas de enforcar (GODOY, 2003, p. 147).

Insurge-se Arnaldo Godoy (2003, p. 148-149), ao comentar sobre a visão deMonteiro Lobato em relação aos tributos. Nesse raciocínio escreve o autor:

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4381

82

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário

Lobato era irredutivelmente agressivo para com o Fisco, que qualificava comos mais negativos impropérios. Escreveu: “Que é o fisco senão um ‘sistemade embaraços’ opostos à livre atividade do homem, que deles só se livra pormeio de entrega ao Estado de uma certa quantidade de dinheiro. (...) A tribu-tação para Lobato, vislumbra iniqüidades que mudam o rumo da história. AInconfidência Mineira é um exemplo, e Lobato sugere outro, tomado dahistória universal, em sua obra Mundo da Lua: “A história da civilizaçãocabe dentro da história do Fisco”. Grandes convulsões sociais, como a Re-volução Francesa, tiveram como verdadeira causa as iniqüidades do Fisco.

Conclui Arnaldo Godoy que o tributo na concepção de Monteiro Lobato temque estar diretamente ligado ao significado de justo e razoável: “A concepção tributária de Lobatoé muito próxima de suas concepções de justiça. Como homem de negócios, de ação pôde Lobatoviver, de experiência própria, os nefastos efeitos de um modelo tributário agressivo e ineficiente”.

3 TRIBUTO NÃO CONFISCATÓRIO

3.1 Conceito de Confisco

O termo “confisco” possui o seguinte significado definido por Plácido e Silva(2004, p. 505): “Confisco, ou confiscação, é vocábulo que se deriva do latim confiscatio, deconfiscare, tendo o sentido de ato pelo qual se apreendem e se adjudicam ao fisco bens pertencen-tes a outrem, por ato administrativo ou por sentença judiciária, fundados em lei”.

Na concepção de Eduardo Marcial Ferreira Jardim (2000, p. 45), o vocábulosignifica: “O ato pelo qual o Fisco adjudica bens do contribuinte.”

No entendimento de Paulo César Bária de Castilho (2002, p. 39):

O comando normativo constitucional proíbe, na verdade, o efeito de confis-co que o tributo, por ser exagerado, desregrado, possa gerar. E isso é assimporque, se tributo é instituto que não constitui sanção de ato ilícito (art. 3. ºdo CTN), a Constituição só poderia referir-se a efeito de confisco e não aconfisco propriamente dito.

É de se salientar que o art. 150, inc. IV, da Constituição da República de 1988não proíbe o confisco em si, mas sim “efeito de confisco”. Nos países capitalistas, é proibido oconfisco, como regra geral, sendo somente permitido como forma de sanção, conforme prevê oart. 5º, inc. XLVI, letra b, da Constituição Federal que traz previsão à perda de bens como forma depena, de acordo com a lei.

3.2 Aspectos Normativos

3.2.1 Aspectos Normativos nas Constituições Anteriores

O desenvolvimento desigual em certas regiões do Brasil1 , na Constituição de1946, levou o constituinte a procurar amenizar esta desigualdade através do aparelho tributário,

1 As regiões brasileiras que estavam se desenvolvendo rapidamente eram as regiões litorâneas e a região sul do país.

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4382

83

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Mary Silvea Santana Vieira

Historicamente, a vedação constitucional aos tributos confiscatórios ou prejudi-ciais à atividade lícita teve origem no direito brasileiro através do art. 202 da Constituição Federalde 1946, de inspiração liberal, que dispunha do seguinte texto: “os tributos têm caráter pessoalsempre que isso for possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuin-te”. A Constituição de 24 de janeiro de 1967 dedica o Cap. V do Tít. I ao sistema tributário nacionalem seus artigos 18 a 28.

Pode-se concluir que somente a Carta Constitucional da República de 1988traz, expressamente, a proibição da utilização de tributo com efeito de confisco, em seu art. 150,inc. IV. Até então, a vedação constitucional era apenas implícita.

3.2.2 Aspectos Normativos na Constituição Federal de 1988

Segundo o doutrinador Mariano Junior (1994, p.75): “A Constituição Federaltraz os princípios de imperatividade maior para que o poder de tributar, pela competência partilhadade cada uma das entidades de direito público dele titulares, possa ser exercido”.

Nas palavras de Mariano Junior (1994, p. 75):

Além da observância e cumprimento das determinações superiores da Cons-tituição Federal e precisamente para que não haja conflitos de competênciaentre as entidades públicas detentoras do poder tributante, cumpram-se aslimitações constitucionais ao poder de tributar e sejam seguidas normasgerais em matéria de legislação tributária, terão que ser cumpridos os precei-tos da lei complementar tributária (Artigo 146, CF/88) que, atualmente, é oCódigo Tributário Nacional Lei Federal nº. 5.172 de 25-10-66).

Assim, o que está preceituado no título VI da Constituição Federal – da tributa-ção e do orçamento – pelos artigos 145 a 156, deve ser rigorosamente observado pela União, peloDistrito Federal, pelo Estado-Membro e pelo Município no exercerem sua competência tributáriade editar lei ordinária própria para seus tributos e no exigirem efetivamente o pagamento de seusimpostos, taxas e contribuições.

3.3 Princípio do Não-Confisco e Direito de propriedade.

No entender do doutrinador Estevão Horvath (2002, p. 40), o fato de um prin-cípio estar explícito, positivado é muito importante quando da sua interpretação ou aplicação noscasos concretos. Segundo o autor, cumpre observar preliminarmente o seguinte:

A circunstância de um princípio estar previsto expressamente é importantepara efeitos interpretativos, ainda que seja para o fim de não se poder afirmarque aquele não está positivado. A evolução histórica dos princípios geraisde direito bem demonstra essa assertiva. Em segundo lugar, consoante tam-bém já se demonstrou, a convivência dos princípios é, no máximo, conflitual,ao contrário do que sucede com as regras, em que ela é antinômica: “osprincípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se” (Canotilho), elespermitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como asregras, à “lógica do tudo ou nada”), consoante o seu peso e a ponderação deoutros princípios eventualmente conflitantes (idem). Assim, não se tratariade procurar uma interpretação isolada a cada um dos princípios, mas sim, desopesá-los, atribuir a cada um deles o seu peso e o seu devido valor. Daí que,ainda que se possa extrair a proibição do confisco de outros princípios, maistradicionais e expressos, a sua formulação no direito positivo pode propici-ar-lhe um alcance maior, ou pelo menos diferenciado com relação àquelesdos quais derivaria.

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4383

84

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário

O confisco é proibido no direito brasileiro, simplesmente pelo fato da propri-edade privada estar protegida, ressalvadas certas exceções contidas no Texto Magno. Contudoa Carta Magna, ao preceituar que é vedado utilizar tributo com efeito de confisco, atribui a estaidéia peculiaridades que não estariam presentes com a simples previsão genérica da vedação aoconfisco.

Nesse diapasão, assevera Estevão Horvath (2002, p. 40-41):

O que estamos buscando significar é que, se a vedação genérica do confiscoestá a proibir que a tributação seja onerosa a ponto de retirar 100% da rendaou do patrimônio de alguém (o que, de per si, é suficientemente óbvio paraprescindir de jurisprudência que o diga), ao vedar-se a “utilização de tributocom efeito de confisco” se estaria ampliando o alcance do princípio, namedida em que não seria confiscatório somente quando se priva a pessoadas suas rendas ou bens por meio da tributação, mas também quando restas-se comprovado que a imposição de que se cuida produziu esse indesejadoefeito.

Ainda segundo o presente doutrinador:

É mais abrangente dizer que se proíbe a tributação com efeito confiscatóriodo que simplesmente dizer estar vedado o confisco. Têm-se a sensação que,com a dicção constitucional, o intérprete se sente mais à vontade para extrairque qualquer tentativa, por mais sub-reptícia que seja, de exacerbar a tribu-tação, aproximando-a do confisco, ainda que parcial, tenderá a enquadrar-sena vedação constitucional.

No que diz respeito ao princípio da capacidade contributiva, a doutrina em geralentende que este princípio deriva do princípio da igualdade, razão pela qual, não precisaria virexpresso na Constituição. Entretanto, com o art. 145, § 1º da Carta Magna e com a forma pela qualele está expresso, outros detalhes interpretativos para o seu conhecimento e aplicação são passí-veis de serem elucidados.

Na pouca doutrina existente acerca da vedação do tributo com efeito de con-fisco, verifica-se que os autores em geral extraem o princípio tributário da vedação do confiscodaquele.

No entendimento de Estevão Horvath (2002, p. 41), “não há antinomia entredireito de propriedade e tributos, já que este é o preço que se deva pagar para viver em sociedade,o que exige sufragar os gastos do governo encarregado de cumprir e fazer cumprir a Constitui-ção”.

Antes de se falar em “quantum” de tributo que possa ser devido, necessário sefaz esclarecer que se estará violando o direito à propriedade e, simultaneamente, o princípio queproíbe o confisco toda vez que se institua um tributo não autorizado pela Constituição Federal.

Desta forma assevera Estevão Horvath (2002, p. 43):

Com efeito, é evidente que a tributação é uma forma de apropriação da pro-priedade do contribuinte. Por isso mesmo, num Estado de Direito, dependeela do consentimento dos cidadãos, para que possa existir. Nesse “consen-timento” ou “autorização” para tributar repousa o princípio da legalidade etêm origem os próprios parlamentos, como conhecemos hoje em dia. Nãobasta, porém, que um determinado tributo seja consentido, mediante a suaaprovação pelo Legislativo. Necessário se faz que o poder de representaçãooutorgado pelo povo ao legislador ordinário seja exercido dentro dos limitesque o legislador constituinte originário impôs, ao inaugurar o novo Estado.

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4384

85

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Mary Silvea Santana Vieira

O professor Roque Carrazza (1999, p. 268) afirma que o princípio do não con-fisco potencializa o direto de propriedade:

... estamos notando que a norma que impede que os tributos sejam utilizadoscom efeito de confisco, além de criar um limite explícito à progressividade –que, de um modo geral, os impostos devem observar ... – reforça o direito depropriedade. Assim por exemplo, em função dela, as alíquotas do impostosobre a renda não podem ser elevadas a ponto de fazerem desaparecer apropriedade do contribuinte.

Estevão Horvath (2002, p. 45) traz a seguinte indagação para posteriorreflexão:

Se o princípio que veda o confisco já está implícito no Texto Constitucionale que esse confisco já estaria proibido pela simples previsão da proteção àpropriedade privada, então qual a razão de ser, qual a importância de sereferir o Texto Magno a ele de modo expresso?

E o mesmo doutrinador, Horvath (2002, p. 45), responde nos seguintes termosabaixo transcritos:

É que ele serve, também, como parâmetro para a elaboração das leis tributá-rias e não pode deixar de ser tomado em linha de conta pelo legislador à horade criar ou aumentar tributo. Juntamente com outros princípios, ele deveatuar para compor o quadro do tributo a ser engendrado, não podendo pairardúvidas acerca da sua existência e operatividade em concreto.

Concluindo, pode-se salientar que o confisco é diretamente ligado ao direito depropriedade, mas o fato do princípio estar positivado deu-lhe uma amplitude maior.

3.4 Princípio do Não-Confisco e Capacidade Contributiva

Antes de tudo, vale lembrar que se desenhar um gráfico e delimitar dois pontos,sendo um ponto a partir do qual o tributo se torna possível e outro ponto onde a tributação não sejamais razoável quantitativamente, torna-se inconstitucional, é inadmissível, entende-se que, no inter-valo entre esses dois pontos, estará delimitada a liberdade de atuação do legislador tributário.Segundo Goldschmidt (2004, p. 160), “esse espaço intermediário representará a capacidadecontributiva”.

Nesse diapasão, Fábio Brun Goldschmidt (2004, P. 162) faz o seguintearrazoado:

a relação necessária entre vedação de efeitos confiscatórios e capacidadecontributiva encontra-se em que os tributos não podem exceder a forçaeconômica do contribuinte”. Deve haver então clara relação de compatibili-dade entre as prestações pecuniárias, quantitativamente delimitadas na lei ea espécie de fato signo presuntivo de riqueza, posto na hipótese legal.

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4385

86

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário

O efeito de confisco pode estar aquém ou além da capacidade contributiva.Quando o tributo estiver aquém da capacidade contributiva ele será confiscatório, pois não estarágarantindo o mínimo existencial ao cidadão, comprometendo assim seus direitos básicos, conflitandocom o preceito constitucional de dignidade da pessoa humana ou também de uma atividade produ-tiva. Dessa forma, “acima da capacidade contributiva haverá desde a mutilação da propriedade(onde se inicia o efeito de confisco) até a sua efetiva aniquilação, com a ocorrência do confiscopropriamente dito” (GOLDSCHMIDT, 2004, p. 162).

3.5 Princípio do Não-Confisco e Princípio da Isonomia

Quando se pensa em tributo com efeito de confisco, vem à mente que se tratade um tributo que seja excessivamente elevado. Mas, como saber se um determinado tributo é defato excessivamente elevado? Qual seria o parâmetro razoável? É aí que se insere a isonomia, istoé, a igualdade. Para qualificar algo necessita-se de um referencial de comparação.

Nesse sentido, argumenta Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 211):

De fato, para adjetivarmos alguma coisa, necessitamos de um termo de com-paração, de algo que seja diferente daquele objeto que se pretende analisar.Absolutamente toda a adjetivação somente se faz possível pela existênciade diferenças, eis que se tudo fosse igual não seria possível a qualificaçãopelo adjetivo.

O conceito de isonomia é bom e também justo, porque oferece ao contribuinteum parâmetro de comparação, que são os demais contribuintes. O muito e o pouco pressupõem umreferencial, uma valoração, assim disserta Fabio Brun Goldschmidt (2004, p. 212): “O muito e opouco são noções cuja apreciação supõe um juízo prévio do que seja “normal”, razoável; e essejuízo prévio só é possível a partir da observação do padrão, para enfim se concluir se uma determi-nada situação está acima ou abaixo da média”.

O princípio do não-confisco proíbe a tributação excessiva dessa forma, pressu-põe o conhecimento do que seja um percentual justo e aceitável de tributação.

Nesse sentido, comenta Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 213):

O sentimento de penalização experimentado pelo contribuinte, quando de-frontado com um tributo com efeito confiscatório, deriva em grande parte danoção de igualdade. Assim, o confronto com a realidade alheia (de um indi-víduo, de um grupo, de um Estado, etc.), o confronto com o nível de retornoque recebe do Estado pelos tributos que paga (em bens, serviços, assistên-cia, previdência, segurança, educação etc.), o confronto com o custo daatividade ensejadora do pagamento, o confronto, enfim, com aquilo que opróprio contribuinte estaria apto a fazer, caso dispusesse do mesmo montan-te pago ao Estado, tudo isso, enfim serve para delimitação da medida daJustiça na tributação (e para a caracterização do efeito de confisco, comoface reversa dessa Justiça).

Assim, pode-se concluir que o impacto e a reação do contribuinte, emface da tributação e seus respectivos reflexos, serão vistos em estatísticas indicativas deevasão, elisão, sonegação, fraude de um modo geral. Trata-se da curva de Laffer2

(GOLDSCHMIDT, 2004, p. 213).

2 A curva de Laffer, consiste em um gráfico desenhado pelo economista americano Arthur Laffer, desenvolvido durante ogoverno Reagan, nos EUA, ao qual pretendeu demonstrar que, a partir de certa medida, cada ponto percentual acrescido àcarga fiscal representará dois pontos a menos na arrecadação, dados os indefectíveis efeitos da sonegação.

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4386

87

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Mary Silvea Santana Vieira

4 VEDAÇÃO AO EFEITO DE CONFISCO POR TRIBUT0 INDIVIDUALMENTEOU PELO CONJUNTO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO

É difícil analisar cada tributo isoladamente para saber se tem efeito de confiscoou não. Quanto à confiscatoriedade do sistema como um todo, no entendimento de Estevão Horvath(2002, p. 82) destaca-se o seguinte:

difícil saber-se a partir de quando um tributo passa a ter efeito confiscatórioda mesma forma que o é detectar a presença da confiscatoriedade no “siste-ma”. Contudo, outra questão afigura-se-nos especialmente difícil de respon-der, qual seja: a admitir-se a confiscatoriedade do sistema, a instituição ou amajoração de qual tributo torna aquele confiscatório?

Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 281)assevera que o fato do Brasil ser umaRepública Federativa, dotada de competência tributária, dificulta a identificação da esfera em queestaria ocorrendo o confisco se nos tributos devidos à União, Estado ou ao Município, havendosempre as excludentes de responsabilidade conforme o autor:

O primeiro problema que se coloca a partir dessa premissa (da possibili-dade de caracterização do efeito de confisco relativamente à totalidadeda carga tributária), contudo, está no fato de vivermos em uma federa-ção, com três esferas de Poder concomitantes e igualmente competentespara instituir e arrecadar tributos. A carga tributária total, assim, seriamuitas vezes formada pela soma das exigências dos três entes tributantes,cada um na medida das suas competências, não havendo um único res-ponsável pela inconstitucionalidade. É possível que cada uma das tribu-tações dos três entes federados, individualmente, seja considerada razo-ável, havendo, contudo, efeito confiscatório quando da aplicação dastrês cargas simultaneamente.

Nos ensinamentos de Fábio Brun Goldschmidt, (2004, p. 282) a tendência dou-trinária mais comum é no sentido de declarar inconstitucional o último tributo instituído, que, adici-onado aos já existentes, causou o efeito de confisco.

de outra parte, há quem sustente que, ultrapassando-se o limite após o quala tributação tem efeito de confisco, haverá que se abaixar todos e cada umdos tributos que contribuem para esse efeito por sua superposição, em au-têntica proporção, até que se alcance o referido limite, de modo que o con-junto não o supere.

Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 283) argumenta que toda essa dificuldadenão pode ser motivo para que o Poder Judiciário esteja como fiscal da Lei, verificando, analisandoe julgando os casos que lhe chegam às mãos:

É certo, contudo, que, em que pesem todas as soluções possíveis serempassíveis de crítica, tal dificuldade não pode servir de pretexto para simples-mente excluirmos a possibilidade de apreciação pelo Poder Judiciário dessaquestão (o que, de mais a mais feriria o art. 5º, XXXV, da CF). Ora, o Estado éuno, ainda que sua administração seja dividida em mais de uma esfera dePoder. Os direitos fundamentais em jogo são os do cidadão, fonte do poderdo Estado, conceito que transcende em muito o de simples contribuinte de

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4387

88

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário

uma dada e específica exigência tributária. Seria, aliás, uma ironia cruel se afederação pudesse servir de escudo para a perpetração de abusos contra opovo brasileiro, em vez de funcionar como um instrumento para a suaproteção e desenvolvimento.

No entender de Paulo César Bária de Castilho (2002, p. 101-102), a cargatributária total é uma questão de política fiscal:

em que pese tenha havido um crescimento significativo da quantidade detributos exigidos no Brasil desde seu descobrimento, em 1500, até a pre-sente data, entendemos que esse volume total é uma questão de políticafiscal, utilizada de acordo com circunstâncias próprias do momento histó-rico vivido.

O que dificulta a visualização do efeito de confisco no sistema tributário é quenão existe um teto máximo explicitado na Constituição, dando margem para muitas interpretaçõese discussões, mas o jurista Ives Gandra Martins (1994, p.141) vislumbra essa possibilidade, confor-me descreve o autor:

na minha especial maneira de ver o confisco, não posso examiná-lo a partirde cada tributo, mas da universalidade de toda a carga tributária incidentesobre um único contribuinte. Se a soma de diversos tributos incidentesrepresenta carga que impeça o pagador de tributos de viver e se desenvol-ver, estar-se-á perante carga geral confiscatória, razão pela qual todo o siste-ma terá que ser revisto, mas principalmente aquele tributo que, quando cria-do, ultrapasse o limite da capacidade contributiva do cidadão. Há, pois, umtributo confiscatório decorrencial. A meu ver a Constituição proibiu a ocor-rência dos dois, como proteção ao cidadão.

Segundo a lição de Fábio Brun Goldschmidt (2004, p. 279), o Supremo TribunalFederal já se manifestou favoravelmente ao confisco quando da totalidade da carga tributária,Assevera o autor:

A caracterização do efeito de confisco decorrente do total da carga tributáriasuportada pelo contribuinte foi vencedora no Supremo Tribunal Federal,consoante se lê do voto do Min. Carlos Velloso na ADIn 2010: “Em primeirolugar, a questão, ao que me parece, deve ser examinada no conjunto detributos que o servidor pagará, no seu contracheque, dado que se trata detributos incidentes sobre o vencimento, salário ou provento

A capacidade contributiva é uma só, um único patrimônio e uma única rendaque respondem pelo pagamento das obrigações tributárias que recaem sobre o sujeito passivo.

Para concluir, entende-se que existe a possibilidade de não só o tributo serconfiscatório, mas todo o sistema tributário ser confiscatório, pois o efeito de confisco está direta-mente ligado ao tributo exagerado, desregrado. A partir do momento em que a carga tributária ficartão alta que desrespeite a capacidade contributiva do cidadão, o sistema tributário na sua totalidadeestará tendo efeito de confisco. O que diferencia um tributo legítimo de um confiscatório é adiferença de grau em que é exigido.

Cabe aqui ressaltar, que essa conclusão está sedimentada também em argu-mentos econômicos e financeiros e não somente em argumentos advindos do Direito Positivo.

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4388

89

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Mary Silvea Santana Vieira

5 CONCLUSÃO

Ao concluir o presente artigo, é importante salientar que as normas de DireitoTributário devem ser interpretadas em consonância com os direitos fundamentais e não contra ocidadão. Assim o sistema tributário deve ser destinado à construção da plena cidadania. As normasestão vigentes, o que está faltando é uma maior efetividade a elas, tendo o ser humano como centrode todo o sistema.

O Estado necessita de recursos financeiros para consecução de seus fins, quaissejam: promover o bem social, a felicidade coletiva. A competência tributária para criar e exigirtributos, portanto, decorre do poder de império do Estado, contudo, é regrada, limitada pela própriaConstituição da República.

Na linha da história do Brasil, vê-se que a carga tributária aumenta ano a ano,e a contraprestação devida pelo Estado está a cada dia pior. Os limites ao poder de império doEstado são delineados pelos princípios, direitos e garantias individuais preceituados na própria Cons-tituição, entre eles os princípios republicano, da igualdade, da legalidade, da capacidade contributiva,da progressividade, da razoabilidade e o direito de propriedade.

Entende-se por confisco a apreensão de bens do particular pelo Estado sem adevida indenização. Quando o confisco se dá por meio de tributo, retirando a totalidade ou parcelaconsiderável da renda ou do patrimônio do contribuinte, está-se diante de um confisco tributário.

O confisco em matéria tributária é, em regra geral, indireto. É por isso que aConstituição veda a utilização de tributo com efeito de confisco. A vedação constitucional à utiliza-ção de tributo com efeito de confisco é uma das maiores conquistas da sociedade moderna, geradapela luta incessante em busca da cidadania e da justiça.

A natureza jurídica do art. 150, inc. IV, da Constituição da República de 1988 éde limitação constitucional ao Poder de Tributar; é dirigida ao legislador para que ele, ao legislarsobre matéria tributária, tenha como pressuposto o não confisco, é um não fazer, uma regra nega-tiva, limitando a competência tributária dos entes da Federação (União, Estados e Distrito Federal,Municípios).

O objetivo principal dessa norma constitucional não é garantir o direito de pro-priedade, que já está assegurado expressamente pelo art. 5.º, inc. XXII, e pelo art. 170, inc. II, daCarta Política de 1988, mas sim limitar o Poder de Tributar.

Existe a possibilidade de não só o tributo isoladamente ser confiscatório, mastodo o sistema tributário ser confiscatório, pois o efeito de confisco está diretamente ligado aotributo exagerado, desregrado. A partir do momento em que a carga tributária ficar tão alta quedesrespeite a capacidade contributiva do cidadão, retirando a totalidade ou parcela considerável darenda ou do patrimônio do contribuinte, o sistema tributário, na sua totalidade, estará tendo efeito deconfisco. O que diferencia um tributo legítimo de um confiscatório é a diferença de grau em que éexigido.

Notório é, que apesar do artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal, vedar ainstituição de tributo com efeito conficatório e não estar expressamente incluída no princípio amulta confiscatória, mesmo diante da diversidade da natureza jurídica de ambos, pode-se afirmarque além da multa conficatória ferir o princípio do não-confisco esta fere também o direito depropriedade como também o princípio da proporcionalidade.

Este tem sido o entendimento doutrinário e jurisprudencial, inclusive do Supre-mo Tribunal Federal, mas o tema merece um outro estudo mais aprofundado e específico.

Pode-se perceber que longe está de ser pacífica a abrangência do princípiotributário do não confisco. Chega-se mesmo a dizer que ele não passa de um mero enunciado daConstituição, sem muita aplicação concreta, dada a dificuldade desta sua colocação em práticae o grau de subjetivismo que a sua interpretação acarreta. De acordo com as apontadas dificul-dades, crê-se que o simples fato de o não confisco ser identificado como princípio constitucionalleva à necessidade de ser ele estudado e aplicado, como ocorre com qualquer outro princípioconstitucional.

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4389

90

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário

REFERÊNCIAS

ATALIBA, G. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973.

BALEEIRO, A. Uma introdução a ciência das finanças. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1969.

BRASIL. Constituição Federal. 1969.

______. Constituição Federal. 1988.

______. Código Tributário Nacional. São Paulo: Saraiva, 2005.

CARRAZZA, R. Curso de Direito Constitucional Tributário. 16. ed. São Paulo: Malheiros,1999.

CASTILHO, P. C. B. Confisco Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

COELHO, S. C. N. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

FERREIRA, B. A história da tributação no Brasil (causas e efeitos). Brasília: [s.n] 1984.

GODOY, A. S. de M., Direito e literatura: anatomia de um desencanto - desilução jurídica emMonteiro Lobato.Curitiba: Juruá, 2003.

GOLDSCHIMIDT, F. B. O princípio do não-confisco no direito tributário. São Paulo: Revistados Tribunais, 2003.

HORVATH, E. O princípio do não-confisco no direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002.

JARDIM, E. M. F. Dicionário jurídico tributário. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2000.

MARIANO JUNIOR, J. Lições de Direito tributário. Campinas: Copola Livros. 1994.

MARTINS, I. G da S. O Sistema Tributário na Constituição de 1988. 15. ed. rev. atual. SãoPaulo: Saraiva, 1998.

NOGUEIRA, R. B. Curso de Direito Tributário. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

SILVA, P. Vocabulário jurídico. v. 1. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

06-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4390

91

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Osmar Vieira da Silva

O CONTEMPT OF COURT (desacato à ordem judicial) NO BRASIL

Osmar Vieira da Silva*

RESUMO

O presente artigo pretende trazer à comunidade jurídica uma reflexão a respeito do instituto docontempt of court (desacato à ordem judicial) nos países da common law e sua introdução aoordenamento jurídico brasileiro, contendo expressa previsão do dever de cumprir com exatidão osprovimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natu-reza antecipatória ou final, como forma de imprimir maior eficácia às decisões judiciais.

Palavras-chave: Contemp of Court. Desacato. Descumprimento. Embaraço. Ato Atentatório.

O CONTEMPT OF COURT (disregard to the judicial order) IN BRAZIL

ABSTRACT

The present article intends to bring to the legal community a reflection regarding the institute ofcontempt of court (disregard to the judicial order) in the countries of common law and its introductionto the Brazilian legal system, contends express forecast of the duty to fulfill with exactness attorneyprovisioning and not to create embarrassments to the accomplishment judicial provisioning, of finalanticipation nature or, as form to print greater effectiveness to the sentences.

Keywords: Contemp of Court. Disregard. Not Accomplishment. Embarrassment. Offensive Act.

1 INTRODUÇÃO

Ganha relevância a questão do desacato à ordem judicial, denominada no direi-to anglo-saxão como contempt of court e introduzida no ordenamento jurídico brasileiro no art. 14,do CPC, através da Lei 10.358/2001 e, também, dos seus pressupostos, como o descumprimentodos provimentos mandamentais e embaraços à efetivação dos provimentos judiciais de naturezaantecipatória ou final.

A necessidade de aplicação do preceito se dá em face da crise de autoridadepela qual passa o Poder Judiciário que busca, na utilização de meios capazes, tornar eficazes asdecisões emanadas

Por essa razão, esse trabalho busca uma maior reflexão a respeito de tãoimportante instituto, desvendando-o na sua origem e analisando os seus pressupostos no ordenamentopátrio para, ao final, tratar da incidência da multa a todos aqueles que de alguma forma atuam noprocesso, com a absurda exceção dos advogados.

* Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Coordenador do Curso de Direito daUniFil e Advogado.

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4391

92

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil

2 O CONTEMPT OF COURT

2.1 Breve Histórico do Instituto nos Países do Common Law

O instituto do contempt of court1 (ASSIS, 2003, p. 20) tutela o exercício daatividade jurisdicional, nos países da common law, e existe desde os tempos da lei da terra. O poderde contempt of court, reconhecido aos órgãos judiciários do Reino Unido e América do Norte,consiste no meio de coagir à cooperação, ainda que de modo indireto, através da aplicação desanções às pessoas sujeitas à jurisdição, e a primeira referência à sua aplicação remonta ao ano de1187, em hipótese de réu que não atendeu à citação (ASSIS, 2003, p. 19).

O poder de o juiz exigir e impor acatamento às suas determinações, decorren-tes da parcela de soberania que lhe é conferida, parece essencial à subsistência da ordem, nas suasesferas legítimas de governo e da justiça. Segundo James Oswald (apud ASSIS, 2003, p.19),nenhuma corte ou tribunal carece de vindicar sua própria autoridade, dignidade e respeito.

Segundo relato de Ada Grinover (2001, p. 222), a origem do contempt of courtestá associada à idéia de que é inerente à própria existência do Poder Judiciário a utilização demeios capazes de tornar eficazes as decisões emanadas. É inconcebível que o Poder Judiciário,destinado à solução de litígios, não tenha o condão de fazer valer os seus julgados. Nenhumautilidade teriam as decisões, sem cumprimento ou efetividade. Negar instrumentos de força aoJudiciário é o mesmo que negar sua existência.

Na Inglaterra, a configuração básica do instituto emergiu de voto do Juiz Wilmot,publicado depois de sua morte, em 1802. Tratava-se da publicação de libelo por um livreiro chama-do Amon contra a Chief Justice Lord Mansfield. Em síntese, o poder de contempt, na concep-ção do Juiz Wilmot, decorria da possibilidade de qualquer corte vingar sua própria autoridade,prendendo ou multando quem a desafiasse em caráter público. Na América, o Judicial Act de1789, alterado em 1821 para dirimir incertezas, conferiu a todo tribunal análoga competência. Emtodos os casos, sob as mais variadas situações em que examinou o problema, a Suprema Cortesempre preservou a autoridade judicial. Apesar das críticas e da criação, em 1970, de um Comitêpara reexaminar o tema e propor reformas, o poder de erradicar a obstrução à Justiça permanecena sua feição original (ASSIS, 2003, p. 19).

Para o direito anglo-saxônico, o contempt of court significa a prática de qual-quer ato que tenda a ofender um tribunal na administração da justiça ou a diminuir sua autoridadeou dignidade, incluindo a desobediência a uma ordem. O contempt of court se divide em criminale civil, sendo que o criminal destina-se à punição pela conduta atentatória praticada, enquanto ocivil destina-se ao cumprimento da decisão judicial, usando para tanto meios coercitivos. É possívelque uma conduta desrespeitosa seja passível, ao mesmo tempo, de contempt civil e criminal, sejano processo civil, seja no processo penal.

No contempt criminal (punitivo), o processo, autônomo, sumário, é instauradode ofício ou por provocação da parte interessada; no civil (coercitivo), a aplicação ocorre nosmesmos autos, mediante provocação do interessado, garantida a ampla defesa. Admite-se transa-ção sobre o contempt civil. As sanções ensejadas pelo contempt, em qualquer de suas modalida-des, são a prisão, a multa, a perda de direitos processuais e o seqüestro. No civil, a punição é portempo indeterminado, até que haja o cumprimento da ordem judicial. Se a decisão se tornar deimpossível cumprimento, a sanção também deve cessar, motivando, entretanto, o contempt crimi-nal. A multa pode ser compensatória, ou não. Quando compensatória, reverte ao prejudicado;quando coercitiva, reverte ao Estado, considerado o grande prejudicado pela recalcitrância. Aprisão, aplicada com prudência, é considerada medida de grande praticidade para a efetividade doprocesso (GRINOVER, 2001, p. 104).

1 O contempt of court no direito brasileiro. Não há tradução precisa na língua portuguesa para a palavra contempt, retratandoa exata acepção do vocábulo. Às voltas com problema similar, na língua espanhola, a doutrina escudou-se no costume paratraduzi-la como “desacato”.

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4392

93

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Osmar Vieira da Silva

O contempt civil, destinado ao cumprimento das ordens judiciárias, pode serdireto ou indireto. O direto autoriza o juiz a prender imediatamente o recalcitrante, concedendo-lheum prazo para justificar sua conduta. O indireto exige um procedimento incidental que, no contemptanglo-saxão, obedece aos seguintes requisitos: a) prova da ocorrência da ação ou omissão; b) quea ordem judiciária determine com clareza a ação ou omissão imposta à parte; c) que a parte sejaadequadamente informada sobre o teor e a existência da ordem judiciária; d) que a ordem judiciáriadesrespeitada seja de possível cumprimento. A citação e a oportunidade de ser ouvido são atributosessenciais do procedimento. Com a citação, a pessoa deve ser informada das condições dentro dasquais o atendimento à ordem judicial resultará na revogação das sanções. Após a apresentação dasrazões, o juiz decide, apreciando as provas produzidas, considerando ou não a parte em contempte impondo uma sanção condicionada, a incidir no caso de a parte resistir em não cumprir a ordemdesobedecida. Finalmente, a sanção imposta é concretamente aplicada, se o contemptor não cum-prir a ordem (GUERRA, 1998, p. 104).

Aumenta o interesse da comunidade jurídica nacional pelo estudo dosordenamentos anglo-saxões, na esperança de que, sob sua influência, sejam introduzidos mecanis-mos processuais mais ágeis e efetivos no direito processual civil pátrio, capazes de “imprimir maioreficácia ao funcionamento da máquina judiciária e, em termos genéricos, à atividade de composi-ção de litígios” (BARBOSA MOREIRA, 2001, p. 155-156).2

Segundo Patrícia Pizzol, depois de mencionar o “potenciamento” dos poderesdo juiz, introduzido também pelo parágrafo único do art. 14, diz que a doutrina brasileira tem postoem relevo como se vem verificando uma aproximação entre os sistemas do common law e do civillaw, também porque aquele resguarda os poderes do juiz.3

Nesse contexto insere-se a doutrina do contempt of court. A sua grande im-portância nos países que a adotam indica a profunda distância – em termos de autoridade e supe-rioridade – entre o papel confiado ao Poder Judiciário no common law, em oposição ao que lheatribui o civil law. A sua adoção no direito processual civil brasileiro surge, pois, como algo a seralcançado, como uma possível resposta à “crise de autoridade” do Poder Judiciário.

A inobservância de uma ordem (injunction) proferida por um juízo ou tribunalpode se dar em várias circunstâncias. Pode ocorrer um mero equívoco do jurisdicionado em rela-ção ao significado e extensão do que lhe foi imposto, um descuido ou desatenção no seu cumpri-mento, ou, ainda, intenção deliberada de descumpri-la e confrontá-la. Para todas essas hipóteses, ocommon law coloca à disposição dos juízos e tribunais uma ampla gama de meios e procedimentosde execução para que a autoridade, o respeito e a dignidade confrontados pelo ato de insubmissãosejam restaurados.

Os tais meios e procedimentos de execução podem simplesmente assumir umcaráter reparatório e esterilizador, alertando o jurisdicionado de que o ato por ele praticado vai deencontro à decisão judicial legítima proferida, dando-lhe a chance de purgar sua mora e eliminar oestado de insubordinação. Esse alerta destina-se a acelerar a submissão do jurisdicionado e vemnormalmente acompanhado de uma sanção temporária, que deve perdurar pelo tempo necessáriode seu convencimento e integral subordinação.

Por outro lado, os meios e procedimentos de execução podem assumir umcaráter punitivo, especialmente diante de atos praticados reiteradas vezes e irreversíveis. Nessescasos, a sanção aplicável não se destina à modificação de um estado de inadequação comportamentaldo jurisdicionado recalcitrante, mas à sua instrução e a dos demais jurisdicionados, das conseqüên-cias danosas de um ato de insubmissão e afronta à justiça.

2 Tem acusado notável interesse, nos últimos tempos, entre os juristas da família ‘romano-germânica’, o interesse pelosordenamentos anglo-saxônicos. Na esfera doutrinária, vozes robustas apregoam a conveniência, senão a necessidade, deredesenhar sistemas processuais, com os olhos fitos em modelos ingleses e sobretudo norte-americanos, mesmo ao preço decancelar ou relegar a nível mais modesto o papel de antigas tradições, cultivadas na Europa continental e transmitidas aospaíses dela tributários no resto do planeta. Não falta quem deposite na absorção de elementos característicos daquela outrafamília uma grande esperança de imprimir maior eficácia ao fundamento da máquina judiciária e, em termos genéricos, àatividade de composição de litígios”.

3 La dottrina ha messo in relevo come si stia verificando un‘aprossimazione tra i sitemi del common law e del civil law, ancheper quel Che riguarda i poteri del giudice.” (trad. livre)

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4393

94

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil

Tal qual no civil law, no common law há toda uma ampla gama de meios eprocedimentos distintos de execução de ordens judiciais. Considerando-se que uma série de meiose procedimentos alternativos de execução de ordens se encontram disponíveis para os tribunais, ainstauração de um processo de contempt of court por descumprimento não se justifica para todosos casos de inobservância de uma ordem judicial.

Processos de contempt of court por descumprimento resultam mais comumenteda inobservância de uma ordem que, por suas características, somente possa ser cumprida – oudescumprida – pelo jurisdicionado a quem foi endereçada. Podem ser, ainda, executadas, por meiode processo de contempt of court por descumprimento, ordens que imponham ao jurisdicionado,obrigações de fazer ou não fazer – conteúdo positivo ou negativo (BUENO, 2005, p. 133).

A injunction – termo que pode bem ser traduzido por “mandamento judicial” –é a modalidade mais solene de ordem proferida por um tribunal e os jurisdicionados têm o dever deobservar estritamente os seus termos, cumprindo-os, na forma e no tempo indicados.

Pode acontecer de processos serem suspensos com base em um compromissoassumido por uma das partes de praticar ou abster-se de praticar um ato em benefício da outraparte. Esse compromisso tem a mesma força de uma ordem proferida pelo juízo no tribunal. Con-seqüentemente, sua violação importa em contempt of court da mesma forma como uma violaçãode um mandado judicial (injunction).

Importa ressaltar que, para o processamento do contempt of court pordescumprimento, é preciso demonstrar que uma ordem judicial, que imponha o cumprimento deobrigação positiva ou negativa “específica”, foi ou está na iminência de ser descumprida. Paratanto, exige-se uma interpretação estrita e precisa de seus termos, e quando a conduta exigida ouproibida não puder ser claramente identificada e delimitada a partir dos termos contidos na ordemjudicial, o processo de contempt of court por descumprimento não pode prosperar (BUENO,2005p. 134).

Não é essencial que a conduta passível de caracterizar a inobservância seja,especificamente, a da parte a quem a ordem foi dirigida. Quando, por exemplo, a parte no feito foruma pessoa jurídica, a conduta dos que a representam, na qualidade de diretores ou administrado-res, deve ser examinada e servirá de base para a caracterização ou não do ato de contempt ofcourt por descumprimento. O princípio da responsabilidade objetiva, portanto, aplica-se em taiscasos, de modo que a parte obrigada pela ordem é responsável pelas ações ou omissões de qual-quer agente seu que esteja a agir dentro do escopo de suas funções ou encargos.

Com relação ao seu papel coercitivo por descumprimento, prossegue Julio CésarBueno que os processos de contempt of court por descumprimento podem ter uma ou ambas asfunções distintas: (a) execução da ordem judicial; e (b) punição por descumprimento. Quando apretensão do juízo ou tribunal for compelir o contemnor a executar a ordem, a sanção imposta serácoercitiva. Diferentemente da sanção punitiva, a sanção coercitiva é aplicada não como conseqü-ência de um determinado ato, mas para provocar um determinado ato; não como conseqüência deum comportamento humano, mas como o meio necessário para induzir um determinado comporta-mento.

Segundo Alexander Pekelis, a magnitude de sua pressão é medida não pelo quefoi feito (seja a atrocidade do crime ou outros elementos), mas pela resistência a ser vencida.Quando a vontade (de desobedecer) do que foi submetido à sanção esmorece, a coerção devecessar. O juiz que determina a prisão do contemnor participa de uma luta ativa contra a vontadedeste (do contemnor), e assim que este mude a sua atitude deve ser solto (PEKELIS, 1943, p.673).4

4 Tradução livre: “The magnitude of this pressure is measured not by what has been done (be it the heinousness of the crimeor other elements) but the resistance to the overcome. Once the will of the person subject to treatment is spent, coercionceases. The judge gaoling the reluctant party engages in an active struggle with the will of the latter, and as soon as hechanges his attitude he is freed

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4394

95

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Osmar Vieira da Silva

Por fim, considerando-se a variedade de mecanismos de execução disponíveispara o juízo ou tribunal, em especial os de caráter sub-rogatório, tem-se como desnecessária ouinadequada a aplicação da doutrina do contempt of court para obrigar o jurisdicionado ao cumpri-mento de todo e qualquer caso de descumprimento. É princípio básico da doutrina do contempt ofcourt que a função coerciva da sanção por contempt of court por descumprimento não deve serempregada para executar decisões judiciais quando existem outros meios disponíveis para tanto, ouo ato de contempt of court por descumprimento, ao mesmo tempo possa ser enquadrado e sanci-onado por outro meio colocado à disposição do juízo ou tribunal.

Para a responsabilização do contemnor e a aplicação de sanção, alguns requi-sitos são necessários. Primeiramente, é indispensável que haja uma ordem, proferida pela Corte,que seja clara e plenamente inteligível, e que especificamente determine a uma das partes noprocesso que faça ou se abstenha de fazer alguma coisa. A ordem não pode ser ambígua etambém não pode haver dúvida de que o contemnor foi adequadamente cientificado de seustermos. Ademais, deve haver prova inequívoca do descumprimento da ordem pelo contemnor oudemonstração da forte plausibilidade de sua iminência. Isso tudo para que o contemnor não logreêxito ao alegar ampla ignorância ou desconhecimento de todos os termos da ordem proferida(HAZARD JR., 1993, p. 203).

