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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO ESTADO, EMPRESA E CIDADÃO: OS ATORES SOCIAIS E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Curitiba 2013

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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA

PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO

ESTADO, EMPRESA E CIDADÃO: OS ATORES SOCIAIS E O

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Curitiba

2013

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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA

PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO

ESTADO, EMPRESA E CIDADÃO: OS ATORES SOCIAIS E O

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Dissertação apresentada perante Banca

Pública de Avaliação como requisito parcial à

obtenção de título de mestre no Programa de

Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania

do Centro Universitário Curitiba.

Mestrando: Daniel Ricardo Augusto Wood

Orientadora: Profª. Dra. Viviane Séllos Knoerr

Curitiba, junho de 2013

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II

RESUMO

Esta dissertação apresenta os três atores socialmente discerníveis que importa

destacar no cenário do desenvolvimento sustentável que se quer para o Brasil; quer-

se tornar evidente que a participação destes três personagens, no cenário do direito, não pode prescindir de certas considerações que incluem a ética e, em certo grau, a

filosofia da justiça e a moral; percebem-se níveis diante dos quais se postula, gradativamente, a importância da solidariedade para a concretização de uma

condição de desenvolvimento que de modo algum deixa de lado a consideração, absolutamente necessária, a respeito da sustentabilidade, aqui vista como principio

que informa todo o sistema constitucional, e, portanto, como base de todo o sistema

jurídico brasileiro; seus capítulos abordam direitos transgeracionais, objetivos

constitucionais, responsabilidade social da empresa, ordem e interesse públicos, razões de Estado e obediência à Constituição, mecanismo de atividade de regulação

no Brasil, atuação estatal frente ao princípio constitucional da sustentabilidade, bases ideológicas relacionando a solidariedade (fraternidade) à liberdade e à

igualdade; conclui-se com um exemplo prático da aplicação da distribuição de

receitas tributárias nas unidades da federação, explicando o mecanismo

denominado ICMS Ecológico ou ICMS Verde como meio de garantir o

desenvolvimento em municípios menos privilegiados economicamente no Estado do

Paraná.

PALAVRAS-CHAVE: SUSTENTABILIDADE – ICMS ECOLÓGICO –

FRATERNIDADE – SOLIDARIEDADE – RESPONSABILIDADE SOCIAL –

CIDADANIA – OBJETIVOS CONSTITUCIONAIS – ÉTICA – JUSTIÇA SOCIAL

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III

ABSTRACT

The following discourse presents three actors socially discernible on the scenery of

sustainable development, the scenery that is wanted for Brazil; what one wants with it is to show evidence that participation, regarding those three characters on the scene

of law, cannot disregard certain considerations which include ethics, and, to some

degree, morals and the philosophy of justice; there are levels that are perceived in a

way that it is postulated, gradually, the importance of solidarity for the realization of a

condition of development that in no way leaves aside regards absolutely necessary

about sustainability, here seen as a principle that sustains the entire constitutional system, therefore acting as base of the entire Brazilian law system; its chapters

aboard transgenerational rights, constitutional objectives, social responsibility in

business and entrepreneurship, public order and public interest, State reasons and

Constitutional obedience, regulatory activity in Brazil, State activity in view of the

constitutional principle for sustainability, ideological bases relating fraternity, equality

and liberty; it concludes with a practical example regarding a practical application of the model of revenue-sharing (from taxes) amongst federation units, explaining the

mechanism of revenue-sharing from the state value-added tax on the circulation of goods, interstate and intercity transportation and communication services (somewhat like the state excise tax), which is commonly called in Brazil as Green or Ecological ICMS (Green or Ecological excise tax), as a way to guarantee development in

economically less-privileged municipalities in the State of Parana. KEYWORDS: SUSTAINABILITY – GREEN EXCISE TAX – FRATERNITY –SOCIAL

RESPONSIBILITY – CITIZENSHIP – CONSTITUTIONAL OBJECTIVES – ETHICS –

SOCIAL JUSTICE

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IV

AGRADECIMENTOS

À Professora Dra. Viviane de Sellos Knoerr, minha orientadora e coordenadora do

programa, incansável em sua missão de levar adiante e além o Programa de

Mestrado do Unicuritiba, respirando pelo programa em vários momentos,

oportunizando a todos os mestrandos um conhecimento mais aprimorado do Direito,

por nós abraçado.

Aos membros da banca, Professores e Doutores Fernando Gustavo Knoerr e Ilton

Garcia da Costa, que tiveram a perspicácia, a paciência e a sabedoria para avaliar e

orientar auspiciosamente este trabalho, oferecendo inestimável contribuição

intelectual para o aprimoramento deste trabalho e deste aprendiz.

Aos professores do programa de Mestrado do Unicuritiba, sem os quais (todos) seria

impossível vislumbrar o conhecimento necessário para prestar uma mínima

demonstração de condições de assumir o grau de mestre em relação a um estudo

árduo, de pelo menos dois anos de duração.

Aos colegas de mestrado, grandes amigos, sempre participativos ao longo de toda

essa jornada.

Aos funcionários e estagiários do programa de Mestrado do Unicuritiba, sempre

atuando para nos proporcionar segurança nos trâmites necessários durante esse

empreendimento.

À minha esposa, Edineia Luiz Ozorio Wood, que com amor e paciência suportou

mais esse esforço de minha vida, tempo em que efetivamente me faltaram forças

para cuidar de certos afazeres domésticos que exigiram de minha companheira mais

do que é habitual.

Em tais nomes, agradeço a todos os seres vivos pela oportunidade de ter, também,

um lugar ao nascer e outro ao por do Astro-Rei que ilumina a vida na Terra.

Nenhum ser humano está só, neste imenso Universo. O Criador nos deu o Sol, que

brilha durante o dia, para todos; a Lua, para iluminar ciclicamente as noites, dizendo-

nos que nada é permanente, embora todas as coisas, em certo grau, se repitam. A

Ele sou sempre grato por me dar a oportunidade de conhecer algo mais do meu

lugar na obra da Criação. Não há ciência, nem saber, se não houver algo que

antecede a toda a epopeia humana em busca de sua realização máxima como ser

capaz de conhecer a si mesmo.

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V

Eu e minhas ideias de canário nos

recolhemos, todos os dias, para examinar, às

vezes brevemente, às vezes mais

detidamente, de que é feito esse mundo sobre

o qual reinamos, construindo nossos palácios

e nossas gaiolas, eventualmente encontrando

elementos que parecem ter sumido de nossas

vistas, mas estão sempre aí, mudando de

forma, de estilo, de cor e de conteúdo. O rio

que passa diante de nós é sempre o mesmo; mas as águas, nunca se repetem. O que se

segue é uma dessas oportunidades de

examinar uma concepção de mundo. (as

referências são a Machado de Assis e

Heráclito, como bem lembrou o Prof. Fernando Gustavo Knoerr).

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VI

NOTA (PÓS-DEFESA)

Muito bem lembra a Professora Dra. Viviane Séllos Knoerr, a respeito do Estado

Social de Direito que aqui se defende, que em praticamente todos os trabalhos da

atualidade fala-se de um Estado Social que, no entanto, raramente se vislumbra na

prática. Vive-se, no Brasil, sob um aspecto de realidade concreta, um Estado Liberal que, embora tenha dispositivos constitucionais que preveem um Estado Social, não

raro não contempla as garantias que deveria assegurar. Fazendo coro, e

observando o leitor que, de fato, muito do que a Constituição preconiza há décadas

ainda não foi implementado, pode-se pensar que aquilo que aqui se encontra, sob o

aspecto de Estado Social de Direito, é a afirmação de deveres do Estado e direitos

dos cidadãos e das empresas, isto é, a responsabilidade estatal de implementar

tudo aquilo que a Constituição preconiza, não aos pedaços, nem somente aos

poucos. Já não é tempo de se pensar, por exemplo, em continuar desvinculando as receitas

da união para fins que ainda não se vislumbram. Há décadas se desvinculam

receitas e se avolumam tributos sobre as cabeças dos cidadãos e das empresas, e

muito ainda se espera. A questão que se tem visto nestes dias de turbulência da

atual Copa das Confederações e da futura Copa do Mundo de Futebol de 2014, com

os olhos do mundo voltados para o Brasil, é que, aparentemente, o brasileiro está

cansado de esperar enquanto ri e sofre. Evidentemente que, ao longo do trabalho que se segue, fala-se de deveres que os

três atores devem preencher. Isso não exclui o dever do Estado para com a

Constituição, como não exclui os direitos constitucionalmente estabelecidos. Em

Direito Constitucional, sabe-se perfeitamente que os direitos fundamentais são

limitações aos abusos que o Estado pode cometer. Se eles não são respeitados em

sua integralidade, é porque em alguma medida estão acontecendo abusos. Este modesto escritor quer crer que a ideia do Estado Social, proposta na

Constituição, gravada em fogo, é forte a ponto de levar o Brasil e esse Estado Social de Direito que se quer, e trabalha para isso. É, como afirmou a Professora Viviane, um devir. Que esse vir-a-ser se transforme, em breve, em ser, é o que se espera.

Em Curitiba, 27 de junho de 2013.

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VII

SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO .......................................................................................... 9

II. DIREITOS TRANSGERACIONAIS E DO ESTADO E O DIREITO

INTERNACIONAL: BALANÇO SOCIAL ................................................ 20

II.1. MUNDIALIZAÇÃO ...................................................................................20

II.2. DIREITOS TRANSGERACIONAIS.......................................................... 22

II.3. OBJETIVOS CONSTITUCIONAIS .......................................................... 24

II.4. RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA......................................26

II.4.1. “Politicamente Correto”, Porém Nem Sempre Lucrativo.......................... 28

II.4.2. Ações Afirmativas e o Lucro a Médio e Longo Prazo .............................. 30

III. ORDEM PÚBLICA, RAZÃO DE ESTADO E OBEDIÊNCIA À

CONSTITUIÇÃO ..................................................................................... 34

III.1. SUPREMACIA CONSTITUCIONAL E RAZÕES DE ESTADO................34

III.1.1. Razão de Estado .....................................................................................34

III.1.2. Razão de Estado Democrática ................................................................35

III.2. ORDEM PÚBLICA E INTERESSE PÚBLICO..........................................36

III.3. OBEDIÊNCIA À CONSTITUIÇÃO ........................................................... 45

III.3.1. Soluções constitucionalmente previstas (via extraordinária) ...................47

III.3.1.1. Medidas Provisórias ................................................................................48

III.3.1.2. Estado de Defesa e Estado de Sítio........................................................49

III.3.2. Soluções tipicamente administrativas......................................................50

IV. BREVES CONSIDERAÇÕES QUANTO À DINÂMICA DO PODER

REGULATÓRIO NA ATIVIDADE ECONÔMICA .................................... 51

IV.1. ANÁLISE DE FÁBIO COMPARATO........................................................ 51

IV.2. ANÁLISE DE ANTONIO ENRIQUE PEREZ LUÑO .................................55

IV.3. CRESCIMENTO OU DESENVOLVIMENTO EMPRESARIAL E

SOCIAL? ................................................................................................. 60

IV.3.1. Breve Histórico da Introdução do Mecanismo Regulatório na

Realidade Atual ....................................................................................... 62

IV.3.2. O Mecanismo de Regulação da Atividade Econômica ............................ 70

IV.3.3. Poder Regulador .....................................................................................72

IV.3.4. O Exercício do Poder de Regular ............................................................ 75

IV.3.5. Mais Considerações ................................................................................77

IV.3.6. A Atuação Estatal sobre o Desenvolvimento e a Sustentabilidade .........81

IV.3.7. O Estado Intervencionista Segundo Bonavides.......................................88

IV.3.7.1. Das Origens do Liberalismo ao Advento do Estado Social......................95

IV.3.7.2. O Estado Liberal e a Separação dos Poderes.......................................100

IV.3.7.3. O Pensamento Político de Kant.............................................................103

IV.3.7.4. O Pensamento Político de Hegel...........................................................104

IV.3.7.5. A Liberdade Antiga e a Liberdade Moderna ..........................................106

IV.3.7.6. As Bases Ideológicas do Estado social .................................................108

IV.3.7.7. O Estado social e a democracia ............................................................110

IV.3.7.8. A Interpretação das Revoluções............................................................111

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V. SOLIDARIEDADE, ICMS ECOLÓGICO E DESENVOLVIMENTO

SUSTENTÁVEL .................................................................................... 112

V.1. AMOR, DIREITO E SOLIDARIEDADE EM AXEL HONNETH...............112

V.2. COMPROMETIMENTO, COMUNIDADE E DESENVOLVIMENTO

SOCIAL A PARTIR DE RAINER FORST .............................................. 123

V.2.1. Constituição do Eu ................................................................................125

V.2.2. A Neutralidade Ética do Direito.............................................................. 129

V.2.3. O Ethos da Democracia ........................................................................135

V.2.4. Universalismo e Contextualismo ........................................................... 143

V.2.5. Contextos da Justiça .............................................................................145

V.3. SOLIDARIEDADE E TRIBUTAÇÃO NO ICMS ECOLÓGICO ...............148

V.4. PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA VIGÊNCIA DA

SUSTENTABILIDADE ........................................................................... 150

V.5. POLÍTICAS PÚBLICAS AFIRMATIVAS E MEIO AMBIENTE................153

V.5.1. Ações Afirmativas em sua Relação com a Base Ideológica das

Políticas Públicas .................................................................................. 155

V.6. DIREITO TRIBUTÁRIO AMBIENTAL, DISTRIBUIÇÃO DE

RECEITAS E ICMS ECOLÓGICO......................................................... 157

V.6.1. Externalidades e sua Internalização......................................................159

V.6.2. Distribuição de Receitas: Caso do ICMS...............................................161

V.6.3. ICMS Ecológico: o Caso do Paraná ......................................................162

V.7. CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS ......................................................... 164

VI. CONCLUSÕES .....................................................................................165

VII. REFERÊNCIAS .....................................................................................173

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I. INTRODUÇÃO

João Neves de Fontoura,1 citado por Viviane de Séllos Knoerr, nos

informa que

Todo o universo habitado é um sistema de vasos comunicantes. Um instituto político, jurídico, econômico, ou social, que desaba ou se transforma no Oriente, influi no similar do Ocidente como numa cadeia de reflexos. Subvertida a tábua dos logaritmos humanos, todas as operações parecem erradas, todas as equações mal enunciadas, todos os cálculos incertos.

A Internet demonstra essa teoria na prática. Uma barafunda sofisticada de

ligações coloca (os que tiverem meios de acesso à Internet) praticamente todo o

mundo interligado, seja quando se faz uma simples compra num supermercado, seja

quando se envia ou se recebe uma mensagem por correio eletrônico, seja quando

se coloca um comentário qualquer numa rede social, publicando coisas que serão

lidas por toda parte. Seriam, talvez, lidas na Lua, se lá se tivesse pelo menos dois

requisitos: (1) acesso à Internet e (2), o mais importante, pelo menos um ser

humano, devidamente interessado, para ler. Pode-se crer que assim será um dia.

Poder-se-ia dizer que essa é uma tentativa tosca de entender o

comentário de Fontoura, se não se soubesse que o pensamento do parágrafo

anterior não corresponde a uma pós-leitura de Fontoura: deriva de um entendimento

copartícipe de ideias filosóficas no mínimo gregas e até mesmo chinesas, quiçá

egípcias, aztecas, maias, aboriginais, lêmures, atlantes. Faz parte, diria talvez Carl

Gustav Jung, de uma intrincada rede arquetípica a que todos os seres humanos têm

possibilidades de aceder.

Não obstante, a ideia dos vasos comunicantes é muito ilustrativa, e por

isso mesmo didática: mostra de modo claro a analogia da interligação entre todos os

seres humanos em imensa rede social, em um tempo em que ainda não se cogitava

em computadores eletrônicos. Mostra mais: que, como na tese de doutoramento de

1 Fontoura, João Neves de. Discurso pronunciado no Teatro Municipal, em sessão cívica promovida pela Liga de Defesa Nacional, em 07/09/1936, no Rio de Janeiro. In Antologia de Famosos discursos brasileiros, pp. 130 e 131, apud Séllos, Viviane, A Ressocialização do Encarcerado: uma Questão de Cidadania e Responsabilidade Social. Rio de Janeiro: Clássica, 2012. Tese de doutorado publicada (cont.)

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Viviane Séllos, todos são responsáveis uns pelos outros e, ainda, pela consecução

de um objetivo maior, que a todos diz respeito.

Viviane Séllos Knoerr, logo nas primeiras linhas de sua tese de

doutoramento, menciona a igualdade jurídica,2 além de outras prerrogativas

constitucionais. Essa igualdade jurídica faz com que todos, ao pleitear direitos

perante o Poder Judiciário, estejam plenamente em pé de igualdade: o Estado, o

empresário e o cidadão, mesmo que juridicamente confundidos, o que

eventualmente pode acontecer.

Esses três, iguais em si, têm de se relacionar para completar o triângulo

essencial de que depende a Sociedade que se pressupõe num Estado Democrático

de Direito nos dias atuais, mormente no caso brasileiro.

Viviane Séllos também deixa claro, em sua obra, como traduz a ideia de

Fontoura:

(...) em termos preconizados por Cícero: “O tema do dever é duplo; um se relaciona com a natureza do bem e do mal; outro encerra os preceitos que devem mediar todas as nossas ações.” Devemos fazer o bem. Devemos combater o mal e responsabilizarmo-nos por nossos próprios atos.

3

Cumprir com a responsabilidade de cada um é um tema que não é novo;

não obstante, a impressão que se tem, com frequência, é que apenas recentemente

recebe o relevo que merece, apesar da advertência dada a Sócrates pelo Oráculo

de Delfos. No “Conhece a ti mesmo” baseia-se imensa, e a maior, parcela da

construção científico-filosófica sobre moral e ética do Ocidente. A esse respeito, é

preciso levar em conta que a experiência jurídica não abdica, e aliás, extensamente

se vale, de sua relação com moral e ética, como se pode compreender pelo

ensinamento de Bobbio.4

como e-book em http://www.editoraclassica.com.br/novo/ebooksconteudo/eb2.epub, acesso em 17/06/2013. A citação se encontra à p. 17 da obra supra. 2 Séllos, Viviane. A Ressocialização do Encarcerado: uma Questão de Cidadania e Responsabilidade Social. Rio de Janeiro: Clássica, 2012. Tese de doutorado publicada como e- book em http://www.editoraclassica.com.br/novo/ebooksconteudo/eb2.epub, acesso em 17/06/2013, p. 14 e pp. 50ss. 3 Séllos, Viviane, op. cit., p. 17. 4 Bobbio, Norberto. Teoria Geral do Direito, passim; em particular, v. p. 205: “nenhum ordenamento nasce num deserto; metáforas à parte, a sociedade civil em que se vai formando um ordenamento jurídico, como o do Estado, não é uma sociedade natural, absolutamente desprovida de leis, mas uma sociedade em que vigem normas de vários tipos, morais, sociais, religiosas, comportamentais, costumeiras, convencionais e assim por diante. O novo ordenamento que surge nunca elimina completamente as estratificações normativas que o precederam: parte daquelas regras passa a integrar, através de uma recepção expressa ou tácita, o novo ordenamento, que, desse modo, surge limitado pelos ordenamentos anteriores. Quando falamos de poder originário, entendemos originário (cont.)

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Trata-se a seguir de um tema que permeia a estrutura do Programa de

Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania oferecido pelo UNICURITIBA. Ao

abordá-lo, é de se ter em mente, como de fato deve ser, que todo o programa

contribui integralmente para esta discussão, que é, provavelmente, o cerne da

proposta deste programa: integrar a atuação estatal, a atuação empresarial e o

desenvolvimento da cidadania, de modo que a Ciência Jurídica tenha como se

mover livre e desembaraçadamente entre tais fatores, integrando-os,

proporcionando um resgate do que é verdadeiramente o Direito: tendo por centro o

ser humano, busca coordenar suas relações, oportunizando o desenvolvimento

coletiva e individualmente.

De modo a tratar de tão abrangente tema, faz-se necessário abordar que

espécie de situação é esta em que se encontram os três atores que participam deste

estudo. Isto é feito no primeiro capítulo, quanto ao qual cumpre esclarecer

inicialmente um ponto básico.

Usa-se adiante a expressão “responsabilidade fraternal”, e necessário se

faz dimensionar em que termos se usa a mesma, isto é, os limites da noção de

fraternidade que se propõe aqui aplicar. Primeiro, fique claro que o uso da

expressão “fraterna” ou “fraternal”, neste trabalho, impõe algo mais do que

simplesmente social; mas também compreende menos do que seria usual tratar em

termos religiosos.

Implica uma espécie de ética que vai além da pura e simples

responsabilidade social, mas abrange menos do que se pode esperar do sujeito

religiosamente dedicado a englobar espiritualmente a alteridade, pois não se pode

propor nem esperar, em um trabalho que pressupõe uma metodologia científica

relativamente às ciências jurídicas, uma atitude dogmática no sentido religioso da

expressão ética.

Considera-se que existe uma ética e uma moral na religião, e na prática

religiosa encontram-se os fundamentos daquela; mas aquilo de que aqui se fala não

é de um mundo que transcende este em que se vive: interessa falar deste lugar

onde se está, do mundo em que se vive, em que todos os problemas atuais

juridicamente, não historicamente. Podemos falar nesse caso de um limite externo do poder soberano”.

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precisam ser considerados com o cuidado e a atenção necessários à preservação

da vida humana.

Se, por outro lado, o que aqui se expõe for relativamente congruente a

esta ou aquela práticas religiosas, deve-se ressaltar que é por força daquilo que, na

religião, está próximo do Direito (e vice-versa); isto é, que tanto no Direito, quanto na

religião, a justiça é meta comum; e que, para haver justiça, é preciso haver também

certo grau de racionalidade, coisa pressuposta como objetivo a atingir por meio do

“pacto social”.

Assim, se há uma intenção de entregar a tutela de parte dos direitos

individuais e coletivos ao Estado, para que este se encarregue de tornar a sociedade

possível, então é também preciso estar apto a definir em que medida ocorre o

engajamento num contrato social. Mais do que isso, o estabelecimento de direitos

fundamentais é mais do que simplesmente a assunção de direitos naturais, e

também representa outra ordem de pensamento.

Em segundo lugar, o uso do termo “responsabilidade”, aqui, é mais uma

consagração ao seu uso do que um paralelo imediato ao significado do termo em

Direito Civil, como em “responsabilidade civil”, coisa que nasce uma vez

descumprida uma obrigação (também determinada pela lei ou pelo contrato). A

responsabilidade “fraternal” no sentido aqui desenvolvido talvez possa ser percebida

contratualmente e talvez até possa ser defendida em uma discussão sobre aplicação

de princípios constitucionais; mas, afora situações em que a empresa se dedique às

circunstâncias aqui sugeridas em sede contratual, não é fácil prever, somente com

base no que se expõe neste texto, que a responsabilidade extracontratual esteja

sempre presente.

Mais além, o Constitucionalismo dos dias atuais (seja ou não

recepcionado como “neoconstitucionalismo”) implica em geral uma racionalidade que

admite, de maneira positivada, a existência de direitos fundamentais que

pressupõem-se, por sua vez, diretamente relacionados aos três preceitos

fundamentais da sociedade ocidental moderna, expressos pelo lema “liberdade,

igualdade, fraternidade”.

Em tais três dimensões alojam-se os direitos de liberdade, os direitos

sociais e os direitos transgeracionais; e é dentro desses limites que se pretende

colocar uma noção de fraternidade – algo não especificamente religioso, mas que

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implica, certamente, em ampliação e aprofundamento necessários quanto à noção

de ética que vai além da simples responsabilidade social; isso inclui uma reflexão

que deve se basear na responsabilidade transgeracional posta na Constituição,

admitindo entre outras coisas a necessidade de preservar o meio ambiente para as

gerações presentes e futuras.

Em tempos de mundialização5 do capital e assunção de direitos

transindividuais e transgeracionais, como é o caso do direito ao meio ambiente

expresso na Constituição Federal, encontra-se forte impulso, não apenas por parte

da ordem jurídica, mas da sociedade em geral, e de variados setores da economia

nacional e internacional envolvendo a ética empresarial no sentido de, além de

cumprir com sua determinação, agir na direção do progresso sócio-cultural e

econômico dos componentes da sociedade.

Essa atitude pode ser analisada sob dois aspectos básicos: primeiro, da

aparência de redução dos lucros da atividade empresarial, analisando este ônus, e,

eventualmente, a eficiência da empresa ao levar sua produção ao mercado; e

segundo, do benefício atingido, a longo prazo, com o desenvolvimento de técnicas

aprimoradas e socialmente adequadas, voltadas à produção e ao desenvolvimento.

Este estudo tem por objetivo abordar os dois aspectos acima, de modo a

reforçar a ideia de que é não apenas “politicamente correto” atuar afirmativamente

visando o desenvolvimento harmônico da sociedade, mas, também, a médio e longo

prazo, é bastante lucrativo adaptar a empresa, seus valores e sua cultura, a uma

ética que abranja não apenas a missão primordial da empresa em sua precípua

atividade econômica, mas também outras atividades que não aparentam estar

incluídas na perspectiva empresarial estrita.

A dignidade humana é princípio efetivamente consagrado pelo

ordenamento jurídico brasileiro a partir mesmo de sua Constituição Federal, e eis

que as implicações contidas na defesa da dignidade humana obrigam a extensas

considerações sobre a proteção dos Direitos Fundamentais – absolutamente

necessários para preservar a dignidade do ser humano – de modo tal que é

imprescindível para o Brasil criar e manter instituições voltadas à preservação e

limitação de sua sociedade para que o desenvolvimento se dê mesmo segundo seu

5 Expressão utilizada por François Chesnais em seu livro “Mundialização do Capital” para designar genericamente o que o poder econômico anglo-americano chama de “globalização”.

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lema – Ordem e Progresso, lema positivista, cientificista, lastreado em uma ética

humanista que não admite que não esteja em todo o centro de suas considerações o

ser humano, a individualidade de cada um e a coletividade de seres que compõem o

povo e as sociedades pública e privada em um Estado.

O estabelecimento de um Estado de Direito que tem de debruçar-se

constantemente sobre a necessidade de desenvolver seu povo preservando a

democracia e a sociedade é na verdade uma tarefa complexa, que impõe

considerações contínuas e, em certas ocasiões, aparentemente antinômicas, que,

mediante cuidadosa hermenêutica, permitem um progresso gradual e relativamente

ordenado.

Cabe neste processo uma abordagem detida do interesse público, de

suas implicações sobre o interesse privado; incluem-se observações sobre a

administração e a intromissão, por vezes necessária, do Estado no campo do direito

privado; envolve a percepção de que há mesmo interesses privados que influem

diretamente sobre as Razões que o Estado tem para investir nisto em detrimento

daquilo. Trata-se disso no segundo capítulo.

Como tudo o mais que depende de recursos que não são inesgotáveis, é

importante refletir sobre incontáveis situações em que o Estado parece ora inchar,

ora desinchar suas estruturas, tendo por meta maximizar sua eficiência na resolução

de questões que se impõem aos cidadãos de forma privada, mas obrigam o Estado

a intervir, procurando harmonizá-las, pacificando a sociedade ao mesmo tempo em

que propicia oportunidades.

As políticas regulatórias do governo, por certo, têm relação com a

responsabilidade social das empresas a elas sujeitas, na medida em que

representam disposições normativas de observância obrigatória. Assim, no terceiro

capítulo aborda-se o tema da regulação, procurando fornecer uma perspectiva sobre

o exercício de regulação levado a efeito pelo Estado na atividade econômica.

O pacta sunt servanda,6 argumento básico da disposição liberal que tanto

influenciou e ainda influencia a concepção de Estado Democrático de Direito, hoje

6 Do latim: “o contrato deve ser cumprido”, é um brocardo latino que propõe que aquilo que foi acordado deve ser cumprido nos limites da lei, originalmente obrigando absolutamente as partes ao estrito atendimento das cláusulas contratuais, por vezes partindo da ideia de que ambas as partes tiveram plena liberdade em contratar.

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não é mais tão típico como no Mercador de Veneza de Shakespeare.7 Hoje, não

apenas a autonomia da vontade nos contratos privados está submetida a regras que

a relativizam: o próprio Estado participa, por vezes, como se fosse um ente privado,

das relações contratuais.8

Trata-se, então, de razões que evidenciam a necessidade de atender a

questões que incluem o interesse público e que tornam o Estado um parceiro de

negócios com especiais interesses – enquanto é um Estado que tem mecanismos

para garantir incondicionalmente seus negócios, pode, porém, descumprir

determinadas obrigações, dependendo de condições relacionadas a um interesse

maior, e em tais casos, via de regra, está plenamente justificado ao fazê-lo, sendo

mesmo seu dever e não apenas uma opção que se coloca à sua frente.

Há consequências para um tal modo de ação, como ocorre em geral

quando há um contrato entre quaisquer partes; essas consequências se refletem, no

caso do Estado, interna e externamente, sob dimensões muito superiores às de uma

simples empresa.

Medidas como o denominado “Risco Brasil”, que indicam o quão confiável

é fazer investimentos em um país, estão relacionadas tanto ao valor da moeda nas

casas de câmbio e aos volumes de importação e exportação que devem ser

pesados na balança comercial quanto ao caixa disponível para programas de

combate e erradicação da miséria e do analfabetismo.

Bem assim se dá quanto à análise e alteração da carga tributária que

pretende financiar, manter ou estabelecer programas sociais que o governo deve ter

para obedecer à vocação máxima do Estado, preconizada pela Constituição.

Nesse ínterim, pressupõe-se que o Estado não pode, por exemplo, onerar

indefinidamente o contribuinte só porque é para ele que presta serviços, nem pode

deixar plenamente de cobrar seus tributos do povo – pois precisa no mínimo manter

uma estrutura de administração de fronteiras, mesmo que fosse possível deixar os

Direitos Fundamentais de segunda dimensão (sociais) para ater-se unicamente aos

políticos, como no caso da manutenção de uma ordem política. 7 De se ter em mente, aliás, que Shakespeare mesmo não considerava que a autonomia da vontade privada devia ser tão autonômica nem, aliás, exclusivamente privada, impressão que se tem pela solução dada pelo grandioso dramaturgo inglês aos assuntos que envolviam considerações privadas submetidas à mediação de um Estado em sua famosa peça. 8 É o caso das empresas públicas de direito privado e as sociedades de economia mista.

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É um dilema digno de Têmis:9 justificar o Estado como executor de uma

vontade popular que dificilmente é estabelecida em um consenso simples, exigindo

contínua revisão, adaptação e aprofundamento.

Entre os antigos, até Platão se debruçou sobre a questão, em sua

“República”, que, aliás, começa por se perguntar o que é Justiça, e procura

estabelecer, para examinar o conceito, a administração democrática das coisas

públicas. Questão que interessa ao filósofo socrático é quem deve estar no topo da

administração da cidade-Estado, de modo a atender ao interesse que visa beneficiar

toda a coletividade e, deste modo, realizar a distribuição da Justiça.

No advento da modernidade, Montesquieu e outros refletiram sobre a

separação de poderes visando a administração harmoniosa do Estado e procurando

também pela Justiça e por um Estado capaz de representar o povo.

Hoje, praticamente todos os estudiosos da Ciência Política, da Filosofia

do Direito e do Constitucionalismo, bem como do Direito Civil, do Direito Econômico,

do Direito Empresarial, do Direito Administrativo e do Direito Tributário (para citar

apenas algumas áreas relevantes das Ciências Jurídicas relativamente ao tema em

exame) estão debruçados ativamente sobre o dilema da administração pública em

face das escolhas complexas que esta deve fazer e de quais princípios devem

nortear, virtualmente vinculando, todas as suas decisões, pelo tremendo impacto

que têm no cotidiano de milhões de pessoas.

Uma das questões que se impõe aqui, por exemplo, são as intervenções

que o Brasil fez, em várias ocasiões, mesmo depois da Constituição Federal de

1988, procurando conter as altas inflacionárias galopantes antes do advento do Real

como moeda brasileira.

Houve, por exemplo, o Plano Collor I,10 com o que foi conhecido como um

“confisco” em larga escala de ativos financeiros, limitando bruscamente a moeda em

circulação no país, procurando com isso conter a inflação. 9 Filha de Urano (o Céu) e Gaia (a Terra), está bem na origem da expressão popular que busca encontrar a fórmula mágica entre duas instâncias separadas pela imensidão: “Nem tanto ao Céu, nem tanto à Terra”. 10 Que teve dois momentos em seu estabelecimento, de março a maio de 1990, devido às Medidas Provisórias 168, de 15 de março de 1990, e 189, 30 de maio de 1990, segundo nos conta Luís Roberto Barroso em Temas de Direito Constitucional, Tomo I, (2ª. ed., Renovar, Rio de Janeiro: 2002) pág. 290 e seguintes. Outras medidas provisórias ‘costuraram’ o processo ao longo do caminho, inclusive procurando ‘engessar’ o Poder Judiciário.

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Eram “Razões de Estado” que pareciam lastrear tal intervenção, que, ao

longo do tempo, perdeu força e acabou por soçobrar, sendo vencida por novas

investidas inflacionárias. Tais razões haviam se sobreposto a praticamente todos os

contratos privados vigentes então; muitos tiveram de se adaptar da noite para o dia

de modo a cumprir seus compromissos, e as quebras empresariais ocorreram aos

montes, contas vencendo e escassez de dinheiro para manter a produção e o

emprego.

Recentemente, o Brasil teve a experiência da CPMF, que, de contribuição

provisória sobre movimentação financeira, tornou-se permanente; mas, sem atender

a finalidade para a qual foi estabelecida – custear a saúde no Brasil – acabou por

morrer, e há algum tempo se esboça seu retorno. O impacto da CPMF foi sem

dúvida muito inferior ao do Plano Collor I; mas também haviam razões que a

suportavam e que, por vários motivos, não foram atendidas.

Não ocorreu, nos casos anteriores, nenhuma quebra direta de contrato

com as entidades privadas; mas o efeito foi, senão o mesmo (com quebras

ocorrendo por via indireta, ou rescisões em massa acontecendo pela incapacidade

de pessoas físicas e jurídicas honrarem seus compromissos), semelhante. Inclusive,

bem maior do que se houvessem apenas alguns contratos estabelecidos com

entidades privadas.

As quebras contratuais entre o Estado e os particulares, no entanto,

acontecem de forma análoga, embora em escala menor: há Razões de Estado

alegadas para que possam ocorrer tais rompimentos.

Pois, no final, o efeito de se ter um setor da sociedade obrigado a aceitar

o ônus decorrente de um benefício a ser proposto à sociedade toda ou a uma parte

maior dela pode (hipoteticamente) ser imposto, tendo por base a Lei Maior e visando

benesse passível de extensão a quem dele muito precisa, almejando inclusive

minimizar efeitos colaterais caso tal intervenção não seja levada a cabo.

Em menor escala, a quebra de contratos é uma quebra de lei pessoal,

entre os contratantes, que pode ter efeitos não apenas entre estes, mas também

relativamente a outros (via de regra terceiros com interesses secundários no

negócio) que têm de suportar as consequências indesejáveis da restrição sofrida

pelas partes contratuais.

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Uma espécie de “efeito cascata” ou “dominó”: se Aecius deixar de pagar a

Balcius, Balcius poderá deixar de pagar a Cassius, mais por causa de não ter

recurso do que simplesmente porque sentiu-se autorizado a não pagar, embora este

último argumento também possa acontecer. Dionecius, Elcius e Fulvius poderão ser

atingidos, em consequência, e assim por diante.

É o que ocorreu no exemplo histórico que se deu acima. Claro que, ali, a

questão foi maior do que simplesmente um rompimento contratual; mas envolve

análoga espécie de ruptura, como também inclui Razões de Estado; relaciona-se ao

Interesse Público e tem impacto no Desenvolvimento Nacional, colocando a

necessidade de refletir sobre o Estado de Direito e o fato de estar ou não atendendo

a ele (e este atendendo à Constituição).

O Plano Collor I também foi chamado Plano Brasil Novo, como atesta Luís

Roberto Barroso a respeito do então Presidente da República:

Empossado, o novo Presidente deflagrou um ambicioso plano econômico, que, em medida de duvidosa constitucionalidade, promoveu a retenção da quase totalidade dos ativos depositados em instituições financeiras, inclusive cadernetas de poupança. O Plano Brasil Novo foi instituído mediante utilização abusiva das recém-criadas medidas provisórias, e, em pouco mais de um ano, já havia se tornado uma nova aventura monetária fracassada.

11

Durante o Plano Collor I, a primeira impressão, visível nas ruas do Brasil,

era de que finalmente seria contida uma “inflação galopante”. Mas, com o passar dos

dias e com as quebras contratuais que começaram a acontecer, com os ônus da

perda financeira e a desvalorização de muitos bens particulares, os gritos do

interesse privado sobrepuseram-se paulatinamente ao que parecia antes ser

interesse público, de tal modo que, em determinado momento, o Estado passou a

suportar o peso do descrédito geral, levando ao restabelecimento de processos

inflacionários menos de um ano após a Medida Provisória 168 de 1991.

A despeito do choque inicial, o discurso neoliberal e privatizante do Presidente contou com amplo apoio da mídia e da opinião pública. Sua credibilidade, todavia, começou a desmoronar no início do segundo ano de governo. Um provinciano desentendimento entre o Presidente e seu irmão trouxe à tona uma rede de extorsão e corrupção que comprometiam o Chefe de Estado e a eminência parda de seu governo, o tesoureiro da campanha, Paulo César Farias.

12

11 Barroso, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional, Tomo I. Doze Anos da Constituição

Brasileira de 1988. 2ª. ed., Renovar, Rio de Janeiro: 2002. Pág. 18. 12 Barroso, op. cit., pág. 18.

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Como continua a narrar Luís Roberto Barroso, o Presidente Collor acabou

por sofrer processo de impeachment em fins de agosto de 1992, em processo

histórico. O saldo, porém, do Plano Brasil Novo, foi um tanto desastroso,

principalmente para a economia interna brasileira. A respeito do tema, tem-se

historicamente uma avalanche de ações no Poder Judiciário, que congestionou seus

serviços, tratando de aspectos relacionados ao que se chamou, motivadamente, de

confisco dos ativos financeiros.

Em 1993 a inflação encontrou freio com o Plano Real, durante a

presidência de Itamar Franco, tendo como Ministro da Fazenda Fernando Henrique

Cardoso. Esse plano econômico, que estabilizou a moeda corrente no Brasil, na

prática elegeu por duas vezes um Presidente da República.

O sucesso de um plano econômico elegeu e re-elegeu um Presidente da

República, e o impacto do insucesso de outro, segundo podemos supor, levou a

uma série de suspeitas que acabou por derrubar um Presidente da República

anterior. Tal percepção leva à observação de que o interesse público envolvido na

Administração Pública há de legitimá-la ou, em sentido contrário, até mesmo

destituí-la.

O que é, então, esse interesse público e o que o relativiza – relativizando

também as razões de Estado?

Em que circunstâncias as Razões de Estado podem ser colocadas de

modo tal que pode-se romper as condições contratuais estabelecidas entre o Estado

e entidades de direito privado?

Estes são apenas dois dos tópicos que se examina com relativa brevidade

no segundo capítulo, oferecendo uma reflexão a respeito, que permite compreender

do que se trata quando se fala do Estado de Direito, das Razões de Estado, do

interesse público e da necessidade eventual de descumprir cláusulas contratuais por

parte do Estado.

Entra em cena a importância da atividade regulatória. Põe freio, em nome

da cidadania, a ambos: Estado e Atividade Econômica, de um e outro lado,

procurando defender os interesses individuais e coletivos, colocando na mesa de

negociações Estado, Empresário e Cidadão. Não são, aliás, apenas as agências

reguladoras que tratam de impor freios à atividade econômica: o exercício da

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cidadania também o faz, impondo limites ao capitalismo. Ser cidadão, aliás, não é

opção (nem, como se pode querer, um simples dever) do indivíduo: é opção, e de

certo modo, dever, para o empresário.

No quarto capítulo, procura-se analisar a atividade regulatória do Estado e

da Administração Pública na atividade econômica, tendo por foco principal o

exercício do poder regulamentar, limitando o exame à esfera federal, considerando-

o, no entanto, como modelo que em linhas gerais é seguido, resguardadas as

devidas proporções, nas esferas estadual e municipal. Não se tem a pretensão de

esgotar o tema relativamente aos limites, profundidade e detalhamento do poder

regulamentar das agências reguladoras.

Cidadania é mais que um status: é um processo contínuo. Envolve a

participação do indivíduo e da coletividade. Como tal, envolve o Estado (a grande

coletividade), a empresa (pequena coletividade) e o cidadão (indivíduos, vivendo em

comunidade). Daí também cabe em alguma medida abordar o que é a solidariedade

que embase o princípio ético da vivência fraterna, e sua relação com a justiça. Isso é

feito no penúltimo capítulo desta obra, dando-se, aliás, um exemplo prático da

aplicação do princípio da solidariedade nessa esfera de participação de atores

sociais, com o caso do ICMS Ecológico.

II. DIREITOS TRANSGERACIONAIS E DO ESTADO E O DIREITO

INTERNACIONAL: BALANÇO SOCIAL

II.1. MUNDIALIZAÇÃO

O termo foi proposto por François Chesnais em seu livro Mundialização

do Capital.

Enquanto o termo globalização, plural de significados, prolifera na língua

principal dos mercados mundiais – o inglês – encontra-se a expressão que lhe é

correlata, mundialização em francês, associada ao capital, ou seja, capitalismo

financeiro sem fronteiras.

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Explica Chesnais que em 1994, as fronteiras do capital se haviam aberto,

por efeito do fim do Muro de Berlim, numa expansão sem precedentes do capital

ocidental através do mundo, na garupa da expansão da tecnologia e das

telecomunicações. A mensagem fora dada: capitalistas, o mundo é vosso, já não há

fronteiras. Ide e conquistai!

Ainda sob a perspectiva de Chesnais, a globalização é imposta a todos,

apresentada como processo benéfico, exigindo que se adaptem a uma liberalização

e desregulamentação que pretende dar liberdade de movimentos às empresas,

submetendo todos os campos da vida social à valorização pelo capital privado, que

se expande e assume feições corporativistas de um gigantismo sem precedentes,

superando o poder dos Estados.

Analisando esse movimento da mundialização em relação à economia

mundial, Chesnais traz a visão de um mundo excludente, que marginaliza países em

desenvolvimento.13 Em sua obra, Chesnais evidencia que a tecnologia desempenha

papel crucial neste processo, dando velocidade à expansão do capital por meio de

telecomunicações e automação industrial, modificando substancialmente a relação

entre capital e trabalho, fazendo a balança pesar para o lado do capital num

desequilíbrio no mínimo preocupante.

Chesnais expõe de modo geral que, diante da concorrência generalizada

pelos mercados, as megaempresas (multinacionais) parecem não sentir o peso dos

investimentos de capital necessários para se manter diante de atividades

econômicas nas quais as empresas de menor concentração de capital acabam se

vendo em apuros; aí, onde o capital e a tecnologia dominam, o valor do trabalho

humano é proporcionalmente menor, e o custo da qualificação proporcional é

progressivamente maior. Como resultado, ocorre a exclusão, principalmente nos

países que se encontram na periferia dos investimentos em capital.

Hoje, pelos noticiários mais recentes, esse processo atinge não apenas

os chamados “países em desenvolvimento”, mas, também, o “primeiro mundo”,

como recentemente ocorre na União Europeia.14 Esse argumento reforça a noção de

13 Chesnais, François. Mundialização do Capital, p. 33. 14 Aliás, os acontecimentos na União Europeia, com crises financeiras ocorrendo na Grécia e na Itália, percebidas pelos noticiários em outubro e novembro de 2011, reclamam a participação do Brasil e trazem reflexos para as finanças públicas vigentes, como, por exemplo, a intenção de prorrogar a Desvinculação das Receitas da União (DRU – art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal), expressa pela Presidenta Dilma Roussef no início de novembro (cont.)

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que o Brasil não está só no que diz respeito à atividade econômica, isto é, a

atividade empresarial no Brasil e no mundo tem de se haver, hoje em dia, com os

reflexos da economia mundial sobre a economia nacional.

II.2. DIREITOS TRANSGERACIONAIS

Importa a abordagem da Sociedade de Risco de Ulrich Beck.15 Há riscos

que ameaçam levar ao colapso, não apenas da atividade empresarial, considerada

isoladamente, mas das economias em larga escala dos países e do mundo, e tais

riscos não são de ordem exclusivamente financeira.16

Dentre os riscos que são apenas parcialmente mensuráveis, pelo ponto

de vista econômico, encontra-se a escassez de recursos naturais, evidenciada pela

profunda crise ecológica que o mundo está hoje sofrendo, coisa também evidente

por uma simples pesquisa nos noticiários dos últimos cinco ou dez anos.

Maremotos, terremotos, vendavais, furacões, pragas, doenças,

contaminação, poluição, são termos que se associam para evidenciar reflexos, que

se reproduzem e intensificam a pobreza e a diferença entre as camadas sociais na

economia nacional e internacional.

Mas, como o próprio Ulrich Beck informa, não são apenas os mais pobres

que são hoje afetados pelos riscos da crise na ecologia.17 Como exemplo, pode-se

perceber facilmente que não há concentração de capital capaz de minimizar

de 2011 durante reunião no G-20: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,dilma-usa-crise-na-europa-para- defender-nova-dru,796033,0.htm, acesso em 21/11/2011 às 10h14. Ver também: http://noticias.r7.com/brasil/noticias/dilma-usa-crise-na-europa-para-manter-20-do-orcamento-livre-20111108.html, acesso em 21/11/2011 às 10h32. 15 Beck, Ulrich. Sociedade de Risco. Em sua obra, dentre outras coisas, tal autor propõe que a sociedade em que vivemos atualmente vai além da simples sociedade industrial de produção – naquela, a luta de classes era a tônica, lado a lado com a busca pela produção e pelo conforto; nesta, os riscos são compartilhados e ameaçam a civilização inteira e mesmo a continuidade da espécie humana, exigindo não apenas um comportamento de prevenção, mas também estabelecendo uma espécie de economia que procura absorver os próprios riscos como elemento econômico, inclusive gerando novos riscos. 16 Não obstante, é de se pensar que a atual crise no sistema financeiro mundial se deve também de maneira reflexa a certo descuido com questões sociais em prol de uma espécie de neoliberalismo que fez por negligenciar as lições anteriormente aprendidas (senão com a Filosofia e com a Economia, principalmente com a História, na primeira metade do Século XX). 17 Beck, Ulrich, op. cit., p. 47 e segs., “Situações de risco não são situações de classe”. Apesar disso, o autor aborda este tema recorrentemente ao longo dessa obra.

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significativamente os efeitos extremamente nocivos de um terremoto, como o do

Japão18 (economia de primeiro mundo) ou o do Haiti

19 (considerado país de “terceiro

mundo”). Em ambos os casos, obviamente, há efeitos que vão além da mensuração

econômica a curto prazo e serão historicamente observados nas décadas que virão.

Se não bastar o exemplo dos terremotos e maremotos (que, por vezes,

podem ser atribuídos a “causas naturais”, que aparentemente fogem da percepção

humana, quanto aos atos, cometidos pela coletividade, que agridem a natureza, de

maneira praticamente irreversível),20 percebem-se os efeitos do acidente nuclear de

Chernobyl na Rússia em meados de 1986,21 ou os efeitos do desmatamento na

Amazônia e na Mata Atlântica brasileiras, que chegam ao ponto de exigir dispositivo

constitucional para sua proteção.22

De tal modo o mundo passou a se preocupar com as questões ambientais

– que dizem respeito à preservação da vida em larga escala – que o direito à vida se

desdobra no direito ao meio ambiente. Direito difuso, de natureza transindividual e

transgeracional, pois vai além do indivíduo no presente e perpassa a vida dos

indivíduos cuja existência ainda virá a ser: a Constituição defende o meio ambiente

para o presente e para as futuras gerações.

