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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA
PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO
ESTADO, EMPRESA E CIDADÃO: OS ATORES SOCIAIS E O
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Curitiba
2013
CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA
PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO
ESTADO, EMPRESA E CIDADÃO: OS ATORES SOCIAIS E O
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Dissertação apresentada perante Banca
Pública de Avaliação como requisito parcial à
obtenção de título de mestre no Programa de
Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania
do Centro Universitário Curitiba.
Mestrando: Daniel Ricardo Augusto Wood
Orientadora: Profª. Dra. Viviane Séllos Knoerr
Curitiba, junho de 2013
II
RESUMO
Esta dissertação apresenta os três atores socialmente discerníveis que importa
destacar no cenário do desenvolvimento sustentável que se quer para o Brasil; quer-
se tornar evidente que a participação destes três personagens, no cenário do direito, não pode prescindir de certas considerações que incluem a ética e, em certo grau, a
filosofia da justiça e a moral; percebem-se níveis diante dos quais se postula, gradativamente, a importância da solidariedade para a concretização de uma
condição de desenvolvimento que de modo algum deixa de lado a consideração, absolutamente necessária, a respeito da sustentabilidade, aqui vista como principio
que informa todo o sistema constitucional, e, portanto, como base de todo o sistema
jurídico brasileiro; seus capítulos abordam direitos transgeracionais, objetivos
constitucionais, responsabilidade social da empresa, ordem e interesse públicos, razões de Estado e obediência à Constituição, mecanismo de atividade de regulação
no Brasil, atuação estatal frente ao princípio constitucional da sustentabilidade, bases ideológicas relacionando a solidariedade (fraternidade) à liberdade e à
igualdade; conclui-se com um exemplo prático da aplicação da distribuição de
receitas tributárias nas unidades da federação, explicando o mecanismo
denominado ICMS Ecológico ou ICMS Verde como meio de garantir o
desenvolvimento em municípios menos privilegiados economicamente no Estado do
Paraná.
PALAVRAS-CHAVE: SUSTENTABILIDADE – ICMS ECOLÓGICO –
FRATERNIDADE – SOLIDARIEDADE – RESPONSABILIDADE SOCIAL –
CIDADANIA – OBJETIVOS CONSTITUCIONAIS – ÉTICA – JUSTIÇA SOCIAL
III
ABSTRACT
The following discourse presents three actors socially discernible on the scenery of
sustainable development, the scenery that is wanted for Brazil; what one wants with it is to show evidence that participation, regarding those three characters on the scene
of law, cannot disregard certain considerations which include ethics, and, to some
degree, morals and the philosophy of justice; there are levels that are perceived in a
way that it is postulated, gradually, the importance of solidarity for the realization of a
condition of development that in no way leaves aside regards absolutely necessary
about sustainability, here seen as a principle that sustains the entire constitutional system, therefore acting as base of the entire Brazilian law system; its chapters
aboard transgenerational rights, constitutional objectives, social responsibility in
business and entrepreneurship, public order and public interest, State reasons and
Constitutional obedience, regulatory activity in Brazil, State activity in view of the
constitutional principle for sustainability, ideological bases relating fraternity, equality
and liberty; it concludes with a practical example regarding a practical application of the model of revenue-sharing (from taxes) amongst federation units, explaining the
mechanism of revenue-sharing from the state value-added tax on the circulation of goods, interstate and intercity transportation and communication services (somewhat like the state excise tax), which is commonly called in Brazil as Green or Ecological ICMS (Green or Ecological excise tax), as a way to guarantee development in
economically less-privileged municipalities in the State of Parana. KEYWORDS: SUSTAINABILITY – GREEN EXCISE TAX – FRATERNITY –SOCIAL
RESPONSIBILITY – CITIZENSHIP – CONSTITUTIONAL OBJECTIVES – ETHICS –
SOCIAL JUSTICE
IV
AGRADECIMENTOS
À Professora Dra. Viviane de Sellos Knoerr, minha orientadora e coordenadora do
programa, incansável em sua missão de levar adiante e além o Programa de
Mestrado do Unicuritiba, respirando pelo programa em vários momentos,
oportunizando a todos os mestrandos um conhecimento mais aprimorado do Direito,
por nós abraçado.