As sanções aplicáveis aos contempt of court por descumprimento, como meioexecutivo impróprio, de modo geral apresentam um espírito orientador e disciplinador, conexo àidéia do pleno respeito às atividade de administração da justiça. Objetivam, assim, induzir ou com-pelir o contemnor a um determinado comportamento perante a Corte, ativo ou passivo, a fim deque a pretensão à adequada prestação jurisdicional seja, a final, satisfeita ((HAZARD JR., 1993, p.202-203).5

2.2 O Contempt of Court no Brasil

Com o advento da Lei 10358/2001, a reforma do art. 14 do CPC implantou umeficaz mecanismo visando a coibir o contempt of court, genericamente entendido como desacatoà ordem judicial.

Em profundo artigo, afirma Luiz Rodrigues Wambier que, originariamente, aregra do art. 14 versava apenas os deveres das partes e seus procuradores. Com a reforma,ocorreu a inserção do parágrafo único, em que foi implantada no sistema processual brasileirofigura até então desconhecida. Trata-se da figura do ”responsável” pelo descumprimento de or-dem processual. Por outro lado, houve também a inserção de novo inciso (V), no art. 14, contendoexpressa previsão do dever de cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criarembaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Em razão dainclusão do referido dispositivo legal, os deveres de boa conduta processual foram estendidos paraalém das partes e de seus procuradores, alcançando todos aqueles que de qualquer forma partici-pam do processo (WAMBIER, 2005, p. 36).

Vai ainda mais além João Batista Lopes, ao asseverar a respeito da questão dadesobediência às ordens judiciais, tratando especificamente da regra dos arts. 600 e 601, que já étempo de se cogitar da introdução, entre nós, de medida semelhante ao contempt of court, parapermitir, nesses casos, a prisão civil por atentado à dignidade da justiça. O autor também defendea constitucionalidade da medida e afirma que sua efetiva aplicação depende do atendimento aoprincípio do contraditório.6

5 Não cabe contempt of court para a efetivação de ordens de pagamento de valor. Tais ordens criam uma responsabilidade parao obrigado, que deverá ser satisfeita pelos modos próprios de execução.

6 Nem se objete que a prisão estaria inquinada de inconstitucionalidade. É que a Lei Máxima proíbe, tão-somente, a prisão pordívida; não a resultante de atentado à dignidade da Justiça. Claro está que a medida seria precedida de intimação pessoal dodevedor para dar explicações ao juiz ou defender-se da imputação formulada pelo credor, com o que se atenderá à garantiado contraditório.

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4395

96

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil

O desenvolvimento da sociedade brasileira, todavia, sensivelmente perceptívelnas últimas décadas, até mesmo em razão da inserção de novos direitos e da disseminação dainformação, fruto próximo da democracia, fez com que a prestação de tutela jurisdicionaldescompromissada, isto é, prestada pelo Estado sem atributos ou mecanismos capazes de garantirsua real operação no plano dos fatos, seja tida, em nossos dias, como muito próxima de suainexistência, pois o que se quer garantir é o direito à obtenção de provimentos que sejam capazesde promover, nos planos empírico e do direito, as alterações requeridas pelas partes e garantidaspelo sistema jurídico. Não mais basta – repita-se – a mera tutela formal dos direitos (WAMBIER,2005, p.38).

E o legislador já deu o primeiro passo (a multa - o segundo deverá ser a prisão)na direção de que a partir da edição da Lei 10.358/2001, não mais se admite a ineficácia doprovimento judicial, causada por descumprimento de provimentos mandamentais e embaraços àefetivação de provimentos judiciais que se constituam em desacato à ordem judicial (contempt ofcourt).

3 DESCUMPRIMENTO DOS PROVIMENTOS MANDAMENTAIS

Ao falar em provimentos mandamentais, o novo inciso reporta-se à disciplinada execução das obrigações específicas, contida nos arts. 461 e 461-A; provimentos de naturezaantecipatória, disciplinados pelos art. 273 e; cumprimento da sentença, de acordo com o art. 475.

Sendo os arts. 273 e 461 destinados a acelerar os resultados práticos do pro-cesso, é natural que todo empenho faça o legislador para que esses próprios dispositivos sejamcapazes de produzir tais resultados, independentemente da boa - vontade do obrigado ou de quemquer que seja e até mesmo mediante punição a quem se opuser à sua efetivação. Daí os devereséticos explicitados no inc. V do art. 14, acompanhados de grave sanção ao seu descumprimento(art 14, par.).

Segundo Candido Rangel Dinamarco, o novo texto não fala de sentençasmandamentais, antecipatórias ou finais, mas em provimentos mandamentais antecipatórios oufinais. São provimentos em direito processual, todos os atos portadores de uma vontade doEstado-Juiz, às vezes acompanhado de alguma determinação no sentido de realizar ou omitiruma conduta (DINAMARCO, 2002, p. 488). Dada essa amplitude do gênero próximo em que seincluem as sentenças judiciais (provimentos), o inc. V do art. 14 do Código do Processo Civilabrange não só as sentenças, mas também os demais provimentos que o juiz emitir, e que tenhamnatureza mandamental (sentenças, decisões interlocutórias ou mesmo despachos)(DINAMARCO, 2002, p. 60).

Asseverando o autor, que o dever de não embaraçar se aplica a todos,assim afirma:

O dever de cumprir, obviamente, é exclusivo do sujeito que for titular daobrigação de fazer ou de entregar, que haja sido objeto de determinaçãojudicial. O de não embaraçar tem eficácia erga ommes. Infringe o inc. V nãoapenas aquele que, tendo o dever de dar efetividade ao provimento ou o decontribuir para sua efetivação, deixa de fazê-lo ou cria dificuldades ilegíti-mas à sua efetivação; infringe-o também quem quer que, mesmo não tendodever algum relacionado com essa efetivação, interfere no iter de suaprodução mediante condutas que a impossibilitem ou dificultem(DINAMARCO, 2002, p. 60).

Não cumprir o decisório de uma sentença condenatória comum, como a queimpõe um pagamento em dinheiro, significa somente permanecer em situação civil de inadimplemento,sujeitando-se a futura execução e, talvez, a algum agravamento pecuniário da obrigação.

Não cumprir um provimento mandamental, no entanto, é “desobedecer” – e

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4396

97

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Osmar Vieira da Silva

toda desobediência a atos estatais comporta a reação da ordem jurídica e dos agentes do poderpúblico (no caso, o Estado-Juiz), seja no sentido de punir o infrator, seja para coagi-lo legitimamentea cumprir.

Provimentos finais, no processo de conhecimento, são as sentenças. Provi-mentos antecipatórios são atos decisórios com os quais o juiz oferece, em caráter provisório, notodo ou em parte, os resultados práticos que a parte espera obter no processo. Nem toda sentençae nem toda decisão interlocutória pode, contudo, ser considerada como de cumprimento obrigatórioe coativo por parte da parte vencida, para os fins desse dispositivo e das sanções cominadas à suatransgressão. Nem mesmo toda sentença de mérito é portadora de um comando tão enérgico,como são as mandamentais. É o caso das sentenças que condenam a pagar dinheiro, das constitutivasem geral e das que julgam improcedente a demanda do autor.

Quanto às “condenações de conteúdo pecuniário”, o mero descumprimentonão passa da continuação de um inadimplemento que já vinha desde antes e, uma vez proferida acondenação, passa a ser sancionado com os atos inerentes à execução por quantia certa – e nãomediante repressões ou as pressões psicológicas inerentes ao art. 461 e seus parágrafos.

O que se está falando é do dever de cumprir. É claro que, com relação a essassentenças, existe o dever de não criar embaraços, que hipoteticamente pode ser transgredidomediante a subtração ou ocultação dos autos pelo devedor ou seu patrono, pela retenção emcartório e sonegação ao advogado do credor, pela omissão do empregador do obrigado por pensõesalimentícias (não efetuando as retenções determinadas pelo juiz), etc. As condutas desleais e des-respeitosas ao Poder Judiciário, quando cometidas pelo devedor ou seu patrono no curso da execu-ção, incidem nas sanções cominadas pelo Código de Processo Civil aos atos atentatórios à dignida-de da Justiça, tipificados em seu art. 600.

Ocorre que, embora a primeira parte do § 1º do art. 656 do CPC, inserido pelaLei 11.382/2006, diga que, pelo descumprimento do art. 600, IV, aplica-se a pena do 601, a suasegunda parte faz referência expressa à aplicação do art. 14, § único, na hipótese do executadoque cause embaraço à realização da penhora e, quiçá, à efetivação dos provimentos judiciais. Poridêntica razão, defende-se a aplicação da parte final do inciso V do art. 14 no caso do empresárioque, de alguma forma, abuse no exercício do direito da personalidade jurídica, escondendo os bensda empresa em seu nome próprio e fazendo incidir o art. 50, do cc – desconsideração.

Portanto, o raciocínio de Dinamarco acrescenta que, por força do enunciado nasegunda parte do § 1º do art. 656, não se deve criar embaraços apenas às sentenças, sejam elas dequal natureza forem, mas também a quaisquer outros provimentos judiciais (segundo o autor, trata-se de gênero onde também se incluem as sentenças).

A sentença de condenação não sujeita o devedor a uma ordem do juiz, quecomo autoridade estatal determina seu adimplemento. A condenação – conforme adverte Montesano– não transforma os deveres privados em sujeição à autoridade estatal, ainda que abra oportunida-de à utilização de instrumentos de direito público para a satisfação dos direitos subjetivos; o deve-dor condenado continua apenas civilmente obrigado perante o credor, e não vinculado a uma ordemdo juiz (MARINONI, 2000, p. 354).

Marinoni (2000, p. 356) espanca qualquer dúvida que possa existir entre a es-sência da sentença mandamental e condenatória que meramente declara, ao afirmar que a senten-ça seria condenatória apenas porque impõe uma prestação. Uma mera “sentença de prestação”,entretanto, não pode ser confundida com a sentença condenatória, que é indissociavelmente ligadaà força do Estado. Portanto, a sentença que impõe uma prestação, mas não se liga à “sanção” émeramente declaratória.

Note-se que a diferença reside na força que se empresta à obediência da or-dem de mando. Para Marinoni, uma sentença não é mandamental apenas porque manda, ou orde-na mediante mandado. A sentença que “ordena”, e que pode dar origem a um mandado, mas nãopode ser executada mediante meios de coerção suficientes, não pode ser classificada comomandamental. A mandamentalidade não está na ordem, ou no mandado, mas na ordem conjugadaà força que se empresta à sentença, admitindo-se o uso de medidas de coerção para forçar odevedor a adimplir. Só há sentido na ordem quando a ela se empresta força coercitiva; caso contrá-rio, a ordem é mera declaração. Da mesma forma que a condenação só é condenação porque

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4397

98

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil

aplica a “sanção”, a sentença mandamental somente é mandamental porque há a coerção(MARINONI, 2000, p. 356).

Além disso, ao tratar da questão no plano estrutural e sistemático, argumentouMandrioli que não há execução forçada se não há o superamento de um obstáculo e a invasãocoativa da esfera de autonomia do devedor (MARINONI, 2000, p. 357).

Para Marinoni (2000, p. 358), a sentença condenatória abre oportunidade paraa execução, mas não executa ou manda; a sentença mandamental manda que se cumpra a presta-ção sob pena de multa. Na condenação há apenas condenação ao adimplemento, criando-se ospressupostos para a execução forçada. Na sentença mandamental há ordem para que se cumprasob pena de multa; há um “mandado”, que não se confunde com o mandado que será expedido, jáque o juiz “manda” que se cumpra e não apenas exorta ao cumprimento, fixando a base paraexecução forçada. Na sentença mandamental não há, note-se bem, apenas exortação ao cumpri-mento; e há ordem de adimplemento que não é mera ordem, mas ordem atrelada à coerção. Umasentença que ordena sob pena de multa já usa a força do Estado, ao passo que a sentença quecondena abre oportunidade para o uso dessa força.

É de se notar que, da mesma forma que tais conceitos se aplicam à sentençamandamental, o inciso V, do art. 14, se refere aos provimentos mandamentais, aos quais também sedeve aplicar os instrumentos de efetivação do direito material contidos no parágrafo único do art.14, do CPC, bem como e principalmente, à efetivação dos provimentos judiciais.

Quem pretende ver inibida a prática de um ilícito pede ordem sob pena de multae não apenas mandado. O que varia do mandamento para a condenação é a natureza do provimen-to; o provimento condenatório condena ao adimplemento, criando o pressuposto para a execuçãoforçada, ao passo que o provimento mandamental ordena sob pena de multa. O critério que sepermite definir a mandamentalidade é meramente processual. O que define a mandamentalidade éa possibilidade de se requerer ordem sob pena de multa (MARINONI, 2000, p. 359).

Na busca de uma definição da decisão pretendida pelo litigante, sempre seobservou o pedido imediato, porém, lembram Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda AlvimWambier que a noção de sentença mandamental não se refere à espécie de pedido do autor, massim ao “fato de a providência pleiteada prestar-se a proporcionar uma garantia in natura aoimpetrante” (WAMBIER, 2005, p. 25).7

A principal característica dessa espécie de sentença é a ordem nela contida.Assim, o juiz não condena simplesmente ao cumprimento de uma obrigação, mas expede um man-dado com uma ordem para que seja cumprida sua determinação.

Para Ovidio Batista da Silva (2000, p. 336),

a ação mandamental tem por fim obter, como eficácia preponderante da res-pectiva sentença de procedência, que o juiz emita uma ordem a ser observa-da pelo demandado, em vez de limitar-se a condená-lo a fazer ou não fazeralguma coisa. É da essência, portanto, da ação mandamental que a sentençaque lhe reconheça a procedência contenha uma ordem para que se expeçaum mandado. Daí a designação de sentença mandamental. Nesse tipo desentença, o juiz ordena, e não simplesmente condena.

Segundo observa Daniel Assumpção Neves (2003, p. 51), em virtude de talcaracterística, decorrem dois importantes efeitos: O primeiro é a absoluta desnecessidade de açãode execução autônoma para efetivação da decisão. A satisfação do vencedor dá-se de formaimediata já com a expedição do mandado contendo a ordem para o cumprimento da obrigação, sema necessidade de qualquer formação posterior de nova relação processual, nova citação, novadefesa, etc. O segundo, por ser uma ordem do juiz, e não uma mera condenação, o descumprimentoé considerado como desobediência ao ato do juiz, autoridade estatal. Dessa forma, poder-se-ia atétipificar tal conduta penalmente.

7 Breves comentários à 2ª Fase da Reforma do Código de Processo Civil..

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4398

99

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Osmar Vieira da Silva

Se ordens existem é para serem cumpridas, não necessitando haver normaexpressa para demonstrar tal obviedade. O problema é que, embora óbvia a obrigatoriedade decumprimento das ordens judiciais, verifica-se muito desrespeito por parte daqueles que deveriamcumpri-las no caso concreto. Assim, diz-se o óbvio para prever a tal dever uma sanção, que infe-lizmente parece ser, nos tempos atuais, o único meio – e nem sempre eficaz – de evitar o absurdodesrespeito às ordens judiciais (NEVES, 2003, p. 52).

4 OS EMBARAÇOS À EFETIVAÇÃO DE PROVIMENTOS JUDICIAIS

Nos exatos termos do contido no par. único do art. 14, todo aquele que dealgum modo atue no processo poderá ser declarado responsável pela frustração (embaraço) inte-gral ou parcial do resultado da prestação jurisdicional, vale dizer, pelo desacato à decisão judicial(ou, se preferirmos, pelo contempt of court).

O texto legal não se refere exclusivamente ao comportamento das partes, deseus advogados, dos auxiliares do juízo, etc., mas, expressamente, faz referência a “todos aquelesque de alguma forma participem do processo”.

Segundo Luiz Rodrigues Wambier, estarão causando embaraço à efetivaçãodos provimentos jurisdicionais todos os atos ou omissões, culposos ou não, que criem dificuldadesde qualquer espécie ao alcance do resultado prático a que está vocacionado o provimentojurisdicional. A responsabilidade prevista no art. 14 se assemelha à responsabilidade objetiva, eisque prescinde, para sua declaração, da presença de culpa. Verificando o embaraço à efetivação doprovimento, a norma poderá ser aplicada ao responsável, sem a necessidade da verificação dapresença de culpa em seu agir (WAMBIER, 2005, p. 4).

Recentemente, mais precisamente em 20 de janeiro de 2007, entrou em vigor aLei 11.382. De acordo com o § 1º do art. 656 do CPC, é dever do executado abster-se de qualqueratitude que dificulte ou embarace a realização da penhora, nos procedimentos de execução detítulo extrajudicial, sob as penas do art. 14, parágrafo único.8

Tal previsão vem reforçar o comando previsto na parte final no inciso V do art.14 do CPC, o qual também prescreve que é dever das partes e de todos aqueles que de qualquerforma participam do processo não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natu-reza antecipatória ou final, sob as penas previstas no parágrafo único do mesmo artigo.

Segundo Fredie Didier (2003, p. 08), a distinção entre provimentos antecipatórioe final, como é intuitivo, não diz respeito ao conteúdo que encerram, pois aquele visa exatamenteantecipar efeitos somente obtidos após este; o provimento antecipatório, portanto, abrevia o tempopara a obtenção de efeitos materiais inicialmente alcançáveis apenas com o provimento final –sentença ou acórdão. Aquele será fundado, no mais das vezes, em cognição sumária; este, emexauriente.

Tutela final é aquilo que se pretende do Poder Judiciário – tutela jurisdicional,resultado prático favorável, obtenível pela técnica condenatória, declaratória, constitutiva,mandamental ou executiva, alcançada no sistema brasileiro, em regra, após o trânsito em julgadoda sentença. Tutela antecipatória é aquela que concede à parte o resultado prático que ele procuraobter da tutela final, antes do momento inicialmente projetado para tanto (JORGE, 2005, p. 08).

Segundo Marinoni, a tutela antecipatória contrapõe-se à tutela cautelar, quetambém não se enquadra no conceito de tutela final, porquanto visa dar a esta segurança – emborase possa construir a idéia de que a tutela cautelar é a tutela final do processo cautelar. A tutelacautelar, ainda que provisória e fundada em cognição sumária – semelhanças que mantém com atutela antecipatória, dela se diferencia; enquanto a cautelar apenas o garante, a tutela antecipatóriaatribui o resultado (ou parte dele) útil do processo; uma não é satisfativa, a outra sim (MARINONI,1998, p. 88-110).

8 § 1º, do art. 656, do CPC (Lei 11.382 de 06/12/2006: É dever do executado (art. 600), no prazo fixado pelo juiz, indicar ondese encontram os bens sujeitos à execução, exibir a prova de sua propriedade e, se for o caso, certidão negativa de ônus, bemcomo abster-se de qualquer atitude que dificulte ou embarace a realização da penhora (art. 14, parágrafo único).

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:4399

100

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil

Entende-se, como Fredie Didier (2003, p. 09), que o inciso V do art. 14 tambémse aplica aos provimentos cautelares, pela identidade manifesta da ratio, sob pena de se afirmarque uma decisão judicial em sede cautelar é menos digna de respeito do que uma decisão emprocesso de conhecimento ou de execução. A permissão da fungibilidade das medidas antecipatóriae cautelar confirma a tese ora defendida. Ressalte-se, ademais, que as providências cautelares sãotomadas, geralmente, por meio de provimentos mandamentais ou executivos.

Como o inciso V do art. 14 estabelece, na sua segunda parte, o dever de não embaraçaro cumprimento de provimentos judiciais finais e antecipatórios, verifica-se a postura ativa de im-pedir que os provimentos tenham eficácia, sejam eles finais ou proferidos durante o trâmite pro-cessual.

Preferiu o legislador, pelo menos à primeira vista, não limitar a natureza dos pronuncia-mentos e nem seus sujeitos passivos no que se refere à não criação de obstáculos à efetivaçãodos pronunciamentos do juiz. Por se tratar de dever de caráter negativo, o dever de não embara-çar o cumprimento dos pronunciamentos judiciais é amplo e irrestrito, atingindo a todos, com ver-dadeiro efeito erga omnes.

Fala o inciso V do art. 14 em pronunciamentos judiciais de natureza antecipatória e fi-nal. Como se percebe, foge-se da classificação, tão criticada, levada a efeito pelo artigo 162 doCódigo de Processo Civil. Não menciona o dispositivo de lei se é despacho, decisãointerlocutória ou sentença, deixando margem ao operador a constatação de quais espécies depronunciamentos do juiz seriam esses de natureza antecipatória e final. Parece que quanto aopronunciamento de natureza final não surge qualquer dúvida, tratando-se de sentença, ou aindaacórdão, decisão colegiada do Tribunal.

O legislador ao mencionar os efeitos antecipatórios, estaria limitando-se aos provimentosdisciplinados pelos artigos 273 e 461 do Código de Processo Civil, e alguns procedimentos espe-ciais (liminar). Nesses casos, o provimento antecipa faticamente os efeitos do provimento final edefinitivo.

Segundo Daniel Assumpção Neves (2003, p. 36), sempre que concedida uma liminar ouuma tutela antecipada, tratar-se-a de provimento de natureza antecipatória. No processocautelar, a única diferença é que a antecipação não é dos efeitos que o reconhecimento do direi-to material do autor geraria, até mesmo porque esse não se discute nem se decide em sedecautelar. Mas é inegável que a liminar antecipa os efeitos provenientes da sentença cautelar,sendo, portanto, antecipatória da tutela cautelar.

Afinal, enquanto as liminares em geral entregam ao autor a fruição de um direito materi-al que só virá de forma definitiva na sentença, a liminar da cautelar entrega ao requerente aproteção cautelar de forma antecipada, garantindo-se assim a eficácia do resultado do processoprincipal. Assim sendo, a tutela cautelar pode ser concedida de duas formas: provimento de na-tureza final (sentença cautelar) e provimento de natureza antecipatória (liminar).

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43100

101

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Osmar Vieira da Silva

5 A MULTA DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 14 DO CPC

O Código de Processo Civil prevê alguns atos considerados como litigância de má-fé ouatentatórios à dignidade da justiça: deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei oufato incontroverso (art. 17, I); alterar a verdade dos fatos (art. 17, II); usar o processo para con-seguir objetivo ilegal (art. 17, III); proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato doprocesso (art. 17, V); fraudar a execução (art. 600, I); opor-se maliciosamente, à execução, em-pregando ardis e meios artificiosos (art. 600, II).

Tais deveres – das partes e de seus procuradores - sempre tiveram como sanção o pa-gamento de multa pecuniária, ou então a responsabilização pelos danos causados pela atitudeabusiva, conforme determinam os artigos 18 e 601 do CPC. Os valores dessas sanções são to-dos revertidos em favor da parte contrária, supostamente prejudicada com o ato considerado demá-fé. Esquecia-se que o Estado, como responsável pela entrega de uma prestação jurisdicionalde qualidade, também era seriamente prejudicado com tais atos, vendo seu poder enfraquecidoperante os jurisdicionados.

Com o inciso V do art. 14, o atentado ao exercício da jurisdição permite que a multareverta para os cofres da União, do Estado ou do Distrito Federal. Ressalte-se que, se a multanão for quitada no prazo dado pelo juiz, será incluída na Dívida Ativa do Estado ou da União,dependendo da demanda ter seu trâmite perante a Justiça Estadual ou Federal, o que caracterizadesde já prejuízo ao infrator, ainda que a Fazenda não ingresse imediatamente com a ação exe-cutiva.

5.1 Os Destinatários e a Exclusão dos Advogados

Assim preceituam o art. 14, V e seu parágrafo único do Código de ProcessoCivil:

Art. 14 (caput): São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquerforma participam do processo:

...omissis

V - : cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embara-ços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.

Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamen-te aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigoconstitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem pre-juízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao respon-sável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da condutae não superior a 20% (vinte por cento) do valor da causa; não sendo paga noprazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da cau-sa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado.

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43101

102

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil

Do enunciado do caput, verifica-se uma responsabilidade processual queabrange não só as partes, assistentes e intervenientes em geral, como também seus advogados,o próprio juiz, o Ministério Público, a Fazenda Pública, os auxiliares da justiça e as testemunhas– dos quais, sem exceção, exigem-se comportamentos conforme a lealdade e a boa-fé, fiéis àverdade dos fatos, sem abusar de faculdades ou poderes, etc. Mas o enunciado legal que àprimeira vista parece depender apenas de uma singela exegese literal, suscita no mínimo trêsquestões polêmicas.

A primeira questão que se coloca e que foi profundamente debatida por LuizFernando Bellinetti e Elmer da Silva Marques (2006, p. 72) destinatário da multa: esta deveráincidir sobre a própria Fazenda Pública, isto é, sobre a pessoa jurídica de direito público, ou deveráincidir sobre o servidor público, aqui incluídas as autoridades, inclusive as que são titulares decargos eletivos?

Ocorre que o cumprimento da ordem emitida não está, na maioria absoluta doscasos, afeito à discricionariedade de um único servidor público: este pode depender de atos alheiosà sua vontade, como a atuação de um superior hierárquico, da aprovação de medidas pelo PoderLegislativo etc.

Segundo Luiz Fernando Bellinetti (2006, p. 84) de ser resolvida da seguinteforma: quando se tratar de ordem a ser cumprida por uma única pessoa, ou, em outras palavras,que dependa da atuação de um único servidor público, a multa deve incidir sobre essa pessoa. Istoé mais facilmente detectável no mandado de segurança, que é movido contra autoridade públicaespecífica, que esteja atuando de forma a praticar atos ilícitos.

Se a multa recaísse única e exclusivamente sobre a pessoa jurídica de direitopúblico, poderia incutir na autoridade ou servidor público o entendimento de que não seria respon-sável pelo pagamento da multa.

Araken de Assis (2003, p.30) bem demonstrou o caráter psicológico da multasobre os servidores públicos:

[...] no caso de descumprimento à ordem judicial, travestida de provimentomandamental (art. 14, V, do CPC), o servidor e o agente públicos sujeitam-seà pena do art. 14, parágrafo único. A sanção se dirige ao ‘destinatário precípuoda ordem’. Ora, tais pessoas, cujo comportamento se subordina ao princípioda legalidade (art. 37, caput, da CF/88), se revelam suscetíveis à ameaça damulta.É pouco provável que desafiem o órgão judicial, arrostando a conse-qüência de se verem apenados. Razões individuais, a exemplo da promoçãoiminente e o amor próprio, tornam o servidor apegado à rotina inflexível documprimento espontâneo. Depois, transitada em julgado a decisão, a inscri-ção da multa como dívida ativa do Estado ou União, e, em seguida, a execu-ção da respectiva certidão, constituem atos de competência de outros servi-dores, nada propensos a deixar de praticar atos de ofício para eximir colegasdesconhecidos, ainda mais sob fiscalização sempre aterrorizante do Minis-tério Público. Assim, a ameaça é real e efetiva, atingindo os objetivos datécnica da pressão psicológica.

Segundo Luiz Guilherme Marinoni, caso a multa incidir sobre a pessoa jurídicade direito público, apenas o seu patrimônio poderá responder pelo não-cumprimento da decisão.Entretanto, não há cabimento na multa recair sobre o patrimônio da pessoa jurídica, se a vontaderesponsável pelo não cumprimento da decisão é exteriorizada por determinado agente público. Nãohá procedência no argumento de que a autoridade pública não pode ser obrigada a pagar a multaderivada de ação em que foi parte apenas a pessoa jurídica. É que essa multa somente poderá serimposta se a autoridade pública, que exterioriza a vontade da pessoa jurídica, não der atendimentoà decisão. Note-se que a multa somente pode ser exigida da própria autoridade que tinha capacida-de para atender à decisão e não a cumpriu (MARINONI, 2004, p. 662).

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43102

103

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Osmar Vieira da Silva

A obediência às decisões judiciais é imperativo para a mantença do EstadoDemocrático de Direito e a ordem pública e, ademais, se a prisão por descumprimento de ordemjudicial recai sobre a autoridade pública que descumpriu a ordem, com maior razão a multa pecuniáriatambém deverá recair sobre a autoridade. Vale, aqui, o conhecido adágio de que quem pode mais,pode menos.9

Em sentido semelhante, também proferido em ação de revisão de pensão, oTribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi expresso ao determinar que “as penalidades previstasna legislação, na hipótese de descumprimento de ordem, recairá [sic] sobre o servidor público quenão lhe der cumprimento: tratando-se de sentença mandamental dirigida contra servidor público,eventual desobediência sujeita-o às penalidades previstas na legislação”.10

Segundo Bellinetti e Elmer Marques, se a prisão por descumprimento de or-dem recai sobre a pessoa da autoridade ou servidor público, igualmente a multa deverá incidirsobre a pessoa física que, por culpa sua, não deu cumprimento à ordem judicial. O fato de aautoridade ou servidor público não ser parte do processo não a impede de ser responsabilizada pelonão cumprimento da ordem advinda do processo que não atua como parte. Em primeiro lugar,porque deve a autoridade ou servidor público cumprir a ordem judicial na medida em que atuacomo agente da pessoa jurídica de direito público. Em segundo lugar, agindo a autoridade ou servi-dor público com culpa (lato sensu), e causando prejuízo ao Erário, deve ser responsabilizada porseus atos, nos termos do art. 37, § 6º da CF/88. Trata-se de situação análoga à que consta no art.362 do CPC, que prevê a emissão de ordem a terceiro para que exiba documentos necessários emprocesso no qual não atua como parte, havendo previsão, inclusive, de responsabilidade criminal(BELLINETTI, 2006, p. 88).

A segunda questão advém da polêmica para se saber se a multa pode seraplicada ao juiz. É interessante a idéia de Tereza Wambier (2002, p. 35), segundo a qual, “estãoincluídos nos rigores da nova regra os magistrados que, por qualquer motivo, dificultem, por exem-plo, o cumprimento de cartas de ordem ou precatórias, desde que sua conduta seja determinantepara o esvaziamento do resultado concreto do provimento judicial”, porém, acredita ser muitodifícil, do ponto de vista prático, dar aplicação tão ampla a essa punição, afinal, quem aplicaria asanção se o autuado preside o processo?

A terceira polêmica reside na expressa exclusão dos advogados, pois, enquantotramitava no Congresso Nacional, foi alterada a proposta de redação do parágrafo único do art. 14.A redação anteriormente sugerida, mais lacônica, permitia que se vislumbrasse a sua incidênciatambém para punir a conduta do advogado.

Para Fredie Didier Jr. (2003, p. 02), a redação do parágrafo único do art. 14 doCPC apenas aparentemente exclui os procuradores da incidência do referido dispositivo. Trata-sede falsa impressão. A um, porquanto a menção a tantos quantos participem do processo sejagenérica o suficiente para englobar, também, os causídicos; a dois, porque o título do capítulopermanece o mesmo: “Dos deveres das partes e dos seus procuradores”. A referência aos advo-gados desapareceu porque se tornou desnecessária com a inclusão desta nova parte final do caput.

O que o autor quer dizer é que apenas se aplicam os quatro primeiros incisosaos advogados, visto que o parágrafo único apenas os exclui da incidência da multa com relaçãoaos fatos previstos no inciso V.9 Acórdão ou sentença transitada em julgado. Parcelas posteriores. Pagamento. Caráter mandamental da decisão. Desobedi-

ência. Prisão. Possibilidade. A decisão judicial de revisão de pensão é mandamental no que atina com os pagamentos dasparcelas posteriores ao transito em julgado. Precedentes do STJ. O não-pagamento importa em desobediência à ordemjudicial, pois implantar e não pagar e como não-implantar. Servidor ou agente público é passível de sanção pelo crime dedesobediência à ordem judicial. Precedentes do STJ. A obediência às decisões judiciais é imperativo para a mantença doEstado Democrático de Direito e a ordem pública. (TJRS – Ag. Reg. 70002992162 – rel. Des. Adão Sérgio do NascimentoCassiano – j. 24.04.2002). No mesmo sentido: Direito processual penal. Denúncia contra prefeito municipal. Imputação decrime de responsabilidade. Descumprimento imotivado de ordem judicial. Fatos descritos. Subsunção ao tipo penal indicado.Denúncia formalmente perfeita. Ordem judicial contida em liminar de mandado de segurança. Indicadas as provas documen-tais comprobatórias da intimação judicial e do teor da ordem nela contida. Inocorrência de qualquer das hipóteses de rejeiçãoda denúncia (art. 43/CPP). Inexistência de qualquer das causas de extinção de punibilidade. Afastadas as justificativasapresentadas na resposta do denunciado. Não demonstrada a entrega direta ao vereador impetrante dos documentos cujajuntada aos autos foi determinada. Denuncia recebida. Ulterior prosseguimento do feito nos termos do art. 7. E segs. Da lein. 8.038/1990. (TJPR, Ac. 16761, Proc. 0152569-9, rel. Des. Luiz Mateus de Lima, 2ª Câm. Crim., j. 16.09.2004) (nossosgrifos)

10 TJRS ApCív e Reex. Nec. 70002763704, 2ª Câm. Cív., rel. Des. Maria Isabel de Azevedo Souza, j. 12.09.2001.

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43103

104

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil

Sugere Tereza Wambier (2002, p. 19) que o título do capítulo deveria ser alte-rado para “Dos deveres dos participantes do processo”.

Leciona Tucci (p. 25) que a falta profissional grave, inclusive aquela passívelde ser emoldurada nos quadrantes do novo art. 14, quando detectada pelo magistrado, deve sercomunicada à Ordem dos Advogados do Brasil para as devidas providências. Cita como exemploa regra do art. 196 do CPC, que se apresenta, nesse particular, clara e precisa, ao dispor ser: “...lícito a qualquer interessado cobrar os autos do advogado que exceder o prazo legal. Se, intimado,não os devolver dentro em 24 (vinte e quatro) horas, perderá o direito à vista fora do cartório eincorrerá em multa, correspondente à metade do salário mínimo vigente na sede juízo. Apurada afalta, o juiz comunicará o fato à seção local da Ordem dos Advogados do Brasil, para o procedi-mento disciplinar e imposição da multa” (TUCCI, 2002, p. 25).

O art. 88 do estatuto processual italiano assevera que, diante de atos de má-féprocessual, compete ao juiz apenas informar aos órgãos administrativos aos quais estão subordina-dos os advogados para que a estas instâncias caiba aplicar eventuais sanções disciplinares.11

De acordo com José Rogério Cruz e Tucci (2002, p. 27), inseridos no mesmoplano hierárquico, o advogado e o juiz jamais devem externar, na prática do respectivo ofício,qualquer ressentimento pessoal. Todavia, o advogado e o juiz, que são homens como quaisqueroutros, têm sentimentos profundos. Não são raras as ocorrências, em época contemporânea, querevelam as dificuldades que emergem do relacionamento advogado-juiz. É por essa razão que sejustifica plenamente a exceção atinente aos advogados, uma vez que, nas mãos de juízes rancoro-sos, a inovação legislativa, se lhe fosse aplicável, acabaria sendo um instrumento de ameaça e deconstrangimento para o livre exercício da advocacia. O ato decisório de índole jurisdicional, comoemanação do poder estatal de que se reveste o juiz, constitui, portanto, instrumento deveras perigo-so quando conspurcada, por qualquer motivo de ordem material ou espiritual, a imparcialidade quenecessariamente deve exornar a administração da justiça.

Segundo Dinamarco (2003, p. 68), a emenda que fizeram no texto original, quese associa à expressa imunização dos advogados à sanção cominada no novo parágrafo do art. 14,teve o nítido intuito de deixá-los também a salvo de toda disciplina ética processual, contida noCódigo de Processo Civil, e do controle judicial de possíveis infrações. Essa é, porém, uma arbitra-riedade que só pela lógica do absurdo poderia prevalecer. Chegaria a ser inconstitucional dispensá-los de toda carga ética, ou de parte dela, somente em nome de uma independência funcional quedeve ter limites. Pelo teor explícito e claro das primeiras palavras do parágrafo do art. 14, o advo-gado não fica sujeito à multa ali cominada, mas a lógica do razoável manda que ele fique sujeito atodos os deveres elencados no capítulo e à responsabilidade por litigância de má-fé, nos termos dosart. 16 e 18 do código de Processo Civil.

Para Fredie Didier Jr. (2003, p. 16-17), a inexistência de vírgula após a palavra“advogados” poderia indicar que se estaria diante de uma oração subordinada restritiva. Para oreferido autor, houve apenas um pecadilho gramatical do legislador: os advogados, tout court,estão excluídos da incidência da multa judicial. Isto porque realmente não haveria sentido emestabelecer esta capitis deminutio para os advogados públicos – seria, sem dúvida, desigualaçãodescabida, pois se deve interpretar o dispositivo conforme a Constituição, sem a cogitada discrimi-nação, que se afigura absolutamente irrazoável.12

Em linha de coerência, pelos mesmos argumentos, prossegue o referido autorque não poderá o magistrado aplicar esta multa ao membro do Ministério Público, que possuiautonomia/independência funcional garantidas constitucionalmente. Poderá, entretanto, tomar asmesmas providências, mutatis mutandis, no sentido de comunicar ao órgão do Parquet competen-te, a prática, por um membro seu, de condutas supostamente indevidas (JORGE, 2003, p. 17).

11 Dispõe o art. 88: “Dovere di lealtà e di probità. – Le parti e i loro difensori hanno il dovere di comportarsi in giudizio comleltà e probità. In caso di mancanza dei difensori a tale dovere, il giudice deve riferirne alle autorità che esercitano il poteredisciplinares u di esse”.

12 Em decisão de ADIN, o STF já decidiu também pela exclusão dos procuradores públicos.

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43104

105

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Osmar Vieira da Silva

Se restar caracterizado que a conduta do advogado tenha obstado ou dificulta-do a produção de resultados do provimento jurisdicional, poderá o magistrado afastar a incidênciada regra que excepciona o advogado, declarando sua inconstitucionalidade, em razão da violaçãodo princípio da isonomia. Se o juiz e o promotor podem ser alcançados pelos rigores da regra, aexceção feita ao advogado rompe o necessário tratamento isonômico que a lei deve conferir aosoperadores do direito no processo (WAMBIER, 2005, 150).

Percebe-se que o alvo principal vislumbrado pelo legislador é a autoridade coatorano mandado de segurança, usualmente renitente no cumprimento das decisões judiciais. Perceptí-vel, também, é o aumento significativo dos poderes do magistrado, de modo a abranger sujeitos quenão participam do processo tão diretamente. Para Fredie DidieJr. (2003, P. 17), o dispositivo criadofunciona como norma geral, aplicável a quaisquer processos e procedimentos, abrangendo outrossujeitos, em diferentes circunstâncias.

Shimura e Daniel Assumpção afirmam ser totalmente contrários ao que unspodem chamar de prerrogativas, mas que lhes parecem privilégios. Para os autores parece nãorestar dúvida de que há uma inconstitucionalidade patente, já que o disposto no parágrafo únicofere de forma cabal o princípio da isonomia, tratando de forma injustificada funções que merecem,ao menos nesse tocante, o mesmo tratamento (NEVES, 2003, P. 60).

Para os referidos autores a exclusão não se justifica, seja qual for a razãoutilizada para defendê-la, já que o advogado é, sem sombra de dúvidas, o sujeito mais atuante noprocesso, o que mais pratica atos processuais, e conseqüentemente o que mais terá oportunidadepara se portar contrariamente aos deveres éticos do processo (WAMBIER, 2002, p. 34-35).13

A multa somente será cobrada, como bem visto anteriormente, após o esgota-mento dos recursos, ficando à disposição do advogado todos os meios para impugná-la. Assim,ainda que o juiz da causa aplique a multa somente por vingança, ou desgosto pessoal do advogado,será a esse concedido todo o sistema recursal para reverter o abuso e a extrapolação do dever dojuiz. Uma possível reversão da decisão, inclusive, poderá até mesmo ensejar representação do juizjunto a Corregedoria e eventual demanda de reparação de danos promovida pelo advogado lesado– até mesmo moralmente – em face do juiz (STOCO, 2002, p. 112-113).14

O advogado enfrenta a todos se preciso for, com serenidade e firmeza, não sepreocupando, inclusive por disposição de seu Estatuto, em desagradar ninguém nessa função. Nãonos resta dúvida que a independência funcional do advogado deve ser respeitada, mas isso nãopode nunca representar privilégios injustificados como a presente exclusão, já que acaba por ma-neira reflexa a dispensá-lo de respeitar as decisões judiciais, podendo opor obstáculos de toda asorte para impedir que elas se efetivem ou ainda, se obrigado a fazer algo, simplesmente se negara cumprir a decisão judicial.

A razão da exclusão provavelmente tenha explicação num forte lobbycorporativo perpetrado pela OAB que, embora tenha em seu estatuto a previsão de aplicação demulta (inciso IV do art. 35 da Lei 8906/94), não se tem notícia que ela tenha sido aplicada, em quepese ser muito comum atitudes de menosprezo e desrespeito ao exercício da jurisdição.

13 Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier, atentando para o possível aumento substancial de representaçõesjunto aos Tribunais de Ética da OAB, concluem de forma irretocável: “Aconselhável, até mesmo para a preservação de suaimagem histórica, construída com suas memoráveis lutas em defesa do Estado de Direito, que a própria corporação tomassea iniciativa de pleitear a eliminação desse privilégio excepcional, mediante proposta legislativa que poderia encaminhar aoCongresso Nacional. Iniciativa desse teor certamente contaria com o aplauso da comunidade jurídica e, muito especialmen-te, da sociedade ávida por efetividade. A concessão de privilégios corporativos não se coaduna com o anseio de efetividadee democratização do sistema processual”.

14 Afirma ser “a ressalva é frustrante e enfraquece o projeto e o objetivo precípuo de impedir a chicana e a litigância de má-fé de alguns profissionais – por certo uma minoria”. “Como, infelizmente, esse comportamento advém de uma minoria,nada justifica que não se responsabilize pessoalmente o advogado inortodoxo pelo seu comportamento antiético e prejudi-cial ao regular andamento da causa e que compromete os bons e honestos”.

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43105

106

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil

5.2 A Cumulação de Multas

5.2.1 Cumulação do Artigo 14 com o 461

Considerando que a multa do art. 461 somente se aplica às partes, poderáocorrer que a mesma parte (ou interveniente) tenha conduta que importe incidência de ambos osdispositivos, ou seja: é renitente em relação ao cumprimento de uma obrigação de fazer, não fazerou dar, e ainda cause embaraço à efetivação de provimentos judiciais, nos termos do disposto noart. 14, V (segunda parte), do CPC. Nesse caso, nada impede que haja a condenação cumulativaem razão das duas condutas.