Por tal perspectiva, é preciso perceber que o ônus da preservação do

meio ambiente deve ser suportado por todos, independentemente da posição de

cada um. Verdade, porém, que esse suporte deve ser oferecido proporcionalmente a

18 Em março de 2011, forte terremoto atingiu Fukushima no Japão; e em julho de 2011, novo terremoto (embora em escala menor) em região próxima colocou não apenas o Japão, mas o mundo, em alerta: http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/forte+terremoto+provoca+tsunami+e+mata+centenas+no+japao/n1238148772147.html, acesso em 21/11/11 às 10h38; http://g1.globo.com/mundo/noticia/2011/07/terremoto-de-magnitude-73-atinge-o- japao.html, acesso em 21/11/11 às 10h39. Foram contabilizados 23 mil mortos nesse terremoto e imensos prejuízos para a economia mundial, com riscos, ademais devidos à radiatividade emitida por usina nuclear, que meses depois do terremoto ainda não haviam passado por adequada mensuração. 19 O terremoto ocorrido em 12 de janeiro de 2010 no Haiti ocasionou a morte de pelo menos 200 mil pessoas e afetou mais de 1,5 milhão de pessoas nesse país que é o mais pobre das Américas e a primeira república negra do mundo, fundada por ex-escravos em 1804; no Haiti mais da metade da população é subnutrida e vive com menos de 1,25 dólar por dia: http://www.brasilescola.com/geografia/o- terremoto-no-haiti.htm, acesso em 21/11/2011 às 10h48 e http://pt.wikipedia.org/wiki/Sismo_do_Haiti_de_2010, acesso em 21/11/2011 às 10h49. 20 Mas cujas consequências, como no caso da usina nuclear de Fukushima, certamente têm efeito na economia em um nível mundial: basta apenas pensar no comércio de pescados da região de Fukushima. 21 Fato inclusive observado por Ulrich Beck, no capitulo introdutório “A propósito da obra”, em sua obra Sociedade de Risco, p. 7-10. 22 Constituição Federal, art. 225, § 4º.

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vários fatores (dentre eles, a ponderação quanto à atividade poluidora

desempenhada pelos agentes econômicos).23

II.3. OBJETIVOS CONSTITUCIONAIS

É mandatório observar os ditames da Constituição da República, pois ela

fundamenta toda a ordem jurídica nacional. O art. 3º. da Lei Maior dá sempre as

diretrizes permanentes (enquanto norma fundamental) que devem nortear toda a

atividade nacional (seja ou não de cunho econômico).24

Quando se fala de “responsabilidade livre, justa e solidária”, está-se

falando de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira dimensões: a

liberdade está expressa pelo fundamento primeiro do Estado e da democracia, o

pacto social amplamente baseado nela; a justiça pressupõe a ponderação acerca do

que é igualdade e em que termos ela se torna possível; e a solidariedade,

fundamento dos direitos difusos e coletivos, implica numa espécie de fraternidade

que não é especificamente familiar, mas envolve pensar que aquilo que o outro

precisa, qualquer um também pode precisar.

É nesse sentido que se pressupõe a irmandade: de que há determinadas

coisas que são não apenas para os que hoje vivem, mas também para aqueles que

viverão; e que não são, tais coisas, objeto de propriedade reservado a uns ou outros

especificamente, mas a todos, e por todos devem ser defendidas e preservadas. Se

há que se falar em propriedade, é em sentido difuso, caso do meio ambiente como

23 Canotilho, Joaquim José Gomes (org.) e Leite, José Rubens Morato, (org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. No livro, o artigo de Antônio Herman Benjamin (Capítulo 1: Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira) explica que a Constituição Federal impõe ao Poder Público e aos particulares um dever geral de não degradar, seguido de outros a este relacionados, “de cunho welfarista” (p. 132), nem sempre ostentando “a mesma titularidade obrigacional” (p. 133), não bastando impor deveres apenas contra o Estado. A sustentabilidade ecológica, para o autor, depende de todos os parceiros do pacto democrático. 24 Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

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bem jurídico; e assim, também, a fraternidade pressupõe certo sentido difuso ao ser

especificada no âmbito da presente abordagem.25

O Dicionário Aurélio Eletrônico ilustra o verbete solidariedade:26

solidariedade [De solidári(o) + -edade.] Substantivo feminino. 1. Qualidade de solidário. 2. Laço ou vínculo recíproco de pessoas ou coisas independentes. 3. Adesão ou apoio a causa, empresa, princípio, etc., de outrem. 4. Sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria humanidade. 5. Relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s): solidariedade de classe. (...)

De tal modo assim é que, observando os incisos seguintes do mesmo

artigo do texto constitucional, tornar-se-á forçoso compreender que desenvolvimento

nacional, erradicação da pobreza e da marginalização, redução das desigualdades

sociais e regionais e a promoção do bem “de todos”, sem preconceito nem

discriminação,27 são coisas que se encontram relacionadas ao sentido difuso

implícito nos direitos transgeracionais, na medida em que todos os objetivos

fundamentais do Estado brasileiro são objetivos voltados a todos, indistintamente, e

a ninguém em particular.28

25 A esse respeito, v. Canotilho (org.) e Leite (org.), op. cit., p. 123. Antônio Herman Benjamin (in Canotilho e Leite, Direito Constitucional Ambiental Brasileiro) explica que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é de terceira geração, alicerçado na fraternidade (solidariedade), pertencendo a categoria de direitos que têm por destinatário o gênero humano como um todo, possuindo estrutura de direito tanto positivo quanto negativo. Seu exercício pode ocorrer tanto coletiva quanto individualmente, “não se perdendo a característica unitária do bem jurídico ambiental (...) ao reconhecer-se um direito subjetivo ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” (p. 123). 26 Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0. Copyright 2004 by Regis Ltda. Edição Eletrônica autorizada à Positivo Informática Ltda. Nossos os destaques em negrito e itálico. 27 V. art. 3º. da Constituição. 28 V. nota de rodapé 12, supra. Acrescente-se que a previdência, por exemplo, está calcada no princípio da solidariedade, conforme atesta o (RE 450.855-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 23-8-05, 1ª Turma, DJ de 9-12-05). Além disso, a respeito do desenvolvimento nacional, o Ministro Celso de Mello também pronunciou seu caráter difuso na ADI 3.540-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1º-9-05, Plenário, DJ de 3-2-06, afirmando: “A questão do desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II) e a necessidade de preservação da integridade do meio ambiente (CF, art. 225): O princípio do desenvolvimento sustentável como fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia. O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz (cont.)

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26

Ademais, a atividade econômica no Brasil também é norteada pela

Constituição Econômica, cujos princípios gerais estão enunciados no art. 170 da

Constituição Federal.29,30

II.4. RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA

Segundo Fabiane Bessa,

A ‘demarcação jurídica’ de uma responsabilidade social das empresas passa necessariamente pela Constituição brasileira e pelas normas que regulam as relações mercantis. Mas seu ponto de partida há que ser a própria demanda social quanto ao tema.

31

(...) Uma empresa pode ser socialmente responsável, pagando seus impostos, se relacionando adequadamente com seus consumidores, com bom atendimento, ouvindo o seu público, lidando bem com o meio ambiente, com a comunidade onde está instalada, mas não necessariamente doando recursos. Ai é que vem a diferença. Responsabilidade social é uma obrigação legal e moral. Filantropia é eletivo: abro meu bolso, a minha carteira, se eu quiser. Se eu não fizer isso, não posso ser mal visto pela população.

32

Para Bessa, Responsabilidade Social não é especificamente

responsabilidade fraternal: inclui cumprir a lei e também inclui o atendimento de uma

bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações.” (Nossos os destaques em itálico). 29 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. 30 Ressalte-se que, como diz Eros Grau em A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (14ª. ed. rev. atu., Malheiros), “não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços” (p. 164). Daí enumeramos alguns princípios, mas não todos, destacando que o texto constitucional como um todo é que vai determinar o que prevalece, e em que situação isso se dá é elemento que depende do caso concreto. 31 Bessa, Fabiane. Responsabilidade Social das Empresas., p. 130. 32 ibid., p. 132.

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27

ética empresarial. É dizer: bem cumprindo a lei e a Constituição, e sendo eticamente

correta – isto é, não transgredindo a regra ética que implica em ser uma empresa

cumpridora da lei e dos “bons” costumes (tem-se aqui a boa fé objetiva, apregoada

pelo Código Civil, como se vê pelo art. 422: Os contratantes são obrigados a

guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de

probidade e boa-fé).

Não inclui filantropia, nem implica necessariamente em caridade. A

empresa não pode ser mal vista por visar lucro – pois esta é a finalidade da

empresa: desempenhar atividade econômica organizada tendo o lucro como um de

seus objetivos, coisa aliás prevista e permitida segundo a lei.33

Se a empresa faz mais do que isso – isto é, se vai além de sua

responsabilidade social e, de uma maneira ou de outra, desenvolve ações às quais

não está legalmente obrigada – ela talvez seja politicamente correta ou, mais ainda,

fraternalmente34 responsável.

Em ambos os casos, a atividade empresarial seria posta em questão se,

além dos limites razoáveis, ultrapassasse as fronteiras de sua lucratividade, isto é,

da capacidade de prover retorno econômico quanto à atividade econômica por ela

desempenhada. Neste caso, ela estaria ameaçada com seu fim – e também não

estaria mais cumprindo sua função social, pois, como concorda a doutrina neste

ponto (pelo menos desde Adam Smith), a empresa cumpre grande parte de sua

função social, pelo simples fato de gerar empregos.35

Um dos elementos que trata de uma responsabilidade mais que

simplesmente social da empresa é o balanço social – uma espécie de balanço que

em alguns lugares é regulamentado legalmente e que, publicado pela empresa, 33 O Código Civil (Lei 10.406/2002) em seu artigo 966 define a empresa, e embora não especifique lucro, este é decorrente da circulação de bens e serviços; e sem ele dificilmente a empresa será capaz de sobreviver. 34 Veja o leitor as observações introdutórias. 35 Smith, Adam. A Riqueza das Nações. Diz Adam Smith: “(...) já que cada indivíduo procura, na medida do possível, empregar seu capital em fomentar a atividade nacional e dirigir de tal maneira essa atividade que seu produto tenha o máximo valor possível, cada indivíduo necessariamente se esforça por aumentar ao máximo possível a renda anual da sociedade. Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país e não de outros países ele tem em vista apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas a seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções”. (Adam Smith, A Riqueza das Nações, Col. Os Economistas, Vol. I, p. 379, São Paulo, Abril Cultural, 1983).

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denota o quanto ela investe em situações que proporcionam retorno lucrativo de

longo prazo. Fabiane Bessa trata de tal elemento em sua obra Responsabilidade

Social das Empresas, e reitera que, através dessa espécie de divulgação,

“entrelaçam-se direitos fundamentais, responsabilidade social, direito à informação,

promoção da cidadania ativa, defesa da concorrência orientada pelo principio da

boa-fé”.36

O Balanço Social de que tratam Fabiane Bessa e outros autores, porém,

não é uma prática generalizada, nem tem, ainda, suficiente regulamentação legal e

técnica para proporcionar adequado retorno. Por enquanto, é só uma promessa, de

modo tal que aquele que pratica o balanço social nem sempre está obrigado a tanto,

embora seja de se considerar que, se o pratica sem estar a ele obrigado, decerto

estará investindo mais do que simplesmente aquilo que se relaciona especificamente

à lucratividade de sua própria atividade.37

Fabiane Bessa ainda ressalta que

(...) o balanço social apresenta-se como um dos possíveis instrumentos reguladores a facilitar a divulgação de ações e omissões relacionadas à sustentabilidade social, ambiental e econômica, auxiliando na mudança cultural e axiológica da sociedade ao introduzir, difundir ou promover a releitura de temas como: a) o direito a informação; b) a importância desta na prevenção ou reversão de ações eticamente reprováveis; c) o poderoso efeito das ações sociais organizadas como fatores de mudança social e efetivação dos direitos de toda ordem; d) a conscientização sobre os efeitos que toda a sociedade sofre em razão de ações prejudiciais realizadas por alguns grupos ou companhia.

38

II.4.1. “Politicamente Correto”, Porém Nem Sempre Lucrativo

Ser “politicamente correto” não é coisa que se possa considerar sempre

como atividade lucrativa; aliás, em geral, a curto prazo é o contrário que se dá. Não

36 Bessa, Fabiane, op. cit., pág. 215. 37 A esse respeito, v. Bessa, Fabiane, op. cit., p. 196 e segs., e Gomes, Karideny Nardi Modenesi, Responsabilidade Social nas Empresas – o Caso CST, na Internet, no endereço eletrônico http://www.ethos.org.br/_Uniethos/Documents/Responsabilidade%20Social%20nas%20Empresas.pdf, acesso em 27/11/2011 às 21h17. Modenesi Gomes afirma, a respeito, que “Através de um balanço social, é revelada a participação da empresa na sociedade proporcionando um certo status para a mesma perante a comunidade empresarial, tendo em vista que investir no social ainda é algo especial por não ser obrigatório, e serve de exemplo para outras empresas que ainda não descobriram esta nova realidade; daí a importância do verdadeiro marketing empresarial, o qual divulga de forma real e transparente o que está sendo feito pelas empresas, para a sociedade. Esta comunicação empresarial mostra que é possível agir em prol da comunidade situada em sua área de influência, assim como da sociedade em geral” (p. 15). 38 Bessa, Fabiane, op. cit., p. 208-209.

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29

fosse assim e não se teria a constatação prática de que no campo tributário,39 por

exemplo, a sonegação sempre ameaça as finanças públicas. A responsabilidade

social, por vezes, não é congruente com a aparência da correção moral diante da

sociedade.

Sob o lado que se pode considerar positivo, observa-se com alguma

tranquilidade que a expressão popular “politicamente correto” designa de modo geral

uma atitude ética diante de problemas sociais que exigem uma resposta adequada,

razoável e proporcional no sentido de corrigir e prevenir, ou, pelo menos, aplicar

ações que debelem uma situação social coletiva e indesejada, localizada ou não.

Ora, tal espécie de ação muitas vezes ultrapassa o âmbito de atuação de

uma empresa, se esta ativer-se ao pensamento tradicional (e atualmente algo

antiquado) de que está separada de uma realidade macroscópica, em que a

produção e circulação de bens e serviços não é algo exclusivamente próprio de um

negócio privado em andamento. Antes do atual ordenamento jurídico, constitucional,

legal e infralegal, o direito privado não sofrera ainda a constitucionalização e

publicização pela qual hoje passa.

A sociedade de riscos, ademais, demanda uma atuação que exige a

consideração da realidade maior em que está inserido o direito privado, isto é,

qualquer negócio tem efeitos externos que não podem deixar de ser considerados

sob o ponto de vista da realidade sócio-econômica que subjaz à atuação

empresarial. E é claro que isso tem um custo adicional àquele que na realidade

anterior era habitualmente calculado.

Tal coisa não pode se dar – raciocinando com base num paradigma de

que o investimento tem que resultar em alguma espécie de retorno – simplesmente

com base numa postura de “dar sem olhar a quem”.

Modenesi Gomes afirma que

As empresas que são socialmente responsáveis lidam com o investimento no social não só como caridade, mas como um investimento propriamente dito, incorporando-o ao seu próprio planejamento estratégico. Atualmente, a responsabilidade social empresarial se

39 Em tal campo, a implicação é de ser “politicamente correto” e também “socialmente responsável”, de acordo com a definição de responsabilidade social da Profa. Fabiane Bessa. A empresa pode parecer correta ao público embora não pague os impostos devidos. Por outro lado, não parece incomum que a empresa pague seus impostos em dia e, no entanto, pareça “politicamente” incorreta. Tudo depende do modo como a tal “correção”, em termos políticos, se apresenta, e do que significa “política”. Neste caso, “politicamente correto” apresenta nuances que incluem (mas não se limitam a) a aparência de correção moral e a obediência a ditames da ordem política vigente.

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incorpora à gestão e abrange toda a cadeia de relacionamentos: funcionários, clientes, fornecedores, investidores, governos, concorrentes, acionistas, meio ambiente e a sociedade em geral. Enquanto no Brasil, há cinco anos atrás ninguém falava em responsabilidade social - só em filantropia, hoje somente fazer doações a entidades filantrópicas já não são mais os objetivos principais de muitos empresários atentos a nova exigência do mercado: investir no social. O que se observa é que, diferente de uma ajuda assistencialista, as empresas se preocupam com o resultado de seus investimentos e exigem o monitoramento e a avaliação das ações.

40

De se observar, assim, que existe o espaço para ações éticas a partir das

empresas, que vão além da simples responsabilidade social no sentido estrito da

expressão, e incluem uma responsabilidade ética que de algum modo dá retorno ao

empresário e o coloca em evidência, obtendo ganhos que são expressos no mínimo

por uma perspectiva típica de marketing, mas que não se limitam a esse tanto.

II.4.2. Ações Afirmativas e o Lucro a Médio e Longo Prazo

Outra espécie de ação que dá a ideia de responsabilidade fraternal é o

procedimento que visa eliminar, minimizar e/ou corrigir a injustiça social por meio de

uma espécie de tutela que vai além da simples reparação que se dá após a

ocorrência do dano.

Atualmente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa,41

em sua obra sobre as ações afirmativas, estudou principalmente as formas e

estratégias mediante as quais o governo norteamericano procura incentivar o

combate à discriminação em suas várias formas (ênfase, neste caso, à

discriminação de raça e gênero sexual, mas com validade para o combate a

qualquer forma de discriminação que seja nociva ao desenvolvimento humano

individual e coletivamente).

Esclarece esse autor que o Estado norteamericano durante muito tempo

baseou-se num abstencionismo estatal oriundo da crença de que os princípios e

regras da igualdade formal asseguram a harmonia em sociedade, o que não se

40 Gomes, Karideny Nardi Modenesi, Responsabilidade Social nas Empresas – o Caso CST, p. 14. 41 Gomes, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito como Instrumento de Transformação Social. As Experiências dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

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mostrou suficientemente verdadeiro, nem plenamente eficaz. Percebendo que ainda

há uma marginalização, que evidencia que pouco ou nada muda simplesmente pela

assunção de uma igualdade formal muitas vezes distorcida na atuação privada, os

EUA passaram a repensar estratégias de intervenção42 social visando a modificação

das situações de discriminação e marginalização social, racial e de gênero.

As ações afirmativas, para o autor, são criação pioneira do Direito

norteamericano, visando, a princípio, regular certos aspectos da contratação no

trabalho e o acesso à educação: “ao invés de conceber políticas públicas de que

todos seriam beneficiários independentemente da sua raça, cor ou sexo, o Estado

passa a levar em conta esses fatores na implementação das suas decisões (...) para

evitar que a discriminação, que inegavelmente tem um fundo histórico e cultural, (…)

finde por perpetuar as iniquidades sociais”.43

Diferem tais ações das políticas governamentais de garantias

antidiscriminatórias, que têm conteúdo negativo/proibitivo, fornecendo meios de

reparação às vítimas, sempre depois do fato; as ações afirmativas visam evitar a

efetivação da discriminação por meio de normas gerais ou específicas (no terreno

formal) e mecanismos “informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas

culturais e no imaginário coletivo”.44

Resumindo, Joaquim Barbosa informa que são

políticas de inclusão pela sociedade pública e privada, além dos “órgãos de

competência jurisdicional”,45 visando a efetiva igualdade de oportunidades.

Mediante a efetivação de tais políticas, mostra Joaquim Barbosa que

muito se tem feito nas últimas décadas no que diz respeito à inclusão social das

mulheres e dos negros, procurando reverter situações de desigualdade histórica, e

proporcionando oportunidades de desenvolvimento que incluem essa parcela da

população norteamericana.46

Quanto às ações afirmativas, importa destacar no âmbito deste trabalho

os dois postulados que dizem respeito à fundamentação filosófica de tais ações, e

42 Trata-se aqui de intervenção em sentido lato: compreende incentivo, estímulo, regulação e mesmo formas de coerção relativamente branda, como demonstra o texto de Joaquim Barbosa. 43 Gomes, Joaquim B. Barbosa, op. cit., p. 39. 44 ibid., p. 41. 45 ibid., p. 41. 46 ibid., p. 48: “Nesse sentido, o efeito mais visível dessas políticas, além do estabelecimento da diversidade e representatividade propriamente ditas, é o de eliminar as ‘barreiras artificiais e invisíveis’ (‘glass ceiling’) que emperram o avanço de negros e mulheres, independentemente da existência ou não de política oficial tendente a subalternizá-los”.

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também os resultados econômicos relacionados a tais práticas. Na exposição que se

segue, evita-se discutir argumentos pró e contra, considerando o espaço destinado a

esta abordagem e remetendo o leitor à obra original.

Em primeiro lugar, os postulados filosóficos que embasam as ações

afirmativas incluem a Justiça Compensatória e a Justiça Distributiva. O primeiro

parte da ideia de que a injustiça passada precisa ser compensada, e portanto cabem

ações reparatórias com o sentido de equilibrar as condições atuais. Por exemplo, se

estivessem em melhores condições no passado (de pobreza e falta de educação e

trabalho), populações inteiras poderiam, nesta época da atualidade, ter atingido

melhor condição de vida. A ação afirmativa com característica compensatória visa,

pois, corrigir a injustiça do passado.

Já a Justiça Distributiva remonta a Aristóteles e diz respeito a “promover a

redistribuição equânime dos ônus, direitos, vantagens, riqueza e outros importantes

‘bens’ e ‘benefícios’ entre os membros da sociedade”.47

Daí decorre que não é justo que os que sofrem as iniquidades tenham de

suportá-las continuamente, devendo “a adoção de oportunidades especiais” mitigar

e extirpar as “desvantagens oriundas de injustiça do passado” para “se construir uma

sociedade na qual todos os indivíduos tenham parcelas mais equitativas dos

benefícios e ônus da vida americana”.48

Justiça distributiva, pois, é uma busca de justiça no presente, ao passo

em que a justiça compensatória visa a retroação para reparação dos danos sofridos

no passado.

Destaque-se que Joaquim Barbosa deixa claro que as ações afirmativas

não se resumem a sistemas de cotas cegas; e o mesmo autor também assinala que

nem sempre as cotas resolvem questões, necessitando ser pensadas caso a caso e

não de maneira indiscriminada, ocasião em que não apenas não se resolve o

problema discriminatório como, eventualmente, tende-se a reforçá-lo.49

Veja-se aliás que a simples reflexão conduz ao pensamento de que a

justiça distributiva, em sua precisa medida, contribui para a consecução dos

objetivos fundamentais da Constituição da República, na medida em que se fala de

47 ibid., p. 66. 48 ibid., p. 66. 49 ibid., p. 40, nota 32. A leitura do texto que se segue dá a perspectiva de que o sistema de “cotas cegas” tende a reforçar a discriminação que se tentou cegamente debelar.

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redução das desigualdades sociais e regionais e se luta pela erradicação da

pobreza.

Que se pense, aliás, que através da ação afirmativa o governo dos EUA

não apenas divisou um modo de fazer com que a empresa (classicamente

pertencente a um ambiente competitivo e meritocrático em que o melhor sobrevive e

o mais fraco sucumbe) contribua para a redução das desigualdades: demonstra-se

que há um retorno efetivo no sistema de produção e circulação de bens e serviços

em nível macroscópico, pois, na medida em que setores da sociedade melhoram

sua perspectiva de vida, trabalho, educação e consumo, todos os setores da

sociedade são indiretamente beneficiados pela geração de riquezas, com a

consequência de sua circulação em maior amplitude e profundidade, gerando novas

oportunidades tanto para a iniciativa privada quanto para a valorização do trabalho e

do emprego. Como atesta Joaquim Barbosa,

a implantação da diversidade acarreta inegáveis benefícios para o próprio país que, como se sabe, vê a cada dia acentuar-se o seu caráter multicultural. Assim, o erro estratégico consistente em não oferecer oportunidades efetivas de educação e de emprego a certos segmentos da população pode revelar-se num futuro bem próximo altamente prejudicial à competitividade e à produtividade econômica do país. Portanto, agir “afirmativamente” significa também zelar pela pujança econômica da nação.

50

Assim, o sistema econômico em geral lucra não apenas com o aumento

de consumidores, mas, também, com o fato de que os consumidores esclarecidos

contribuirão para a manutenção dos recursos materiais (hoje reconhecidamente

escassos):51 o pensamento aqui contido é de que o cidadão esclarecido contribui de

modo geral para um mundo em que a boa-fé objetiva é reforçador dos negócios.

Adicionalmente, na medida em que a educação e o trabalho estão mais

disponíveis, o empresariado de modo geral tende a um menor dispêndio quanto a

esclarecer o público sobre a natureza de suas ações. Isso é ruim apenas para o tipo

de empresário que não se importa com o meio em que se insere, e

proporcionalmente assim é, na medida em que incorre em tal atitude.

Assim, se o empresariado visa o esclarecimento do público quanto a, por

exemplo, a qualidade de seu produto, considera-se que terá revertido o investimento

50 ibid., p. 48. 51 A respeito, dentre muitos, v. Derani, Cristiane. Direito Ambiental Econômico, passim; e Canotilho, José Joaquim Gomes (org.), Leite, José Rubens Morato, (org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro, passim.

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ético que teve ao participar das ações que direta ou indiretamente valorizam sua

atividade, pois há um retorno extrapatrimonial (a curto prazo) que implica, a longo

prazo, na valorização da empresa como patrimônio não apenas do empresário em

si, mas da região e do país no qual ela se insere.

É um trabalho que tem prazo maior de obtenção de dividendos do que

aquele que proporciona o retorno imediato, que em geral se espera de uma iniciativa

de produção numa cultura amoral de consumo; garante que a empresa terá um lugar

na sociedade, como o indivíduo que, por sua dignidade, estabelece seu lugar ao sol.

Atesta Modenesi Gomes que

Ao estabelecer como regra e praticar uma conduta ética, a empresa coloca-se em posição de exigir o mesmo de seus empregados e administradores. Desse modo, podem cobrar-lhes maior lealdade e dedicação. O ato de emprestar o seu trabalho a uma organização que age com ética constitui-se, para o empregado, em uma compensação abstrata, de valor incalculável. Enfim, a empresa ganha, pois os seus funcionários, mais satisfeitos, produzem mais; os funcionários ganham porque, investindo no social, a empresa está investindo na vida particular de cada funcionário e na comunidade em que ele se insere. A sociedade ganha, afinal é nela que todas estas transformações estão ocorrendo.

52

III. ORDEM PÚBLICA, RAZÃO DE ESTADO E OBEDIÊNCIA À CONSTITUIÇÃO

A seguir, aborda-se, além da qualidade da responsabilidade ética e

participativa na sociedade, as situações em que o Estado faz intervenções. Neste

capítulo, tratar-se-á de um exame da motivação que leva o Estado a suas práticas

administrativas. No capítulo seguinte, este estudo será complementado pela

investigação do mecanismo de regulação, constitucionalmente previsto.

III.1. SUPREMACIA CONSTITUCIONAL E RAZÕES DE ESTADO III.1.1. Razão de Estado

Em se tratando do uso da expressão “Razão de Estado”, é preciso

levantar certa especificidade ideológica típica do uso desta expressão na Sociologia

e também na Filosofia Política. Norberto Bobbio nos propicia um levantamento

52 Gomes, Karideny Nardi Modenesi, Responsabilidade Social nas Empresas – o Caso CST, p. 15.

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histórico acerca do uso da expressão e, em vista do tema que aqui se está tratando,

tem-se de levá-lo em consideração:

Querendo resumir numa definição tão sintética quanto possível e, consequentemente, sumamente genérica e abrangente as teses da doutrina da Razão de Estado, esta tradição afirma que a segurança do Estado é uma exigência de tal importância que os governantes, para a garantir, são obrigados a violar normas jurídicas, morais, políticas e econômicas que consideram imperativas, quando essa necessidade não corre perigo. Por outras palavras, a Razão de Estado é a exigência de segurança do Estado, que impõe aos governantes determinados modos de atuar. A doutrina respectiva pode ser formulada, em seu núcleo essencial, quer como uma norma prescritiva de caráter técnico (como: ‘se queres alcançar esta meta, emprega estes meios’), quer como uma teoria empírica, que comprova e explica a conduta efetiva dos homens de Estado em determinadas condições.

53

Ou seja, a Razão de Estado surge quando se parece exigir justificativa

imediata para uma situação de emergência, em que é necessário tomar atitude

interventiva visando proporcionar certa segurança ao Estado. Essa conceituação

está ligada às origens medievais (também com base nos estudos de Maquiavel em

“O Príncipe”) e está relativizada pelo emprego da democracia nos dias atuais; mas

não se pode negar que há situações em que as Razões de Estado podem não ser

exatamente típicas do Estado, mas sim de uma facção política dele.

Observa-se que, em muitos casos, as classes políticas governantes, para derrotar a oposição, desrespeitam a legalidade, chegando mesmo ao golpe de Estado, e justificam o seu comportamento como um comportamento imposto pelas exigências de segurança interna; na realidade, estão instrumentalizando com fins partidários a Razão de Estado. Esta objeção chama a atenção para o problema real, nem sempre de fácil solução, de distinguir entre comportamentos objetivamente impostos pela Razão de Estado e comportamentos diversamente motivados, que usam como pretexto ou álibi a Razão de Estado

54.

III.1.2. Razão de Estado Democrática

Quando se trata de Estado Democrático de Direito, ocorre a regência a

partir de leis; e, no caso brasileiro, tem-se Estado Democrático Constitucional de

Direito, regido por uma Lei Suprema que é a Constituição da República. Em tal

situação, é de se observar que as Razões de Estado estão mais ligadas à execução

dos desígnios do Estado de acordo com a ordem democrática, e é de se supor que,

para que sejam legítimas Razões de Estado, devem ser congruentes com aquilo que

o ordenamento legal do Estado permite. 53 Bobbio, Norberto; Matteucci, Nicola; Pasquino, Gianfranco. Dicionário de Política. 11ª. Edição. Editora UNB, Brasília: 1998. Pág. 1066. 54 Bobbio, op. cit., pág. 1068.

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Diz Norberto Bobbio que

Mesmo nos Estados democráticos mais sólidos, em situações reais de emergência, que, por sua natureza, não podem ser juridicamente reguladas de forma completa (em última análise, necessitas non habet legem), existem situações e casos de recorrência à Razão de Estado, exatamente provocados pela necessidade de salvar o Estado democrático. Nestes casos, é usual também a expressão Razão de Estado democrática, o que indica que, perante a consciência pública, o recurso à Razão de Estado só parece justificado quando se trata de defender a segurança da forma específica de Estado que é o Estado democrático. É de constatar que, nos Estados democráticos mais sólidos, isto é, com um maior consenso ou onde falta uma consistente oposição ao regime, encontra-se na população uma maior disposição a aceitar, em momentos de aguda crise, um espaço residual para a Razão de Estado, já que não se teme que ela seja usada para fins partidários; por razões iguais e contrárias, tal disponibilidade é indubitavelmente menor nos Estados democráticos onde não há perfeita identificação com o regime democrático por parte das forças políticas mais destacadas e, conseqüentemente, por parte do povo em conjunto.

55

III.2. ORDEM PÚBLICA E INTERESSE PÚBLICO

Necessário se faz conceituar pelo menos preliminarmente algumas

expressões que estão na base da discussão que se seguirá.

Nos fundamentos do debate acerca das Razões de Estado encontram-se

as noções de Ordem Pública e Interesse Público, ambos conceitos que

doutrinariamente prestam-se a várias interpretações, nem sempre concordantes: diz

Dolinger que a característica principal da ordem pública é a indefinição, também em

função de sua natureza “filosófica, moral, relativa, alterável”.56

Não obstante, Dolinger ensaia uma noção provisória, e afirma que o

princípio da ordem pública “é o reflexo da filosofia sócio-política-jurídica imanente no

sistema jurídico estatal, que ele representa a moral básica de uma nação e que

protege as necessidades econômicas do Estado. A ordem pública encerra, assim, os

planos filosófico, político, jurídico, moral e econômico de todo Estado constituído”.57

É importante perceber a importância tremenda da ordem pública, pois ela

está no fundamento mesmo da vida social; é subjacente, portanto, a qualquer

55 Bobbio, op. cit., pág. 1069. 56 Dolinger, Jacob. Direito Internacional Privado – Parte Geral. 9ª. edição atualizada. Ed. Renovar. Rio de Janeiro, 2008. Pág. 394. 57 Dolinger, op. cit., pág. 394.

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pública imanente em certas regras de direito privado .

37

contrato em que se julgue possível pacificar os interesses – via de regra conflitantes

– das partes contratantes. Jacob Dolinger ensina que

Sabe-se que no direito interno a ordem pública funciona como princípio limitador da vontade das partes, cuja liberdade não é admitida em determinados aspectos da vida privada. Dos romanos nos chegou a regra de que privatorum conventio juri publico non derrogat, ou, em outra versão, jus publicum privatorum pactis mutari non potest, que espelha a impotência dos pactos entre os particulares para derrogar determinados princípios jurídicos que os romanos denominam de direito público e que, hodiernamente, abrangem também a ordem

58

O artigo 29, § 2º. da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma

que

No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática.

Para Flávio Knabben, “a ordem pública se materializa pelo convívio social

pacífico e harmônico, pautado pelo interesse público, pela estabilidade das

instituições e pela observância dos direitos individuais e coletivos das pessoas”.59

A observação de Dolinger supra dá pista para a compreensão do princípio

da supremacia do interesse público sobre o privado.

Neste trabalho trata-se em princípio do direito interno, aquele que diz

respeito à ordem jurídica no Brasil; e neste plano, “(...) a ordem pública funciona (...)

para garantir o império de determinadas regras jurídicas, impedindo que sua

observância seja derrogada pela vontade das partes. São, dentre outras, as leis de

proteção aos menores, aos incapazes, à família, à economia nacional e a outros

institutos civis e comerciais, que constituem, de certa forma, a publicização do direito

privado”.60

De notar, aliás, que o interesse público não exclui o privado, como

observa Celso Antônio Bandeira de Mello: “(...) é evidente, e de evidência solar, que

a proteção do interesse privado nos termos do que estiver disposto na Constituição, 58 Dolinger, op. cit. Pág. 393. 59 Knabben, Flávio. Poder de polícia: uma análise sobre fiscalização de alvarás em estabelecimentos de jogos e diversões públicas. Monografia apresentada como requisito parcial a obtenção do título de especialista no curso de Pós Graduação lato sensu em Administração de Segurança Pública. Universidade do Sul de Santa Catarina, Florianópolis: 2006, pág. 24. 60 Dolinger, op. cit., pág. 406.

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é, também ela, um interesse público, tal como qualquer outro, a ser fielmente

resguardado”.61

Bem assim que a manutenção da ordem pública é mesmo condição para

que o particular possa sentir-se garantido e resguardado, sendo o interesse público

pressuposto de uma ordem social estável.62

Com base na supremacia do interesse público sobre o privado, o órgão

público encarregado de zelar por determinada parcela do interesse público,

exprimindo-o nas relações com particulares, está em posição privilegiada, possuindo

benefícios “que a ordem jurídica confere a fim de assegurar conveniente proteção

aos interesses públicos instrumentando os órgãos que os representam para um

bom, fácil, expedito e resguardado desempenho de sua missão”.63

Dentre tais privilégios que o representante do Poder Público possui,

encontra-se “a possibilidade, em favor da Administração, de constituir os privados

em obrigações por meio de ato unilateral daquela. Implica, outrossim, muitas vezes,

o direito de modificar, também unilateralmente, relações já estabelecidas”.64

Ocorre que, quando se trata de interesse público, este é naturalmente

abarcado pelos princípios constitucionais, ao passo em que há os que dizem que o

Direito Administrativo carece de ser constitucionalizado, colocando a supremacia da

Constituição acima da supremacia de um interesse público apenas difusamente

definido.

É de se ver que, quando se coloca uma diferença entre a Constituição e o

interesse público, fala-se de uma posição na qual o Direito Administrativo baseia-se

em fórmula tradicional que necessita ser constitucionalizada – isto é, trata-se de

subtrair das práticas administrativas o ranço65 de considerar a Constituição como

mero documento de direitos políticos, com normas que não possuem aplicabilidade

imediata.

Essa é uma perspectiva que remonta, no Brasil, a Constituições e

interpretações constitucionais anteriores à Constituição de 1988 e deve ser

modificada de acordo com as implicações atuais de um Estado Democrático de

61 Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 23ª. edição, atualizada até a EC

56/2007. Malheiros, São Paulo, 2008. Págs. 68-69. 62 Mello, op. cit., pág. 69. 63 Mello, op. cit., pág. 70. 64 Mello, op. cit., pág. 70. 65 Mais do que um ranço, é coisa praticamente incabível nos dias atuais.

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Direito. O Constitucionalismo em si não prescinde da necessidade de, com Kelsen,

interpretar a Constituição como fundamento de validade de toda a ordem jurídica;66

isso equivale a dizer que ordem pública e Constituição devem ser considerados

como elementos congruentes, pois a própria Constituição não poderia subsistir, caso

não correspondesse à encarnação dos fundamentos da ordem e do interesse

(legitimamente) públicos (porque, também, eleitos segundo a decisão dos populares)

que a antecedem.

Por outro lado, um exercício simples de lógica diz que, se há Constituição

e é legítima a vontade constitucional, então a ordem pública corresponde aos

ditames da Lei Maior.

O fato de o interesse público ser difusamente definido não tira de lado o

fato de que a Constituição, necessariamente, tem de estar de acordo com a ordem e

o interesse públicos (legítimos, e a um tempo originadores e originários da própria

Constituição), sem o quê não há suficiente legitimidade (perdendo assim aquilo que

se conhece como vontade de Constituição, pois deixa de ser pelo povo e para o

povo; e aí não se está mais no Estado Democrático de Direito).67

À fórmula antiquada, por longo tempo tradicional, e no mínimo

equivocada, de que uma simples noção do interesse público pode relativizar o

mando constitucional (e em outros casos, infraconstitucional) deve se suceder a

plena compreensão de que a Constituição está acima de qualquer interesse que não

seja subordinado aos princípios constitucionais, o que equivale a dizer que, se há

interesse que de fato é público, é também constitucionalmente congruente; caso

contrário, está-se falando daquilo que Celso Antônio Bandeira de Mello aborda

quando diz que nem sempre o interesse de um órgão público traduz o interesse

público de fato: o interesse do administrador nem sempre é verdadeiramente

congruente com o verdadeiro interesse público.68

66 Barroso, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de uma Dogmática

Constitucional Transformadora. 6ª. edição. Saraiva, São Paulo: 2004. Pág. 57. 67 Uma rápida reflexão: o interesse público desemboca numa ordem pública que retroalimenta o interesse público, e isso é de tal modo cíclico que ambos originam um ao outro. Daí as normas contidas na lei fundamental de um sistema jurídico deverem corresponder à ordem e ao interesse públicos, na medida de uma legitimidade conferida por aquilo que Herman Hesse chama de vontade de Constituição. (V. Hesse, Konrad. A Força Normativa da Constituição, passim.) 68 Mello, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 25ª. ed., passim.

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Em tais casos, os mecanismos de Controle de Constitucionalidade estão

entre os elementos de que o ente, sob a administração pública, pode se servir para

opor-se legitimamente ao comando ilegal.

Uma das coisas que se exige da administração pública é, justamente,

nunca deixar de atender, em primeiro lugar, ao interesse público, que a lei demanda.

E, para atendê-lo, é mister compreendê-lo como coisa que, uma vez atingida, no

dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello, “atingiria, também, conatural e

conjuntamente, uma generalidade de indivíduos ou uma categoria deles, por se

tratar de efeitos jurídicos que pela própria natureza ou índole do ato em causa se

esparziriam inexoravelmente sobre uma coletividade de pessoas, de tal sorte que

não haveria como incidir apenas singularmente”.69

Celso Antônio Bandeira de Mello cita Eduardo García de Enterría, e eis a

tradução:

A legalidade da Administração não é assim uma simples exigência por si mesma, que pudesse derivar de sua condição de organização burocrática e racionalizada: é também, antes disso, uma técnica de garantir a liberdade. Toda ação administrativa que force um cidadão a suportar o que a lei não permite não apenas é uma ação ilegal, é uma agressão à liberdade de tal cidadão. Deste modo a oposição a um ato administrativo ilegal é, em último extremo, uma defesa da liberdade de quem resultou injustamente afetado por tal ato.

70

Não obstante, sabe-se que o Poder Constituinte originário tem

legitimidade até mesmo para determinar efeitos retroativos sobre lei anterior,

embora, neste caso, tenha de ser comando feito por determinação explícita no texto

constitucional.71 Neste caso, porém, é diante da Lei Suprema que se encontra o

intérprete; e, se este se encontra no Estado Democrático de Direito, não há o que

criticar a respeito daquilo que a Constituição determina.

Veja-se Marçal Justen Filho a respeito da necessidade de

Constitucionalizar o Direito Administrativo:

69 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 25ª. Edição, Malheiros Editores, 2008, pág. 63. 70 Celso Antônio Bandeira de Mello, op. cit., págs. 63-64. 71 Barroso, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional, 2ª. Edição, pág. 302.

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Trata-se de impregnar a atividade administrativa com o espírito da Constituição, de modo a propiciar a realização efetiva dos direitos fundamentais e valores ali consagrados. É fundamental dotar o País de uma Constituição, mas isso não basta para produzir um Estado democrático ou a realização dos valores desejados. A transformação concreta da realidade social e sua adequação ao modelo constitucional dependem primordialmente do desenvolvimento de atividades administrativas efetivas. O enfoque constitucionalizante preconizado consiste em submeter a interpretação jurídica de todas as instituições do direito administrativo a uma compreensão fundada concreta e pragmaticamente nos valores constitucionais. A supremacia da Constituição não pode ser mero elemento do discurso político. Deve constituir o núcleo concreto e real da atividade administrativa. Isso equivale a rejeitar o enfoque tradicional, que inviabiliza o controle das atividades administrativas por meio de soluções opacas e destituídas de transparência, tais como ‘discricionariedade administrativa’, ‘conveniência e oportunidade’ e ‘interesse público’. Essas fórmulas não devem ser definitivamente suprimidas, mas sua extensão e importância têm de ser restringidas à dimensão constitucional e democrática.

72

Daí que a atuação da Administração Pública deve ser plenamente

congruente com a Constituição, caso no qual será também coerente com a ordem

pública; em tal caso, aquilo que se conhece como supremacia do interesse público

sobre o privado é uma decorrência da supremacia constitucional sobre o

ordenamento jurídico, todo ele e não, convenientemente, partes do mesmo.

A interpretação e aplicação da Constituição exigem uso de cuidadosa

hermenêutica que leva em conta vários fatores; e cabe fazer com que seja

adequada a atuação da Administração Pública à Hermenêutica Constitucional, sem

o quê não se pode conceber um ato administrativo como cumprimento por Razões,

efetivamente, de Ordem Pública. Em tais casos, o uso da expressão “Razões de

Estado” não será compatível com as “Razões de Ordem Pública”, e o ato

administrativo estará eivado de inconstitucionalidade.

Ademais, as “Razões de Estado”, caso também sejam de Ordem Pública,

têm a seu encargo a proteção dos direitos fundamentais – isto é, não se pode

suprimi-los (Cláusula de Proibição de Retrocesso,73 resultante do cotejo entre os

arts. 1º. e 3º. da Constituição, tendo adicionalmente a proibição de supressão dos

direitos fundamentais expressa pelo § 4º. do art. 60 da Constituição da República), 72 Justen Filho, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4ª. edição. Saraiva, São Paulo: 2009, pág. 15. 73 Sobre o tema ver Fileti, Narbal Antônio Mendonça. O princípio da proibição de retrocesso social. Breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2059, 19 fev. 2009. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/12359>. Acesso em: 24 mar. 2011 às 14h37. Para Luís Roberto Barroso (in O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, 9ª. ed., Renovar, Rio de Janeiro, 2009, pág. 152), chama-se “(...) vedação do retrocesso. Por este princípio, que não é expresso mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da (cont.)

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embora, dentro de certos limites, seja possível restringi-los (e isso não pode se dar

ao livre arbítrio do Administrador Público ou de outro qualquer com interesse em, de

maneira excusa, suprimir direitos fundamentais).

Os Direitos Fundamentais são, eles próprios, limitações à Administração

Pública, que tem os Três Poderes, em sua harmonia e com o sistema de freios e

contrapesos preconizado pelo Direito Constitucional, por um lado limitados e, por

outro, enobrecidos pela necessidade de garantir os direitos fundamentais de acordo

com os princípios que regem a solução de conflitos aparentes de normas.

Quando se fala sobre pontos em que o cumprimento de contratos entra

em conflito com as razões de Estado, está-se falando das diferenças entre direito

público e direito privado, colocando em lados – neste caso, relativamente opostos –

da balança o Direito Administrativo e o Direito Civil, via de regra com seus aspectos

Empresarial e/ou74 Comercial, e precisa-se tratar tanto da constitucionalização do

direito privado quanto do impacto da presente vertente do Constitucionalismo,

chamada às vezes de Neoconstitucionalismo, sobre o Direito Administrativo.

Luís Roberto Barroso considera, com relação aos direitos fundamentais e

à constitucionalização do direito privado, que “o ponto de vista da aplicabilidade

direta e imediata afigura-se mais adequado para a realidade brasileira e tem

prevalecido na doutrina e na jurisprudência”.75 Tal eficácia se dá “mediante um

critério de ponderação entre os princípios constitucionais da livre iniciativa e da

autonomia da vontade, de um lado, e o direito fundamental em jogo, do outro lado”.76

Ricardo Marcondes Martins recebe a constitucionalização do direito

privado comentando sobre a relatividade de seus termos; de como, por exemplo, o

direito à liberdade é restrito pela função social preconizada pela supremacia da

Constituição, admitindo, de resto, um direito à liberdade relativo, e uma

cidadania e não pode ser arbitrariamente suprimido”. Entre os defensores da ideia encontram-se os festejados Professores Ingo Wolfgang Sarlet e José Joaquim Gomes Canotilho. 74 Não se está com isso dizendo que Direito Empresarial e Direito Comercial são a mesma coisa – nem é intenção entrar nessa polêmica. Apenas observa-se que as noções de empresário e comerciante são diferentes no tempo e no espaço, inclusive por ocasião das situações jurídicas que tratam de tais termos na atualidade. O Prof. Fábio Tokars, entre outros, trata bem da questão em sua obra Primeiros Estudos de Direito Empresarial, LTr, São Paulo: 2007, pág. 19. Sem, porém, encarar a situação com muito rigor, Direito Empresarial e Direito Comercial são dois lados da mesma moeda. 75 Barroso, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 2ª. edição. Saraiva, São Paulo: 2010, pág. 372. 76 Barroso, ibid. pág. 372.

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constitucionalização do direito privado que, a partir de certo ponto, obriga não

apenas o público, mas também o particular, a concretizar o interesse público:

Por óbvio, os particulares não são obrigados, ao contrário da Administração Pública, a concretizar o interesse público. Não são obrigados a concretizar o princípio mais pesado, no caso concreto, na medida exata exigida pelo sistema. Possuem uma ‘zona livre’. Nessa zona, o sistema admite o afastamento, até um determinado grau, dos princípios incidentes. Vigoram o princípio da liberdade individual e, em decorrência dele, o princípio da autonomia privada; mantém-se a prerrogativa de reger (mais do que administrar) a própria esfera jurídica, vale dizer, de decidir ‘livremente’ qual princípio concretizar e até que ponto fazê-lo. Sem embargo, hoje os particulares são obrigados a concretizar o interesse público ao menos numa certa medida. A partir de um determinado limite não há mais liberdade de escolha, não há mais liberdade individual e autonomia privada, os particulares passam a ser obrigados a concretizar o interesse público. 77

Há a Constitucionalização do direito privado, mas também há o fato de

que a primazia da Constituição é sobre todo o ordenamento. No caso do direito

público a primazia da Constituição se traduz, pelo menos em parte, na supremacia

do interesse público sobre o privado.

A supremacia do interesse público sobre o privado, portanto, não apenas

é basilar ao Estado, como também é regida constitucionalmente (pois há a função

social da propriedade a relativizar o direito – antes tido como absoluto – de

propriedade; a livre concorrência e a busca pelo pleno emprego são mitigados e

relativizados pela redução das desigualdades regionais e sociais; a livre iniciativa é

relativizada pela proteção ao meio ambiente, e por aí vai).78

Pelo art. 37 da Constituição Federal, em seu caput, tem-se a informação

de que os princípios regentes da Administração Pública são os da legalidade,

impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Naturalmente, qualquer ato da

Administração Pública que contrariar, em parte ou no todo, quaisquer deste

princípios, estará sob a suspeita de contrariar a Ordem Pública, de modo tal que,

numa primeira análise, alegada Razão de Estado para o cometimento de tal espécie

de ato trata-se de ilegitimidade. 77 Martins, Ricardo Marcondes. Abuso de Direito e a Constitucionalização do Direito Privado.