Aos membros da banca, Professores e Doutores Fernando Gustavo Knoerr e Ilton
Garcia da Costa, que tiveram a perspicácia, a paciência e a sabedoria para avaliar e
orientar auspiciosamente este trabalho, oferecendo inestimável contribuição
intelectual para o aprimoramento deste trabalho e deste aprendiz.
Aos professores do programa de Mestrado do Unicuritiba, sem os quais (todos) seria
impossível vislumbrar o conhecimento necessário para prestar uma mínima
demonstração de condições de assumir o grau de mestre em relação a um estudo
árduo, de pelo menos dois anos de duração.
Aos colegas de mestrado, grandes amigos, sempre participativos ao longo de toda
essa jornada.
Aos funcionários e estagiários do programa de Mestrado do Unicuritiba, sempre
atuando para nos proporcionar segurança nos trâmites necessários durante esse
empreendimento.
À minha esposa, Edineia Luiz Ozorio Wood, que com amor e paciência suportou
mais esse esforço de minha vida, tempo em que efetivamente me faltaram forças
para cuidar de certos afazeres domésticos que exigiram de minha companheira mais
do que é habitual.
Em tais nomes, agradeço a todos os seres vivos pela oportunidade de ter, também,
um lugar ao nascer e outro ao por do Astro-Rei que ilumina a vida na Terra.
Nenhum ser humano está só, neste imenso Universo. O Criador nos deu o Sol, que
brilha durante o dia, para todos; a Lua, para iluminar ciclicamente as noites, dizendo-
nos que nada é permanente, embora todas as coisas, em certo grau, se repitam. A
Ele sou sempre grato por me dar a oportunidade de conhecer algo mais do meu
lugar na obra da Criação. Não há ciência, nem saber, se não houver algo que
antecede a toda a epopeia humana em busca de sua realização máxima como ser
capaz de conhecer a si mesmo.
V
Eu e minhas ideias de canário nos
recolhemos, todos os dias, para examinar, às
vezes brevemente, às vezes mais
detidamente, de que é feito esse mundo sobre
o qual reinamos, construindo nossos palácios
e nossas gaiolas, eventualmente encontrando
elementos que parecem ter sumido de nossas
vistas, mas estão sempre aí, mudando de
forma, de estilo, de cor e de conteúdo. O rio
que passa diante de nós é sempre o mesmo; mas as águas, nunca se repetem. O que se
segue é uma dessas oportunidades de
examinar uma concepção de mundo. (as
referências são a Machado de Assis e
Heráclito, como bem lembrou o Prof. Fernando Gustavo Knoerr).
VI
NOTA (PÓS-DEFESA)
Muito bem lembra a Professora Dra. Viviane Séllos Knoerr, a respeito do Estado
Social de Direito que aqui se defende, que em praticamente todos os trabalhos da
atualidade fala-se de um Estado Social que, no entanto, raramente se vislumbra na
prática. Vive-se, no Brasil, sob um aspecto de realidade concreta, um Estado Liberal que, embora tenha dispositivos constitucionais que preveem um Estado Social, não
raro não contempla as garantias que deveria assegurar. Fazendo coro, e
observando o leitor que, de fato, muito do que a Constituição preconiza há décadas
ainda não foi implementado, pode-se pensar que aquilo que aqui se encontra, sob o
aspecto de Estado Social de Direito, é a afirmação de deveres do Estado e direitos
dos cidadãos e das empresas, isto é, a responsabilidade estatal de implementar
tudo aquilo que a Constituição preconiza, não aos pedaços, nem somente aos
poucos. Já não é tempo de se pensar, por exemplo, em continuar desvinculando as receitas
da união para fins que ainda não se vislumbram. Há décadas se desvinculam
receitas e se avolumam tributos sobre as cabeças dos cidadãos e das empresas, e
muito ainda se espera. A questão que se tem visto nestes dias de turbulência da
atual Copa das Confederações e da futura Copa do Mundo de Futebol de 2014, com
os olhos do mundo voltados para o Brasil, é que, aparentemente, o brasileiro está
cansado de esperar enquanto ri e sofre. Evidentemente que, ao longo do trabalho que se segue, fala-se de deveres que os
três atores devem preencher. Isso não exclui o dever do Estado para com a
Constituição, como não exclui os direitos constitucionalmente estabelecidos. Em
Direito Constitucional, sabe-se perfeitamente que os direitos fundamentais são
limitações aos abusos que o Estado pode cometer. Se eles não são respeitados em
sua integralidade, é porque em alguma medida estão acontecendo abusos. Este modesto escritor quer crer que a ideia do Estado Social, proposta na
Constituição, gravada em fogo, é forte a ponto de levar o Brasil e esse Estado Social de Direito que se quer, e trabalha para isso. É, como afirmou a Professora Viviane, um devir. Que esse vir-a-ser se transforme, em breve, em ser, é o que se espera.