Também para Leonardo José Carneiro da Cunha (2001, p.103), em cujo enten-der podem incidir cumulativamente as multas do art. 461 e do art. 14, eis que seus “pressupostossão diversos”. Na mesma linha também é a sustentação de Hélio do Valle Pereira (2003, p. 218),para quem a multa do art. 14 tem caráter essencialmente punitivo e “não derroga outras possíveisconseqüências criminais, cíveis e processuais. Quer dizer, não se afasta a caracterização, porexemplo, do crime de desobediência, as sanções pela litigância de má-fé (art. 18) ou as medidas doart. 461. Tudo pode ser aplicado concomitantemente”.

Segundo a lição de Eduardo Talamini, o art. 461 protege o cumprimento daordem proferida pelo juiz com medidas de apoio ou de reforço. Dentre estas, o § 4º permite, exofficio, a fixação de multa pelo inadimplemento da decisão antecipatória da tutela ou da própriasentença. Trata-se de meio coercitivo, que “deverá” ser imposto àquele que descumprir o coman-do judicial, toda vez que o juiz pressentir a sua utilidade para constranger o réu, ou seja, “sempreque a multa revelar-se ‘suficiente e compatível com a obrigação’, segundo a fórmula adotada noart. 461, § 4º. Só ficará descartado o emprego da multa quando esta revelar-se absolutamenteinócua ou desnecessária, em virtude de circunstâncias concretas” (TALAMANI 2002, p. 236).

Para Teori Zavascki (1997, p. 115), a multa diária constitui mecanismo de coer-ção apto a induzir o cumprimento de obrigação positiva, vale dizer, a realização de uma atividade aser desenvolvida: a multa recai imediatamente, acumulando-se dia após dia e somente cessa como adimplemento. Por outro lado, na hipótese de obrigação negativa, na qual a pretensão tem porescopo a omissão do réu, ou seja, a não atuação, a multa fixa é a apropriada. O caráter da medidacoercitiva (imposição de multa de valor fixo) delineia-se aí preventivo, que será exigível em umaúnica oportunidade, se e quando houver o descumprimento.

Fredie Didier Jr (2003, 30). também entende que as multas previstas nos arts.14 e 461 do CPC podem ser aplicadas cumulativamente, pois possuem natureza e função diversas.

5.2.2 Cumulação do Artigo 14 com o 18

A responsabilidade por litigância de má-fé é patrimonial e sempre em face doadversário, que é a parte inocente. A parte responde sempre por ela, quer o ato antiético tenha sidorecomendado ou autorizado ao defensor, quer não o haja sido: o mandante responde sempre peloato do mandatário. O advogado só responde se houver participado conscientemente da ilicitude(EOAB, art. 34, inc. VI, X, XIV, XVII).

A responsabilidade de todos esses sujeitos consiste em uma indenização e emuma multa, ambas devidas à parte inocente. A indenização deve ser razoavelmente proporcionadaao prejuízo sofrido (art. 16 e 18), mas pode ser arbitrada pelo juiz (em valor não superior a 20%sobre o valor da causa) logo ao impor a penalidade ou, se não for, mediante liquidação porarbitramento. A multa é sujeita ao limite máximo de 1% sobre o valor nominal da causa – e nãosobre o da eventual condenação do infrator, na decisão da causa.

Segundo Dinamarco, essa multa não se confunde com a que veio a ser instituídapelo novo parágrafo do art. 14 do Código de Processo Civil, que pode chegar a 20% do valor da causa,reverte em favor da União ou Estado (e não do adversário) e só incide nas hipóteses do inc V desseartigo e pode ser cumulada com as disciplinas dos arts. 16 e 18. (DINAMARCO, 2003, p. 66-67).

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43106

107

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Osmar Vieira da Silva

5.2.3 Cumulação do Artigo 14 com o 601

Segundo Luiz Rodrigues Wambier e outros, o juiz pode eventualmente, de ofí-cio ou por provocação do credor, intimar o devedor para que ele indique quais são os seus benspenhoráveis (art. 652, § 3º) e mesmo onde se encontram (656, § 1º), sob pena de não o fazendo,atentar contra a dignidade da justiça (art. 600, IV) (WAMBIER, 2007, p. 188).

Vale ressaltar que a teor do novo inciso IV do art. 600 do CPC, considera-seato atentatório à dignidade da justiça o ato do executado que: “intimado, não indica ao juiz, em cincodias, quais são e onde se encontram os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores”.

Em seguida, também o novo § 1º, do art. 656, do CPC, prescreve que “é deverdo executado (art. 600), no prazo fixado pelo juiz, indicar onde se encontram os bens sujeitos àexecução, ..., bem como abster-se de qualquer atitude que dificulte ou embarace a realização dapenhora (art. 14, parágrafo único).”

É possível concluir que as multas dos arts. 14, parágrafo único e 601 podem seraplicadas cumulativamente, afinal, se o executado cria embaraço à efetivação de provimentosjudiciais através de confusão patrimonial, mantendo até mesmo seus bens de uso pessoal, comocarros da família, em nome de sua empresa e, também, intimado, não indica onde se encontram osbens passíveis de penhora, incorre em duas faltas com pressupostos distintos. Esta contra o credor,cuja multa lhe acresce o valor do seu crédito e a outra contra a Justiça, cuja multa se reverte aoEstado, Distrito Federal ou à União.

Patrícia Pizzol (2003, p. 631)15 manifesta idêntico entendimento ao afirmarque:

[...] em conformidade com o artigo 601 do CPC, na hipótese acima descrita(art. 600), o juiz tem o poder de impor multa ao devedor, em soma nãosuperior a 20% (vinte por cento) do valor do débito em execução, semprejuízo de outras sanções de natureza processual (por exemplo, a multadeste com o art. 14 do CPC, por haver praticado ato que atenta contra oexercício da jurisdição)....

15 “... in conformità all`art. 601 c.p.c., nelle ipotesi sopra descritte (art. 600), il giudice ha il potere di imporre al debitoremulta, in somma non superiore al 20% (venti per cento) del valore del debito in esecuzione, senza pregiudizio di altresanzioni di natura processuale (per esempio, la multa di cui all`art. 14 c.p.c., per aver praticato atto che attenta all`eserciziodella giurisdizione) ...” (trad. livre)

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43107

108

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil

5.2.4 Quadro Comparativo de Multas no Código de Processo Civil

Quadro Comparativo de Multas no Código de Processo Civil

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43108

109

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Osmar Vieira da Silva

6 CONCLUSÕES

01) Para o direito anglo-saxônico, o contempt of court significa a prática dequalquer ato que tenda a ofender um tribunal na administração da justiça ou a diminuir sua autori-dade ou dignidade, incluindo a desobediência a uma ordem.

02) As sanções aplicáveis aos contempt of court por descumprimento, comomeio executivo impróprio, de modo geral apresentam um espírito orientador e disciplinador, conexoà idéia do pleno respeito às atividade de administração da justiça e objetivam, assim, induzir oucompelir o contemnor a um determinado comportamento perante a Corte, ativo ou passivo, a fimde que a pretensão à adequada prestação jurisdicional seja, afinal, satisfeita.

03) Com o advento da Lei 10358/2001, a inclusão do inciso V e parágrafo únicodo art. 14, do CPC, implantou um eficaz mecanismo visando a coibir o contempt of court, generi-camente entendido como desacato à ordem judicial.

04) Não cumprir um provimento mandamental é desobedecer – e toda desobe-diência a atos estatais comporta a reação da ordem jurídica e dos agentes do poder público (nocaso, o Estado-Juiz), seja no sentido de punir o infrator, seja para coagi-lo legitimamente a cumprir.

05) Se ordens existem é para serem cumpridas, não necessitando haver normaexpressa para demonstrar tal obviedade. O problema é que embora óbvia a obrigatoriedade decumprimento das ordens judiciais, verifica-se muito desrespeito por parte daqueles que deveriamcumpri-las no caso concreto. Assim, diz-se o óbvio para prever a tal dever uma sanção, que infe-lizmente parece ser, nos tempos atuais, o único meio – e nem sempre eficaz – de evitar o absurdodesrespeito às ordens judiciais.

06) São provimentos em direito processual, todos os atos portadores de umavontade do Estado-Juiz, às vezes acompanhado de alguma determinação no sentido de realizar ouomitir uma conduta. Dada essa amplitude do gênero próximo em que se incluem as sentençasjudiciais (provimentos), o inc. V do art. 14 do Código do Processo Civil abrange não só as senten-ças, mas também os demais provimentos que o juiz emitir, e que tenham natureza mandamental(sentenças, decisões interlocutórias ou mesmo despachos).

07) Estarão causando embaraço à efetivação dos provimentos jurisdicionaistodos os atos ou omissões, culposos ou não, que criem dificuldades de qualquer espécie ao alcancedo resultado prático a que está vocacionado o provimento jurisdicional.

08) Se restar caracterizado que a conduta do advogado tenha obstado ou difi-cultado a produção de resultados do provimento jurisdicional, poderá o magistrado afastar a inci-dência da regra que o excepciona, declarando sua inconstitucionalidade, em razão da violação doprincípio da isonomia, afinal, se o juiz e o promotor podem ser alcançados pelos rigores da regra, aexceção feita ao advogado rompe o necessário tratamento isonômico que a lei deve conferir aosoperadores do direito no processo.

09) A definição do valor da multa, tendo como parâmetro o valor da causa,parece não ter sido a melhor alternativa, eis que deixa ao desabrigo da pressão em favor documprimento das decisões judiciais, processos em que o valor da causa é simbólico;

10) Entre dar ao juiz um poder ilimitado no que tange ao valor da multa, eestabelecer um limite, ainda que sacrificando sua utilidade em alguns casos concretos, parece terpreferido o legislador a segunda opção.

11) O percentual da multa está ligado à gravidade do prejuízo que a condutacausou em relação aos resultados que o processo deveria produzir.

12) Pela própria natureza, distinta das demais existentes no ordenamento bra-sileiro, a qual tem por escopo a atuação protetiva do ordenamento, a multa do art. 14 é cumulávelcom outros tipos de multas, consoante reza o parágrafo único (“sem prejuízo das sanções criminais,civis e processuais cabíveis”).

13) No Brasil, pode-se considerar que o artigo 14 passa a contemplar o contemptof court civil somente no que tange à aplicação da multa, já que a prisão, embora proposta no projetooriginal apresentado pela Escola Superior da Magistratura e o Instituto de Direito Processual Brasilei-ro, não foi adiante, e o parágrafo segundo proposto ao artigo foi retirado de sua redação final.

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43109

110

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Contempt of Court (desacato à ordem judicial) no Brasil

14) o pressuposto inafastável para que o litigante ou outro integrante do proces-so possa ser responsabilizado pelo contempt, consiste na existência de uma ordem que imponhaespecificamente a quem é dirigida uma obrigação de fazer ou abster-se de fazer.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Araken de. O contempt of court no direito brasileiro. Revista de Processo. n. 111, SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 2003.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Notas sobre alguns aspectos do Processo (Civil e Penal)nos Países Anglo-Saxônicos”. Temas de Direito Processual: Sétima Série. São Paulo: Saraiva,2001.

BATISTA DA SILVA, Ovídio. Curso de Direito Processual Civil. v. 2, 4. ed. São Paulo: RT,2000.

BELLINETTI, Luiz Fernando e MARQUES. Elmer da Silva. A antecipação da tutela inibitória emface da Fazenda Pública e o destinatário das medidas coercitivas. São Paulo: Revista de Proces-so. 141, nov. 2006.

BUENO, Julio César. O contempt of court por descumprimento de ordem judicial. Revista doAdvogado. AASP, n. 84, dez. 2005.

CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Dialética. 2001.

DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil, II, São Paulo: Malheiros,2002.

______ . A reforma da reforma. São Paulo: Malheiros, 2003.

GRINOVER, Ada Pelegrini. Ética, abuso do processo e resistência às ordens judiciárias: o contemptof court. Revista de Processo n. 102, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.

HAZARD JR.,Geoffrey C. & TARUFFO, Michele. American Civil Procedure: An Introduction.New Haven: Yale University Press, 1993.

JORGE, Flavio Cheim; DIDIER JR., Fredie; RODRIGUES, Marcelho Abelha. A nova reformaprocessual. 2. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2003.

LOPES, João Batista. Efetividade do processo e reforma do Código de Processo Civil: comexplicar o paradoxo processo moderno – Justiça morosa? Revista de Processo 105/132.

MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória (individual e coletiva) São Paulo: Revista dosTribunais, 2000.

______ . Antecipação da tutela. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

______ . Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

NEVES, Daniel Assumpção; SHIMURA, Sergio. Nova reforma processual civil: comentada.São Paulo: Método, 2003.

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43110

111

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Osmar Vieira da Silva

PEKELIS, Alexander H. Legal Techniques and Political Ideologies: A Comparative Study. MichiganLaw Review. v. 41, 1943, p. 673.

PEREIRA, Helio do Valle. Manual da Fazenda Pública em juízo. Rio de Janeiro: Renovar,2003.

PIZZOL, Patrícia. I Poteri del giudice nell‘ordinamento brasiliano. In Davanti al giudice: studisul processo societário (Coord.) Lucio Lanfranchi e Antonio Carrata. Torino: G. Giappichelli Editore,2003.

STOCO, Rui. Abuso de direito e má-fé processual. São Paulo: RT, 2002.

TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. São Paulo: RT, 2001.

TUCCI, José Rogério Cruz e. Lineamentos da nova reforma do CPC. 2. ed. São Paulo: Revistados Tribunais, 2002.

WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flavio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Cur-so Avançado de Processo Civil. v. 2. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

WAMBIER, Luiz Rodrigues. O contempt of court na recente experiência brasileira. Revista deProcesso. n. 119. São Paulo: RT, 2005.

WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Breves comentários à 2ª faseda reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia.Breves comentários à nova sistemática processual civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2005.

ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela e obrigações de fazer e não fazer. Gênesis –Revista de Direito Processual Civil, 4, 1997.

07-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43111

112

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais

CONTRATO: DO TRADICIONAL A CELEBRAÇÃO ELETRÔNICA –ASPECTOS FORMAIS

Simone Vinhas de Oliveira*Valkíria A. Lopes Ferraro*Vinicius Franco da Silva*

Wesley Tomaszweski*

RESUMO

Pretende-se expor as principais características formais de um contrato realizado por meio eletrô-nico na intenção de mostrar as linhas teóricas e científicas nas quais fundamentam-se. Passa-se dabase principiológica dos contratos clássicos para as alterações e inovações, não só no âmbitoprincipiológico, mas também, na utilização análoga dos institutos já existentes, quando assim forpossível, corroborando-os com as situações fáticas que vieram à tona com o surgimento de umanova tecnologia de comunicação viabilizando novas formas de contratação. Conclui-se pela viabi-lidade desse novo instrumento contratual e assegura-se sua proteção jurídica com o que aqui seexpõe, argumentando-se favoravelmente e, inclusive, estimulando-se o crescimento do comércioeletrônico (e-commerce), visto que, por força do princípio da equivalência funcional, não se podenegar validade ou eficácia a um contrato simplesmente por este provir de meio eletrônico.

Palavras-Chave: Contrato eletrônico. Princípios. Forma. Validade. Legitimidade.

CONTRACT: OF THE TRADITIONAL A ELECTRONIC CELEBRATION -FORMAL ASPECTS

ABSTRACT

It is intended to expose the mainly formal characteristics of a contract made through eletronicways in intention of show the theoric and scientific lines in wich it is based on. Goes throught theprinciples base of the classic contracts to the alterations and innovations, not only in the principlesmeaning, but also, when it is possible, in the analogical use of the existing institutes, corroboratingthem with the in fact situations that came up on the sprouting of a new technology of communication,making possible new ways of do the contracts. It is concluded for the viability of this new instrumentof contract and assures your legal protection arguing favorably and also stimulating the growth ofthe eletronic commerce (e-commerce) because if you see the functional equivalence principel willbe not possible deny validity and effectiveness to a contract simply because it cames from theeletronic way.

Keywords: Electronic Contract. Principles. Form. Validity. Legitimacy.

* Mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina - bolsista pela Capes.* Doutora em Direito Civil pela PUC de São Paulo – Docente do Curso de Mestrado em Direito Negocial da Universidade

Estadual de Londrina-PR – Docente do Curso de graduação – UEL -Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial – UEL. Orientadora do Projeto de pesquisa – “ O Direito

Empresarial e suas Relações com as Tecnologias da Informação”* Graduando em Direito da Universidade Estadual de Londrina, integrante do Projeto de Pesquisa supra, do qual são também

integrantes: João Carlos Leal Júnior, Lucas Franco de Paula, Paola Maria Gallina, Thaís Iglesias Barreira , Rogério Martinsde Paula, Wagner Kaba. Bolsista PIBIC/CNPq.

* Mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina – Especialista em Direito Civil e Processo Civil pelaCESUC/BB&G, bolsista pela Capes.

08-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43112

113

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco da Silva e Wesley Tomaszweski

1 INTRODUÇÃO

A sociedade atual encontra-se, em virtude do avanço científico, no maior graude desenvolvimento tecnológico já vivido. Essa condição traz novos conceitos como globalização,digitalização e rede de informação. Convém destacar que as relações intersubjetivas, consagradasno seio social, desde que se tem registro, foram, no sentido de dar segurança e estabelecer deforma ordenada a vida em sociedade, de certo modo, abarcadas pelo Direito (2003).

Com base nessas duas premissas, ressalte-se que a cada revolução tecnológicae social, os meios de se garantir essa interação evoluiu de forma igualitária. De fato o Direito estásempre observando os acontecimentos sociais, perseguindo-os, de modo a se fazer presente emseu encalço, pretendendo sua regulamentação. Daqui, deriva-se o brocardo jurídico: ubi societas,ibi ius1 . Sendo que, é no contrato, pelo seu caráter cotidiano, que são reveladas as grandes trans-formações do ambiente social por funcionar como um “espelho” da relação existente entre osindivíduos.

É justamente neste instrumento consagrado pela doutrina como viabilizador dacirculação de riquezas, que se desenvolve o presente estudo. O contrato sofre releituras de nature-za paradigmática e principiológica e ainda encontra um novo cenário de realização, a saber: oambiente virtual. Devido a restrição temática, bem como aos limites físicos do estudo analisar-se-á a evolução do contrato em sua forma tradicional e as peculiaridades encontradas devido a fatoresproporcionados pela sociedade da informação.

Parte da doutrina jurídica afirma que, nos dias atuais, não é mais possível asociedade se desenvolver sem a informática, presente nos mais variados ramos das ciências, dageografia, ciências políticas, humanas e sociais à engenharia, medicina e ciências exatas e biológi-cas de modo geral, exaltando-se aí a medicina, amplamente coberta por aparelhos e máquinas quede alguma forma interagem com a informática (LAWAND, 2003, p. 3 e ss).

A internet (CORRÊA, 2000)2 inovação tecnológica no ramo das telecomuni-cações, resultante do surgimento da informática, é o resultado de um processo gradativo, que sedesenvolveu, primeiramente, no âmbito militar e acadêmico, para, posteriormente, se estabelecerem todo o mundo. Como todo meio de comunicação, o homem passou a utilizá-la como forma deinteragir comercialmente, o que, com o passar dos anos, se intensificou e, com sua ampla utilizaçãoe desenvolvimento constante, fez nascer o e-commerce3 .

Este conceito se tornou o ícone primordial na revolução contratual que se per-cebe atualmente. Para fins elucidativos, a média de crescimento do setor no Brasil, nos últimos trêsanos, foi de 35%. Em números, temos para 2005 um movimento de R$ 12,5 bilhões e, para 2006,movimento de 30,9 bilhões (REVISTA GAZETA MERCANTIL, 2006).

As características próprias desta rede, comunicação em tempo real e global4 ,facilidade na obtenção de dados estatísticos gerais e do consumidor, agilidade na propagação deofertas, ofertas essas que exibem-se e vendem-se dentro dos limites do lar do consumidor, acabampor criar um ambiente no qual a redução de custos é assombrosa.

Existe diminuição de custos na localização da outra parte de uma futura rela-ção contratual, pois se faz possível, por meio da comunicação global e em tempo real, a fácilidentificação de clientes potenciais e de usuários no mundo todo, sem que com isso seja necessárioalterações na tecnologia ou novos custos.

1 Significa: “onde há sociedade há direito”.2 “A internet é um sistema global de rede de computadores que possibilita a comunicação e a transferência de arquivos de uma

máquina a qualquer outra máquina que pertença à mesma rede, possibilitando, assim, um intercâmbio de informações semprecedentes na história, de maneira rápida, eficiente e sem a limitação de fronteiras, culminando na criação de novosmecanismos de relacionamento.”

3 E-commerce significa o comércio realizado através de meios eletrônicos. É equivalente ao termo comércio eletrônico.Geralmente ocorre por meio de sites ou sítios na rede.

4 Global no sentido de integralidade mundial. Uma mensagem emitida de um local específico, está apta, em tempo real, a seapresentar em qualquer lugar do mundo. Assim como o telefone.

08-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43113

114

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais

Por chegar aos lares e propiciar a qualquer sujeito o acesso, sem nenhumadistinção ou discriminação, seja com relação a sexo, idade, nacionalidade ou cor, diminui considera-velmente o custo com a divulgação da oferta contratual e aumenta, espantosamente, o público alvoe atingido pela oferta. Ainda, comparando-se a Internet à outras tecnologias de informação, comoo telefone, é, a perder de vista, a opção mais barata e vantajosa tanto para o consumidor como parao empresário, reduzindo-se os custos e promovendo uma maior e melhor distribuição de riquezas.

Como se percebe, com esse crescimento galopante e com a redução de custoscontratuais, não poderia ficar de fora da apreciação jurídica essa nova realidade. Para isso, ocomércio eletrônico coloca em cheque todo um complexo doutrinário e jurídico já, há muito tempo,consagrados no direito contratual.

O mesmo, em seus institutos e normas, bem como o direito obrigacional vêem-se, ao menos em parte, sem uma exata correspondência quando se trata desta nova tecnologia.

O que justifica o presente estudo é tentar estabelecer as alterações, as novasconcepções, formas e condições de realização, ou seja, seus aspectos formais, por meio de umestudo analógico do direito contratual clássico e do direito contratual derivado das relações noambiente virtual proposto pela mais atual doutrina e indagações jurídicas, levando-se em considera-ção que a analogia nem sempre será a solução, visto que novas tecnologias, muitas vezes, deman-dam novas soluções por não haver utilidade. Em determinadas circunstâncias, nem há possibilidadede subsunção do tradicional ou comum ao novo, situação na qual se opta por uma solução ontológica,baseada nos princípios que deram origem aos institutos contratuais e tomando estes como umponto fixo para a análise do paradigma digital (LORENZETTI, 2004, p. 49-53 e 68).

2 CONTRATO: ALGUNS ASPECTOS DE SUA EVOLUÇÃO

Antes de estabelecer um conceito didático a respeito do contrato eletrônico, énecessário emergir o gênero do qual este se faz espécie. O contrato se traduz, sobretudo, nummeio seguro e efetivo de se consagrar transações econômicas, de circulação de riquezas no âmbitosocial (DIAS, 2004, p. 52-53).

O conceito de contrato, sem os acréscimos pertinentes ao ramo do direito ele-trônico, é bem definido como o meio pelo qual as partes pactuam a criação de uma obrigação,submetendo-os, pois nasce da relativa autonomia da vontade da qual gozam (DIAS, 2004, p. 52).

Já, considerando a atuação estatal na regulação dos acordos de vontades, limi-tando-os em virtude do Estado Social que preza a submissão às normas de ordem pública, Pablo S.Gagliano e Rodolfo P. Filho (2005, p. 11-12) salientam que:

... o contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes,limitadas pelo princípio da função social e da boa-fé objetiva, autodisciplinamos efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia dassuas próprias vontades.

Percebe-se aqui uma modelagem contratual revestida de elementos que, numavisão rápida e superficial, não parecem constituir instituto próprio e descendente de época históricaque o caracteriza. Antes da função castradora do Estado no relacionamento negocial das partes,tínhamos o contrato baseado na liberdade total, fruto dos ideais que consolidaram a RevoluçãoFrancesa. Portanto, é necessária uma breve consideração histórica deste instituto.

Há que se destacar as principais contribuições que as sociedades que se orga-nizaram no decorrer da história, a partir do Direito Romano, legaram ao contrato.

Destaca, Caio Mario (2001, p. 225 e s.), que sobre o contrato atuam diversasforças das quais duas devem ser destacas: “a força obrigatória e a influência de fatores determinantesdas injunções sociais”.

08-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43114

115

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco da Silva e Wesley Tomaszweski

Com relação às influência de fatores sociais, no contrato pode vigorar a liber-dade contratual, seja subjetiva (escolha de quem contratar), objetiva (definição da obrigação) ouformal (escolha tipológica das cláusulas). Ou, então, pode, de forma contrária, desaparecer essaautonomia dando lugar a imposição do Estado, por meio de matérias de ordem pública, em carátertransitório ou permanente.

No entanto, cabe-nos destacar bem sucintamente a origem da roupagem atualdos contratos.

O Direito Romano, contado em todas as suas manifestação ao decorrer dotempo, teve várias posições diferentes com relação ao contrato. A obrigação, no início, não nasciaem virtude de uma relação meramente individual, mas sim com base nos relacionamentos, muitasvezes hostis, entre grupos de indivíduos. A Lei das XII Tábuas, quando afunila essa noção geradorade obrigações de grupos para as relações interpessoais, mantém essa hostilidade, como podemosperceber na espécie de concurso de credores que, como o próprio autor supra citado diz é nomínimo macabro.

Tal concurso permitia que o próprio corpo do devedor, dividido em quantaspartes bastassem, dentro da proporção do crédito de cada credor, fosse utilizado como forma desanar a dívida do devedor.

Em 428 antes de Cristo, a Lex Poetelia Papira, promovendo a maior transfor-mação pela qual passou o Direito Obrigacional, estipulou fosse a responsabilidade pela divida reca-ída sobre os bens do devedor e não mais sobre sua pessoa, pecuniae creditae bona debitoris,non corpus obnoxium esse.

O desenvolvimento econômico e social em virtude do crescimento das possibi-lidades individuais cria o contrato e seu poder vinculativo e é, ainda na Lei das XII Tábuas, que seencontra o poder vinculativo derivado da palavra e do que foi tratado verbalmente, observadodeterminados requisitos. Advieram maiores complexidades sociais na vida romana em virtude deseu desenvolvimento e da pluralidade de negócios o que originou uma necessidade de trazer certamaterialidade ao contrato.

Em virtude disso, surgiram, por meio de Gaius, quatro modalidades contratuais:contratos re, que eram os contratos que se perfectibilizavam através de entrega de coisa; contratoslitteris, realizado pela inscrição da obrigação no codex do devedor; contratos verbis, o contratoverbal realizado mediante requisitos; e, mais tarde, o contrato consensu. Finalizando, Gaius, com aafirmativa de que as obrigações ora nascem do contrato, ora do delito.

Estabeleceu-se no Baixo Império e espalhou-se por toda a Idade Média a pra-xe contratual que via o nascimento da obrigação na simples proclamação verbal. Era necessárioaos escribas, para satisfazer as necessidade do Direito Romano, que reduzissem a termo as con-venções. Porém, e é isso que deu origem aos contratos consensu, a praxe fez com que os escribasobservassem na redação da proclamação verbal que todos os rituais imprescindíveis tinham sidoobservados, embora não o tivessem.

Passou-se, portanto, a considerar apenas a declaração das partes no surgimentodas obrigações, reduzindo, posteriormente os escribas, a termo como se todos os rituais tivessemsido observados. Bastava-se, então, a declaração de vontades.

Conclui-se que as características e a modelagem contratual modificam-se deacordo com a sociedade, tecnologia e costumes a que se submetem. O contrato estabelecido comos ditames libertários da Revolução Francesa é apoiado na autonomia da vontade, por meio da qualduas pessoas, de forma paritária, circulavam riquezas, seja pela compra e venda, locação, entreoutros, obedecendo simplesmente os seus interesses e volições está em declínio.

Um instrumento contratual que culmina da vontade de duas pessoas em igual-dade de condições, no qual se discute preço, prazo, condições, está cada vez mais escasso. Asociedade neocapitalista, mergulhada num caos produtivo, faz emergir novas riquezas importantes,como os valores mobiliários e bens imateriais, enfraquecendo o valor que os bens imóveis repre-sentam no domínio econômico.

Os bens tornam-se descartáveis, nada mais é duradouro, a contratação sobuma nova roupagem se faz necessária para que não exista uma lesão massificada na sociedade.

08-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43115

116

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais

Cada vez menos se verifica o contrato característico da autonomia da vontadeem igualdade de condições, realizado entre pessoas físicas, mas sim a massificação contratual,evidenciando a padronização, limitada pelo Estado em conceitos como o da função social do con-trato e da defesa do consumidor. É nesse ambiente que surge o contrato eletrônico, como um dosnovos meios de se realizar a circulação de riquezas num mundo caracterizado pela padronização eagilidade na circulação de riquezas por meio da produção e consumo.

O contrato é a convergência das manifestações de vontade das partes, visandoa realização de determinada obrigação. O contrato eletrônico, nesse diapasão, é quando a conver-gência das manifestações de vontade se realiza por intermédio de um meio eletrônico capaz deveicular de forma completa o cerne dessa manifestação.

2.1 Principiologia Contratual e suas Inovações Decorrentes do Comércio Eletrônico

Os princípios são a base da construção jurídica, o baluarte de criação, inovaçãoe interpelação do Direito na vida social. De acordo com a explanação sobre princípios de RicardoL. Lorenzetti, os princípios são utilizados pelo juiz para julgar, pelo legislador para legislar, pelojurista para raciocinar e embasar seus tratados e pelo operador do Direito como ferramenta detrabalho, trazendo para a especificidade do caso concreto a concepção principiológica já adaptada.

Diz, ainda, o supracitado jurista, que o princípio é um enunciado que permiteresolver um problema e orientar um comportamento. São normas de sentido abstrato, sem conteú-do pronto e acabado, sendo, portanto, flexíveis, esperando o complemento trazido pelas necessida-des casuísticas (LORFENZETTI, 2004, p. 82-83).

Como descrito no início do tópico 2, sendo o contrato eletrônico uma espécie decontrato, não se pode olvidar a aplicabilidade dos conceitos principiológicos contratuais tradicionaisno âmbito do comércio eletrônico. As contratações eletrônicas só podem desenvolver-se, no Brasil,em virtude do princípio da liberdade de forma para contratação não solene.

Graças a um princípio tradicional, pode-se estabelecer essa nova modalidadecontratual. Porém, pela especialidade do tema, emergem das condições desta nova tecnologiaprincípios próprios, característicos e necessários, por não serem suficientes à esgotar as possibili-dades do tema, os tradicionais. Princípios estes que derivaram da discussão mundial a respeito doassunto.

Em 1996, com a criação da Lei Modelo sobre Comércio Eletrônico(UNCITRAL), pela Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas(FERREIRA; BAPTISTA, 2002, p. 90-91), percebe-se a consolidação de algum deles. Os princí-pios que norteiam a contratação eletrônica servem aos propósitos de identificação, autenticação,impedimento de rejeição, verificação e privacidade (ORTIZ, 2001, p. 37).

Portanto, pode-se delinear os seguintes princípios referentes aos contratos ele-trônicos: “princípio da equivalência funcional; princípio da neutralidade tecnológica das disposiçõesreguladoras do comércio eletrônico e princípio da inalterabilidade do direito existente sobre obriga-ções e contratos”. Tendo em mente que não se pretende esgotar a base principiológica nestahumilde abordagem, mas sim mostrar que com a atual evolução tecnológica pode-se, inclusive,constituir-se novos.

2.1.1 Princípio da Equivalência Funcional

Princípio decorrente da UNCITRAL que visa a garantir, aos contratos realiza-dos por meio eletrônico, todas as condições da qual gozam os contratos estabelecidos em papel eregistrados em tabelionato. Com isso evita-se qualquer tipo de repugnância ou preconceito à essanova modalidade (LAWAND, 203, p. 42 e s.).

Não se pode negar validade ou eficácia ao contrato argumentando-se, exclusi-vamente, ter sido ele firmado por meio eletrônico (FERREIRA; BAPTISTA, 2002, p. 91). Têm-se,portanto, em funcionalidade contratual, equivalência entre o tradicional e novo.

08-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43116

117

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco da Silva e Wesley Tomaszweski

Este princípio busca duas conseqüências jurídicas: a impossibilidade de ser con-siderado inválido o contrato em base virtual, exclusivamente por sua natureza eletrônica; e o res-guardo quanto à possíveis impedimentos legais exclusivos ao contrato eletrônico, quando este res-tar exclusivamente pela sua natureza eletrônica.

2.1.2 Princípio da Neutralidade Tecnológica das Disposições Reguladoras doComércio Eletrônico

A Lei Modelo, em seu item 8, parte final, afirma: “Cabe assinalar que, emprincípio, não se exclui nenhuma técnica de comunicação do âmbito da Lei Modelo, de forma aacolher em seu regime toda eventual inovação técnica neste campo”.

Têm-se, aqui, a real preocupação da referida Lei em não restringir sua aplica-ção à tecnologias hoje existentes e que, porventura, possam vir a ser consideradas, em futuropróximo, obsoletas (LAWAND, 2003, p. 45). Isso faz com que a legislação derivada da UNCITRALnão abarque apenas as tecnologias existentes na época de sua promulgação, mas, também, inova-ções tecnológicas que derivem do desenvolvimento constante dessa área, sem que com isso sefaça necessário reformulações legislativas.

É o caso do protocolo Wap, que capacita o acesso à Internet por meio de umtelefone celular, sem a necessidade do uso de computadores, ou, ainda, se for descoberto um meiocriptográfico ou qualquer outra forma de se garantir a autoria e autenticidade do documento eletrô-nico, que torne a criptografia assimétrica5 obsoleta.

Ana Paula Gambogi Carvalho (CARVALHO, 2001, p. 152), quanto ao projetonacional sobre comércio eletrônico, diz que: “A lei a ser promulgada deve ser tecnologicamenteneutra, ou seja, reconhecer a validade jurídica não apenas do sistema de criptografia assimétrica,mas também de outras tecnologias equiparáveis, que atendam aos mesmos fins”.

E a importância desse princípio se faz clara. Não se pode admitir uma normageral seja promulgada de forma fechada e vinculada aos meios tecnológicos atuais. A própriaorientação culturalista de nossa atual legislação civil não aprova tal situação. Toda e qualquernorma geral é promulgada regulando situações, justamente, gerais.

Não cabe à norma perder sua eficácia visto a possibilidade de mudançastecnológicas, tão presentes e rápidas inclusive, ou a evolução comercial e contratual seja tolhida demelhores condições visto a vigência de lei precária sobre o assunto. Portanto, a neutralidadetecnológica, além de importante, é necessária para a própria segurança do sistema.

2.1.3 Princípio da Inalterabilidade do Direito Existente Sobre Obrigações Contratos

Para esclarecer tal princípio necessário se faz ter nítido que um contrato eletrô-nico, firmado por meio da internet, não traz diferenças substancias com relação aos contratos emgeral. A função da nova tecnologia é servir de meio para a celebração contratual e não fim.

Então, não se trata aqui de novas formulações com relação ao direito obrigacionalou contratual. Estes continuam intactos. Novas adaptações se fazem necessárias para que sepossa garantir o valor probante daquilo que resultou do consenso das partes levando em considera-ção aquilo que foi ofertado e aceito através do meio utilizado, qual seja, a internet.

Determina, portanto, o princípio, que a internet, em especial, ou o meio eletrôni-co, de forma geral, é apenas uma nova forma de transmissão das vontades dos negociantes e nãoum novo direito regulador das mesmas. Todos os requisitos e pressupostos contratuais já consagra-dos não se alteram substancialmente (LAWAND, 2003, p. 47 e s.). Não obstando o aparecimentode determinadas inovações e adaptações jurídicas no âmbito da validade, pela especialidade datecnologia.

5 Melhor explanada no Tópico 3.5, a respeito da Validade dos Contratos Eletrônicos.

08-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43117

118

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais

2.2 A terminologia Contrato Eletrônico em Contraposição à Contrato Informático

Contratos informáticos são aqueles que tem por objeto bens ou serviços deinformática, celebrados por qualquer que seja o meio, eletrônico ou não. Já na contratação eletrô-nica o objeto é livre, desde que lícito e determinável, tendo como meio de formação contratual oeletrônico (COLARES, 2006, p. 111).

Melhor explicando, o contrato eletrônico recebe o nome do meio utilizado parasua celebração, o eletrônico, enquanto o contrato informático recebe o nome do objeto, ou seja,artigos informáticos ou serviços que venham a ser prestados exclusivamente no âmbito dainformática.

3 ASPECTOS FORMAIS DO CONTRATO E SUA ADAPTAÇÃO AOS CONTRATOSELETRÔNICOS

Como aqui pretende-se abordar os contornos do contrato eletrônico, nada maisjustificável do que mostrar as adaptações contratuais que surgiram em virtude do novo meio decomunicação ao invés de falar-se a respeito de um novo complexo científico que vise abarcar ainovação tecnológica.

3.1 Natureza Jurídica

Falar sobre natureza jurídica é o mesmo que tentar encaixar o instituto numgênero jurídico que lhe seja antecessor, superior e consequentemente maior em abrangência. Comoensina Jorge José Lawand (2003, p. 88), o questionamento à respeito da natureza jurídica visa aqualificação, o enquadramento de uma regra dentro de determinada estrutura ou categoria jurídicana qual possa se subsumir.

No que toca o instituto jurídico objeto deste estudo, entende-se por sua nature-za jurídica, contrato que tenha por objeto bem disponível, seja formado pelo consentimento geradopor manifestações de vontade ora entre presentes, ora entre ausentes, conforme a instantaneidadeda formação do vínculo, atrelado à modalidade de negócio jurídico formado fora do estabelecimen-to comercial.

3.2 Momento de Formação

Importante se faz a especificação do momento de formação do contrato eletrô-nico para que as consequências jurídicas, decorrentes de tal vínculo, possam surtir seus efeitos.Assim como na formação do vínculo contratual fora do meio eletrônico, têm-se, para esta modali-dade específica, contratos entre “presentes” e entre “ausentes”.

Nos moldes da contratação clássica, temos, nos contratos entre ausentes, umadistância geográfica que demanda um tempo juridicamente relevante para que se efetue a comuni-cação. Entretanto, a tecnologia vem a neutralizar a geografia e, apesar de se ter pessoas fisica-mente distantes, a mensagem passa a ser instantânea.

O telefone é um exemplo inicial a respeito da neutralização geográfica entrepessoas fisicamente distantes para a celebração de um contrato por meio de um sistema de comu-nicação instantâneo (LORENZETTI, 2004, p. 313-314). Assim como no exemplo, o contrato ele-trônico pode ganhar status de celebrado entre presentes, interpretando-se analogicamente a Lei10.406 de 2002 (Novo Código Civil), em seu artigo 428, I, considera-se também como presentes osque contratam por telefone ou “meio de comunicação análogo”.

08-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43118

119

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco da Silva e Wesley Tomaszweski

Portanto, basta que o contrato eletrônico seja firmado através de comunicaçãoinstantânea6 para que se estabeleça vínculo entre presentes, visto que se trata de meio de comuni-cação semelhante e há perfeita subsunção da realidade fática à norma vigente. Vale ressalvar quea partir do momento em que o ofertante se faz sentir da aceitação do oblato, têm-se firmado ocertame obrigacional.

Apesar do meio de comunicação eletrônico propiciar a instantaneidade de men-sagens, casos há em que se tem a formação contratual “não instantânea”(LORENZETTI, 2004, p.323), ou entre “ausentes”, levando-se em conta um maior lapso temporal decorrido do intercâmbiodas mensagens, como no caso de formação por intermédio de correio eletrônico, e-commerce,entre outros.

Para explicar a perfectibilização de um vínculo contratual entre ausentes,têm-se duas principais teorias, a da cognição, que exige que a resposta do aceitante chegasse aoconhecimento do proponente, e a da agnição que dispensa o conhecimento da resposta.

No Brasil, com o Código de 1916, em seu artigo 1086, era considerada comoválida a teoria da agnição através de sua subteoria, a da expedição, ou seja, considera-se formadoo contrato com o envio da aceitação ao proponente.

Entrementes, o atual código estabelece, em seu artigo 434, que a formaçãocontratual acontece quando a aceitação é expedida, porém ressalva exceções em seus incisos oque nos levar a perceber a alteração da tendência do código para outra subteoria da agnição, qualseja, a da recepção (GAGLIANO, 2005, p. 105 e s.).

Nos dizeres de Carlos Roberto Gonçalves (2002, p. 20), o atual código:

estabeleceu três exceções: a) no caso de haver retratação do aceitante; b) seo proponente se houver comprometido a esperar resposta; e c) se ela nãochegar no prazo convencionado. Ora, se sempre é permitida a retrataçãoantes de a resposta chegar às mãos do proponente, e se, ainda, não se reputaconcluído o contrato na hipótese de a resposta não chegar no prazoconvencionado, na realidade o referido diploma filiou-se à teoria da recep-ção, e não à da expedição.

Além disso, considerando a segurança na formação do negócio jurídico emvirtude do meio eletrônico, estabeleceu-se, também, na prática, considerar formado quando aconfirmação chegue à esfera de conhecimento do proponente, não sendo necessário que estetome conhecimento efetivo da resposta, mas, apenas, que esta esteja disponível no seu âmbito deconhecimento.

É, portanto, o proponente, responsável, no caso de contrato formado via correioeletrônico, pela manutenção de seu equipamento em estado que possibilite a recepção da resposta,como no caso de não recebimento de e-mail por estar a caixa de correio sem espaço suficiente.Têm-se, concluindo-se, que a formação dos contratos eletrônicos entre ausentes se perfectibilizacom a recepção, pelo policitante, da aceitação do oblato.

3.3 Lugar de Formação

O Direito Brasileiro abarca a teoria que determina a formação contratual nolugar em que este é proposto. Nos termos do artigo 435 do Código Civil, “o contrato reputa-secelebrado no lugar onde foi proposto”. Tal determinação, longe de ser desnecessária, reveste-se deextrema utilidade quando, por exemplo, o juiz tiver de analisar questões de cunho axiológico ecostumeiro do lugar onde o negócio fora pactuado, ou, ainda, quando surgirem questões de compe-tência (GAGLIANO, 2005, p. 110 e 111).

6 Diálogo interativo que implica atos instantâneos, como se percebe no IRC – Internet Relay Chat, Msn, ICQ, entre outros.

08-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43119

120

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais

Entretanto, no tocante aos contratos eletrônicos, como definir o local de forma-ção, visto que há duas possibilidades, quais sejam: a) o local onde encontra-se o equipamento pormeio do qual fora realizada a proposta, ou seu endereço lógico; e b) o local da residência dopolicitante.