Malheiros, São Paulo: 2010, pág. 116. 78 Os comentários entre parênteses se referem exclusivamente ao art. 170 da Constituição Federal, apenas para mostrar que há em toda a Constituição circunstâncias que não apenas incluem, afirmando e reafirmando direitos fundamentais, mas também há a relativização dos mesmos dependendo da situação em que são considerados.

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Evidente, também, que o ato cometido sem respaldo da legalidade não

merece ser considerado como Razão de Estado típica da proteção à Ordem Pública;

é um disparate, uma impostura, cometer qualquer ato que não se revista de mando

legal; de tal modo que, se aos particulares aquilo que não é proibido pode ser feito,

ao administrador público é negado qualquer ato que não seja legalmente autorizado,

é obrigatório todo ato legalmente preconizado, e o espaço de permissão facultativa

para os atos do administrador é bastante restrito e ocorre dentro dos limites

legalmente estabelecidos para sua atuação.

Se entre particulares já paira a constitucionalização do direito privado,

quando se trata de negociar com a Administração Pública há, pois, muito maior peso

do interesse público sobre o contrato, subordinando seu cumprimento de modo bem

mais restrito do que ocorre em geral no cotidiano dos particulares.

O Supremo Tribunal Federal, desde o advento da atual Constituição,

amadureceu79 paulatinamente seu entendimento a respeito do caráter democrático

da interpretação conforme à Constituição, trazendo observações pertinentes

relativas às Razões de Estado. Veja-se:

Leis de ordem pública – Razões de Estado – Motivos que não justificam o desrespeito estatal à Constituição – Prevalência da norma inscrita no art. 5º, XXXVI, da Constituição. A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro. Razões de Estado – que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo – não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição. As normas de ordem pública – que também se sujeitam à cláusula inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta Política (RTJ 143/724) – não podem frustrar a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade.

80

79 Há críticas a respeito da atuação do STF em termos de Jurisdição Constitucional; não se pretende

abordá-las neste modesto trabalho, mas dentre alguns dos examinadores (a quem se remete o leitor) da questão encontram-se Luís Roberto Barroso (entre outros trabalhos: Temas de Direito Constitucional, Tomo I, Doze anos da Constituição Brasileira, Renovar, 2002 e O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, 9ª. edição, Vinte anos da Constituição Brasileira de 1988: O Estado a que Chegamos, Renovar, 2009) e Francisco Gérson Marques de Lima (O STF na Crise Institucional Brasileira, Malheiros, 2009). Note-se porém, que o amadurecimento da Interpretação Constitucional na sociedade faz parte da consolidação do processo democrático e que hoje as instituições que protegem a democracia estão muito mais fortes do que há 20 anos, e essa força se reflete nos agente públicos de hoje em comparação com os de há vinte anos: mesmo quando são os mesmos, suas atitudes exibem certas mudanças, privilegiando com mais firmeza os princípios constitucionais e, com estes, os direitos fundamentais. Exemplo típico disso é a reforma que se fez, por via da Emenda Constitucional 32/2001 (proibindo explicitamente o sequestro de ativos financeiros, entre outras coisas), limitando o poder do Presidente da República quanto à emissão de Medidas Provisórias.

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Não é outra, aliás, a compreensão de Luís Roberto Barroso (que aliás cita

o trecho acima em sua obra) acerca do tema, concluindo, entre outras coisas, que

“(...) as razões de Estado e as leis de ordem pública não exoneram a atividade

legislativa da observância da proteção constitucional do art. 5º, XXXVI (...)”.81

De modo geral a própria expressão “Razão de Estado” já é percebida de

modo negativo – por sua história, em virtude dos usos a que remonta, como se pode

ver consignado pelo Ministro Celso de Mello:

O Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez, teve o ensejo de repelir esse argumento de ordem política (RTJ 164/1145-1146, Rel. Min. Celso de Mello), por entender que a invocação das razões de Estado – além de deslegitimar-se como fundamento idôneo de impugnação judicial – representaria, por efeito das gravíssimas consequências provocadas por seu eventual reconhecimento, uma ameaça inadmissível às liberdades públicas, à supremacia da ordem constitucional e aos valores democráticos que a informam, culminando por introduzir, no sistema de direito positivo, um preocupante fator de ruptura e de desestabilização.

82

Pela leitura do trecho acima, vê-se que a simples menção às Razões de

Estado já enseja certa indisposição contra o que por meio da expressão se justifica,

de modo tal que o exame que se seguirá visa determinar, antes de mais nada, se há

congruência com a ordem constitucional – caso contrário, não pode prevalecer a

Razão de Estado como argumento justificador de qualquer espécie de intervenção

do Estado na vigência de um Estado Democrático de Direito.

III.3. OBEDIÊNCIA À CONSTITUIÇÃO

Luís Roberto Barroso ensina que o constitucionalismo, na prática, é a

única alternativa verdadeiramente democrática, em oposição franca a três escassas

alternativas: unipartidarismo (onde “o” Partido detém o poder), fundamentalismo

(onde “a” Religião detém o poder) e militarismo (onde, como no caso brasileiro, as

80 RTJ 164/1145, Rel. Min. Celso de Mello. 81 Barroso, Luís Roberto, Temas de Direito Constitucional, Tomo I, 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pág. 304. O inc. XXXVI do art. 5º. da CF diz: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Qualquer tentativa, portanto, de prejudicar o ato jurídico perfeito (caso da quebra dos contratos celebrados entre público e particular) é coisa que, se não preconizada pela Constituição em exceção própria (como ocorre ao se observar os preceitos do art. 37 da CF), não pode ser admitida pela lei. As exceções devem ser constitucionalmente previstas, sob pena de contrariar o comando constitucional.

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Forças Armadas dizem o que é bom para um país).83 O Constitucionalismo mostra-

se como “a melhor opção de limitação do poder, respeito aos direitos e promoção do

progresso”.84

Não cabe ao Estado, ao mesmo tempo patrocinador, encarregado e

beneficiário da Ordem Pública, ir além dos limites que se estabelecem pelo

ordenamento jurídico – que em sentido estrito se traduz na parcela da Ordem

Pública que está concretizada de maneira positiva, sendo, no sentido amplo, grande

parcela da própria Ordem Pública, senão ela mesma;85 de modo que as Razões de

Estado também estão submetidas a vários mecanismos de controle – dentre eles, o

Controle de Constitucionalidade previsto pela Constituição Federal.

O Constitucionalismo tem como fundamento básico o fato de que a

Constituição é a lei suprema de um país; quando, ademais, caracteriza-se por ser

alterável somente mediante “processos, solenidades e exigências formais especiais,

diferentes e mais difíceis que os de formação das leis ordinárias ou

complementares”,86 diz-se que a Constituição é rígida. Observe-se o que diz José

Afonso da Silva:

Como lei superior, a Constituição encontra seu fundamento no princípio da rigidez, do qual deflui, como primordial corolário, o princípio da supremacia constitucional. Essa supremacia é que fundamenta a validade das normas infraconstitucionais e requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição. Essa conformidade com os ditames constitucionais, agora, não se satisfaz apenas com a atuação positiva de acordo com elas. Exige mais, pois omitir providências necessárias à aplicação de normas constitucionais constitui também conduta desconforme com o princípio da supremacia.

87

Todas as normas, portanto, devem obediência à Constituição; e qualquer

ato que a afronte é inconstitucional, podendo88 ser atacado mediante Controle de

82 DJU 07.12.2000, RE-AgR 263.831, Rel. Min. Celso de Mello, p. 1994. Ajustes ortográficos

promovidos a bem da clareza, durante a transcrição. 83 Barroso, Temas de Direito Constitucional (...), pp. 37-39. 84 Barroso, Temas (...), p. 37. 85 Neste caso incluiremos na noção de ordenamento jurídico a moral e a cultura vigentes, o que não é praxe – por isso nos referimos de modo geral ao sentido restrito de ordenamento jurídico como sendo esse conjunto de normas positivas, situação em que o ordenamento jurídico é uma parcela da Ordem Pública, tida esta em sentido amplo e reconhecidamente mutável em amplitude, significação e abrangência. 86 Silva, José Afonso da. Um Pouco de Direito Constitucional Comparado: Três Projetos de Constituição. Malheiros, São Paulo: 2009, p. 124. 87 ibid., p. 124. 88 A rigor, dever-se-ia dizer, neste trecho, devendo ser atacado, para ser coerente com o que aqui mesmo se apresenta; mas, como nem sempre isso acontece, e este espaço seria demasiado pequeno para discutir este trecho, deixou-se o “podendo”, com a presente ressalva.

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Constitucionalidade, que pode ser concentrado (atacando por via direta a

inconstitucionalidade de emenda constitucional, lei ou dispositivo infralegal) ou

difuso (atacando por via indireta e incidental a inconstitucionalidade de emenda

constitucional, lei ou dispositivo infralegal),89 tendo como claro que o controle

concentrado relativamente à Constituição Federal só é possível através do STF.

A supremacia constitucional obriga a compreender que qualquer ônus que

tenha de ser suportado, tanto pública quanto particularmente, desde que obediente à

Constituição, é ônus necessário e inevitável – pois assume-se que necessário para a

manutenção de uma ordem estabelecida a partir da Constituição.

Fora destes termos, encontra-se o que se abordou acima: “Razões de

Estado” que não correspondem de fato àquilo que o Estado deveria fazer em prol

dos seus. Trata-se a seguir de condições em que as “Razões de Estado” são,

também, “Razões de Ordem Pública” e correspondem a “Razões Constitucionais”,

isto é, obedecem à Constituição e, em o fazendo, preservam a sociedade de males

maiores.

Há dois tipos de soluções que se divisa aqui com relação ao cumprimento

(ou não) de contratos entre Estado e particulares: (a) as soluções

constitucionalmente previstas para a intervenção no cumprimento dos contratos por

via extraordinária, e tais se dão em, basicamente, três modalidades; (b) as soluções

tipicamente administrativas – tal e qual subordinadas à Constituição, mas que se dão

mediante a modificação e/ou extinção de contratos administrativos, tendo por base

os princípios que os norteiam e que, muitas vezes, estão previstos nas cláusulas

contratuais típicas do contrato administrativo.

III.3.1. Soluções constitucionalmente previstas (via extraordinária)

As soluções previstas no bojo da Constituição são dotadas de natureza

especial que permite, obedecendo à Lei Suprema, tomar ações que não se

89 A esse respeito, entre outros, podemos consultar José Afonso da Silva, op. cit., pág. 124 e

seguintes; e também do mesmo autor, Curso de Direito Constitucional Positivo, 27ª. ed., Malheiros, São Paulo: 2006 (pág. 46 e seguintes); também, entre muitas outras obras, a de Luís Roberto Barroso, O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, 4ª. ed., Saraiva, São Paulo: 2009. A lista é grande e tememos não sermos capazes de enumerá-la adequadamente, mas tratamos neste rodapé de dar um ponto de partida.

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submetem diretamente ao processo legislativo tradicional (aquele de criação das leis

ordinárias e complementares). Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello,90

, são de

três tipos: as medidas provisórias; as medidas de administração típicas do estado de

defesa; as medidas de administração típicas do estado de sítio.

III.3.1.1. Medidas Provisórias

As medidas provisórias estão previstas no art. 62 da Constituição Federal,

e foram limitadas, como se comentou acima, pela Emenda Constitucional 32/2001,

precisamente para evitar que se consiga aspecto de legalidade para “Razões de

Estado” que não se sustentem como Razões de Ordem Pública quando submetidas

a exame mais atento.

Uma vez expedidas, devem imediatamente ser submetidas ao exame do

Congresso Nacional; e, além das vedações constitucionalmente impostas à edição

das Medidas Provisórias, é absolutamente necessário que preencham os requisitos

de relevância e urgência de modo a serem admitidas. Em que pese que relevância e

urgência são conceitos relativos, atualmente há restrições importantes. As MPs

possuem força de lei, equiparando-se, portanto, à lei ordinária.

As restrições impostas pelos parágrafos do art. 62 restringem o regime de

excepcionalidade da edição da medida provisória tanto no tempo quanto em relação

à matéria, evitando que o Presidente da República tenha demasiado poder – de

modo a intervir na ordem pública e causar estragos de tal monta que o custo de

correção dos problemas assim gerados não seja demasiado alto, como foi o caso do

Plano Brasil Novo, em que houve avalanche de ações abarrotando o Poder

Judiciário, além da geração de uma insegurança econômica e jurídica cujos efeitos

ainda se fazem sentir em nosso país, na psicologia própria do empresariado e dos

populares.

90 Mello, op. cit., págs. 126 e seguintes.

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III.3.1.2. Estado de Defesa e Estado de Sítio

Nos casos de Estado de Defesa e Estado de Sítio, a característica da

concessão de poder é diferente daquela típica da medida provisória. Nestas

condições, o Estado está mais seriamente ameaçado em sua condição de

permanência, e o legislador optou por delegar ao Presidente da República mais

poderes – escalonando conforme a gravidade específica do estado a que se

submeter a República, seja de Defesa (menos grave) ou de Sítio (de gravidade

extrema, como no caso de decretação de guerra).

Em ambos os casos, os direitos fundamentais sofrem restrição. Estão

previstos no Capítulo I do Título VI da Constituição Federal, e as disposições que

regulam tais estados (de defesa e de sítio) vão dos artigos 136 a 142 da Lei

Suprema.

A restrição de direitos fundamentais já denota casos especialíssimos, de

ocorrência plenamente imprevista, cujas necessidades apontam para um mal menor

– restrições – contra a supressão plena de liberdades que são confiadas ao Estado

para que, em condições normais restabelecidas, o Estado mesmo as preserve,

restauradas as condições usuais do Estado Democrático de Direito.

Ressalte-se que nestes casos o Estado Democrático de Direito continua a

sê-lo, desde que observadas as restrições constitucionais tipificadas nos artigos em

tela, sobre as quais não se discorrerá no âmbito deste trabalho.

Exige-se, para a decretação tanto do estado de defesa quanto do estado

de sítio, o permissivo do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional;

no caso de estado de sítio (também em virtude da gravidade da situação), o

Congresso Nacional deverá autorizar sua decretação.

Em caso de não-ratificação pelo Congresso quanto ao estado de defesa,

findada estará tal situação e restabelecida a normalidade.

Quanto ao estado de sítio, o Congresso Nacional permanece em

funcionamento até o término das medidas coercitivas (art. 138, § 3º), também como

garantia explícita da preservação da ordem democrática.

Veja-se que, para decretar os estados de defesa e de sítio, há diferenças

no procedimento de legitimação, proporcionais à gravidade da situação; mas em

ambos os casos a presença do Congresso Nacional paira sobre o ato que autoriza o

Presidente da República a proceder – no caso menos grave, o estado de defesa

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deve ser ratificado; no caso mais grave, a decretação do estado de sítio deve ser

autorizada. Não obstante, sobre os atos Presidente da República pousa o olhar

fiscalizador da Democracia, através do Poder Legislativo; o contrário disso teria

precisamente os ares de golpe de Estado, coisa da qual a história brasileira se

ressente.

III.3.2. Soluções tipicamente administrativas

Tais soluções, como acima se expôs, caracterizam-se por estar dentro

dos limites aplicáveis pelas cláusulas especiais do contrato administrativo, isto é,

pairam sobre elas as soluções típicas dos contratos de direito privado, onde

couber;91 e, adicionalmente, os contratos administrativos estão submetidos aos

princípios do Direito Administrativo, que permitem, por exemplo, atos unilaterais por

parte da Administração Pública.

Tal unilateralidade, se respeitar a legalidade e os demais princípios da

Administração Pública (principalmente aqueles derivados da Constituição), não pode

ser considerada mais do que, eventualmente, um prejuízo necessário que a pessoa

(física ou jurídica) sob os auspícios da administração pública deveria, supõe-se, ter

mecanismos para prever.

Essa possibilidade de previsão (baseada na soma das disposições

legalmente aplicáveis e das cláusulas específicas do contrato) assume de resto que

Administrador e Administrado estão cientes daquilo sobre o que se estabelece o

contrato, havendo, mesmo, mecanismos legais para minimizar qualquer impacto

negativo que o administrado venha a sofrer, caso a lesão por este sofrida não seja

de sua exclusiva responsabilidade.

Celso Antônio Bandeira de Mello, entre outros autores, contribui com

extenso estudo a respeito deste assunto em seu Curso de Direito Administrativo,92

em particular no capítulo X – O Contrato Administrativo, e de modo geral a obra

inteira propõe mecanismos para refletir de modo aprofundado acerca do contrato

administrativo. 91 Isto é, onde as condições são típicas do direito privado. 92 Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 23ª. edição, atualizada até a EC 56/2007. Malheiros, São Paulo, 2008..

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A seguir, expõem-se considerações sobre outra dinâmica de controle

sobre a atividade privada exercida pelo Estado, a regulação.

IV. BREVES CONSIDERAÇÕES QUANTO À DINÂMICA DO PODER

REGULATÓRIO NA ATIVIDADE ECONÔMICA

IV.1. ANÁLISE DE FÁBIO COMPARATO

No epílogo a sua obra A Afirmação Histórica dos Direitos

Humanos,93 o Professor Comparato discorre acerca da necessidade atual, muito

presente, de transformar as instituições mundiais para estabelecer democracias de

fato e não farsas quase que exclusivamente voltadas para o atendimento de

interesses econômicos capitalistas.

Na crítica que expõe, Comparato apresenta o mito de

Prometeu e Epimeteu – o que pensa antes e o que pensa depois, o previdente e o

imprevidente. A conclusão que mostra é estabelecida através da dinâmica entre

Zeus e Hermes, quando o primeiro manda o segundo levar aos homens as noções

de justiça e dignidade pessoal, não sem, contudo, dar por igual, a todos, a condição

de saber político imprescindível à vida em sociedade. Recomenda, por último, que

se institua a pena de morte para aqueles incapazes de governar, pelas

consequências catastróficas que seus atos representam para seus governados.

Como é mito, tem-se que há de fato – e vive-se triste epidemia

– governantes incapazes de fazer significativo bem à coletividade. E Comparato

atribui grande parte disso ao capitalismo e sua forma devoradora em que engole os

seres humanos para dar posse, sobre tudo e todos, ao capital.

Comparato não fica apenas no mito: mostra números e

estatísticas sem dúvida alarmantes, que levam a concluir pelo tremendo dissabor

presente na estrutura capitalista atual, em que a democracia de modo geral é uma

93 Comparato, Fábio K. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3ª. Ed. de 2003, revista e ampliada, Ed. Saraiva.

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farsa de representação que, comumente, tem levado a tragédias políticas e sócio-

econômicas.

Atestando que o homem tornou-se, no Século XX, “senhor e

possuidor da natureza”, ainda parafraseando Descartes, Comparato adverte para o

perigo da autodestruição da humanidade – perigo esse sobre o qual também se

adverte em outra obra, por Ulrich Beck, em sua Sociedade de Risco.

Há uma percepção evidente de que a humanidade se encontra

em uma senda que demanda resposta imediata. O que foi protelado durante

décadas agora exige solução de pronto, pois a natureza dá sinais do desgaste em

que se encontra, e a sociedade encontra-se em dificuldades extremas para suportar

o descompasso nas relações sociais e políticas na atualidade, enquanto os

governantes parecem não estar interessados em mudanças efetivas, capazes de ir

além do simples protelar de uma situação em que há lucro excessivo para uns

poucos detentores do capital, enquanto bilhões sofrem. Destes, grande parcela sofre

terrivelmente as agruras da fome, da doença, da miséria levada a extremos, coisas

que (assim é preferível pensar) nunca antes se imaginou que aconteceriam em tal

escala.

Corriqueiramente, fala-se em um domínio da natureza

enquanto se evidencia um descontrole dela própria – e também se percebe a ficção

em se imaginar senhor da natureza, quando os terremotos, os maremotos e o

desequilíbrio ecológico estão na porta das casas: veja-se as nevascas no Hemisfério

Norte, os terremotos e maremotos tropicais, as enchentes nas grandes cidades

brasileiras; incêndios nas florestas do Hemisfério Norte, destruição por tremores de

Terra no Japão e no Haiti (este com um milhão de mortes no mais recente

terremoto). Os governos pensam-se senhores, mas não o são,94 e os governantes,

por vezes, mal têm condições de se declararem senhores de si, já que, de fato, não

são, sequer, daquilo que, sob pretexto, governam.

Não obstante, é um caos que está aí (e muitos não sabem ao

certo como chegaram a este ponto, dando explicações, por vezes, estapafúrdias ao

ponto de serem calamitosas), e é preciso tratar com ele.95

94 Governo e governantes são representantes. São senhores apenas enquanto a delegação de poder

a eles dada durar. Caso contrário, são tiranos. 95 Tal afirmação dificilmente carece de demonstração. É comparar os noticiários e os avisos dados por inúmeros cientistas ao longo dos últimos cinquenta ou setenta anos (para não citar sociedades de (cont.)

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Deste modo, o Prof. Comparato expõe a alternativa de

estabelecer uma democracia mundial, um governo democrático a partir das

estruturas já existentes, presentes na Organização das Nações Unidas.

Lembra o Agamenon de Ésquilo ao criticar a minoria opulenta:

“O desastre (...) é filho das ousadias temerárias dos que se comprazem no orgulho

desmedido, quando suas casas transbordam de opulência”.96

A psicologia, principalmente a junguiana (de Carl Gustav

Jung)97 tem muito a dizer a respeito disso: típico do indivíduo que se encontra sob

domínio de uma certeza patológica de sua própria infalibilidade diante das coisas, a

“hybris” encontra em si mesma a semente da ruína daquele que por ela se deixa

dominar. É o caso da opulência cega que deixa uma imensidão na indigência e

escraviza bilhões de pessoas: seu destino está traçado em si mesmo.

Porém, Comparato quer crer que é possível mudar; diz que

ainda é tempo. Encontra a aurora no estabelecimento de um governo mundial.

Uma conversa com os próprios botões poderia gerar dúvidas a

respeito disso. É que a estrutura atual demanda muitas mudanças – o próprio

Comparato as enumera em parte, considerando a necessidade de dar poderes ao

órgão econômico e social da ONU e a ele subordinar FMI, Banco Mundial e OMC;

também fala da necessidade de mudar o sistema de veto do Conselho de

Segurança, e estas são apenas duas das mudanças substanciais que não se vê

acontecer no mundo.

Talvez um único governo mundial não seja de fato a solução.

Dois, talvez; três, talvez mais idealmente (pois aí se estabelece uma dialética, coisa

difícil em um governo único). É que um só governo seria algo difícil de encarar como

base cultural diferente da Ocidental), a respeito do desgaste dos recursos naturais, da necessidade

de desenvolver valores, da importância de erradicar a pobreza, de cuidar da saúde, da educação, do trabalho, da moradia. Olhando tais acontecimentos, a impressão que se tem é que o ser humano é surdo, cego e louco; e, por vezes, é bem assim. Hoje muitos colocam as mãos na cabeça e se perguntam: “como foi que chegamos neste ponto”? Mas isso tem história, e, se o ser humano não quiser admitir, ao menos, sua inépcia na escolha de seus governantes, tem de admitir que há um fator psicológico, que Jung e Freud chamaram inconsciente, que interfere nas escolhas, tanto individuais quanto coletivas, e atrapalha todo o processo pelo qual a sociedade pretende passar no caminho do desenvolvimento. Olhando a história, a filosofia e o direito, em certa medida é possível compreender como se chegou a isso; mas raramente é possível aceitar que se tenha chegado a isso sem que se tivesse indícios de maneiras pelas quais se poderia escapar às catástrofes hoje vividas em larga escala. 96 Comparato, op. cit., p. 551. 97 Jung, Carl Gustav. Obras Completas. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes. Obra em 18 Volumes.

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coisa efetivamente capaz de atender a todas as necessidades em todas as partes.

Se o Constitucionalismo, em seu estágio atual, não é capaz de fazer com que os

Estados de Direito que se conhece – quer se crer, dentre eles, democraticamente, o

Brasil – sejam capazes de autogoverno efetivo, tem-se que reconhecer a

perniciosidade do capitalismo, mas também se tem que admitir, junto com

Comparato, que a democracia é a única forma de organização política que pode

assegurar o “respeito integral à dignidade humana”.98

Porém, sob a batuta atual das Nações Unidas, um governo

mundial seria o lugar onde a imensa maioria não tem direito a voto nenhum. As

alterações sugeridas por Comparato, ademais, não parecem a solução ideal. Por

exemplo, quando diz que “o peso demográfico não pode deixar de ser levado em

consideração na regulação do sufrágio”,99 é preciso, democraticamente, discordar: a

China, com seus dois bilhões e tanto de habitantes, teria praticamente um terço dos

votos. Com isso os EUA, com sua política de dominação capitalista, nunca

concordariam – isso se a China se tornasse de fato um Estado Democrático de

Direito.

Não se tem, aliás, como considerar a China um Estado

Democrático, embora também seja difícil considerá-la como um comunismo estrito

nos dias de hoje. As dificuldades, neste argumento, são demasiadas – há

demasiada quantidade de corações endurecidos nesse ínterim em que importa a

capacidade de reconhecer as próprias limitações.

O argumento a seguir relembra o texto de Comparato e fala da

presente indignação. A grande – maior – parte da produção mundial, hoje, vem da

China. Os chineses comem baratas, aranhas, intestinos de frango, carne de

cachorro. Comem o que aparece pela frente, apenas para se manterem vivos. Em

contraste, o conforto relativo vivido por uma parcela da sociedade norteamericana é

pago com o suor de muitos povos. E a opulência dos mais ricos do mundo, com toda

certeza, é aviltante, como demonstra Comparato ao falar sobre o imposto de 1%

sobre a fortuna dos duzentos mais ricos do mundo como forma de custear a

educação primária de “todas as crianças em idade escolar do mundo inteiro”.100

98 Comparato, op. cit., p. 546. Que se pense, aliás, do que se trata esse “asseguramento”. 99 Comparato, op. cit.,, p. 547. 100 Comparato, op. cit.,, p. 530. Paradoxalmente, hoje a China produz praticamente tudo, para o mundo todo, que compra; e parar de comprar, a essas alturas, parece temerário.

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Por que, então, não se cria o imposto sobre as duzentas

maiores fortunas do mundo, como propõe Comparato? Parece que seria mais fácil

do que alterar e fazer cumprir a Carta da ONU. Poder-se-ia, até, descobrir que um

imposto de 3% ou 4% sobre, talvez, as mil maiores fortunas do mundo, poderia se

revelar em fonte de solução de uma série de problemas que, antes agudos, hoje são

crônicos na sociedade mundial.

A indagação sem resposta justifica a necessária atividade

regulatória do Estado sobre a economia, visando a concretização constitucional e

dos Direitos Humanos, viabilizadores de uma economia solidária e sustentável.

IV.2. ANÁLISE DE ANTONIO ENRIQUE PEREZ LUÑO101

Assinalando a grande equivocidade presente na expressão

direitos humanos, Perez Luño distingue três tipos de definições de direitos humanos:

1) tautológicas (circulares, sem elementos novos); 2) formais, que indicam o estatuto

desejado ou proposto de tais direitos, mas não especificam seu conteúdo;

3) teleológicas, em que se apela a valores suscetíveis de diversas interpretações.102

Daí Perez-Luño sublinha a importância da crítica da linguagem

– no interesse de refinar as ambiguidades e promover o entendimento das

diferenças plurais contidas no uso dos termos. Cita Bentham, observando que há

termos sobre os quais se pensa haver acordo, quando, no entanto, há grande

número de acepções distintas em seu uso.103

Então Perez-Luño propõe definir os limites linguísticos da

expressão “direitos humanos”, procurando distinguir os objetos de que a expressão

trata daqueles que não podem sê-lo, e fixar o contexto dentro do qual os direitos

humanos têm significado, afirmando que, para isso, é preciso reconstruir a história

do conceito e sua função.104

101 Perez-Luño, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho Y Constitucion. 8ª. Ed,

Tecnos, págs. 21 a 184. 102 ibid., p. 25. 103 ibid., p. 27-28. 104 ibid., p. 28-29.

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Traça distinções: direitos humanos não são direitos naturais, a

não ser para os jusnaturalistas (de modo algum para os juspositivistas).105 Explica

que os direitos fundamentais são aquela parcela dos direitos humanos positivados

nas Constituições.106 Quanto à relação entre direitos humanos e direitos subjetivos,

considera que, se os últimos são expressão de todos os atributos da personalidade,

então os primeiros são um subconjunto dos segundos; no entanto, se os direitos

subjetivos são vistos como prerrogativas que dão origem a situações especiais e

concretas (caso no qual não incluem os direitos de personalidade) em proveito de

particulares, já não há congruência entre as expressões.107

Ao tratar de direitos individuais, Perez-Luño deixa claro que

não se pode considerar os direitos humanos como sinônimo daqueles, pelo fato de

que aí não se considera a sociabilidade típica do ser humano.108

O mesmo autor explica que, historicamente, os direitos

humanos têm como antecedente imediato “a noção dos direitos naturais em sua

elaboração doutrinal pelo jusnaturalismo racionalista”,109 e o surgimento dos direitos

humanos se dá pela subjetivação dos direitos naturais, o que procura demonstrar

citando diferentes filósofos e estudiosos do jusnaturalismo.

Não obstante, Perez-Luño informa que o uso plural da

expressão “direitos humanos” é visto com reprovação por Maritain,110 que afirma que

a inadequação do uso da expressão levou à descrença geral com relação à mesma.

Para lidar com as ambiguidades e ambivalências no uso da

expressão, propõe uma definição,111 que diz que direitos humanos são “um conjunto

de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as

exigências da dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser

reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos a nível nacional e

internacional”;112 Perez-Luño considera ainda que, com tal proposta de definição, ele

atinge os três tipos de definição – tautológica, formalista, teleológica. 105 ibid., p. 30. 106 ibid., p. 31. 107 ibid., p. 32. 108 ibid., p. 35. 109 ibid., p. 39. Tradução livre, a partir do texto original. 110 ibid., p. 44. 111 Tradução livre em 02/03/2012. 112 ibid., p. 48. Tradução livre, a partir do texto original.

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No capítulo seguinte, Perez Luño fala a respeito da positivação

dos direitos fundamentais e das perspectivas doutrinárias que aludem a respeito.

Os jusnaturalistas consideram que o processo de positivação é

apenas uma concretização do que antes era direito natural; os positivistas são

radicalmente opostos, tendo por norte o fato de que só a norma jurídica

positivamente estabelecida diz o que é direito.

A tais duas concepções contrapõe as teses realistas,113

segundo as quais o processo de positivação não significa a declaração de direitos

anteriores, nem representa a constituição positiva de tais direitos (que só assim

passam a existir), pressupondo que a positivação não é o fim de um processo, mas

uma condição de desenvolvimento de técnicas de proteção dos direitos

fundamentais;114 ou seja, é pela práxis que se obtém a significação de tais direitos.

Discorre sobre os níveis de positivação dos direitos

fundamentais, percebendo-os no nível Constitucional, classificando-os como

1) “valores e princípios constitucionais programáticos”,115 que designam um caminho

a seguir – sem, porém, especificá-lo; 2) “princípios constitucionais para atuação dos

poderes públicos”,116 que orientam a atuação do poder público para delimitar as

modalidades de exercício de tais direitos; 3) “normas ou cláusulas gerais a

desenvolver por leis orgânicas”,117 isto é, direitos que precisam ser desenvolvidos

em seu alcance e conteúdo; 4) “normas específicas ou casuísticas”,118 quando

atuam diretamente, tendo seu alcance e significação delimitados; 5) “normas de

tutela”,119 que visam garantir os direitos formulados.

Expõe uma concepção que parece um tanto ultrapassada,

daqueles que negam o valor positivo das declarações de direitos e preâmbulos

constitucionais, mantendo-se, no caso brasileiro, apenas a perspectiva, quanto ao

preâmbulo, sem que, no entanto, seja o preâmbulo arguível, mesmo limitadamente,

quando se trata de falar dos valores que norteiam nosso ordenamento.120 Quanto à

113 ibid., p. 59. 114 ibid., p. 59. 115 ibid., p. 66. 116 ibid., p. 66. 117 ibid., p. 67. 118 ibid., p. 67. 119 ibid., p. 67. 120 Veja-se a respeito o Portal do Supremo Tribunal Federal, A Constituição e o Supremo, p. 1: “Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a Constituição e que devem servir de (cont.)

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executoriedade dos princípios contidos na Constituição, há algum tempo se percebe

os mesmos como largamente executáveis no sistema legal brasileiro, atualmente

vencendo as poucas resistências em contrário, se é que ainda existem em alguma

escala capaz de ir além do simples resmungo. Daí, inclusive, a base para o controle

de constitucionalidade: os princípios constitucionais norteiam o sistema legislativo

em sua inteireza e, onde a norma não obedece à hierarquia que põe a Constituição

no topo, é caso de declarar (ou pelo menos reconhecer) sua inconstitucionalidade e

suprimi-la do sistema.

Perez-Luño dedica parte de sua exegese à Declaração

Universal de Direitos Humanos, da ONU;121 cita Kelsen, para quem a Declaração

possui elevada autoridade moral, mas nenhuma autoridade jurídica, não devendo

formar parte do direito internacional (sabe-se, porém, que não é assim que se vê a

postura do direito internacional quanto aos direitos positivados naquela carta, e

mesmo na Constituição Brasileira percebe-se isso claramente pela leitura da CF, em

especial no art. 4º., II; mas também pelo art. 5º., §§ 1º. a 4º.).

A posição nacional a respeito da força jurídica de tal

Declaração, portanto, confere um comprometimento do governo brasileiro quanto

aos direitos humanos e também quanto à parte destes constitucionalmente

positivada, os direitos fundamentais; e, embora não coloque tais valores acima da

orientação para a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei 8.899/1994 a elas. Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao Preâmbulo da Constituição, no qual se contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988 (...). Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem-estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se firme como uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, escolia José Afonso da Silva que ‘O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’, tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico’ (...). Na esteira destes valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade.” (ADI 2.649, voto da Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 8-5-2008, Plenário, DJE de 17-10-2008.). Os destaques em negrito ocorrem por conta deste trabalho. Se há algo de programático na Constituição, é, basicamente, em seu preâmbulo. Conquanto não possa ser arguido a não ser por aquilo que designa, é elemento de orientação que mostra ao pesquisador que toda ela se dirige a um fim, ao qual persegue, de tal modo que, mais tarde, a norma reafirma o preâmbulo, quando é o caso. 121 ibid., p. 77.

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Constituição, confere aos mesmos, no mínimo, status supra-legal, podendo dar-lhes

o status de Emenda Constitucional, caso sua ratificação se dê pelo Congresso

Nacional, na forma estabelecida no § 3º. do art. 5º. da CF.

Análogo tratamento Perez-Luño dá aos direitos econômicos e

sociais, evidenciando que há perspectivas que os veem como programáticos,

enquanto outras concepções, como a socialista, colocam os direitos sociais no

centro de sua estrutura social, ao passo em que, apesar das diferenças entre os

direitos de liberdade e a categoria dos direitos sociais, Perez Luño não lhes nega

complementaridade (em relação aos direitos de liberdade) nem positividade.122

Perez Luño, além de falar da perspectiva histórica em que

surgem (a) os direitos de liberdade, e (b) os direitos econômicos e sociais (do Século

XIX em diante), fala (c) da fundamentação dos direitos humanos (subjetivista,

objetivista, intersubjetivista), de acordo com a filiação filosófica que embasa as

perspectivas em que são reconhecidos, pois compete ao Estado fazer cumprir o que

se estabelece, por direito e por obrigação.

Eis que, com base neste estudo, extrai-se, basicamente, que

(a) os direitos fundamentais são, caracteristicamente, direitos humanos

constitucionalmente positivados; (b) os direitos “de solidariedade” (3ª. dimensão) e

os “de igualdade” (2ª. dimensão), que eventualmente podem ser considerados como

de caráter programático, por vezes são de aplicação e eficácia imediata, quando se

observa as garantias que a própria Constituição Brasileira estatui.

Sabendo por hora que a administração pública tem plena

obrigatoriedade de responder pela garantia, preservação e efetivação de direitos

humanos, aí compreendidos direitos fundamentais, direitos sociais e direitos

transgeracionais, tecer-se-á a seguir considerações, da ordem do Direito Econômico,

que dizem respeito aos direitos humanos, examinando a relação entre crescimento e

desenvolvimento.

122 ibid., p. 87.

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IV.3. CRESCIMENTO OU DESENVOLVIMENTO EMPRESARIAL E SOCIAL?

Em razão da análise tecida a partir de Comparato, cabe observar que,

embora coloquialmente os vocábulos crescimento e desenvolvimento sejam usados

sem diferenciação nítida, é de bom alvitre diferenciá-los quando se está falando de

Direito e Economia.

O desenvolvimento pressupõe o crescimento; este último, porém, nem

sempre se traduz naquele. Relacionados ambos ao produto interno bruto (que mede

sob certos parâmetros as riquezas geradas em um país ou região dados na unidade

de tempo), são, no entanto, coisas bastante diferentes: desenvolvimento pressupõe

alterações estruturais necessárias e eventualmente profundas, que trazem

modificações de ordem econômica à qual acompanham outras mudanças culturais,

sociais, psicológicas; já o crescimento se caracteriza por surtos que não se fazem

acompanhar de estabilidade, em geral sendo analisado sob uma perspectiva de não-

continuidade. 123

Afirma Fábio Nusdeo que124

(...) o desenvolvimento exige e impõe a elaboração de uma política econômica decidida e consistente, para que ele possa se implantar, e venha a fazê-lo com o mínimo possível de custos sociais. Essa política econômica desdobra-se por um conjunto complexo e extenso de medidas, e se estende por largo período de tempo, abarcando mais de uma geração. Daí ser imprescindível que ela mantenha alguns parâmetros mínimos de consistência e de congruência, pela definição de instituições estáveis e colocadas ao abrigo de impulsos e iniciativas ávidas de obtenção de resultados retumbantes a curto prazo (...).

A atividade regulatória, como parte da política econômica vigente, é uma das

formas delineadas pela ordem jurídica brasileira, intervindo indiretamente na

economia, tendo por objetivo macroscópico a promoção do desenvolvimento.

O que se quer, especificamente, é fazer notar que há condições que

precisam ser satisfeitas, pelas agências reguladoras, no exercício dos poderes que a

Constituição Federal e a lei lhes delegam. Isso se dá à moda de deveres, pois a

atividade de regulação tem de visar os objetivos fundamentais da Constituição da

República, além de observar os princípios que instruem a ordem econômica. 123 Nusdeo, Fábio. Desenvolvimento econômico – um retrospecto e algumas perspectivas. Apud Salomão Filho, Calixto (coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 17-18. 124 Nusdeo, Fábio, op. cit., p. 23.

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Assim se distribuirá o estudo que segue: (a) breve histórico da introdução do

mecanismo regulatório na realidade atual; (b) o mecanismo de regulação da

atividade econômica; (c) o poder regulador; (d) o exercício do poder de regular;

(e) considerações adicionais.

De início, assinale-se que no Brasil a experiência reguladora não foi

adequadamente introduzida. Feita às pressas, com um preparo que não atendeu às

diretrizes gerais estabelecidas pelo Organização de Cooperação e Desenvolvimento

Econômico, a regulação no Brasil (embora já houvessem indícios anteriores à

Constituição de 1988) tomou corpo, efetivamente, a partir da reforma neoliberal

introduzida na Lei Maior Brasileira, na década de 1990.

E essa (um tanto) atabalhoada reformulação da atividade econômica

nacional gerou certo mal-estar125 e até hoje passa por intenso debate, que visa

corrigir os efeitos inicialmente inadequados, para proporcionar o que de melhor o

mecanismo regulatório pode oferecer para o desenvolvimento econômico e social.

As Emendas Constitucionais da última década do Século XX procuraram

trazer condições, para o Estado e a sociedade brasileira, de ampliar o espectro de

liberdade da iniciativa empresarial, por um lado, e desonerar o Estado –

basicamente, retirando-o do cenário de atividade econômica em que esteve mais

engajado, no período político-econômico imediatamente anterior – do custo da

ineficiência na manutenção de sua presença em um leque, relativamente amplo, de

atividades que até então desempenhava, eventualmente exercendo monopólio.

Tal reforma, no comportamento interventivo do Estado na atividade

econômica nacional, retirou o Estado de um procedimento interventivo direto126 para

uma atuação interventiva predominantemente indireta, que é caracterizada pela

atuação estatal no sentido da atividade regulatória da economia, o que inclui a

atividade de fomento. 125 Ver adiante, quando se fala da história recente do Brasil. 126 Mediante o qual o Estado participa de maneira imediata na atividade econômica, como no caso da empresa pública. A intervenção direta do Estado na atividade econômica na atualidade, por força do caput do art. 173 da Constituição Federal, se dá (ou só assim se pode dar) hoje apenas com base naqueles ditames: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Eis que, afora os imperativos da segurança nacional e do relevante interesse coletivo (ambos por si suficientes para amplo e profundo estudo), os casos ressalvados e previstos na Constituição são, no dizer de Eros Grau, os previstos nos arts. 177 e 21, inc. XXIII do texto constitucional, constituindo-se em exploração direta da (cont.)

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O Brasil, praticamente, deixou de atuar como Estado-empresário (que

exerce a atividade econômica massivamente) para atuar como interessado no

desenvolvimento da atividade econômica nacional, com isso almejando atingir os

objetivos fundamentais estatuídos na Constituição Federal (de modo geral, no art.

3º.; de modo específico, espalhados e detalhados por praticamente todo o texto

constitucional).127

Examina-se adiante de que modo o Estado exerce a atividade reguladora,

após retirar-se, muito expressivamente, da intervenção direta na economia.

IV.3.1. Breve Histórico da Introdução do Mecanismo Regulatório na Realidade

Atual128

Não será longo levantamento histórico o que se apresenta neste capítulo.

Trata-se de colocar algumas palavras a respeito da reforma econômica que resultou

na situação atual.

Saindo de um período de ditadura militar, em que o Brasil-Estado suportou

forte carga de intervenção direta do Estado na economia (é suficiente atentar para o

fato de que nesse período, imediatamente anterior à presente Constituição,

encontra-se a expansão da Eletrobrás e da Telebrás e das estatais estaduais

exploradoras de energia elétrica e telecomunicações), sucedeu-se, imediatamente,

retomada mais expansiva da atividade econômica por parte do setor privado.

Tal circunstância foi acompanhada por, ou acompanhou, ideologia

neoliberal, que exige a mínima participação do Estado na exploração da atividade

econômica, com considerações, acerca das garantias sociais, de um otimismo no

mínimo duvidoso, o qual, apesar de sugerir um retorno ao liberalismo clássico,

atividade econômica em sentido estrito (v. Grau, Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1988,

14ª. ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 282-283). 127 Em relação à atividade econômica (evidentemente, com reflexos na ordem social) trata-se o tema nos arts. 170 e seguintes da Constituição Federal, sem que se descure da relação com outros temas relevantes da Lei Maior, pois, como afirma Eros Grau, a Constituição não pode ser lida em tiras. (V. Grau, Eros, op. cit., p. 164). 128 Acerca de uma abordagem historicamente mais abrangente do fenômeno da regulação, recomenda-se a leitura de Moreira Neto, Diogo de Figueiredo, Rumos do Direito Regulatório, Apud Mutações do Direito Público, Rio de Janeiro: Renovar, 2006 (p. 383 e seguintes). Em tal texto, o autor encontra indícios da atividade regulatória, remontando até mesmo à Idade Média, e trata do (cont.)

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mostrou-se verdadeiramente impraticável no cenário mundial: não é possível confiar

exclusivamente no “mercado”, para acreditar que a sociedade se há de suprir de

bem-estar, exclusivamente, pela garantia da livre iniciativa. O capitalismo, deixado a

si mesmo, é autofágico, e é preciso que seja defendido (pelo Estado) contra os

capitalistas.129

Luís Roberto Barroso,130 a respeito do processo que levou ao modelo atual

de Estado brasileiro, encontra três fases:

1) a pré-modernidade, durante a qual vigeu o Estado liberal, na virada do

Século XIX para o XX, em que o Estado tinha suas funções bastante reduzidas e

limitadas; nesta época se estabeleceram os direitos de liberdade, “ao lado dos

direitos de participação política”.131 Economicamente, traduziam-se tais direitos “na

liberdade de contrato, na propriedade privada e na livre iniciativa”;132

2) a modernidade ou Estado social, a partir da década de 1920. Nesta época

o Estado passou a atuar na economia, conduzindo o desenvolvimento e

influenciando a distribuição de riquezas, introduzindo conceitos como “os de função

social da propriedade e da empresa”.133 Nesta época surgem os direitos sociais, com

a proteção do emprego e do trabalho;134

3) a pós-modernidade, iniciada no final do Século XX, que coincide com o

Estado percebido como ineficiente, dispendioso, moroso, burocrático e corrupto. É

um tempo cujo discurso equivale à desregulamentação, privatização da máquina

estatal e criação das organizações não-governamentais. Os direitos que aqui

surgem são difusos, “caracterizados pela pluralidade indeterminada de seus titulares

e pela indivisibilidade de seu objeto”,135 aí incluída a proteção ao meio ambiente, ao

consumidor, aos bens e valores de natureza cultural.

Assinala Luís Roberto Barroso que o Brasil chegou à terceira fase sem

atingir, de fato, os modelos preconizados nas fases anteriores: “no período liberal, fenômeno moderno da regulação como surge nos EUA, expandindo-se posteriormente a outras regiões do globo terrestre. 129 V. Grau, Eros, op. cit., p. 56-57. 130 Barroso, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática. In: Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. (p. 159-193). 131 Barroso, Luís Roberto, op. cit., p. 160. 132 ibid., p. 160. 133 ibid., p. 160. 134 ibid., p. 160. 135 ibid., p. 161.

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jamais nos livramos da onipresença do Estado”;136 na fase da modernidade,

ocorreram ciclos ditatoriais, que, de algum modo, interferiram no estabelecimento da

ordem econômica e social preconizada nas Constituições de 34 e 46. Chega-se à

pós-modernidade enfrentando, de início, a crise do governo deposto – “primeiro

governo constitucionalmente deposto na história do país”.137

Luís Roberto Barroso nota que a atuação do Estado na economia tem

relação com o fato de que o capitalismo demanda intensa ação do Poder Público,

em sua defesa, nas “sociedades capitalistas periféricas, de industrialização

tardia”,138 pois não se tem, em tais sociedades, a aparente vantagem da

desregulamentação, tanto em relação à livre concorrência, quanto em relação ao

mercado de trabalho: a fragilidade do capital, nessa espécie de configuração sócio-

econômica, precisa da iniciativa oficial do Estado.

Tal condição aparece demonstrada pela criação de grande número de

empresas estatais brasileiras, que, no final da ditadura militar, ultrapassavam a cifra

das 500 pessoas jurídicas públicas “de teor econômico”.139

No final do século XX, porém, o Estado não resiste ao esvaziamento,

mundial, do modelo até então vigente, em que o Poder Público era centro do

processo econômico. O Estado brasileiro de então ocupava um papel “onipotente,

arbitrário e ativo – desastradamente ativo – no campo econômico”.140 É, pois, na

condição de Estado “grande, ineficiente, com bolsões endêmicos de corrupção”,141

incapaz de vencer a pobreza e a concentração de renda, que o Brasil se vê

compelido a mudar pela mesma classe dominante que por ele foi servida. O

processo de privatização é visto como uma possibilidade para um Estado “que,

infelizmente, não cumpriu adequadamente o seu papel”.142

Quanto às reformas econômicas recentes no Brasil, Luís Roberto Barroso

divisa três transformações estruturais – duas por efeito de Emendas Constitucionais,

136 ibid., p. 161. 137 ibid., p. 161. Note-se que esse é um sinal histórico de fortalecimento da democracia, embora não, especificamente, um amadurecimento. 138 ibid., p. 162, nota 5. 139 ibid., p. 162. 140 ibid., p. 163. 141 ibid., p. 163. 142 ibid., p. 164.