Seguindo os passos de Álvaro Marcos Cordeiro Maia, independentemente daposição geográfica do equipamento utilizado, reputa-se celebrado o contrato eletrônico no lugar daresidência do proponente, ou seja, opta-se pela segunda alternativa. Isso se dá, principalmente, porquestões de segurança. Se assim não fosse, haveria abertura para fraude ou prejuízo à contratantede boa-fé.

Ilustrando, há que se imaginar um proponente, residente num país cujas leisconsumeiristas sejam rígidas, realizando seus negócios por meio de equipamento ou endereço lógi-co localizado em país diverso, preferencialmente com leis consumeiristas escassas, inexistentes ou,ao menos, mais relaxadas em relação ao local de sua residência, com o intuito de furtar-se deresponsabilidades. Neste sentido, a Lei Modelo da UNCITRAL, estabelece em seu art. 15, § 4º,que uma declaração eletrônica se considerará expedida e recebida no lugar onde remetente edestinatário, respectivamente, tenham seu estabelecimento, no caso de mais de um, onde tenham oprincipal. Portanto, têm-se como principal norte que se reputa celebrado o contrato eletrônico nolugar onde reside o proponente ou onde esteja afixado seu estabelecimento principal.

De qualquer sorte, em hipótese que se admite apenas para argumentar, desta-ca-se que as considerações são tecidas à luz do Direito comparado e magistério da doutrina, umavez que em solo brasileiro inexiste qualquer tipo de legislação específica acerca da contrataçãointernacional e da tutela das ações que nasçam com base no meio eletrônico, principalmente, doconsumidor por suas características de hipossuficiência e vulnerabilidade.

Ademais, o julgador conta com o ordenamento jurídico posto, e este lhe remeteas disposições da Lei de Introdução ao Código Civil – LICC, a qual condiciona a existência detratado e relacionamento com o outro país envolvido na celebração.

3.4 Validade

Quando se fala a respeito dos pressupostos de validade contratual, tem-se,como forma resumida, que o contrato deve nascer de uma manifestação de vontade emanada demaneira livre e de boa-fé. Só pode ser manifestada de forma livre se o agente for capaz narealização do ato.

Com relação a esta capacidade não se remete, o leitor, à idéia de capacidadegenérica da personalidade, mas sim à específica condição de ser pólo de determinado contrato, quetem como “legitimidade”. É de boa-fé o contrato que tenha por objeto bem da vida “idôneo”, ouseja, “lícito”, que este possa ser “possível” (física e juridicamente), de figurar como objeto contratuale que tal seja “determinado” ou “determinável”, aquele que seja individualizado ou com elementosmínimos capazes de individualizá-lo.

Como elucidação é válido citar o artigo 426 do atual Código Civil que determinaa proibição de figurar como objeto contratual a herança de pessoa viva. A forma também possui oseu lugar na averiguação da qualidade do vínculo formado, portanto deve ser a adequada para cadacaso, ou seja, a “prescrita” ou “não defesa em lei” (GAGLIANO, 2005, p. 22-23).

Caso, em um contrato, não se perceba algum desses elementos, aquele nasce-rá nulo. Trata-se de pressupostos de validade cuja falta, seja de um ou mais, reputa a nulidade donegócio celebrado.

08-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43120

121

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco da Silva e Wesley Tomaszweski

3.4.1 Forma

Há que se dar mais uma palavra a respeito da forma. Tem-se, no artigo 107, doatual Código, a positivação do “princípio da liberdade da forma” para os negócios jurídicos. Assim,estabelece-se, como regra geral, que os negócios jurídicos sejam firmados sem a observância deforma determinada7 .

Aqui é que se percebe o grande fundamento positivo para a contratação eletrô-nica, visto que esta, por excelência, está baseada no princípio da livre forma, pois o que caracterizao comércio eletrônico é justamente o meio de comunicação veiculador de vontades e seu registroem suporte diverso da cártula habitual.

3.4.2 Legitimação e a determinação da autoria

O documento eletrônico é o meio físico, geralmente magnético ou óptico, capazde armazenar, para a posterioridade, aquilo estabelecido no contrato eletrônico, e, apesar de regis-trado em uma base não física, possui idoneidade para veicular o interesses das partes (DIAS, 2004,p. 82). Porém, por não estarem, as partes, fisicamente presentes, é necessário que se estabeleçameios de se auferir a autoria, a autenticidade dos sujeitos envolvidos na relação jurídica.

É este o grande problema do meio eletrônico. É aqui a base de situações capa-zes de gerar insegurança jurídica na contratação. Como determinar quem, exatamente, está dooutro lado de um computador aceitando ou fazendo proposta negocial? Sabe-se que a legitimidadepara a contratação é pressuposto de validade do negócio, assim como a licitude e a determinaçãodo objeto, sendo, portanto, nulo o negócio jurídico realizado por incapaz. Qual a responsabilidadeenvolvida nessa situação?

Uma forma simples e barata de resolver a questão é a adoção de webcams8 ,no momento da manifestação da vontade, que nos dá a certeza da pessoalidade e autoria do sujeitocontratante. Porém, torna-se inviável, tal medida, por aumentar os custos do processo.

Ricardo L. Lorenzetti (2004, p. 293), ensina que, como regra geral tem-se “aqueleque utiliza meio eletrônico e cria uma aparência de que este pertence à sua esfera de interesse,arca com os riscos e com os ônus de demonstrar o contrário”. Esta regra se dá com base nanecessidade de comportamentos de cooperação eficientes, sendo que quem opta pela contrataçãoeletrônica deve estar orientado em realizar os atos nos meios mais seguros e prevenir-se contraterceiros mal-intencionados.

Não é admissível que este pretenda que o ônus seja suportado pelo destinatário,o que se tornaria muito mais oneroso. Entende o autor supra-citado, que se trata da atribuição dosriscos que derivam do meio utilizado (LORENZETTI, 2004, p.293 e s.).

O que se tem como solução para o problema, maior objeto de pesquisa noâmbito da contratação eletrônica, é a adoção da certificação, uso de senhas, assinaturas eletrôni-cas ou digitais, ou, mesmo, um contrato prévio, onde as partes estão presentes, estabelecendo quese reputa a determinado sujeito toda e qualquer contratação, realizada por meio daquele equipa-mento (LORENZETTI, 2004, 291).

7 A não ser quando esta é estabelecida em lei, como visto acima.8 Pequenas câmeras de vídeo, de baixa resolução, utilizadas para a transmissão em tempo real da imagem da pessoa que está

operando o computador naquele momento.

08-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43121

122

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Contrato: Do Tradicional a Celebração Eletrônica - Aspectos Formais

4 CONCLUSÃO

Como exposto, desde o intróito, o crescimento da contratação eletrônica é ga-lopante e inevitável, assim como a rede mundial de computadores. A natureza humana revela-se,no sentido de receio e temor pelo desconhecido, entretanto alguns indivíduos são investigadores edesbravadores (uns mais outros menos) e aceitam o desafio de adentrar ao admirável mundo novo,a vida virtual. Nesse sentido, centrou o presente estudo na doutrina pátria e internacional, já queesta investiga e proporciona suporte teórico para o legislador e aplicador do direito.

Em sede de conclusões e em apertada síntese, é possível destacar ser perfeita-mente possível a contratação eletrônica sendo, inclusive, esta, abarcada pelo Direito pátrio, pormeio o Código Civil brasileiro baseado em uma filosofia culturalista que abre a lei para o que se temde novo no campo social, interpretando essas novas insurgências do meio, muitas vezes,analogicamente.

A abertura do sistema e a aplicação principiológica revelam-se como um su-porte normativo, à disposição do operador do direito. Cabe à doutrina e à jurisprudência delinear elocalizar as deficiências e peculiaridades do cenário eletrônico para que este disponha de meiosque proporcione maior segurança aos contratantes.

Nesse sentido, localiza-se a primeira problemática. Definir a natureza jurídicado contrato eletrônico. A doutrina ainda não chegou a um entendimento uníssono. Se não fossesuficiente, restam dúvidas quanto à legitimação das partes envolvidas, o que requer um usosupervalorizado da boa-fé dos contratantes.

Enfim, a sociedade hodierna caracteriza-se pela globalização, digitalização evelocidade da informação. Resta ao direito buscar tutelar as relações nesta desenvolvidas, umavez que negar a evolução constante das instituições jurídicas, principalmente das relações privadas,pelo aspecto cotidiano, seria omitir-se quanto a evolução do próprio homem e do meio em que eleestá inserido.

REFERÊNCIAS

CAIO MARIO, da Silva Pereira. Direito Civil: alguns aspectos de sua evolução. Rio de Janeiro:Forense, 2001.

CARVALHO, Ana Paula Gabogi. Contratos Via Internet. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

COLARES, Rodrigo Guimarães. Internet Legal: O Direito na Tecnologia da Informação. Artigo:Contratos Eletrônicos x Informáticos. Modalidades Contratuais ganharam novas terminologias. 4.tiragem. Curitiba: Juruá, 2006.

CORRÊA, Gustavo Testa. Aspectos Jurídicos da Internet. São Paulo: Saraiva, 2000.

DIAS, Jean Carlos, Direito Contratual no Ambiente Virtual, 2. ed. rev. e atu. Curitiba: Juruá, 2004.

FERREIRA, Ivette Senise; BAPTISTA, Luiz Olavo. Novas Fronteiras do Direito na

Era Digital. São Paulo: Saraiva, 2002.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PANPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Con-tratos. v. 4. Tomo I. São Paulo: Saraiva, 2005.

GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito das Obrigações – Parte Especial – Contratos (SinopseJurídicas), Tomo I. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

LAWAND, Jorge José. Teoria geral dos Contratos Eletrônicos. São Paulo: Juarez de Oliveira,2003.

08-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43122

123

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Simone Vinhas de Oliveira, Valkíria A. Lopes Ferraro, Vinicius Franco da Silva e Wesley Tomaszweski

LORENZETTI, Ricardo L. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

ORTIZ, Rafael IIIescas. Derecho de la contratación eletrônica. Madrid: Civitas Ediciones,2001.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

REVISTA GAZETA MERCANTIL: E-commerce - Comércio varejista virtual. 04.01.2006.

08-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43123

Linha de Pesquisa “Teorias do Direito do Estado e Cidadania”

09-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43125

127

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER CONSTITUINTE

Ana Carolina Miiller Lopes* Ana Karina Ticianelli Möller*

RESUMO

O artigo trata do Poder Constituinte Originário, analisado como um fato não jurídico, que ocorre noplano das relações político-sociais, e constrói, a partir de si, a lei suprema. Expõe em situaçãodiversa o Poder Constituinte Derivado, como um segundo poder, jurídico, calcado em uma regraconstitucional do Direito e seus limites.

Palavras-chave: Poder Constituinte Originário. Poder Constituinte Derivado.

CONSIDERINGS ON THE CONSTITUENT POWER

ABSTRACT

The article deals with the Originary Constituent Power, analyzed as a not legal fact, that occurs inthe plan of the social politician relations, and constructs, from itself, the supreme law. Derivativedisplays in diverse situation the Constituent, as as to be able, legal, treaded Power in a constitutionalrule of the Right and its limits.

Keywords: To be Able Constituent Originary. To be Able Constituent Derivative.

1 INTRODUÇÃO

O texto pretende a análise do Poder Constituinte Originário como um fato nãojurídico, que ocorre no plano das relações político-sociais, não encontra como referencial nenhumanorma jurídica, e constrói, a partir de si, a lei suprema, afirmado como o momento de passagem dopoder ao direito. Situação diversa encontra-se o Poder Constituinte Derivado, calcado em umaregra de Direito, constitucional, que permite a Emenda Constitucional.

Compreender a origem, a força e a atuação do Poderes Constituintes Originá-rio e Derivado, este com todos seus limites, aquele de poder ilimitado, torna-se necessário paracompreensão da própria história da Constituição, bem como de seu significado para toda a socie-dade.

2 O PODER CONSTITUINTE

Poder Constituinte é aquele entendido como o Poder de se elaborar uma Cons-tituição; capaz de criar, modificar ou implementar normas de força constitucional. É um poderprimário, primogênito, de primeiro grau, genuíno, não adstrito a nenhum outro poder ou direito(DINIZ, 2004). É ilimitado, incondicionado, não tem por referencial nenhuma norma jurídica, pelocontrário, é a partir dele que vai ser produzida a norma suprema, o texto jurídico. Portanto o PoderConstituinte é pré-jurídico, precede à formação do direito, não sofre embargo de ordem jurídica e/ou nenhuma outra ordem.

* Advogada, especialista em Direito Empresarial, mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina.* Advogada, especialista em Direito Empresarial, mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina.

09-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43127

128

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Considerações sobre o Poder Constituinte

Pode-se afirmar que o Poder Constituinte Originário é o maior momento deruptura com uma ordem constitucional, sendo que, devido à força do Poder Originário, essa novaordem constitucional que se inicia não terá qualquer limite jurídico positivo naquele sistema com oqual se está rompendo.

Celso Antonio Bandeira de Melo (1983, p.69) entende que o Poder Constituintenão se constitui um fato jurídico, já que o ser incondicionado, o ser ilimitado já demonstra que nãosofre nenhum tipo de restrição, e, portanto, não tem por referencial nenhuma norma jurídica. Edessa forma, também não se teria de falar que o Poder Constituinte confere poder a alguém, já queo Poder Constituinte é um fato, ou alguém tem este poder e o exerce ou não tem este Poder. Eleexiste por si só e assim produz seus efeitos, sem que algum bloqueio de ordem jurídica possa servirde embargo, de óbice, de impeço àquilo que venha a ser disposto pelo Poder Constituinte.

O titular do Poder Constituinte é o povo, pois a idéia de titularidade do Poderestá adstrita à imagem de soberania do Estado, uma vez que através do exercício do Poder Cons-tituinte Originário se estabelecerá sua organização fundamental através da Constituição. Assim, atitularidade do Poder Constituinte pertence ao povo, pois o Estado decorre dessa soberania popu-lar. Entretanto, não se confunde titularidade com exercício, sendo que o titular do poder constituinteé o povo, entretanto o seu exercício é realizado por aqueles que, em nome do povo, criam o Estado,editando uma nova Constituição.

A Constituição é feita não pelo, mas para o Estado, a ponto de se afirmar que,juridicamente falando, a cada nova Constituição corresponde a um novo Estado, sendo, por essarazão, no entendimento de Miguel Nogueira de Brito (2000, p. 32) “que toda a Constituição Positivatoma o nome do Estado que ela põe no mundo das positividades jurídicas”, como “República Fede-rativa do Brasil”. Ainda do mesmo autor, “... a própria Constituição originária, que é a primeira vozdo Direito aos ouvidos do povo, é gestada por ele e somente por ele, o Poder Constituinte”.

O exercício do Poder Constituinte Originário realiza-se por meio da outorga,também chamada de “Movimento Revolucionário” e da Assembléia Nacional Constituinte. A ou-torga é o estabelecimento da Constituição pelo próprio detentor do poder, sem a participação popu-lar. É ato unilateral do governante, que auto-limita o seu poder e impõe as regras constitucionais aopovo. Geralmente é a primeira forma de Constituição de um país que adquire liberdade política. Jáa Assembléia Nacional Constituinte é a forma típica de exercício do poder constituinte, em que opovo, seu legítimo titular, democraticamente, outorga poderes a seus representantes especialmenteeleitos para a elaboração da Constituição. Ocorre em todas as demais Constituições após a outor-ga da primeira (MORAES, 2004, p.58).

Para o professor Pinto Ferreira (apud MAGALHÃES, 2004) existem doistipos principais de organização do poder constituinte. O primeiro é o modelo da convenção consti-tucional, que é o tipo primitivo onde existe uma assembléia eleita pelo povo para elaborar a Cons-tituição, e não há necessidade de ratificação popular. O segundo modelo é o sistema popular direto,onde a Constituição é votada pela convenção nacional e posteriormente é submetida à aprovaçãopopular através do referendo, sendo que esta última é tida como a forma mais democrática derealização do Poder Constituinte.

O Poder Constituinte Originário é forte o suficiente para romper com oordenamento anterior sem qualquer limite jurídico positivo. É um poder de fato, de transformaçãosocial, e aí reside a sua força. Uma Constituição deve ser tão forte e perene a ponto de nenhumpoder jurídico conseguir romper com seus fundamentos e estrutura. Apenas um poder social forta-lecido tem autoridade para tal, legitimando essa ruptura, sem ilegalidade ou inconstitucionalidadeem relação ao ordenamento rompido.

Com a afirmativa de que somente o poder constituinte é poder de fato – histó-rico e transformador, e não jurídico, tem-se a segurança de que a Constituição não será objeto demanobra política por parte da rotatividade parlamentar, evitando que os interesses sejam constan-temente modificados, à mercê de uma minoria, ainda que esta minoria seja, teoricamente, a repre-sentação de uma sociedade.

O desenvolvimento de mecanismos representativos e consultivos, como o ple-biscito e o referendo, para alteração do texto constitucional, deve ser analisado com cautela, pois aforça da propaganda manipuladora pode proporcionar uma falsa vontade popular. Nada justifica,

09-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43128

129

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller

senão uma mobilização popular genuína, as rupturas profundas constitucionais. O Poder Constitu-inte somente será legítimo quando sustentado por um amplo processo democrático, constituindo-setambém um Poder de Direito, entendendo o direito não como texto positivado, mas como idéia dejustiça, fundamentando democraticamente as rupturas constitucionais, com debate profundo dosmais variados interesses e valores da sociedade nacional.

Para Antonio Negri (In: BRITO, 2000, p.35) o poder constituinte apresenta-secomo uma dilatação revolucionária da capacidade humana de fazer história, como um ato funda-mental de inovação, e, deste modo, como um procedimento absoluto, que significa a capacidadereal, de organizar uma estrutura dinâmica, de construir uma forma formadora que, através decompromissos, balanços de forças, ordens e equilíbrios diversos, encontra a racionalidade dosprincípios, a adequação material do político relativamente ao social.

Encontra-se, historicamente, o Poder Constituinte exercido de diversas manei-ras, tendo como sujeito grupos, com interesses além dos da sociedade, ou indivíduos, como ditado-res, reis, titulares de um poder nem sempre legítimo, com distorções graves do conceito de demo-cracia. Mas também exercido de forma diferente, com expressa representação e manifestaçãopopular, da vontade nacional.

É certo que a vontade do poder constituinte deve emanar de mecanismos de-mocráticos, que permitam que o processo de elaboração da constituição, assim como de sua refor-ma, seja aberto a ampla participação popular, não apenas através de diálogo com os representanteseleitos, mas através do poder de soberania do povo. Portanto, o Poder Constituinte Origináriopertence a uma assembléia eleita com a finalidade de elaborar a Constituição, deixando de existirquando cumprida tal função, e, assim sendo, é um poder temporário.

Também pode o Poder Constituinte resultar de um golpe de militar, como foi ocaso do Brasil, exercido com a Carta de 1967 e uma nova Carta em 1969, denominada de Emendanº 1, cujo processo da reforma constitucional reflete as tensões internas do regime da época, daoposição dos moderados à linha dura do regime vigente.

O poder será democrático quando existir de forma ampla a demonstração ediscussão de temas de importância nacional, com a efetiva participação das forças sociais, com omínimo de pressão de grupos econômicos e manipulação por meio de marketing político, a fim dese evitar que a vontade de uma minoria prevaleça sobre a vontade e as necessidades reais de todaa sociedade.

A aceitação e legitimação do texto pela sociedade são tão necessárias que,embora essencial a existência de um processo democrático na sua elaboração, pode nascer deforma inadequada e, mesmo assim, ser incorporada pela sociedade, como no caso da Lei Funda-mental alemã de 1949, ainda hoje vivida pelos alemães, como verdadeira Constituição, entre outrosexemplos históricos.

Julian Franklin (In: BRITO, 2000, p.16) explica que Locke introduziu pela pri-meira vez a distinção clara e consistente entre poder constituinte e poder ordinário, de aplicaçãouniversal, estabelecendo o princípio de que os representantes ordinários, independente do fato deterem sido eleitos democraticamente, não podem alterar procedimentos constitucionais ou liberda-des do sistema que sejam constitucionalmente reservadas aos indivíduos, sem o consentimento detoda a comunidade. O modo de Locke fundamentar o direito de resistência ressaltou a importânciados conflitos entre rei e parlamento que caracterizavam a história política inglesa do Séc. XVII, aserem resolvidos por meio da soberania do povo. Para Locke, existe um poder constituinte perma-nente no povo, referente à sua titularidade, mas não ao respectivo exercício. Fundamenta com ofato de o poder constituinte aparecer equacionado com o direito de resistência.

Apesar do Poder Constituinte ser um poder político por excelência, não sedeixando regrar pelo Direito, não significa que está imune aos fatores sócio-culturais da sociedadeque o detém. A legitimidade da Constituição a ser constituída está intrinsecamente ligada ao reco-nhecimento político que terá por esta mesma sociedade. Há sim uma independência formal ematerial, um rompimento com a carta anterior, mas a construção e a conquista dos direitos funda-mentais das sociedades não podem ser relegados e esquecidos quando da elaboração da novacarta. São direitos que precedem a própria Constituição, que independem de sua positivação parasua aceitação pela sociedade.

09-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43129

130

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Considerações sobre o Poder Constituinte

Existe um grande questionamento sobre a legitimidade da Constituinte pararomper com os direitos fundamentais da ordem constitucional anterior. E a Assembléia NacionalConstituinte pode realmente fazer isso, já que seu poder é incondicionado a qualquer norma jurídi-ca, além de soberana e de ter poder ilimitado para dispor da forma como desejar. Entretanto é certoque os direitos e garantias fundamentais independem de positivação para serem reconhecidoscomo legítimos pelo povo. Assim, não é uma Constituição que tem o Poder para positivar taisdireitos e garantias, mas, sim, estes são positivados nas Constituições por serem direitos vivenciadose reconhecidos pela sociedade.

Por isso que, mesmo a Constituinte sendo legítima, no sentido literal da palavra,para dispor e até excluir esses direitos e garantias fundamentais do texto constitucional, não seráreconhecida pela sociedade tal exclusão, já que o povo soberano reconhece tais valores comodireitos seus legítimos, e, assim sendo, continuarão a requerê-los quando houver violação ou ame-aça de violação dos mesmos, independentemente de sua positivação.

Quando o povo se reúne em uma Assembléia Nacional, que representa a soci-edade e não o Estado, assumindo sua natureza constituinte, e positiva seus direitos e suas diretrizes,exerce a plena soberania e transforma este poder de constituir em poder constituído, saindo daesfera política e adentrando, agora, sim, na esfera jurídica. Dissolve-se a Assembléia no momentoda positivação e promulgação da nova Carta.

A Constituição Federal de 1998 foi incorporada pela sociedade brasileira e temem cada cidadão, sociedade organizada, tribunais e juízos de primeiro grau, administradores elegisladores, seus intérpretes e defensores contra a ação do Congresso Nacional e alguns juízes,quando deixam de aplicar o texto constitucional para proteger políticas econômicas inconstitucionais,ou utilizam de emendas constitucionais, inconstitucionais, visando priorizar o econômico, contra oDireito e a Justiça (MAGALHÃES, 2004).

Em relação à Constituição Federal de 1988 há questionamento por parte dealguns autores e doutrinadores sobre a legitimidade da Assembléia Nacional Constituinte convocadapara compor a elaboração da nova Carta Magna do Brasil. Ocorre que a convocatória da Assem-bléia Constituinte se deu através da Emenda Constitucional nº 26 à Constituição Federal de 1969,por iniciativa do próprio Poder Executivo, que tenta transformar o Congresso, que é um poderconstituído e limitado, em um órgão de soberania como deve ser a Assembléia Constituinte(BONAVIDES, 2004, p. 493). Assim, foram eleitos deputados e senadores, uma assembléia con-gressista que não viria a ser dissolvida posteriormente, para a mais importante tarefa de criar anova Carta Constitucional, sendo que tal fato exclui da Assembléia Nacional Constituinte os requi-sitos da soberania popular plena e ruptura com a ordem constitucional anterior, pressupostos quesão fundamentais para a uma Constituinte, o que fundamenta a discussão sobre sua legitimidade.

Cabe, porém, ressaltar que, embora tenha havido vários problemas de ordemformal, que, muitas vezes, colocam em dúvida a real legitimidade da Constituinte, é certo que, emtoda a história constitucional brasileira, não houve outra Constituinte na qual o povo estivesse tãoperto dos mandatários da soberania e pudessem, sem qualquer óbice ou restrição, colaborar para oatual texto constitucional, participando efetivamente de sua instituição. Assim, tais fatos bastam, noentendimento de Paulo Bonavides (2004, p. 496), para “explicar e demonstrar o alto índice delegitimação alcançado pela Constituinte congressual, redimida assim de suas origens impuras”visto que devido à tamanha participação social em sua elaboração há integral reconhecimento,incorporação e vivência de seu conteúdo pela sociedade brasileira.

3 O PODER CONSTITUINTE DERIVADO E SEUS LIMITES

Diferente do Poder Constituinte Originário, que tem como finalidade a elabora-ção de uma nova Constituição, o Poder Constituinte Derivado, também chamado de Reformador,pode se manifestar a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais e observadosos limites impostos. Diz respeito à alteração de elementos secundários de uma ordem jurídica,tendo em vista não ser possível alterar através de emenda ou revisão os princípios fundamentais ouestruturais de uma ordem constitucional. Os princípios fundamentais e estruturantes são a essência

09-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43130

131

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller

da Constituição, e, mesmo que não haja cláusula expressa que proíba emenda ou revisão, a essên-cia não pode ser alterada.

O Poder de revisão é mais amplo que o de emenda, pois trata de uma revisãosistêmica do texto constitucional. Apesar de prevista na Constituição brasileira, a revisão foi con-cretizada atipicamente, por meio de emendas, porém respeitados os aspectos formais processuaisda revisão prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Enquanto o Poder Constituinte Originário visa resolver o problema da fundaçãode um novo corpo político, o poder de revisão se encarrega com o problema das alterações daconstituição e tem a ver com a questão de saber como poderão as gerações futuras exercer o seuconsentimento relativamente à lei fundamental (BRITO, 2000, p. 125).

O poder de reforma pode manifestar-se a qualquer tempo, desde que respeita-dos determinados limites. Em relação aos limites do Poder Constituinte Derivado, são divididos emtrês espécies: limites materiais, formais e temporais (AGRA, 2002, p. 77). Os limites materiais sãoaqueles que dizem respeito às matérias que podem ser tratadas pela emenda constitucional. Assim,o art. 60, parágrafo 4º, incisos I a IV da CF, dispõe sobre os limites materiais, informando que évedada emenda tendente a abolir a forma Federal, os direitos individuais e suas garantias, a sepa-ração dos poderes e a democracia. Tendo em vista a teoria da indivisibilidade dos direitos funda-mentais, conclui-se que também não pode haver emendas que limitem de qualquer forma os direi-tos individuais, políticos, sociais e econômicos.

Nesse mesmo artigo, encontram-se alguns limites circunstanciais, sendo quenão poderá haver emendas ou revisão durante situações como o estado de sítio, estado de defesae intervenção federal, pois são ocorrências de grave comprometimento da democracia. Outrolimite diz respeito às regras constitucionais referentes ao funcionamento do poder constituinte dereforma, que não podem ser objetos de emenda, sob pena de total ausência de segurança jurídica.

Também há aqueles limites materiais implícitos, que são os que dizem respeitoao funcionamento do poder constituinte de reforma, que não podem ser objetos de emenda, sobpena de falta de segurança jurídica. Mesmo não existindo limites expressos, o poder de reformanão pode se transformar em um poder originário. O poder de reforma pode modificar, alterar oconteúdo da Constituição, mantendo sua essência, ou seja, os princípios fundantes e estruturantes,pois reforma não é construir outro e sim modificar por meio de adição, supressão ou modificaçãode alínea, inciso e/ou artigo da Constituição, mantendo-se sua estrutura e fundamentos (AGRA,2002, p. 77).

Os limites formais impostos na Constituição Federal são aqueles que obrigamque a emenda se dê através de quorum de 3/5, em dois turnos de votação, em seção bicameralenquanto a revisão ocorre em seção unicameral por maioria absoluta (50% mais um de todos osrepresentantes). Quanto aos limites temporais, a Constituição de 1988 estabeleceu que a revisãoocorreria após cinco anos da promulgação da Constituição, não existindo limites temporais para areforma por meio de emendas (MAGALHÃES, 2004).

Portanto, Poder de reforma significa alterar normas secundárias, as regras,mas jamais a estrutura, a essência, o fundamento de uma ordem jurídica.

4 CONCLUSÃO

Com o presente estudo conclui-se a importância em entender o Poder Consti-tuinte e as diferenças entre suas formas de expressão, seja como Poder Constituinte Originário,seja como Poder Constituinte Derivado ou Reformador, já que tais formas foram, por várias vezes,utilizadas nas Constituições Federais Brasileiras e ainda serão cada vez que o povo brasileiroentender necessária a ruptura com as atuais realidades sócio-político-jurídicas.

Poder Constituinte Originário é aquele ilimitado, incondicionado, que cria umanova Constituição através da soberania popular, delega o exercício de tal poder a uma AssembléiaConstituinte. Já o Poder Derivado ou Reformador é aquele que fica à disposição para quando fornecessária alguma alteração no conteúdo da Constituição então vigente, e faz tal modificação pormeio de emenda ou revisão.

09-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43131

132

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Considerações sobre o Poder Constituinte

Com relação ao questionamento sobre a possibilidade de o Poder ConstituinteOriginário, escolhido para compor uma nova Ordem Constitucional, ter legitimidade para eliminardo novo texto as garantias e direitos fundamentais previstos e já aceitas pela sociedade, verifica-seque tal poder tem realmente esta legitimidade, por ser ilimitado, incondicionado, e por romper-seem relação ao antigo texto constitucional, sem necessidade de se ater a quaisquer direitos anterior-mente previstos.

Ocorre, entretanto, que esses direitos e garantias individuais e sociais, aceitos eincorporados pela sociedade, não são apenas pelo motivo de estarem positivados no texto Consti-tucional. Engana-se aquele que entende que tais direitos somente existem em decorrência de dis-posição legal. Pelo contrário. Em relação a esses direitos foi a própria lei que teve de adequar-secom tais dispositivos em seu conteúdo, uma vez que tais direitos já estavam aceitos e incorporadospela sociedade, e qualquer nova ordem constitucional que venha a ser implementada, deverá con-ter, em seu bojo, tais direitos e garantias, uma vez que estes são pré-constitucionais. Tais direitos egarantias são como a essência humana, e independentemente de positivação, já são reconhecidospela sociedade como tais. Assim, a Constituição, na sua essência, deve ser tão forte e perene quenenhum poder constituinte pode romper com seus fundamentos e estrutura, mas somente um podersocial mais forte, que nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo, já que é o poder social dospróprios cidadãos, incorporados, reconhecidos e aceitos por eles através da história e da evoluçãosocial.

Em relação à legitimidade da Assembléia Nacional Constituinte de 1987, sejapela natureza da Constituinte Congressista, seja pela questão da não ruptura com a ordem consti-tucional anterior, é inegável que o poder constituinte originário foi forte o suficiente para construiruma nova ordem sem nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual se estava rom-pendo, e a sua legitimidade está validada pela participação popular em sua elaboração, tanto que,embora não cumpridos alguns requisitos formais de uma Constituinte, está sendo integral e plena-mente vivida e sentida pela sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS

AGRA, Walber de Moura. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dosTribunais, 2003.

BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,2002.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 5. ed. Brasília:OAB Editora, 2004.

BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

BRITO, Miguel Nogueira de. A Constituição Constituinte. Ensaio sobre o poder da revisãoda Constituição. Coimbra: Coimbra, 2000.

CRETELLA JR., José. Elementos de Direito Constitucional. 4. ed. rev. atual. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2000.

DINIZ, Jean dos Santos. O Poder Constituinte – Aula 01. 05 abr. 2004. Disponível em: <http://www.vemconcursos.com/opiniao/index.phtml?page_ordem=assunto&page_id=1502&page_print=1>.Acesso em: 09 jun. 2006.

09-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43132

133

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Ana Carolina Miiller Lopes e Ana Karina Ticianelli Möller

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. A Teoria do Poder Constituinte. Jus Navigandi, Teresina,ano 8, n. 250, 14 mar. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4829>.Acesso em: 24 jun. 2006.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Revista de Direito Constitucional e Ciência Políticanº. IV, 1983.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

09-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43133

134

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de InterpretaçãoConstitucional

A INFLUÊNCIA DA TÓPICA NO PENSAMENTO DE PETER HÄBERLE E OSEU CONCEITO DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL1

Carolina V. Ribeiro de A. Bastos*Eder Fernandes Mônica

Samia Moda Cirino

RESUMO

Diante dos novos problemas da sociedade contemporânea e da necessidade de uma atualização daTeoria da Constituição, o presente trabalho tem por escopo analisar a reformulação dada às teoriastradicionais da Interpretação, que se mostraram em determinado momento insuficientes. Paratanto, abordar-se-á primeiramente a metodologia clássica da interpretação e, em seguida a contri-buição da Tópica no sentido de voltar à atenção para o problema ao colocar o intérprete emcontato com a realidade. Tratará também das posturas intermediárias, que procuraram a concilia-ção entre realidade e normatividade. E, por fim, analisar-se-á a teoria pluralista e procedimental dePeter Häberle, a qual colocou novas indagações, até então inexistentes, à Teoria da InterpretaçãoConstitucional.

Palavras-chave: Teoria da Constituição. Interpretação. Peter Häberle.

THE INFLUENCE OF THE TOPICAL IN THE THOUGHT OF PETER HÄBERLEAND ITS CONCEPT OF CONSTITUTIONAL INTERPRETATION

ABSTRACT

Before the new problems of the contemporary society and of the need of a modernization of theTheory of the Constitution, the present work has to objective to analyze the reformulation given tothe traditional theories of the Interpretation, that were insufficient in certain moment. For so much,it will be approached the classic methodology of the interpretation firstly and, in continuation, thecontribution of the Topical in the sense of returning to the attention for the problem when placingthe interpreter in contact with the reality. The intermediary postures will be treat too, that soughtthe conciliation between reality and the normativity. Finally, will be analyzed the pluralist and theprocedimental theory of Peter Häberle, which placed new inquiries, until then no existents, to theTheory of the Constitutional Interpretation.

Keywords: Constitucional Theory. Interpretation. Peter Häberle.

1 INTRODUÇÃO

Canotilho enumera alguns problemas básicos da Teoria da Constituição, taiscomo: dificuldade de inclusão dos problemas das mudanças e inovações jurídicas; necessidade dereinvenção do seu território; impossibilidade de formação de um código unitário diante da comple-xidade social que gera diferenciações funcionais em sistemas (político, econômico, jurídico); au-sência de uma compreensão de novos conceitos da teoria social como o conceito de risco, dentreoutros (2004, p. 27-35).

1 Trabalho apresentado como requisito parcial de conclusão da disciplina de Direito Constitucional do curso de Mestrado emDireito Negocial da Universidade Estadual de Londrina.

* Mestrandos em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina.

10-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43134

135

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Moda Cirino

Esses problemas demonstram que, face ao desenvolvimento acelerado e o graude complexidade das sociedades contemporâneas, o Direito Constitucional e Teoria da Constitui-ção já não conseguem responder às demandas por uma sociedade mais justa e igualitária. Atual-mente, há que se refletir e afrontar questões como diversidade, comunidade global e legitimaçãodemocrática da Constituição se se pretende sair do idealismo e tentar recuperar o contato com arealidade social.

Nesse contexto, novos instrumentos surgiram no sentido de dar umareformulação às teorias tradicionais da interpretação constitucional. Percebeu-se que os métodosclássicos não conseguiam responder satisfatoriamente às novas demandas sociais e às particulari-dades apresentadas, bem como se levantou o problema de qual seria a melhor maneira de interpre-tar a Constituição, ou ainda o que se entende por “interpretação constitucional”.

O filósofo da linguagem Wittgenstein acreditava que a indagação sobre o signi-ficado das palavras orienta melhor as tarefas práticas da vida e que o estudo do uso da linguagemlogo mostra a grande complexidade da vida social. Segundo Wittgenstein, a incerteza quase sem-pre é o resultado obtido quando se procura respostas para perguntas que aparentemente são sim-ples, como, por exemplo: o que é o Direito (MORRISON, 2006, p. 01-02)?

Neste sentido, este estudo propõe a tarefa de buscar, na perspectiva de PeterHäberle, a resposta à questão: O que é interpretação constitucional? Para tanto, primeiramente,partiu-se da metodologia clássica da interpretação constitucional, demonstrando suas premissas einsuficiências, as quais levaram os autores a buscar uma relação maior com a realidade, ou seja,deixando somente o caráter abstrato e geral das normas constitucionais e levando em conta aConstituição material e sua capacidade de apreender e resolver os problemas. Essa foi a propostada tópica jurídica, relevante por despertar a atenção para o problema em si. Entretanto, outrosjuristas verificaram que, ao se conferir tanta relevância ao problema, corria-se o risco da perda denormatividade da Constituição. Houve então a procura de uma metodologia que permitisse o con-tato com a realidade sem se perder o caráter normativo. Peter Häberle, ao analisar essa discussão,mudou seu enfoque, no sentido de não só se buscar os melhores métodos, mas também uma maiorlegitimação do processo de interpretação constitucional.

2 METODOLOGIA CLÁSSICA DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Devido a motivos como ambigüidade do texto, imperfeição, falta de terminolo-gia técnica é que a doutrina tem buscado desenvolver métodos para a interpretação das normasjurídicas e, mais especificamente, das normas constitucionais, haja vista suas peculiaridades. Con-soante assevera Canotilho (CANOTILHO, 2003, p. 1210):

A questão do “método justo” em direito constitucional é um dos problemasmais controvertidos e difíceis da moderna doutrina juspublicista. No mo-mento atual, poder-se-á dizer que a interpretação das normas constitucio-nais é um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela jurispru-dência com base em critérios ou premissas (filosóficas, metodológicas) dife-rentes mas, em geral, reciprocamente complementares .

Contudo, segundo Luis Roberto Barroso (2003, p. 107), os adeptos dos chama-dos métodos clássicos de interpretação, advindos dos institutos do Direito Civil, parecem não aten-tar às seguintes particularidades constitucionais: superioridade hierárquica, natureza da linguagem,caráter político, dentre outros aspectos que evidenciam a necessidade de uma metodologia aplica-da à Constituição de certa forma autônoma dos demais métodos interpretativos presentes no siste-ma jurídico (2003, p. 107).

A metodologia clássica parte da tese da identidade pela qual a interpretaçãoconstitucional equivale à interpretação legal, tendo em vista que, para todos os efeitos, a Constitui-ção é uma lei. Assim, a despeito da posição que ocupa na estrutura do ordenamento jurídico, a

10-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43135

136

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de InterpretaçãoConstitucional

Constituição essencialmente é uma lei e, por isso, há de ser interpretada segundo as regras tradici-onais da hermenêutica, articulando-se e complementando-se, para revelar o seu sentido, os mes-mos critérios que são levados em conta na interpretação das leis em geral.

Trata-se de uma concepção hermenêutica, baseada na idéia de que toda nor-ma possui um sentido em si, uma vontade pré-existente, seja aquela que o legislador pretendeuatribuir-lhe (mens legislatoris), seja a que afinal acabou embutida no texto (mens legis). E, pormeio dos instrumentos de interpretação (lógico, sistêmico, teleológico e gramatical), poderia seralcançado o sentido, o querer inerente à norma independentemente do problema a ser soluciona-do. Por isso, a tarefa do intérprete, como aplicador do direito, resumir-se-ia em descobrir overdadeiro significado das normas e guiar-se-ia por ele na sua aplicação. Assim, desde fins doséculo XIX, essas duas teorias da interpretação jurídica - objetiva e subjetiva - enfrentam rela-tivamente quanto ao critério metodológico que o interprete deve seguir para desvendar o sentidoda norma (DINIZ, 2003, p. 420).

A teoria subjetiva, que tem como principais expoentes Savigny e Windscheid,estabelece, como meta da interpretação, o estudo da vontade histórico-psicológica do legisladorexpressa na norma. O pensamento dominante, nessa metodologia, estava eminentemente voltadopara o legislador a fim de determinar a mens legis, entendida como a vontade oculta do propositorda norma, cuja vontade incumbia ao intérprete revelar com fidelidade.

Segundo Bonavides, o voluntarismo é o traço marcante dessa corrente que serenova no século XX com as modernas escolas da interpretação, que substituem o voluntarismo dolegislador pelo voluntarismo do juiz. Assim ocorre, por exemplo, com os juristas da livre investiga-ção científica (Geny), do “direito livre” (Kantorowicz) e da teoria pura do direito (Kelsen). Entre-tanto, Bonavides destaca que os subjetivistas dessa nova corrente, exaltando a função judicial,“debilitam as estruturas clássicas do Estado de Direito, assentadas numa valorização dogmática dalei, expressão prestigiosa e objetiva de racionalidade” (2004, p. 453).

Já a teoria objetiva, tendo como principais representantes Karl Engisch,Schreier e Larenz, preconiza que na interpretação deve-se ater à vontade da lei – mens legis –que, com sentido objetivo, independe do querer subjetivo do legislador, porque, após o ato legislativo,a lei desliga-se do seu elaborador, adquirindo existência objetiva. Consoante expõe Diniz, a nor-ma seria uma “vontade transformada em palavras, uma força objetivada independente do seuautor”, razão pela qual deve ser buscado o sentido imerso no texto e não o que o legislador teveem mira (2003, p. 421).

A tese dessa corrente gira, ao dizer de Engisch, ao redor do texto da lei, “dapalavra que se fez vontade”. O conteúdo da lei se desprende do legislador e adquire autonomiapara seguir um curso independente. A vontade do legislador tem função apenas subsidiária,ficando, assim, a lei desmembrada de suas origens, dotada de força e vida própria (BONAVIDES,2004, p. 454).

A posição objetivista da interpretação da lei e da Constituição tornou-se a posi-ção predileta dos positivistas formais do século XIX que, em nome da estabilidade e segurançajurídica, preconizavam o dogmatismo e a legalidade como fundamentos das instituições do Estadode Direito. Vivia-se o auge do formalismo jurídico, do culto ao texto da lei, da Constituição Formale da neutralidade diante da tensão entre a Constituição e a realidade constitucional, de onde resul-tou um Direito Constitucional fechado, compacto, sistemático, lógico. Essa posição também levouao dualismo entre Estado e Sociedade. Nesse sentido, o texto constitucional exprimia basicamentea organização do Estado, a atribuição de competências, limitação de seus poderes e a declaraçãode direitos fundamentais oponíveis ao Estado.

A tarefa do intérprete de desvendar o sentido das normas constitucionais, sejaobjetivo ou subjetivo, é orientada pelos elementos interpretativos: gramatical ou literal, lógico, siste-mático, histórico e sociológico ou teleológico. Tais processos são “meios técnicos utilizados paradesvendar as várias possibilidades de aplicação da norma” (DINIZ, 2003, p. 425).

Pela técnica gramatical o intérprete busca o sentido literal do texto normativoante a indeterminação dos vocábulos que são, em regra, vagos ou ambíguos. Essa técnica se fundasobre as regras da gramática e da lingüística. Para Larenz, consiste na compreensão do sentidopossível das palavras, servindo esse sentido como limite da própria interpretação (BARROSO,

10-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43136

137

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Moda Cirino

2003, p. 127). A interpretação gramatical, segundo Jhering, reconhece tão somente o que se disseno texto da lei de modo direto e expresso. O que não consta das palavras é como se não existisse,e deixa, portanto, de ser objeto de consideração (BONAVIDES, 2004, p. 440-441).

A interpretação lógica é aquela que, examinando a lei em conexidade com asdemais leis, investiga-lhe também as condições e os fundamentos de sua elaboração, de modo aalcançar, posteriormente, a precisa vontade da lei. O elemento lógico, sintetizado na locução “in-tenção do legislador”, é considerado objetivamente e não subjetivamente, de modo que essa inten-ção não é a subjetivação de quem propôs a lei, mas a ratio ou mens é aquela que se insere e seobjetiva na norma mesma (BONAVIDES, 2004, p. 440-441). Quanto ao problema de fixação dosentido e valor que se deve conferir à intenção do legislador, a doutrina da interpretação lógica sereparte em três posições: escola dogmático-jurídica, escola da livre investigação do direito e escolahistórico-evolutiva. A escola dogmático-jurídica entende que a intenção ou vontade do legisladorresulta dos trabalhos preparatórios, das exposições de motivos, dos debates parlamentares queprecedem a adoção da lei. Todos esses elementos são importantes para determinar a mens legis.Já a segunda, a escola da livre investigação do direito, abre ao intérprete uma larga esfera deliberdade, que lhe consente deduzir o direito da consciência jurídica popular através da própriaconsciência. Por último, a escola histórico-evolutiva toma a lei como dotada de vida própria, ouseja, uma vez elaborada segue uma trajetória independente, amoldando-se às novas condições enecessidades da vida social. A vontade da lei é o que ela exprime objetivamente e não o que quisexprimir subjetivamente o legislador (BONAVIDES, 2004, p. 441-442).

Por sua vez, o processo sistemático considera o sistema, em que se insere anorma, relacionando-a com outras normas concernentes ao mesmo objeto. Consoante asseveraBarroso, “o Direito positivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organis-mo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmoniosamen-te”. A interpretação sistêmica é, portanto, fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Atra-vés dela o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral eparticular, estabelecendo conexões até vislumbrar-lhe o sentido e alcance (2003, p. 136).

A técnica interpretativa histórica, oriunda das obras de Savigny e Puchta, ba-seia-se na averiguação dos antecedentes da norma, da occasio legis. Consiste, portanto, na buscado sentido da lei através dos precedentes legislativos, desde o projeto de lei, sua exposição demotivos, emendas, aprovação, as circunstâncias fáticas que a precederam e que lhe deram origem,ou seja, às condições culturais ou psicológicas sob as quais o preceito normativo surgiu (DINIZ,2003, p. 428).

O processo sociológico ou teleológico objetiva, na visão de Ihering, adaptar afinalidade da norma às novas exigências sociais. O intérprete não pode estar indiferente às exigên-cias da vida e ao fato de que a norma se destina a um fim social, de que o magistrado deveparticipar, ao interpretar o preceito normativo (BONAVIDES, 2004, p. 440). Dessa forma, a técni-ca teleológica procura o fim, a razão do preceito normativo, para a partir dele determinar o seusentido.

No que tange a essas técnicas interpretativas, Scheuerle recomenda na aplica-ção prática do direito, uma livre escolha delas, como o melhor caminho a seguir, desde que isso,porém, possa conduzir a um resultado satisfatório (BONAVIDES, 2004, p. 456). Muitos seposicionaram a favor de uma livre escolha das técnicas interpretativas, como o melhor caminho aseguir, desde que isso pudesse conduzir a um resultado satisfatório. Entretanto, Savigny discrepariadessa livre eleição, pois afirmava que os quatro elementos tradicionais – gramatical, lógico, históri-co e sistemático – não constituíam quatro formas de interpretação entre as quais se poderia esco-lher à vontade, mas diferentes atividades a atuarem conjugadas a fim de se obter uma interpreta-ção bem-sucedida (BONAVIDES, 2004, p. 457).

10-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43137

138

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de InterpretaçãoConstitucional

3 AS TEORIAS MATERIAIS DA CONSTITUIÇÃO E A TÓPICA JURÍDICA

Os procedimentos hermenêuticos tradicionais, no âmbito da Constituição doEstado Liberal, funcionavam como interpretação de bloqueio, sob o primado do princípio da legali-dade, visando à certeza e à segurança jurídica. Entretanto, com o advento do Estado Social, asnovas aspirações sociais exigiram procedimentos que as legitimassem em face da Constituição, ouseja, uma interpretação de legitimação cuja realização exige a mediação concretizadora do intér-prete. Assim, com a configuração social do Estado, tornou-se difícil, para a metodologia de origemjusprivatista, conciliar o Direito com as novas aspirações da Sociedade, bem como a própria Cons-tituição à realidade.

Essas novas aspirações sociais geraram um inconformismo com o positivismológico-formal e o colapso das estruturas liberais de Estado. O social ganha prevalência sobre ojurídico, fazendo com que o direito constitucional, de matizes formalistas, entre em declínio. Abre-se um campo de imprevisível extensão para o florescimento de distintas posições interpretativas nodomínio da hermenêutica constitucional (BONAVIDES, 2002, p. 434-435).

É nesse contexto que surge a corrente tópica, como tentativa de responder àsnovas aspirações. Na configuração dada por Viehweg, a tópica toma como ponto de partida osentido comum, e o desenvolve mediante um tecido de silogismos e não mediante longas deduçõesem cadeia. Ela constitui uma parte da retórica, com raízes na Antiguidade, com as obras de Aristótelese Cícero, e com raízes na Idade Média, na qual a retórica foi uma das sete artes liberais. A partir doracionalismo e da irrupção do método matemático-cartesiano, houve a desqualificação da tópica,com sua conseqüente perda de influência na cultura ocidental. É por isso que Viehweg faz referên-cia à Vico em sua obra, na qual este contrapunha o método antigo, tópico ou retórico, ao métodonovo do cartesianismo (ATIENZA, 2003, p. 47-49).

Para Viehweg a tópica é caracterizada por três elementos, estreitamente liga-dos entre si. Do ponto de vista do seu objeto, a tópica é uma técnica do pensamento problemático;do ponto de vista do instrumento com que opera, o que se torna central é a noção de topos ou lugar-comum; e do ponto de vista do tipo de atividade, a tópica é uma busca e exame de premissas. Oque a caracteriza é ser um modo de pensar no qual a ênfase recai nas premissas, e não nasconclusões. Dessa maneira, a tópica é um procedimento de busca de premissas que, na realidade,não termina nunca. Os tópicos são os fios condutores do pensamento que só permitem alcançarconclusões curtas, e devem ser vistos como premissas compartilhadas que têm uma presunção deplausibilidade. Com esse procedimento seria possível resolver aporias ou problemas impossíveis dese afastar. A ênfase da análise recairia no problema, e não no sistema. Assim, trata-se de buscarum modo que ajude a encontrar a solução; o problema leva assim a uma seleção de sistemas e emgeral a uma pluralidade de sistemas (ATIENZA, 2003, p. 49-50).

Conforme expõe Bonavides (2002, p. 446 a 453), com a insuficiência do méto-do “científico” dos naturalistas e também com o malogro das correntes idealistas que tentavamresolver com exclusividade o problema do método, fez inevitável a ressurreição da tópica comométodo. Pensar o problema constitui o âmago da tópica. Ela não foi uma revolta contra a lógica,mas procurou demonstrar que o argumento dedutivo não constitui o único veículo de controle dacerteza racional. É a tópica uma técnica jurídica da “praxis”. A situação deve ser compreendidaem toda a sua complexidade, a fim de problematizar-se o ideal de uma solução. Mas houve contraa tópica fortes reações críticas e doutrinárias de juristas, preocupados com a metodologia, sobretu-do aqueles inclinados a uma visão sistemática da ciência jurídica.

A invasão da Constituição formal pelos topoi e a conversão dos princípiosconstitucionais e das próprias bases da Constituição em pontos de vista àlivre disposição do intérprete, de certo modo enfraquece o caráter normativodos sobreditos princípios, ou seja, a sua juridicidade. A Constituição, que jáé parcialmente política, se torna por natureza politizada ao máximo com ametodologia dos problemas concretos, decorrentes da hermenêutica tópica(BONAVIDES, 2002, p. 453).

10-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43138

139

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Moda Cirino

A tópica surge num contexto de renovação de toda a velha metodologia. Háuma busca de maior dinamismo nos métodos interpretativos. Com a tópica, a norma e o sistemaperdem o primado, tornando-se meros pontos de vista ou simples “topoi”, cedendo lugar àhegemonia do problema. Assim, os métodos clássicos são rebaixados à condição de auxiliares e,desde que convenham ao esclarecimento e solução do problema, todos os métodos interpretativospodem ser utilizados. Todo este contexto fez com que a tópica representasse o tronco de ondepartem as direções e correntes mais empenhadas em renovar a metodologia clássica de inter-pretação das regras constitucionais. Estas correntes ainda continuam em processo de elabora-ção teórica e de reação ao excesso de formalismo e juridicidade das correntes positivas(BONAVIDES, 2002, 452-454).

4 A REFORMULAÇÃO DA TÓPICA

Alguns juristas, comprometidos com a teoria material da Constituição, busca-ram uma saída metodológica para a crise em que a tópica tende igualmente a mergulhar: impo-tência teórica em lançar alicerces mais seguros. É nesse sentido que se levanta o jurista alemãoF. Müller, que procura estruturar e racionalizar o processo de concretização da norma, vinculan-do a atividade interpretativa a uma racionalização metodológica, não se dissolvendo, por conse-guinte, o teor de obrigatoriedade ou normatividade da regra constitucional. Interpretar seria omesmo que concretizar a norma. Mas a pergunta que Müller se faz é “que norma?”. Esse é oponto fundamental de suas análises. A norma jurídica é algo mais que o texto de uma regranormativa. A interpretação ou concretização de uma norma transcende a interpretação do texto.Com isso, Müller tenta evitar o hiato entre as Constituições formal e material, bem como oconfronto da realidade com a norma jurídica, socorrendo, assim, a Constituição, e procura reavertodo o sentido material das regras constitucionais exaurido pela metodologia formalista. ParaMüller, a Constituição é repositório de princípios, às vezes, antagônicos e controversos e teriasido um erro o emprego da metodologia interpretativa do formalismo e do jusprivatismo parainterpretá-la (BONAVIDES, 2002, p. 456-461).

Para Müller os instrumentos tradicionais de metodologia jurídica lidam explici-tamente com textos e só implicitamente contêm possibilidades de incorporar à interpretação con-teúdos materiais provenientes do âmbito da norma. Dessa forma, as quatro técnicas interpretativaselucidadas por Savigny precisam ser completadas com elementos metodológicos que atinjam oconteúdo material do âmbito normativo na decisão dos casos jurídicos (BONAVIDES, 2002, p.506). Toda concretização constitucional é aperfeiçoadora e criativa. O direito não está mais navontade subjetiva do legislador ou na vontade objetiva da lei. O jurista, ao falar de Constituição,deve-se esquecer que está falando do texto da Constituição, pois o verbalismo normativo é osomenos, enquanto que o realismo extra-vocabular da norma é tudo. O texto de uma prescriçãojurídica positiva é tão somente a cabeça do iceberg. A norma não deve nunca ser isolada darealidade. O texto, neste sentido, funcionará como diretiva e limite da concretização possível. Ainterpretação do texto normativo é uma parte importante, mas não a única e, por isso, é maisapropriado falar-se de concretização (BONAVIDES, 2002, p. 461-463).

5 A CONCEPÇÃO PLURALISTA E PROCEDIMENTAL DE PETER HÄBERLE

Para Hesse (1983, p. 35), onde não se suscitam dúvidas não se interpreta. Jápara Häberle (1997, p. 13) aquele que simplesmente vive a norma acaba por interpretá-la, ou aomenos co-interpretá-la, sendo tal idéia fundamental para compreender a concepção de interpreta-ção deste autor, que representou um novo modo de compreender a experiência normativa nocampo da Hermenêutica Jurídica.

Segundo Häberle (1997, p. 11-12), a teoria da interpretação tem colocado duasquestões essenciais: a indagação sobre as tarefas e os objetivos da interpretação constitucional e aindagação sobre os métodos. Isto porque a teoria da interpretação esteve muito vinculada a um

10-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43139

140

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de InterpretaçãoConstitucional

modelo de sociedade fechada e se reduziu ainda mais, quando se concentrou na interpretação dosjuízes e nos procedimentos formalizados. O autor coloca também um terceiro problema, relativoaos participantes da interpretação.

Dessa maneira, apresenta o autor a tese de que no processo de interpretaçãoestão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos oscidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer um elenco fechado de intérpretes da Consti-tuição. Tal posicionamento resulta do fato de se tratar sua pesquisa de uma investigação realistado desenvolvimento da interpretação constitucional, a qual exige um conceito mais amplo dehermenêutica, que reconheça outras forças produtivas de interpretação, ainda que subsista sem-pre a responsabilidade da jurisdição constitucional de fornecer a última palavra (HÄBERLE,1997, p. 13).

Sua investigação é conseqüência de um conceito republicano de interpretação,segundo o qual a teoria constitucional deve estar em condições de explicitar os grupos concretos depessoas e os fatores que formam o Espaço Público, o tipo de realidade de que se cuida, as possibi-lidades e necessidades existentes. Por isso, sugere uma democratização do processo de interpreta-ção, estabelecendo um catálogo, ainda provisório, de participantes neste processo.

Assim, Häberle (1997, p. 20-23) sistematiza o mencionado catálogo de partici-pantes da interpretação da seguinte maneira:

- as funções estatais: que compreendem as decisões vinculantes da Corte Cons-titucional e as decisões vinculantes dos demais órgãos estatais, que exercem função jurisdicional,executiva ou legislativa;

- os participantes do processo de decisão que não são necessariamente órgãosdo Estado, tais como: autor e réu; aqueles que têm direito de manifestação ou integração à lide;pareceristas ou experts; grupos de pressão organizados; os requerentes ou partes nos processosadministrativos de caráter participativo;

- a opinião pública, a mídia, as associações, os partidos políticos2 , os cidadãos,igrejas, teatros, editoras, escolas, associações de pais etc;

- e a doutrina.Häberle (1997, p. 29) reconhece que uma teoria constitucional que tem por

escopo a produção de uma unidade política há que se submeter a crítica de que, dependendo daforma com que seja praticada a interpretação, poderá dissolver-se num emaranhado de intérpretese interpretações; entretanto, adverte que tal objeção tem que ser avaliada, tendo em vista alegitimação dos diferentes intérpretes.

O autor explica que a questão da legitimação coloca-se para todos aqueles quenão estão formalmente nomeados para exercer a função de intérpretes da Constituição, ou seja,aqueles que não atuam conforme um procedimento pré-estabelecido, pois uma vinculação limitadaà Constituição implicaria uma legitimação igualmente restrita (HÄBERLE, 1997, p. 29).

Acrescenta Häberle (1997, p. 31) que do ponto de vista da Teoria da Interpre-tação deve-se levar em consideração que o juiz interpreta a Constituição na esfera pública e narealidade, sendo errôneo reconhecer as influências a que se submete apenas sob o aspecto de umaameaça a sua independência. Essas influências contêm uma parte da legitimação, a qual não deveser entendida formalmente, pois deve resultar da participação, isto é, da influência qualitativa e deconteúdo sobre a própria decisão, o que se trata de um aprendizado não só dos participantes, mastambém dos tribunais em face dos demais participantes.

Já do ponto de vista da Teoria da Constituição, a legitimação das forças pluralistasresidiria no fato de que essas forças representam um pedaço da publicidade e da realidade daConstituição, o que as incluiria no processo de interpretação. Uma Constituição que vise estruturarnão apenas o Estado, mas também a esfera pública, dispondo sobre a organização da própriasociedade, não pode tratar as forças sociais e privadas como meros objetos, pelo contrário, deveintegrá-las ativamente enquanto sujeitos (HÄBERLE, 1997, p. 33).

2 Häberle explica que estes atuam, sobretudo, mediante a longa manus da eleição de juízes, o que não acontece no sistemabrasileiro, já que o ingresso na carreira se dá mediante concurso público (1997, p. 22).

10-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43140

141

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Moda Cirino

Sob a perspectiva da Teoria da Democracia, afirma que, nas sociedades con-temporâneas, a democracia não se desenvolve apenas no contexto de delegação de responsabili-dade formal do “povo” para os órgãos estatais; numa sociedade aberta, ela se desenvolve tambémpor meio de formas refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e do cotidi-ano, especialmente mediante a realização dos direitos fundamentais (HÄBERLE, 1997, p. 36).Neste sentido:

Povo não é apenas referencial quantitativo que se manifesta no dia da elei-ção e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo dedecisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que sefaz presente de forma legitimadora no processo constitucional [...] e suacompetência objetiva para a interpretação constitucional é um direito dacidadania [...] (HÄBERLE, 1997, p. 37).

Dentre as conseqüências da teoria de Häberle para a Interpretação, destaca-se a relativização da Interpretação Jurídica, pois o juiz não mais interpreta de forma isolada. Alémdisso, através da proposta ampliação do círculo dos intérpretes, a esfera pública desenvolve forçanormatizadora na medida em que a Corte Constitucional tenha que interpretar de acordo com umaatualização pública.

Para comprovar a realidade de sua teoria, Häberle argumenta que as questõesreferentes à Constituição Material nem sempre chegam à Corte Constitucional, mas a ConstituiçãoMaterial subsiste sem essa interpretação judicial, ou seja, o processo Constitucional formal já nãoé a única via de acesso ao processo de interpretação constitucional (1997, p. 42).

Aos princípios e métodos de interpretação Häberle confere nova função: ade filtros da publicidade no sentido de canalizar e disciplinar as múltiplas formas de influênciados diferentes participantes do processo. Tanto que, nos casos em que há um rigoroso contro-le da opinião pública, a Corte tem que considerar a legitimação democrática e levar um minusde efetiva participação a um plus de controle constitucional; e, se houver uma profunda divi-são da opinião pública, cabe ao Tribunal zelar pela função integrativa da Constituição(HÄBERLE, 1997, p. 43-45).

Conclui Häberle (1997, p. 55) que o direito processual constitucional torna-separte do direito de participação democrática. Por isso, não se pode mais avaliar a questão dainterpretação por um prisma negativo3 , isto é, sob a ótica das limitações jurídico-funcionais dointérprete juiz. Tem-se que desenvolver uma compreensão positiva, como intérprete da Consti-tuição tanto para o juiz, quanto para o legislador e demais participantes, constitucionalizandoformas e processos de participação. Para o autor, esta é a nova tarefa da Teoria Constitucional.Porém limita a constitucionalização de conteúdos e métodos, visto que o processo deve ser omais aberto possível para garantir que uma interpretação diferente possa ser sustentada emqualquer momento.

6 CONCLUSÃO

Na idéia de constituição aberta, são condensadas algumas das propostas maisimportantes do moderno pensamento constitucional. A função material do projeto da constituição érelativizada e se justifica a “desconstitucionalização” de elementos substantivadores da ordemconstitucional. Nesse projeto aberto, ordena-se o processo da vida política fixando limites às atri-buições do Estado e delimitam-se as dimensões prospectivas traduzidas na formulação dos finssociais mais significativos e na identificação de alguns programas da configuração constitucional(CANOTILHO, 2004, p. 23).

3 Segundo Alvarenga (1998,p. 86), esta era a denominada “interpretação de bloqueio” ou “princípio da proibição de excessos”,típica do Estado de Direito Liberal e pautada nos princípios da legalidade e estrita legalidade, conferia à HermenêuticaConstitucional Tradicional uma tarefa reduzida às atividades do Estado e às funções do Judiciário (1998, p. 86).

10-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43141

142

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

A Influência da Tópica no Pensamento de Peter Häberle e o seu conceito de InterpretaçãoConstitucional

Portanto, buscando responder à pergunta inicialmente proposta, tem-se que, naperspectiva de Häberle, a interpretação é, além de um elemento resultante da idéia de sociedadeaberta, também um elemento formador, constituinte dessa sociedade; por isso, os critérios de inter-pretação deverão ser mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade. Do ponto de vista teóricoou prático, a interpretação constitucional deixa de ser evento exclusivamente estatal e vincula, aomenos potencialmente, todas as forças da comunidade política.

Essa nova orientação hermenêutica contrapõe-se à ideologia da subsunção,visto que se reconhece que a norma não é uma decisão prévia, simples e acabada. A ampliação docírculo dos intérpretes é apenas conseqüência da tão defendida integração da realidade no proces-so de interpretação, inevitável em uma sociedade pluralista.

Conforme Alvarenga (1998, p. 102-103), a concepção teórica da interpretaçãode Häberle está longe de acarretar a quebra da unidade da Constituição, mas pelo contrário, seráreforçada pelas diversas forças de interpretação que culminarão na Jurisdição Constitucional. Oresultado desta teoria é uma Constituição concebida não como uma decisão pronta acerca danatureza e da forma da unidade política, cuja legitimidade residiria em uma decisão “livre de con-tradições” do poder constituinte; mas sim uma Constituição que depende de uma permanenteconfirmação no tempo, mediante um processo que deve ser histórico e aberto.

Também, deve-se observar que, no decorrer da evolução da teoria constitucio-nal, os métodos de interpretação, em certa medida, ganhavam corpo conforme o paradigma adota-do. Mesmo que o objetivo tenha sido a produção de um método que não se identificasse com osposicionamentos políticos do intérprete, é quase impossível que este, ao analisar o caso, sedesvinculasse de sua “pré-compreensão” de mundo. Desse modo, é importante que se busqueestender a possibilidade de interpretação ao maior número de pessoas atingidas, buscando umalegitimação democrática em torno dos instrumentos de interpretação, no sentido apresentado pelateoria de Peter Häberle.

REFERÊNCIAS

ALVARENGA, Lucia Barros Freitas. Direitos Humanos, dignidade e erradicação da pobre-za: uma dimensão hermenêutica para a realização constitucional. Brasília: Brasília Jurídica, 1998.

ATIENZA, Manuel. As razões do direito: Teorias da Argumentação Jurídica. 3. ed. São Paulo:Landy, 2003.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de umadogmática constitucional transformadora. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor– Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed.Coimbra: Almedina, 2003.

______. Teoria de la Constitución. (Trad.). Carlos Lema Anón. Madrid: Dykinson.

DINIZ, Maria Helena. Compendio de introdução à ciência do direito. 15. ed. São Paulo:Saraiva, 2003.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Consti-tuição: contribuição para a interpretação pluralista a procedimental da Constituição. (Trad.). GilmarFerreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.

10-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43142

143

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Carolina V. Ribeiro de A. Bastos, Eder Fernandes Mônica e Samia Moda Cirino

HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de EstúdiosConstitucionales, 1983.

MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: dos gregos aos pós-modernos. São Paulo: MartinsFontes, 2006.

10-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43143

144

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin

O PRINCÍPIO DA INTEGRIDADE COMO MODELO DE INTERPRETAÇÃOCONSTRUTIVA DO DIREITO EM RONALD DWORKIN

Erika Juliana Dmitruk*

RESUMO

Analisa o princípio da integridade desenvolvido por Dworkin, como teoria da interpretação cons-trutiva do Direito. Procura entender os conceitos fundamentais deste filósofo, como princípios,regras, políticas, Juiz Hércules e hard cases. Investiga o método de resolução de casos difíceis deHércules. Descreve as repercussões do princípio da integridade no Direito.

Palavras-chave: Dworkin. Integridade. Regras. Princípios. Tese dos Direitos.

THE PRINCIPLE OF THE INTEGRITY AS MODEL OF CONSTRUCTIVEINTERPRETATION OF THE RIGHT IN RONALD DWORKIN

ABSTRACT

It analyzes the principle of the integrity developed for Dworkin, as theory of the constructiveinterpretation of the Right. Search to understand the concepts basic of this philosopher, as principles,rules, politics, Hércules Judge and hard cases . It investigates the method of resolution of difficultcases of Hércules. It describes the repercussions of the principle of the integrity in the Right.

Keywords: Dworkin. Integrity. Rules. Principles. Thesis of the Rights.

1 INTRODUÇÃO

Preocupado com a definição positivista do Direito, que o reduz a um modelo deregras e que autoriza o juiz a utilizar o poder discricionário ao se deparar com casos complexos,Dworkin propõe uma teoria da interpretação que auxilia os operadores do Direito a encontrar umaresposta correta mesmo para os casos complexos.

O objeto de estudo deste artigo é a teoria desenvolvida por Dworkin sobre aresolução dos casos difíceis. Acredita Dworkin que os juízes, ao resolverem os casos difíceis,devem utilizar padrões determinados, para que a previsibilidade e justiça da resposta seja alcançada.Para isso, refuta a teoria da discricionariedade, proposta pelo positivismo jurídico, tentando encon-trar algo que vincule o juiz a uma resposta correta.

A distinção feita por Dworkin entre princípios, políticas e regras será analisadana primeira parte. Segundo o autor estudado, conhecendo as peculiaridades de cada um dessespadrões, a tarefa de integrá-los em uma teoria da decisão jurídica torna-se mais clara e passível deentendimento.

Na segunda parte deste artigo, explicar-se-á o que Dworkin entende por casosdifíceis, a tese dos direitos e o modo de trabalho do juiz Hércules perante esses casos. Desenvolvea tese dos direitos e exemplifica a sua aplicação a partir de um juiz filósofo, comprometido com asleis, os precedentes e a busca da melhor solução. Esse juiz Hércules terá uma tarefa à altura doseu nome.

* Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela UniversidadeFederal de Santa Catarina, pós-graduanda em Filosofia Política e Jurídica na Universidade Estadual de Londrina. Professorada UNIFIL, UEL e PUC/ Londrina. Email: [email protected].

11-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43144

145

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Erika Juliana Dmitruk

Logo após, tratar-se-á a interpretação construtiva e o que Dworkin conceituoucomo integridade. A idéia de integridade como uma virtude política ao lado da equidade, da justiçae do devido processo legal, divide-se em dois princípios: um princípio legislativo e um princípiojurisdicional.

Para finalizar, estudar-se-á a integridade aplicada ao Direito. De que maneira ateoria dos direitos que Dworkin desenvolveu no decorrer das suas obras culmina com o princípio daintegridade como uma tese da interpretação construtiva dos direitos.

2 PRINCÍPIOS, POLÍTICAS E REGRAS

Ronald Dworkin tem se destacado com um pensamento original e, conformeopinião de Wolkmer (2006, p. 38), é um dos principais jusfilósofos que desenvolve críticas relevan-tes ao liberalismo utilitarista e ao positivismo jurídico contemporâneo, principalmente na versãodada a esta teoria pelo professor Herbert Hart. Também é considerado por outros como um“neojusnaturalista”. Esses autores também afirmam que sua teoria é uma das que demonstra oenfraquecimento da dicotomia “jusnaturalismo” e positivismo jurídico (OLIVEIRA JUNIOR).1

Para outros, Dworkin é responsável por criar uma terceira teoria do direito, onde a primeira e asegunda seriam o positivismo jurídico e o jusnaturalismo (FALLON, 1992).2

Em seu livro Levando os Direitos a Sério (2002), Dworkin apresenta umateoria liberal do Direito, não atada apenas às correntes que costumam ser identificadas como tal,positivismo e utilitarismo jurídico. Para Dworkin, quando se cria uma teoria do Direito, ela deveconter uma teoria da legislação e uma teoria da decisão judicial. Nesse artigo será privilegiada ateoria da decisão judicial, a qual, segundo o mesmo autor, precisa estabelecer padrões que os juízesdevem seguir para decidir os casos jurídicos difíceis.

Nesse livro ele já começa a esboçar uma teoria conceitual alternativa. Aprimeira distinção elaborada por Dworkin versa sobre os direitos políticos, que podem ser direi-tos preferenciais (prevalecem contra decisões tomadas pela sociedade); e direitos institucionaismais específicos “que podem ser identificados como uma espécie particular de um direito políti-co, isto é, um direito institucional a uma decisão de um tribunal na sua função judicante”(DWORKIN, 2002, XV).

A teoria conceitual alternativa traça a possibilidade de que os indivíduos te-nham direito a uma decisão judicial favorável, independente de uma decisão anterior favorável ouregra jurídica expressa aplicável a seu caso. Para o professor de Oxford, essa hipótese é possívelcom a distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política, uma vez que defende atese de que as decisões jurídicas baseadas em argumentos de princípios são compatíveis com osprincípios democráticos (DWORKIN, 2002, XVI).

Não é o objetivo de Dworkin indicar, previamente, os argumentos de política oude princípio existentes, nem elencar quais direitos um indivíduo possui abstratamente, mas analisarcasos difíceis, onde, mesmo os juízes mais criteriosos podem divergir (DWORKIN, 2002, XIX).Todavia, mesmo nesses casos, é necessário entender que, para Dworkin, o juiz não tem o direito decriar novos direitos, mas sim descobrir quais são eles em conformidade com o ordenamento jurídi-co (COUTINHO, 2003).

1 Ver também: Casalmiglia, Prólogo a “Los Derechos en Serio”, Barcelona: Ariel, 1989, p.11.ALEXY, Robert. Derecho y Razón Prática. México: Distribucinoes Fontamara, 1993, p. 14 e ss. GÜNHTER, Klaus. Teoriada Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação. São Paulo: Lamdy, 2004.

2 Through its various iterations, Dworkin’s third theory has attempted to bridge the gap between the two traditional theories.With the positivists, Dworkin has accepted that the concept of law makes sense only in reference to going legal systems;to know what the law is, it is necessary to begin with the materials that are recognized as law in a particular culture. Dworkinleaves room to accommodate the natural law view, however, by insisting that the materials that are recognized as authoritativewithin any legal system—the rules and standards that positivists have traditionally regarded as exhaustive of law—mustalways be interpreted. For interpretation, according to Dworkin, has an irreducibly moral element; the relevant materialsmust be interpreted in their best moral light. Dworkin thus sides with natural law theorists in recognizing a conceptual linkbetween law and morals. Building on this foundation, he has further asserted that legal interpretation necessarily aspires toprovide a moral justification for the law’s claim to obedience. He implies that a regime that was incapable of generating atleast a presumptive, general duty to obey the law would not count as a properly “legal” system at all, but only as a schemeof organized coercion. (FALLON, 1992)

11-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43145

146

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin

A preocupação esboçada por Dworkin ao relacionar uma teoria interpretativado Direito com uma teoria da justificação política não é uma preocupação efêmera ou pontual. Emtoda sua obra perpassa essa necessidade de trabalhar em conjunto uma concepção de Estado e opapel do Direito neste modelo de sociedade escolhido.

Em Uma Questão de Princípio (2000, IX) Dworkin afirma que a prática po-lítica brasileira reconhece dois tipos diferentes de argumentos que buscam justificar uma decisãopolítica. Esses argumentos são: a) argumentos de política, os quais traçam um programa, um obje-tivo voltado para a coletividade; e b) argumentos de princípio, que traçam direitos individuais,particulares, inobstante o interesse da coletividade. Defende neste livro uma concepção do Estadode Direito que chama de “centrada nos direitos”, a qual pressupõe que os cidadãos têm direitos edeveres morais entre si e direitos políticos perante o Estado (2000, p. 7). Para Ikawa (2004),Dworkin não distingue Direito e Moral, como faz Hart, assim como para Ingeborg Maus3 e Alexy.Porém, segundo BAHIA, essa leitura de Dworkin é baseada em uma interpretação alexyana quepopularizou-se na Alemanha. Porém para Günther e Habermas, Dworkin concebe a diferençaentre Direito e Moral, e também destes para argumentos éticos e pragmáticos. Os argumentosmorais são importantes na fase legislativa, porém, no judiciário, valem os argumentos de princípio enão mais os argumentos de política (BAHIA, 2005, p. 11).

Um dos exemplos trazidos para ilustrar a influência da questão política sobre aquestão jurídica trata da Lei de Relações Raciais. Existe um conflito entre o direito de agremiaçõesescolherem seus associados segundo critérios próprios. Pela lei supra, o direito de estar livre dediscriminação é forte para impedir que instituições inteiramente públicas pratiquem discriminação,mas não tão forte a ponto de aniquilar o direito de associações totalmente privadas de escolheremseus associados. A dificuldade está nos casos intermediários, como as agremiações político-parti-dárias (DWORKIN, 2000, p. 35).

Para entender a diversidade de argumentos é necessário vislumbrar o peso quea diferença entre eles tem nas decisões, mesmo que tratados por outros nomes ou de outras formaspelas diversas teorias jurídicas. Nos casos difíceis, a concepção positivista do Direito que o perce-be apenas como um modelo de regras, ignorando outros padrões como políticas e princípios, éinsuficiente (DWORKIN, 2002, p. 36).

Política é um tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, emgeral uma melhoria da comunidade (2002, p. 36). Dworkin já havia definido este conceito em UmaQuestão de Princípio. Esses argumentos de política justificam decisões políticas, que fomentamalgum objetivo coletivo (2002, p. 129).

Princípio, de maneira genérica, é todo padrão que não é regra. Princípio,assim, pode ser entendido como um padrão que deve ser observado por ser uma exigência dajustiça ou eqüidade. Sua repercussão não será, necessariamente, uma melhoria social. (2002, p.36) Os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respei-ta ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo (2002, p. 129-130). “No caso dossubsídios, poderíamos dizer que os direitos conferidos são gerados por uma política e qualifica-dos por princípios; no caso contra a discriminação, são gerados por princípios e qualificados porpolíticas” (DWORKIN, 2002, p. 130).

O objetivo imediato de Dworkin é distinguir princípios, no sentido genérico, dasregras. Analisa o caso “Riggs contra Palmer”, onde em 1889 um tribunal de Nova Iorque teve quedecidir se um herdeiro nomeado no testamento de seu avô poderia herdar o disposto naqueletestamento, mesmo se ele próprio tivesse assassinado seu avô com esse objetivo. O tribunal, levan-do em conta que as leis e os contratos podem ser limitados por máximas gerais e fundamentais dodireito costumeiro, como a que dispõe que “ninguém será permitido lucrar com sua própria fraude,beneficiar-se com seus próprios atos ilícitos, basear qualquer reivindicação na sua própria iniqüida-de ou adquirir bens em decorrência de seu próprio crime”, não deu ao assassino o direito à heran-ça. (2002, p. 37) O tribunal não aplicou uma regra, aplicou princípios.

3 Ver também: MAUS, Ingeborg. Judiciário como Superego da Sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na sociedadeórfã. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, nº.58. p. 185. nov/ 2000.

11-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43146

147

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Erika Juliana Dmitruk

Os padrões utilizados em decisões deste tipo não são regras jurídicas, são prin-cípios jurídicos. A distinção entre ambos é de natureza lógica. As regras são aplicáveis à maneirado tudo-ou-nada. Ou uma regra é válida, e a sua resposta deve ser aceita, ou não é válida, e suaresposta em nada contribuirá (DWORKIN, 2002, p. 39). Mas não é assim que funcionam osprincípios jurídicos. O exemplo utilizado por Dworkin é o exemplo do princípio “Nenhum homempode beneficiar-se de seus próprios delitos”. Segundo ele, esse princípio não pretende estabelecercondições que tornem sua aplicação necessária. Ele apenas se limita a enunciar uma razão queconduz o argumento em certa direção, e, por isso mesmo, para ser concretizado, precisa de umadecisão particular. Podem existir outros princípios ou outras políticas que argumentem em outradireção – uma política que garanta o reconhecimento da validade de escrituras ou um princípio quelimite a punição ao que foi estipulado pelo Legislativo. Se assim for, o princípio não prevalecerá,mas assim mesmo continuará a ser um princípio do sistema jurídico, pois, em outro caso, quandoessas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiverem menor força, o princípio poderáser decisivo (DWORKIN, 2002, p. 41-42).

Outra diferença entre regras e princípios é que os princípios possuem umadimensão de peso e importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política deproteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aque-le que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um (DWORKIN,2002, p. 42).

Já as regras ou são importantes ou desimportantes. Uma regra jurídica podeser mais importante do que outra porque desempenha um papel maior ou mais importante naregulação do comportamento. Se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtudede sua importância maior. (DWORKIN, 2002, 43). Essa importância maior é dada com a resolu-ção das antinomias aparentes, estudadas por BOBBIO (1999), em Teoria do Ordenamento Jurí-dico. Mas a distinção entre regras e princípios nem sempre é fácil. Muitas vezes eles se confun-dem, tendo em vista a forma muito próxima de ambos. Alguns termos como razoável, negligente,injusto e significativo, segundo Dworkin, fazem com que uma disposição funcione do ponto de vistalógico como uma regra e do ponto de vista substantivo, como um princípio. Isso porque a inclusãodesses termos faz com que a aplicação da regra dependa de princípios e políticas que vão alémdela (DWORKIN, 2002, p. 45). Todavia, apenas o uso desses termos não transforma uma regraem princípio.

Para Dworkin (2002, p. 46), os princípios jurídicos atuam de maneira maisvigorosa nas questões judiciais difíceis. Todavia, quando aplicados, os princípios dão origem aregras. No caso “Riggs contra Palmer” a aplicação do princípio deu origem a uma nova regra “umassassino não pode beneficiar-se do testamento de sua vítima”.

Existem duas formas de análise dos princípios jurídicos, e a escolha influencia aresolução do caso submetido ao tribunal. Segundo primeira orientação, os princípios jurídicos de-vem possuir obrigatoriedade de lei e ser levados em conta por juízes e juristas que tomam decisõessobre obrigações jurídicas. Segundo essa orientação, o direito inclui tanto regras quanto princípios.Já a segunda orientação nega que princípios possam ser obrigatórios. Para essa orientação, quandoo juiz aplica princípios, ele julga além do direito (DWORKIN, 2002, p. 46-47).

Apesar do enfoque bastante decisivo dado por Dworkin na distinção entre prin-cípios e políticas, para outras teorias essa distinção pode não ser tão importante quanto para Dworkin.A teoria de Hans-George Gadamer prevê que o texto a ser interpretado não é uma coisa em si, maspossui um significado pela virtude inferida do que ele chama de wirkungsgeschichte, ou prece-dente, o conjunto histórico de interpretações que o texto teve (HOY, 1987, p. 327). Todavia, não faznenhuma distinção que possa ser comparada com a distinção entre princípios e regras feitas porDworkin. Ainda segundo HOY, essa distinção pode nem mesmo ajudar a afirmação de Dworkin deque sempre há uma resposta correta (HOY, 1987, p. 337).

Ainda assim, a distinção feita por Dworkin é capaz de ajudar a resolver oproblema da discricionariedade em sentido forte da doutrina positivista. A escolha entre uma ououtra abordagem afeta a resposta aos casos difíceis. Se escolhermos a primeira orientação, acei-taremos que o juiz está aplicando direitos e obrigações jurídicas preexistentes ao caso apresentado.Se adotarmos a segunda orientação, deveremos reconhecer que em algumas decisões a parte

11-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43147

148

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin

sucumbente foi privada de seus bens por um ato discricionário do juiz (DWORKIN, 2002, p. 49).Neste ponto, a argumentação de Dworkin supera a argumentação do positivismo

jurídico, uma vez que não aceita a discricionariedade do poder do juiz e encontra uma fundamenta-ção legítima para as decisões tomadas nos casos difíceis. Segundo Ikawa (2006), Dworkin aceitaa possibilidade de discricionariedade judicial no sentido fraco e apenas rechaça-a no sentido forte.

Analisando o conceito de regra de reconhecimento de Hart, desenvolvido emseu livro O Conceito de Direito (2001), Dworkin denuncia a inconsistência deste modelo para aintegração entre princípios e regras. Para ele os positivistas sempre lêem os princípios e políticascomo regras, lêem como se fossem padrões tentando ser regras (DWORKIN, 2002, p. 62). Paraele também não é correto trabalhar com o conceito de válido ou não válido com os princípios, umavez que esse é apenas apropriado para as regras, renunciando aí a abrangência dos princípios pelaregra de reconhecimento. (DWORKIN, 2002, p. 66) O autor conclui que não é possível adaptar aversão de Hart do positivismo, modificando sua regra de reconhecimento para incluir princípios(DWORKIN, 2002, p. 69).

Então lança a questão: “Se nenhuma regra de reconhecimento pode fornecerum teste para identificar princípios, por que não dizer que os princípios constituem a última instân-cia e constituem a regra de reconhecimento no nosso direito”? Mas isso não é possível, tendo emvista que não é possível enumerar todos os princípios que fazem parte de um direito vigente. Porisso, para que seja possível tratar os princípios como direito, deve-se rejeitar a doutrina positivista(DWORKIN, 2002, p. 72).

Entende-se, então, que os princípios não podem ser considerados válidos ounão-válidos. Eles entram em conflito uns com os outros e interagem. Fornecem justificativas afavor de uma determinada solução de um caso difícil, mas não a estipula. E, sua não aplicação emdeterminado caso não indica que não é válido. Poderá ser aplicado em outro caso. Não existe umnúmero fixo de padrões, dos quais se pode dizer que tantos são regras e outros são princípios. Nãocabe na concepção de Dworkin um conjunto fixo de padrões.

3 CASOS DIFÍCEIS

Segundo o positivismo jurídico, diante dos casos difíceis, os juízes possuempoder discricionário para decidir. Casos difíceis são aqueles que não podem ser decididos apenascom base em regras, ou porque essas não são claras, ou porque não foram escritas. Em virtudedessa similitude de termos, Ikawa (2004) explica que o termo hard cases utilizado por Dworkin, ésinônimo de lacuna da lei, utilizado pelos positivistas e por Herbert Hart.4

A partir dessa teoria, quando o juiz decide um caso difícil, ele legisla novosdireitos jurídicos, e os aplica retroativamente. Por isso essa teoria da decisão é totalmente inade-quada, uma vez que causa insegurança jurídica e, provavelmente, gera decisões injustas (DWORKIN,2002, p. 128).

Dworkin afirma que uma teoria geral sobre a validade da lei não é uma teorianeutra, como defendem os positivistas, entre eles seu interlocutor Herbert Hart. Para Dworkin,uma teoria sobre a validade das leis é sempre interpretativa, e é o modo como se deve interpretá-la que deve ser justificado (DWORKIN, 2004, p.2).