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e a última “mediante a edição de legislação infraconstitucional e a prática de atos

administrativos”.143

Primeiramente, ocorreu a eliminação de certas restrições ao capital

estrangeiro, através da Emenda Constitucional nº 6/95, mediante (principalmente) a

supressão do art. 171, que tratava das empresas brasileiras de capital nacional,

admitindo às mesmas a outorga de “proteção, benefícios especiais e

preferências”.144 Dispensou-se também a exigência do controle do capital nacional

para a pesquisa e lavra de recursos minerais e aproveitamento de potencial elétrico

(art. 176 da Constituição Federal). A Emenda Constitucional 7/95 flexibilizou a

navegação de cabotagem, das embarcações a ela autorizadas e da nacionalidade

de seus tripulantes (art. 178). E em 2002 a Emenda Constitucional 36 “permitiu a

participação de estrangeiros em até trinta e cinco por cento do capital das empresas

jornalísticas e de radiodifusão”.145

Em segundo lugar, houve a “flexibilização dos monopólios estatais”,146 com

as Emendas Constitucionais 5/95, 8/95 e 9/95, rompendo o monopólio estatal na

distribuição de gás canalizado, serviços de telecomunicações e de radiodifusão e

atividades relacionadas ao petróleo: pesquisa e lavra de jazidas, refinação,

importação, exportação e transporte de produtos e derivados.

Em terceiro lugar, ocorreu a privatização, chamada por Luís Roberto Barroso

de “transformação econômica de relevo”,147 com a Lei 8.031/90 (Programa Nacional

143 ibid., p. 164. 144 ibid., p. 164. Eis o texto do (revogado) art. 171 da Constituição:

Art. 171. São consideradas: (Revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995) I - empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País; II - empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades. Revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 15/08/95 § 1º - A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital nacional: I - conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País; II - estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras condições e requisitos: a) a exigência de que o controle referido no inciso II do "caput" se estenda às atividades tecnológicas da empresa, assim entendido o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para desenvolver ou absorver tecnologia; b) percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou entidades de direito público interno. § 2º - Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional.(Revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)

145 ibid., p. 164. 146 ibid., p. 164. 147 ibid., p. 165.

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de Privatização), depois substituída pela Lei 9.491/97. Entre os objetivos de tal

programa estavam os incisos I e IV do art. 1º. da Lei 8.031/90:

I - reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; (...) IV - contribuir para modernização do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia;

Informa Luís Roberto Barroso que o programa de desestatização tem-se

levado a cabo por meio de mecanismos como a) alienação do controle de entidades

estatais, em bolsa de valores, e b) concessões de serviços públicos a empresas

privadas.148

Ao lado das privatizações, o governo tem legislado sobre temas econômicos,

criando as agências reguladoras, relacionadas aos temas que foram objeto do

programa de privatização, além de legislar, defendendo a concorrência, e tratar de

temas como concessões e permissões de serviços públicos.149

A respeito do neoliberalismo, movimento que na década de 1980150 (com

reflexos mais pronunciados até 1990, declinando posteriormente) vagou pelo

mundo, afirma Eros Grau: “A política neoliberal (...) é incompatível com os

fundamentos do Brasil, afirmados no art. 3º. da Constituição de 1988, e com a norma

veiculada pelo seu art. 170”.151

Ao fazer tais afirmações, Eros Grau não está afirmando simplesmente que a

política de privatização empreendida após a reforma econômica da Constituição de

1988 não tinha razão de ser; é outro seu discurso, como podemos verificar, quando

atesta que em nossa Lei Máxima “se encontram parâmetros a informar a necessária

desprivatização do Estado, bem assim elementos que podem nutrir o movimento da

desregulamentação da economia. Não, porém, a velas pandas”.152

Trata-se de privilegiar os princípios gerais da atividade econômica, dentre os

quais se encontram a livre iniciativa, a livre concorrência e a valorização do trabalho

148 ibid., p. 165. 149 ibid., p. 165-166. 150 V. Grau, Eros, op. cit., p. 44: “Sucede que o novo papel do Estado passou a ser vigorosamente questionado desde os anos oitenta do século passado, na afirmação dos discursos da desregulação e do neoliberalismo”. 151 Grau, Eros. op. cit., p. 45 e seguintes. 152 Grau, Eros. op. cit., p. 290.

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humano,153 numa harmonia necessária entre o desenvolvimento da economia e o

desenvolvimento da ordem social.

Quando trata de desprivatização, Eros Grau está falando da retirada do

Estado da exploração direta da atividade econômica: a desprivatização inclui a

estratégia de privatização,154 que ocorre acompanhando a reforma da Constituição

Federal, que incluiu as Emendas Constitucionais que promoveram uma espécie de

desregulamentação que, no entanto, não deve implicar em um novo e mais danoso

laissez-faire do Estado em relação à ordem econômica:

A ordem econômica que deve ser, projetada pelo texto constitucional, reclama o amplo fornecimento de serviços públicos à sociedade, exigindo também, por outro lado, sejam providas a garantia do desenvolvimento nacional, a soberania nacional, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, o pleno emprego, entre outros fins. As tensões entre interesses, no evolver da realidade, mercê de inúmeras motivações, poderão tanto conduzir à ampliação do campo dos serviços públicos, quanto a um novo desenho do perfil assumido pelo Estado enquanto agente econômico. Há que conjugar as imposições da desregulamentação com as exigências de um modelo de sociedade de bem- estar adequado à realidade nacional.

155

Nesse prisma é que importa tratar de regulação: se é o caso de fazer um

repasse da atividade econômica (em sentido lato) ao setor privado, este deve, em

um número de circunstâncias, submeter-se a um controle sem o qual a sociedade

não tem a garantia do bem-estar que se visa proporcionar a partir da afirmação de

direitos fundamentais em nossa Constituição, que, repetindo Eros Grau, não pode

ser interpretada de maneira isolada, às expensas do todo que o texto constitucional

objetiva alcançar.

É movimento que envolve a privatização de empresas estatais prestadoras

de serviço público e/ou a privatização das empresas estatais que desenvolvem

atividade peculiar do setor privado (coisa que diz respeito ao art. 173 da Constituição

Federal).156

Há razões que vão além de um simples modismo neoliberal tendente a

privatizar a atividade econômica prestada pelo Estado, e incluem tanto a

necessidade do Estado levantar recursos financeiros para o custeio de obras sociais

153 De modo nenhum deixando de lado os outros princípios estabelecidos no art. 170 da Constituição Federal. 154 Que corresponde à transferência da atividade econômica, que antes era explorada pelo Estado, para o capital privado. 155 Grau, Eros, op. cit., p. 290-291. 156 V. nota 124, acima, e Grau, Eros, op. cit., p. 292.

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quanto a necessidade de livrar o Estado de empresas que, em suas mãos, revelam-

se ineficientes em virtude de excessiva (e real) ingerência política.

Complementa Grau:

Há consenso quanto à necessidade da reforma do Estado, a fim de que ele se possa dedicar, eficientemente, à provisão dos serviços públicos essenciais e de atividades de relevância para a satisfação do interesse social (atuação em setores estratégicos, promoção do desenvolvimento tecnológico, v. g.). Mas se impõe, também, discernirmos a necessidade de desprivatização do Estado, providência indispensável a sua reeticização.

157

De se considerar os argumentos de Diogo Rosenthal Coutinho,158 que

recapitula a reforma do Estado ocorrida na década de 1990, evidenciando como o

imediatismo de então privilegiou uma lógica instrumental (para “dar guarida à

estabilização econômica e também para maximizar o valor de venda das empresas

estatais nos leilões de privatização”),159 deixando de lado uma estratégia clara para

a universalização.

O Programa Nacional de Desestatização (da década de 90) previa

privatizações de empresas estatais “prestadoras de serviço público em larga

escala”,160 de maneira a resolver a deterioração das finanças públicas, transferindo à

iniciativa privada o encargo principal de investir na infraestrutura, através do instituto

jurídico da concessão. Comenta Diogo Rosenthal Coutinho: “esperou-se de maneira

ingênua, que o setor privado realizasse esses investimentos espontaneamente e,

com isso, fosse contemplada a universalização do acesso a tais serviços”.161

Criaram-se então obrigações contratuais e investimentos, combinadas com metas

qualitativas e quantitativas, para os serviços públicos assim privatizados. 157 Grau, Eros, op. cit, p. 293. Grau observa aliás que há a situação de poder e dever ocorrer a privatização, ao passo em que há situação em que pode ocorrer a privatização e há situação em que ela não deve ocorrer, nada podendo ser dito simplesmente e de maneira genérica, ocultando a realidade com seus vários aspectos. 158 Coutinho, Diogo Rosenthal. A universalização do serviço público para o desenvolvimento como uma tarefa da regulação. In: Salomão Filho, Calixto (coord.). Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. (p. 65-86). 159 ibid., p. 70. 160 ibid., p. 70-71. 161 ibid., p. 71.

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Informa Diogo Rosenthal Coutinho que, segundo a OCDE,162 é importante

por em prática um novo regime regulatório, institucionalmente planejado, antes de

promover a reestruturação das companhias objeto da privatização, para só então

privatizá-las, havendo “intensa articulação entre os formuladores de políticas

públicas e a autoridade de defesa da concorrência antes da privatização para que

esta possa, com sua expertise em matéria antitruste, indicar formas pró-competitivas

de modelagem e reestruturação (desverticalização) das estatais”.163

Temos, como resultado, diante de nós, agências reguladoras incumbidas de

regular setores da economia relacionados a serviços públicos, e outras atividades

econômicas de relevante interesse coletivo, que, no entanto, não estão, de modo

geral, suficientemente preparadas para atender a uma finalidade mais ampla do que,

simplesmente, atender aos que detêm as concessões.

Construído o mecanismo regulatório com atraso, mercê da inexperiência,

ficaram as agências regulatórias brasileiras, de início, ao sabor do vento

proporcionado pelos entes regulados (estes, dotados de experiência em regulação,

advinda do convívio com outros países) e pela dança governamental, pressionando

com a necessidade de decisões rápidas.

Diante de tal incerteza, as concessionárias de serviço público ficaram livres

para escolher o caminho mais lucrativo e menos dispendioso, “muitas vezes

baseando-se em regras genéricas e dúbias para as quais falta regulação concreta e

definição de parâmetros de interpretação”,164 permitindo um oportunismo só oposto

por “contenciosos judiciais infindáveis”.165

162 Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, OCDE. De seu website extraímos: The mission of the Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD) is to promote policies that will improve the economic and social well-being of people around the world. (A missão da OCDE é promover políticas que melhorarão o bem-estar social e econômico dos povos ao redor do mundo). Composta de 34 países, com sede em Paris, na França, e estabelecida em 1961, tal organização iniciou seus trabalhos visando estabelecer planos para o restabelecimento dos países europeus, economicamente debilitados após a Segunda Guerra Mundial. Fonte: http://www.oecd.org/pages/0,3417,en_36734052_36734103_1_1_1_1_1,00.html, acesso em 11/12/2011 às 6h07. 163 ibid. p. 72. 164 Coutinho, Diogo Rosenthal, op. cit., p. 74. 165 ibid., p. 74.

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IV.3.2. O Mecanismo de Regulação da Atividade Econômica

A atividade reguladora do Estado vem afirmada no caput do art. 174 da

Constituição Federal: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica,

o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e

planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor

privado”.

Esse texto já oferece pistas para o que se considera a seguir, junto com

Eros Grau; isto é, que as agências reguladoras são espécies de repartição pública,

tratando-se de autarquias fundadas no âmbito do Poder Executivo, “desempenhando

funções administrativas e normativas, estas últimas no exercício de capacidade

regulamentar”.166

Marçal Justen Filho explica que “a regulação vale-se não somente da

imposição da repressão (deveres de abstenção), mas incorpora a promoção

(deveres de fazer) como solução indispensável para atingir os resultados

pretendidos pelo Estado”,167 anotando, ademais, que “o modelo do Estado

Regulador ainda está sendo produzido”.168

Pertinente o comentário de Renata Porto Adri:

Se por um lado a atuação reguladora desses “órgãos reguladores” parece estar se delineando, com os aperfeiçoamentos legislativos e as determinações judiciais das contendas, por outro, a fiscalização das atividades reguladas e as expectativas de representatividade e legitimidade conferidas pela sociedade brasileira nas relações com as instituições privadas ainda reclamam muita reflexão e atuação efetiva. O art. 174 da Constituição da República de 1988, ao tratar da função normativa e reguladora da atividade econômica do Estado, acaba por abordar as “agências reguladoras”, instituídas, por lei, como autarquias, sob regime especial, sendo-lhes conferida autonomia administrativa, patrimonial e financeira, com dirigentes com investidura a tempo certo, sendo discutível e inaceitável, diante dos ditames constitucionais, a autonomia ampla para exercício da competência normativa regulamentar, uma vez que há limites à faculdade regulamentar que não podem ser exorbitados e ensejam controle. Com isso, pretende-se chamar a atenção, para a proliferação das agências reguladoras, que diante da ausência de um planejamento e, consequente, plano operacional que preveja os meios de produção e os fins a que se destinam, acaba por segmentar a realidade social, pois nem sempre a especialização, que se traz como bandeira reflete sua atuação e afeta, diretamente, as políticas públicas com efeito nefasto e destruidor aos direitos dos cidadãos,

166 Grau, Eros. As Agências, essas Repartições Públicas. Apud Salomão Filho, Calixto (coord.), Regulação e Desenvolvimento, São Paulo: Malheiros, 2002, p. 27. 167 Justen Filho, Marçal. Curso de Direito Administrativo, 4ª. ed. rev. e atual.. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 566. 168 ibid., p. 567.

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bem como ao desenvolvimento nacional equilibrado, diante da insegurança jurídica gerada pelos resultados imprevistos e imprevisíveis.

169

Como autarquias especiais, as agências reguladoras são criadas tendo por

finalidade disciplinar e controlar certas atividades, conforme atesta Celso Antônio

Bandeira de Mello,170 que ainda as classifica em autarquias relacionadas a

(a) serviços públicos propriamente ditos, caso da Agência Nacional de Energia

Elétrica – ANEEL; da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL; da

Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT; da Agência Nacional de

Transportes Aquaviários – ANTAQ; da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC;

(b) atividades de fomento e fiscalização da atividade privada, caso da Agência

Nacional do Cinema – ANCINE; (c) atividades exercitáveis para promover a

regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da

indústria do petróleo, cuja disciplina compete à Agência Nacional do Petróleo, Gás

Natural e Biocombustíveis – ANP; (d) atividades que o Estado também protagoniza

(e quando o fizer serão serviços públicos), mas que, paralelamente, são facultadas

aos particulares, coisa que “ocorre com os serviços de saúde, que os particulares

desempenham no exercício da livre iniciativa”,171 sob controle da Agência Nacional

de Vigilância Sanitária – ANVISA; e da Agência Nacional de Saúde Suplementar –

ANS; e (e) regulação de uso de bem público, como ocorre com a Agência Nacional

de Águas – ANA.

Por último, Celso Antônio Bandeira de Mello enumera item que se considera

como (f) entidades cujas funções são de índole equivalente (embora sem a

denominação de “agência reguladora”), caso da Comissão de Valores Mobiliários –

CVM.172

Ainda no âmbito federal, pode-se, junto com Luís Roberto Barroso,173 e com

relativa segurança, considerar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica

169 Adri, Renata Porto. Da Função Estatal de Planejar a Atividade Econômica: Breves Reflexões sobre

o Art. 174 da Constituição da República de 1988. Apud Sparapan, Priscilia (coord.); Adri, Renata Porto (coord.). Intervenção do Estado no Domínio Econômico e no Domínio Social. Homenagem ao Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 152. 170 Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 25ª. ed. rev. e atual. até a EC 56/2007. São Paulo: Malheiros, 2008, p 169-170. 171 Mello, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 170. 172 ibid., pp. 170-171. 173 Barroso, Luís Roberto, op. cit., p. 170. Embora nascido anteriormente à Constituição Federal, a Lei 8.884/94 transformou o CADE em autarquia e deu-lhe atribuições que permitem dizer que é o CADE uma agência reguladora, conforme se vê adiante.

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(CADE) como agência reguladora após a Lei 8.884/94, embora não leve tal nome,

pois tal entidade obedece aos requisitos estabelecidos por Ricardo Antônio Lucas de

Camargo174 e aditados por Eros Grau:

175

i) as agências de regulação são autarquias, cujo objeto é a garantia da não interrupção da prestação de serviços que sejam delegados à iniciativa privada; ii) sendo autarquias, inserem-se na estrutura do Estado, desempenhando função administrativa [e normativa, digo eu

176], estando ubicadas na órbita do Poder Executivo, que

tem como dirigente supremo o respectivo Chefe – o Presidente da República, no âmbito federal, o Governador, no âmbito estadual, e o Prefeito, no âmbito municipal. Sua qualificação como autarquias sob regime especial decorre da circunstância de lhes ser assegurada (i) ausência de subordinação hierárquica, (ii) independência ou autonomia administrativa, financeira, patrimonial, de gestão de recursos humanos e técnica e (iii) mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes. Eros Grau destaca ainda que o “mandato fixo e estabilidade de seus

dirigentes” são inovações “franca e irremediavelmente inconstitucionais”,177 seguindo

aliás a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello,178 pois os dirigentes de

autarquias não podem ser “titulares de direitos a serem mantidos além de um

mesmo período governamental, o que, na expressão de Celso Antônio,

consubstanciaria uma fraude contra o próprio povo”.179

Forçoso concluir que constitucional e legal é considerar que o mandato dos

dirigentes de autarquias especiais (tipicamente funcionando como agências

reguladoras) não deve ultrapassar o mesmo período governamental. No mais,

sujeita-se tal mandato ao controle de constitucionalidade.

IV.3.3. Poder Regulador

O poder regulador inclui a função reguladora e o exercício do poder

regulamentar, nem sempre atividades congruentes.

Deste tema trata Celso Antônio Bandeira de Mello, informando que

O verdadeiro problema com as agências reguladoras é o de se saber o que e até onde podem regular algo sem estar, com isto, invadindo competência legislativa. Em linha de principio, a resposta não é difícil. Dado o princípio constitucional da legalidade, e consequente vedação a que atos inferiores inovem inicialmente na ordem jurídica (...), resulta claro que as determinações normativas

174 in Grau, Eros. As Agências (...), p. 27. 175 ibid., p. 27. 176 Eros Grau é quem o diz. 177 ibid., p. 27. 178 Mello, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 175. 179 Grau, Eros. As Agências (...), p. 28.

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advindas de tais entidades hão de se cifrar a aspectos estritamente técnicos, que estes, sim, podem, na forma da lei, provir de providências subalternas, conforme se menciona (...) ao tratar dos regulamentos. Afora isto, nos casos em que suas disposições se voltem para concessionários ou permissionários de serviço público, é claro que podem, igualmente, expandir as normas e determinações da alçada do poder concedente (...) ou para quem esteja incluso no âmbito doméstico da Administração. Em suma: cabe-lhes expedir normas que se encontrem abrangidas pelo campo da chamada “supremacia especial” (...). De toda sorte, ditas providências, em quaisquer hipóteses, sobre deverem estar amparadas em fundamento legal, jamais poderão contravir o que esteja estabelecido em alguma lei ou por qualquer maneira distorcer-lhe o sentido, maiormente para agravar a posição jurídica dos destinatários da regra ou de terceiros; assim como não poderão ferir princípios jurídicos acolhidos em nosso sistema, sendo aceitáveis apenas quando indispensáveis, na extensão e necessidade requeridas para o atendimento do bem jurídico que legitimamente possam curar e obsequiosas à razoabilidade. Alexandre Mazza recusa-lhes, inclusive, a possibilidade de uma competência regulamentar propriamente dita, fundado na singela mas certeira observação de que esta é, pelo Texto Constitucional, declarada privativa do Chefe do Poder Executivo.

180

Observe-se que Celso Antônio Bandeira de Mello é um tanto pessimista

quanto aos poderes concedidos às agências reguladoras, pois prevê que elas

exorbitarão de seus poderes, baseadas no título que lhes foi dado, supondo-se

“investidas dos mesmos poderes que as ‘agências’ norte-americanas possuem, o

que seria descabido em face do Direito brasileiro, cuja estrutura e índole são

radicalmente diversas do Direito norte-americano”,181 pois “no Direito Constitucional

brasileiro, ao contrário do norte-americano, pelo que vimos, não haveria como criar

‘entidades intermediárias’ com poderes legislativos ausentes espaço, assento ou

previsão constitucional”.182 E não faltam exemplos debatendo tal ponto na literatura

que trata do assunto.

Marçal Justen Filho expõe o fato de que a regulação inclui “novo”

instrumental jurídico.

Além da visão clássica autoritária, mediante a qual a norma jurídica impõe

padrão de conduta de observância obrigatória (de modo tal que se aplica um direito

administrativo sancionador conforme o caso e a dicção legal), o Estado Regulador

(...) também recorre a outras vias para influenciar o comportamento humano. Trata-se não apenas da já referida concepção promocional do direito, em que a obtenção de condutas desejadas é induzida por meio de sanções ditas positivas ou premiais. Além disso, torna-se extremamente relevante um instrumento normativo que poderia ser qualificado como atenuado.

180 Mello, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 172-173. 181 ibid., p. 173. 182 ibid., p. 173.

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Há manifestações estatais de incentivo, orientação, sugestão. Em muitos casos, o Estado não determina, mas solicita a adoção de certos parâmetros. Em outros, há soluções negociadas, em que se compõem os interesses por meio de avenças de cunho bilateral. É problemático reconduzir essas espécies de providências estatais ao esquema normativo tradicional. Perante esse, essas fórmulas de atuação estatal são classificadas como “não jurídicas” ou meras manifestações irrelevantes. No entanto, constata-se que esses instrumentos prestam-se a influenciar, de modo efetivo, a conduta dos seres humanos e das empresas. Generalizou-se, em doutrina, a denominação “soft-law” (direito suave) para indicar “uma declaração cujo intento é normativo (no sentido de dirigir-se a influenciar a conduta dos destinatários), as mais das vezes adotadas pela Administração Pública ou por organizações internacionais, mas definidas (geralmente pelos próprios autores) como carentes de uma plena força jurídica vinculante”. Tal como exposto (...), essas figuras são consideradas por alguns como uma das características do chamado direito pós-moderno.

183

Essa perspectiva de atuação das agências reguladoras no exercício de um

poder regulador que inclui o consensualismo não é pouco utilizada fora do Brasil,

como se pode ver pelo exemplo da Espanha.184

A favor de tal perspectiva encontra-se Diogo de Figueiredo Moreira Neto,

que informa que, diante de uma avalanche de processos judiciais contra o Poder

Público “em todos os países que adotaram as premissas do Estado Democrático de

Direito”,185 essa modalidade de atuação administrativa é espécie de instituto que

“pode atuar vantajosamente na prevenção administrativa de conflitos”.186

Não seria exagero apontar essas novas vias, não só de atuação preventiva como de composição de conflitos administrativos já instaurados, como importantes conquistas da cidadania e da sociedade, em geral, ora alcançadas graças a essas possibilidades desenvolvidas de utilização do consenso como modalidade substitutiva da ação unilateral e imperativa do Estado.

187

Mais adiante, Diogo de Figueiredo Moreira Neto explica o que entende por

função reguladora e o fato de que esta compreende o poder regulamentar, mas a ele

não se limita:

A atividade dos institutos que conformam os subsistemas de harmonização é a função reguladora, que, não obstante o étimo, que a aproxima da voz vernácula regra, o que traz a ideia de normatividade, é mais que isso: é um híbrido de atribuições de variada natureza, informativas, fiscalizadoras e negociadoras, mas, também, normativas, gerenciais, arbitradoras e sancionadoras.

183 Justen Filho, Marçal, op. cit., p. 569. 184 Para uma perspectiva do direito administrativo espanhol a respeito da administração consensual, v. Font y Llovet, Tomàs. Desarrollo reciente de los instrumentos de la administración consensual en España. Apud Moreira Neto, Diogo de Figueiredo (Coord.). Uma avaliação das tendências contemporâneas de direito administrativo. Rio de janeiro: Renovar. 2003. (p. 363-382) 185 Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 343. 186 ibid., p. 343. 187 ibid., p. 343.

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Todas essas distintas funções são concentradas em um órgão regulador, para que defina os interesses que deverão ser atendidos e de que maneira, nas relações sujeitas à regulação.

188

Isto posto, Diogo de Figueiredo Moreira Neto observa ainda que as normas

reguladoras são distintas das normas legais, no sentido de que as normas legais

compreendem um interesse público específico, pré-definido em texto constitucional

ou legal,189 que deve ser realizado, enquanto na norma reguladora o interesse

público “é considerado ponderadamente em conjunto com vários outros interesses

protegidos pela ordem jurídica, pois o que se visa, afinal, é a realização harmônica

de valores protegidos”.190

IV.3.4. O Exercício do Poder de Regular

Eis o que ensina José Afonso da Silva ao tratar dos Princípios Gerais da

Atividade Econômica:

(...) a liberdade de iniciativa econômica privada, num contexto de uma Constituição preocupada com a realização da justiça social (o fim condiciona os meios), não pode significar mais do que “liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público, e, portanto, possibilidade de gozar das facilidades e necessidade de submeter-se às limitações impostas pelo mesmo”. É legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima, quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário. Daí por que a iniciativa econômica pública, embora sujeita a outros tantos condicionamentos constitucionais, se torna legítima, por mais ampla que seja, quando destinada a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

191

Assim, não há que se falar em atividade reguladora sem tratar das

preocupações que o Estado tem para com o beneficiário dos princípios da atividade

econômica. Não importa apenas a livre iniciativa, pois esta se encontra mitigada, a

todo pano, por outros princípios constitucionais que visam a realização dos objetivos

fundamentais da República.

As agências reguladoras estão aí não apenas para garantir que as

concessionárias possam exercer sua liberdade de iniciativa; sua missão máxima, na

atividade de regulação, é olhar por aqueles que são os beneficiários da iniciativa

188 ibid., p. 392. 189 Legalidade, aqui, em sentido verdadeiramente estrito. 190 ibid., p. 395. 191 Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª. ed. rev. e atual. até a EC 52/2006. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 794.

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privada. Não pode negligenciar os concessionários, sob pena de completamente

desestimular a iniciativa privada, que toma para si a responsabilidade de realizar a

atividade econômica (em sentido lato) que assumiu; mas de maneira nenhuma pode

deixar de lado aquele que deve por ela ser beneficiado. Nesse sentido, constitui-se a

agência reguladora, v.g., em efetiva realizadora de política de defesa dos direitos do

consumidor, aliás levando a efeito o preceito contido no inc. V do art. 170 da

Constituição Federal.192

Note-se aliás que a atividade regulatória deve coibir o abuso do poder

econômico. José Afonso da Silva explica que a livre concorrência é uma

manifestação da liberdade de iniciativa, “e, para garanti-la, a Constituição estatui que

a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à

eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (art. 173, § 4º.)”.193

Assim é que se chega à leitura do art. 174 da Lei Maior: a intervenção do

Estado no domínio econômico se legitima e justifica quando o Estado o faz

exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento.194,195

Quer-se, com isso, notar que, considerando-se a função reguladora em

qualquer extensão – seja por um viés autoritário, seja por um viés consensual – deve

ela incluir parâmetros para seu estabelecimento, que dizem respeito à missão da

agência reguladora.

Tal missão nunca é unilateral, no sentido de apenas bem atender os entes

regulados explorando a atividade econômica em sentido amplo, pois a razão dos

regulados se encontrarem sob os auspícios do ente regulador é, claramente, o

mando constitucional, e tal determinação não é lida em privilégio de uns poucos e

em detrimento de uma organização social que a Constituição da República

preconiza.

192 As agências reguladoras podem, também, realizar políticas de defesa do idoso, da mulher que

sofre violência doméstica, da pessoa portadora de deficiência, e assim por diante. As possibilidades são amplas, quando se fala de atender a objetivos constitucionais, e se ampliam na medida em que se considera o fundamental princípio constitucional da dignidade humana. 193 Silva, José Afonso da, op. cit., p. 795. 194 Posição expressa por Mello, Tanya Kristyane Kozicki de. Defesa do Consumidor e Defesa do Meio Ambiente: A Busca por um Novo Paradigma para a Realização de Direitos Fundamentais. Apud Revista Jurídica do Centro Universitário Curitiba. Número 23, Curitiba, 2009. Internet: http://www.unicuritiba.edu.br/sites/default/files/publicacoes/edicoes/20100420010437juridica232009- 2.pdf, acesso em 11/12/2011 às 10h12, p. 162. 195 V. subtítulo IV.3.3, acima.

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IV.3.5. Mais Considerações196

Em nota de rodapé em sua obra Curso de Direito Administrativo, Celso

Antonio Bandeira de Mello situa uma crítica muito presente e recorrente com relação

à atividade reguladora.

Afirma Celso Antonio Bandeira de Mello que, no

serviço público – importa ressaltar – a figura estelar não é seu titular nem o prestador dele, mas o usuário. Com efeito, é em função dele, para ele, em seu proveito e interesse que o serviço existe.

197

Eis, porém, que o mesmo autor anota:

Esta é a lógica que preside juridicamente o assunto, embora não seja minimamente a realidade. As agências reguladoras que na linguagem oficial foram supostamente criadas para assegurar os direitos dos usuários comportam-se como se fossem inteiramente desinteressadas disto e muito mais interessadas nos interesses das concessionárias, ao ponto de se poder supor que foram introduzidas entre nós com este deliberado propósito. A situação calamitosa dos serviços aéreos serve de excelente demonstração da nulidade das agências reguladoras na defesa do usuários. As telecomunicações telefônicas são disparadamente as campeãs brasileiras em reclamações dos consumidores, sem que daí resultem as presumidas sanções supostas na legislação.

198

É fácil perceber a verdade presente em tais observações: basta procurar

atendimento das empresas de telecomunicações para resolver algum problema

singelo relacionado à interrupção na prestação, por exemplo, do serviço de Internet,

ou explicações relativas ao aumento ou introdução de obscuras tarifas que

eventualmente aparecem contabilizadas nas contas telefônicas. A própria tentativa

de encerramento da relação contratada com uma empresa de telefonia já é uma dor

de cabeça bastante comum. São coisas que ocorrem tão corriqueiramente, de tal

modo banalizadas, que levam a pensar se é alguma obra de – emprestando a

expressão da psicologia comportamental – dessensibilização sistemática199 que se

196 Embora não definitivas, ausente a pretensão de esgotar o tema. 197 Mello, Celso Antonio Bandeira de, op. cit., p. 665. 198 Mello, Celso Antonio Bandeira de, op. cit., p. 665, nota 20. 199 Dessensibilização sistemática é uma técnica que visa, especificamente, tornar aquele que é assim tratado imune a determinado estímulo. Certas espécies de fobias podem, por exemplo, ser tratadas desse modo, com resultados relativamente satisfatórios. O que importa notar, aqui, é que, por meio de tal técnica, aquilo sobre o qual se está promovendo a dessensibilização deixa de assumir aspecto de relevância para quem se defronta com tal objeto; assim, cedo ou tarde o sujeito deixa de notar que está passando por determinado incômodo, em relação a certa situação. Mais: “A Dessensibilização Sistemática, desenvolvida originariamente por Wolpe em 1958, é um conjunto de técnicas de exposição à vivência traumática. A exposição ao vivo é precedida pela exposição imaginária, construída dentro do consultório, e trabalhada numa hierarquia de situações temidas – desde as consideradas mais fáceis de enfrentamento, até as mais difíceis. Foa & Kozac utilizam-se bastante da exposição sistemática sugerindo que por meio dela a memória poderia alterar sua estrutura semântica gerando um registro mnêmico mais preciso e atual, integrando o trauma aos esquemas (cont.)

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está levando a cabo, para acostumar o usuário de telefonia a não ser atendido

adequadamente, até que simplesmente se habitue a ser aviltado no atendimento.

Segundo aqui se entende, as consequências da política neoliberal foram

desastrosas, não apenas para o desenvolvimento no Brasil, mas também em outras

partes do mundo. Não obstante – e falando da experiência tupiniquim, que é o que

aqui interessa – tem-se agora uma tarefa a executar, que consiste em fazer com que

as transformações estruturais, ocorridas na década de 1990, tragam benefícios

sociais, efetivamente atendendo aos ditames da ordem econômica constitucional.

Em texto em que discorre acerca das falhas do Estado em contraste com as

falhas do mercado, Fábio Tokars afirma:

Independente do regime econômico instalado, o inimigo real não é o mercado, gerador de riquezas meritórias, mas sim a corrupção, geradora da riqueza podre, esta sim derivada da exploração da ignorância e da pobreza alheias, enquanto a riqueza meritória é fruto essencialmente do trabalho próprio.

200

A riqueza meritória, desde que apropriadamente ajustada aos princípios

constitucionais que delimitam a atividade econômica (como a função social da

propriedade, a valorização do trabalho humano e a defesa do meio ambiente) e

outros que dos primeiros derivam (como a função social da empresa, a função social

do contrato, a boa-fé objetiva), certamente é fruto de trabalho não apenas próprio, e

ademais, digno.

No mesmo trabalho, Tokars fala a respeito das questões que relativizam a

representação popular exercida pelos políticos corruptos que, por vezes,

abandonam aqueles que os elegeram para exercerem preferências pessoais ou

mesmo de setores de poder político, econômico ou mesmo social, com motivações

relativamente obscuras.

cognitivos pré-existentes e criando novos repertórios cognitivo-comportamentais. Semelhantemente, a Teoria do Processamento Emocional de Lang, sugere que a exposição repetida à lembrança traumática num ambiente controlado, terapêutico, gerará a habituação ao medo e posterior modificação do esquema disfuncional de esquiva”. (Knapp, Paulo e Caminha, Renato M. Terapia cognitiva do transtorno de estresse pós-traumático. Apud Revista Brasileira de Psiquiatria, vol. 25, supl. 1., São Paulo, junho de 1993. Internet: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44462003000500008, e também: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462003000500008, acesso em 10/12/2011 às 22h51). 200 Tokars, Fábio. Das Falhas de Mercado às Falhas de Estado. Apud Revista Jurídica do Centro Universitário Curitiba. Número 21. Curitiba, 2008, p. 156. Internet: http://www.unicuritiba.edu.br/sites/default/files/publicacoes/edicoes/20100420010437juridica_21.pdf, acesso em 11/12/2011 às 08h30.

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Percebendo o governo não apenas por essa ótica mas, por vezes, pelo

despreparo técnico da atuação estatal em uma série de assuntos que exigem

qualificação técnico-científica crescente, é de refletir sobre o valor e a necessidade

do mecanismo de regulação e, mesmo, da efetivação do poder regulador

desempenhado por tais agências.

No entanto, na medida em que as agências reguladoras perpetuam de

maneira tal e qual obscura sua atuação, deixando de lado a parcela de sua atenção

que deveria ser dedicada mais ao usuário do que às concessionárias, tem-se de

observar que a atividade regulatória acaba por cometer um erro mais grave ainda do

que o político que, eleito pelo povo, se corrompe: pois a agência reguladora e seus

dirigentes não estão lá por voto direto.

Em que pese que, sempre havendo a possibilidade de fiscalizar a atuação

da própria agência reguladora, raro é ouvir que tal tem acontecido, e seria de supor,

não fosse a realidade, que as agências reguladoras estão funcionando devidamente;

mas como já foi notado por Celso Antônio Bandeira de Mello, não é bem assim.201

Neste caso, urge que o Poder Público, organizado para a fiscalização – pelo

menos o Ministério Público – esteja atento à necessidade de adequar a atividade

reguladora dentro de seus limites, atentando, ademais, para o exercício da função

reguladora por parte das agências que têm tal encargo. Estas, uma vez situadas

corretamente em relação a seus fins, estarão cumprindo eficazmente com a

finalidade para a qual foram estabelecidas, cuidando para que a atividade

econômica exercida pelos exploradores de serviços públicos, ou mesmo outras

atividades econômicas, de relevante interesse coletivo, cumpram os ditames

constitucionais, não apenas em relação à preservação do sistema capitalista, mas,

também, à consecução dos objetivos nacionais, que incluem o desenvolvimento

nacional.

Afirma Daniel Ferreira, com razão, que “como adrede referido, os

regulamentos apenas podem se prestar à fiel execução da lei, sob pena de flagrante

ilegitimidade”.202

201 Quer-se, contudo, crer que as coisas se encaminham para uma maturidade na atividade regulatória. 202 Ferreira, Daniel. Alternativas Legais à Sanção Administrativo-Ambiental: Uma Questão de Dignidade da Pessoa Humana e de Sustentabilidade da Atividade Empresarial. Apud Revista Jurídica do Centro Universitário Curitiba. Número 22. Curitiba, 2009, p. 71. Internet: (cont.)

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Sabendo que a atividade reguladora não consiste apenas em regulamentar,

ajunta-se a isso que não é apenas de fiel execução de lei que vivem as agências

reguladoras, mas de cumprimento de ditames (mormente princípios) constitucionais:

no exercício de seus poderes.

Não podem, pois, omitir-se as agências de cumprir com aquilo que a

Constituição Federal estatuiu como objetivos fundamentais da República. E é

também este tipo de exercício de poder regulamentar que se espera das agências

reguladoras, isto é, que façam valer, no interesse do usuário do serviço público, ou

da atividade econômica de relevante interesse coletivo, aquilo para o que foram

instituídas.

O ordenamento jurídico brasileiro não consagrou o princípio da

subsidiariedade como é praticado, por exemplo, na União Europeia.203 Isso significa

que não é caso de se pensar que a intervenção do Estado na atividade econômica

só se deve dar em última hipótese.

A Constituição procura conciliar direitos de liberdade, igualdade e

fraternidade – os primeiros, típicos do capitalismo; os segundos, caracterizadores do

Estado Social de Direito; os terceiros, intimamente relacionados aos direitos

transgeracionais representados pela necessidade de preservar o meio ambiente,

trazendo consigo uma percepção de que há direitos que não pertencem a um só,

mas a coletividades, específicas ou não. Na efetivação dessa perspectiva, é preciso

afastar a tentação de privilegiar a livre iniciativa, fazendo com que só de forma

subsidiária o Estado intervenha na atividade econômica.

Liberdade de iniciativa e livre concorrência, sim; mas, de toda forma,

segundo a mui saudável fórmula da prudência que manda fiscalizar e controlar para

que o capitalismo, fundamentalmente autofágico, não acabe (engolindo a si mesmo)

prejudicando toda a estrutura social sem a qual não se viabiliza o pacto

http://www.unicuritiba.edu.br/sites/default/files/publicacoes/edicoes/20100420010406juridica2220091. pdf, acesso em 11/12/2011 às 9h00. 203 A esse respeito, que se lembre a lição de Emerson Gabardo, destacando que o princípio da subsidiariedade, que estabelece que a atuação interventiva do Estado na economia só deve ocorrer em situações de excepcionalidade, legando-se à iniciativa econômica privada a liberdade de atuar, não pode ser invocado para barrar (dando como excepcional) a intervenção pública; para ele, o Estado social necessariamente opõe-se à subsidiariedade; não se pode abandonar a preocupação com a natureza e a urbanização, mormente quanto à função social da propriedade urbana, no segundo caso, e quanto ao fato do meio ambiente representar fator de desenvolvimento, no primeiro. V. Gabardo, Emerson. Interesse Público e Subsidiariedade. O Estado e a Sociedade Civil para Além do Bem e do Mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 177.

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constitucional, o sentimento constitucional204 e a vontade de Constituição

205 que

legitimam o Estado brasileiro. Aí a razão de existir das agências reguladoras e

também os limites do poder regulamentar a elas confiado.

Diz Salomão Calixto Filho em seu Prefácio à obra Regulação e

Desenvolvimento: “Passada a primeira onda regulatória e revelada a impropriedade

e risco da retirada pura e simples do Estado da esfera econômica, aberto está o

caminho para a maturidade regulatória”.206

Espera-se que seja mesmo possível tal maturidade, uma vez que, como

afirma Luís Roberto Barroso, o fracasso de tal projeto obrigaria a um “longo caminho

de volta”.207

IV.3.6. A Atuação Estatal sobre o Desenvolvimento e a Sustentabilidade

Eros Grau propõe investigar o aspecto jurídico da Ordem Econômica (que

ele identifica com o “mundo do dever ser”)208 sob duas formas de indagação:

interpretando a Constituição Econômica e analisando o caráter da ordem econômica.

Para tanto, principia distinguindo a atuação estatal sobre a atividade

econômica em dois sentidos: amplo e estrito. É em sentido amplo que ocorre a

atuação estatal quando não se trata de diferenciar se ela ocorre sobre o domínio

público ou privado; é em sentido estrito – e é sinônimo de intervenção – quando o

Estado atua em área “de titularidade do setor privado”.209

Considera que a intervenção do Estado atinge principalmente o regime

dos contratos, pois a liberdade de contratar deriva da propriedade privada dos bens

de produção. 204 V. Gabardo, Emerson, op. cit., p. 181. 205 A esse respeito, V. Hesse, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1991, p. 32: “A resposta à indagação sobre se o futuro do nosso Estado é uma questão de poder ou um problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição, bem como de seu pressuposto fundamental, a vontade de Constituição. Essa tarefa foi confiada a todos nós”. 206 Calixto Filho, Salomão (coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. 207 Barroso, Luís Roberto, op. cit., p. 193. 208 Grau, Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 14ª. Ed. Rev. e Atual. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 88. 209 ibid., p. 91.

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Essa interferência se maximiza na medida em que o Estado passa de um

modelo liberal (no qual impera o voluntarismo) para um modelo intervencionista, que

Josserand chama de dirigismo contratual; os contratos deixam de ser uma

prerrogativa quase absoluta das partes de criar o seu próprio direito para se

transformar em “condutos da ordenação dos mercados, impactados por normas

jurídicas que não se contêm nos limites do Direito Civil”,210 pois na “publicização” do

Direito Privado procura-se atender ao desenvolvimento e à justiça social mais clara e

dinamicamente que no modelo liberal que o antecede.

Nessa perspectiva, o Estado deixa de atuar de maneira meramente

dispositiva, para intervir em formas e fórmulas contratuais, além de legislar sobre a

obrigação de contratar ou não contratar, surgindo daí duas novas perspectivas,

oriundas da expectativa diante da Administração Pública: (a) de comportamento

assumido perante o Estado e (b) de comportamento assumido diante dos demais

agentes econômicos.211 Normatiza-se, assim, não apenas a atividade econômica em

termos de seu exercício pura e simplesmente, mas também as relações dos agentes

econômicos entre si, o que parece causar certo impacto na espontaneidade da

vinculação contratual.

Grau cita a classificação de Larenz para as limitações que incidem sobre

a liberdade de contratar: limitações imanentes ao próprio instituto contratual e

limitações derivadas de princípios de economia dirigida.212 As primeiras dizem

respeito ao interesse público, ao dever profissional (obrigações inerentes à atividade

profissional) e à proteção da livre concorrência; as segundas tratam, como diz a

ementa do exemplo dado pela Lei 8.884/94, da “prevenção e a repressão às

infrações contra a ordem econômica” (infrações definidas pela intervenção estatal

sobre o domínio econômico).213

Eros Grau ressalta, ademais, o dirigismo sobre o próprio exercício da

atividade econômica, indo além da limitação sobre a liberdade de contratar, caso da

proibição de cessação de atividade sob pena de perda de concessão. 210 ibid., p. 93. 211 ibid., p. 96. 212 ibid., p. 96. 213 A lei 8884/94 foi revogada pela Lei 12.520/2011, que “Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica (...)” e define a estrutura vigente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

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Reitera que o contrato coativo214 é contrato, isto é, a presença do dever

jurídico vincula apenas uma das partes,215 havendo ainda manifestação de vontade

de outra(s) das partes integrantes.

A partir disso, afirma que os contratos não são objeto de estudo exclusivo

do Direito Civil, mas também do Direito Econômico.

Cumpre então determinar o que é atividade econômica. É então que Grau

informa que atividade econômica é ora gênero e ora espécie: trata-se de gênero

quando é atividade econômica em sentido amplo – incluindo aí a espécie serviço

público; trata-se de espécie quando atividade econômica em sentido estrito, distinta

da espécie serviço público, caso no qual a primeira está para o setor privado na

medida em que a segunda está para o setor público.216

Assinala o autor, ademais, que a atividade econômica em sentido amplo

inclui uma terceira espécie – a atividade ilícita, que é coibida pela Lei Penal.

Isto posto, considera Eros Grau que a inconsistência da Emenda 19/98

em relação às licitações, que obviamente devem ocorrer tanto para as empresas

estatais217 que prestam serviço público, quanto para aquelas que exercem atividade

econômica em sentido estrito, não pode dar origem a uma interpretação que isente

as empresas estatais devotadas ao serviço público em termos da necessidade de

licitação, pois o princípio republicano acaba por impor o princípio da isonomia

(implicando em igualdade de oportunidade, a todos, em termos de atividade

econômica, em sentido amplo, prestada por empresas estatais), de tal modo que,

214 Característica típica dos contratos administrativos, em que por vezes a vontade de pelo menos uma das partes é substituída pela vontade da lei (v. Grau, op. cit., p. 98). Nesse ínterim, Grau destaca que a situação obrigacional a que o particular se submete decorre de obrigação, assumida em virtude de dever jurídico que vincula o particular. A obrigação, para Grau, é em geral decorrente de manifestação de vontade, enquanto o dever jurídico se impõe; no caso do contrato coativo, a obrigação é assumida como imposição do dever dado pela vontade da lei. 215 ibid., p. 98. Eis a percepção que é suscitada no presente trabalho: vincula uma das partes de cada vez – não parece difícil imaginar situações em que, assumido o contrato, há situações em que uma parte é obrigada por determinada cláusula enquanto outra é obrigada por outra cláusula, ambas as cláusulas podendo ser legalmente impostas; é caso de contratos do tipo composto, em que há mais de uma contratação sob o mesmo instrumento. 216 ibid., p. 101: “(...) inexiste, em um primeiro momento, oposição entre atividade econômica e serviço público; pelo contrário, na segunda expressão está subsumida a primeira”. 217 ibid., pp. 103-106. O conceito aqui em uso é o do próprio Eros Grau, no mesmo texto, à p. 110 – englobando empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entes controlados pelo Estado e exploradores de atividade econômica em sentido amplo.

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ainda assim, seria necessária alguma espécie de seleção, regida pelos princípios

que regem em geral a atividade estatal.218

As fronteiras entre o serviço público e a atividade econômica em sentido

estrito são delimitadas pelas flutuações entre forças sociais e suas relações.

Incluem-se aí os conflitos entre interesses capitalistas e trabalhistas, para não dizer

que há outros.219 O capital pretende reservar para si aquela parcela da atividade

econômica (restringindo-a) que possa ser explorada imediata ou potencialmente,

sendo “objeto de profícua especulação lucrativa”,220 enquanto o trabalho aspira que

se atribua ao Estado a maior amplitude possível de atividade econômica (em sentido

amplo mesmo). Não obstante, serviço público e atividade econômica em sentido

estrito estão sujeitos a regimes jurídicos diferentes (pela Constituição, em seus arts.

173 e 175).221

Mais adiante, o autor distingue entre serviço público privativo e serviço

público não-privativo. O primeiro é privativo do Estado, podendo, porém, ser

desenvolvido por entidade privada em regime de concessão ou permissão, nos

ditames do art. 175 da Constituição Federal.

Já o serviço público não-privativo constitui-se em subespécie da atividade

econômica em sentido estrito, tendo como exemplo a prestação de serviço de saúde

e/ou educação, atividade econômica explorável tanto pelo particular quanto pelo

público. Pelo primeiro, afirma Grau que pode ser explorado independentemente de

permissão, autorização ou concessão.

No dizer de Eros Grau cabe, porém, o exame da Constituição para cada

caso, de modo a determinar se este ou aquele serviço é público ou não, e se é

privativo ou não: “pois é certo que a Constituição encerra todos os elementos e

critérios que permitem identificação de quais atividades empreendidas pelo Estado

consubstanciam serviço público”,222 sendo que, quando não for explícita tal

identificação, tem-se como suposta a partir do texto constitucional (e eis que a lei 218 E com isso é de se crer que em algum momento cair-se-ia em interpretação que levasse à aplicação da Lei 8.666/93 no âmbito federal, enquanto Eros Grau informa que há estados e municípios que possuem sua própria legislação a respeito do tema. 219 Apenas como exemplo, a proteção do meio ambiente. 220 Grau, Eros, A Ordem Econômica (...), p. 108. 221 ibid., p. 109. 222 ibid., p. 124.

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ordinária para definir serviço público naturalmente tem de se conformar à

Constituição).

Importa, ainda, determinar o interesse local, referido no art. 30 da

Constituição, como predominantemente local, para evitar confusões ao definir o

serviço público prestado em âmbito municipal.

Quanto à intervenção – que para Grau se opera na atividade econômica

em sentido estrito223 – Eros Grau assinala o preceituado no art. 173 da Constituição,

destacando que tal espécie de exploração “só será permitida quando necessária aos

imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme

definidos em lei”.224

Inclui-se nessa concepção a intervenção estatal a modo de monopólio,

coisa constante do art. 177 da Constituição. Há, pois, que se tomar certos cuidados

quanto a identificar, em certas categorias de atividade econômica em sentido amplo,

a presença do serviço público, como adverte Eros Grau com relação aos artigos 173

e 177 da Constituição Federal.

O Estado não precisa de permissão (que é o caso do art. 173 quanto à

exploração de atividade econômica em sentido estrito) para executar serviço público,

pois é seu dever prestá-lo.225

O interesse coletivo não se identifica plenamente com

o interesse social (este último, típico do serviço público).226 Daí Grau explora uma

noção de serviço público: “é atividade ‘indispensável à realização e o

desenvolvimento da interdependência social’”, devendo estar vinculado à coesão e

ao interesse social (no plano da universalidade). 227

Isto posto, distingue o interesse social do interesse coletivo, embora o

interesse público os componha em si.

O conteúdo principiológico da Constituição Brasileira – mormente os arts.

1º., 3º. e 170 – obriga o Estado a zelar, mesmo provendo à sociedade, seja a modo

de serviço público ou a modo de atividade econômica em sentido amplo, tudo que

for tido como indispensável à realização dos objetivos nacionais, à coesão e à

223 ibid., p. 109. 224 Constituição Federal, art. 173, caput. 225 Grau, Eros, A Ordem Econômica (...), p. 127. 226 ibid., pp. 127-128. A respeito do interesse social, afirma Grau: “Este está ligado à coesão social, aferido no plano do Estado, plano da universalidade” (ibid., p. 127). Quanto ao interesse coletivo: “Os interesses coletivos são aferidos no plano da sociedade civil, expressando particularismos, interesses corporativos” (ibid., pp. 127-128).

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interdependência social. Não obstante, a sociedade também é responsável, como

um todo, pela consecução dos objetivos constitucionais fundamentais, como Eros

Grau expõe, afirmando que, quando a Constituição “refere ‘a República Federativa

do Brasil’, está de fato a mencionar ‘Brasil’, a sociedade brasileira”.228 Observe-se:

Por isso dizemos que o Brasil tem como fundamentos aqueles indicados no art. 1º. e que os objetivos fundamentais do Brasil são os descritos no art. 3º. do texto constitucional. Por isso mesmo cumpre também observarmos que aí, nesses preceitos, opera-se a superação da dissociação entre a esfera política e a esfera social – aí caminham juntos, voltando-se à realização dos mesmos fins, o Estado e a sociedade.

229

A obrigação do Estado, nesse ínterim, decorre de ser um Estado

preconizado como forte e desenvolto, na medida em que for necessário, para que

realize fundamentos e concretize objetivos constitucionais de maneira plena, “a ele

incumbindo a responsabilidade pela provisão, à sociedade, como serviço público, de

todas as parcelas da atividade econômica em sentido amplo que sejam tidas como

indispensáveis à realização e ao desenvolvimento da coesão e da interdependência

social”.230

Cite-se Grau: “o interesse social exige a prestação de serviço público; o

relevante interesse coletivo e o imperativo de segurança nacional, o

empreendimento de atividade econômica em sentido estrito pelo Estado”.231

Neste ponto, Grau se propõe a aprimorar a noção fornecida acima tendo

em vista a Constituição toda, e não seus pedaços.232

É assim que considera o serviço público como historicamente

indispensável em relação à Constituição (a partir de Duguit) ou como atividade

definida constitucionalmente como serviço essencial à sociedade em determinado

momento (a partir de Cirne Lima).233

A coesão e interdependência social presentes na noção de serviço

público colocam em evidência o princípio da continuidade da prestação do serviço

227 Grau, Eros, A Ordem Econômica (...), p. 128. 228 ibid., p. 130. 229 ibid., p. 130. 230 ibid., p. 130-131. 231 ibid., p. 132. 232 ibid., p. 134: “(...) não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços”. 233 ibid., p. 135.

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público, indo contra a possibilidade de sua interrupção além do que for

regulamentarmente aceitável.234

Prosseguindo no exame das noções, Eros Grau propõe que o serviço

público caracteriza-se pelo privilégio em sua prestação, ao passo em que a atividade

econômica em sentido estrito caracteriza-se pela competição “em clima de livre

concorrência”.235

O “privilégio” envolvido na prestação do serviço público inclui em si o

atrativo para sua exploração em regime de concessão, ou permissão, por parte da

iniciativa privada, e atende à necessidade especial que determina que o serviço

público deve responder ao interesse público, atendendo ao princípio da

continuidade.

No caso do serviço público, o princípio da continuidade impõe; no caso da

atividade econômica de sentido estrito, são o ordenamento jurídico e/ou o princípio

da livre concorrência que impõem.

Isto posto, Grau estabelece a diferença entre a concessão e a delegação

do serviço público. A primeira permite prorrogação de contrato e está submetida a

condições de fiscalização, caducidade e rescisão; a segunda, não. E é o que ocorre

quando a empresa estatal é criada especificamente para fazer a exploração do

serviço público, recebendo delegação para tanto.

Veja-se, ademais, que a empresa concessionária, via de regra, tem por

objetivo o lucro (não fosse assim e dificilmente as empresas privadas teriam

interesse em serem permissionárias ou concessionárias de serviços públicos),

enquanto a empresa delegada visa o interesse público, podendo, por vezes, ser

deficitária em seu balanço financeiro, dependendo de subsídio estatal, coisa que,

não-raro, acontece.

Na delegação está o próprio Estado, mediante descentralização

administrativa, prestando a atividade econômica em sentido amplo; já na concessão

ou na permissão, o interesse privado está em jogo na maioria das ocasiões

(podendo ocorrer tônica específica quando há a concessão por parte de entidades

federativas distintas, p. ex., a União concedendo a exploração da energia elétrica a

234 Sublinhe-se: regulamentarmente (e não regularmente) aceitável. Entende-se, aliás, que a

presença de regulamento obriga a que a este anteceda determinação constitucional ou legal, estrita, que o delimita e autoriza. 235 Grau, A Ordem Econômica (...), p. 139.

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uma estatal estadual). Não obstante, é de se ter em mente que o regime de licitação

entra em jogo com relação às permissões e concessões.

A partir daí, o autor passa à classificação das modalidades de atuação

estatal na atividade econômica em sentido estrito – isto é, das espécies de

intervenção, em três classes: (a) intervenção por absorção ou participação, (b)

intervenção por direção e (c) intervenção por indução.236

No primeiro caso, o Estado atua como agente econômico direto,

explorando a atividade econômica em sentido estrito em regime de monopólio (caso

de absorção) ou em competição com o setor privado (caso de participação); Eros

Grau chama a isso intervenção no domínio econômico.

No segundo e no terceiro casos, o Estado intervém como regulador,

dirigindo (exercendo pressão sobre a economia, exercendo controle por via de

comandos legais) ou induzindo (estimulando, fomentando, incentivando ou

desencorajando por via de disposições legais) a atividade econômica em sentido

estrito, e Eros Grau chama a isso intervenção sobre o domínio econômico.

IV.3.7. O Estado Intervencionista Segundo Bonavides

No prefácio à 7ª. edição de sua obra,237 Paulo Bonavides brinda o leitor com

considerações que resumem seu esforço – de mais de cinquenta anos – pela

compreensão das necessárias mudanças que levam do Estado Liberal ao Estado

Social, enfatizando a importância fundamental deste último: “O Estado social, nós o

vislumbramos há cinco décadas, e o temos ainda por chave da crise institucional

deste País. (...) Com o Estado social se positivam os direitos fundamentais das

Constituições progressistas e libertárias” (p. 10). Referindo-se ao livro, afirma o

autor: “Vincula-se ele, por inteiro, a um pensamento constitucional de justiça,

liberdade, igualdade, pluralismo e democracia participativa, cultivado e desenvolvido

desde os saudosos dias de sua elaboração como tese de acesso à cátedra”.238

É neste espírito – de que se está no necessário caminho de tratamento das

mazelas que afligem a sociedade brasileira – que se lê esta contribuição do notável 236 ibid., pp. 146-147. 237 Bonavides, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 10ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

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Professor Paulo Bonavides, que anuncia por onde se embasa o Estado social ainda

no prefácio, afirmando que o Estado social “(...) tem por si a legitimidade da letra

constitucional e não unicamente a legalidade dos códigos ou das regras alteráveis

ad nutum dos legisladores de ocasião, sem mandato popular, sem legitimidade, sem

respeito à soberania”.239

Antes ainda de escrever tais comentários (observando agora seu prefácio à

6ª. edição da obra), afirmou Bonavides que o Estado Social, em sua condição

intervencionista, institui “um regime de garantias concretas e objetivas”,

diferentemente do que ocorre com o “feroz individualismo das teses liberais e

subjetivistas do passado”, sem laços com a paz e a justiça na sociedade.240 Ao

neoliberalismo associa as estratégias do capital na globalização: observando que

esse “capital internacional”241 tem “ação predatória sobre a base econômica dos

países em desenvolvimento, porquanto gira de maneira especulativa, provoca crises,

abala a fazenda pública, desorganiza as finanças internas, derruba bolsas, dissolve

economias, esmaga mercados”.242

Em outras palavras, o próprio autor afirma que o neoliberalismo transforma o

Estado e seus mecanismos em anacronismo; suas “correntes desnacionalizadoras”,

porém, são impotentes para “arrebatar o futuro” e “calar o ânimo” das aspirações

nacionais.243

O autor afirma que o Estado liberal, ao formalmente proteger a liberdade

humana, estabeleceu um Estado policial a serviço da burguesia e falhou em

preencher plenamente os conteúdos materiais da liberdade.

Para Bonavides, porém, justiça e segurança da cidadania “repousam sempre

no binômio liberdade e igualdade”,244 de modo tal que o Estado social, inclinado

irreversivelmente “para formas superiores de convivência e aperfeiçoamento

qualitativo das instituições”,245 consagra em si os valores de um sistema

238 ibid., p. 10. 239 ibid., p. 11. 240 ibid., p. 12. 241 ibid., p. 12. 242 ibid., p. 12. 243 ibid., p. 13. 244 ibid., p. 14. 245 ibid., p. 14.

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democrático: “expressão participativa a mecanismos tais como a iniciativa, o

plebiscito, o referendo e o veto popular”.246

Liberdade e igualdade caminham no Estado social promovendo-se uma à

outra:

Ontem, a liberdade impetrava o acréscimo da igualdade; hoje, a igualdade impetra o acréscimo da liberdade, acréscimo material, tudo isso com o objetivo de fazer ambas concretas, tanto a liberdade como a igualdade. Tais acréscimos, conjugadamente, preenchem as lacunas dos dois conceitos e colocam a liberdade e a igualdade no patamar da concretude constitucional propriamente dita, que é a concretude normativa a caminho da aplicabilidade imediata, acima portanto da retórica programática dos textos constitucionais que correspondem ao período de um Estado social até ha pouco meramente doutrinário, impalpável e abstrato.

247

A democracia, considerada conceito-chave do Estado social, surge mais

como direito (aliás fundamental) do que como forma de governo: “(...) o mais

fundamental dos direitos da nova ordem normativa que se assenta sobre a

concretude do binômio igualdade-liberdade (...)”.248

E continua, explicando como se organizam (em termos de gerações) tais

direitos fundamentais típicos do Estado social, arrematando-os em sua titularidade,

distribuídos em quatro gerações

(...) numa linha ascendente de desdobramento conjugado e contínuo, que principia com os direitos individuais, chega aos direitos sociais, prossegue com os direitos da fraternidade e alcança, finalmente, o último direito da condição política do homem: o direito à democracia. (...) Com efeito, tomando por base a sua titularidade, os direitos humanos da primeira geração pertencem ao indivíduo, os da segunda ao grupo, os da terceira à comunidade e os da quarta ao gênero humano.

249

Para o autor, a enunciação da democracia como direito fundamental permite

concretizá-la em âmbito internacional, penetrando nas consciências dos povos e dos

cidadãos, para depois “passar ao texto das constituições e à letra dos tratados”.250

O Estado social, enfim, é considerado por Paulo Bonavides como a própria

democracia, que surge primeiro como direito natural e em seguida é positivada na

justiça e na razão humanas.

A atitude mesma do jurista no Estado Social difere substancialmente

daquela do jurista do Estado Liberal: os primeiros são

246 ibid., p. 14. 247 ibid., pp. 14-15. 248 ibid., p. 16. 249 ibid., p. 17.

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passionais fervorosos da justiça; trazem o princípio da proporcionalidade na consciência, o princípio igualitário no coração e o princípio libertário na alma; querem a Constituição viva, a Constituição aberta, a Constituição real. Às avessas, pois, dos juristas do Estado liberal, cuja preocupação suprema é a norma, a juridicidade, a forma, a pureza do mandamento legal com indiferença aos valores e portanto à legitimidade do ordenamento, do qual, não obstante, são também órgãos interpretativos.

251

De modo tal assim é, para Bonavides, que a hermenêutica de um modelo de

Estado não serve àquela que se liga ao outro; compara os liberais aos

conservadores, e os sociais aos criativos e renovadores.

Chamando o neoliberalismo de “traição nacional”,252 o autor faz discurso

apaixonado defendendo o Estado social e condenando o liberalismo que depreda a

sociedade, transformando as conquistas sociais em miséria e violência

generalizados.

Em um tempo em que ainda existia o Estado socialista de inspiração

marxista, considerou Bonavides o fim do Estado liberal e viu no ocidente um conflito

entre o Estado social, de orientação democrática, opondo-se ao Estado socialista,

“amparado na ideia de conciliação da personalidade com a justiça social”.253

Identificando resumidamente o substrato histórico e filosófico que dá base ao

Estado liberal e, de seus escombros, faz surgir o Estado social, Bonavides coloca a

célebre pergunta de Hamlet no centro da questão que deve conduzir à “maioridade

política, social e econômica”.254

Então avisa das modalidades que distingue do Estado social: a marxista,

com “supressão da infraestrutura capitalista”,255 e a democrática, que conserva as

bases do capitalismo.

Reconhece Bonavides, nas máximas de Jellinek, a consagração da “verdade

mais simples e elementar da ciência política: o dissídio milenar entre o individual e o

social”256 cujo conflito está obviamente (mais ainda, depois dos cinquenta anos da

obra de Bonavides) longe de acabar. 250 ibid., p. 18. 251 ibid., p. 19. 252 ibid., p. 21. 253 ibid., p. 24. 254 ibid., p. 24. 255 ibid., p. 25. 256 ibid., p. 26.

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Bonavides informa que, do século XVIII ao XX, o mundo passou por duas

transformações revolucionárias que tinham por fim debater dois temas que delineiam

historicamente toda a situação presente, sintetizados nas ideias de liberdade e

igualdade; para o início da segunda metade do século XX, percebe mais duas

revoluções: a da fraternidade e a do estabelecimento do Estado social, que

concretiza constitucionalmente os direitos de liberdade e de igualdade.

Afirma que as duas primeiras revoluções se estabelecem no Primeiro Mundo

e a terceira e a quarta têm como cenário principal o que hoje se conhece como

Segundo e Terceiro Mundos – usando a expressão de Bonavides, “os povos

subdesenvolvidos”.257

Em cada revolução, enxerga a concretização de um modelo de Estado: o

liberal na primeira; o socialista na segunda; o Estado social “das Constituições

programáticas”258 na terceira; e o Estado social dos direitos fundamentais na quarta

– “este, sim, por inteiro capacitado da juridicidade e da concreção dos preceitos e

regras que garantem estes direitos”.259

Situa um momento efetivamente culminante para o jusnaturalismo na história

em tempo de Revolução Francesa, e deriva desta a produção, até hoje, de

“correntes de pensamento que transformam ou tendem a transformar a Sociedade

moderna”.260

Bonavides afirma que, nos alicerces de uma polis que pretende englobar

todo o gênero humano, encontram-se os valores abstratos da liberdade, igualdade e

fraternidade.

Mesmo reconhecidos os precursores da Revolução Francesa na inspiração

inglesa (Magna Carta, Bill of Rights) e americana (como ocorreu no Pacto Federativo

da Filadélfia), é na Declaração Universal dos Direitos do Homem que a fé política se

estabelece ideologicamente, com a universalização da ideia de cidadania.

O povo assim qualificado, titular da nova legitimidade, não somente encarna a vontade dos governados, senão que a transmuta em vontade governante. Sujeito da nova titularidade do poder, entrava ele a operar a grande estratégia libertadora do ente humano ao longo dos tempos vindouros mediante processo centralizador ainda agora em curso e com o qual se familiariza cada geração política.

261

257 ibid., p. 29. 258 ibid., p. 29. 259 ibid., p. 29. 260 ibid., p. 30.

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Na Revolução Francesa, surge o Estado de Direito, a separação dos

poderes; surgem os códigos da sociedade civil logo a seguir às Declarações de

Direitos. E aí se caracteriza o Estado liberal. Bonavides se propõe a sondar a origem

filosófica desta modalidade de Estado.

Vem a seguir o movimento socialista, com a ditadura do proletariado

oprimindo a liberdade humana, propondo-se a abolir desvios de poder que apenas

faz se propagarem. Se no liberalismo há desvios de poder típicos da ditadura do

capitalismo, há desvios de poder na ditadura do proletariado.

Porém, o Estado social constitui-se em espécie de formulação de origem

diversa do capitalismo e do socialismo, ambos nascidos na guerra. O Estado social

(que não se constitui das extremas direita ou esquerda) “deriva do consenso, das

mutações pacíficas do elemento constitucional da Sociedade, da força desenvolvida

pela reflexão criativa e, enfim, dos efeitos lentos, porém seguros, provenientes da

gradual acomodação dos interesses políticos e sociais, volvidos, de último, ao seu

leito normal”.262

Neste ponto, Bonavides percebe mudanças adaptativas no Estado social:

nascido a princípio para realizar a igualdade, “com o mínimo possível de sacrifício

das franquias liberais”,263

era um Estado social do Estado “e não o Estado social da

Sociedade, aquele que se há teorizado de último, de maneira tão correta, embora

passional. Era também o Estado social das Constituições programáticas, de que já

fizemos menção”.264

O Estado social da Sociedade, “dos direitos fundamentais”, faz-se permear

de esperanças liberais, e procura ademais preparar o advento dos direitos de

terceira geração, “os da fraternidade”.265 Aí liberdade e igualdade não se

contradizem tanto quanto em outrora; aí, segundo o autor, o cidadão vislumbra a

possibilidade de ser “efetivamente livre, igualitário e fraterno”.266 Sua legitimidade

decorre do primado dos direitos fundamentais.

Bonavides cita as duas guerras mundiais como elementos que influenciaram

(por seus resultados) a compatibilização entre os direitos de liberdade e de

261 ibid., p. 31. 262 ibid., p. 32. 263 ibid., p. 33. 264 ibid., p. 33. 265 ibid., p. 33. 266 ibid., p. 33.

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igualdade, com a tentativa de advento dos direitos de fraternidade:267 já não se trata

de filosofia, mas de normatização positiva do respeito da humanidade a um leque de

direitos fundamentais que é “ponto de partida para a futura Constituição de todos os

povos”.268

O fim do socialismo fez ressurgir o ímpeto liberal através dos movimentos

neoliberais, mormente no “Estado do Terceiro Mundo”,269 onde o Estado tem de

socorrer à economia capitalista, recaindo no “colonialismo da primeira época

industrial – de todos os colonialismos, o mais refratário à emancipação dos

povos”.270

E a solução para isso, na perspectiva de Paulo Bonavides, é justamente o

Estado social calcado nos princípios originalmente delineados pela Revolução

Francesa e seus teóricos: liberdade, igualdade, fraternidade: “os escritores políticos

do século XVIII, quanto tiveram a intuição do Estado social e proclamaram a

legitimidade do poder democrático, estavam já, sem saber, formulando e

decretando, com dois séculos de antecedência, as bases da futura Sociedade aberta

do Terceiro Milênio”.271

Paulo Bonavides reafirma a importância do Estado social como solução para

o conflito identificado desde o início entre indivíduo e sociedade:

Positivado como princípio e regra de um Estado de Direito reconstruído sobre os valores da dignidade da pessoa humana, o Estado social despontou para conciliar de forma duradoura e estável a Sociedade com o Estado, conforme intentamos demonstrar. O Estado social de hoje é, portanto, a chave das democracias do futuro.

272

267 ibid., p. 34. 268 ibid., p. 34. 269 ibid., p. 35. 270 ibid., p. 35. 271 ibid., p. 36. 272 ibid., p. 38.

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IV.3.7.1. Das Origens do Liberalismo ao Advento do Estado Social

Bonavides estuda inicialmente a liberdade frente ao Estado como elementos

opostos, tendo em conta o Estado burguês de Direito, para o qual, com Kant, é

histórica e racionalmente na Sociedade que o homem desfruta de plena liberdade;

Estado e soberania restringem a liberdade primitiva e contra ela se postam, de modo

que é preciso limitar o Estado a um mínimo, o Estado que resguarda os direitos de

liberdade do homem, o Estado-gendarme, “demissionário de qualquer

responsabilidade na promoção do bem comum”, 273 só aliás alcançado quando os

indivíduos “se entregam à livre e plena expansão de suas energias criadoras, fora de

qualquer estorvo de natureza estatal” – o que reduz a sociedade, pelo liberalismo, à

“poeira atômica de indivíduos”.274

O Estado, assim, é “criação deliberada e consciente da vontade dos

indivíduos que o compõem, consoante as doutrinas do contratualismo social”.275

Como, em teoria, ao monopolizar o poder e deter a soberania o Estado pode se

voltar contra a Sociedade que o cria, é preciso que o jusnaturalismo zele pela

criação de uma técnica da liberdade, que deve limitar o poder do “implacável

Leviatã”.276

Bonavides afirma que o “ordenamento abstrato e metafísico, neutro e

abstencionista de Kant” busca “a uma regra definitiva que consagre, na defesa da

liberdade e do direito, o papel fundamental do Estado” – como “armadura de defesa

e proteção da liberdade”.277

Essa, pois, é a primeira noção do Estado de Direito, filosófica e politicamente

evoluída; tal essência, porém, esgota-se em alheamento e falta de iniciativa social.

O direito natural, nascido na Idade Média, é utilizado pela burguesia para

limitar os poderes da Coroa; esta, tendo por esteio a teoria da monarquia divina, foi

vencida pelo jusnaturalismo.

A concepção burguesa da ordem política coloca o Estado como guardião

das liberdades individuais a partir da Revolução Francesa, entendendo a sociedade

273 ibid., p. 40. 274 ibid., p. 40. 275 ibid., p. 41. 276 ibid., p. 41. 277 ibid., p. 41.

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como “soma de átomos”.278 A classe antes dominada, agora dominante, formula os

princípios filosóficos sobre os quais opera sua revolução, e depois os generaliza

“como ideais comuns a todos os componentes do corpo social”.279

Porém, ao apoderar-se do controle da Sociedade, a burguesia já não

propugna mais pelos princípios que antes defendia, sustentando-os agora apenas

formalmente, enquanto mantém uma ideologia política de manutenção de classe, o

que representa profunda contradição na dialética do Estado moderno.

O curso das ideias, pois, pede novo leito, na medida em que a doutrina de

uma classe torna-se em doutrina de todas as classes: “da liberdade do Homem

perante o Estado, a saber, da idade do liberalismo, avança-se para a ideia mais

democrática da participação total e indiscriminada desse mesmo Homem na

formação da vontade estatal”.280 Eis, pois, o princípio democrático surgido do

princípio liberal, “rumo ao sufrágio universal”.281

Entretanto, é só no século XIX, e de modo sangrento, que o

constitucionalismo francês estabelece o sufrágio universal, com o estabelecimento

da democracia política.

Explica Bonavides que a formulação mais acabada da técnica de separação

de poderes se deve a Montesquieu, tendo por intuito a proteção dos direitos da

liberdade.282 É assim que os primeiros teóricos do constitucionalismo divisam a

solução para o “problema de limitação da soberania”, preocupação típica do

liberalismo preconizado por Locke, Kant e Montesquieu. Ao decompor os poderes,

salva-se a liberdade.

Montequieu, apoiando-se em Locke e equivocadamente supondo a divisão

dos três poderes na realidade constitucional inglesa, identifica o fato de que ‘o poder

detém o poder’,283 e tal divisão torna-se técnica “acauteladora dos direitos do

indivíduo perante o organismo estatal”,284 sem necessariamente implicar em outra

forma de governo. A separação de poderes é, pois, técnica do liberalismo. 278 ibid., p. 42. 279 ibid., p. 42. 280 ibid., p. 43. 281 ibid., p. 43. 282 ibid., p. 44. 283 ibid., p. 45. 284 ibid., p. 45.

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Locke, porém, não é plenamente feliz em sua formulação, embora

Bonavides considere praticamente inigualáveis seus argumentos em defesa dos

direitos e liberdades individuais como oponíveis ao poder político.

Em Locke, o poder se limita pelo consentimento, pelo direito natural, pela virtude dos governantes, de maneira mais ou menos utópica. Em Montesquieu, sobretudo pela técnica de sua organização, de forma menos abstrata.

285

Enquanto Locke é otimista, Montesquieu é pessimista. Bonavides mostra

que Locke defende a prerrogativa do monarca, como “o poder de fazer o bem

público, na ausência da lei”.286 Embora afirme que a limitação da prerrogativa pode

ocorrer da parte do povo, a ampla esfera de competência que Locke concede ao

monarca é interpretada por Bonavides como ato típico de absolutismo.287

Montesquieu é radicalmente contra o absolutismo. Sua doutrina

“corresponde a uma distribuição efetiva e prática do poder entre titulares que não se

confundem”.288 Segundo Bonavides, Montesquieu não é condescendente com “as

formas mitigadas de limitação do poder”.289

Segundo Bonavides, “a ideia essencial do liberalismo não é a presença do

elemento popular na formação da vontade estatal, nem tampouco a teoria igualitária

de que todos têm direito igual a essa participação ou que a liberdade é formalmente

esse direito”.290

O autor afirma que a igualdade vem do contratualismo de Rousseau, “de seu

afamado pacto social (...) em que o Homem de sua época acorrentado à torpe

servidão do absolutismo (...) sonha com a idade de ouro que antecedeu a coação

estatal”.291

Para Bonavides, Rousseau não teme o poder, nem o vê como antítese do

direito; reveste o poder de caráter jurídico e transfere-o do soberano ao povo,

integralmente, falhando nisso, pois conserva assim “aberta a porta que conduzia aos

regimes despóticos”.292

285 ibid., p. 47. 286 ibid., p. 49. 287 ibid., p. 48. 288 ibid., p. 49. 289 ibid., p. 49. 290 ibid., p. 50. 291 ibid., p. 50. 292 ibid., p. 51.

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Não obstante, Montesquieu e Rousseau encontram êxito e são acolhidos

pela teoria constitucional da Revolução.

A “vontade geral” de Rousseau, fundada no consentimento, dá ao contrato a

“transmutação dos direitos naturais em direitos civis”. A burguesia em sua ideologia

revolucionária acolheu e conciliou os princípios formulados por Montesquieu e

Rousseau (respectivamente, pluralismo e monismo); e, vinculando-os, construiu a

“engenhosa teoria do Estado liberal-democrático”.293

No entanto, Bonavides nos informa que “liberalismo e democracia nem

sempre coincidiram e se conciliaram em sua verdade conceitual”294 – e o encontro

entre ambos os princípios é mais contingente que necessário, de modo que o caráter

liberal da democracia é decorrência da oposição entre a filosofia política dos séculos

XVII e XVIII contra o absolutismo.295

Não obstante, nota Bonavides, citando Leibholz, que a democracia não se

aliou a elementos antiliberais ao longo da história. A dissociação entre liberalismo e

democracia decorre do fato de que a democracia se volta para a comunidade,

enquanto que o liberalismo não o faz. Cita ainda Luis Legaz y Lacambra, afirmando

que “a tensão entre os valores de liberdade e igualdade, constitui a essência do

drama político de nossos dias”.296

E prossegue, afirmando que: “Antes, o político (...) tinha ascendência sobre

o econômico (o feudo). Depois, dá-se o inverso: é o econômico (a burguesia, o

industrialismo) que inicialmente controla e dirige o político (a democracia), gerando

uma das mais furiosas contradições do século XIX: a liberal-democracia”.297

Tal equilíbrio se rompeu em seguida, quando a ideia democrática contida na

igualdade preponderou, com a democracia de massas ou “governante” sobre a

“democracia governada” do liberalismo.298

Bonavides considera que, para Vierkandt, a civilização se faz com a tradição

que se transmite, com alguma coisa que antecede, um esforço ou trabalho “a que se

vai ligar”.299

293 ibid., p. 52. 294 ibid., p. 52. 295 ibid., p. 53. 296 ibid., p. 54. 297 ibid., p. 55. 298 ibid., p. 55. 299 ibid., p. 55.

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Cita Vierkandt, informando que “as necessidades e interesses de uma

classe, nomeadamente da classe privilegiada, determinam em larga escala as

concepções de toda a sociedade acerca dos direitos e deveres, a moral e a baixeza,

e até mesmo, a contragosto das demais classes, o predomínio de umas sobre as

outras, através de meios espirituais e influências psíquicas”300

.

Para Vierkandt (segundo Bonavides), a constituição tem um sentido genérico

como “arte por que se distribui o poder no seio da ordem estatal”;301 na vigência do

Estado autoritário de sua época, já não ocorre a distribuição do poder segundo a

regra originária da filosofia política da democracia liberal, “mas conforme critério

largamente desigual, concentrando-se a autoridade nas mãos do princípio absoluto

ou da classe preponderante”.302

O liberalismo de então (do século XIX para o XX)

“expunha, no domínio econômico, os fracos à sanha dos poderosos. O triste capítulo da primeira fase da Revolução Industrial, de que foi palco o Ocidente, evidencia, com a liberdade do contrato, a desumana espoliação do trabalho, o doloroso emprego de métodos brutais de exploração econômica, a que nem a servidão medieval se poderia, com justiça, equiparar”.

303

As sangrentas catástrofes que avassalaram o mundo no século XX, para

Bonavides, testemunharam o esforço de “fazer surdir a liberdade humana

resguardada em direitos e garantias”.304

Bonavides enxerga em Vierkandt a importância não de uma liberdade de

arbítrio, mas sim a liberdade ética, importando nela o modo como utilizá-la, “o que se

há de fazer com ela”.305 Assim, “seria correto o conceito de liberdade do liberalismo

se os homens fossem dotados de igual capacidade”.306

Porém, a igualdade do liberalismo é apenas formal e encobre muitas

desigualdades de fato, o que faz concluir que a “valorosa” liberdade do liberalismo é

na verdade uma “real liberdade de oprimir os fracos, restando a estes, afinal de

contas, tão-somente a liberdade de morrer de fome”.307

300 ibid., p. 56. 301 ibid., p. 57. 302 ibid., p. 57. 303 ibid., p. 59. 304 ibid., p. 59. 305 ibid., pp. 60-61. 306 ibid., p. 61. 307 ibid., p. 61.

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E a Primeira Guerra Mundial parece abrir os olhos dos pensadores “da

escola liberal para essa triste e dolorosa verdade”.308

As doutrinas socialistas viam o liberalismo em contraste com a “escravidão

social dos trabalhadores”,309 que “morriam de fome e opressão, ao passo que os

mais respeitáveis tribunais do Ocidente assentavam as bases de toda sua

jurisprudência constitucional na inocência e no lirismo daqueles formosos postulados

de que ‘todos os homens são iguais perante a lei...’”.310

Assim é que Bonavides declara que

Tanto a filosofia política da esquerda como a da direita chegaram a esse resultado comum: a superação da liberdade qual a conceituava outrora o liberalismo, sem a consideração dos fatores econômicos, reconhecidos, hoje, como indispensáveis à prática da verdadeira liberdade humana.

311

A identidade do Direito com a Justiça pressupõe, assim, a recomposição do

liberalismo, temperado com os “ingredientes da socialização moderada”,312 não

apenas na forma, mas também social e economicamente.

IV.3.7.2. O Estado Liberal e a Separação dos Poderes

O art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem, em 1791, dizia que “Toda

sociedade que não assegura a garantia dos direitos nem a separação de poderes

não possui constituição”.313

Bonavides nos informa que esse princípio “já não oferece, em nossos dias, o

fascínio das primeiras idades do constitucionalismo ocidental”,314 tendo representado

seu papel histórico em tempo devido. Para ele, a separação de poderes é técnica

em declínio, tendo importância secundária em vista da necessidade de se colocar “o

social antes do humano”.315

308 ibid., p. 61. 309 ibid., p. 61. 310 ibid., p. 61. 311 ibid., p. 62. 312 ibid., p. 62. 313 ibid., p. 63. 314 ibid., p. 64. 315 ibid., p. 65.

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O que parece com isto afirmar é que trata-se de “conduzir o aparelho estatal

para uma democracia efetiva, onde os poderes públicos estejam capacitados a

proporcionar ao indivíduo soma cada vez mais ampla de favores concretos”,316

afastando-se da separação clássica entre poderes.

Bonavides nota que a separação de poderes representava, em seu devido

tempo (da Revolução Francesa e circunstâncias históricas circundantes), uma das

bases de grande renovação promovida para sepultar o feudalismo, o corporativismo,

os privilégios absolutistas do rei e as contradições com as liberdades recém-

adquiridas.317

Porém, a burguesia, ao triunfar, tomava todos os poderes, “e se justificava

socialmente como se fora o denominador comum de todas as classes, por cuja

liberdade – uma liberdade que, de modo concreto, só a ela aproveitava em grande

parte – havia terçado armas com o despotismo vencido”.318

A burguesia participava essencialmente na formação da vontade estatal do

novo Estado “liberal-democrático”,319 constituindo sua classe dominante.

O sufrágio, não-universalizado, mantinha a burguesia com seus privilégios; a

burguesia precisava garantir sua liberdade, para não ter embaraçada a livre iniciativa

material e espiritual do indivíduo.

Adota-se a doutrina de Montesquieu,320 de modo que a separação de

poderes limita o Estado e garante o indivíduo, assim se explicando a origem do

princípio de separação de poderes.

Tratava-se, indubitavelmente, da ideia que se afirmaria mais viva e palpitante no normativismo constitucional subsequente à Revolução Francesa.

321

Bonavides afirma que o padecimento com os abusos do absolutismo

justificou a elaboração da separação de poderes como técnica impeditiva à tomada

de controle absoluto do poder estatal.322

“Devemos entendê-la, pois, como arma de que se valeu a doutrina para

combater sistemas tradicionais de opressão política”.323

316 ibid., p. 66. 317 ibid., pp. 66-67. 318 ibid., p. 67. 319 ibid., p. 67. 320 ibid., p. 68. 321 ibid., p. 71.

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Porém, o Estado social moderno viu os fins do Estado crescerem. O

princípio de Montesquieu era melhor aplicável à limitação do poder do Estado e não

ao seu aumento. Daí a motivação para a mitigação deste princípio, na medida em

que o mundo moderno obriga o mundo estatal à ampliação de seus fins e sua esfera

de responsabilidades.324

No Estado moderno, em termos jurídicos e democráticos, há uma tendência

para algumas espécies de vinculação entre os poderes, com síntese e colaboração

entre os mesmos.

O mecanismo constitucional de nossos dias apresenta algumas formas de

correção da técnica separatista, de modo a desmenti-la parcialmente em relação ao

rigor doutrinário de outrora.

O sistema de freios e contrapesos constitui a primeira correção essencial que se impôs ao referido princípio, como decorrência, até certo ponto empírica, da prática constitucional, bem que não estivesse ausente das reflexões de Montesquieu.

325

Dentre tais freios encontram-se o veto e a mensagem, nas relações entre

Executivo e Legislativo, apenas para exemplificar.

Em vista do entrosamento necessário dos poderes, o arrefecimento da

mecânica anterior de separação, acentuando a solidariedade íntima entre

instituições políticas, sofreu considerações por parte de Jellinek, que afirmou que a

separação entre poderes é apenas política, com uma unidade estatal que é

preservada em termos teoricamente democráticos, opondo-se ao despotismo;

porém, o apoio da soberania sobre a vontade geral do povo demonstrou para

Jellinek (segundo Bonavides) que o senhor do Estado mudou de nome, mas não de

essência. Antes era o rei (com Hobbes); agora, se chama povo, com Rousseau.326

Bonavides cita Jellinek, que afirma que não devemos falar em divisão de

poderes, pois “o ‘poder não se divide subjetivamente, nem mesmo como atividade; o

que se divide é o objeto do poder, ao qual se dirige a atividade estatal’”.327

No exame da evolução da separação entre poderes da Revolução Francesa

até os dias atuais, Bonavides identifica uma tendência do constitucionalismo

322 ibid., p. 72. 323 ibid., p. 72. 324 ibid., p. 73. 325 ibid., p. 75. 326 ibid., p. 77.

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contemporâneo para “estreitar a colaboração e vinculação dos poderes”. Bonavides

apoia a restrição na separação dos poderes, e propõe que a redução em suas

proporções à atual moldura é coisa adequada às funções que o Estado moderno

assume, ajuntando que a simples presença do princípio da separação dos poderes

nas Constituições presidencialistas não fez o homem mais livre.328

IV.3.7.3. O Pensamento Político de Kant

Em seguida, Bonavides aborda a influência filosófico-política de Immanuel

Kant sobre os sistemas e considerações políticas da atualidade. Nesta esteira,

considera Kant como o maior filósofo da Idade Moderna – e talvez de todos os

tempos.

Importante é a contribuição de Kant para a passagem do estado natural ao

estado civil: o direito, aqui, deixa de ser pretensão, para ser possibilidade concreta,

amparada por um poder externo, inviolável, tutelar, criado em benefício de todos: o

Estado-instituição.329

Estudando os três poderes, Kant considera o Legislativo como

irrepreensível; o Executivo, como irresistível; o Judiciário, como inapelável.330

A ordem estatal constitui um silogismo entre os poderes, colocando o

Legislativo na condição de premissa maior, o Executivo como premissa menor, e o

Judiciário como conclusão.

Kant é considerado por Bonavides, em função de propugnar pela proteção

das liberdades, como um filósofo liberal, de modo algum vinculado à base (posterior)

do pensamento marxista.

Kant é referência de liberdade para o Prof. Bonavides: “Quando a liberdade

estiver em perigo e o Direito abalado em seus últimos alicerces, haverá sempre, na

história das ideias, a imperiosa necessidade de um retorno a Kant. Não para extrair

de suas páginas cópias servis e imprestáveis, ou justificações pueris da exploração

burguesa, senão para nutrir o espírito da riquíssima e fecunda seiva de seu

327 ibid., p. 78. 328 ibid., p. 88. 329 ibid., p. 112. 330 ibid., p. 113.

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pensamento profundamente humano. Outra, por conseguinte, não poderá ser a

glória e a imortalidade desse grande filósofo”.331

IV.3.7.4. O Pensamento Político de Hegel

Afirma Bonavides:

De Hegel já se disse que a sua filosofia “é idealista, porque faz da Ideia o princípio do mundo; dinâmica, porque define o Universo pelo movimento dialético; antinômica, porque faz da oposição dos contrários o princípio mesmo da vida; humanista, porque não admite outro sujeito pensante senão o Homem”.

332

Para Bonavides, Hegel repete Kant com uma complicação adicional – em

Kant as antinomias estão imóveis, enquanto, para Hegel, surge um movimento

dinâmico que Kant ignorava.

Em Hegel, o movimento ocorrente é uma variação de compromisso entre

Ideia e Natureza, de maneira que Bonavides considera instável.

O sistema de Hegel possui três partes, que são fases do conhecimento – a

Lógica, a Filosofia da Natureza; e a Filosofia do Espírito.

Marx é um dos hegelianos de esquerda que tratam do pensamento

hegeliano, levando o princípio dialético, segundo Bonavides, “às últimas

consequências”,333 levando tais ideias à formulação do pensamento socialista.

Viveu Hegel uma das idades mais conturbadas na história do mundo. Foi contemporâneo da Revolução que acabou com a Idade Média e proclamou os direitos do homem, antes de descer às agruras da desordem, da violência e do terror.

334

Hegel presenciou as guerras napoleônicas e também a revolução liberal da

burguesia orleanista,335 e espelhou em parte seus inscritos nos acontecimentos do

país vizinho ao território alemão em que vivia; sua influência sobre Marx faz com que

este último tome a França como “palco da tragédia política na Idade Moderna”,336

331 ibid., p. 118. 332 ibid., p. 120. 333 ibid., p. 121. 334 ibid., p. 126. 335 ibid., p. 127. 336 ibid., p. 127.

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afirmando que os sucessos da “vida pública francesa expõem fielmente a história

das ideologias que deram corpo e realidade ao mundo em que vivemos”.337

Bonavides expõe que o momento histórico apresentava o ideário da

Revolução Francesa mitigado por um reacionarismo pós-napoleônico dos

restauradores, “aforçurados em recobrar as posições perdidas no passado e em

destruir indiscriminadamente as ideias novas, como se pudessem obrigar a História

a inopinados recuos”.338

Adepto da monarquia constitucional, é por isso removido Hegel, segundo

Bonavides, do epíteto de “o mais ilustre teorista do absolutismo”.339 Não obstante,

considera o autor que os estudos da corrente neo-hegeliana procuram reforçar a

interpretação usual de que Hegel seria uma espécie de “codificador do

despotismo”.340

Granjeia para si a antipatia dos franceses, que a ele se opõem, como Duguit,

que em seu tratado de Direito Constitucional opõe o Estado-colaboração francês ao

Estado-poder dos alemães.341

O século XVIII encara o Estado como mal necessário, Leviatã, inimigo da

liberdade humana, tolerável apenas porque indispensável à vida social;342 o critério

ético de valoração “residia no indivíduo e não na coletividade”.343

Hegel, ao procurar a conciliação entre indivíduo e coletividade, simpatiza

com o Estado forte, “e não com o Estado abstencionista e neutro”.344

Dessa doutrina surgirá uma esquerda hegeliana que fará, segundo

Bonavides, a “mais violenta retaliação ideológica que o século XIX já fez à doutrina

dos restauradores”.345

Para Bonavides, a crítica de Hegel à separação dos poderes leva à

conclusão de que, paradoxalmente, o filósofo contribui para as ideias liberais:

“reelaborou as bases do princípio da separação de poderes, fundou-o na ideia

organicista de interdependência e, reconciliando a base dos poderes que se

337 ibid., p. 127. 338 ibid., p. 127. 339 ibid., p. 128. 340 ibid., p. 129. 341 ibid., p. 128. 342 ibid., p. 131. 343 ibid., p. 132. 344 ibid., p. 132. 345 ibid., p. 133.

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excluem com a tese dos poderes que se coordenam, deu, por último, ao poder a

base ética necessária, que o liberalismo extremado do século XVIII lhe solapara”.346

IV.3.7.5. A Liberdade Antiga e a Liberdade Moderna

(Aparentemente, segundo Bonavides) mortos em primeira instância os ideais

liberais, com o fim da Primeira Guerra Mundial, uma tendência antiliberal investe

contra “um moinho de vento”,347 em um “esforço ideológico de preservação da

liberdade humana”.348

Bonavides considera que a democracia, para sobreviver, depende de uma

teoria política que afirme e reconcilie a ideia dos direitos sociais, que faz lícita uma maior intervenção do poder estatal na esfera econômica e cultural, com uma ideia não menos justa do individualismo, que pede a segurança e o reconhecimento de certos direitos fundamentais da personalidade, sem os quais esta se deformaria e definharia, como fonte que se deve sempre conservar de iniciativas úteis, livres e fecundas.

349

Perdura um conflito entre as ideias de liberdade antigas e modernas, em

embate no qual “o que se decide é a sorte de uma concepção de vida, ligada a um

sistema social em crise, que não despreza, contudo, frente aos padecimentos da

enfermidade que o devora, as esperanças de cura radical”.350

Benjamin Constant, constitucionalista francês, proferindo discurso em Paris,

em 1819, produz uma síntese considerada como das maiores e mais bem-

elaboradas por Bonavides, que o cita, evidenciando o contraste de duas

concepções:

“é para cada um o direito de não sujeitar-se senão às leis, de não poder ser preso, detido, condenado à morte, maltratado, sob qualquer pretexto, como decorrência do arbítrio de um ou vários indivíduos. O direito de manifestar opinião, escolher a profissão e exercê-la! Dispor da propriedade e até abusar da mesma; de ir e vir, sem obter permissão e prestar contas de seus atos ou intenções. É, para todos, o direito de reunião, seja para deliberar acerca de interesses pessoais, seja para professar o culto que lhe aprouver, a si a aos seus associados, seja, simplesmente, para preencher, da maneira mais conforme aos respectivos sonhos e pendores, os dias e as horas. É, em suma, o direito que a cada um assiste de influir no governo, já pela nomeação de todos ou de alguns funcionários, já por representações, petições, exigências, que a autoridade é mais ou menos compelida a tomar em consideração. Comparai então a esta liberdade a dos antigos.

346 ibid., p. 138. 347 ibid., p. 139. 348 ibid., p. 139. 349 ibid., p. 140. 350 ibid., p. 140.

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“Consistia essa em exercer coletiva porém diretamente várias partes de toda a soberania, em deliberar, na praça pública, a respeito da guerra e da paz, em selar com os estrangeiros tratados de aliança, em votar leis, proferir julgamentos, examinar as contas, os atos, a administração dos magistrados, fazê-los comparecer perante o povo inteiro, acusá-los, condená-los ou absolvê-los; mas, ao mesmo tempo que havia isso, que os antigos chamavam de liberdade, admitiam eles, por compatível com essa liberdade coletiva, a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo. Não encontrareis entre eles quase nenhum dos direitos que acabamos de ver como parte da liberdade entre os modernos”.

351

Conclui Bonavides que a liberdade praticada pelo mundo clássico equivale,

na modernidade, ao “cativeiro da personalidade humana”.352

Esse antiindividualismo do Estado-Cidade (índole coletivista das cidades

gregas) se impunha sobre o indivíduo da antiguidade, como nota Burckhardt, citado

por Bonavides:

“Nos tempos modernos, exceto nos programas filosóficos e idealistas, é essencialmente o indivíduo que postula o Estado, da maneira como o necessita. Exige dele, na verdade, apenas segurança, a fim de então poder desembaraçadamente desenvolver as suas forças; para tanto, oferece-lhe com prazer um sacrifício bem medido, conservando-se, porém, tanto mais grato ao Estado, quanto menor for a sua ação ulterior. A Cidade grega, todavia, parte, de antemão, do todo, que existe antes da parte, a saber, antes do lar, do homem individual. Devemos, por determinismo lógico, acrescentar: o todo sobreviverá à parte; não se trata apenas de uma preferência do geral sobre o particular, mas do permanente ao momentâneo e transitório”.

353

Segundo Bonavides, a liberdade em Burckhardt é inexistente quanto à polis

grega: “A propriedade e a vida não ostentam em face do Estado nenhuma

garantia”.354

Bonavides lembra, ainda, o comentário de Miguel Reale a respeito da polis

grega e da urbe romana:

“Quem quer que se empenhe na solução dessa antítese poderosa não poderá contestar a premente necessidade de volver os olhos para as raízes do problema, analisando na polis e na urbe um valor de liberdade que ainda não se ligara, definitiva e irrefragavelmente, à ideia de igualdade; liberdade que muitas vezes não era senão a igualdade mesma no exercício da vida política, sem reflexos diretos e imediatos no plano das garantias da vida privada... “Havia, pois, um tipo especial de liberdade, que só brilhava em sua plenitude quando o cidadão afirmava a sua vontade dentro dos limites da polis, decidindo no tumulto das assembleias: era a liberdade incipiente do homem como momento de uma vivência coletiva, identificada com a liberdade ético-religiosa da polis, semelhante até certo ponto, guardadas as diferenças de civilização, à trágica

351 ibid., pp. 145-146. 352 ibid., p. 146. 353 ibid., p. 148. 354 ibid., p. 149.

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liberdade do homem-massa, do homem-raça, do homem-nação, ou do homem- classe de nossos dias, ditada pelos imperativos de uma ‘ideologia’ qualquer, que, como um sistema cerrado e intolerante de ideias, acaba dominando os corações e as inteligências, com o sacrifício dos valores supremos da pessoa humana”.