Criticando Dworkin, Postema (1987, p. 286-287) assevera que, segundo a teo-ria dele, as deliberações legais podem ser iluminadas a partir da prática social de interpretaçãogeral. Porém essa concepção esbarra em dois problemas: a) onde há desacordo entre os partici-pantes da comunidade personificada, será necessário escolher de maneira arbitrária alguns partici-pantes como porta-vozes; e 2) onde há um consenso forte entre os participantes da comunidadepersonificada, não existe possibilidade de nenhuma crítica desafiadora do pensamento dominante.

4 Sobre o debate entre Hart e Dworkin ler também: DMITRUK, Erika. O que é o Direito? Uma análise a partir de Hart eDworkin. Revista Jurídica da Unifil. nº. 1. Londrina, 2004. p. 71-88. CARRIÓ, Genaro. Notas sobre Derecho y Lenguage.4 ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1990. p. 321-328. HART, H. L. A.; DWORKIN, R. La decisión judicial. Studiopreliminar de César Rodrigues. Universidade de Los Andes, 1997, p. 15. HART, H.L.A. O conceito de Direito. (com pós-escrito editado por Penélope A. Bulloch e Joseph Raz). 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

11-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43148

149

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Erika Juliana Dmitruk

Um caso será difícil quando um juiz, em sua análise preliminar, não encontraruma interpretação que se sobreponha a outra, entre duas ou mais interpretações de uma lei ou deum julgado (DWORKIN, 2003, p. 306). Uma lei só será considerada obscura quando existirembons argumentos para mais de uma interpretação em confronto (DWORKIN, 2003, p. 421).

Em vista desse posicionamento, tornou-se necessário desenvolver uma novateoria da decisão, uma vez que deve-ser garantir a uma das partes o direito de uma respostafavorável mesmo que não haja um precedente estrito ou uma lei específica. O juiz não deve, deforma alguma, criar novos direitos que valham retroativamente (DWORKIN, 2002, p. 128).

Para que se descubram quais direitos a parte tem, é necessário que se conhe-çam os princípios políticos que inspiraram a Constituição. Esses princípios auxiliam a leitura daConstituição, limitando seu conteúdo e auxiliando nos casos difíceis. Mesmo as decisões dos tribu-nais que são consideradas decisões políticas importantes, podem ser lidas como decisões tomadascom base em princípios, uma vez que as decisões de princípios são aquelas baseadas nos direitosque as pessoas têm a partir da Constituição, e não em políticas que buscam realizar objetivoscoletivos (DWORKIN, 2000, p.101; 2002, p. 133).

As decisões judiciais não originais, que apenas aplicam os termos claros deuma lei de validade inquestionável, são sempre justificadas pelos argumentos de princípio, mesmoque a lei em si tenha sido gerada por uma política (DWORKIN, 2002, p. 131).

Muitas vezes é possível confundir argumentos de princípio com argumentos depolítica, todavia deve-se ater a orientação de Dworkin, onde argumentos de princípios falam sobredireitos que as pessoas têm em face do ordenamento jurídico e argumentos de política falam sobreobjetivos coletivos que o Estado pretende alcançar.

Segundo a teoria dos direitos, desenvolvida no livro Levando os Direitos aSério, aplicada pelo juiz filósofo Hércules, existe um caminho para se chegar a uma respostacorreta nos casos difíceis. Hércules é um juiz que aceita as leis, e acredita que os juízes têm odever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores. Hérculesprecisa descobrir a intenção da lei – ponte entre a justificação política da idéia geral de que as leiscriam direitos e aqueles casos difíceis que interrogam sobre que direitos foram criados por uma leiespecífica. E também o conceito de princípios que subjazem às regras positivas do direito, fazendouma ponte entre a justificação política da doutrina segundo a qual os casos semelhantes devem serdecididos da mesma maneira e aqueles casos difíceis nos quais não fica claro o que essa regrarequer. Assim, em primeiro lugar, estudará a Constituição, procurando entender as regras que elacontém, as interpretações judiciais anteriores, e a filosofia política que embasa os direitos ali dis-postos (DWORKIN, 2002, p. 165-168). Depois disso procurará a interpretação que vincula demodo mais satisfatório o disposto pelo legislativo a partir das leis promulgadas e suas responsabili-dade como juiz (DWORKIN, 2002, p. 169). Ainda se perguntará qual argumento de princípio e depolítica convenceria o poder legislativo a promulgar a lei sob estudo. Hércules também utilizaráuma teoria política para interpretar a lei, para descobrir o seu fim (DWORKIN, 2002, p. 168-171).O terceiro passo em sua busca pela melhor resposta é a análise dos precedentes, no caso de oproblema a ele submetido não ser regulado por nenhuma. Ao analisar os precedentes, Hérculeslevará em conta os argumentos de princípio que o embasaram.

Mas, uma vez que Hércules será levado a aceitar a tese dos direitos, suainterpretação das decisões judiciais será diferente de sua interpretação dasleis em um aspecto importante. Quando interpreta as leis, ele atribui à lingua-gem jurídica, como vimos, argumentos de princípio ou de política que forne-cem a melhor justificação dessa linguagem à luz das responsabilidades dopoder legislativo. Sua argumentação continua sendo um argumento de prin-cípio. Ele usa a política para determinar que direitos já foram criados peloLegislativo. Mas, quando interpreta as decisões judiciais, atribuirá à lingua-gem relevante apenas argumentos de princípio, pois a tese dos direitos sus-tenta que somente tais argumentos correspondem à responsabilidade dotribunal em que foram promulgadas (DWORKIN, 2002, p.173).

11-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43149

150

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin

Ao estudar os precedentes, Hércules terá que distinguir sua força gravitacionalnas decisões posteriores. A força gravitacional de um precedente, segundo Dworkin, repousa naeqüidade, os casos semelhantes devem ser tratados do mesmo modo (DWORKIN, 2002, p. 176).Para definir a força gravitacional de um precedente, Hércules só levará em consideração os argu-mentos de princípio que justificam esse precedente.

Ainda como desdobramento dos seus estudos sobre os precedentes, Hérculesconstruirá uma cadeia de princípios que fundamentam o direito costumeiro, a partir das justifica-ções dadas nas decisões pretéritas (DWORKIN, 2002, p. 181). Esses princípios devem ser capa-zes de justificar de maneira coerente porque determinadas decisões foram tomadas (DWORKIN,2002, p. 182).

O primeiro passo dessa tarefa hercúlea será especificar a teoria constitucionalque já utilizou quando se perguntou sobre quais responsabilidades o sistema político lança sobre olegislador (DWORKIN, 2002, p. 183).

Mesmo seguindo todo esse caminho, Hércules sabe da possibilidade de encon-trar decisões incoerentes. Por isso precisa também de uma teoria sobre os erros. Ele construirá aprimeira parte de sua teoria dos erros por meio de dois conjuntos de distinções. Distinguirá autori-dade específica, que é o poder de uma lei ou precedente, ou decisão executiva, de produzir exata-mente os efeitos nela dispostos (por exemplo, uma lei que obrigue companhias aéreas a indenizarseus passageiros por atrasos de vôo); das conseqüências institucionais, que definem o seu podergravitacional (com base no postulado anterior, exigir que as companhias de ônibus indenizem seuspassageiros por atraso). A segunda distinção trata de erros enraizados, que apesar da perda dopoder gravitacional, os efeitos específicos continuam, e os erros passíveis de correção, cuja perdado poder gravitacional gera a perda da autoridade específica (2002, p. 189-190). O nível constitu-cional de sua teoria irá determinar quais são os erros enraizados.

A segunda parte da sua teoria deve demonstrar que é melhor que ela exista doque o não reconhecimento dos erros, ou o reconhecimento dos erros de uma forma diferente (2002,p.190). Hércules utilizará duas ordens de argumentos para demonstrar que uma determinada cor-rente jurisprudencial está errada. Valer-se-á de argumentos históricos ou de uma percepção geralda comunidade, para mostrar que um determinado princípio que já foi historicamente importante,hoje não é mais, não exerce força suficiente para gerar uma decisão jurídica. Também utilizaráargumentos de moralidade política, demonstrando que tal decisão ou princípio fere a eqüidade, éinjusto (DWORKIN, 2002, p. 191).

É preciso afirmar que Hércules não possui um método para os casos difíceis eoutro para os casos fáceis. Seu método é aplicável a qualquer caso, todavia, nos casos fáceis, asrespostas são evidentes, e por isso não se tem a certeza de estar-se aplicando um método pararesolvê-los (DWORKIN, 2003, p. 423).

4 A INTEGRIDADE

Para Dworkin, a interpretação do Direito se dá pela reconstrução deste a partirdas próprias práticas da sociedade personificada. Para isso, divide o processo de interpretaçãoconstrutiva em três partes: uma pré-interpretativa, onde são identificadas regras e padrões já utili-zados; uma etapa interpretativa, onde busca-se uma justificação geral para as regras e padrõesidentificados na etapa pré-interpretativa; e uma etapa pós-interpretativa, onde ajusta a práticaidentificada na etapa pré-interpretativa com a justificação da etapa interpretativa (DWORKIM,2003, p. 81-82).

As interpretações dadas ao Direito são mutáveis e o que em uma época éincontestável, em outra sofre sérias críticas. O que em uma época é considerada uma interpreta-ção radical, em outro momento é aceito (DWORKIN, 2003, p. 109-112). Por isso, Dworkin acre-dita ser tão importante o estudo das decisões judiciais, já que o Direito é um romance em cadeia,cada voto de qualquer juiz é um capítulo deste romance.

Um filósofo do direito, ao estudar e pesquisar as práticas jurídicas existentes,poderá se deparar com um conjunto quase estanque de princípios. Assim, uma nova discussão

11-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43150

151

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Erika Juliana Dmitruk

sobre o direito existente pode ser revolucionária. O objetivo de Dworkin é discutir de que maneirapode-se guiar e restringir o poder de coerção do Direito através de uma teoria interpretativa quetrabalhe com uma comunidade de princípios, onde o sistema de direitos e responsabilidades sejamcoerentes (DWORKIN, 2003, p. 116).

Para isso, defenderá a existência de uma virtude política não tradicional.Ao lado da justiça e devido processo legal, Dworkin colocará uma terceira virtude, a qualdenomina integridade (DWORKIN, 2003, p. 199-201). A integridade refere-se ao compromis-so de que o governo aja de modo coerente e fundamentado em princípios com todos os seuscidadãos, afim de estender a cada um os padrões fundamentais de justiça e equidade(DWORKIN, 2003, p. 201-202).

Segundo Dworkin (2003, p. 203), será mais fácil entender a interpretação cons-trutiva do Direito, se se aceitar a integridade como uma virtude política, uma vez que as exigênciasda mesma se dividem em integridade na legislação (que solicita aos legisladores que produzam leiscoerentes com os princípios) e a integridade no julgamento (que solicita aos que julgam o façamtambém de forma coerente com os princípios).

O fato de Dworkin considerar a integridade como uma virtude política aplicávelao Direito é considerado um ato de extremo otimismo, uma vez que esta exige a coerência de umcorpo de normas feito sem critério e ao acaso (HOY, 1987, p. 345). Por isso mesmo não é possívelpensar que o aperfeiçoamento desta virtude se dê de maneira simples. Para sua realização, aintegridade política supõe uma personificação profunda da comunidade. Pressupõe que esta seengaje na fomentação dos princípios de equidade, justiça e devido processo legal, e que honreessas virtudes. A idéia de integridade política personifica a comunidade como um agente moral,atuante, pressupondo que a comunidade pode adotar, expressar e ser fiel ou infiel a princípiospróprios, diferentes daqueles de quaisquer de seus dirigentes ou cidadãos enquanto indivíduos(DWORKIN, 2003, p. 203-205).

A partir dessas considerações, é possível entender que o princípio da integrida-de não admite que uma comunidade personificada aplique direitos diferentes, que não podem serdefinidos como um conjunto coerente com os princípios de justiça, equidade e devido processolegal.

Dworkin (2003, p. 225) defende que o princípio da integridade, nos EstadosUnidos, está incluído na cláusula de igual proteção da Décima Quarta Emenda. Da mesma forma,quando se discute a igual proteção nas cortes norte-americanas, discute-se a igualdade formal e aexigência de integridade do sistema.

Ainda é possível entender o princípio da integridade na reivindicação defraternidade, na Revolução Francesa, ou a partir de seu nome mais comum, comunidade. Para oautor estudado neste artigo, “uma sociedade política que aceita a integridade como virtude políticase transforma, desse modo, em uma forma especial de comunidade, especial num sentido quepromove sua autoridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva” (DWORKIN,2003, p. 228).

Como conseqüências práticas da integridade, Dworkin assevera o fato de quea integridade contribui para a eficiência do direito, uma vez que quando as pessoas são governadaspor princípios há menos necessidade de regras explícitas, e o Direito pode expandir-se e contrair-se organicamente, na medida em que se entenda o que eles exigem em novas circunstâncias(DWORKIN, 2003, p. 229).

São vislumbradas também conseqüências morais, tais como, a possibilidade deque cada cidadão aceitar as exigências que lhe são feitas e fazer exigências aos outros, que com-partilham e ampliam a dimensão moral de quaisquer decisões políticas explícitas (DWORKIN,2003, p. 230).

Dworkin descreve três modelos gerais de prática associativas, um primeiroonde os membros supõem que sua associação não passa de um acidente de fato da história e dageografia; o segundo chamado de modelo das regras, onde os membros aceitam o compromissogeral de obedecer às regras estabelecidas conforme um modo pré-determinado, e o terceiro mode-lo, defendido por ele, que é o modelo do princípio. Neste terceiro modelo de comunidade os mem-bros aceitam que são governados por princípios comuns e não apenas por regras criadas por um

11-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43151

152

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin

acordo político. Admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões parti-culares constantes nas regras, mas dependem, de maneira mais ampla, do sistema de princípiosque essas decisões pressupõem (DWORKIN, 2003, p. 252-255).

Qualquer interpretação construtiva bem sucedida das práticas políticas devereconhecer a integridade como um ideal político distinto. Neste sentido, a integridade é a chavepara a melhor interpretação construtiva de nossas práticas jurídicas distintas e, particularmente, domodo como os juízes decidem os casos difíceis nos tribunais.

A integridade não se reduz a coerência do ordenamento jurídico. Ela vai além,pois exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, demodo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade, na correta proporção(DWORKIN, 2003, p. 264).

5 INTEGRIDADE NO DIREITO

O princípio da integridade no direito é um desdobramento do método de Hérculesjá explicitado ao falar do seu método de julgar os casos difíceis. Em O Império do Direito, Dworkinelabora de maneira mais completa sua tese dos direitos.

Dworkin percebe a construção da prática jurídica como a elaboração de umromance em cadeia. Sua visão do direito como integridade aborda as afirmações jurídicas comoopiniões interpretativas, que tanto se voltam para o passado quanto para o futuro, e estão emprocesso ininterrupto de desenvolvimento.

Para que seja válido o esforço de interpretar o direito como integridade, osjuízes devem, nos limites do possível, identificar os direitos e deveres como se tivessem sido criadospor um único autor, a comunidade personificada. Essa exigência é necessária uma vez que enten-de-se que as proposições jurídicas são válidas quando derivam dos princípios de justiça, equidade edevido processo legal, oferecendo a melhor interpretação do direito (DWORKIN, 2003, p. 271-272).

Neste ponto da teoria de Dworkin é que surge uma das principais críticas feitasao seu método por Habermas. A impossibilidade de se conceber o direito de uma comunidade feitopor um só autor, e a solidão de Hércules que, ao decidir sozinho, são os principais pontos fracos dateoria. O fato de Hércules estudar o direito na solidão de seu gabinete, nega ao mesmo uminterlocutor qualificado e a possibilidade de aprimorar seus argumentos, faltando também pressu-postos da teoria do discurso (HABERMAS, 1997, p. 276-277).

Apesar da crítica feita por Habermas, deve-se considerar o fato de que Hérculespossui um padrão de qualidade, e tem como objetivo sempre buscar a melhor resposta jurídica parao problema apresentado, inobstante o fato de não possuir um interlocutor que se esmere tantoquanto ele na construção do direito como integridade. Todavia, Dworkin não ignora que a autoriado direito como integridade é múltipla, tanto que prevê seu desenvolvimento como o de um roman-ce em cadeia, onde cada intérprete, ao escrever o próximo capítulo, deve encontrar o melhordesenvolvimento da história (DWORKIN, 2003, p. 274-276)

Também deve-se asseverar que Dworkin (2003, p. 316) não imagina que todosos juízes tornem-se Hércules. Para ele a utilidade de Hércules decorre do fato dele ser maisreflexivo e auto-consciente do que qualquer juiz. Além disso, Hércules não conta com a limitaçãode prazo para tomar decisões e age como se tivesse toda sua carreira para se dedicar a umadecisão.

O caminho feito por Hércules para encontrar a melhor resposta a um problemajurídico difícil é, em linhas gerais, o seguinte: 1) encontrar, uma teoria coerente sobre os direitos emconflito, tal que um membro do legislativo ou do executivo, com a mesma teoria, pudesse chegar amaioria dos resultados que as decisões anteriores dos tribunais relatam; 2) Selecionar diversashipóteses que possam corresponder à melhor interpretação do histórico das decisões anteriores;caso elas se contradigam é necessário encontrar uma correta; 3) Encontrar a hipótese correta, apartir do pensamento de que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobrejustiça e equidade e o devido processo legal adjetivo, e que esses princípios devem ser aplicados de

11-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43152

153

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Erika Juliana Dmitruk

forma a garantir a aplicação justa e eqüitativa do direito. A partir de uma teoria coerente sobrepolítica e direito é possível encontrar uma resposta satisfatória quando princípios conflitam(DWORKIN, 2003, p. 253); 4) Eliminar toda hipótese que seja incompatível com a prática jurídicade um ponto de vista geral. 5) Colocar a interpretação à prova. Perguntar-se-á se essa interpreta-ção é coerente o bastante para justificar as estruturas e decisões políticas anteriores de sua comu-nidade (DWORKIN, 2003, p. 288-294). Neste momento Dworkin justifica o nome de Hércules,uma vez que nenhum juiz real poderia aproximar-se da tarefa que a ele foi confiada.

Hércules também desenvolve métodos distintos, para aplicação do commonlaw, das leis e da Constituição. Para fins desta pesquisa, aprofundar-se seu método no que concerneàs leis e à Constituição, já que o modelo de Direito pátrio é o romano-germânico e não o commonlaw.

Para analisar uma lei, Hércules tratará o Congresso como um autor anterior aele na cadeia do Direito. Todavia, tem a clareza de que este autor possui poderes e responsabilida-des diferentes dos seus. Hércules deverá procurar a melhor interpretação da lei com base em suaspróprias convicções, analisando também o histórico desta lei. Abordará as declarações oficiais doslegisladores e atos políticos relacionados ao texto que pretende interpretar. A interpretação cons-trutiva de Dworkin (2003, 377-380) contrapõe-se à interpretação conversacional, a qual procuraaceitar o ponto de vista da intenção do locutor. Hércules perceberá nas declarações de propósitosoficias como decisões políticas, englobando-as na interpretação das leis (DWORKIN, 2003, p.410).

Repetindo e aprofundando o processo exposto no livro Levando os Direitos àSério, a integridade exige que Hércules elabore uma justificativa para a aplicação da lei. Essajustificativa deve ser coerente com o restante da legislação vigente (DWORKIN, 2003, 407).Poderá até levar em conta a opinião pública geral (DWORKIN, 2003, p. 409). Hércules interpretanão só o texto da lei, mas também sua vida, o processo que se inicia antes que ela se transforme emlei e se estende para além desse momento.

Para interpretação da Constituição um outro método é necessário, tendo emvista que a Constituição é um tipo especial de norma. Os tribunais superiores têm o poder de julgara compatibilidade de uma norma ou ação governamental com a Constituição, um poder bastanteamplo e que deve ser utilizado respeitando as virtudes políticas.

Ao tratar de normas constitucionais, Hércules não se considera nem umpassivista nem um ativista. Acredita, assim como em outros casos, que “sob o regime do direitocomo integridade, os problemas constitucionais polêmicos pedem uma interpretação, não umaemenda” (DWORKIN, 2003, p. 442). Qualquer interpretação competente da Constituição comoum todo deve reconhecer que alguns direitos constitucionais se destinam a impedir que as maioriassigam suas próprias convicções quanto ao que a justiça requer. O julgamento interpretativo deHércules exigirá o envolvimento das virtudes políticas e a averiguação de compatibilidade delascom os mandamentos constitucionais (DWORKIN, 2003, p. 442-450).

Inicia seu processo interpretativo pesquisando a melhor teoria de interpretaçãodisponível e após elabora uma que se aplique aos fins constitucionais, sempre sujeita a revisõesposteriores. Uma interpretação feita a partir do princípio da integridade deve sempre respeitar aslimitações institucionais, quais sejam a supremacia legislativa e o precedente estrito nos países docommon law (DWORKIN, 2003, p.472- 479).

Finalizando, existe para Dworkin (2003, p.483-484), dois tipos de integridade, aintegridade inclusiva, que reflete-se na interpretação do juiz quando este constrói uma teoria geraldo direito a fim de refletir, da maneira mais coerente possível, os princípios de equidade, justiça edevido processo legal. É a aplicação prática da integridade, e está presente em nosso ordenamentojurídico. E a integridade pura, uma ambição maior do direito moderno, a qual funciona como umhorizonte a ser buscado.

A integridade pura é composta de princípios de justiça que justificam o direitocontemporâneo, sem levar em conta as restrições institucionais exigidas pela integridade inclusiva..Essa interpretação purificada se dirige diretamente à comunidade personificada (DWORKIN,2003, p. 485).

11-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43153

154

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Princípio da Integridade como Modelo de Interpretação Construtiva do Direito em Ronald Dworkin

6 CONCLUSÃO

O presente artigo teve como objetivo o esclarecimento acerca da teoria deRonald Dworkin sobre a resolução dos casos difíceis. Para isso, foi necessário encontrar a defini-ção de alguns conceitos básicos para o autor, como o conceito de regras, princípios, políticas,integridade, hard cases. Além disso, foi necessário também descrever a teoria da decisão constru-tiva do Juiz Hércules, e desenvolver as suas idéias sobre a teoria dos direitos.

Analisou-se o valor político batizado por Dworkin de integridade e suas reper-cussões no campo das decisões políticas, legislativas e jurídicas, bem como seus reflexos no enten-dimento do Direito como um conjunto coerente de normas. Também, vislumbrou-se a possibilidadede um caminho ainda mais perfeito para a interpretação, denominado por Dworkin de princípio daintegridade pura. Uma teoria que conta com a vantagem de não estar, necessariamente, ligada aoscasos concretos.

Infere-se dos estudos realizados que a sofisticada teoria de Ronald Dworkin,apesar da complexidade de seus métodos, a dedicação e o tempo de Hércules, ainda encontramuitos críticos e opositores, e está longe de constituir-se uma unanimidade.

Para alguns, o ponto mais fraco de sua teoria é a ficção de que o direito tenhaum só legislador, a comunidade personificada. Tal ficção se torna bastante importante para inter-pretar o direito como integridade. Para outros, é difícil absorver a importância do pensamento deum juiz que tem a carreira toda para resolver um único caso, e que por isso ,não possui a limitaçãodos juízes comuns. Há também aqueles que consideram sua teoria demasiadamente otimista. Aconfusão entre moral e direito também é citada por autores que criticam sua teoria. Mas, semdúvida, a parte de sua teoria que mais gera desconforto é a afirmação de que, mesmo nos casosdifíceis, há apenas uma resposta correta.

Mesmo assim, a “hermenêutica política” de Dworkin é importante. O fato deser debatida e discutida por tantos teóricos, ao invés de diminuir o valor de seu trabalho, apenasagrega valor. Esta é a riqueza da comunidade científica.

REFERÊNCIAS

BAHIA, Alexandre G. M. F. Ingeborg Maus e o Judiciário como Superego da Sociedade. In:Revista CEJ, Brasília, n. 30, jul/set 2005. p. 10-12.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. (Trad.) Maria Celeste Cordeiro Leitedos Santos. 10. ed. Brasília: UNB, 1999.

COUTINHO, Kalyani R. M. A proposta de Ronald Dworkin na interpretação judicial dos hardcases. avocato.com.br. Brasília, n. 0006, nov. 2003. Disponível em:<http://www.avocato.com.br/doutrina/ed0006.2003.icn0001.htm>. Acesso em: 5 mar 2006.

DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. (Trad.) Luis Carlos Borges. São Paulo: MartinsFontes, 2000.

______ . Do values conflict? A Hedgehog’s approach. In: Arizona Law Review. v. 43:2, 2001.p. 251-259.

______ . Levando os Direitos a Sério. (Trad.) Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

______ . O Império do Direito. (Trad.) Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fonte,2003.

______ . Hart’s Postscript and the Character of Political Philosophy. In: Oxford Journal ofLegal Studies v. 24, n 1, 2004, p. 1-37.

11-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43154

155

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Erika Juliana Dmitruk

FALLON JR, Richard H. Reflections on Dworkin and the two faces of law. Notre Dame LawReview. n. 553, 1992.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e falidade. v. 1. (Trad.) FLávioBeno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

HART, HERBERT L. A. O Conceito de Direito. (Trad.) A. Ribeiro Mendes. Lisboa: FundaçãoCalouste Gulbenkian, 2001.

HOY, David Couzens. Dworkin’s constructive optimism v. desconstructive legal nihilism. In:Law and Philosophy. v. 6, n. 3, December 1987, p. 323-356.

IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin and discretion. Lua Nova (online). 2004, n. 61, p. 91-113.Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php>. Acesso em: 05 mar 2006.

OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. Ronald Dworkin e a Dissolução da Oposição JusNaturalismo e Positivismo Jurídico.

POSTEMA, Gerald J. “Protestant” Interpretation and Social Practices. In: Law and Philosophy.v. 6. n. 3. December 1987, p. 283-319.

WOLKMER, Antonio C. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 5. ed. rev. São Paulo:Saraiva, 2006.

11-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43155

Estudos de Casos

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43157

159

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima

PROTEÇÃO DA CRIANÇA EM FACE DA PUBLICIDADE DEMEDICAMENTOS INFANTIS1

Ester Okamoto Della Costa*Raquel Sanchez de Lima*

RESUMO

Dispõe sobre a proteção da criança diante da publicidade de medicamentos infantis. Depois defornecer noções fundamentais e conceitos de publicidade, analisa a legislação sobre o assunto,tendo por base normas de áreas diversas do direito, para avaliar a situação da criança destinatáriado medicamento.

Palavras-chave: Defesa do Consumidor. Publicidade. Publicidade de Medicamentos. PúblicoInfantil.

PROTECTION OF THE CHILD IN FACE OF THE INFANTILE MEDICINEADVERTISING

ABSTRACT

It relates the protection of children in the face of the advertising of infant medicines. After providingbasic concepts and notion of advertising, it examines the law on the subject, based on standards ofvarious areas of law, to evaluate the situation of the child addressed the medicine.

Keywords: Consumer Protection. Advertising. Advertising for Drugs. Infant Public.

1 INTRODUÇÃO

Em uma sociedade de consumo, a principal forma de convencer o consumidorde adquirir determinado produto é através da publicidade. Diante disso, esta tem sido uma técnicamuito utilizada pela indústria, inclusive a indústria farmacêutica.

Ocorre que o consumo inadequado de medicamento causa conseqüências gra-ves à saúde das pessoas. Além disso, no caso de medicamentos de uso infantil, deve ser ressaltadoque a criança não é um adulto em tamanho menor, pois a criança está em desenvolvimento, tantofísico quanto intelectual, e o consumo inadequado de medicamento pode causar dano no seu de-senvolvimento físico e até uma dependência em relação ao consumo de medicamentos.

Por isso, deve-se analisar o que vem a ser publicidade e quais as espéciespermitidas na legislação brasileira, destacando-se que são proibidas as que influenciem negativa-mente as crianças, abusando de sua inexperiência.

1 Artigo resultou da pesquisa desenvolvida no sub-projeto de pesquisa “Proteção da criança em face da publicidade abusiva demedicamentos infantis”, conseqüente do projeto de pesquisa Uel-Anvisa “Projeto de Monitoração da propaganda e,alimentos especiais e produtos para saúde.”

* Farmacêutica, especialista em Bioética e Saúde Pública, mestre em saúde coletiva e doutoranda em Saúde Pública, coordena-dora do projeto de pesquisa de monitoramento de propaganda de medicamentos Uel-Anvisa.

* Advogada, especialista em Bioética, colaboradora do projeto de pesquisa de monitoramento de propaganda de medicamentosUel-Anvisa.

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43159

160

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis

Além do Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adoles-cente, em seu Art. 7º, protege a vida e a saúde da criança e do adolescente, sendo este dispositivolegal desconsiderado no momento da produção de publicidade de medicamento de uso infantil, poisestaria prejudicando sua saúde, podendo até estar infringindo o direito à vida da criança vítimadesta publicidade.

Assim, faz-se necessário analisar como poderia ser a proteção dessas criançasque se encontram vulneráveis diante da imensa gama de publicidade de medicamento infantis.

2 DA PUBLICIDADE

No Brasil a publicidade vem evoluindo de forma notável. Deve-se ligar estefato ao progresso industrial. Há um tipo de correlação entre a indústria e a publicidade, ou seja, àmedida que um cresce, o outro acompanha este crescimento.

Não se pode imaginar este exacerbado mercado consumidor sem o efeito dapublicidade que conseqüentemente permitiu o surgimento da fabricação emsérie, base do desenvolvimento da indústria moderna. Ao analisar o verbovender numa interpretação mais ampla de que se chegue aos outros a men-sagem capaz de interessá-los em determinada ação, a finalidade principal dapublicidade é vender. Não se deve, no entanto ter a idéia extrema que a únicafinalidade da publicidade é vender determinada mercadoria ou serviço. Elainfluência bastante e motiva a venda. Porém, sem os demais fatores essenci-ais: qualidade, apresentação do artigo, preço, dentre outros, seria tambéminsensato demais querer que a publicidade atingisse na sua plenitude osobjetivos almejados (SILVA, 2005).

Publicidade é “toda atividade destinada a estimular o consumo de bens e servi-ços, bem como promover instituições, conceitos e idéias”, conceito dado pelo Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária (CONAR). Cláudia Lima Marques conceitua como “toda a informa-ção ou comunicação difundida com o fim direto ou indireto de promover, junto aos consumidores, aaquisição de um produto ou a utilização de um serviço, qualquer que seja o local ou meio decomunicação utilizado” (VIEIRA, 2005).

A publicidade passou a mudar hábitos e ditar comportamentos aos cidadãos. HermanoDuval Comparato (apud ALMEIDA, 2003, p. 85) explica este fenômeno da seguinte forma:

É um fato notório que a mensagem publicitária vai, hoje, além da mera infor-mação. Em uma primeira etapa, ela informa; na segunda, sugestiona, e, naterceira, ela capta em definitivo o consumidor. De tanto insistir na mesmatecla, mas sempre revestida de novos recursos propiciados pela chamada‘criatividade’,... a publicidade comercial passa habilmente da informação àsugestão e desta à captação, isto é, eliminação no consumidor de sua capa-cidade crítica ou censura ao que lhe é proposto (anunciado), o que importanuma violação ao princípio da liberdade de pensamento. E ao fim de tantas emarteladas repetições, incapaz de distinguir a sugestão do erro, o públicoconsumidor apresenta-se ‘condicionado’ a mensagem, isto é, fica com oproduto anunciado para ‘libertar-se’ de sua promoção, rejeitando, assim,qualquer outra informação ou crítica, para só se decidir pela que ficou ‘con-dicionado’. Nesta fase, a pior comunicação publicitária é a da chamada ‘pu-blicidade subliminar’, de que se aproxima a ‘publicidade redacional’... Claroque o processo de ‘condicionamento’ é psicológico, mas o de sua imposiçãoestá na função moderna da publicidade. Ontem, advertiu Linsdsay Roger,importava saber o que a opinião pública queria, hoje importa decidir o queela deve querer.

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43160

161

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima

Além disso, deve-se destacar que propaganda e publicidade são coisas diferen-tes, pois a publicidade tem objetivo comercial, enquanto que a propaganda visa a um fim ideológico,religioso, filosófico, político, econômico ou social. Ademais, a publicidade é paga e identifica seupatrocinador, fato que nem sempre sucede com a propaganda.

Assim, percebe-se que o consumidor encontra-se a mercê de publicidades,sem conseguir discernir corretamente o que é real ou não. Embora tenha se regulamentado apublicidade de forma geral, esta é superficial e epidérmica. Isto porque ela sempre foi vista comoconcorrência desleal e relacionada a proteção da propriedade industrial, perdendo o enfoque prin-cipal que é a indução do consumidor, deixando o consumidor em segundo plano. Mesmo quando oConar – Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária percebia que esta não era ade-quada, não podiam tirá-la do ar, não havendo grandes conseqüências à empresa que divulgava apublicidade.

A publicidade é norteada por dois princípios o da liberdade e o da boa-fé. Oprincípio da publicidade é relativa a livre concorrência e iniciativa. Além disso, sofre influênciaatenuada dos princípios da manifestação de pensamento e o da liberdade de informação, pois apublicidade é uma atividade relacionada à atividade comercial.

O outro princípio é o da Boa-fé que está expressamente disposto no Art. 4º,CDC, significando que os contratos devem ser menos formais e devem expressar as intençõesreais, que serão contraídas. Deve-se, ainda, observar a ajuda mútua para que o contrato chegueaté o fim e a contraposição de interesses existentes devem ser respeitados, podendo ser resumidoem lealdade e confiança. Paulo V. Jacobina afirma sobre o assunto:

O certo é que as partes devem, mutuamente, manter o mínimo de confiança elealdade, durante todo o processo obrigacional; o seu comportamento deveser coerente com a intenção manifestada, evitando-se o elemento surpresa,tanto na fase de informação, quanto na de execução, e até mesmo na faseposterior, que se pode chamar de fase de garantia e reposição. É nessesentido que o princípio da boa-fé foi positivado pelo CDC, no inciso III doart. 4º, e é nesse sentido que a lei fala em harmonização de interesses eequilíbrio nas relações entre fornecedores e consumidores (SILVA, 2005).

Com a criação do CDC foi proibida a publicidade abusiva e enganosa, aplican-do sanções administrativas, dentre elas a contrapropaganda e a retirada do ar da publicidade proi-bida e melhorou o acesso à justiça. Ressalta-se que estas penalidades somente são aplicadas apublicidade irregular não interferindo na liberdade de criação.

A atividade publicitária deve ser exercida observando alguns princípios, taiscomo, a identificação da publicidade, ou seja, o consumidor deve saber que o que está vendo é umapublicidade; a veracidade, relativo à honestidade e escorreição; a não abusividade, pois deve pre-servar valores éticos, não induzindo o consumidor a situações prejudiciais; transparência e funda-mentação, que significam que a publicidade deve ser baseada em dados fáticos, técnicos e cientí-ficos; a obrigatoriedade do cumprimento ou da vinculação contratual da publicidade, ou seja, ofertoudeve cumprir, e por fim, a inversão do ônus da prova, pois o consumidor não tem condições paraprovar o que está alegando devido a sua vulnerabilidade.

Seguindo o princípio da veracidade, a única forma de publicidade permitida noordenamento jurídico brasileiro é a verdadeira, não podendo existir publicidade simulada, abusivaou enganosa. A publicidade enganosa é a que deixa de informar dado essencial ou contem informa-ções falsas, mesmo que parcialmente, gerando vício de vontade ao consumidor, podendo-se desta-car neste momento a hipossuficiência do consumidor. Como forma de explicar a publicidade enga-nosa por comissão: “A publicidade enganosa vicia a vontade do consumidor, que, iludido, acabaadquirindo produto ou serviço em desconformidade com o pretendido. A falsidade está diretamenteligada ao erro, numa relação de causalidade” (CARVALHO, 2005).

Já a publicidade enganosa por omissão consiste na falta de informação acercade um dado essencial do produto e Adalberto Pascoalotto a explica da seguinte forma: “Mesmo

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43161

162

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis

sendo verdadeira, uma comunicação publicitária pode ser falsa, inteira ou parcialmente. A situaçãoé freqüente quando há omissão de algum dado necessário ao conhecimento do consumidor, prova-velmente determinante da compra” (CARVALHO, 2005).

Pode-se considerar abusiva a publicidade discriminatória, que incite a violênciaou que explore medo ou superstição, se aproveite de deficiência de julgamento e experiência decriança, violando valores éticos da sociedade. Ambas estão proibidas pelo Art. 37, CDC.

Este tipo de publicidade não está relacionado apenas às informações divulgadas,mas também à forma que ela é divulgada. Devem sempre ser observadoS os princípios éticos,morais e culturais, não podendo ser utilizados como uma arma. Ressalta-se ainda que a publicidadenão deve servir para “empurrar” serviços, tampouco deve aproveitar-se da ingenuidade das crian-ças para vender mercadorias e serviços.

O controle da abusividade da publicidade decorre, aliás, de imposição cons-titucional, constante no artigo 220, II, e § 4º da Lei Maior. Ali, exige-se que alei estabeleça os meios que garantam a possibilidade, à pessoa e à família, dese defenderem da propaganda de produtos, práticas e serviços que possamser nocivos à saúde e ao meio ambiente. Outrossim, o § 4º restringe a propa-ganda dos produtos ali elencados (tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos,medicamentos e terapias) e o art. 221 garante que programação das emisso-ras de rádio e televisão atenderá ao princípio do respeito aos valores éticose sociais da pessoa e da família. Tudo isso, combinado com o princípio dadefesa do consumidor, previsto em diversas passagens da Constituição (verart. 5º, XXXII, e art. 170, V), dão a necessária fundamentação a tal controle. Épreciso lembrar que não existe, no estado de Direito, liberdade fora ou acimado direito. A liberdade é sempre exercida dentro dos limites jurídicos. Se apublicidade não pode se conter dentro dos limites do ordenamento jurídicodemocrático, há algo errado com a publicidade, não com o ordenamentojurídico (SILVA, 2005).

Apesar de todos consumidores serem considerados vulneráveis, este fato seagrava quando se trata de criança, pois além de vulneráveis são hipossuficientes. Apesar disso, umdos principais alvos das empresas são as crianças, pois se aproveitando de sua imaturidade, ino-cência e ignorância tentam direta e indiretamente persuadi-las em suas mensagens.

Para isso, muitas vezes, utilizam crianças para a produção do comercial, poisassim fica mais fácil de convencer outra criança por viverem no mesmo universo. Antônio Hermande Vasconcelos Benjamin (apud SILVA, 2005), manifesta-se entendendo que:

tal modalidade publicitária não pode exortar diretamente a criança a comprarum produto ou serviço; não deve encorajar a criança a persuadir seus paisou qualquer outro adulto (...); não pode explorar a confiança especial que acriança tem em seus pais, professores etc.; as crianças que aparecem nosanúncios não podem se comportar de modo inconsistente com o comporta-mento natural de outras da mesma idade.

Já a publicidade simulada disfarça seu caráter promocional para que o consu-midor não perceba que está diante de uma publicidade. Antonio Herman de Vasconcelos Benjamim(apud CARVALHO, 2005) afirma acerca de publicidade simulada:

A publicidade há que ser identificada pelo consumidor. O legislador brasilei-ro não aceitou nem a publicidade clandestina, nem a subliminar (...) publici-dade que não quer assumir a sua qualidade é atividade que, de uma forma oude outra, tenta enganar o consumidor. E o engano, mesmo o inocente, érepudiado pelo Código de Defesa do Consumidor (...) O dispositivo visa

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43162

163

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima

impedir que a publicidade, embora atingindo o consumidor, não seja por elepercebida como tal (...) Veda-se, portanto, a chamada publicidade clandesti-na, especialmente sem sua forma redacional, bem como a subliminar.

É importante a intervenção do Estado na regulamentação de publicidades, es-tando este fato interligado ao intervencionismo estatal para que não haja abusos nas publicidades,que devem ser analisadas mais cuidadosamente quando se trata de publicidade de medicamentos,pois seu consumo inadequado interfere diretamente na saúde das pessoas.

3 PUBLICIDADE DE MEDICAMENTOS

A publicidade de medicamentos é uma prática utilizada desde o início do séculoXX, e até os dias de hoje essa é uma forma de forte persuasão dos consumidores. No início essaspropagandas resumiam-se em simples mensagens. Hoje, com a chegada da mídia, os investimen-tos em publicidade de medicamentos cresceram estrondosamente.

Ocorre que, para a simples divulgação do consumo de um medicamento, exis-tem muitos fatores que devem ser analisados, observando que ele não é o produto de consumocomum, pois é um e não o único instrumento de promoção à saúde, devendo sempre existir comomedida preventiva, consultas médicas e até mesmo uma análise crítica de todo o contexto em quea patologia se insere, não podendo simplesmente consumir o medicamento, acreditando que so-mente ele resolverá o problema. Ainda ressalta-se o risco sanitário existente no consumo de medi-camentos sem prescrição médica, pois estes somente devem ser consumidos com consciência eresponsabilidade.

Por isso, em 1968, durante o 21ª Assembléia Mundial da Saúde, aprovaram-secritérios éticos e científicos para propaganda farmacêutica, determinando que para produção dapublicidade de medicamento seriam necessárias as informações exatas do medicamento, sendoestas as indicações corretas, contra-indicações, cuidados e advertências, posologia. Após foramelaborados mais documentos estabelecendo como devem ser as publicidades de medicamentosincluindo a Organização Mundial da Saúde e a Federação Internacional das Indústrias de Medica-mentos, além das legislações nacionais de cada país.

No Brasil, a primeira legislação sobre a publicidade de medicamentos começoua ser criada em 1976 com a elaboração da Lei 6.360/76, que foi regulamentada pelo decreto79.094/77. Essa legislação sobre publicidade de medicamentos era muito superficial, não atenden-do a necessidade de coibir os abusos na publicidade de medicamentos. Esta lei e esse decretoestabeleceram que a publicidade de medicamentos deveria ser aprovada para ser divulgada, alémde que os produtos de venda sob prescrição médica somente poderiam ser divulgados para osprescritores do medicamento.