355

Bonavides considera que no antiliberalismo das doutrinas totalitárias ocorreu

uma simpatização com o organicismo “da Antiguidade, numa possível síntese de

elementos colhidos da filosofia política de Nietzsche e Hegel. Outra ideologia de

negação mais áspera da liberdade, como a praticou o liberalismo, surde na doutrina

de Marx, Engels e Lênin”.356

É assim que o socialismo acomete contra o Estado liberal, “com furor

inaudito”.357

A profecia da extinção do capitalismo profetizada pelo Manifesto Comunista,

porém, não se viu cumprir, apesar de Bonavides considerar que a “morte do Estado

liberal é fato que já teve repercussões profundas na estrutura política dos povos

ocidentais”.358

O Estado liberal será substituído na contemporaneidade pelo Estado social,

que Bonavides se propõe a analisar a seguir.

IV.3.7.6. As Bases Ideológicas do Estado social

Bonavides considera que a ação genial de Rousseau no plano das ideias em

seu século só se compara à de Marx em nossos dias.

Rousseau deu à democracia moderna sua teoria pura. Marx emprestou ao socialismo a feição científica de que carecia, libertando-o das velhas utopias, comuns a todos os predecessores. A revolução capitalista tivera em Smith o teórico que a legitimara no campo econômico. Mas em Marx, e somente em Marx, encontrou o seu primeiro e autêntico refutador.

359

É em Rousseau, segundo Bonavides, que existe um meio entre liberalismo e

marxismo, “sobraçando a velha tese dos gregos, bastante remoçada, qual seja, a

355 ibid., pp. 160-161. 356 ibid., p. 164. 357 ibid., p. 164. 358 ibid., p. 164. 359 ibid., p. 165.

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democracia como ação política, que já não se apresenta fragmentária, mas pertence

a todos, não distingue classes e se integra na volonté générale”.360

Bonavides informa que Rousseau não considera irremediável a antítese

entre liberdade e autoridade, desde que não se ponha a ambos em antagonismo,

sendo possível integrar a liberdade com o poder: seu contratualismo tem por

consequência a ideia de democracia, entregando o poder ao povo, considerado

como seu titular legítimo.361

Ao propor a democracia, a “vontade geral” Rousseauniana “não se

compadece (...) com a índole e a estrutura do capitalismo, quando a

compreendemos em toda a inteireza”.362

Neste sentido, Rousseau se aproxima de Marx; ambos são pessimistas, nota

presente no pensamento dos dois, que examinam a sociedade de maneira

profundamente crítica e negativa, visando sua reforma e reconceituando a liberdade

do Homem.

Considera Bonavides que “o Contrato Social sacode o homem do século

XVIII com a mesma intensidade com que o Manifesto Comunista abala o século

XX”.363

Mas Rousseau não é um só, segundo o Prof. Bonavides; “seu delírio da

vontade popular, como volonté générale, é, evidentemente otimista”.364

E comenta, informando que o Homem de Rousseau não existe particular e

individualmente: é social.

Em Marx o pensamento afasta-se da política para chegar na Economia

Política. Para Marx, citado por Bonavides, a anatomia da sociedade encontra-se na

Economia Política, de modo tal que as formas de Estado e as relações jurídicas, por

si mesmas, não se explicam por si mesmas.365

Bonavides considera que Rousseau e Marx contribuem para o moderno

Estado social, na medida em que, por vias distintas, buscam a sociedade igualitária

360 ibid., p. 166. 361 ibid., pp. 168-169. 362 ibid., p. 169. 363 ibid., p. 169. 364 ibid., p. 171. 365 ibid., p. 173.

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e criticam as mazelas do Estado liberal – Marx discutindo em detalhe, aliás, as

deformações do sistema capitalista.366

Rousseau, porém, “atende com mais proveito do que Marx à criação de um

Estado social”367 porque formula sua teoria política de modo a “permitir acesso a um

socialismo moderado, por via democrática”.368 Em doutrina, Rousseau constitui, para

Paulo Bonavides, “o ponto de partida para uma compreensão social da liberdade,

revigorada com a sugestão clássica do modelo ateniense”.369

IV.3.7.7. O Estado social e a democracia

O Estado social não é um Estado socialista, nem possui “uma socialização

necessariamente esquerdista, da qual venha a ser o prenúncio, o momento

preparatório, a transição iminente”.370

Para Bonavides, o Estado social, por sua riqueza de matizes, “se

compadece com regimes políticos antagônicos, como sejam a democracia, o

fascismo e o nacional-socialismo (...) e até mesmo (...) com o bolchevismo!”.371

É o Estado social um espaço “em que se busca superar a contradição entre

a igualdade política e a desigualdade social”,372 tornando-se fator de conciliação

entre o trabalho e o capital, mitigando os conflitos sociais.

O Estado social é, por natureza, intervencionista, e “requer sempre a

presença militante do poder político nas esferas sociais, onde cresceu a

dependência do indivíduo, pela impossibilidade em que este se acha, perante

fatores alheios à sua vontade de prover certas necessidade existenciais

humanas”.373

Sob certo aspecto, o Homem de nossos dias deixou de ser tranquilo com a

superpopulação, as guerras e dificuldades econômicas e sociais; com isso, os laços

de dependência em face do Estado acentuam-se, colocando o indivíduo em perigo,

366 ibid., p. 174. 367 ibid., p. 175. 368 ibid., p. 175. 369 ibid., p. 181. 370 ibid., p. 184. 371 ibid., p. 184. 372 ibid., p. 185. 373 ibid., p. 200.

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tendo o Estado a possibilidade de transformar-se, sob o leme dos governantes

errados, em Estado social de totalitarismo, explorando a dependência básica do

indivíduo.374

Porém, o Estado social se consagra na democracia moderna, por limitar o

Estado e a economia sem eliminar as liberdades, oferecendo garantia tutelar dos

direitos da personalidade, constituindo-se na opção política e doutrinária de Paulo

Bonavides.

IV.3.7.8. A Interpretação das Revoluções

Bonavides oferece reflexões conclusivas, importando destacar alguns

pontos.

Não há Revoluções precoces; elas sempre têm o seu momento infalível, guiadas e decretadas por uma lei fatal, inexorável, suprema, contra a qual se erguem, impotentes para represá-las, os diques da ordem reacionária e as combinações ardilosas da categoria social decadente, abraçada aos símbolos do passado.

375

Nem a Revolução Francesa se legitima pelo terror, nem a Russa pela

ditadura do proletariado burocratizado.376

Conclui o autor, explicando que “criou a Sociedade vocacionadamente

universal de nosso tempo o primado dos direitos humanos fundamentais. Entraram

eles, já, na consciência de todos os povos, por obra daquelas Revoluções, cujo

alcance intentamos medir e interpretar”.377

374 ibid., p. 201. 375 ibid., p. 207. 376 ibid., p. 210. 377 ibid., p. 211.

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V. SOLIDARIEDADE, ICMS ECOLÓGICO E DESENVOLVIMENTO

SUSTENTÁVEL

V.1. AMOR, DIREITO E SOLIDARIEDADE EM AXEL HONNETH

Em sua obra Luta por Reconhecimento,378 Axel Honneth, Professor da

Universidade de Frankfurt e diretor, desde 2001, do Instituto de Pesquisa Social

sediado na mesma cidade, desenvolve os fundamentos de uma teoria social de teor

normativo partindo do modelo conceitual hegeliano de uma ‘luta por

reconhecimento’.

Tal desenvolvimento é a culminação de um trabalho que começa com

Habermas e que Honneth, que foi Assistente de Habermas, retoma, considerando o

que identificou como uma espécie de falha na teoria habermasiana, especificamente

o modo como a Teoria Crítica percebe o conflito social como parte intrínseca ao

“sistema” e sua lógica instrumental. Assim, para Honneth, a base da interação é o

conflito, e sua gramática, a luta por reconhecimento.

A crítica do autor procura retomar o pensamento do jovem Hegel, que “até

hoje não rendeu efetivamente os devidos frutos”,379 e que deu uma espécie de

“guinada teórica” na espécie de filosofia política antes produzida por Maquiavel e

Hobbes.

A partir de Hegel, segundo Honneth, “aquele processo prático de um conflito

entre os homens passou a ser atribuído a impulsos morais, não aos motivos da

autoconservação; e só porque havia conferido ao processo de ação de luta o

significado específico de um distúrbio e de uma lesão nas relações sociais de

reconhecimento”380 é que Hegel encontrou (no reconhecimento) o “medium central

de um processo de formação ética do espírito humano”.381

A referência que Honneth retoma nos escritos de Hegel encontra-se,

segundo Axel, basicamente no “Sistema de eticidade” desenvolvido por Hegel a

partir de 1802/1803 e no “sistema de filosofia especulativa” de 1803/1804, 378 Honneth, Axel. Luta por Reconhecimento: a Gramática Moral dos Conflitos Sociais. São Paulo:

Editora 34, 2003. 379 ibid., p. 30. 380 ibid., p. 30.

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considerando que a partir daí “podem ser reconstruídas as premissas de uma teoria

social autônoma”.382

Basicamente, o autor expõe que Hegel encontrou no início do Século XIX

concepções atomísticas procurando explicar a sociedade como algo construído a

partir de indivíduos isolados, de modo tal que a sociedade é uma terceira coisa

explicada como algo estranho a tais indivíduos singularmente considerados, o que

leva a pensar a comunidade como algo constituído de muitos associados; o

pensamento de Hegel diverge de tais concepções no sentido de uma “unidade ética

de todos”, intuição de juventude (segundo Honneth) que faz com que Hegel encontre

na polis um modelo político e institucional, particularmente baseando-se nas

cidades-Estado da antiguidade. 383

Em tais cidades, Hegel considera o modo como os membros da comunidade

se reconhecem a partir de sua convivência pública.384 Sob tal perspectiva, a

comunidade é uma espécie de organismo vivo, cuja ética implica em “liberdade

universal e individual” como fundamento da liberdade individual e não como

resultado da mesma: isto é, como “a possibilidade de uma realização da liberdade

de todos os indivíduos em particular”.385

Hegel, segundo o autor, encontra-se em estreita conexão com a concepção

aristotélica segundo a qual “o povo por natureza é anterior ao indivíduo; pois, se o

indivíduo não é nada de autônomo isoladamente, então ele tem de estar, qual todas

as partes, em uma unidade com o todo”.386

Assim, o convívio intersubjetivo aparece como algo que precede o indivíduo,

havendo pois uma espécie de “contrato social originário”387 que dará origem à

organização social que pressupõe a “relação de totalidade ética”. Não é tanto, aliás,

uma questão de gênese, mas sim de “transformação e ampliação das formas

primevas de comunidade social em relações mais abrangentes de interação

social”.388

381 ibid., p. 30. 382 ibid., p. 30, e também mesma página, nota 6. 383 ibid., pp. 38-40. 384 ibid., p. 40. 385 ibid., p. 41. 386 ibid., p. 42-43, com supressão das reticências e colchetes do original. 387 ibid., p. 43. 388 ibid., p. 44.

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É, porém, ao reinterpretar a doutrina do reconhecimento de Fichte que Hegel

encontrará a explicação para um processo essencial à intersubjetividade, que resulta

tanto em

crescimento dos vínculos de comunidade quanto de aumento da liberdade individual; pois só quando o curso histórico-universal do “vir-a-ser da eticidade” é concebido como um entrelaçamento de socialização e individualização pode-se aceitar que seu resultado seria também uma forma de sociedade que encontraria sua coesão orgânica no reconhecimento intersubjetivo da particularidade de todos os indivíduos.

389

Honneth destaca que Hegel descreve o surgimento da individualidade

através do reconhecimento recíproco das pessoas como seres que amam e carecem

de amor, e que o reconhecimento de tais sentimentos que incluem dependência

relativamente aos bens da vida dirige-se à formação de uma independência do

sujeito em termos de formação de uma identidade;390 a essa etapa segue-se uma

segunda, que considera “as relações de troca entre proprietários reguladas por

contrato”:391

O caminho que conduz à nova relação social é descrito como um processo de universalização jurídica: as relações práticas que os sujeitos já mantinham com o mundo na primeira etapa são arrancadas de suas condições de validade meramente particulares e transformadas em pretensões de direito universais, contratualmente garantidas. Doravante os sujeitos se reconhecem reciprocamente como portadores de pretensões legítimas à posse e desse modo se constituem como proprietários; na troca, eles se relacionam como “pessoas”, às quais cabe o direito “formal” de poder reagir com sim ou não a todas as transações ofertadas. Nesse sentido, o que aqui encontra reconhecimento no indivíduo particular, sob a forma de um título jurídico, é a liberdade negativamente determinada, “o oposto de si mesmo em relação a uma determinação de ser”.

392

Esse caminho, porém, não está isento de conflito: é pavimentado de

relações conflituosas, como evidencia Honneth.

Os diversos atos de destruição ocorrentes no ínterim de tais lutas são

chamados por Hegel de “crime”.393 Explica Honneth o que Hegel considera como

crime:

(...) ali ele entendera o ato de crime como uma ação que está ligada ao pressuposto social das relações jurídicas, na medida em que ela resulta justamente da indeterminidade da liberdade meramente jurídica do indivíduo: em uma ação criminosa os sujeitos fazem um uso destrutivo do fato de, como portadores de direitos de liberdade, não estarem incluídos no convívio social senão negativamente.

394

389 ibid., p. 45. 390 ibid., p. 49. 391 ibid., p. 50. 392 ibid., p. 50. 393 ibid., p. 51.

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Aparentemente, tal “crime” é devido ao não-reconhecimento:

Se essas formulações são concentradas e relacionadas com a antiga concepção, resulta daí a suposição de que Hegel atribui a origem de um crime ao fato de um reconhecimento ter sido incompleto: nesse caso, o motivo interno do criminoso é constituído pela experiência de não se ver reconhecido de uma maneira satisfatória na etapa estabelecida de reconhecimento mútuo.

395

A terceira etapa da liberdade negativa é, segundo se depreende de Honneth

em sua leitura de Hegel, a luta por honra.396 Aqui a questão não é defender um

direito lesado, mas a personalidade inteira: “honra”, neste caso, e “a postura que

adoto em relação a mim mesmo quando me identifico positivamente com todas as

minhas qualidades e peculiaridades”.397

Há uma espécie de aprendizado de conteúdo prático e moral em tais

conflitos, uma vez que dos mesmos deve emergir “relações de reconhecimento

eticamente mais maduras, sob cujo pressuposto se pode desenvolver então uma

‘comunidade de cidadãos livres’ efetiva”,398 havendo concomitantemente, para cada

um, aumento de saber “sobre sua própria e inconfundível identidade”.399

A partir dessas lutas individuais os seres, enfim integrando-se como

membros de um todo, hão de assumir confrontos entre comunidades sociais.400

Aqui, segundo nossa leitura, parece haver o argumento de que é

precisamente dessa espécie de “guerra civil” que surge um movimento civilizatório

de qualidade superior:

(...) pois, ferindo as pessoas primeiramente em seu direito e depois em sua honra, o criminoso faz da dependência da identidade particular de cada indivíduo em relação à comunidade o objeto de um saber universal. Nesse sentido, somente aqueles conflitos sociais nos quais a eticidade natural se despedaça permitem desenvolver nos sujeitos a disposição de reconhecer-se mutuamente como pessoas dependentes umas das outras e, ao mesmo tempo, integralmente individuadas. 401

O reconhecimento que ocorre não é puramente cognitivo, mas possui

também uma qualidade afetiva, que inclui a categoria da solidariedade entre os

394 ibid., p. 52. 395 ibid., pp. 52-53. 396 ibid., p. 55. 397 ibid., p. 55. 398 ibid., pp. 56-57. 399 ibid., p. 57. 400 ibid., p. 57. 401 ibid., p. 58.

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indivíduos, através da qual os mesmos podem se comunicar dentro do quadro de

uma comunidade ética.402

Tal espécie de formulação, em seguida, encontrará em Hegel uma mudança

de enfoque, tendo agora por objeto uma filosofia da consciência.

A “constituição de uma coletividade política como um processo de

desdobramento conflituoso de estruturas elementares de uma eticidade originária e

‘natural’”403 passa a ser entendida “como um processo de formação do espírito; esse

processo se efetua através da série de mediações próprias dos meios linguagem,

instrumento e bem familiar”404 através dos quais a consciência passa a perceber-se.

Neste caso, a realização do indivíduo se dá quando o outro, reconhecendo-o, entra

em conflito com ele.405

Em suma, o jovem Hegel tinha um projeto

(...) quase materialista: reconstruir o processo de formação ética do gênero humano como um processo em que, passando pelas etapas de um conflito, se realiza um potencial moral inscrito estruturalmente nas relações comunicativas entre os sujeitos.

406

Com tal obra, Hegel coloca em marcha um processo que em Feuerbach,

Marx e Kierkegaard culminará com uma crítica do idealismo da razão que não mais

será detido.407

Para fazer então sua leitura dos trabalhos do jovem Hegel – em vista da

atualidade histórica que procura impedir uma “recaída” a uma postura metafísica –

Honneth coloca três necessidades: (1) a de uma psicologia social empiricamente

sustentada (que Honneth encontra em George Herbert Mead;408 (2) de uma

“fenomenologia empiricamente controlada de formas de reconhecimento, mediante a

qual a proposta de Hegel pode ser examinada e, se for o caso, corrigida”;409 (3) a

consideração histórica do desenvolvimento da teoria hegeliana, pois “(...) só a virada

histórico-materialista de seus sucessores pôde-lhe conferir um lugar na realidade

social”.410

402 ibid., pp. 57-58. 403 ibid., p. 63. 404 ibid., p. 63. 405 ibid., pp. 63-64. 406 ibid., p. 117. 407 ibid., p. 118. 408 ibid., p. 123. 409 ibid., p. 121. 410 ibid., p. 122.

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A perspectiva de Mead interessa a Honneth porque se encontra muito em

consonância com a perspectiva de luta por reconhecimento de Hegel:

(...) a psicologia obtém um acesso ao seu domínio objetual desde a perspectiva de um ator que se conscientiza de sua subjetividade porque ele, sob a pressão de um problema prático a ser solucionado, é forçado a reelaborar criativamente suas interpretações da situação (...).

411

Ocorre aí uma espécie de conflito cuja solução exige considerações sobre a

interação entre os vários organismos implicados na situação social: “o

comportamento social bem-sucedido (...) leva a um domínio em que a consciência

de suas próprias atitudes auxilia no controle do comportamento de outros”.412

O processo de conscientização exige, para Mead (segundo Honneth), um

objeto social de reflexão, o “Me”,413 a que se referem as experiências subjetivas. O

“eu” sob esse aspecto está representado por algo diferente do “me” (mim), de tal

modo que o primeiro não é percebido como objeto de estudo, mas como sujeito

atuante, enquanto o segundo tem relação com a “imagem que o outro tem de mim”,

fornecendo à relação entre “eu” e “mim” possibilidade análoga à do diálogo.414

A relação com o “me” ou vários “me”(s) não é apenas da espécie de uma

interação cognitiva, mas também possui uma qualidade de experiência normativa no

sentido da formação de um juízo moral que representa a solução intersubjetiva de

conflitos.415

Ao aprender a generalizar em si mesmo as expectativas normativas de um número cada vez maior de parceiros de interação, a ponto de chegar à representação das normas sociais de ação, o sujeito adquire a capacidade abstrata de poder participar nas interações normativamente reguladas de seu meio; pois aquelas normas interiorizadas lhe dizem quais são as expectativas que pode dirigir legitimamente {a} todos os outros, assim como quais são as obrigações que ele tem de cumprir justificadamente em relação a eles. 416

Do conflito entre “eu” e “me”, nas inúmeras ocorrências da exigências de

caráter moral que surgem no processo de vida social, “surge para Mead o

movimento que constitui o processo de evolução social”,417 pois

411 ibid., p. 126. 412 ibid., p. 128. 413 Em inglês, “mim”. 414 ibid., p. 130. 415 ibid., p. 133. 416 ibid., p. 135. A preposição entre chaves foi incluída por clareza, pois não se encontra no texto e é um tanto difícil dar significado à frase sem considerar que talvez, por erro de tradução ou mesmo de tipografia, se tenha omitido tal preposição na construção da frase. 417 ibid., p. 143.

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(...) os sujeitos não podem outra coisa senão se assegurar reiteradamente, na defesa de suas pretensões espontaneamente vivenciadas, do assentimento de uma coletividade contrafaticamente suposta, que lhes faculta, comparada à relação de reconhecimento estabelecida, um maior número de direitos à liberdade. (...) “Essa é a maneira pela qual a sociedade continua a se desenvolver, a saber: por uma influência recíproca, como a que se efetua ali onde uma pessoa pensa algo até o fim. Mudamos constantemente, em alguns aspectos, nosso sistema social, e podemos fazê-lo com inteligência, porque podemos pensar”.

418

Há uma classe independente de pretensões do “eu” que agrupadas

constituem o que para Mead chama-se “autorrealização”. Ela constitui uma “espécie

particular de reconhecimento”,419 pois ocorre na relação com os outros, tendo de ser

por eles reconhecida.

Por autorrealização Mead entende o processo em que um sujeito desenvolve capacidades e propriedades de cujo valor para o meio social ele pode se convencer com base nas reações de reconhecimento de seu parceiro de interação.

420

A ideia de autorrealização de Mead carrega em si uma ideia de

“superioridade” que se constitui no “cumprimento de funções definidas”,421 como no

caso de um bom cirurgião ou um bom advogado.

A solução que Mead tem em vista é a de um vinculo entre a autorrealização e a experiência do trabalho socialmente útil: a medida de reconhecimento demonstrada a um sujeito, que cumpre “bem” a função atribuída a ele no quadro da divisão social do trabalho, basta para lhe proporcionar uma consciência de sua particularidade individual.

422

No lugar em que as concepções partilhadas do que é bom e útil (tratado

genericamente como “vida boa” por Honneth),423 coisa tratada por Mead através da

concepção de autorrealização reconhecida por todos como o que é bom ética e

moralmente, encontra-se a “solidariedade” de Hegel.424

(...) por si mesma, ela se apresenta como uma síntese dos dois modos precedentes de reconhecimento, porque ela partilha com o “direito” o ponto de vista cognitivo do tratamento igual universal, mas com o “amor”, o aspecto do vínculo emotivo e da assistência. 425

Tais elementos são, pois, padrões de reconhecimento intersubjetivo: amor,

direito e solidariedade. 418 ibid., p. 143. 419 ibid., p. 147. 420 ibid., pp. 147-148. 421 ibid., p. 150. 422 ibid., p. 150. 423 ibid., p. 151. 424 ibid., p. 153. 425 ibid., p. 153.

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A partir de então Honneth descreve uma forma de desenvolvimento da

personalidade na psicanálise de Winnicott, em que a mãe aparece como modelo a

partir do qual a criança desenvolverá mais tarde suas relações com outros objetos

sociais; daí, o modo como se desenvolve a relação amorosa significa uma espécie

de relação particular de reconhecimento recíproco, e um padrão para posteriormente

perceber e atuar socialmente.426

Toda relação amorosa, seja aquela entre pais e filho, a amizade ou o contato íntimo, está ligada, por isso, à condição de simpatia e atração, o que não está à disposição do indivíduo; como os sentimentos positivos para com outros seres humanos são sensações involuntárias, ela não se aplica indiferentemente a um número maior de parceiros de interação, para além do círculo social das relações primárias. Contudo, embora seja inerente ao amor um elemento necessário de particularismo moral, Hegel faz bem em supor nele o cerne estrutural de toda eticidade: só aquela ligação simbioticamente alimentada, que surge da delimitação reciprocamente querida, cria a medida de autoconfiança individual, que é a base indispensável para a participação autônoma na vida pública. Da forma de reconhecimento do amor, como a apresentamos aqui com o auxílio da teoria das relações de objeto, distingue-se então a relação jurídica em quase todos os aspectos decisivos; ambas as esferas de interação só podem ser concebidas como dois tipos de um e mesmo padrão de socialização porque sua lógica respectiva não se explica adequadamente sem o recurso ao mesmo mecanismo de reconhecimento recíproco. Para o direito, Hegel e Mead perceberam uma semelhante relação na circunstância de que só podemos chegar a uma compreensão de nós mesmos como portadores de direitos quando possuímos, inversamente, um saber sobre quais obrigações temos de observar em face do respectivo outro: apenas da perspectiva normativa de um “outro generalizado”, que já nos ensina a reconhecer os outros membros da coletividade como portadores de direitos, nós podemos nos entender também como pessoa de direito, no sentido de que podemos estar seguros do cumprimento social de algumas de nossas pretensões.

427

Tratando ainda da questão do respeito, Honneth distingue da

autorrealização outro elemento ao qual chama “autoestima”, identificando duas

categorias de respeito – um atribuído ao reconhecimento jurídico, e outro à estima

social.428

Para tanto Honneth refere-se a Ihering:

no “reconhecimento jurídico”, como ele também já diz em seu texto, se expressa que todo ser humano deve ser considerado, sem distinção, um “fim em si”, ao passo que o “respeito social” salienta o “valor” de um indivíduo, na medida em que este se mede intersubjetivamente pelos critérios da relevância social.

429

A diferença entre um e outro importa em ver que em um a pessoa é

reconhecida por suas propriedades universalmente aceitas como tal (comuns a

426 ibid., pp. 159- 176. 427 ibid., pp. 178-179. 428 ibid., pp. 185-186. 429 ibid., p. 184.

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todos), enquanto em outro há avaliação “gradual de propriedades e capacidades

concretas”.430

Do reconhecimento da pessoa enquanto tal se distingue então a estima por um ser humano, porque está em jogo nela não a aplicação empírica de normas gerais, intuitivamente sabidas, mas sim a avaliação gradual de propriedades e capacidades concretas; daí ela pressupor sempre, como Darwall afirma em concordância com Ihering, um sistema referencial valorativo que informa sobre o valor de tais traços de personalidade, numa escala de mais ou menos, de melhor ou pior.

431

Axel Honneth sublinha que é “(...) central para o reconhecimento jurídico a

questão de como se determina aquela propriedade constitutiva das pessoas como

tais, enquanto para a estima social se coloca a questão de como se constitui o

sistema referencial valorativo no interior do qual se pode medir o ‘valor’ das

propriedades características”.432

Aí surge inclusive a importância da luta por reconhecimento para a

compreensão de uma noção de justiça, pois a questão de

(...) qual propriedade universal deve ser protegida nos sujeitos juridicamente capazes se define pela nova forma de legitimação a que está ligado o direito moderno segundo sua estrutura: se uma ordem jurídica pode se considerar justificada e, por conseguinte, contar com a disposição individual para a obediência somente na medida em que ela é capaz de reportar-se, em princípio, ao assentimento livre de todos os indivíduos inclusos nela, então é preciso supor nesses sujeitos de direito a capacidade de decidir racionalmente, com autonomia individual, sobre questões morais; sem uma semelhante atribuição, não seria absolutamente imaginável como os sujeitos devem ter podido alguma vez acordar reciprocamente acerca de uma ordem jurídica. Nesse sentido, toda comunidade jurídica moderna, unicamente porque sua legitimidade se torna dependente da ideia de um acordo racional entre indivíduos em pé de igualdade, está fundada na assunção da imputabilidade moral de todos os seus membros.

433

Mais adiante,

A ampliação cumulativa de pretensões jurídicas individuais, com a qual temos de lidar em sociedades modernas, pode ser entendida como um processo em que a extensão das propriedades universais de uma pessoa moralmente imputável foi aumentando passo a passo, visto que, sob a pressão de uma luta por reconhecimento, devem ser sempre adicionados novos pressupostos para a participação na formação racional da vontade; já havíamos deparado com uma tese de teor análogo quando encontramos a consideração especulativa de Hegel segundo a qual o criminoso força a ordem jurídica burguesa a uma ampliação das normas jurídicas, incorporando a dimensão da igualdade material de chances. Na ciência do direito, tornou-se natural nesse meio-tempo efetuar uma distinção dos direitos subjetivos em direitos liberais de liberdade, direitos políticos de participação e direitos

430 ibid., p. 186. 431 ibid., p. 187. 432 ibid., p. 187. 433 ibid., p. 188.

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sociais de bem-estar; a primeira categoria refere-se aos direitos negativos que protegem a pessoa de intervenções desautorizadas do Estado, com vista à sua liberdade, sua vida e sua propriedade; a segunda categoria, aos direitos positivos que lhe cabem com vista à participação em processos de formação pública da vontade; e a terceira categoria, finalmente, àqueles direitos igualmente positivos que a fazem ter parte, de modo equitativo, na distribuição de bens básicos. 434

No contexto dos direitos fundamentais, Honneth cita Jellinek e Alexy,

discutindo o status negativo, o status positivo e o status ativo da pessoa de direito.435

A partir das considerações traçadas, Honneth chega a um terceiro elemento

característico das posições em que uma pessoa reconhece a si mesma, o

autorrespeito,436 segundo o qual “um sujeito é capaz de se considerar, na

experiência do reconhecimento jurídico, como uma pessoa que partilha com todos

os outros membros de sua coletividade as propriedades que capacitam para a

participação numa formação discursiva da vontade”,437

podendo referir-se

positivamente a si mesmo desse modo. Assinala Honneth, ainda, que o

autorrespeito, em geral, só é percebido em sua forma negativa – isto é, quando se

sofre com sua falta, devendo-se inferir o autorrespeito faticamente, a partir de

comparações empíricas entre grupos de pessoas, obtendo-se daí a experiência do

desrespeito.

A exposição a respeito das relações sociais de reconhecimento é resumida

por Honneth em um quadro de sua obra, onde encontramos três modos de

reconhecimento padrão: o amor (dedicação emotiva), o reconhecimento jurídico

(respeito cognitivo) e a solidariedade (estima social).438

Em seguida, Honneth discorre a respeito de identidade pessoal e as formas

de desrespeito nas mesmas três esferas de reconhecimento: na da dedicação

emotiva, considera a violação; na do respeito cognitivo, considera a privação de

direitos; na da estima social, observa a degradação.439

Na terceira parte de seu livro, Honneth aborda a filosofia social, tratando de

expor “indicadores históricos e empíricos que de modo geral fazem parecer plausível

falar, com vista aos processos de transformação histórica, do papel de dinamizador

434 ibid., p. 189. 435 ibid., p. 189. 436 ibid., p. 197. 437 ibid., p. 197. 438 ibid., p. 211. 439 ibid., pp. 213-224.

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atribuído a uma ‘luta por reconhecimento’”;440 para tanto, Honneth procura falar a

respeito da “lógica moral de lutas sociais, de sorte que não pareça mais inteiramente

despropositado do ponto de vista empírico supor aí a verdadeira fonte motivacional

de um progresso social”.441

Estudando Marx, Sorel e Sartre, aborda suas obras do ponto de vista que as

mesmas possuem a respeito da formação e dinâmica social; e considera que os três

“detiveram-se igualmente, num nível pré-científico, à experiência de que a

autocompreensão dos movimentos sociais de sua época estava atravessada

fortemente pelo potencial semântico do vocabulário conceitual do

reconhecimento”.442 Menciona a sociologia de Durkheim e Weber, para expor o fato

de que nem um nem outro, apesar das evidências, expuseram o substrato moral

inerente às lutas sociais.443

Assim, Honneth propõe que, a partir de Hegel e Mead, é possível encontrar

historicamente “o nexo afirmado entre desrespeito moral e luta social”.444

(...) são três as formas de reconhecimento do amor, do direito e da estima que criam primeiramente, tomadas em conjunto, as condições sociais sob as quais os sujeitos humanos podem chegar a uma atitude positiva para com eles mesmos; pois só graças à aquisição cumulativa de autoconfiança, autorespeito e autoestima, como garante sucessivamente a experiência das três formas de reconhecimento, uma pessoa é capaz de se conceber de modo irrestrito como um ser autônomo e individuado e de se identificar com seus objetivos e seus desejos. Ora, essa tripartição se deve a uma retroprojeção teórica de diferenciações que só puderam ser obtidas em sociedades modernas sobre um estado inicial aceito hipoteticamente; pois em nossa análise vimos que a relação jurídica só pôde se desligar do quadro ético da estima social no momento em que é submetida às pretensões de uma moral pós-convencional. Nesse sentido, é natural adotar para a situação inicial do processo de formação a ser descrito uma forma de interação social em que aqueles três padrões de reconhecimento ainda estavam entrelaçados uns nos outros de maneira indistinta; a favor disso pode depor a existência de uma moral arcaica e interna de grupo, no interior da qual os aspectos da assistência não estavam separados completamente nem dos direitos de membro da tribo nem de sua estima social. Por isso, o processo de aprendizado moral, que o quadro interpretativo em vista deve expor como modelo, teve de render duas realizações inteiramente distintas de uma vez só: provocar uma diferenciação dos diversos padrões de reconhecimento e, ao mesmo tempo, dentro das esferas de interação assim criadas, liberar o respectivo potencial internamente inscrito. Se nós distinguimos nesse sentido entre o estabelecimento de novos níveis de reconhecimento e o destacamento de suas estruturas intrínsecas, não é difícil reconhecer que somente o segundo processo se pode atribuir diretamente ao impulso das lutas sociais.

445

440 ibid., p. 228. 441 ibid., p. 228. 442 ibid., p. 253. 443 ibid., p. 254. 444 ibid., p. 256. 445 ibid., pp. 266-267.

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Honneth conclui em seu estudo que “o reconhecimento jurídico contém em si

um potencial moral capaz de ser desdobrado através de lutas sociais, na direção de

um aumento tanto de universalidade quanto de sensibilidade para o contexto”.446

Os pressupostos jurídicos da autorrealização representam uma grandeza suscetível de desenvolvimento, visto que podem ser aperfeiçoados na direção de uma consideração maior da condição particular do indivíduo, sem perder seu conteúdo universalista; por esse motivo, a relação jurídica moderna só pode entrar na rede intersubjetiva de uma eticidade pós-tradicional, como um segundo elemento, quando pensada de maneira mais ampla, incorporando esses componentes materiais.

447

O direito, deste modo, limita tanto a relação de amor quanto as condições de

exercício da solidariedade: ao passo em que protege o indivíduo, realimenta o

reconhecimento jurídico e estabelece posições morais e sociais, de modo que “a

questão sobre em que medida a solidariedade tem de entrar no contexto das

condições de uma eticidade pós-tradicional não pode ser explicada sem uma

referência aos princípios jurídicos”.448

V.2. COMPROMETIMENTO, COMUNIDADE E DESENVOLVIMENTO SOCIAL A

PARTIR DE RAINER FORST

Rainer Forst se dispõe a examinar a “possibilidade de um

conceito de justiça política e social fundamentado moralmente, que evita tanto a

objeção da cegueira frente ao contexto como também a objeção de um

contextualismo que desconhece o núcleo universalista da reivindicação por

justiça”,449 partindo de um diferenciação dos contextos em que a justiça é

conceituada ou situada.

Forst estabelece o prisma sob o qual pretende examinar os

“contextos” em que se delimita a noção de justiça, remetendo “(a) ao problema

central tratado por uma teoria da justiça; (b) ao tipo de abordagem escolhido para

esse problema; e (c) a uma proposta de solução conceitual”.450 Explica, na

446 ibid., p. 277. 447 ibid., p. 277. 448 ibid., p. 278. 449 Forst, Rainer. Contextos da Justiça. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010, p. 8. 450 ibid., p. 9.

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sequência, que seu estudo se dirige a um exame do debate complexo que se trava

entre concepções universalistas e contextualistas da justiça; notando que “é

injustificado supor que há homogeneidade em ambos os lados, como também é

equivocada a ideia de que os argumentos liberais e comunitaristas são, em princípio,

irreconciliáveis entre si”.451

Ressalta que para a perspectiva comunitarista os princípios de

justiça “resultam de um dado contexto comunitário”,452 valendo somente nele e

somente ali podendo ser realizados, enquanto que, para uma perspectiva de um

liberalismo social, ocorre uma espécie de censura à teoria comunitarista

“caracterizando-a como obcecada pelo contexto”.453

Para sua investigação, considera Forst, como central, uma

investigação de quatro planos conceituais que situam contextos de problemas

teóricos a respeito da justiça,454 e identifica tais planos por capítulos: primeiro,

criticando a concepção de pessoa; segundo, analisando a perspectiva de prioridade

dos direitos individuais frente ao bem comunitário, concepção presente nas ideias

liberais; terceiro, expondo a “força insuficientemente ‘ética’ e integradora das

concepções liberais da comunidade política”;455 e quarto, criticando as teorias

universalistas da moral.

Assim, Rainer Forst propõe basicamente que uma teoria da

justiça não pode prescindir do exame dos contextos teóricos de pessoa, direito,

política e moral: “os planos distinguidos por esse modo de abordar o debate

possibilitam não apenas uma análise clara dos problemas nele envolvidos, como,

tomados em conjunto, constituem – e aqui reside o que há de específico na

controvérsia – o âmbito no qual uma teoria da justiça tem de se confirmar”,456 de

modo tal que “a estrutura básica da sociedade pode ser considerada justa (ou

justificada) à medida que é ‘justa’ para as pessoas em todas essas dimensões”,457

451 ibid., p. 10. 452 ibid., p. 11. 453 ibid., p. 11. 454 ibid., p. 12. 455 ibid., p. 12. 456 ibid., p. 12. 457 ibid., p. 13.

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podendo-se considerar como “justa a sociedade que, de maneira apropriada, unifica

esses contextos”.458

V.2.1. Constituição do Eu

No primeiro capítulo, Forst toma passo na análise da “constituição

do eu”, procurando criticar o contexto ético em que se define a pessoa tanto no

liberalismo quanto no comunitarismo, identificando o que há de próprio, o que há de

impróprio, o que há de conciliável entre ambas as posições; para isso, analisa

inicialmente Rawls (e Dworkin) e Kant numa perspectiva liberal-deontológica e

contrapondo-lhes Sandel como comunitarista, Nozick como “libertário”459

e

pontuando Taylor e MacIntyre (também como comunitaristas).460

Citando Forst,

A discussão poderia ser resumida assim: enquanto Rawls procura avaliar as pretensões dos indivíduos diante da sociedade segundo princípios de justiça aos quais todos poderiam dar seu assentimento a partir de um ponto de vista equitativo, Nozick absolutiza as pretensões

458 ibid., p. 14. 459 ibid., p. 11. 460 De se notar, aqui, um ponto a respeito da tradução efetuada por Denilson Luís Werle a respeito dessa obra: peca o tradutor por não oferecer uma diferença (que parece fundamental) entre “self” (inglês) e “selbst” (alemão) e “I” e “Ich” (respectivamente, inglês e alemão). Pois, para a maioria das teorias da personalidade típicas de grande gama da teorias em Psicologia, self e selbst não são diretamente idênticos a I e Ich, ou seja, há uma diferença entre o que é tido em português como si- mesmo e o que é visto como eu ou ego na língua portuguesa. Na medida em que o tradutor não fez essa discriminação, reduziu a chance de compreender as sutis diferenças que existem entre uma referência à personalidade como um todo (si-mesmo) e uma referência apenas parcial à personalidade (eu, ego), restringindo o que tornaria o debate mais rico, mais profundo e menos complicado. Não obstante, e tendo em mente um conhecimento (quando muito) bastante parco da língua alemã, assinala-se desta parte que talvez essa crítica seja quase imperceptível para o filósofo que não se aprofundou nas teorias psicológicas sobre a formação da personalidade (psíquica) e deixou para uma perspectiva menos profunda a questão de diferenciar entre as noções de eu e si- mesmo; mas importa que se note que, nessa perspectiva, tal distinção certamente tem relação muito próxima com as diferenças de concepção da pessoa – uma em que a pessoa se deriva a partir da comunidade, outra em que da pessoa se deriva a comunidade – de modo tal que a discussão se beneficiaria de tal diferenciação. A diferenciação entre “mim” e “eu” aparece na p. 29, com os termos em inglês “me” e “I” ao citar Mead; a psicanálise de base lacaniana sublinha a diferença entre um “moi” (francês) e o “je” (eu, em francês). Pois em ambos há uma referência a uma consciência de si- mesmo; mas a consciência de si-mesmo nem sempre é o “si-mesmo”, daí a diferença entre “eu” e “mim” – que, aliás, pouco se percebe na língua portuguesa da atualidade, por conta do precário ensino em nossas escolas; e isso mesmo tem consequências funestas para a formação dos profissionais brasileiros, mormente os que dependem de sutilezas da língua para pensar questões humanas profundamente. A ideia de autonomia ética, por exemplo, presente à p. 30 da obra de Forst, faz parte de teorias do desenvolvimento da personalidade em Psicologia (não especificamente com essa expressão, mas na prática com o mesmo intuito, isto é, da relatividade e dos limites da autonomia da escolha consciente ou, como diz Rainer Forst, “a reflexão sobre a vida própria” [ibid., p. 30]).

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(“naturais”) dos indivíduos contra o ponto de vista da justiça social, e Sandel absolutiza, em contraposição a isso, a pretensão prioritária de uma comunidade em relação a seus membros.

461

Após traçar considerações críticas sobre a concepção de “eu”

segundo a perspectiva liberal-deontológica e sua oposta comunitária, Forst nos traz

uma percepção que mostra as falhas da concepção de Sandel segundo a qual a

identidade da pessoa se constitui na comunidade:

(...) o que falta é um olhar diferenciado sobre as diversas formas de comunidades às quais as pessoas pertencem, sobre as normas e valores diversos por meio dos quais essas comunidades são integradas e sobre a questão acerca do quanto a identidade dos sujeitos é afetada por isso. Tal quadro diferenciado tem de fornecer uma compreensão mais dialética das relações recíprocas da individualização e da socialização do que se pode encontrar em Sandel; um modelo das relações do eu e da comunidade que esteja para além da alternativa atomismo e monismo social.

462

Neste ponto, o autor mostra que Rawls busca um equilíbrio “entre

a possibilidade dos indivíduos de formar (e revisar) seus planos de vida e a

constituição social dos indivíduos, de modo a tornar plausível a primazia da justiça

em ambas as perspectivas”.

Segundo sua concepção, é indiscutível que a fala, o pensamento e a ação dos indivíduos são constituídos socialmente e que os seres humanos se realizam em relações intersubjetivas. Entretanto, disso não se segue que não existe a possibilidade de revisar e modificar determinados objetivos, interesses e concepções do bem. Rawls conclui que o direito à liberdade pessoal corresponde, portanto, ao “desejo de ordem superior” (...) dos indivíduos de assegurar essa possibilidade. Os princípios da justiça, segundo Rawls, são compatíveis com “a natureza social dos seres humanos” (...) num sentido mais amplo. Tornam possível a existência de “uma união social de uniões sociais” na medida em que formam o quadro da cooperação social na qual os indivíduos se autorrealizam em diversas formas de vida e comunidades. Contudo, todas essas comunidades colaboram, segundo regras reconhecidas universalmente, para a vantagem geral da sociedade como um todo. Nessa visão da sociedade bem-ordenada, argumenta Rawls, ficam em aberto do ponto de vista ético quais as concepções do bem são possíveis – desde que se movimentem no espaço da justiça – concepções individualistas como também comunitaristas ou religiosas (...).

463

De tal modo isso se dá que, em Rawls (segundo diz Forst) a

justiça está estreitamente vinculada aos indivíduos, havendo congruência entre o

bom e o justo, entre a vida boa e a vida justa, possibilitando-se assim a

autorrealização dos indivíduos, bem como a ação segundo princípios de justiça,

461 ibid., p. 27. 462 ibid., p. 32. 463 ibid., p. 32.

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juntando tudo em uma vida que “torna possível o autorrespeito no reconhecimento

pelos outros”.464

Porém, Forst nota que o “Rawls tardio” diferencia-se dessa

perspectiva da congruência entre o bom e o justo. A “posição original”465 de Rawls,

incorpora, segundo o próprio Rawls, “um ideal de pessoa que fornece o ponto de

vista arquimediano para julgar a estrutura básica da sociedade”,466 tendo a posição

original a “tarefa de conceitualizar o ponto de vista moral imparcial de pessoas

autônomas, isto é, pessoas razoáveis livres e iguais”;467 “(...) a pessoa que está na

base da ‘posição original’ é caracterizada por duas capacidades fundamentais: de

ter uma concepção de bem e de ter um senso de justiça”.468 Aí o “bom” aparece

constrangido, embora não determinado, pelo “justo”. Há certo afastamento em

relação à metafísica kantiana, que porém preserva a concepção kantiana da

igualdade, na teoria de Rawls.469

Forst ainda sublinha que para Rawls há uma prioridade do

razoável (capaz de um senso prático, efetivo da justiça) sobre o racional (que inclui o

poder moral de “formular, rever e perseguir uma concepção do bem”.470 “A

‘prioridade da correção deontológica’ (ou do justo) não pode ser (...) entendida como

a prioridade do sujeito racional da livre escolha, mas sim como a do ponto de vista

da cooperação social equitativa diante da liberdade subjetiva de escolha”.471

Encontra-se assim, em Rawls, um conceito fundamental de

pessoa que não restringe o modo “como se constitui a identidade ética de uma

pessoa”,472

não impedindo os “vínculos constitutivos”, mas sublinhando a

possibilidade da pessoa examinar criticamente sua identidade e conferindo a ela um

senso de justiça que segue a princípios publicamente endossados, que norteiam a

disposição da pessoa em agir,473 o que evidencia uma atribuição moral de “razoável”

que inclui uma “concepção política de pessoa”, tal concepção de cidadania sendo

464 ibid., p. 33. 465 ibid., p. 16, n. 2. 466 ibid., p. 33. 467 ibid., p. 33. 468 ibid., p. 34. 469 ibid., p. 34. 470 ibid., p. 35. 471 ibid., p. 36. 472 ibid., p. 37. 473 ibid., p. 37.

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necessária para caracterizar legitimamente uma sociedade como democrática,474

isto é, há uma participação do cidadão na cooperação social que envolve um grau

de escolha consciente nada desprezível, pois permeia toda a fundamentação de

princípios da justiça.

Neste caminho, a pessoa de direito recobre a pessoa ética, de tal

modo que a “vida boa consiste em ter direitos que permitem uma livre escolha de

valores” (p. 38). A identidade particular fica limitada pela identidade política-jurídica:

“entre a perspectiva normativa fundamentada em direitos e a perspectiva ontológica

existe uma diferença conceitual central”.475

Essa identidade caracteriza a pessoa e sua liberdade num ponto de vista tripartite, isto é, como uma pessoa com determinadas concepções do bem e com direitos iguais para perseguir objetivos próprios e para sua possível revisão; como uma pessoa que faz determinadas reivindicações (legais) em favor de seus próprios interesses; e como pessoa que assume a responsabilidade por seus fins (...). Desse modo, pode também ser caracterizada como “identidade jurídica”, pois aqui a pessoa é considerada como sujeito de direito, como pessoa com um status legal.

476

Rawls sublinha ainda uma distinção entre Estado e comunidade,

na medida em que o primeiro é uma organização política que depende da “justiça

como equidade”, enquanto a segunda envolve perspectivas particulares de moral e

ética que, estivessem incluídas na ideia de Estado, conduziriam a “uma negação

sistemática das liberdades básicas e o uso opressivo do monopólio (legal) da força

do Estado” .477

“Pessoa do direito” é um conceito abstrato que não deve ser entendido ontologicamente; nas relações jurídicas, trata-se de direitos e deveres fundamentais que formam a base da estrutura fundamental regulada juridicamente; nas relações éticas, trata-se de doutrinas éticas “abrangentes” que determinam a vida boa dos indivíduos e as “avaliações fortes” (Taylor) de sua identidade. (...) É importante observar que a liberdade jurídica-“negativa” (liberdade pessoal de ação) e a liberdade ético-“positiva” (no sentido de uma autorrealização) estão certamente vinculadas em uma relação complexa (...) mas não se encontram, porém, situadas no mesmo plano conceitual.

474 ibid., p. 37, n. 14. 475 ibid., p. 38. Entende-se particularmente isto, entre outras coisas, como o fato de que aquilo que se é intimamente, em termos político-jurídicos, é irrelevante, na medida em que as escolhas são coerentes com a fundamentação normativa que permite agir, isto é, o que se é (eticamente) difere daquilo que “é” (ou melhor, se manifesta) no mundo do dever-ser. 476 ibid., p. 38. 477 ibid., p. 39. Nesta leitura isso se dá de modo tal que a multiplicidade contida no liberalismo é garantida pela abstenção do Estado em relação à noção de bem que é particularmente defendida por esta ou aquela comunidade, tendo o Estado que ater-se à justiça como tal (e neste sentido somente a uma concepção universal de bem que possa ser aceita por todas as comunidades que do Estado participam). Este “bem”, porém, sublinha Forst, “não pode ser considerado como uma concepção do bem que determina a identidade ética das pessoas” (ibid., p. 39).

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Argumentar a favor dos direitos individuais não significa argumentar a favor de planos de vida individualistas de pessoas “desvinculadas”.

478

Feitas tais distinções, Rainer Forst sublinha as diferenças entre

valores éticos, normas jurídicas e normas morais: os primeiros pressupõem validade

individual por adesão; as segundas, validade delimitada pela extensão da

comunidade jurídico-política a que se reportam; as terceiras possuem validade

“universal” vinculando os membros de uma comunidade “sem valerem no sentido

jurídico-positivo”.479

Tal distinção, no entanto, não invalida que os valores éticos e as

normas morais e jurídicas possam se interpenetrar, de modo tal que podemos

encontrá-los uns nos outros.

Forst propõe diferenciar melhor entre ética e direito, entre ética e

política e entre ética e moral nos capítulos seguintes, procurando ainda responder se

direito, democracia e moral podem ser definidos sem um conceito constitutivo do

bem.480

V.2.2. A Neutralidade Ética do Direito

Acerca do liberalismo, Forst explica que não é uma teoria moral

uniforme, mas uma teoria política construída historicamente, possuindo três valores

centrais: liberdade pessoal, pluralismo social e constitucionalismo político.481

“Argumentos a favor da igualdade social ou da soberania popular devem ser

construídos com base nesses valores, pois ambas não são partes desses

fundamentos centrais”.482

Forst ajunta que os princípios liberais, que incluem “direitos iguais

e um sistema político justo, isto é, que salvaguarda direitos fundamentais definidos

constitucionalmente”,483 são justificados moralmente sob argumentos diversos que

correspondem aos três valores acima expostos, ou seja, (a) sob um ponto de vista

478 ibid., p. 40. 479 ibid., p. 41. 480 ibid., p. 43. 481 ibid., p. 46. 482 ibid., p. 46. 483 ibid., p. 46.

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individualista, como liberdades negativas (ou garantias de proteção e liberdade

pessoal); (b) sob um ponto de vista pluralista, como acordo de tolerância recíproca

de diferenças éticas (pluralismo); (c) sob um ponto de vista procedimental, como

interesse universal representado pelo consenso mútuo de todos os envolvidos.484

Citando Dworkin, Ackerman e Larmore em suas posições

respectivas na defesa do liberalismo, Forst mostra que o princípio da neutralidade

norteia um espécie de independência em relação às noções pessoais ou particulares

de bem, e que, embora não exclua as perspectivas típicas desta ou daquela posição

ética, implica tal princípio em que nenhuma concepção de bem seja superior à outra,

e que, para se resolver pontos controversos, é preciso retroceder a um fundamento

neutro comum visando superar desacordos.485 Assim, a exclusão de argumentos

éticos só ocorre na medida em que não há consenso entre posições discordantes.

O fundamento “neutro” não é resultado, mas sim pressuposto do

acordo racional,486 constituindo-se em exigência moral:

O que é exigido dos cidadãos não é a luta pela paz social, mas o reconhecimento moral das normas do diálogo racional e o respeito recíproco das pessoas como fins, em sentido kantiano, exigido pelo próprio diálogo (e, portanto, mais fundamental). O princípio da neutralidade não é, portanto, apenas uma oportunidade em vista das oposições éticas intransponíveis, mas é um princípio moral de justificação: “se nosso propósito é imaginar princípios de associação política e se nesse esforço estamos decididos a respeitar cada um como pessoa, então os princípios a serem estabelecidos devem ser justificáveis a todos os que a eles estarão vinculados”.

487

O desacordo, porém, pode chegar aos limites do que é razoável, reduzindo a

existência de um fundamento comum neutro à observação de regras de

compromisso (representando, por isso, conflito quanto aos fundamentos morais da

norma). As soluções para tal impasse são variadas, começando pela posição das

regras de compromisso488 e indo em Nagel, por exemplo, à ideia de “imparcialidade

de ordem mais elevada”, remetendo a uma “justificação pública”.489 Neste caso, o

argumento é de que tal imparcialidade está acima de qualquer questão ética, sendo

fundamento para o direito válido e encontrando-se no plano do que é universalmente

vinculante. Dois são os argumentos que justificam (segundo Nagel) tal fundamento: 484 ibid., p. 47. 485 ibid., pp. 48-50. 486 ibid., p. 51. 487 ibid., p. 51. 488 ibid., p. 52, n. 8. 489 ibid., p. 52.

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o kantiano, de reciprocidade, e o epistemológico, de universalidade; e ambos os

argumentos visam a separação entre valores éticos (particulares) e princípios

políticos (públicos).

A reciprocidade consiste em considerar como imoral forçar alguém a

perseguir fim de cuja necessidade não se ache plenamente convencido, e ainda aqui

tal consideração depende do modo como a situação é descrita.490 Já o argumento

da universalidade “pretende mostrar que é ilegítimo recorrer à verdade de uma

concepção ética para justificar a coerção jurídica”.491 Isso significa separar crença

(verdade pessoal) de verdade (no sentido universal, isto é, algo que possa ser aceito

por aqueles que não defendem pessoalmente determinado preceito); novamente,

tem-se a separação entre domínio privado e público em sentido epistemológico, pois

no caso da crença a verdade é privada, enquanto no reconhecimento público a

verdade pode aspirar à universalidade, ultrapassando, portanto, o terreno da

concepção ética particular.

Tal separação epistemológica, porém, nem sempre corresponde a algo que

se possa considerar como verdadeiro – pois, por vezes, a verdade privada pode ser

defendida publicamente.492 Nestes casos é preciso afirmar a possibilidade de pontos

de vista imparciais em que seja possível se colocar no lado externo ao ponto de vista

particular, de modo a observá-lo com a imparcialidade necessária, constituindo-se tal

critério em objetividade que vai além da simples aceitabilidade, sendo a objetividade

“condição da universalidade e publicidade”.493

Observa Forst que não deve haver possibilidade de que o reconhecimento

de uma convicção subjetiva (ética) questione a validade de um fundamento moral,

separando-se os contextos.

Por meio de um limite de reciprocidade e universalidade (…) as pessoas são protegidas de serem forçadas a adotar modos de vida que não podem ser exigidos recíproca e universalmente; mas normas que não podem ser rejeitadas por tais razões devem ser aceitas – nisso reside o momento deontológico da ideia de justificação pública.

494

Neste ponto Forst nota que, apesar da neutralidade representar elemento

constitutivo da teoria liberal, Rawls confunde moral e política, emprestando ao

490 ibid., p. 52. 491 ibid., p. 53. 492 ibid., p. 54. 493 ibid., p. 54. 494 ibid., p. 56.

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fundamento de moralidade uma conotação que na verdade pressupõe uma

concepção política da moral (assim identificando moral e política).495 Assim, afirma

Forst que, neste ponto, Rawls defende um ponto de vista ético sobre no que se

constitui a “vida boa”.

Desenvolvendo o tema, o autor afirma que “O reconhecimento dos limites da

reciprocidade e da universalidade é uma exigência normativa indispensável para os

membros de uma comunidade jurídica”,496 isto é, tais membros devem ser tão

razoáveis que seja possível aplicar criteriosamente tais limites, de modo a resolver

os conflitos que surgirem, e isso implica um grau de tolerância capaz de reconhecer

racionalmente as limitações próprias no contexto ético.

Assim, Forst refina o significado de neutralidade, como sendo uma

imparcialidade moral da justificação que inclui a neutralidade de justificação, a

neutralidade das razões e a neutralidade procedimental, como critério de justificação

da validade; isso significa que “os princípios do direito são justificados de acordo

com os critérios da reciprocidade e da universalidade estrita e podem ser limitados

somente com razões que satisfazem esses critérios”,497 inclusive a discussão sobre

a justificação (que implica em validade) de direitos fundamentais.498 Deste modo, as

normas universais “formam a estrutura para o tratamento das questões que são

controversas no sentido razoável”.499

Além disso, “os critérios de universalidade estrita e limitada não desvinculam

de seus contextos sociais as argumentações nem as normas justificadas”,500 isto é,

posições éticas e políticas podem ser incluídas como válidas e universais desde que

sejam traduzíveis como argumentos universais.

A neutralidade proíbe a discriminação eticamente motivada de formas de vida, mas não garante que todos serão atingidos da mesma maneira pelas decisões, pelo desenvolvimento da comunidade política e pelas mudanças sociais. Uma fundamentação ética das regulações jurídicas não pode ser inferida dos diferentes efeitos que essas regulações podem ter sobre as comunidades éticas. Embora isso seja possível no sentido crítico, não se segue daí nenhuma consequência afirmativa no sentido de que o direito é e deveria ser fundamentado eticamente sem reservas. 501

495 ibid., p. 57, e também p. 57 n. 9. 496 ibid., p. 63. 497 ibid., p. 64. 498 ibid., p. 63. 499 ibid., p. 65. 500 ibid., p. 66. 501 ibid., p. 66.

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MacIntyre, segundo Forst, é acidamente cético à proposta de neutralidade

liberal, considerando que tal concepção é uma tentativa do Iluminismo de “justificar

uma concepção moral livre das tradições históricas, das práticas éticas e de uma

visão teleológica da natureza humana”,502 elementos centrais para um conceito de

virtude, sem os quais não se pode conceber a justiça. MacIntyre considera que o

pluralismo, na ausência de uma concepção comum de bem, é outra espécie de

guerra civil.

Para MacIntyre, os valores pessoais são construídos no seio da comunidade

a que o indivíduo pertence, e não podem ser abandonados para dar lugar a uma

concepção de neutralidade.

Rebatendo tal concepção, Dworkin destaca: “o liberalismo não pode ser

baseado no ceticismo. Sua moralidade constitutiva afirma que os seres humanos

têm de ser tratados como iguais por seus governos, não porque não existe o certo e

o errado na moralidade política, mas porque isso é o que é correto”.503

MacIntyre diz ainda que o liberalismo não pode aspirar a uma validade

universal, mas apenas ocidental, estando fundamentando numa concepção

“específica da vida boa”.504 Comenta ainda que a validade da concepção liberal é

ainda mais restrita, no ocidente, às culturas que compartilham “uma teoria

individualista do bem”505 na qual o liberalismo se apoia.

“O liberalismo não apenas não é neutro quanto ao seu efeito, mas também

quanto aos seus objetivos e sua justificação; por isso a ética que o fundamenta é

sem substância”,506 eis como Forst expõe a crítica de MacIntyre e outros

comunitaristas, que vêm no liberalismo uma “má teoria do bem”,507 justificado mais

política do que filosoficamente.

A tais críticas respondem os liberalistas, tendo como argumentos básicos

fatores que implicam em fundamentar a prioridade moral sobre a ética. Veja-se

Ackerman, ressaltando os elementos que justificam tal perspectiva: “realismo sobre

a corruptibilidade do poder; o reconhecimento da dúvida como um passo necessário

502 ibid., p. 67. 503 ibid., p. 69. 504 ibid., p. 70. 505 ibid., p. 70. 506 ibid., p. 70. 507 ibid., p. 70.

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ao conhecimento moral; respeito pela autonomia das pessoas; e ceticismo no que se

refere à realidade do significado transcendente”.508

Para Rawls, que não nega haver na teoria liberal uma concepção subjacente

de bem, é o caso de afirmar que tal bem é de natureza universalista, incluindo

tolerantemente o bem de todos segundo parâmetros moralmente determinados; tais

ideias, de natureza política (procurando conduzir a uma sociedade ordenada em

padrões semelhantes aos de uma orquestra em harmonia), “são ou podem ser

compartilhadas por cidadãos livres e iguais” e “não pressupõem qualquer doutrina

abrangente plena (ou parcial) particular”.509

Abordando a questão de saber se e quando a concepção ideal da pessoa de

direito eticamente neutra se transforma em uma espécie de “camisa de força

ética”,510 Forst pergunta “como identidades éticas podem ser reconhecidas e

protegidas por um direito formulado universal e formalmente”,511 levando em

consideração, por exemplo, diferenças de origem, gênero e religião.

Tratando da importância da universalidade moral do direito, Forst afirma que

A convicção de uma pessoa é digna de proteção por ser determinante da identidade, e não por ser religiosa. Assim, não são nem a liberdade voluntarista de escolha e nem o valor intrínseco da religião que devem ser protegidos, mas sim a possibilidade da pessoa de poder formar e manter (bem como de também poder mudar) identidades éticas. Do ponto de vista do direito, reconhecer valores éticos determinantes da identidade não significa substituir normas morais universais por meio de valores éticos.

512

Quanto à questão que aborda como o direito “pode fazer justiça às

identidades particulares sem, por um lado, fixá-las aos padrões dos papéis

tradicionais ou, por outro, estigmatizá-las como o ‘outro’”,513 tendo em vista formas

de preservação da diferença com a eliminação concomitante de seus efeitos

desvantajosos, Forst trata do tema do reconhecimento da diferença: “Como a

imparcialidade pode fazer justiça a partes específicas e desiguais?”514

Minow propõe uma “abordagem de relações sociais” que coloca a “diferença” em um contexto social concreto: quais identidades são definidas como “diferentes” e de que modo? Quem faz essa definição? Quais identidades são autoescolhidas e quais não? (…) Consequentemente, a sensibilidade do direito depende de os próprios atingidos examinarem os conceitos de diferença e igualdade existentes em seu direito em vista de

508 ibid., p. 73. 509 ibid., p. 75. 510 ibid., p. 91. 511 ibid., p. 91. 512 ibid., p. 92. 513 ibid., p. 96. 514 ibid., p. 96.

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sua gênese e possibilidade de sua justificação e reconhecimento (…) Aqui, direitos são indispensáveis: por enquanto, os grupos excluídos articulam seus interesses e necessidades na linguagem dos direitos (…). Na medida em que o direito reconhece essas reivindicações, reconhece simultaneamente as pessoas como “particulares” e “iguais” – com um direito ao tratamento igual material, que, segundo o contexto, torna necessárias regulações para garantir direitos iguais a uma identidade predeterminada. Diferentemente de um conceito comunitarista substantivo ou ético-liberal de pessoa de direito, uma compreensão procedimental do direito fornece, nesse contexto, a possibilidade de deixar em aberto esse conceito como “capa protetora” de identidades éticas e não lhe acrescentar, em nome de valores sociais, critérios que especifiquem quais identidades e de que modo devem ser reconhecidas. (…) A justificação recíproca e universal de normas, no entanto, exige que as reivindicações particulares ao reconhecimento jurídico-universal sejam justificadas universalmente, isto é, que possam se referir a uma reinterpretação das normas de tratamento igual. Uma “falsa” universalidade existente deve ser criticada e modificada com argumentos justificados universal e reciprocamente – que se referem a tratamentos desiguais em contextos concretos. 515

De tal perspectiva, e de seu desenvolvimento, deriva-se mais além a posição

segundo a qual os direitos subjetivos de liberdade, justificados universal e

reciprocamente, asseguram como consequência liberdades éticas positivas516 (por

meio da imposição de sua proteção negativa) assegurada juridicamente,517 de tal

modo que “direitos subjetivos básicos são, portanto, garantidos por normas que ‘não

podem ser razoavelmente rejeitadas’, que correspondem a critérios estritos da

‘reciprocidade’ e ‘universalidade’”,518 por isso mesmo não admitindo contestação.

V.2.3. O Ethos da Democracia

Tendo observado as posições a respeito da constituição da identidade ética

da pessoa e sua inserção (como pessoa de direito) em uma comunidade de direitos,

Forst move-se para o campo político e agora se debruça sobre a pessoa política, isto

é, sobre a questão da cidadania. Valendo-se do que até então foi estudado, afirma

que

Do ponto de vista típico ideal, se o comunitarismo apreende a cidadania como sendo constituída eticamente e caracterizada por virtudes orientadas para o bem comum, o liberalismo, por sua vez, entende a cidadania como sendo primeiramente um status jurídico de liberdades subjetivas iguais. Do mesmo modo, enquanto uma posição comunitarista compreende a integração social e política como a afirmação da unidade social sobre o solo de valores ético-culturais compartilhados, que vinculam a identidade dos sujeitos e da

515 ibid., p. 96-97. 516 I. é., liberdades de ser, de escolher a posição ética particular. 517 ibid., p. 105. 518 ibid., p. 105.

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coletividade, uma posição liberal faz apenas suposições mínimas sobre quais aspectos comuns (...) integram normativamente uma comunidade política, a saber, a garantia recíproca de direitos fundamentais e princípios fundamentais.

519

Assim, a perspectiva de Forst a respeito de cidadania, do ponto de vista

comunitarista, está associada a uma consciência eticamente orientada para uma

coisa determinada que se visualiza como bem comum, enquanto, do ponto de vista

liberal, a cidadania se constitui naquele conjunto de liberdades que é típico de todos

os integrantes de uma dada comunidade política. No comunitarismo, há uma espécie

de pertencimento, enquanto, no liberalismo há um estado de garantias possíveis

previamente estabelecidas.

Por um lado, pois, entende-se a comunidade política como comunidade

ética; por outro, como comunidade de direito.520

No espaço político, moral e ética e regras de justificação podem ser uma

espécie de “camisa de força” para o discurso político; Forst explica que

Os discursos políticos têm primordialmente a tarefa de assegurar a coexistência social por meio da garantia dos direitos subjetivos – com isso, a interpretação desses direitos e a legitimação de decisões políticas em discursos argumentativos desempenham um papel subordinado. A defesa da “neutralidade” da pessoa de direito leva a uma “neutralização” dos discursos políticos entre os cidadãos. O pluralismo ético leva a um minimalismo político- jurídico em relação às questões de legitimação e integração política.

521

Uma das coisas que Forst evidencia como ligadas à percepção do que é

justo, na esfera política, é o fato de que, “à medida que existe uma ‘congruência’

entre o que é bom subjetivamente e o que é justo moralmente, como algo apropriado

à natureza social dos seres humanos, ‘a participação na vida de uma sociedade

bem-ordenada é um grande bem’”.522

Nota Forst que Rawls propõe que, para que uma sociedade seja ao mesmo

tempo pluralista e estável, “uma concepção política de justiça deve ser compatível

com uma multiplicidade de valores éticos e formas de vida e, portanto, ela mesma

deve evitar pretensões de validade ética – ela deve ser aceitável e razoável para as

519 ibid., p. 116. 520 ibid., p. 116. 521 ibid., p. 122. Uma interpretação particular de tal leitura poderia resumir tal posição como aquela do “politicamente correto”, que evita ser rechaçado por posições políticas “particulares” ou, no dizer de Forst, questões éticas que aparecem como questões privadas (ibid., p. 122). 522 ibid., p. 122.

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concepções éticas, sem contestar a verdade delas”.523 Trata-se de verificar, contudo,

o que é o mínimo que se pode assegurar em tais circunstâncias.

O “mínimo”, aliás, não exclui de todo as convicções éticas; aliás, é percebido

de todo que dificilmente um agente político abandona suas convicções; não

obstante, elas devem ser justificadas publicamente, e isso deve se dar por meio de

uma tradução gradual dos argumentos éticos “em razões que sejam aceitáveis

segundo os valores e princípios da razão pública”,524 sem o quê, em termos

políticos, a justiça não é legitimada. Assim, a fundamentação política para uma

justificação pública se dá em razões politicamente aceitas – isto é, com base no

direito e seus princípios fundamentais.525

Não obstante, Forst propõe que a justificação pode se dar mais

apropriadamente por critérios procedimentais que condicionem as razões que

atenderão ao critério de reciprocidade,526 de modo tal que não ocorra um uso da

razão pública por razões particulares, mas, diversamente, que a justificação pública

ocorra também em função da concepção de cidadania, que inclui as chamadas

“virtudes políticas” – “disposição para cooperar, tolerância, razoabilidade,

equidade”.527

Explica Forst que, dentro desse âmbito, para Rawls, “cidadãos são pessoas

com as duas capacidades morais – de ter uma concepção própria do bem e de ter

um senso de justiça – que convivem num sistema de reconhecimento recíproco e

cooperação mútua”.528

Os comunitaristas, por sua vez, concebem a comunidade política

considerando que a moral universalista corresponde a uma catástrofe moral

esvaziada de sentido, exemplificando com os ideais atuais de administradores,

terapeutas e estetas ricos e considerando a necessidade de uma tradição moral que

reencontre valores que ponham como finalidade a trindade de práxis, tradição e

biografia subjetiva, visando o enobrecimento da “narrativa da vida individual”.529

523 ibid., p. 123. 524 ibid., p. 127. 525 ibid., p. 127. 526 ibid., p. 127. 527 ibid., p. 129. 528 ibid., p. 129. 529 ibid., p. 132.

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Somente comunidades que se integram com base em características étnico-culturais e religiosas comuns estão em condição de criar semelhante forma de identidade e de vida virtuosa, e de saírem ilesas da nova era das trevas decorrente da perda da virtude.

530

Os comunitaristas, prosseguindo em sua crítica ao liberalismo, advertem que

há um empobrecimento dos “recursos conceituais que os sujeitos usam para

descreverem a si mesmos na sua vida social”531 e também um “empobrecimento do

espaço público e da própria busca por um bem comum”:532 “Isso leva a um

privatismo ensimesmado, autocentrado psicológica e politicamente, que põe em

risco a “ecologia social” de uma comunidade política”.533

De modo geral, consideram os comunitaristas que não é possível a uma

comunidade política sem a virtude do patriotismo, que o liberalismo falha em

promover, pelo enfraquecimento dos valores próprios de um bem comum de

perspectiva esmaecida na concepção liberal dessa espécie de comunidade.

Para Taylor, na perspectiva de Forst, o patriotismo não pode ser

simplesmente constitucional – ele deve ter um teor de amor, algo como o

pertencimento a uma família; deve ser, por conseguinte, sentido como uma

experiência própria, e não apenas algo ao qual se adere racionalmente.534 Deve, por

conseguinte, haver não apenas identificação, mas também participação na

concepção de cidadania de Taylor, e sem isso não pode haver solidariedade nem

estabilidade em um regime livre, que neste caso é em si mesmo um bem comum

imediato para todos os participantes da comunidade política.

Forst critica tal perspectiva sob o aspecto de que

quando o assentimento em relação aos princípios fundamentais da justiça e a participação nos discursos políticos não forem suficientes para garantir a lealdade dos membros, a teoria de Taylor parece colocar exigências muito elevadas sobre a homogeneidade de uma população política, que, no entanto, são muito difíceis de conciliar com o ‘fato’ de sociedades ética, étnica e culturalmente pluralistas.

535

É disso que trata Walzer, de cujo estudo Forst conclui que “a unidade da

comunidade política não é garantida por meio de uma identidade cultural, mas por

530 ibid., p .133. A referência de Forst é à exposição de MacIntyre a respeito do tema. 531 ibid., p .133. 532 ibid., p .133. 533 ibid., p .133. 534 ibid., p .134. 535 ibid., p. 135.

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um acordo sobre os princípios políticos da cidadania liberal”,536 de modo tal que

“cidadania é um conceito político, e não cultural”.537

Deste modo, nacionalismo e comunitarismo não são opções racionais que

apreendem a complexidade da situação americana.

Daí que o modelo de Rawls, da “união social de uniões sociais”,538 parece o

mais adequado nesta situação. A comunidade política “deve encontrar um modelo

de integração capaz de fazer a mediação entre a unidade necessária e a

multiplicidade possível, que não exclua identidades particulares, e que não obstante

não abandone uma identidade ‘abrangente’”,539 sendo, portanto, definida política e

não eticamente, afirmando Forst que “um Estado democrático tem a tarefa de

promover associações e comunidades, mas ele não pode substituí-las”.540

Os cidadãos pertencem a várias comunidades; eles são religiosos, eleitores,

contribuintes, pertencentes a diversas classes de divisão social onde vivenciam a

comunidade de todo, não podendo recorrer a um valor de bem comum, mas sim “ao

assentimento com base no consenso sobre princípios fundamentais comuns de

responsabilidade e reconhecimento recíproco”,541

devendo “responder aos

concidadãos e poder justificar-se perante eles”.542

A partir de sua crítica, Forst evidencia a necessidade de uma teoria além de

liberalismo e comunitarismo, e procura formulá-la introduzindo as noções de

sociedade civil e democracia deliberativa.

Segundo uma interpretação, a sociedade civil caracteriza um domínio parcial de associações e esferas públicas no interior da sociedade, nas quais os cidadãos deliberam sobre problemas e interesses comuns e, eventualmente, introduzem suas reivindicações nos processos institucionalizados politicamente.

543

Interessa nesse contexto, para que apareçam os cidadãos, a sociedade civil

política, uma “comunidade de comunidades sociais”,544 onde as pessoas estão

vinculadas como cidadãos e a ação política é medida por associações e

comunidades. Em tal contexto, “o Estado não é um espaço passivo da sociedade

536 ibid., p. 137. 537 ibid., p. 137. 538 ibid., p. 138. 539 ibid., p. 138. 540 ibid., p. 142. 541 ibid., p. 142. 542 ibid., p. 142. 543 ibid., pp. 144-145. 544 ibid., p. 145.

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civil nem um domínio que dela se separa estritamente, e nem um centro ativo que

tudo abrange; antes, é o lugar e o instrumento da coordenação comum da

convivência social justificada universalmente”.545

Essa “sociedade civil” requer a legitimação deliberativa do direito em procedimentos de “justificação pública” e uma forma de integração política que faça justiça tanto à pluralidade social quanto à necessidade de determinadas condições de realização da democracia deliberativa.

546

De modo geral, Forst expõe argumentos que demonstram que na sociedade

civil há uma dimensão de publicidade e responsabilidade que remete ao princípio de

justificação pública e fundamenta a democracia. Em tal dimensão, os cidadãos

assumem uma forma de responsabilidade mútua uns para com os outros, e vice-

versa.

As razões políticas têm de ser justificadas pelos cidadãos perante a comunidade de todos os cidadãos e a comunidade tem de poder assumir em comum a responsabilidade pelas decisões políticas. Essa responsabilidade não cabe aos indivíduos isolados, mas a todos como participantes de discursos e autores do direito. Nesse sentido, uma comunidade de justificação procedimental é uma comunidade de responsabilidade que tem, ao menos, a “substância” de que os cidadãos se compreendam como participantes dessa comunidade; deliberam reciprocamente e chegam a decisões que podem ser responsabilizadas coletivamente perante e com os outros. Essa forma exigente de integração política é acompanhada pela ideia de autonomia política.

547

A democracia deliberativa coloca a fonte de legitimação no processo de

“formação discursivo-argumentativa e deliberativa de uma decisão política

fundamentada universalmente, contudo sempre provisória e passível de revisão”.548

A esse respeito explica Forst que o discurso público não substitui “os

procedimentos do Estado de direito (...) e nem os domínios sociais integrados

sistemicamente, antes caracterizam a dimensão da formação da opinião e da

vontade, da qual uma sociedade constituída democraticamente não pode, em

princípio, prescindir”.549

Pretensões e razões têm de passar por procedimentos institucionais que

também têm de se submeter à justificação pública.

O princípio da democracia deliberativa é um princípio de legitimação democrática: somente podem pretender legitimidade as normas e decisões políticas que, num discurso entre cidadãos livres e iguais, podem ser questionadas e aceitas em suas consequências gerais e

545 ibid., p. 145. 546 ibid., p. 145. 547 ibid., p. 150. 548 ibid., p. 154. 549 ibid., p. 154.

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particulares. Somente assim, como diz Habermas, “podem ter a seu favor a suposição da razão prática”.

550

Para Forst, em resumo, trata-se de “(a) descoberta, (b) problematização e

(c) afirmação de uma linguagem pública entre membros de uma comunidade

política”.551

A linguagem universal dos discursos políticos está

exposta à suspeita permanente de declarar interesses particulares como se fossem universais e tem de ser vista como uma linguagem “em disputa”. Reivindicações por reconhecimento questionam tal linguagem; porém, desembocam numa linguagem “nova”, que deve ser forte o suficiente para conceder e para realizar esse reconhecimento. Universalidade e solidariedade são condições inevitáveis do reconhecimento das identidades particulares diferentes e da realização desse reconhecimento nas instituições e práticas de uma comunidade política.

552

A democracia deliberativa tem a cidadania como modo de

reconhecer a participação política não apenas como um valor instrumental, mas também como constitutivo para a vida virtuosa. Consequentemente, a democracia deliberativa não coloca, para seus cidadãos, apenas as exigências cognitivas da argumentação recíproca, mas espera deles a promoção do bem comum como um bem de ordem superior.

553

A cidadania proporciona ao cidadão uma inclusão jurídica e social que torna

possível e virtuosa a participação política, o que conduz à investigação relativa a

questões de justiça social, que, para Forst, “pertence de modo inseparável ao ethos

de uma comunidade política democrática”.554

A noção de justiça social em Forst parte da teoria da justiça de Rawls, que a

desenvolve a partir de uma “posição original” na qual as partes “são dotadas da

capacidade para a reflexão racional com base em determinadas informações sobre

as ‘circunstâncias da justiça’ e sobre as questões de organização econômica e

social”,555 que incluem escassez de recursos e necessidades econômicas e

subjetivas, tendo como pressuposto a capacidade para cooperar. Uma espécie de

lista de bens básicos que preenchem a um critério de igualdade de oportunidades

sociais, é mais ou menos definida; e as partes são colocadas diante da necessidade

de se colocarem no lugar uns dos outros para que sejam capazes de escolher

550 ibid., p. 154. 551 ibid., p. 155. 552 ibid., p. 167. 553 ibid., p. 168. 554 ibid., p. 172. 555 ibid., p. 174.

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princípios de igualdade – sem sacrificar a liberdade individual em prol da igualdade e

vice-versa.556

A posição original assim obtida é delineada segundo os seguintes princípios:

Primeiro princípio: cada pessoa tem o direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades iguais fundamentais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos. Segundo princípio: As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de modo que: (a) sob a restrição do justo princípio da poupança, elas devem trazer benefícios aos menos favorecidos; e (b) devem estar vinculadas a posições e cargos públicos abertos a todos sob as condições de uma justa igualdade de oportunidades.

557

Tais princípios

não garantem uma distribuição igual de todos os bens básicos. Porém, exigem uma igualdade: absoluta quanto aos direitos e liberdades fundamentais da pessoa, a maior possível quanto às oportunidades; e relativa quanto aos recursos materiais, segundo a qual as desigualdades precisam ser justificadas, mas que, eventualmente podem até mesmo ser justificadas.

558

Forst prossegue em sua análise da Teoria de Rawls e conclui por três

pontos de referência. O primeiro explicita que “circunstâncias sociais, enquanto

produzidas socialmente e modificáveis, não precisam ser justificadas: portanto, o

princípio da pertença igual não implica uma distribuição estrita de renda e riqueza,

mas a necessidade de justificar as distribuições desiguais”,559 tendo-se em mente

que aqueles que têm mais também têm mais a justificar perante os que têm menos.

Segundo, uma teoria procedimentalista não apenas provê argumentos para

a justificação universal mas, também, impede que “o poder econômico se transforme

em poder político e que a desigualdade social leve à exclusão política e social”.560

Terceiro, ao falar de justiça é preciso ter em mente o que é cidadão, como

membro de uma comunidade política.561

De se considerar que as “listas de bens básicos” não são definíveis a priori:

em uma sociedade o autorrespeito pode demandar estes bens e em outra pode ser

necessário aqueles outros, relativizando não apenas o teor material da justiça social

mas, também, a instrumentalização para atingi-la.562

Os três pontos de vista – a necessidade universal de justificação das desigualdades sociais, a necessidade de realização dos direitos e a garantia da possibilidade de reconhecimento e

556 ibid., p. 174. 557 ibid., p. 174. 558 ibid., p. 174. 559 ibid., p. 179. 560 ibid., p. 180. 561 ibid., p. 180. 562 ibid., p. 180.

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autorrespeito – formam o cerne de uma teoria da justiça social simultaneamente universalista e contextualista.

563

A seguir, Forst propõe-se avaliar o contexto da moral (após avaliar o

contexto ético, o do direito e o político).

V.2.4. Universalismo e Contextualismo

No que diz respeito à tentativa de encontrar um ponto de encontro entre o

que é universal e o que e contextual, Forst trata de expor o fato de que esta

controvérsia vem desde a Grécia Antiga (do ponto de vista da Filosofia),

demarcando tal posição ao citar a posição idealista de Platão em contraste com o

que chama de ceticismo aristotélico.564

Esta diferença é tomada pelos críticos na modernidade – uns advogando em

favor de concepções universais a partir das quais se poderia extrair as perspectivas

particulares; outros, defendendo o contexto como única realidade possível, em

oposição à utopia de uma universalidade inatingível; outros, ainda, procuram um

equilíbrio entre o universalismo e o contexto – um universalismo contextualista.

Para Walzer, por exemplo,565 há uma primazia da perspectiva da “caverna”

sobre os ideais platônicos, e aferra-se à diferença entre verdade filosófica e

realidade social.

Segundo Walzer, o que é importante é achar uma forma de pensamento político que evite tanto o fundamentalismo das teorias morais realistas quanto o abandono de uma teoria crítica da comunidade.

566

Para tal forma de crítica, a justificação das normas sob critérios universais é

algo limitado e idealizado:

as normas que são justificadas dessa maneira estão muito distantes dos contextos das comunidades concretas para poderem reivindicar validade para elas. São hipóteses abstratas e universais que não fazem justiça à pluralidade e ao caráter social das concepções existentes do bem.

567

563 ibid., p. 181. 564 ibid., p. 194. 565 ibid., p. 195. 566 ibid., p. 195. 567 ibid., pp. 195-196.

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Porém, notando que não se pode simplesmente abandonar o uso de

princípios universais, aqui também Forst nota um problema de contexto:

Deve-se fazer a distinção entre três questões: a da fundamentação filosófica de princípios morais, a do melhor caminho da crítica social e a da autodeterminação de uma comunidade política. Somente assim pode-se perceber o vínculo entre elas, que, diferentemente do que acredita Walzer, consiste no fato de que representam contextos diversos do princípio de justificação recíproca e universal.

568

Assim, Forst examina a noção de construtivismo na teoria de Rawls e em

seus críticos comunitaristas, e evidencia ao final deste capítulo que é possível um

diálogo entre o contextualismo e o universalismo na medida em que se pode chegar

à priorização de um bem universal, almejado pela moral, que está diretamente

relacionado à noção de justiça como coisa razoável e almejável politicamente.

(...) a moral não se refere à vida boa individual, mas à de todos de modo igual. À moral não corresponde uma determinada concepção (substantiva) do bem, mas a possibilidade universal de uma vida autônoma dentro de limites morais: o bem moralmente relevante é o universal e formal. Mas disso não se segue uma prioridade conceitual do bem, pois ele já é definido moralmente em sua formalidade e universalidade: o bem de uma existência pessoal livre é determinado por meio dos critérios de reciprocidade e universalidade como um “bem moral”, cujo respeito e concessão não podem ser negados a nenhuma pessoa com boas razões. A determinação formal, universal e “não relativa” desse bem pressupõe conceitualmente os critérios do “justo”, e não o contrário. A prioridade conceitual e normativa da moral são inseparáveis: o bem – seja compreendido de modo “forte” ou “fraco” – somente adquire validade por meio do que é justificado de modo universal e recíproco como base das pretensões morais. Assim, evidencia-se em que medida o direito a esse bem não pode ser limitado a uma determinada comunidade. Ele tem uma prioridade normativa sobre as concepções concorrentes do bem. Na medida em que a moral é explicitada – por meio de determinados do bem individual ou social – ela impõe a essa explicação determinados critérios universalizantes e formalizantes de reciprocidade e de universalidade, que são prescritos a toda validade moral de normas e à sua fundamentação “razoável” “entre” pessoas. Na ausência de “bens últimos”, o cerne de uma moral “sem andaimes” consiste nessa “incondicionalidade” autocrítica recursiva da razão. O princípio da justificação universal, por meio de seu caráter procedimental, faz jus às concepções substantivas do bem das pessoas nas comunidades sem se apoiar numa teoria do bem: em vista de questões de autodeterminação, direitos iguais, autonomia política e integridade moral, refere-se aos respectivos contextos, que são preenchidos concretamente, por pessoas morais em seu respeito mútuo. A razão prática da “moralidade” não suprime nenhum conteúdo “ético”, mas formula princípios que tornam possível conjuntamente a autodeterminação individual e coletiva. Nessa visão complexa dos diferentes contextos das questões práticas e do reconhecimento recíproco reside a possibilidade de um vínculo entre universalismo e contextualismo.

569

568 ibid., p. 196. 569 ibid., p. 274.

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V.2.5. Contextos da Justiça

Chega-se afinal, segundo parece, ao ponto culminante da exposição de

Forst, em que, sintetizando toda sua pesquisa, ele expõe sua teoria, afirmando que

princípios de justiça são aqueles que são justificados de modo universal e imparcial na medida em que correspondem, de maneira apropriada, aos interesses, necessidades e valores concretos daqueles atingidos por eles. De acordo com esses princípios, a identidade ética das pessoas é reconhecida e protegida juridicamente numa sociedade e, na verdade, por meio do direito estatuído de modo político autônomo no interior de uma comunidade política de membros com plenos direitos – direito esse que possui um conteúdo moral em seu cerne, que respeita a integridade das pessoas morais. A tese de que todos os princípios de justiça possuem um vínculo com o contexto deve ser, portanto, relacionada com a diversidade dos contextos – de tipo ético-substantivo até moral-universalista – nos quais as pessoas são membros (de modo normativamente substantivo) de comunidades, mas de comunidades muito diferentes. E a partir dessa constituição múltipla de mundos normativos seguem-se modos diversos de reconhecimento recíproco e de justificação normativa. Esse novo modo de redesenhar o mapa da teoria da justiça aqui proposto exige a vinculação dessas dimensões em uma estrutura básica da sociedade justificada. Nisso consiste o ideal de uma sociedade justa.

570

A integração das pessoas nesses contextos que se encontram de algum

modo relacionados é também discutida por Forst:

(...) as normas jurídicas não precisam apenas ser justificadas e afirmadas institucionalmente, mas também realizadas na práxis política e social no interior de uma comunidade política, práxis na qual os cidadãos se compreendem como membros de uma comunidade e se concedem os pressupostos necessários para a autonomia pessoal e política. As pessoas do direito são, como indivíduos, responsáveis diante do direito; os cidadãos são em comum responsáveis pelo direito. Os cidadãos criam e realizam o direito no qual pessoas éticas (particulares) são reconhecidas como pessoas do direito (iguais). As autonomias ética, jurídica e política formam um vínculo interno.

571

Na medida em que os cidadãos pertencem a um mecanismo de criação,

revisão e realização do direito visando à justiça social, eles participam de uma

democracia deliberativa, que mediante “procedimentos de argumentação

recíproca”572 produz acordos e compromissos de maneira discursiva. “Esses

procedimentos não excluem nem temas nem participantes; eles tornam possível

uma ‘razão pública’, cujo conteúdo concreto é averiguado politicamente e em

comum”.573

O quarto conceito de autonomia diz respeito à autonomia moral, que aborda

o fato de que as “pessoas morais possuem determinados direitos e deveres de

570 ibid., p. 276. 571 ibid., p. 280. 572 ibid., p. 282. 573 ibid., p. 282.

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reconhecimento para com, em princípio, ‘cada’ pessoa – direitos que o conceito

concreto de pessoa do direito deve ter em seu cerne”.574

É importante perceber que nem o conceito procedimental de razão prática – que se expressa em diferentes contextos de justificação normativos – nem o imperativo do respeito moral e da justificação universal são abstratos de modo falso. Normas morais protegem as pessoas concretas somente onde o contexto da humanidade comum existe como base normativa, e à obrigação do respeito moral corresponde a obrigação de justificar de modo universal e recíproco a ação moral segundo normas com pretensão de validade universais – uma obrigação que surge da “situação” intersubjetiva comunicativa do ser humano comum. (...) O princípio da justificação universal é transcendente ao contexto não no sentido de que viola os contextos de autodeterminação individual e coletiva, mas porque caracteriza um padrão mínimo no interior do qual a autodeterminação é “reiterada” (...).

575

A entrar pelo terreno de um “construtivismo teórico-discursivo”,576 “como

uma alternativa a Rawls”,577 tem-se a necessidade de uma versão recursiva e

discursiva da razão prática: “na ausência de verdades objetivas, moralmente

transcendentes, não podemos, e não devemos, desistir da pretensão de validade

moral pois esta é entendida como pretensão ‘razoável’ que não pode ser rejeitada

com razões universais e recíprocas”.578 Assim, um princípio possível de justificação

prática racional “se refere a diferentes modos e contextos de justificação”.579 Assim

que se encontra um sentido político ao buscar a justiça social, e tem-se essa espécie

de pertencimento a uma democracia deliberativa na qual se busca constantemente a

melhor forma de justificação com base no que pode ser razoavelmente pretendido e

estendido a todos (de maneira universal).

Uma teoria da justiça não deve tornar absoluta uma dessas dimensões e formar as outras a partir dela; a justiça mantém os limites entre essas esferas ao assegurar a identidade ética, os direitos iguais, a pertença política e o respeito moral segundo normas justificadas universalmente. (...) A pessoa que está no centro de uma teoria da justiça não é exclusivamente pessoa ética, pessoa do direito, cidadão ou pessoa moral; ela é simultaneamente tudo isso de modo diverso: é autônoma ética, jurídica, política e moralmente.

580

Forst continuamente traz à tona (de maneira obviamente mais

esclarecedora) representações que nos fazem voltar a seu prefácio, onde trata da

imagem de Têmis representada com a espada em uma das mãos e a balança na

outra, com a venda sobre seus olhos:

574 ibid., p. 283. 575 ibid., p. 283. 576 ibid., p. 284. 577 ibid., p. 284. 578 ibid., p. 284. 579 ibid., p. 284. 580 ibid., p. 286.

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No que se refere à integração de contextos diferentes no interior da estrutura básica da sociedade, isso nos leva à questão da justiça: os princípios desta protegem a autonomia ética por meio de direitos à autodeterminação pessoal; além disso, representam princípios procedimentais e direitos políticos à autodeterminação política de cidadãos, bem como princípios de justiça social que ajudam a realizar a liberdade pessoal e política. Ao lado disso, têm de satisfazer critérios morais de reconhecimento das pessoas. Uma concepção de justiça é ela própria “autônoma” e justificada como concepção da razão prática se combinar esses contextos da justiça. Tal teoria está para além da questão da prioridade do que é bom eticamente ou do que é justo moralmente; ela harmoniza a prioridade da razão, bem como uma perspectiva intersubjetivista sobre os “contextos” de pessoas e comunidades nos quais se pode falar com sentido (e criticamente) sobre a prioridade do bom, dos direitos individuais, do que é justificado de modo geral ou do que é justo moralmente. Naturalmente, uma tal teoria da justiça harmoniza esses contextos como “contextos de reconhecimento”. A partir da explicação teórica moral da questão da justificação como vista a partir da perspectiva performática de pessoas que têm de resgatar pretensões de validade diante e dentro das comunidades (diferentes), reconhecem a si mesmo e aos outros. Por conseguinte, a análise das diferentes comunidades de justificação – que se funda num conceito de razão prática justificadora – aponta para diferentes relações de reconhecimento. Contudo, sua análise não tem uma importância teórica fundamentadora, mas explicativa; complemente e explica a ideia de contextos normativos e mostra os fenômenos do reconhecimento e especialmente os fenômenos da ausência de reconhecimento, para os quais uma teoria da justiça tem de ter um sensor conceitual.

581

A ideia de reconhecimento envolve o desenvolvimento de relações de

reciprocidade entre sujeitos tidos como mutuamente iguais em direitos, sobre cuja

base se pode desenvolver “formas ampliadas de reconhecimento político e social”.582

A perspectiva da teoria do reconhecimento mostra o enraizamento dos conceitos da teoria da justiça na vida social e objetiva. (...) uma teoria da justiça – em especial uma teoria dos “contextos” da justiça – tem de poder considerar adequadamente os fenômenos e experiências (subjetivas ou coletivas) de injustiça. Aplicado de forma positiva, isso significa que tem de tornar claro quais as formas de reconhecimento que uma sociedade justa tem de assegurar.

583

Tratando dos contextos de reconhecimento, Forst conclui que a prática da

injustiça nos contextos em que se define a pessoa (ética, de direito, política e moral)

paulatinamente destrói o autorrespeito (também nos quatro contextos), de modo que

se produzem, como no dizer de Hannah Arendt sobre os campos de

concentração,584 “cadáveres vivos”, seres cuja voz da consciência acaba por

silenciar, restando apenas a morte física para corroborar essa morte antes ética,

moral, política, sepultadora do direito.

Daí a importância fundamental da dignidade humana: “como tais, as

pessoas têm o direito moral a uma justificação recíproca e universal de todas as

581 ibid., p. 326. 582 ibid., p. 327. 583 ibid., p. 329. 584 ibid., p. 344.

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ações que atingem sua integridade. A forma básica de reconhecimento moral reside

na atribuição desse direito”.585

E Forst considera finalmente:

O esclarecimento aqui sugerido dos conceitos fundamentais mostrou que a pessoa, que está no centro das questões sobre a justiça, não deve ser entendida exclusivamente como pessoa ética, como pessoa do direito, como cidadão ou como pessoa moral, mas como pessoa em todas essas dimensões comunitárias. A tarefa de uma teoria da justiça consiste em definir e reunir adequadamente esses contextos da justiça. Segundo essa teoria, uma sociedade que harmoniza esses contextos pode ser considerada justa.

586

Tratar de reconhecimento e justiça, com base nas exposições acima, tem o

sentido de chegar a um ponto em que a dimensão de fraternidade (exposta por seu

correlato, a solidariedade), no Direito, encontra-se explicitamente diante do leitor,

para considerar o desenvolvimento sustentável e a participação dos três atores

“desenvolvimentais”, Estado, Empresa e Cidadão.

A seguir, dá-se um exemplo, no campo da repartição das receitas tributárias,

ligado ao Direito Ambiental e ao Direito Financeiro, criando possibilidades para uma

abordagem voltada à sustentabilidade onde todos os setores da sociedade podem

efetivamente participar, em seus diferentes papéis.

V.3. SOLIDARIEDADE E TRIBUTAÇÃO NO ICMS ECOLÓGICO

Investiga-se, a seguir, em que medida políticas públicas afirmativas,

especificamente relacionadas ao meio ambiente e distribuição estadual de receitas

do ICMS aos municípios, atendem ao princípio da igualdade.

Tal investigação busca levar ao leitor aspectos relevantes acerca do

que se conhece como ICMS Ecológico; isto é, a forma de aplicação de parte da

receita oriunda de tributação, a partir do modo como os entes federados estaduais

dispõem legalmente da parcela que lhes cabe, segundo parâmetros que dizem

respeito, em primeira análise, à preservação da natureza; mas que, em última

análise, atendem de modo geral às mais recentes propostas relativamente ao

desenvolvimento sustentável.

585 ibid., p. 344. 586 ibid., p. 345.

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Quando se fala em sustentabilidade, o tripé liberdade-igualdade-

fraternidade coloca em relevo tanto a igualdade quanto a fraternidade, não raro

relativizando o elemento “liberdade” (de nenhum modo eliminando-o), deixando claro

que o comportamento liberal clássico e seu correlato contemporâneo – o

neoliberalismo – de modo algum se prestam a um mundo onde se pretende garantir

o direito à vida, tanto no presente quanto no futuro, imediato ou remoto: a situação

mundial é cada vez mais calamitosa quanto ao esgotamento e dificuldade de

renovação de recursos naturais.

Como em Direito sempre há muito a dizer e o espaço de que se

dispõe para tanto é curto, valer-se-á este artigo de uma delimitação que, de outro

modo, enveredaria pelo Direito Constitucional, pelo Direito Tributário Ambiental e

pela Repartição das Receitas nos níveis Federal, Estadual e Municipal, passando a

seguir para as considerações a respeito das formas de aplicação das receitas

ligadas ao desenvolvimento sustentável.

Tratar-se-á, portanto, em linhas gerais, da apresentação do princípio

constitucional da igualdade, e de sua relação com o desenvolvimento sustentável; a

seguir, apresentam-se as políticas públicas de característica afirmativa e sua relação

com a preservação do meio ambiente; depois vêm considerações a respeito da

tributação com traço ambiental, da distribuição de receitas e do ICMS Ecológico;

finalmente, conclui-se com o que se pode inferir a partir dos tópicos apresentados.

Reconhece-se que há considerações que se impõem quando se trata

de falar da tributação. Certamente não basta o princípio da legalidade quando se

fala da imposição de tributos.

Em tempo de tributo, é de se observar o modo como são

estabelecidos (dentre outras coisas, a espécie tributária a que pertence cada tributo),

sua vinculação com o destino da receita que permitem arrecadar, e o modo como a

receita daí oriunda é repartida.