Em 1980, foi criado o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação publicitária,que, em seu anexo I, trata especificamente de produtos farmacêuticos isentos de prescrição médi-ca, exigindo os seguintes aspectos:

2. A publicidade de medicamentos populares:

a. não deverá conter nenhuma afirmação quanto à ação do produto que nãoseja baseada em evidência clínica ou científica;

b. não deverá ser feita de modo a sugerir cura ou prevenção de qualquerdoença que exija tratamento sob supervisão médica;

c. não deverá ser feita de modo a resultar em uso diferente das ações tera-pêuticas constantes da documentação aprovada pela Autoridade Sanitária;

d. não oferecerá ao consumidor prêmios, participação em concursos ou re-cursos semelhantes que o induzam ao uso desnecessário de medicamentos;

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43163

164

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis

e. deve evitar qualquer inferência associada ao uso excessivo do produto;

f. não deverá ser feita de modo a induzir ao uso de produtos por crianças,sem supervisão dos pais ou responsáveis a quem, aliás, a mensagem sedirigirá com exclusividade;

g. não deverá encorajar o Consumidor a cometer excessos físicos,gastronômicos ou etílicos;

h. não deverá mostrar personagem na dependência do uso contínuo demedicamentos como solução simplista para problemas emocionais ou esta-dos de humor;

i. não deverá levar o Consumidor a erro quanto ao conteúdo, tamanho deembalagem, aparência, usos, rapidez de alívio ou ações terapêuticas do pro-duto e sua classificação (similar/genérico);

j. deverá ser cuidadosa e verdadeira quanto ao uso da palavra escrita oufalada bem como de efeitos visuais. A escolha de palavras deverá correspondera seu significado como geralmente compreendido pelo grande público;

k. não deverá conter afirmações ou dramatizações que provoquem medo ouapreensão no Consumidor, de que ele esteja, ou possa vir, sem tratamento, asofrer de alguma doença séria;

l. deve enfatizar os usos e ações do produto em questão. Comparaçõesinjuriosas com concorrentes não serão toleradas. Qualquer comparação so-mente será admitida quando facilmente perceptível pelo Consumidor ou ba-seada em evidência clínica ou científica. Não deverão ser usados jargõescientíficos com dados irrelevantes ou estatísticas de validade duvidosa oulimitada, que possam sugerir uma base científica que o produto não tenha;

m. não deverá conter qualquer oferta de devolução de dinheiro pago ououtro benefício, de qualquer natureza, pela compra de um medicamento emfunção de uma possível ineficácia;

n. a publicidade de produto dietético deve submeter-se ao disposto nesteAnexo e, no que couber, nos anexos “G” e “H”. Não deverá incluir ou men-cionar indicações ou expressões, mesmo subjetivas, de qualquer ação tera-pêutica.

3. A referência a estudos, quer científicos ou de consumo, deverá sempre serbaseada em pesquisas feitas e interpretadas corretamente.

4. Qualquer endosso ou atestado, bem como a simples referência a profissi-onais, instituições de ensino ou pesquisa e estabelecimentos de saúde, de-verá ser suportada por documentação hábil, exigível a qualquer tempo.

5. A publicidade de medicamentos não oferecerá a obtenção de diagnósticoà distância.

6. Não conterá afirmações injuriosas às atividades dos profissionais de saú-de ou ao valor de cuidados ou tratamentos destes.

7. Quando oferecer a venda do produto por meio de telefone ou endereçoeletrônico, deverá explicitar a razão social e o endereço físico do anunciantea fim de facilitar ação fiscalizatória e reclamações.

Assim, ficaram estabelecidas as limitações do que poderia ser afirmado ou nãoe a necessidade de informações.

Poucos anos depois, em 1988, foi promulgada a Constituição Federal que esta-beleceu, no Art. 220, a limitação da publicidade de medicamentos, devido ao estabelecido no Art.6º, que estabeleceu que é um direito de todos o direito à saúde. Desse modo, os Arts. 196 e 197estabeleceram que a saúde é dever do Estado, e este deve interferir sempre para sua manutenção.Dessa forma mesmo o Art. 220, sendo contrário a livre concorrência, é um direito do Estado

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43164

165

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima

intervir nesta livre concorrência, pois é seu dever preservar a saúde das pessoas, e o consumoinadequado de um medicamento pode causar sérios danos à saúde de uma pessoa.

Em 1990, foi criado o Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo, em seuArt. 4º, que, apesar da necessidade do consumo, este deve ser atendido respeitando a dignidade esaúde do consumidor, entre outros, mas dessa forma estabelece que, apesar da sociedade deconsumo em que se vive, a saúde de ninguém pode ser afetada pelo consumo. Ainda na mesmalegislação ficou estabelecido que a saúde e o esclarecimento do consumo são direitos básicos doconsumidor, segundo estabelecido no Art. 6º, CDC:

Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: I - a proteção da vida, saúde esegurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços consi-derados perigosos ou nocivos;

Na Declaração Universal dos direitos do Homem e do Cidadão, a saúde é umdireito de todos, sendo que o uso inadequado de medicamentos causa danos diretos às pessoas:

Artigo 25º

1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurare à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação,ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos servi-ços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doen-ça, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios desubsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.

Além disso, os Art. 36 a 38, Código Defesa do Consumidor, protegem o consu-midor, exigindo que, em toda publicidade, esteja claro seu caráter publicitário e não admitindo queexistam publicidades enganosas, abusivas e simuladas, conforme já foi analisado acima.

Em 1996 foi criada a Lei 9.294/96, regulamentada pelo Decreto 2.018/96 quedeterminou alguns critérios de informações essenciais para a publicidade de medicamentos, e comoesta pode ser divulgada.

Apesar de toda legislação criada no Brasil visando proteger a população daspublicidades de medicamentos, a Lei 6.360/76 foi submetida a uma consulta pública nº 5, resultandona Resolução RDC 102/00 criada pela Anvisa, regulamentando a publicidade de promoção oudivulgação ou comercialização de medicamentos, indicando seus critérios, e o que pode ou não serafirmado neste tipo de publicidade.

Ainda em 2000 foi criada a Gerência de Controle e Fiscalização de Medica-mentos e Produtos iniciando-se um melhor controle dos medicamentos postos no mercado e tam-bém de suas publicidades, pois possui as seguintes competências:

I. avaliar, fiscalizar, controlar e acompanhar, a propaganda, a publicidade, apromoção e a informação de produtos sujeitos à vigilância sanitária;

III. coordenar as atividades de apuração das infrações à legislação de vigi-lância sanitária, instaurar processo administrativo para apuração de infraçõesà legislação sanitária federal, em sua área de competência;

VIII. formular, regulamentar, planejar, coordenar, avaliar, executar e propor asdiretrizes para implantação de um módulo de propaganda de produtos sujei-tos à vigilância sanitária dentro do Sistema de Informação em VigilânciaSanitária, visando o aprimoramento do desempenho das ações de vigilânciasanitária;

IX. articular-se com órgãos afins da administração federal, estaduas, munici-pal e do Distrito Federal visando a cooperação mútua e a integração deatividades, de modo a incorporar o controle de propaganda, publicidade,promoção e informação como uma ação de vigilância sanitária em todos osníveis de governo.

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43165

166

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis

Além de organismos nacionais existem os supranacionais que também visam àproteção da saúde através da coibição de publicidade de medicamentos. O mais importante delesé a Organização Mundial da Saúde, que, desde 1968, vem estabelecendo critérios éticos e científi-cos para a propaganda farmacêutica.

Esses critérios foram ampliados em 1988 na Assembléia Mundial da saúdequando foram aprovados os Critérios Éticos para a Promoção da Saúde. Nessa assembléia foiconsiderada promoção qualquer forma de atividade informativa e de persuasão por parte dos fabri-cantes ou distribuidores de medicamentos, com o objetivo de induzir a prescrição, abastecimento,aquisição ou utilização do medicamento.

Em 1992 a mesma assembléia constatou que a maioria dos países não tinhaadotado meios suficientes de controle das publicidades de medicamentos. Assim foi criado o regu-lamento WHA47 que recomenda aos Estados membros que implementem meios para coibir apublicidade de medicamentos que não observem a ética.

Em 1994 foi elaborada a resolução WHA51.9, reafirmando que a regulamenta-ção de medicamentos deve visar não apenas à segurança, mas também à eficácia, qualidade eexatidão nas informações fornecidas aos pacientes e prescritores.

4 DA PUBLICIDADE VOLTADA AO PÚBLICO INFANTIL

Um público muito desejado pelos publicitários é o público infantil, pois constitu-em um mercado atraente e uma forma de atração aos pais. Somando este fato à hipossuficiênciadas crianças, o CDC dispensou uma atenção especial para estes consumidores.

Por isso, as publicidades não podem incitar a criança diretamente a comprarum produto ou contratar um serviço, não podem mostrar crianças tendo ações como outras crian-ças da mesma idade, persuadindo seus pais a comprarem. Tampouco podem aproveitar-se daconfiança que as crianças têm nos pais e professores para adquirirem um produto.

A publicidade dirigida a crianças deve ser veraz e claramente identificávelcomo tal; não deve aprovar a violência ou aceitar comportamentos que con-trariem as regras gerais de comportamento social; não se podem criar situa-ções que passem a impressão de que alguém pode ganhar prestígio com aposse de bens de consumo, que enfraqueçam a autoridade dos pais, contri-buam para situações perigosas para a criança, ou que incentivem as criançasa pressionarem outras pessoas a adquirirem bens (SANTOS, 2005).

O Código de Defesa do consumidor, como já afirmado anteriormente, resguar-da a saúde de todos os consumidores. Além disso, no capítulo relativo à publicidade, há uma prote-ção especial às crianças, por serem um público ingênuo que acredita nas afirmações acerca doproduto, sem ter completo discernimento do ideal. Essa proteção está no Art. 37, § 2º, CDC:

É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza,a que incite à violência, explore o medo ou superstição, se aproveite dadeficiência de julgamento experiência da criança, desrespeita valoresambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar deforma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.

Isso se deve ao fato de além, de vulneráveis como todo consumidor, a criançaser hipossuficiente. Por isso um dos maiores alvos da publicidade, atualmente, são as crianças, poisnão possuem discernimento necessário para escolher o que é melhor para sua vida, são ingênuas eimaturas, acabando, muitas vezes, ludibriadas pelas publicidades. “A hipossuficiência leva em con-sideração a situação concreta do consumidor, seu grau de cultura, instrução, situação financeira eo meio em que vive” (SANTOS, 2005).

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43166

167

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima

Por tudo isso, foi regulamentada pelo Estado a proteção da criança face àpublicidade de medicamentos, pois, ocorrendo estes abusos, a saúde da criança pode ser afetada ehá diversas legislações protegendo a saúde da criança. Visando a proteção da saúde da criança, aConstituição Federal é clara ao afirmar que é dever do Estado e da família sua proteção:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança eao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimen-tação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, aorespeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violên-cia, crueldade e opressão.

§ 1º. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde dacriança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governa-mentais e obedecendo os seguintes preceitos:

I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde naassistência materno-infantil;

II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para osportadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integraçãosocial do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para otrabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviçoscoletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.

No mesmo sentido, dispôs o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):

Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do PoderPúblico assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos refe-rentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, àprofissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convi-vência familiar e comunitária.

Art. 7º. A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde,mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nasci-mento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas deexistência.

A lei Programa Nacional de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente –PRONAICA, Lei 8642 de 1993, acerca da proteção da saúde da criança, diz:

Art. 2º. O PRONAICA terá as seguintes áreas prioritárias de atuação:

I - mobilização para a participação comunitária;

II - atenção integral à criança de 0 a 6 anos;

III - ensino fundamental;

IV - atenção ao adolescente e educação para o trabalho;

V - proteção à saúde e segurança à criança e ao adolescente;

VI - assistência a crianças portadoras de deficiência;

VII - cultura, desporto e lazer para crianças e adolescentes;

VIII - formação de profissionais especializados em atenção integral a crian-ças e adolescentes.

Parágrafo único. Para dar suporte às ações de que trata este artigo, subordi-

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43167

168

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis

nando-as ao enfoque da atenção integral à criança e ao adolescente, e deacordo com as necessidades sociais locais, serão adotados mecanismos eestratégias de: integração de serviços e experiências locais já existentes;adaptação e melhoria de equipamentos sociais já existentes; construção denovas unidades de serviço.

A Estrutura Regimental Da Secretaria Especial Dos Direitos Humanos prote-ge a saúde da criança da seguinte forma em seu Art. 6º:

Art. 6º À Subsecretaria dos Direitos da Criança e do Adolescente compete:

I - formular medidas necessárias para promover, estimular, acompanhar ezelar pelo cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, mediante odesenvolvimento de ações sociais públicas de proteção à vida e à saúde dacriança e do adolescente, para viver em condições dignas de existência;

II - propor diretrizes e a adoção de medidas administrativas e de gestãoestratégica, visando garantir a adequada implementação do Estatuto da Cri-ança e do Adolescente;

III - supervisionar e coordenar a elaboração de planos de ação anuais para aimplementação e monitoramento de programas e projetos de atendimento àscrianças e aos adolescentes, com definição de prazos, metas, responsáveis eorçamento para as ações;

IV - supervisionar e coordenar a execução da política de promoção e defesados direitos da criança e do adolescente consagrados no Estatuto, bemcomo fomentar o apoio a serviços de atendimento direto à criança e aoadolescente;

V - promover parcerias com órgãos da Administração Pública federal, esta-dual, municipal e entidades não-governamentais na formulação de propos-tas para a implementação de programas de ações em defesa dos direitos dacriança e do adolescente;

VI - promover ações de proteção da criança e do adolescente com direitosameaçados ou violados, bem como apoiar o desenvolvimento de projetos deatendimento aos egressos de medidas socioeducativas;

VII - incentivar o aprimoramento de instituições de atendimento direto aosadolescentes em conflito com a lei;

VIII - promover e apoiar a execução de programas de proteção e assistênciaà criança e ao adolescente, vítimas do narcotráfico e da exploração sexual;

IX - promover ações, em articulação com órgãos da Administração Públicafederal, estadual, municipal e outras entidades, de apoio à erradicação dotrabalho infantil;

X - estimular e apoiar a execução da política de adoção nacional, acompa-nhando as ocorrências e denúncias de irregularidades para assegurar nessesentido o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente;

XI - fomentar e contribuir para a formação, a especialização e o aperfeiçoa-mento de recursos humanos necessários à execução da política de atendi-mento e garantia dos direitos da criança e do adolescente;

XII - incentivar e apoiar as ações dos governos federal, estadual, do DistritoFederal e municipal que visem a universalização do direito à documentaçãocivil básica da criança e do adolescente;

XIII - sistematizar, avaliar e disponibilizar os resultados alcançados pelosprogramas de ações em defesa dos direitos da criança e do adolescente,difundindo conhecimentos e informações mediante estudos e pesquisasespecíficos;

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43168

169

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima

XIV - colaborar com o Gabinete do Secretário Especial na execução dasatividades relacionadas com os Aspectos Civis do Seqüestro Internacionalde Crianças e Adolescentes e com as ações relativas à Cooperação em Ma-téria de Adoção Internacional, de competência da Secretaria Especial; e

XV - realizar outras atividades determinadas pelo Secretário Especial.

A Convenção Sobre Os Direitos Da Criança complementa:1. Os Estados Partes reconhecem o direito da criança de gozar do melhorpadrão possível de saúde e dos serviços destinados ao tratamento das do-enças e à recuperação da saúde. Os Estados Partes envidarão esforços nosentido de assegurar que nenhuma criança se veja privada de seu direito deusufruir desses serviços sanitários.

2. Os Estados Partes garantirão a plena aplicação desse direito e, em especi-al, adotarão as medidas apropriadas com vistas a:

a) reduzir a mortalidade infantil;

b) assegurar a prestação de assistência médica e cuidados sanitários neces-sários a todas as crianças, dando ênfase aos cuidados básicos de saúde;

c) combater as doenças e a desnutrição dentro do contexto dos cuidadosbásicos de saúde mediante, inter alia, a aplicação de tecnologia disponível eo fornecimento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo em vista osperigos e riscos da poluição ambiental;

d) assegurar às mães adequada assistência pré-natal e pós-natal;

e) assegurar que todos os setores da sociedade, e em especial os pais e ascrianças, conheçam os princípios básicos de saúde e nutrição das crianças,as vantagens da amamentação, da higiene e do saneamento ambiental e dasmedidas de prevenção de acidentes, e tenham acesso à educação pertinentee recebam apoio para a aplicação desses conhecimentos;

f) desenvolver a assistência médica preventiva, a orientação aos pais e aeducação e serviços de planejamento familiar.

3. Os Estados Partes adotarão todas as medidas eficazes e adequadas paraabolir práticas tradicionais que sejam prejudiciais à saúde da criança.

4. Em conformidade com suas obrigações de acordo com o direito humanitá-rio internacional para proteção da população civil durante os conflitos arma-dos, os Estados Partes adotarão todas as medidas necessárias a fim deassegurar a proteção e o cuidado das crianças afetadas por um conflitoarmado.

Os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para estimular arecuperação física e psicológica e a reintegração social de toda criança víti-ma de qualquer forma de abandono, exploração ou abuso; tortura ou outrostratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; ou conflitos ar-mados. Essa recuperação e reintegração serão efetuadas em ambiente queestimule a saúde, o respeito próprio e a dignidade da criança.

O Art. 24, dos Direitos das Crianças, da Unicef, prossegue afirmando quetodas as crianças têm direito à saúde:

Artigo 24 - Tens direito à saúde. quer dizer que, se estiveres doente, devester acesso a cuidados médicos e medicamentos. Os adultos devem fazertudo para evitar que as crianças adoeçam, dando-lhes uma alimentação con-veniente e cuidando bem delas.

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43169

170

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis

Por fim, a convenção dos direitos da criança, criada pela Organização dasNações Unidas (ONU), estabeleceu:

Artigo 24.º

1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito a gozar do melhor estadode saúde possível e a beneficiar de serviços médicos e de reeducação. OsEstados Partes velam pela garantia de que nenhuma criança seja privada dodireito de acesso a tais serviços de saúde.

2. Os Estados Partes prosseguem a realização integral deste direito e, nome-adamente, tomam medidas adequadas para:

a) Fazer baixar a mortalidade entre as crianças de tenra idade e a mortalidadeinfantil;

b) Assegurar a assistência médica e os cuidados de saúde necessários atodas as crianças, enfatizando o desenvolvimento dos cuidados de saúdeprimários;

c) Combater a doença e a má nutrição, no quadro dos cuidados de saúdeprimários, graças nomeadamente à utilização de técnicas facilmente disponí-veis e ao fornecimento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo emconsideração os perigos e riscos da poluição do ambiente;

d) Assegurar às mães os cuidados de saúde, antes e depois do nascimento;

e) Assegurar que todos os grupos da população, nomeadamente os pais e ascrianças, sejam informados, tenham acesso e sejam apoiados na utilizaçãode conhecimentos básicos sobre a saúde e a nutrição da criança, as vanta-gens do aleitamento materno, a higiene e a salubridade do ambiente, bemcomo a prevenção de acidentes;

f) Desenvolver os cuidados preventivos de saúde, os conselhos aos pais ea educação sobre planeamento familiar e os serviços respectivos.

3. Os Estados Partes tomam todas as medidas eficazes e adequadas comvista a abolir as práticas tradicionais prejudiciais à saúde das crianças.

4. Os Estados Partes comprometem-se a promover e a encorajar a coopera-ção internacional, de forma a garantir progressivamente a plena realizaçãodo direito reconhecido no presente artigo. A este respeito atender-se-á deforma particular às necessidades dos países em desenvolvimento.

Visando a proteção da saúde das crianças conforme determinado por toda estalegislação acostada, o legislador brasileiro elaborou leis que protegem a criança face à publicidadede medicamentos.

Em primeiro plano, deve-se destacar o papel do Código de Defesa do Consu-midor que proíbe a publicidade abusiva, e estas podem ser considerada também as que exploram ainocência infantil como ensinado anteriormente.

Além disso, a resolução RDC 102/00, em seu Art. 10, II, afirma que não podeser dirigida a publicidade de medicamentos isentos de prescrição para o público infantil2 . Diantedisso, infere-se que nenhum medicamento pode ser divulgado para o público infantil, pois os demaismedicamentos somente podem ser divulgados para a classe prescritora deles.

A Conar também decidiu como devem ser as publicidades voltadas ao públicoinfantil:

2 II - incluir mensagens de qualquer natureza dirigidas a crianças ou adolescentes; conforme classificação do Estatuto da Criançae do Adolescente, bem como utilizar símbolos e imagens com este fim;

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43170

171

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima

Artigo 37 - No anúncio dirigido à criança e ao jovem:

a. dar-se-á sempre atenção especial às características psicológicas daaudiência-alvo;

b. respeitar-se-á especialmente a ingenuidade e a credulidade, a inexperiênciae o sentimento de lealdade dos menores;

c. não se ofenderá moralmente o menor;

d. não se admitirá que o anúncio torne implícita uma inferioridade do menor,caso este não consuma o produto oferecido;

e. não se permitirá que a influência do menor, estimulada pelo anúncio, leve-o a constranger seus responsáveis ou importunar terceiros ou o arraste auma posição socialmente condenável;

f. o uso de menores em anúncios obedecerá sempre a cuidados especiaisque evitem distorções psicológicas nos modelos e impeçam a promoção decomportamentos socialmente condenáveis;

g. qualquer situação publicitária que envolva a presença de menores deveter a segurança como primeira preocupação e as boas maneiras como segun-da preocupação.

Além disso, ressalta-se que, em seu anexo I, a referida Lei dispõe acerca dapublicidade ao público infantil de medicamentos: “f. não deverá ser feita de modo a induzir ao usode produtos por crianças, sem supervisão dos pais ou responsáveis a quem, aliás, a mensagem sedirigirá com exclusividade”;

Assim, fica clara a existência de proteção à saúde da criança e a tentativa deminimizar possíveis conseqüências do consumo inadequado de medicamentos, basta agora analisaros mecanismos de proteção quando estes dispositivos não são respeitados.

5 MEIOS DE PROTEÇÃO

Os Meios de defesa do consumidor encontram-se elencados no Art. 5º, CDC.A educação formal e informal é a primeira forma de proteção e talvez a mais importante, pois aeducação formal consiste na inclusão nos currículos escolares de educação consumerista, como oobjetivo de formar hábitos sadios de consumo e preparar as crianças para as escolhas que farãodurante à vida dentre os produtos ofertados. Por outro lado, a informal decorre de campanhasdivulgadas pelo Estado e por organizações não governamentais que forneçam esclarecimentospara melhor postura como consumidor.

Os órgãos oficiais desempenham importante papel para o atendimento ao pú-blico, procurando solucionar conflitos sendo ora por políticas preventivas ora através de repressão.As associações civis são criadas através de incentivo estatal e são tão importantes quanto osórgãos oficiais para proteção do consumidor.

Informação ao consumidor é um direito básico, o princípio da transparência einformação é relevante para proteção do consumidor. Todos os dados relativos aos produtos são defunção do fornecedor indicar para que o consumidor não caia em erro e possa exercer livre econscientemente sua escolha. Os serviços de atendimento nas empresas também são importantes,pois significa uma tomada de consciência do fornecedor, evitando o acúmulo de reclamações en-volvendo os produtos que fabrica, resolvendo previamente os problemas surgidos.

Os juizados Especiais Cíveis, como já dito anteriormente, é a forma mais rápidae fácil para solucionar problemas em que o valor da causa não seja superior a 40 salários mínimos,independente de pagamento de custas, taxas ou despesas, e nas causas com até 20 salários míni-mos é possível exercer direito de ação sem a presença de advogado constituído.

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43171

172

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis

O Ministério Público é responsável pela tutela do consumidor, desempenhandopapel de grande relevância na mediação dos conflitos. Antonio Herman Benjamin (apud ALMEIDA,2003, p. 29) afirma que

a tutela do consumidor pelo MP tem como premissa básica a defesa dointeresse público, algo mais abrangente que o interesse exclusivo doconsumidor. Aí reside a razão principal por que é o MP, e não outroórgão, a instituição mais adequada a carrear a tarefa mediativa nas rela-ções de consumo.

A assistência jurídica consiste na assistência pelo poder público do consumidorcarente, respeitando seus direitos. Ainda cabe lembrar as Delegacias especializadas em atendi-mento ao consumidor vítima de infrações penais de consumo para tutelar o consumidor.

Além disso, são oferecidos outros instrumentos para a proteção do consumidorcomo o instituto de pesos e medidas que analisam fraudes nessas áreas e a Vigilância Sanitária. Ocadastro das reclamações fundamentadas, identificando se as reclamações foram atendidas ounão pelo fornecedor, tendo os consumidores acesso ao cadastro dos fornecedores, assegurando apublicidade de sua confiabilidade e continuidade.

Sempre que o estabelecido acerca das publicidades não for obedecido, haverápunição aos infratores, conforme disposto no Art. 50 do CONAR:

Artigo 50 - Os infratores das normas estabelecidas neste Código e seusanexos estarão sujeitos às seguintes penalidades:

a. advertência;

b. recomendação de alteração ou correção do Anúncio;

c. recomendação aos Veículos no sentido de que sustem a divulgação doanúncio;

d. divulgação da posição do CONAR com relação ao Anunciante, à Agênciae ao Veículo, através de Veículos de comunicação, em face do não acatamen-to das medidas e providências preconizadas.

A responsabilidade acerca da divulgação da publicidade é tanto da empresaquanto do anunciante, de acordo com o Art. 45, CONAR:

Artigo 45 - A responsabilidade pela observância das normas de condutaestabelecidas neste Código cabe ao Anunciante e a sua Agência, bem comoao Veículo, ressalvadas no caso deste último as circunstâncias específicasque serão abordadas mais adiante, neste Artigo:

a. o Anunciante assumirá responsabilidade total por sua publicidade;

b. a Agência deve ter o máximo cuidado na elaboração do anúncio, de modoa habilitar o Cliente Anunciante a cumprir sua responsabilidade, com elerespondendo solidariamente pela obediência aos preceitos deste Código;

c. este Código recomenda aos Veículos que, como medida preventiva, esta-beleçam um sistema de controle na recepção de anúncios.

Destaca-se que a responsabilidade pela publicidade inadequada é objetiva, ouseja, independe de culpa da pessoa que a produziu, existindo o nexo causal, o fato e o dano,configura-se a ilicitude devendo ser indenizado. Geralmente a publicidade enganosa gera danosmateriais ao passo que a publicidade abusiva gera danos morais. Ressalta-se ainda que dependen-

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43172

173

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima

do da forma que o agente agiu o quantum indenizável é maior, principalmente em caso de abusividade.O Código de Defesa do Consumidor apontou algumas práticas como crime

contra o consumo. Essas práticas consistem em divulgação de publicidade enganosa ou abusiva,divulgação de publicidade de produto que poderá fazer mal a saúde do consumidor e deixar deinformar dados que são a base da publicidade:

Art. 67. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enga-nosa ou abusiva:

Pena - Detenção de três meses a um ano e multa.

Parágrafo único. (Vetado).

Art. 68. Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capazde induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa asua saúde ou segurança:

Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa:

Parágrafo único. (Vetado).

Art. 69. Deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dãobase à publicidade:

Pena - Detenção de um a seis meses ou multa.

A Lei dos crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações deconsumo aponta alguns crimes em relação à publicidade enganosa de medicamentos:

Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo:

VII - induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirma-ção falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço, utili-zando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitá-ria;

Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.

Além da ação penal e responsabilização do dano causado pela publicidade en-ganosa ou abusiva, há uma outra forma de punição às publicidades, que é a contrapropaganda,estabelecida no Art. 56, XII, CDC, após um procedimento administrativo visando apurar aenganosidade e abusividade da publicidade.

Contrapropaganda, na relação de consumo, corresponde ao oposto da di-vulgação publicitária, pois destinada a desfazer efeitos perniciosos detecta-dos e apenados na forma do CDC (...) punição imponível ao fornecedor debens ou serviços, consistente na divulgação publicitária esclarecedora doengano ou do abuso cometidos em publicidade precedente do mesmo forne-cedor (...) a imposição de contrapropaganda, custeada pelo infrator, serácominada (art. 62) quando incorrer na prática de publicidade enganosa ouabusiva (...) Quer a divulgação do anúncio, capaz de satisfazer a finalidadeindicada seja feita em jornais e revistas, quer seja pela mídia eletrônica, seucusteio estará sempre a cargo do fornecedor (o fabricante, mesmo não des-tinando o produto ao destinatário final, pode ser sujeito passivo da obriga-ção) (CARVALHO, 2005).

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43173

174

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Proteção da Criança em Face da Publicidade de Medicamentos Infantis

A contrapropaganda pode ser considerada uma forma de proteção estatal doconsumidor hipossuficiente quando bombardeado por publicidades abusiva e/ou enganosas, resul-tando em um processo administrativo, mas não se libera de um processo civil de responsabilidadeou penal.

6 CONCLUSÃO

Apesar da publicidade de medicamentos ser uma arma utilizada pela indústriafarmacêutica, visando convencer o consumidor a adquirir seus produtos, percebe-se que esta prá-tica é inadimissível na legislação brasileira, devido ao fato de poder causar dano à saúde e por sereste tipo de publicidade restrita as condições analisadas alhures. Apesar disso, esta restrição, namaior parte das vezes não é observada existindo diversos tipos de publicidades de medicamentos,inclusive voltadas ao público infantil.

Mecanismos aptos para punição deste tipo de publicidade, como se pode anali-sar, existem, porém sua aplicabilidade é quase nula, precisando assim encontrar outras formas paraproteção das crianças face a publicidade de medicamentos. O primeiro ponto e talvez o maisimportante é a informação-educação, ensinando a criança como deve ser consumido o medica-mento e a preparando para possíveis práticas de publicidade voltada à ela de medicamento, poisassim, ela deixaria de ser facilmente atingida.

Além disso, faz-se necessária a conduta da população buscando denunciar aosórgãos responsáveis pela fiscalização desta forma de publicidade para que sejam coibidos anúnciosabusivos e enganosos.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, João Batista de. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2003.

CARNEIRO, Odete Novais. Da responsabilidade por vício do produto e do serviço: códigode defesa do consumidor (lei n. 8.078/90). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. A disciplina civil da publicidade no Código de Defesado Consumidor. Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 15 out. 05.

CARVALHO, Luiz Eduardo. O que é consumerismo? Disponível em: <http://acd.ufrj.br/consu-mo/faq/rc_definicao.htm>. Acesso em: 23 out. 05.

COELHO, Claudia Schroeder. Publicidade enganosa e abusiva frente ao Código de Defesado Consumidor. Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 05 out. 05.

GONÇALVES, João Bosco Pastor. Princípios gerais da publicidade no Código de Proteçãoe Defesa do Consumidor. Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 05 out. 05.

GUIMARÃES, Simone de Almeida Bastos. O direito à informação e os princípios gerais dapublicidade no Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>.Acesso em: 25 out. 05.

JESUS, Paula Renata Camargo de. Propaganda de Medicamentos. Disponível em: <http://www.eca.usp.br/alaic/chile2000/10%20GT%202000Com%20e%20Salude/Paula%20Renata.doc>.Acesso em: 26 out. 05.

LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Revistados Tribunais, 2001.

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43174

175

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Ester Okamoto Della Costa e Raquel Sanchez de Lima

MACHADO, Martha de Toledo. Direito da criança e do adolescente. Disponível em: <http://www.gentevidaeconsumo.org.br/dir_crianca/martha_toledo/protecao_constitucional.htm>. Aces-so em: 23 out. 05.

MADUREIRA, Daniele. O papel social da propaganda. Disponível em: <http://www.abap.com.br/noticias/papelsocialpropaganda.htm>. Acesso em: 07 set. 05.

SANTOS, Davi Severino dos. A regulação jurídica da publicidade na sociedade de consumo.Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>, Acesso em: 25 set. 05.

SILVA Marcus Vinicius Fernandes Andrade da. Influência da publicidade na relação de con-sumo: Aspectos jurídicos. Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 25 set. 05.

TUSA, Gabriele. Aspecto da competência na responsabilidade civil do fornecedor no âmbitodo código de defesa do consumidor. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direi-to e responsabilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

VIEIRA. Tereza Rodrigues e NASCENTES. Claudiene. O idoso, a publicidade e o Direito doConsumidor. Disponível em: <www.jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 14 set. 05.

12-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43175

176

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta doParaíso/PR

O PROCESSO DE ELABORAÇÃO E A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOSPLANOS DIRETORES DE ASSAÍ/PR E DE BELA VISTA DO PARAÍSO/PR

Miguel Etinger de Araujo Junior*

RESUMO

Desde meados dos anos oitenta, com o fim da ditadura militar, o Brasil vem passando por umaimplementação e aperfeiçoamento das práticas democráticas em relação ao Poder Público. Aatividade de planejamento urbano é uma das áreas onde vem se fortalecendo esta participaçãopopular, em especial na elaboração do Plano Diretor dos Municípios. Neste particular, esta partici-pação é obrigatória, por força de dispositivo expresso do Estatuto da Cidade, em cumprimento aocomando constitucional que prevê a democracia direta e participativa como um dos fundamentosda República. Analisa-se neste artigo, como este processo ocorreu em dois Municípios do Paraná.

Palavras-chave: Democracia Participativa. Plano Diretor. Municípios. Constituição Federal.

THE PROCESS OF ELABORATION AND THE POPULAR PARTICIPATION INTHE MANAGING PLANS OF ASSAÍ/PR AND BELA VISTA DO PARAÍSO/PR

ABSTRACT

Since middle of the Eighties, in the military dictatorship ending, Brazil has being passing through animplementation and perfectioning of democratic practices relationed to the Public Power. Theurban planning activity is one of the areas where this popular participation has being fortified,specially in the elaboration of the Cities Managing Plan. In this particular one, this participation isobrigatory, to attend an express device of the City Statute, in order to attend the constitucionalcomand that foresees the direct and participatory democracy as one of the Republic bases. In thisarticle is analysed, how this process ocurred in two Cities at Paraná / Brasil.

Keywords: ParticipAtory Democracy. Managing Plan. Cities. Federal Constitution.

1 INTRODUÇÃO

A população brasileira vem apresentando um elevado grau de concentração naárea urbana, alcançado em 2000 o índice de 81,25% em uma área de 1,1% do território nacional(BRASIL, 2001). Esse panorama exige de toda a sociedade, em especial dos órgãos públicos, umplanejamento urbano que possa efetivamente apresentar políticas públicas para resolver os proble-mas decorrentes desta urbanização.

Um passo importante foi a elaboração do Estatuto da Cidade, Lei Federal nº.10.257/2001 que operacionaliza os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelecendo dire-trizes gerais da política urbana, seguindo a orientação constitucional ao prever em seu artigo 2º,inciso IV, o “planejamento do desenvolvimento das cidades” como uma das diretrizes gerais dapolítica urbana (BRASIL, 2001).

* Doutorando em Direito da Cidade pela UERJ, Professor Assistente da UEL, Advogado.

13-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43176

177

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Miguel Etinger de Araujo Junior

Trata-se, pois, de norma de ordem pública e interesse social que, segundo Ode-te Medauar (2004, p. 24) significa que “não podem ser derrogadas ou moldadas pela vontade dosparticulares, sendo imperativas, cogentes”. A questão do interesse social, continua a autora, parecesignificar “algo relevante para toda a sociedade”.

Trata-se de verdadeiro “marco regulatório”, expressão cunhada por RogérioGesta Leal (2003, p. 77) para dar a real dimensão do Estatuto da Cidade no cenário brasileiro, quetrouxe os princípios e objetivos nacionais na política de desenvolvimento urbano.

O presente estudo analisa como se deu o processo de elaboração dos PlanosDiretores nos Municípios de Assaí e de Bela Vista do Paraíso, ambos no Paraná, bem como osdispositivos das leis que prevêem o sistema de controle e fiscalização da política urbana atravésdos Conselhos Municipais.

Procura-se ainda demonstrar a importância da efetiva participação da socieda-de neste processo e sua relação com o princípio constitucional da democracia, bem como da gestãodemocrática das cidades, refletindo o que Paulo Bonavides (2003, p. 10-11) chamou de democra-cia participativa e Rogério Gesta Leal (2003, p. 65) chama de democracia substantiva.

2 PLANOS DIRETORES E ANÁLISE DOS PROCESSOS DE ELABORAÇÃO

O presente Capítulo destina-se a apresentar os processos de elaboração dosPlanos Diretores dos respectivos Municípios, focando-se no aspecto da participação popular efeti-va dos moradores, procurando identificar a capacitação destes para o debate, o interesse na parti-cipação e os resultados obtidos no texto final na lei, levando-se em consideração o reconhecimentoe consolidação do poder de decisão aos moradores, baseado na idéia de democracia participativa(ou democracia direta).

O Plano Diretor é a lei municipal, cuja elaboração está prevista na ConstituiçãoFederal de 1988, em seu artigo 182, § 1º, considerado o instrumento básico da política de desenvol-vimento e de expansão urbana.

O Plano Diretor é, portanto, uma diretriz do Poder Público e da própria socie-dade. Neste sentido afirma Alaor Caffé Alves (1981, P. 87).

Justamente por estar formalizado como modelo e como pauta, serve perfeita-mente como conduta e, portanto, como direito e base de um juízo sobre seucumprimento. O plano é uma pauta de conduta que cria diretrizes e deverespara o Governo e que dá lugar a responsabilidades políticas e jurídicas.

Tem-se verificado no Brasil uma crescente elaboração de Planos Diretores deDesenvolvimento Urbano. Dados do Ministério das Cidades informam que até novembro de 200693% dos Municípios com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes já havia elaborado seu Plano Dire-tor (BRASIL, 2007).

Segundo José Afonso da Silva (1995, p. 130) o Plano Diretor

estabelecerá as normas ordenadoras e disciplinadoras pertinentes aoplanejamento territorial. Definirá sobre a ordenação do solo, estabelecendoas regras fundamentais do uso do solo, incluindo o parcelamento, ozoneamento, o sistema de circulação, enfim sobre aqueles três elementosantes indicados: Sistema viário, Sistema de Zoneamento e Sistema de Lazere Recreação.

O Plano Diretor deverá ainda ser complementado por outros instrumentos jurí-dicos específicos como leis de zoneamento, posturas, proteção ambiental, etc. É papel do PlanoDiretor balizar as duas vias de concretização do urbanismo que, segundo José Afonso da Silva

13-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43177

178

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta doParaíso/PR

(2002, 245) são: a) as regulamentações edilícias e b) a ordenação física e social da cidade.Sob o aspecto social, Luiz Cézar de Queiroz Ribeiro e Adauto Lúcio Cardoso

afirmam (1990, p. 12):

A nossa participação na elaboração de planos diretores deve ser encaradacomo uma forma de defesa do compromisso do Poder Público em assegurarum determinado nível de bem-estar coletivo. Partindo deste ponto de vista,torna-se um desafio a busca de um novo formato de planejamento que sejacapaz de gerar intervenções governamentais que efetivamente promovam amelhoria das condições urbanas de vida, sobretudo para o conjunto dostrabalhadores.

Uma característica dos processos de elaboração destas leis é a obrigatóriaparticipação da comunidade, através consulta, audiências públicas e outras formas que dêemefetividade ao princípio constitucional da democracia direta previsto no artigo 1º, parágrafo únicoda Constituição Federal de 1988.

Essa obrigatoriedade foi reforçada pelo Estatuto da Cidade que, em seu artigo40, § 4º, incisos I, II e III, prevê diversas formas de participação e controle da sociedade, classifi-cando como ato de improbidade adminstrativa do Prefeito, impedir ou deixar de garantir os requi-sitos constantes dos dipositivos mencionados acima.

Os aspectos determinantes para a escolha dos Municípios analisados foram:1 – elaboração do Plano Diretor após o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257 de 10 de julho de2001); 2 – a possibilidade de comprovação da veracidade das informações prestadas.

Foi elaborado um questionário, que buscava identificar os aspectos menciona-dos acima, e entregue aos coordenadores ou profissionais diretamente envolvidos na elaboraçãodos planos diretores.

Deve-se ressaltar que, no Estado do Paraná, onde foram colhidas as informa-ções, em especial na região próxima ao Município de Londrina, o processo de elaboração dosPlanos Diretores foi impulsionado por dois grandes fatores que não necessariamente veio acompa-nhado da qualidade técnica esperada em assunto tão importante.

O primeiro fator, em termo nacional, foram as eleições locais para prefeitos evereadores. O segundo aspecto foi a expedição de um Decreto do Poder Executivo Estadual, denº. 2.581, publicado em 17 de abril de 2004, que vinculava a assinatura de convênios entre o Estadodo Paraná para financiamento de obras de infra-estrutura e serviços somente com Municípios quejá possuíssem Planos Diretores ou que estivessem em processo de elaboração.

2.1 Município de Assaí / Paraná

O Município de Assai (2005) está localizado no norte do Estado do Paraná,distante 386 Km da Capital do Estado, Curitiba, e a 36 Km de Londrina, principal Município daregião. Sua área é de 447.408 Km2, e no ano de 2000 possuía uma população total de 18.050habitantes, sendo 13. 521 na área urbana e 4.529 na área rural.

Vale neste aspecto observar que o Município não estava obrigado a elaborarseu Plano Diretor, nos termos do artigo 41 do Estatuto da Cidade1 . O Plano Diretor foi aprovadopela Lei municipal nº. 824, de 1º de dezembro de 2004. O processo de elaboração durou em tornode 08 (oito) meses e foi coordenado por uma organização não-governamental (2004), vencedorado processo de licitação elaborado pelo Poder Executivo Municipal.

1 Art. 41 – O plano diretor é obrigatório para cidades: I – com mais de vinte mil habitantes; II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; III – onde o Poder Público Municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal; IV – inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito

regional ou nacional.

13-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43178

179

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Miguel Etinger de Araujo Junior

As informações foram prestadas por um dos integrantes da equipe coordena-dora, Solange Nozaki Souza (2005). Durante o processo de elaboração, foram realizadas 03 (três)audiências públicas oficiais que visavam discutir os assuntos que haviam sido abordados em diver-sas outras audiências setoriais preparatórias das propostas e levantamentos. O Município disponibilizouespaços e infra-estrutura para as audiências, e a convocação da população se deu através dadistribuição de cartilhas explicativas elaboradas pelo Instituto Polis (2005) sobre o que é PlanoDiretor, divulgação em carro de som, rádio e jornal local. Essa divulgação foi considerada insufici-ente, sendo que um dos fatores que influenciaram foi o orçamento limitado para o projeto como umtodo.

O comparecimento da população aos debates não se deu da forma esperada,tendo havido uma maior participação de líderes de bairros, representantes de classes e pessoasligadas ao setor educacional, sendo que de um total de 11 (onze) vereadores no Município, nomáximo 03 (três) participaram efetivamente. Verificou-se a presença de gerentes e funcionáriosdas agências bancárias públicas (Caixa Econômica, Banco do Brasil). Além dos debates e consul-tas públicas, foi feita uma abordagem informal dos moradores acerca de suas opiniões.

Vale observar que a Prefeitura Municipal enviou convites oficiais para todos oslíderes da sociedade, como líderes religiosos, políticos, representantes de classe, etc. Essa técnicanão se mostrou eficaz, em algumas situações, devido à falta de experiência e até timidez de algunselementos em expressar suas idéias em público.