Não há como, neste espaço, ocorrer aprofundamento em detalhe no

tratamento dos princípios que envolvem a tributação e a defesa do meio ambiente.

Deste modo, apenas as linhas gerais da tributação ambiental, com relação a seus

princípios, são expostas, passando-se ao largo de uma exposição mais profunda

sobre o tema.

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Do mesmo modo, as possibilidades envolvidas na implementação

dos tributos com finalidade ambiental são variadas, e aqui elas são apenas

indicadas, para que se trate especificamente de uma forma de distribuição da receita

obtida com a tributação (caso do ICMS Ecológico) – esta distribuição é que tem, de

fato, finalidade ambiental; e como tal não se aplica de maneira direta às

considerações típicas do Direito Tributário, mas atende aos ditames do Direito

Ambiental e relaciona-se estreitamente à extrafiscalidade.

V.4. PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA VIGÊNCIA DA SUSTENTABILIDADE

O mundo atual é de fato o lugar onde toda a liberdade que se

exerceu amplamente a partir da ascensão da burguesia (leia-se, historicamente, da

Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa), que acabou por

dominar a economia mundial no último quarto do Século XX, também se mostrou

desastrosa em relação ao desrespeito que o ser humano exerceu contra si próprio

em todas as partes.

A liberdade não pode ser exercida às expensas do direito à

igualdade, e tal descoberta se dá tão duramente quanto a que se segue: que a

fraternidade (medida em termos de solidariedade), caso não seja exercida, impedirá

mesmo que igualdade e liberdade se concretizem, tanto no presente quanto no

futuro imediato da humanidade, pois o que se vê hoje é a ameaça concreta da

extinção da vida no planeta Terra – leia-se, a respeito (mas não somente), Ulrich

Beck com sua Sociedade de Risco.

Fábio Konder Comparato, por exemplo, discorre acerca da

necessidade atual, muito presente, de transformar as instituições mundiais para

estabelecer democracias de fato e não farsas quase que exclusivamente voltadas

para o atendimento de interesses econômicos capitalistas.587

A humanidade que antes não pensou, à moda de Epimeteu, tem

agora de recorrer ao dom pelo qual Prometeu foi acorrentado justamente pensando

587 Comparato, Fábio K. A Humanidade no Século XXI: a Grande Opção, epílogo da obra “A

Afirmação Histórica dos Direitos Humanos”, 3ª. Ed. de 2003, revista e ampliada, Ed. Saraiva.

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em salvá-la, isto é, ao fogo da razão, que dissipa as trevas da ignorância em que,

por impulso, foi levada a queimar os recursos naturais como se fossem inesgotáveis,

em nome de um bem-estar que não foi ampla, mas apenas restritivamente atingido.

Comparato lembra o Agamenon de Ésquilo ao criticar a minoria

opulenta: “O desastre (...) é filho das ousadias temerárias dos que se comprazem no

orgulho desmedido, quando suas casas transbordam de opulência”.588

Fato é que a opulência já não pode ser desfrutada da mesma forma.

Admitindo-se de plano as diretrizes mundiais para um mundo onde o

desenvolvimento só é aceitável se também for sustentável, há que se ter em mente

a efetivação do princípio constitucional da igualdade sob sua dimensão de igualdade

formal – que exige o estabelecimento de desigualdades visando mitigar

desigualdades (lembrando Rui Barbosa).589

Lendo-se o art. 3º. da Constituição da República, encontram-se os

objetivos fundamentais da República Brasileira, que incluem I - construir uma

sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III -

erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e

regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,

cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Aí presente o contexto da sustentabilidade (do que se trata mais

adiante), é também o caso de se ler o art. 5º. da Constituição da República, em seu

caput, que determina que, nos termos que a Constituição estabelece, “Todos são

iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à

liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Eis, pois, que evidentemente a leitura da Constituição da República

obriga à consideração de que os objetivos fundamentais, para serem efetivados, têm

necessariamente de passar pela efetivação da igualdade em sua dimensão formal.

Examinando Perez-Luño encontra-se justificação para tanto: tal autor

observa características típicas da igualdade formal (e sua correspondência com as

exigências da segurança jurídica): (1) a exigência de generalidade, abstração e

universalidade, que exclui privilégios, distinções e predeterminação; (2) a igualdade

588 op. cit., p. 551.

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ante a lei como exigência de equiparação, que obriga a considerar-se irrelevantes

determinadas situações ou circunstâncias “para o desfrute ou exercício de

determinados direitos ou para a aplicação de uma mesma regulamentação

normativa”;590 (3) a exigência de diferenciação, que evita que tal princípio se “traduza

em um uniformismo, que suporia tratar tudo da mesma maneira, quando ‘os

pressupostos de fato que se produzem na vida são tão distintos entre si que não

permitem medir tudo pelo mesmo raciocínio’”;591 (4) a exigência de regularidade do

procedimento, que corresponde a uma garantia não estrutural, mas funcional quanto

à aplicação das normas, fazendo com que todos os cidadãos se achem sujeitos aos

mesmos procedimentos ou regras procedimentais.

Perez-Luño comenta, ainda, que “o princípio da igualdade diante da

lei, que sintetiza as características da igualdade formal, compreende uma série de

exigências e incide em uma diversidade de planos, que nem sempre foram

devidamente matizados”.592 Daí se percebe que, para implementar a igualdade, são

necessárias considerações em profundidade, amplitude e detalhe, que de modo

geral escapam ao objeto deste trabalho; porém, é possível abordar a implementação

do princípio da igualdade (e sua defesa) em certa medida ao tratar do tema do

desenvolvimento sustentável.

A se observar o contexto da sustentabilidade – que trata não

simplesmente do crescimento (em sua dimensão econômica, que se traduz em

simples inchaço na produção e geração de riquezas, sem preocupação efetiva com

a preservação de recursos e/ou a distribuição igualitária da riqueza), nem tampouco

exclusivamente do desenvolvimento (em que há certa preocupação com a

distribuição de riqueza, mas não há evidência do interesse em preservar e renovar

recursos), mas sim de um desenvolvimento sustentável, é de se perceber que, ao

compreender o direito fundamental ao meio ambiente sadio e equilibrado não

apenas para as gerações presentes, mas também futuras (preconizado pela

Constituição em seu art. 225, caput) como direito transindividual e transgeracional,

trata-se de garantir as medidas necessárias à igualdade formal num contexto que

589 Barbosa, Rui. Oração aos Moços. Internet: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/aosmocos.html,

acesso em 21/07/2012. 590 Perez-Luño, Antonio Enrique. Dimensiones de la Igualdad. 2ª. edición, Madrid: Dykinson, 2007, p. 24. 591 op. cit., p. 28. 592 op. cit., p. 21.

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não é unicamente presente, estando preocupado integralmente com aqueles que

virão a ser no futuro próximo ou distante.

Segundo Juarez Freitas, está posto o direito fundamental à

sustentabilidade multidimensional, que aliás deriva do princípio constitucional da

sustentabilidade, evidenciado pela interpretação sistemática da Constituição da

República. A respeito disso, diz Freitas:

trata-se do princípio constitucional que determina, independentemente de regulamentação legal, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar físico, psíquico e espiritual, em consonância homeostática com o bem de todos. 593

A consagração do direito ambiental, em termos jurídicos, começa

pelo art. 225 da Constituição da República. O bem ambiental é res communi

omnium, isto é, coisa de todos em comum. Não pertence a um só, nem a vários,

mas a todos, indistintamente; por isso sua titularidade é difusa e sua defesa pode

ser exercida por um (o diretamente lesado que depende do bem ambiental) e por

muitos (todos aqueles que direta ou indiretamente dependem da manutenção do

bem ambiental). Daí que todos – toda a sociedade, o público e o privado – devem

zelar pela manutenção do meio ambiente.

V.5. POLÍTICAS PÚBLICAS AFIRMATIVAS E MEIO AMBIENTE

Das leituras acima, sabe-se que é preciso – para efetivar a igualdade

no império do desenvolvimento sustentável – certo grau de diferenciação (lembrando

o adágio que simplifica a abordagem supra: “igual para os iguais, desigual para os

desiguais”).

Essa diferenciação traduz-se em ações que implicam tanto o Poder

Público quanto a sociedade em geral, isto é, todos têm sua parcela inarredável de

dever diante da necessidade de renovação e preservação de recursos para um

mundo melhor.

593 Freitas, Juarez. Sustentabilidade: Direito ao Futuro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011, pp. 40-

41.

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Exposta tal determinação a que, supõe-se, devem todos submeter-se

sem exceção, é caso de verificar, no que diz respeito ao Poder Público, que espécie

de atos este propõe-se a efetivar no que diz respeito à preservação do meio

ambiente.

Lembre-se que, nesta abordagem, “meio ambiente” é expressão

consagrada pelo uso, e que tem um sentido lato, não se restringindo exclusivamente

à preservação da natureza, mas também ao ambiente artificial onde a vida de

relação se reproduz – como o trabalho, onde há necessidade de condições

saudáveis (e não apenas isso) para a produção humana.

Leia-se, a respeito, Maria Helena Diniz,594 que inclui em suas

considerações o meio ambiente do trabalho, onde devem haver regras que

mantenham as boas condições de trabalho, pelas quais se preservam direitos

difusos de seres humanos “cuja qualidade de vida, por esse motivo, dependerá da

qualidade daquele ambiente”.595 Ao perceber-se tal necessidade, Diniz em seguida

relaciona a necessidade da responsabilidade social da empresa, mediante controles

que não visam atender apenas aos aspectos físicos, mas também psicológicos,

relacionados à vida (e portanto à saúde física e mental) do trabalhador.

Com que base pode o Poder Público proceder, pois, de modo a

destinar os necessários recursos e imprescindíveis normas (pois em Direito

Administrativo nada se faz sem a legalidade) para que se implemente a igualdade

visando a sustentabilidade?

A resposta se encontra quando se lê o art. 170 da Constituição:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) (...)

O destaque sublinhado acima é feito para que se observe a

importância do texto constitucional ao autorizar que o tratamento diferenciado se

implemente para que seja possível defender o meio ambiente. Assim, ao ler a

594 Diniz, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002. 595 op. cit., p. 714.

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Constituição em relação a outros princípios, ter-se-á em mente o que acima se

estabelece.

V.5.1. Ações Afirmativas em sua Relação com a Base Ideológica das Políticas

Públicas

Ao pensar em Políticas Públicas, logo vêm à mente mecanismos de

que o Poder Público pode dispor para implementar meios de corrigir distorções

indesejadas na busca de um equilíbrio nas condições de desenvolvimento de uma

sociedade. Este mecanismo é fundamentalmente o mesmo das ações afirmativas,

do modo como são percebidas por Joaquim Barbosa.596

Joaquim Barbosa faz uma exposição acerca da base ideológica que

sustenta as ações afirmativas. Impende apresentar a fundamentação de tais

políticas públicas (ações afirmativas) com base na perspectiva de dois postulados

nos quais a justiça se baseia.

O Postulado da Justiça Compensatória considera que é central a

“necessidade, para as sociedades que por longo tempo adotaram políticas de

subjugação de um ou vários grupos ou categorias de pessoas por outras, de corrigir

os efeitos perversos da discriminação passada”.597

O intuito reparatório de tais ações se justifica pela “inegável

inclinação perenizante” do processo de marginalização social.598 Nestes casos, a

questão não é tanto a promoção da justiça distributiva, mas um remediar das

injustiças passadas.

Barbosa assinala um dos pontos mais perceptíveis dessa

perspectiva, que se situa no campo da educação: os membros do grupo vitimizado

pela discriminação no campo educacional se veem desprovidos dos meios

indispensáveis à sua inserção social em pé de igualdade com os beneficiários da

injustiça perpetrada, o que indica privação de oportunidades.599

596 Gomes, Joaquim B. Barbosa. Ed. Renovar. Ação Afirmativa e o Princípio Constitucional da Igualdade. 597 op. cit., p. 62. 598 op. cit., p. 62. 599 op. cit., p. 63.

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Para a teoria compensatória, a solução consiste em aumentar as

chances dessas vítimas históricas com relação às oportunidades que teriam

naturalmente, caso não houvesse discriminação.600 Barbosa ainda nota que há

casos em que a ação compensatória pode não parecer assim por parte do agente

que a executa, embora sempre o seja para a vítima.

A tese compensatória é enfraquecida por essa perspectiva, isto é, o

raciocínio jurídico tradicional se baseia em ilicitude, dano e remédio, e tais implicam

em que somente quem sofre diretamente o dano pode postular a compensação,

enquanto somente quem efetivamente praticou o ato ilícito que resultou no dano

deve ser responsável pela compensação.

Não obstante, Joaquim Barbosa considera que as ações afirmativas

se justificam melhor pela perspectiva da justiça distributiva do que pela

compensatória, embora ambas frequentemente se conjuguem.

A Justiça Distributiva remonta a Aristóteles e diz respeito a “promover

a redistribuição equânime dos ônus, direitos, vantagens, riqueza e outros

importantes ‘bens’ e ‘benefícios’ entre os membros da sociedade”.601

Daí decorre que não é justo que os que sofrem as iniquidades

tenham de suportá-las continuamente, devendo “a adoção de oportunidades

especiais” mitigar e extirpar as “desvantagens oriundas de injustiça do passado”

para “se construir uma sociedade na qual todos os indivíduos tenham parcelas mais

equitativas dos benefícios e ônus da vida americana”.602

Justiça distributiva, pois, é uma busca de justiça no presente, ao

passo em que a justiça compensatória visa a retroação para reparação dos danos

sofridos no passado.

Sob essa ótica, “a ação afirmativa define-se como um mecanismo de

‘redistribuição’ de bens, benefícios, vantagens e oportunidades que foram

indevidamente monopolizadas por um grupo em detrimento de outros, por intermédio

de um artifício moralmente e juridicamente condenável – a discriminação, seja ela

racial, sexual, religiosa ou de origem nacional”.603

600 op. cit., p. 63-64. 601 op. cit., p. 66. 602 op. cit., p. 66. A referência à vida americana ocorre em virtude do contexto da obra de Joaquim Barbosa; todavia, por “vida americana” pode-se entender, sem prejuízo, a vida brasileira. 603 op. cit., p. 68.

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Há ainda, entre os que apoiam o distributivismo, a perspectiva

utilitarista, que vislumbra um substrato de tal espécie. Nesse contexto, a

redistribuição promove o bem-estar geral, pois ao se reduzirem a pobreza e a

desigualdade também tendem a desaparecer o rancor, o ressentimento e a perda do

autorrespeito decorrentes da desigualdade. Dentre os que abraçam tal argumento,

segundo Joaquim Barbosa, encontram-se Wassertrom e Dworkin. Assinala ainda

Joaquim Barbosa que a tese da justiça distributiva “é sustentada pela grande maioria

dos partidários das ações afirmativas, que nela veem o seu fundamento

definitivo”.604

Assim, tomar-se-á como predominante o entendimento de que as

políticas públicas afirmativas visam a promoção do bem-estar geral, promovendo ao

mesmo tempo a justiça compensatória e a justiça distributiva, buscando a

implementação do princípio da igualdade.

Ademais, de se concluir, com base no acima exposto, que, ao

implementar política pública afirmativa que inclui tratamento diferenciado na intenção

da defesa, preservação e renovação do meio ambiente, o Poder Público age visando

a implementação do princípio da igualdade e o atendimento dos critérios que

embasam o desenvolvimento sustentável, na medida em que a ambos vier a

atender.

Segue-se uma exposição sobre a tributação, sua vocação em relação

ao meio ambiente e o modo como se direcionam receitas para, efetivamente,

atender às necessidades presentes e futuras de um mundo sustentável, expondo o

caso específico do ICMS Ecológico.

V.6. DIREITO TRIBUTÁRIO AMBIENTAL, DISTRIBUIÇÃO DE RECEITAS E ICMS

ECOLÓGICO

Cristiane Derani afirma que “o tributo é um instrumento de

redistribuição de riquezas”.605

604 op. cit., p. 72. 605 in Amaral, Paulo Henrique do. Direito Tributário Ambiental. São Paulo: RT, 2007. Apresentação, p. 16.

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Paulo Henrique do Amaral, abordando o tema da do Direito Tributário

Ambiental,606 faz uma série de importantes considerações, que abarcam muito mais

do que se tem condição de expor neste breve trabalho, motivo pelo qual, aqui, ater-

se-á a aspectos pontuais do Direito Tributário Ambiental.

Primeiro, o fato de que os chamados “tributos ambientais” encontram-

se em franca utilização na Europa. Há impostos sobre emissões de enxofre, gás

carbônico, óxidos de nitrogênio, e formas de diferenciação fiscal de combustíveis,

que acabam por reduzir as emissões de poluentes nos combustíveis consumidos,

com benefícios como melhoria significativa na capacidade de tratamento de água.

Tais impostos ocorrem na Escandinávia, na Áustria, Bélgica, França, Alemanha,

Holanda, Reino Unido. Além disso, há os incentivos e cobranças ligados a condutas

empresariais, visando amenizar (ou mesmo impedir) a degradação ambiental.607

No Brasil, a implementação da tributação ambiental é ainda

incipiente, embora esteja se realizando – um dos resultados de tal movimento foi a

Emenda Constitucional 42/2003, que resultou no inc. VI do art. 170 da nossa

Constituição, que já foi citado acima.

Paulo Henrique do Amaral também nos informa que as medidas de

proteção ambiental – diretamente ligadas ao princípio do desenvolvimento

sustentável (medidas que incluem medidas de ordem econômica, tributária, jurídica,

regulamentadora, e assim por diante) – “almejam a alteração de condutas poluidoras

ou a estimulação de atividades voltadas para a proteção ambiental, além de captar

recursos para custear projetos de desenvolvimento sustentável”.608

Sabe-se que o Estado deve cumprir os objetivos fundamentais

constitucionais e, de todo modo, atender aos ditames constitucionais e à ordem que

se estabelece a partir da Constituição da República. Para isso, o Estado necessita

de recursos financeiros; e o capital estatal tem sua base nos tributos pagos pelo

contribuinte, “sendo o tributo uma ‘prestação pecuniária compulsória’” (art. 3º. do

Código Tributário Nacional).609 No tributo não há somente uma imposição que,

descumprida, leva a uma punição: aí encontra-se a possibilidade de realização de

bens e serviços que um só indivíduo dificilmente poderia realizar isoladamente.

606 Amaral, Paulo Henrique do. Direito Tributário Ambiental. São Paulo, RT, 2007. 607 op. cit., p. 27-28. 608 op. cit., p. 38. 609 op. cit., p. 49.

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O desenvolvimento regional sustentável impõe imenso desafio aos

governantes brasileiros: a instalação de indústrias altamente poluentes em regiões

carentes não pode resolver o problema da pobreza às custas de desprezo pela

proteção ambiental – pois, como anteriormente se expôs, a sustentabilidade é

multidimensional: social, econômica, ambiental, jurídica, política, e assim por diante.

Em tempos de implementação do desenvolvimento sustentável,

cabem políticas públicas (e ações afirmativas), eventualmente por meios tributários e

econômicos, que visem reorientar as condutas dos agentes poluidores – de modo a

adotarem formas de tratamento e redução dos poluentes, eliminando-os, e ainda

assim tornar suportáveis os custos de produção.

A utilização do sistema tributário em benefício da proteção ambiental

não exclui medidas administrativas, civis, econômicas e penais.

V.6.1. Externalidades e sua Internalização

Em relação à proteção ambiental, há o que se chama externalidade

no processo produtivo. Como explica Paulo Henrique do Amaral, “Por exemplo, o

produtor e o consumidor de um produto poluidor não levam em conta o prejuízo que

a contaminação produz a terceiros. Como consequência, o preço do produto só tem

custos e benefícios privados (de produtores e consumidores) e não custos sociais

(os prejuízos sobre terceiros)”.610

Claro que a percepção da necessidade de tratar o meio ambiente

com relação à poluição nele gerada tem um custo – que via de regra refletir-se-á no

produto quando se trata de impor um custo social, se o Poder Público tiver de

absorver e tratar a externalidade gerada pelo processo produtivo, isto é, a

consequência – de natureza indesejável – gerada pelo processo produtivo, que de

qualquer forma é absorvida pela sociedade em geral.

Assim, a poluição gerada, caso não seja tratada, é absorvida pelo

entorno de uma indústria, com consequências desastrosas que estão nos meios de

comunicação, visíveis em todos os noticiários. 610 op. cit., p. 53.

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Há também que se perceber que o próprio tributo – caso seja

efetuado sobre uma atividade poluidora para que ocorra seu controle – pode gerar

outra externalidade (inclusos aí os custos do processo produtivo). Porém, esse custo

é necessário para que se financie o desenvolvimento da atividade produtiva com a

correspondente absorção (internalização) de necessidade adicional que antes não

era considerada – a que diz respeito o desenvolvimento sustentável.

Há algo mais a se considerar, e pode-se aí dar outro exemplo. Em

uma região metropolitana há via de regra vários municípios que dela participam. Um

deles, por ser particularmente dotado de águas em sua região, pode sofrer o ônus

de não poder desenvolver determinadas atividades produtivas (porque demasiado

poluentes) com o fim de preservar as águas que servem a toda a região

metropolitana à qual pertence; isso, por óbvio, limitando a atividade produtiva

daquele município – que serve água para todos os outros – acabará por empobrecê-

lo, ao ponto de inviabilizar a própria proteção da água que serve.

Este é o caso que ocorreu durante certo tempo no Município de

Piraquara, pertencente à Região Metropolitana de Curitiba, no Estado do Paraná.

Tornou-se o Município mais pobre do Paraná, preservando as águas que servem

praticamente toda a Região Metropolitana da “Grande” Curitiba.

Que solução dar a este problema? Seria preciso ter meio de

sustentar o Município de Piraquara para que, socialmente, fosse possível manter

certo padrão, incluindo educação, saúde, e outras coisas que não excluem o custeio

mesmo da própria administração municipal; economicamente, ter-se-ia de dar modo

de manter a economia do lugar; em termos de proteção ambiental, a própria

atividade de policiamento florestal tem custo que não pode ser desprezado. Mais

adiante tratar-se-á desta questão.

Informa Paulo Henrique do Amaral que

(...) a intervenção do Estado na economia, visando corrigir falhas de mercado, poderá se dar por meio da implementação de política tributária ecológica capaz de incentivar atividades econômicas não-poluidoras ou desestimular as agressoras ao meio ambiente, por exemplo, mediante a adoção de equipamentos de neutralização, diminuição e prevenção do dano ambiental. Essa política poderá comportar a utilização de incentivos fiscais com a finalidade de desonerar a produção por adotar mecanismos limpos e a instituição de tributos, objetivando desestimular a poluição ou na instituição de tributo sobre atividades agressoras ao meio ambiente.

611

611 op. cit., p. 57.

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A instituição e destinação de tributos é matéria de estudos – como

também o são as limitações ao poder de tributar – que de modo geral escapam às

reduzidas perspectivas deste artigo.

Não obstante, é de peculiar atenção o fato de que, com finalidade

extrafiscal (e dentro de certos limites),612 pode haver modificação na destinação da

receita repartida – oriunda da arrecadação de tributos.

V.6.2. Distribuição de Receitas: Caso do ICMS

A Constituição da República, tratando da Repartição das Receitas

Tributárias a partir de seu art. 157, dispõe várias normas que especificam o modo

como as receitas (oriundas dos vários tributos arrecadados pelos entes federativos)

serão distribuídas.

De especial atenção para o presente caso é a repartição das receitas

oriundas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de

Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (conhecido

como ICMS) definido na Constituição da República no art. 155, II e § 2º. (e incisos e

alíneas), que tem suas normas gerais dadas pela Lei Complementar nº 87, de 13 de

setembro de 1996, cuja competência de instituição (para regras específicas)

pertence aos Estados e Distrito Federal dentro das respectivas competências

legislativas territoriais.

O art. 158 da Constituição da República, no que dispõe acerca da

distribuição das receitas oriundas de ICMS aos Municípios, dispõe o seguinte:

Art. 158. Pertencem aos Municípios: (...) IV - vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.

612 Eis o que diz Paulo Henrique do Amaral (op. cit., p. 64) a respeito: “(...) os tributos têm dupla função que é fundamentalmente diferenciada pelo fim que perseguem. Por um lado, a natureza arrecadatória dos tributos é seu fim fundamental para o Estado poder custear as necessidades públicas, caracterizando, assim, a função primária do tributo. Em contrapartida, o tributo pode ser adotado como instrumento de política social, econômica e, é claro, ambiental, com a finalidade de levar a cabo os fins constitucionais”. Bem assim se conclui que a função extrafiscal é justamente a utilização do tributo como instrumento de política – o que cabe no caso da destinação da receita do ICMS, como se vê adiante.

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Parágrafo único. As parcelas de receita pertencentes aos Municípios, mencionadas no inciso IV, serão creditadas conforme os seguintes critérios: I - três quartos, no mínimo, na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, realizadas em seus territórios; II - até um quarto, de acordo com o que dispuser lei estadual ou, no caso dos Territórios, lei federal.

Eis que a Constituição, pois, dá aos Estados e ao Distrito Federal

(ou, se vierem a existir, à própria União, em caso de se tratar de Território) poderes

para dispor de até um quarto dos 25% do produto da arrecadação do ICMS por meio

de lei. Esta norma representa autorização de manejo da receita do ICMS, por parte

do Estado ou do Distrito Federal, visando – entre outras coisas – a solução de

questões ligadas ao desenvolvimento sustentável (mormente em termos de

viabilização econômica) dos Municípios que integram a respectiva unidade da

federação.

V.6.3. ICMS Ecológico: o Caso do Paraná

Caso emblemático – porque o primeiro Estado da Federação em que

foi instituída lei dispondo daquela parcela do ICMS relativamente aos municípios – é

o do Paraná.

Eis o que diz website que informa a respeito do ICMS Ecológico

quando aborda o âmbito paranaense:

O movimento paranaense teve origem na mobilização política de municípios, associada à necessidade de modernizar as políticas públicas ambientais e mediada pelo Poder Legislativo, haja vista que o ICMS Ecológico foi criado ainda por conta da Constituição Estadual, em 1989, tendo sido regulamentado por lei complementar dois anos depois, em 1991. À época, os municípios mobilizados consideravam-se prejudicados por terem parte do seu território, ou em alguns casos a totalidade, restrito ao uso econômico tradicional por abrigarem mananciais de abastecimento público para municípios vizinhos ou, ainda, por possuírem Unidades de Conservação da Natureza. Nesse contexto, o ICMS Ecológico surgiu como forma de compensar os municípios que se viam privados do uso de suas terras, espírito legal que, com o tempo, adquiriu novo caráter, o de premiação aos que possuem qualidade na gestão de suas áreas. Desde que foram criados até os dias atuais, os critérios ambientais e a efetiva aplicação do ICMS Ecológico aprimorou-se graças aos incansáveis esforços do Instituto Ambiental do Paraná – IAP, por intermédio de Wilson Loureiro, um dos profissionais mais atuantes nessa temática em todo o Brasil, coordenador da pasta responsável pelo ICMS Ecológico no IAP e que colaborou com diversos estados brasileiros para a implantação desse mecanismo em seus respectivos ordenamentos jurídicos. Um dos principais resultados da experiência paranaense é o aumento da superfície das áreas protegidas, além da melhoria na performance qualitativa das Unidades de Conservação, já que esse incentivo econômico está associado a outros instrumentos de política pública que visam à criação, implementação e gestão de Unidades de Conservação

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e outras áreas protegidas, com o objetivo de formação de corredores ecológicos, o que denota o caráter de integração do ICMS Ecológico em relação às demais políticas públicas ambientais do estado.

613

Assim, a criação de destinação diferenciada de parcela da

arrecadação do ICMS para os municípios do Estado do Paraná relacionados com a

preservação do meio ambiente possibilitou certo grau de redução das desigualdades

econômicas – e, por reflexo, sociais – regionais naquelas municipalidades obrigadas

à preservação ecológica e com dificuldades para justificar a necessária redução e/ou

limitação na atividade econômica dentro de seus territórios.

O sistema de distribuição do quarto constitucional previsto no inc. II

do parágrafo único do art. 158 da Constituição da República, no Paraná, apresenta-

se da seguinte forma:

O sistema de funcionamento do ICMS Ecológico no Paraná está baseado em dois critérios: áreas protegidas e mananciais de abastecimento, possuindo cada um 2,5%, inteirando os 5% do critério ecológico presente na lei. Os restantes 20% que complementam o total que o estado pode dispor está dividido entre: 8% para produção agropecuária, 6% para número de habitantes na zona rural, 2% segundo a área territorial do município, 2% como fator de distribuição igualitária e 2% considerado o número de propriedades rurais.

614

Observe-se que o critério de distribuição – que origina a alcunha de

ICMS Ecológico – na verdade é de uma distribuição visando à sustentabilidade, pois

há preocupação com produção, população na zona rural, área territorial (para

desenvolver o município segundo sua área), busca por distribuição igualitária e

número de propriedades rurais, além da preservação de áreas protegidas e

mananciais de abastecimento.

No caso paranaense, a legislação que trata do tema está assim

disposta (até o nível normativo dos decretos): Constituição do Estado do Paraná, de

5 de dezembro de 1989; Lei n.º 9.491, de 21 de dezembro de 1990 (Estabelece

critérios para fixação dos índices de participação dos municípios no produto da

arrecadação do ICMS); Lei Complementar n.º 59, de 1.º de outubro de 1991 (Dispõe

sobre a repartição de 5% do ICMS, a que alude o art. 2.° da Lei n°. 9.491/90, aos

municípios com mananciais de abastecimento e unidades de conservação

ambiental, assim como adota outras providências); Lei Complementar n.º 67, de 8 de

janeiro de 1993 (Dá nova redação ao art. 2.º, da Lei Complementar n.º 59, de 1.º de

613 http://www.icmsecologico.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=74&Itemid=77,

acesso em 21/07/2012.

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outubro de 1991); Decreto n.º 2.791, de 27 de dezembro de 1996 (Critérios técnicos

de alocação de recursos a que alude o art. 5.º da Lei Complementar n.º 59, de

01/10/1991, relativos a mananciais destinados a abastecimento público); Decreto n.º

3.446, de 14 de agosto de 1997 (Criadas no Estado do Paraná as Áreas Especiais

de Uso Regulamentado – ARESUR); Decreto n.º 1.529, de 2 de outubro de 2007

(Dispõe sobre o Estatuto Estadual de Apoio à Conservação da Biodiversidade em

Terras Privadas no Estado do Paraná, atualiza procedimentos para a criação de

Reservas Particulares do Patrimônio Natural – RPPN – e dá outras providências).

As tabelas que dizem respeito aos repasses estão disponíveis nos

endereços da Internet já citados; apenas como exemplo, o Município de Piraquara,

no ano de 2005, recebeu o montante que se apresenta na tabela abaixo:615

V.7. CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS

A observar-se a composição da receita oriunda de ICMS que foi

destinada ao Município de Piraquara em 2005, percebe-se claramente que quase

70% da receita foi oriunda do ICMS Ecológico.

Daí que a política pública de extrafiscalidade, relacionada à

repartição da receita tributária oriunda do ICMS arrecadado pelo Estado do Paraná,

tem servido, evidentemente, para o aporte de importantes recursos que visam prover

meios para que os Municípios tenham condições de promover a sustentabilidade

(em seus vários aspectos) em seus próprios territórios. 614 ibid. 615 A fonte é a mesma do endereço eletrônico na nota 27 acima.

valores em reais (R$)

Repasse da cota

parte do ICMS no

ano de 2005

Valores Líquidos

(já deduzidos o

Fundef)

Composição no

Fator Ambiental

(%)

Valor do ICMS

correspondente a cada

Fator Ambiental

Valor do

repasse

corresponden

te ao "ICMS

Ecológico" no

ano de 2005

Conser- vação

Mananciais Conservação Mananciais

Piraquara 11.389.114,42 2,68 64,75 305.000,48 7.374.907,15 7.679.907,63

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Aproxima-se assim da almejada isonomia na repartição das receitas

entre os municípios, corrigindo desigualdades mediante um mecanismo de

diferenciação típico de uma política pública afirmativa; deste modo, implementa-se o

conteúdo da igualdade formal atendendo aos requisitos do desenvolvimento

sustentável.

Resta, pois, demonstrado que é de grande importância o manejo dos

tributos e da receita tributária – ao menos no âmbito do manejo do ICMS – para o

desenvolvimento sustentável e a implementação do princípio da igualdade.

O ICMS Ecológico, segundo as notícias do website do ICMS Ecológico, está

hoje implementado em catorze estados brasileiros.

VI. CONCLUSÕES

Trata este trabalho de englobar as noções relativas a direitos

transgeracionais, ações afirmativas e princípio da solidariedade sob a expressão

“responsabilidade fraternal”, delimitando-se como responsabilidade ética,

significativamente importante para a continuidade e participação da empresa no

cenário atual, esclarecendo que a responsabilidade fraternal assim prevista tem

abrangência maior do que a simples responsabilidade social nos termos usualmente

empregados pela doutrina, e fornecendo a compreensão de que, na medida em que

a empresa contribui de maneira fraternal para com a sociedade, está contribuindo

não somente para seu futuro na atividade econômica que desempenha, mas

também para o atingimento dos objetivos fundamentais nacionais.

Há grande número de razões, que não são novidade, pelas quais é de

importância crescente (e, sob vários aspectos, vital para a economia nacional e

mundial) agir de maneira representativamente ética e solidária para com a

comunidade em que uma empresa se insere, visando, ademais, o maior raio de

influência possível em relação à localização em que uma empresa exerce sua

atividade econômica.

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Nas páginas anteriores expôs-se uma pequena parte dessas razões, que

convencem academicamente da importância do agir racionalmente fraterno visando

a comunidade, a preservação do meio ambiente, a erradicação da pobreza, o

desenvolvimento nacional, a redução das desigualdades; isso pode perfeitamente se

dar através de ações que visam proporcionar educação e trabalho, além da

preservação ambiental tão imprescindível nos dias atuais.

Pondere-se, por fim, o fato de que parte da doutrina considera que a

responsabilidade social abrange também esta porção da atuação ética da empresa a

que se atribuiu a significação de “fraternal”, como expõe Elaine Arantes:

o Instituto Ethos preconiza que responsabilidade social é uma forma de gestão definida por uma relação ética e transparente da empresa com todas as partes interessadas: funcionários, fornecedores, governo, meio-ambiente, concorrência, consumidores/clientes, acionistas, comunidade e sociedade. Além de gerenciar este relacionamento permeado pela ética e transparência, a empresa socialmente responsável respeita a diversidade e considera o desenvolvimento sustentável em cada tomada de decisão relativa ao negócio.

616

O mesmo trabalho de Elaine Arantes, aliás, expõe o fato de que, no

período de outubro de 2001 a outubro de 2005, as ações de empresas ligadas a

boas práticas de responsabilidade social, ambiental e corporativa (Fundo ABN Amro

Ethical) valorizaram cerca de 30% a mais do que as ações componentes do

Ibovespa.617 E este indicador menciona apenas uma experiência brasileira, que é

ratificada no mesmo relatório por outros índices diferenciados, relacionados ao Dow

Jones.618

O investimento em educação infantil, por exemplo, promete resultados

para o futuro, no caminho da formação da mente do brasileiro e também da

obtenção de mão-de-obra qualificada – que as empresas não tenham de importar –

e na geração de tecnologia de custos menores, pois as empresas poderão ter seus

tecnólogos em território nacional, não tendo também de importá-los a peso de ouro

de outros países. Eis o que disse a respeito Regina de Assis, Consultora em

616 Arantes, Elaine. Investimento em Responsabilidade Social e sua Relação com o Desempenho Econômico das Empresas. Internet: http://www.reciclecarbono.com.br/biblio/retorno.pdf, acesso em 27/11/2011 às 23h27, p. 3. 617 Arantes, Elaine, op. cit., p. 4-5. 618 Arantes, Elaine, op. cit., p. 4. O índice de sustentabilidade Dow Jones, entre 1993 e 2005, indica cerca de 60% a mais de valorização em relação ao índice Dow Jones geral; em 2005, o Banco Itaú, a Cemig e a Aracruz faziam parte do índice Dow Jones de sustentabilidade. Só isso já é uma considerável propaganda em favor de tais empresas.

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Educação, relatora das Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil, em entrevista

à Revista Escola da Editora Abril em maio de 2000:

Pesquisas desenvolvidas nos Estados Unidos, na Escandinávia e na Itália mostram que a criança que passa por um bom programa de Educação Infantil chega ao primeiro ciclo lendo, escrevendo e trabalhando com quantidades muito bem. Além disso, molda uma boa auto-estima. Quem recebe uma formação adequada antes dos 6 anos dificilmente fracassa no Ensino Fundamental. Se os governos só estão pensando em cifrões, fiquem sabendo que vão lucrar, porque investir em Educação Infantil significa diminuir a repetência e a evasão.

619

Talvez este tema seja antigo, batido em sua origem – pois há anos muitos

clamam pela importância da participação empresarial em questões sociais – mas é

de se perceber que hoje tais perspectivas não se constituem unicamente em pedido,

mas também em alerta contra o colapso da economia mundial.

A absorção de uma crise econômica não pode se dar só pelas empresas:

embora elas estejam na base da economia, não se pode esquecer que a produção

de riquezas também se dá através do trabalho, e o consumo também se dá através

da informação e da educação do consumidor,620 sem esquecer do inegável papel do

Estado na educação, na promoção da justiça e na defesa da livre iniciativa e da

valorização do trabalho.

A despeito de todo o exposto, outras perspectivas são possíveis. Negar a

responsabilidade ética também é sempre possível, em certa medida, mas equivale,

em forma de anedota, ao popular “tiro no pé”: de posse de uma arma, o atirador

despreparado não acerta no alvo em que pretende mirar, mas em si mesmo,

aleijando sua chance de atingir um objetivo almejado.

O empresário, em relação à formação da mentalidade nacional do futuro,

será lembrado por suas medidas de participação e omissão nesse ato de construção

da cidadania, preconizado pela Constituição Federal, que exige de todos os setores

da sociedade alguma espécie de esforço.

Toda política de incentivo pode, eventualmente, transformar-se em norma

com conteúdo obrigatório, e vice-versa – deixando de ter o sentido obrigatório, pode

tornar-se um simples elemento típico de fomento ou estímulo.

619 http://revistaescola.abril.com.br/educacao-infantil/educacao-infantil-no-brasil/educacao-infantil-

retorno-419438.shtml, acesso em 27/11/2011 às 23h43. 620 A Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), que em seu artigo 1º. (caput) esclarece que “estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social”, ao estabelecer em seu art. 4º. a Política Nacional das Relações de Consumo, inclui em seu inciso IV os princípios da educação e informação “de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo”.

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Hoje, por exemplo, o balanço social pode ser algo de curioso interesse

para o setor de marketing de uma empresa; amanhã, pode ser uma obrigação de

natureza fiscal. A adaptação das empresas a esse tipo de possibilidade pode se

mostrar interessante na medida em que se vive em um mundo cujas transformações,

em razão dos problemas ambientais, estão longe de se amenizarem.

A escassez dos recursos naturais e a necessidade de sua preservação,

hoje, é fator altamente tendente a limitar a atividade econômica; certamente, as

empresas que forem capazes de lidar com tais considerações serão aquelas que

terão mais chances de sobrevivência, em uma ordem jurídica futura, que passe a

exigir procedimentos semelhantes, ou análogos, no momento de prestação das

contas da empresa para com a sociedade.

Além disso, o empresário previdente sabe que tem de suportar impacto

significativo para adaptar-se às mudanças legislativas. Quando está preparado para

lidar com a iminência delas, é quase certo que seu negócio se recuperará mais

rápido, tendo grande chance de sair à frente da concorrência. Com tal pensamento

presente, é de se considerar as possibilidades aqui previstas, não apenas como um

fator ético e uma perspectiva de lucros futuros, mas, também, como possibilidades

sobre as quais vale à pena se debruçar, estimando custos para eventuais

necessidades de transformação.

Apresentou-se, ademais, uma breve discussão acerca das diferenças entre

Ordem Constitucional, Ordem Pública e Razões de Estado, apresentando as

condições nas quais o interesse público é satisfeito e discorrendo por alto a respeito

dos mecanismos para garantia da ordem constitucional quando (a) as Razões de

Estado são inconstitucionais; (b) as Razões de Estado são constitucionais.

Qualquer espécie de intervenção que o Estado venha a promover em

domínios que se refletem no campo dos contratos – em especial o domínio

econômico – causa impactos via de regra indesejáveis, embora nem sempre

imprevisíveis.

É de se imaginar que os efeitos, quando imprevisíveis para o particular –

seja em termos de sua espécie ou em termos de sua quantidade – em geral dizem

respeito a atos que, levados a termo pela Administração Pública, muitas vezes são

explicados como Razões de Estado, embora nem sempre sejam coerentes com a

Ordem Pública e Constitucional.

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Na medida em que se reconhece a relatividade das razões de Estado,

percebe-se o fortalecimento da democracia. Se cidadão não puder perceber a

diferença entre a vontade constitucional e a vontade da Administração Pública, nem

sempre congruentes, ameaçada estará a democracia, o processo democrático e, de

todo, a Constituição como Lei Suprema de um Estado, pairando sobre este a

desintegração de qualquer segurança jurídica que se proponha manter.

Apresentou-se brevemente a atividade reguladora no Brasil, descrevendo

basicamente a função reguladora e incluindo considerações acerca do fato de que a

função reguladora, em sua extensão, deve considerar a missão para a qual a

agência reguladora foi criada, tendo fundamento constitucional que a valida e

também a limita em sua existência e atuação.

À guisa de conclusão, deve-se observar que a verdadeira liberdade é

exercida dentro dos limites que a ela são impostos, em razão da imperatividade das

normas e, também, de uma postura ética necessária. A ordem social como um todo

se beneficia disso, e tanto o empresário, quanto o cidadão, quanto o Estado,

enquanto integrantes da sociedade, podem de tal circunstância extrair o máximo

para a consecução de seus próprios objetivos – individuais, coletivos,

transindividuais e transgeracionais – visando uma harmonia que é preconizada pelo

Estado Social, Democrático e Ambiental de Direito.

Na pág. 77 da presente exposição, falou-se a respeito da “publicização do

Direito Privado”, o que também foi chamado de “constitucionalização do Direito

Civil”.

De pensar que o Direito Privado é uma faceta do Direito sobre a qual

sempre paira o Direito Público, porque mais abrangente e supostamente mais

sintonizado com as necessidades coletivas do que essa parte do Direito que rege

exclusivamente as relações particulares.

Mais além, é preciso reconhecer que, num Estado que prima pela

participação democrática, pelo desenvolvimento social e pela sustentabilidade, deve

haver o reconhecimento de que é preciso ter um olhar sobre as relações privadas,

na medida em que estas nunca prescindem de conexões com outros setores de

atividade, privada ou não. Sobre tais condições a Constituição reina, absoluta, e o

Direito Civil não pode ser imune a isso; quando se fala de Constitucionalização do

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Direito Civil, o que se faz, na verdade, é colocar em prática a harmonização dos

direitos de liberdade, de igualdade e de fraternidade.

De se perceber que numerosos trabalhos, na atualidade, são publicados

permeando a importância de medir-se com relação à sustentabilidade. Exemplo é o

livro organizado pela Profa. Mara Darcanchy, onde se encontra “um conjunto de

capítulos relativos aos direitos fundamentais, à ética, ao terceiro setor, ao acesso

judicial a medicamentos, ao meio ambiente, à governança corporativa, à função

social, ao trabalho, à conciliação, à dignidade humana e às práticas sociais das

empresas, entre outros temas constitucionais, empresariais, tributários, trabalhistas,

civis, socioambientais e filosóficos, sempre com interfaces à justiça social”.621

Assim, percebe-se uma relação tripartite, em que Estado, Empresa e

Cidadão participam na construção da Sociedade, não apenas como livres, nem

apenas como iguais, mas também como solidários, eventualmente confundidos em

duas partes, ou mesmo os três entre si.

Estão amarrados entre si, compromissados não apenas pela necessidade

de sobrevivência, mas por um movimento científico, do qual não se abstraem as

ciências jurídicas, que participam com a compreensão de que é necessária uma

intervenção visando salvar e preservar.

A integração com a luta por reconhecimento de Honneth também traz a

perspectiva de que, no caminho de desenvolvimento da sociedade, também há um

entrelaçamento com o desenvolvimento individual, de modo que o desenvolvimento

da sociedade também depende do desenvolvimento do indivíduo em acordo com a

sociedade. Na medida em que ambos se reconhecem (e conhecem a si mesmos,

indivíduo e sociedade), é possível estabelecer, num caminho de degraus de

aprofundamento, direitos de liberdade, igualdade, solidariedade e, na 4ª. dimensão,

democracia.

A tese de doutorado da professora Viviane Séllos Knoerr tem algo a dizer

a respeito. O direito à ressocialização do encarcerado é um direito de todos; não

apenas do encarcerado, pois seu desenvolvimento pessoal se traduz em acréscimo

de liberdade coletiva e individual para a sociedade e outros indivíduos a ela

621 Darcanchy, Mara. Direito, Inclusão e Responsabilidade Social. 1ª. ed. São Paulo: LTr, 2013. O

comentário reproduzido é da sinopse do livro, impossível de resumir neste contexto.

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pertencentes. O reconhecimento de tal direito é um exemplo de concepção solidária

com relação ao desenvolvimento, dentro de uma perspectiva de sustentabilidade.

A exposição de um substrato moral inerente às lutas sociais, considerada

a luta por reconhecimento, implica em restabelecer um status fundamental à máxima

socrática do “conhece a ti mesmo”, dando relevo aos processos de formação

psicológica nas relações sociais, e sublinhando a necessidade de considerar ética e

detidamente o modo como tais relações se estabelecem, o que em parte é objeto do

Direito, pois, se este pretende regular as relações sociais, usando também da

administração da Justiça (isto é, pacificando-as em princípio, conciliando vontades e

cumprindo o honeste vivere, neminem ledere, cuique suum tribuere),622 precisa estar

atento às minúcias em um mundo onde toda verdade é relativa.

Frase que complementa esse raciocínio é de Francisco Cardozo de

Oliveira: “A ordem jurídica comprometida com a tutela efetiva dos direitos deve estar

orientada para assimilar os valores da situação de fato. O que não significa,

entretanto, o abandono puro e simples da formulação teórica. A abstração conceitual

deixa de ser a premissa fundamental do conhecimento jurídico que passa a

reconhecer válida a teoria que seja capaz de incorporar os elementos valorativos da

situação de fato a ser regulada, ou seja, que possa dar conta do processo de

interpretação e concretização do direito”.623

Este trabalho, em síntese, constitui-se também numa espécie de relato,

uma assimilação, uma construção relativa ao trabalho que se vem desenvolvendo no

Programa do Mestrado em Direito e Cidadania do UNICURITIBA, pois a articulação

das leituras e a estreita colaboração entre as disciplinas do programa permite

adquirir a compreensão vívida do Princípio Constitucional da Sustentabilidade, tão

imprescindível para o mundo atual, tão premente e tão presente em praticamente

todos os ramos do Direito.

Quando se fala em preservar, incluindo-se aí algo de um reciclar, há um

movimento todo que se deve perceber na Constituição, na lei internacional e

nacional, nas escolas de pensamento filosófico e jurídico, que se pretendeu

espelhar, embora palidamente, neste breve trabalho, cujo ponto alto foi a ênfase na

622 Frase atribuída a Ulpiano: Viver honestamente, a ninguém lesar, dar a cada um o que lhe é

devido. 623 Oliveira, Francisco Cardozo. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 1.

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percepção dessa necessidade de integração entre os diferentes atores que

participam dessa necessidade de desenvolvimento sustentável: mais do que uma

discussão sobre fundamentos estabelecidos, o que se procurou foi fornecer bases

para a visualização de uma ordem em que se vislumbre uma colaboração e não uma

competição.

Não está o cidadão ameaçado de desaparecer sozinho, nem tampouco o

Estado, como também não pode a empresa sobreviver sem os outros dois; porém,

na prática diária, o que se observa são incongruências que, eventualmente,

necessitam de uma perspectiva supra, como um afastamento relativo e uma

observação sobre o todo. Assim, pode-se identificar alguns aspectos que, numa

barafunda de detalhes, não aparecem como pontos comuns em um todo.

Identificados tais pontos, pode-se construir estratégias de ação. Uma

dessas, talvez, será objeto de tese de doutorado, a seguir-se em outro trabalho.

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