Alguns temas específicos foram abordados, tais como:1. potencial turístico étnico-cultural (colonização japonesa) como atividade eco-

nômica;2. sugestões quanto à “terceirização” ou parceria no transporte de escolares,

na coleta do lixo urbano e do hospital municipal;3. meio ambiente: quanto ao lançamento de esgoto in natura nos córregos e

nas galerias de água pluvial.Quanto ao interesse dos participantes no encontro, pode-se dizer que alguns lá

estavam por questão ideológica e outros apenas como obrigação de representação. Vale observarque o caráter deliberativo das audiências só ocorreu na última audiência, após as fases anteriores,de caráter consultivo.

Algumas diretrizes e propostas já estão sendo implementadas ou em vias deimplementação como a reativação do eixo turístico gastronômico cultural, a “terceirização” dotransporte escolar, dentre outros. Deve-se registrar, no entanto, a falta de experiência da popula-ção no processo de elaboração de políticas públicas, passando a conviver com uma nova modalida-de de administração, como a gestão democrática, orçamento participativo, etc.

Além desse aspecto, mencionado na entrevista, outros se apresentam em rela-ção ao texto final da Lei nº. 824/2004, (2004) que constitui o PDDMA – Plano Diretor de Desen-volvimento Municipal de Assaí. Um dos mais relevantes, dentro do propósito do presente trabalho,é o relativo à criação do SIP – Sistema Integrado de Planejamento, encarregado de gerenciar osobjetivos do Plano Diretor.

O SIP é composto por diversos órgãos, dentre os quais o CDM – Conselho deDesenvolvimento Municipal – com atribuições deliberativas em relação aos planos, programas eprojetos de desenvolvimento territorial. Oportuna é a transcrição de sua composição, disposto noartigo 220 da lei municipal nº. 824/2004:

Art. 220 – O CDM compõe-se de 12 (doze) membros titulares e seus respetivossuplentes, eleitos ou indicados pelos respectivos órgãos ou categorias, ehomologadas pelo Prefeito Municipal, com renovação quadrienal e obede-cendo a seguinte composição:

I – 05 (cinco) representantes de entidades governamentais vinculadas àsquestões de desenvolvimento territorial, assim distribuídas:

01 (um) representante do nível estadual;

13-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43179

180

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta doParaíso/PR

04 (quatro) representantes do nível municipal.

II – 07 (sete) representantes de entidades não-governamentais, definidaspor ocasião das conferências municipais de avaliação do PDDMA e assimdistribuídos:

01 (um) representante das entidades representativas dos trabalhadores;

01 (um) representante das entidades representativas da sociedade civil (clu-be de serviço e associações comunitárias);

01 (um) representante dos conselhos municipais;

01 (um) representante das associações profissionais, sendo um, preferenci-almente, das entidades de classe vinculadas ao planejamento urbano;

01 (um) representante das entidades empresariais e sindicatos patronaispreferencialmente vinculado à construção civil;

01 (um) representante das entidades educacionais;

01 (um) representante das entidades ambientais.

Esse dispositivo, aliado a outros constantes da lei que prevêem e condicionam agestão pública à efetiva participação popular, consubstancia a observância das diretrizes, princípiose objetivos da idéia de gestão democrática, constante da Constituição Federal de 1988 e do Estatu-to da Cidade.

2.2 Município de Bela Vista do Paraíso / Paraná

O Município de Bela Vista do Paraíso está localizado no norte do Estado doParaná, distante 429 Km da Capital do Estado, Curitiba, e a 37 Km de Londrina, principal Municí-pio da região. Sua população em 2000 era de 15.029 habitantes, sendo 13.858 na área urbana e1.171 na área rural, distribuídos em uma área de 214.342 Km2 (BELA VISTA DO PARAISO,2005).

O Município está inserido na Região Metropolitana de Londrina, por força daLei Complementar Estadual nº 86 de 07 de julho de 2000 (PARANÁ, 2000), estando, portanto,obrigada a elaborar seu Plano Diretor, por força do artigo 41, II do Estatuto da Cidade. Valeobservar que, a despeito da lei estadual, só recentemente, em 2006 foram criados cargos de dire-ção da Região Metropolitana de Londrina.

A elaboração do projeto de lei final, enviado à Câmara dos Vereadores, duroucerca de onze meses e foi coordenada pela empresa Genius Loci Arquitetura e Planejamento SSLtda, vencedora do processo de licitação, cujo integrante, Nestor Razente (2005), prestou as infor-mações que subsidiam o presente trabalho.

A exemplo da maioria dos Municípios do Estado do Paraná, a elaboração doPlano Diretor de Bela Vista do Paraíso foi financiada por recursos do Governo do Estado, atravésdo Paranacidade, autarquia estadual criada para o desenvolvimento urbano no Paraná.

Neste contexto, foi criada uma Comissão Técnica, formada por funcionáriosmunicipais e uma Comissão de Acompanhamento e da Elaboração do Plano Diretor. Essa comis-são foi organizada entre os presentes na primeira audiência pública realizada em 18 de outubro de2004 e escolhidos dentre os membros da comunidade local. Foram realizadas três audiências públi-cas durante o processo de elaboração do Plano Diretor.

Em relação à participação popular, vale observar que além dessas três audiên-cias públicas, de caráter geral, foram realizadas reuniões temáticas com segmentos da sociedade,como assistência social e saúde, por exemplo.Tanto as audiências públicas como as reuniões tive-ram caráter deliberativo. Além disso, no projeto de lei, foi criado o Conselho do Plano Diretor deDesenvolvimento Municipal, encarregado de fiscalizar a efetiva implementação do Plano Diretor eservir como fórum de discussão de futuras alterações.

13-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43180

181

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Miguel Etinger de Araujo Junior

A convocação da sociedade para o debate foi promovida pelo Gabinete doPrefeito, através de convocação por jornais e convites dirigidos às representações de classes,sindicatos, representantes de comunidades de bairro, ONGs e outros. Para um Município comaproximadamente quinze mil habitantes, o comparecimento da população foi considerado satisfatório.A falta de experiência da população no processo de elaboração de políticas públicas, assim comoem Assaí também foi um fator também observado neste Município.

Quanto ao Plano Diretor, em especial em relação à participação popular, algunsdispositivos merecem especial atenção. Num primeiro momento, vale observar que o Plano Diretornão se constitui de um único corpo de lei. Há diversos estudos que fundamentam o texto de lei, eesta lei inclusive faz menção expressa de que o Plano Diretor de Bela Vista do Paraíso constitui-seem “avaliação temática integrada”, “condicionantes, deficiência e potencialidades”, “diretrizes eproposições para a política de desenvolvimento municipal”, “plano de ação municipal e projetosprioritários” e diversos textos de lei, a saber, como do Sistema Viário, Uso e Ocupação do SoloUrbano, dentre outras.

Em relação ao Conselho do Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal, valetranscrever os artigos que se seguem.

Art. 27. Fica criado o Conselho do Plano Diretor de Desenvolvimento Muni-cipal, de caráter consultivo e deliberativo, naquilo que a lei indicar, com asseguintes atribuições:

Examinar, emitir pareceres, sugerir propostas relacionadas a planos, projetose programas setoriais desenvolvidos pelo poder Executivo Municipal.

Examinar, emitir pareceres, sugerir propostas relacionadas a legislação urba-nística e do Plano Diretor Municipal de Bela Vista do Paraíso.

Opinar e sugerir propostas relativas aos Planos Plurianuais de Investimen-tos e Lei de Diretrizes Orçamentárias.

Analisar e emitir pareceres sobre Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV).

Atuar como auxiliar do poder Executivo e Legislativo Municipal na fiscaliza-ção da implementação do Plano Diretor Municipal de Bela Vista do Paraíso elegislação decorrente.

Elaborar seu Regimento Interno.

Art. 28. Os integrantes, titulares e suplentes, do Conselho do Plano Diretorde Desenvolvimento Municipal serão indicados por suas respectivas enti-dades e nomeados por Decreto do Executivo Municipal. Será presidido peloAssessor Municipal de Planejamento e constituído pelos seguintes repre-sentantes:

Assessoria de Planejamento do poder Executivo municipal.

Poder Legislativo Municipal.

De cada Conselho Municipal existente no Município.

Associação Comercial e Industrial do Município.

Associação de Moradores.

Comissão Municipal de Defesa Civil – CMDEC.

Loja Maçônica Visconde de Taunay.

Rotary Clube de Bela Vista do Paraíso.

Do órgão de planejamento da Região Metropolitana de Londrina, quandohouver.

Concessionária de saneamento básico.

13-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43181

182

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta doParaíso/PR

Companhia Paranaense de Energia Elétrica.

Empresa Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural – EMATER.

Ordem dos Advogados do Brasil.

Sindicato Patronal Rural.

Sindicato dos Trabalhadores Rurais.

Art. 31. São princípios gerais que norteiam a Política de DesenvolvimentoMunicipal:

[...]

III - Assegurar a participação do cidadão na gestão do desenvolvimento.

Art. 32. A Política de Desenvolvimento Municipal será composta pelas se-guintes vertentes.

[...]

V - Gestão democrática e desenvolvimento institucional

Seguindo a estrutura do Estatuto da Cidade, constitui-se como objetivo geral doPlano Diretor Municipal de Bela Vista do Paraíso a gestão democrática da cidade, assegurando aparticipação comunitária, conforme estabelece seu artigo 3º, inciso II.

Por fim, atentando para o fato da precariedade dos órgãos internos da Adminis-tração Pública Municipal, o projeto prevê uma reformulação do modelo existente, com o intuito detrazer efetividade à participação popular no processo de gestão do desenvolvimento municipal.

3 CONCLUSÃO

O que se pretendeu abordar neste trabalho é o modo de elaboração dos PlanoDiretores, ainda que de forma superficial, em especial quanto à participação da sociedade, bemcomo salientar que a criação de Conselhos Municipais para a questão urbana, além de ser umademanda por parte da própria sociedade, é uma exigência do Estatuto da Cidade, pela interpreta-ção do artigo 42, II, que prevê um sistema integrado de acompanhamento e controle do PlanoDiretor, do artigo 43, I, que dispõe sobre a obrigatoriedade de órgão colegiados de política urbana,nacional, estadual e municipal, e do artigo 2º, II que estabelece como diretriz da política urbana agestão democrática da cidade.

Deve-se observar, ademais, que o artigo 1º, parágrafo único da ConstituiçãoFederal de 1988 estabeleceu o princípio da democracia direta, onde “todo o poder emana do povo,que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos temos desta Constituição”.

Sob outro aspecto, as leis criadoras destes conselhos municipais são verdadeiraconquista da sociedade, e qualquer tentativa de eliminar ou diminuir esta conquista se configuraafronta ao princípio constitucional que veda o retrocesso das garantias fundamentais.

Sobre o tema, J. J. Gomes Canotilho (1998, 327) leciona:

O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: onúcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através demedidas legislativas (‘lei de segurança social’, ‘lei do subsídio de desempre-go’, ‘lei do serviço de saúde’) deve considerar-se constitucionalmente ga-rantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem acriação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam naprática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples dessenúcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.

13-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43182

183

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Miguel Etinger de Araujo Junior

Do ponto de vista prático, esta conquista não pode se transformar em meraformalidade, valendo neste particular o alerta de Maria Paula Dallari Bucci sobre os problemas queocorrem no Brasil quanto à falta de infra-estrutura para o conselhos, acrescentando ainda:

Isso sem falar em problemas de índole mais política, entre eles o chamado“elitismo popular”, em que se verifica uma certa especialização dos repre-sentantes da função, restando pouco espaço para o cidadão não engajadoem qualquer ONG, ou ainda, a superposição de representações, como indi-cou uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Administração Municipal(IBAM), que apontava os secretários de saúde e as primeiras-damas dosMunicípios como integrantes de quase todos os conselhos das pequenascidades, independentemente da área temático.

REFERÊNCIAS

ALVES, Alaor Caffé. Planejamento metropolitano e autonomia municipal no direito brasi-leiro. São Paulo: Bushatsky, 1981.

ASSAÍ/PR. Lei nº 824 de 01 dez 2004. Dados disponíveis em: <www.paranacidade.org.br>.Acesso em: 30 out. 2005.

BELA VISTA DO PARAISO/PR. Dados disponíveis em:<www.paranacidade.org.br>. Acessoem: 03 dezembro 2005.

.ECOPOLIS. Plano diretor de desenvolvimento municipal de Assaí 2004. Londrina, 2005. 1CD-ROM.

BONAVIDES, Paulo. “Teoria constitucional da democracia participativa”. São Paulo:Malheiros, 2003.

BRASIL. IBGE. Mapa de distribuição da população 2000. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/geografia/mapas_doc1.shtm>. Acesso em: 17 set 2007.

______. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. “Diário Oficial da República Federativa doBrasil”. Poder Executivo, Brasília, DF, 11 jul. 2001.

______. Ministério das Cidades. Disponível em: <http://cidades.gov.br>. Acesso em: 05 set 2007.

BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão democrática da cidade. In: DALLARI, Adilson Abreu;FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade: comentários à lei federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros,2003.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra:Almedina, 1998.

INSTITUTO POLIS. Disponível em: <www.polis.org.br>. Acesso em 30 de out. 2005.

LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico: condições e possibilidades da constituição do espaçourbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

MEDAUAR, Odete. ALMEIDA, Fernando Dias Menezes (Coord.). Estatuto da Cidade: lei10.257, de 10.07.2001: comentários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004

13-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43183

184

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

O Processo de Elaboração e a Participação Popular nos Planos Diretores de Assaí/PR e de Bela VIsta doParaíso/PR

MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002.

PARANÁ. Lei Complementar nº. 86 de 07 de julho de 2000.

RAZENTE, Nestor. Questionário sobre planos diretores. [mensagem pessoal]. Mensagemrecebida por <[email protected]> 25 set 2005.

RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz, CARDOSO, Adauto Lucio. Plano diretor e gestão democráticada cidade. Revista de Administração Municipal - IBAM, Rio de Janeiro, v. 37, n. 196, p. 8-20,jul./set. 1990, p. 12.

SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1995.

SOUZA, Solange Nozaki. Questionário sobre planos diretores. [mensagem pessoal]. Mensa-gem recebida por <[email protected]> 20 set 2005.

13-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43184

Resenha

14-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43185

187

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Luciana MendesPereira Roberto

RESENHA

DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. 2. ed. SãoPaulo: Saraiva, 1996. p. 89 a 173 (Arts. 4º e 5º).

Luciana Mendes Pereira Roberto*

A Professora Doutora Maria Helena Diniz é Titular de Direito Civil da PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo, Professora de Direito Civil Comparado, de Filosofia do Direi-to e de Teoria Geral do Direito nos cursos de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universida-de Católica de São Paulo, Coordenadora da sub-área de Direito Civil Comparado dos Cursos dePós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Diante de breveexposição do currículo da autora, resta clara a sua experiência e sabedoria no que pertine ao temada Lei de Introdução ao Código Civil - Decreto-Lei nº 4657 de 04 de setembro de 1942, a qualbrilhantemente discorre nesta obra.

Ao interpretar o Art. 4º1 da referida lei, trata da integração e o problema daslacunas no Direito, referindo o fato de quando o magistrado não encontra norma aplicável a umcaso concreto, não sendo possível subsumir o fato a nenhum preceito, esta-se diante do problemadas lacunas, que pode ocorrer pela falta de conhecimento sobre um status jurídico de certo com-portamento, um defeito do sistema, uma ausência de norma ou uma disposição legal injusta ou emdesuso. Para tanto deverá haver um desenvolvimento aberto, uma consciência da modificação queas normas experimentam para a aplicação do Direito. Essa integração, de acordo com os limitesestabelecidos pelo Direito, de criar uma norma individual, em consonância com o ordenamento, éque suprirá a lacuna, atendo-se aos subconjuntos valorativo, fático e normativo que compõem osistema jurídico.

Em seguida aborda a localização sistemática do problema das lacunas jurídi-cas, o levantamento das questões relativas à lacuna dentro da ordenação jurídica e das questõesdesencadeadas paralelamente a ela. Há o problema das lacunas com a própria concepção doDireito (se o direito constitui ou não uma ordem limitada), tendo em vista o prescrito no Art. 4º daLei de Introdução ao Código Civil, e o problema lógico da completude ou da incompletude dosistema. Admitindo as lacunas, há os problemas de sua constatação, de seu preenchimento, dalegitimidade de seu uso; e, assim, distingue três questões básicas para tanto: da existência, constataçãoe preenchimento das lacunas.

O tema discute a questão da existência das lacunas, o qual sub-divide emquatro partes. Inicia com considerações gerais sobre a existência das lacunas, ou seja, traça per-guntas sobre a completude do sistema, sobre o dinamismo ou estática do sistema jurídico, entreoutras, mostrando que deve haver a discussão do Direito como um ordenamento. Assim, o proble-ma da existência de lacunas vai depender da concepção que se tem do ordenamento jurídico, ousob um prisma pragmático (preenchimento), e que ambos constituirão as bases das investigaçõessobre o problema das lacunas. A seguir trata da lacuna como problema inerente ao sistema jurídico,ou seja, depende de consciência da mobilidade e temporalidade do sistema. Para tanto há duascorrente antitéticas: uma que afirma a inexistência da lacuna (plenitude hermética do Direito -Kelsen) e outra que sustenta sua existência (concepção de sistema aberto e incompleto).

* A resenhista é Advogada. Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em DireitoEmpresarial e em Bioética pela Universidade Estadual de Londrina. Docente na Universidade Estadual de Londrina e noCentro Universitário Filadélfia - UNIFIL.

1 Lei de Introdução ao Código Civil: Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, oscostumes e os princípios gerais de direito.

14-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43187

188

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Resenha: DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada

Há lacuna nos casos em que o direito objetivo não oferece uma solução depronto para o caso concreto, uma determinada circunstância não encontra satisfação na ordemjurídica. A autora defende a corrente da existência das lacunas, entendendo que o Direito é umarealidade dinâmica, dentro de um contexto de atualização com as mudanças da vida das pessoasem sociedade, que traz novas situações, como alterações nos fatos, nos valores e nas normas,considerando que o Direito não é estático, está sob constante progresso.

É apresentado, de forma gráfica, o que traz bastante clareza ao leitor, que osistema normativo é aberto e está relacionado com os sistemas fático e de valores (axiológico).Assim, quando o juiz aplica o Direito ao caso concreto não se baseia somente no sistema normativo,mas também no fático e no axiológico, não sendo relevante apenas se determinada conduta éproibida ou permitida no sistema normativo, mas sim se há possibilidade de solução pelos outrossistemas. Presente a lacuna, o juiz transita pelos “subsistemas”, até supri-la, e dessa forma alacuna fica com caráter sempre provisório, pois o Direito tem uma temporalidade própria. Ficaexpresso o entendimento, pela autora, que o Direito é lacunoso, sob uma análise dinâmica.

Há o apontamento de três espécies de lacunas: a normativa (ausência de nor-ma); ontológica (a norma não corresponde aos fatos sociais) e axiológica (há ausência de normajusta). Apresenta, ainda, a lacuna como problema de jurisdição, considerando-a uma questão pro-cessual, pois é este que, na aplicação das normas, levanta o problema da lacuna. Refere-se aKelsen que a princípio afasta a idéia da existência de lacunas, mas acaba por admiti-la como meraficção, estabelecendo limites ideológicos à atividade judicial, ou seja, reconhece a incompletude dosistema.

A colmatação de lacunas, em um determinado processo judicial, soluciona umproblema individualmente e não tem a finalidade de eliminar conflitos. Dessa forma, o Direito serásempre lacunoso e, ao mesmo tempo, sem lacunas. Isso implica em dizer que a lacuna faz um fatoindecidível, e cabe ao Judiciário torná-lo decidível.

Trata, assim, da aporia das lacunas (raciocínios coerentes, conclusões contrári-as): “[...] o Direito é sempre lacunoso, mas é também, ao mesmo tempo, sem lacunas”, de formaque o sistema jurídico não é completo, mas completável, exercendo as lacunas dupla função, orafixando os limites para as decisões dos magistrados, ora justificando a atividade do Legislativo.

O fato de que o termo lacuna, trata-se de uma aporia é porque alberga idéiasconflitantes, “uma questão sem saída a que não há resposta unânime”. No entender da autora,todas as doutrinas pertinentes aos temas, na realidade se compartilham, partindo de parâmetrosdiferentes.

Na següência, escreve sobre a constatação e preenchimento das lacunas, mos-trando que o primeiro passo é a identificação (constatação) da lacuna, a partir da admissão de suaexistência. Para tanto se faz necessária a análise de duas situações: o ordenamento jurídico e aexistência de fato da lacuna (ausência de norma tida como lacuna), resultante de um juízo deapreciação e de integração. A constatação e o preenchimento das lacunas são aspectos correlatos,mas independentes e indicados pela própria lei (Art. 4º Lei de Introdução do Código Civil).

Quanto aos meios supletivos das lacunas, mostra que são eles:A analogia, consistente na aplicação de uma norma prevista para uma situação

distinta, a um caso que não seja contemplado por norma jurídica, a este semelhante. Envolve duasfases: a constatação e um juízo de valor das lacunas, levando à decisão do magistrado, que atende-rá aos fins sociais e às exigências do bem comum. É um processo revelador de normas implícitas,com fundamento na igualdade jurídica, em “razões relevantes de similitude” e na teleologia. Se ocaso sub judice não estiver previsto em norma jurídica, se houver uma semelhança com outroprevisto, que esse elemento de identidade entre eles for fundamental, será o caso da aplicação daanalogia. Esta pode ser distinta em analogia legis (aplicação de uma norma existente) e a analo-gia juris (conjunto de normas, do qual se extrai elementos de aplicabilidade no caso concreto nãocontemplado e similar). Na realidade toda analogia é juris, devido ao fato de que toda aplicaçãoprescinde do sistema jurídico que o envolve. Cita também os argumentos analógicos: argumentuma simili ad simile (razão), argumentum a fortiori (as notas convenham ao segundo caso em graudistinto do primeiro; podem ser a maiori ad minus e a minori ad maius), e argumentum acontrario (instrumento integrador do sistema, uma “redução teleológica”).

14-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43188

189

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Luciana MendesPereira Roberto

O costume, está em plano secundário, e é também uma fonte jurídica decorren-te do uso pelo interessado, pelos tribunais e doutrinadores, formada por dois elementos necessários:o uso e a convicção jurídica, sendo que de acordo com o Art. 4º da LICC, deve ser aplicado“conforme usos e costumes” e em “respeito aos bons costumes”, respeitando sua continuidade,sua uniformidade, sua diuturnidade, sua moralidade e sua obrigatoriedade, levando em conta os finssociais, as exigências do bem comum, os ideais de justiça e de utilidade comum. Existem em trêsespécies: o secundum legem (previsto na lei), o praeter legem (supre a lei em caso de omissão) eo contra legem (em sentido contrário à lei: norma de costume oposta à lei ou o não-uso formal dalei, respectivamente consuetudo abrogatoria e desuetudo). É útil não apenas para o caso dalacuna normativa, mas também para a lacuna axiológica (injustiça ou inconveniência da aplicaçãoda lei vigente) e para a lacuna ontológica (incompatibilidade entre fatos e normas). Assim, nota-seque a aplicação dos costumes, para a integração do sistema normativo, exige sensibilidade e atua-lidade social por parte do aplicador.

Os princípios gerais de direito, estão contidos de forma imanente no ordenamentojurídico e são úteis quando da falha da analogia e do costume no preenchimento da lacuna. Eles nãotêm existência própria, sendo vitalizados pelo juiz, ao descobri-los. Devem conter uma respostasegura para o caso duvidoso e não podem apresentar oposição ao disposto no ordenamento. Devi-do à imprecisão de seu caráter, os princípios gerais de direito possuem diversas concepções pelasescolas jurídicas. Há doutrinadores que simplesmente combatem a concepção de princípios geraisde direito; há a escola que os identifica com as normas de direito natural; há a que os entende comonormas baseadas na eqüidade, a própria eqüidade (a autora é contrária a esse entendimento, poisconsidera a eqüidade meio diverso de preenchimento de lacunas); há a que os considera comotendo caráter universal, ditados pela ciência e pela Filosofia do Direito; há a que os caracterizacomo princípios historicamente contingentes e variáveis e norteadores extraídos das diversas nor-mas do ordenamento jurídico; há, ainda, uma posição eclética, que busca conciliar todas as demaisposições. Porém, existe um elemento comum a todas as doutrinas, que é a justiça.

Maria Helena Diniz ensina a multiplicidade da natureza dos princípios gerais dedireito, que podem ser decorrentes das normas do ordenamento jurídico, derivados das idéias polí-ticas e sociais vigentes e reconhecidos pelas nações civilizadas com historicidade comum. Issosignifica que recaem sobre os sistemas normativo, fático e valorativo, preenchendo as lacunas.Ocorre que muitos dos princípios gerais do direito encontram-se prescritos em normas e, mesmonão estando positivadas, guiam o magistrado pelo senso de justiça, pelo valor genérico que inte-gram o sistema jurídico. O magistrado deve procurar, ao aplicá-los, primeiramente buscar os prin-cípios fundamentais do ordenamento positivado do caso sub judice, atingir os princípios que infor-mam o diploma onde se insere a instituição, procurar os princípios de direito consuetudinário, recor-rer ao direito internacional e invocar os elementos de justiça.

A eqüidade, conforme se posicionou a autora, trata-se de meio diverso de pre-enchimento de lacunas, devendo ser utilizada nos casos em que o juiz, constatando semelhançaentre fatos diversos, faz um juízo de valor, e assim não consegue usar a analogia, o costume e osprincípios gerais de direito Há três acepções que ligam a eqüidade (Alípio Silveira): a latíssima(suprema regra de justiça), a lata (idéia absoluta de justiça) e estrita (a justiça no caso concreto).Pode ser dividida em (Agostinho Alvim): legal (contido no texto da norma) e judicial (o legisladorpermite o seu uso no caso concreto), sendo que o pressuposto de qualquer das duas é a flexibilida-de da lei. Apresenta, ainda, os requisitos da eqüidade (Limongi França): decorrência do sistema edo direito natural; inexistência de texto claro e inflexível sobre a matéria; omissão, defeito ougeneralidade acentuada da lei; apelo para as formas complementares de expressão do direito antesda livre citação da norma eqüitativa; elaboração científica em harmonia com o sistema e com osprincípios o objeto da decisão. O legislador, ao elaborar uma lei, deve ter em conta todos os fatoreseconômicos e morais, as atualizações da vida em sociedade, as tendências, a vontade, a consciên-cia do povo. Assim, a eqüidade exerce influência da elaboração legislativa, além de desempe-nhar importante papel na interpretação das normas, destacando a finalidade da lei sobre a sualetra e a preferência da mais favorável e humana interpretação. Exercendo, assim, a adaptação danorma ao caso concreto, ao caso sub judice, suplementando a lei, integrando o sistema jurídico.Nessa função integrativa que exerce, a eqüidade preenche as lacunas voluntárias (pelo próprio

14-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43189

190

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Resenha: DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada

legislador), além dos casos que fogem à previsão do elaborador da norma. Nesse contexto, é aeqüidade o poder conferido ao magistrado para revelar o direito latente, um poder discricionário,mas de forma alguma arbitrário, que se utiliza no preenchimento das lacunas, relacionando ossistemas normativo, fático e valorativo.

Na seqüência, registra-se a interpretação do Art. 5º2 da referida Lei de Intro-dução ao Código Civil, expondo a princípio a utilidade prática do citado artigo.

A autora ensina que a ciência do Direito surge como uma teoria hermenêuticapor ter a tarefa de interpretar normas, verificar a existência da lacuna jurídica e afastar contradi-ções normativas; é a teoria da decisão. Para tanto, deverá estabelecer a sistematização de normas,daí a sua função de organização, com a finalidade de decisão, ou seja, da busca de condições depossibilidade de resolução de conflitos. A ciência do Direito não se separa da técnica, o conheci-mento e domínio de meios para atingir certo objetivo, sendo instrumento de viabilização do Direito.A dogmática jurídica tem uma função social, no dever de limitar as possibilidades de variação naaplicação do Direito e de controlar a consciência das decisões, com base em outras decisões.

É apresentada uma interessante construção silogística (Engisch): norma geral(premissa maior); caso conflitivo (premissa menor) e conclusão (decisão), referindo-se à subsunçãoda norma ao caso concreto, em que a grande dificuldade é encontrar a premissa maior, conduzindoa dois problemas para a efetiva decisão jurídica: a qualificação jurídica e as regras decisórias.Quanto à qualificação jurídica, a dificuldade está no emprego de linguagem natural ou comum efalta de informação sobre os fatos do caso, remediada pelas presunções legais. Diante de taisapontamentos, entende-se que o jurista fará uma consideração dinâmica do Direito (sistemasnormativo, fático e valorativo), para fornecer os caminhos da decisão, aplicando a norma ao casoconcreto, e atendendo à finalidade social e ao bem comum.

Em continuidade, analisa-se o conceito, funções e caráter necessário da inter-pretação. Tanto a lei clara como a obscura devem ser interpretadas; porém à obscura deverá sersomada certa dose de atividade intelectual, pois tal norma contém palavras fora de seu significado,apresenta imprecisões, fórmulas falhas, pensamento incompleto ou confuso, ou, ainda, ambigüida-de, que pode aparecer na letra da lei ou no seu pensamento ou conteúdo.

Interpretar é, então, descobrir o sentido e o alcance da norma, buscando osignificado dos conceitos jurídicos, que se adaptam a mudanças com a evolução e o progresso dasociedade, extraindo da norma o sentido apropriado que leve a uma decisão. As funções da inter-pretação são conferir a aplicabilidade da norma às relações sociais, estender o sentido da norma arelações novas, temperar o alcance do preceito normativo.

A hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar, a ela deve ser soma-da a intersubjetividade, ou seja, o intérprete deve levar em conta os fatores valorativos e sociaiscontidos na norma, baseado no momento histórico em que está vivendo, garantindo, ainda, seus finssociais. A interpretação pode ser considerada não-autêntica (Kelsen: determinar o quadro dassignificações possíveis da norma geral) e autêntica (cria direito para o caso concreto).

O texto destaca a liberdade do Judiciário, que não ficará dependente de deci-sões anteriores, pois o magistrado é o intérprete necessário e permanente da lei, com a obrigaçãoapenas de fundamentar suas decisões, podendo interpretar diversamente em casos concretos se-melhantes. Interpretar é estabelecer uma norma individual, assim a interpretação é um ato normativo.E em seguida passa a tratar, então, a questão da vontade da lei ou do legislador como critériohermenêutico, em duas teorias: a subjetiva (vontade do legislador) e a objetiva (vontade da lei,concentrada em quatro argumentos: a vontade, a forma, a confiança e a integração). Ambas sãocriticadas, a primeira por favorecer ao autoritarismo e a segunda por favorecer ao anarquismo. Osdogmas (caráter objetivo) e a liberdade (caráter subjetivo) levam ao caráter deontológico e normativoda interpretação, em que um ato de vontade se efetiva por razões axiológicas e cria uma normaindividual (decidibilidade), com um mínimo de perturbação social.

Com referências às técnicas interpretativas, estas podem ser: gramatical, lógi-ca, sistemática, interpretativa histórica, sociológica ou teleológica. Tais processos interpretativos secompletam, são operações distintas que devem atuar conjuntamente na descoberta do sentido ealcance da norma.2 Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

14-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43190

191

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Luciana MendesPereira Roberto

Destaca, a seguir, a técnica interpretativa teleológica e integração da lacunaontológica e axiológica, mostrando que o Art. 5º da LICC indica o critério do fim social e o do bemcomum, para a adaptação da lei às novas exigências sociais e aos valores positivos, mostrando quea finalidade da norma não é ser dura, mas justa e de acordo com as necessidades fático-sociaisvigorantes na sociedade no momento de aplicação jurídica.

Quanto ao fim social, ensina a autora que não há lei que não contenha umafinalidade social imediata, e é aí que está presente a necessidade de sua correta aplicação a umdado caso, pois o aplicador deverá ter por escopo a felicidade da sociedade política, a busca do fimsocial.

O bem comum, por sua vez, é a liberdade, a paz, a justiça, a segurança, autilidade social, a solidariedade, almejados pela sociedade, ficando acima dos interesses particula-res dos indivíduos. Assim, são justas as leis que têm por finalidade o bem comum, que atendam aointeresse social; e, no caso da solução de conflitos duvidosos, o intérprete deverá seguir o caminhoque mais se aproxime da utilidade comum dos cidadãos, da coletividade em geral. O bem comumé a preservação dos valores positivos vigentes na sociedade, que dão sustento a determinadaordem jurídica.

Ao tratar dos efeitos do ato interpretativo, o texto esclarece que, tanto na inter-pretação extensiva quanto na restritiva, deve ser considerado o fim e os valores da criação e daaplicação da norma. O hermeneuta deverá observar o espírito do texto normativo, a eqüidade, ointeresse geral, o paralelo entre a norma interpretanda e outras, e ao tipo da disposição normativainterpretanda, e assim chegará a uma interpretação declarativa com a correspondência entre aexpressão lingüístico-legal e a vontade da lei.

O papel da ideologia, na aplicação jurídica, é neutralizador do valor, pois é ouniverso dos valores possíveis de uma pessoa, um grupo, uma cultura. A decisão a ser proferidadeverá obedecer às exigências legais, atendendo aos fins sociais e valorativos do direito. Haveráideologia quando se neutraliza uma escolha no estabelecimento de objetivos (fim social, bemcomum).

Finalizando a análise do Art. 5º da LICC, trata da discricionariedade judicial,devido ao fato de que cabe ao Judiciário, no caso de lacunas, adequar o Direito em relação àrealidade, fática, social e normativa, selecionado a melhor solução que a lei comporte, buscando ajustiça.

Diante de todo o aduzido, conclui-se que a função jurisdicional, seja de subsunção,seja de integração, é ativa, tendo em vista as mudanças sociais e a atividade intelectiva do juiz aoaplicar a norma individual, nos limites de sua jurisdição, conforme a lei e o Art. 4º e o Art. 5º da Leide Introdução do Código Civil, que trazem contribuições valiosas para a referida aplicação noBrasil.

14-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43191

192

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Resenha da obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman

RESENHA

Resenha da obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman. Editora Martins Fontes. São Paulo,1996.

Osmar Vieira da Silva*

Das lições de Perelman, é possível extrair-se o entendimento de que o senti-mento de injustiça nasce no homem a partir do desconforto que experimenta em face de algumafalta ou privação cuja causa é a ação de um outro homem. Inviável, por outro lado, pensar-se ojusto sem que o agir do homem seja referido ao agir de outro homem.

A sensação de injustiça se dá ao experimentar a carência de algo de que senecessita e de que se foi privado. As regras da justiça assentam nessa premissa e por isso mesmoprecisam, forçosamente, ser referidas aos “sistemas de necessidades”. Somente quando se põepara o homem o desafio de responder à indagação de como agir quando há um conflito de interes-ses é que adquire relevo o problema da Justiça.

A definição de quem perde e quem ganha e em que extensão isso se dá, quemse priva e quem será satisfeito, quem desfrutará de uma situação de vantagem e quem sofrerá asconseqüências da desvantagem correspectiva é problema de justiça. Neste crucial momento daconvivência humana é que o problema se apresenta e para solucioná-lo buscam-se respostas denatureza ética. Neste espaço também opera o Direito.

Refletindo sobre a Justiça, Perelman acentua que de todas as noções prestigi-osas, a de justiça parece uma das mais eminentes e a mais irremediavelmente confusa, pela fortecarga emocional que sempre carrega consigo. Buscando escapar a essa contingência, ou reduzi-laao máximo, o autor começa por analisar as concepções mais correntes de justiça, demonstra comosão inconciliáveis e carecedoras de operacionalidade e alinha as seguintes:

a) a cada qual a mesma coisa;

b) a cada qual segundo os seus méritos;

c) a cada qual segundo suas obras;

d) a cada qual segundo suas necessidades;

e) a cada qual segundo sua posição e

f) a cada qual segundo o que a lei lhe atribui.

Para Perelman, se dermos a todos a mesma coisa, seremos injustos para osque têm como correto, precisamente, um tratamento diferenciado, como se depreende de todas assubseqüentes posições, sem esquecer que a mesma coisa não proporcionaria a todos os homens amesma satisfação.

Se elegermos, por exemplo, o mérito de cada um como fundamento, por quemodo definir este mérito e que critérios devem ser levados em conta para sua determinação?

Adotando-se a regra de atribuir a cada qual o que for devido segundo suasobras, além da dificuldade de se definir a escala de valor capaz de medir estas obras, as maisdiversificadas que seriam, ainda se estaria diante de um critério que não é moral, pois deixa delevar em conta a intenção e os sacrifícios realizados, considerando unicamente o resultado daação.

* Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Coordenador do Curso de Direito daUniFil e Advogado.

15-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43192

193

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Osmar Vieira da Silva

Optar pela regra de dar a cada qual segundo suas necessidades coloca ohomem diante do óbice de termos que definir essas necessidades, para o que seria forçado a adotarcritérios meramente formais, porquanto as divergências a respeito ocasionariam inúmeras varian-tes da mesma fórmula.

Impensável admitir-se como regra de justiça dar a cada qual segundo sua po-sição, fórmula aristocrática, privilegiadora e necessariamente desigualizadora. A última regra, dara cada um o que a lei lhe atribui resultaria, necessariamente, em transferir, de modo absoluto, opoder de definir o justo para quem é investido do poder de ditar a lei.

Diante disso, três atitudes são possíveis, diz Perelman. A primeira consistiriaem declarar que essas diversas concepções de justiça não têm absolutamente nada em comum enão estão unidas por nenhum vínculo conceitual, donde o dilema de ter que rejeitar todas, em nomeda justiça, ou ter que eleger uma dentre elas, e esta escolha já se demonstrou ser insatisfatória enão operacional. Evitar esse dilema é o que leva Perelman a tentar uma terceira solução. Afirma oautor ser possível superar o impasse, procurando-se pesquisar o que há de comum nas diferentesconcepções de justiça precedentemente referidas. Conclui por encontrar esse elo na idéia de “igual-dade”, subjacente a todas as posições precedentemente analisadas. A noção de justiça sugere atodos, inevitavelmente, a idéia de certa igualdade. A igualdade perfeita, porém, todo mundo perce-be imediatamente, é irrealizável e constitui apenas um ideal para o qual se pode tender, um limite doqual se pode tentar aproximar na medida do possível.

É imprescindível existir certa semelhança entre os seres aos quais se aplica ajustiça, pois, inexistindo uma medida comum, isto é, não havendo identidade, a questão da realiza-ção da justiça nem sequer tem de ser colocada. E se hoje se reivindica tratamento justo para todosos homens, é porque o homem reconheceu semelhança em todos os outros homens, é porque anoção de humanidade foi ficando pouco a pouco evidente.

Ocorre que esta igualdade essencial dos homens está emoldurada por inúme-ras e complexas diferenças. Daí o dilema – há que se tratar a todos da mesma forma ou devemexistir formas diferenciadas de tratamento, para assegurar, precisamente, o igual tratamento quese deseja? E se formas diferenciadas forem necessárias, o que se deverá levar em conta paratornar justo o tratamento diferenciado? Recai-se, então, nas divergências e inconciliabilidades an-tes referidas.

É possível, entretanto, superar esse impasse, diz Perelman. Em todas as con-cepções de justiça há uma atitude comum – trata-se igualmente os iguais. Pretende-se que se leveem conta o mérito de igual tratamento para os que têm “igual” mérito, valendo o mesmo paranecessidades, posição social, etc. Seja qual for a divergência sobre outros pontos, todos estão deacordo sobre o fato de ser justo tratar da mesma forma os seres que são iguais de certo ponto devista, que possuem uma “característica comum”, a única que se deve levar em conta na adminis-tração da justiça.

Perelman propõe seja esta característica qualificada de “essencial” e os que ativerem em comum pertencem a uma mesma categoria, à mesma categoria essencial. Portanto,pode-se definir a justiça formal ou abstrata como um princípio de ação segundo o qual os seres deuma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma. Abandonar-se-ia, de umavez por todas, a improfícua procura da “justiça material” como algo suscetível de prévia determina-ção. Conclui, portanto, que “o único meio que temos de dizer sobre a justiça ou injustiça de um atoconsiste na igualdade de tratamento que reserva a todos os membros de uma mesma categoriaessencial”.

A partir daí, pode-se definir a noção de “eqüidade” como técnica de superaçãodas antinomias da justiça, decorrentes do desejo de se aplicar simultaneamente várias regras dejustiça incompatíveis.

Por outro lado, se, de uma perspectiva formal, o pensamento de Perelmanoferece diretivas que parecem fundamentais, permanece irresolvido o problema da plena legitimi-dade da ordem jurídica.

15-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43193

194

REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano IV - nº 4

Resenha da obra “Ética e Direito”, de Chaim Perelman

Destarte, se é exato que só pela ordem jurídica se assegura, em última instân-cia (com impositividade), a justiça relativa, contingente, possível em determinado momento históri-co e em certo espaço político, isso implica o problema da legitimidade desta ordem jurídica, sempreem permanente questionamento.

Toda ordem jurídica é tão mais legítima quanto mais amplamente possibilita aexplicitação das necessidades pelos indivíduos e grupos que sob seu império se colocam, a par deviabilizar-lhes a organização para tê-las atendidas (PROCON, Juizados Especiais, etc). É maisjusto o ordenamento que menos necessidades deixa insatisfeitas e mais injusto o que maior númerode necessidades deixa desatendidas.

O Direito é, portanto, e sempre, uma forma possível de realização histórica esocial da justiça, não de uma justiça absoluta, nem necessariamente a mais perfeita. Ele apenasformaliza e busca implementar o projeto de justiça possível nos limites da contingência que lhe ditae lhe põe a correlação real das forças operantes na sociedade. Pode-se, pois, dizer que toda ordemjurídica realiza alguma justiça e que ela será tanto mais quanto menos necessidades deixar insatis-feitas e menos expectativas desatendidas instituir. E tanto mais é injusta quanto mais desiguala,privilegiando, com o que agrava o número dos excluídos e dos insatisfeitos. Portanto, a medida dajustiça ou injustiça de uma ordem jurídica se afere pelo maior ou menor grau de coerção que opoder político institucionalizado precisa exercer para assegurar a paz social, ou em outros termos,paradoxalmente, o Direito é tão mais necessário quanto mais injustiça determina a ordem socialexistente, donde as sociedades mais perfeitas serem aquelas menos necessitadas da coerção doDireito e, conseqüentemente, dos juristas.

15-revista_07.p65 29/10/2007, 21:43194