Em Curitiba, 27 de junho de 2013.
VII
SUMÁRIO
I. INTRODUÇÃO .......................................................................................... 9
II. DIREITOS TRANSGERACIONAIS E DO ESTADO E O DIREITO
INTERNACIONAL: BALANÇO SOCIAL ................................................ 20
II.1. MUNDIALIZAÇÃO ...................................................................................20
II.2. DIREITOS TRANSGERACIONAIS.......................................................... 22
II.3. OBJETIVOS CONSTITUCIONAIS .......................................................... 24
II.4. RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA......................................26
II.4.1. “Politicamente Correto”, Porém Nem Sempre Lucrativo.......................... 28
II.4.2. Ações Afirmativas e o Lucro a Médio e Longo Prazo .............................. 30
III. ORDEM PÚBLICA, RAZÃO DE ESTADO E OBEDIÊNCIA À
CONSTITUIÇÃO ..................................................................................... 34
III.1. SUPREMACIA CONSTITUCIONAL E RAZÕES DE ESTADO................34
III.1.1. Razão de Estado .....................................................................................34
III.1.2. Razão de Estado Democrática ................................................................35
III.2. ORDEM PÚBLICA E INTERESSE PÚBLICO..........................................36
III.3. OBEDIÊNCIA À CONSTITUIÇÃO ........................................................... 45
III.3.1. Soluções constitucionalmente previstas (via extraordinária) ...................47
III.3.1.1. Medidas Provisórias ................................................................................48
III.3.1.2. Estado de Defesa e Estado de Sítio........................................................49
III.3.2. Soluções tipicamente administrativas......................................................50
IV. BREVES CONSIDERAÇÕES QUANTO À DINÂMICA DO PODER
REGULATÓRIO NA ATIVIDADE ECONÔMICA .................................... 51
IV.1. ANÁLISE DE FÁBIO COMPARATO........................................................ 51
IV.2. ANÁLISE DE ANTONIO ENRIQUE PEREZ LUÑO .................................55
IV.3. CRESCIMENTO OU DESENVOLVIMENTO EMPRESARIAL E
SOCIAL? ................................................................................................. 60
IV.3.1. Breve Histórico da Introdução do Mecanismo Regulatório na
Realidade Atual ....................................................................................... 62
IV.3.2. O Mecanismo de Regulação da Atividade Econômica ............................ 70
IV.3.3. Poder Regulador .....................................................................................72
IV.3.4. O Exercício do Poder de Regular ............................................................ 75
IV.3.5. Mais Considerações ................................................................................77
IV.3.6. A Atuação Estatal sobre o Desenvolvimento e a Sustentabilidade .........81
IV.3.7. O Estado Intervencionista Segundo Bonavides.......................................88
IV.3.7.1. Das Origens do Liberalismo ao Advento do Estado Social......................95
IV.3.7.2. O Estado Liberal e a Separação dos Poderes.......................................100
IV.3.7.3. O Pensamento Político de Kant.............................................................103
IV.3.7.4. O Pensamento Político de Hegel...........................................................104
IV.3.7.5. A Liberdade Antiga e a Liberdade Moderna ..........................................106
IV.3.7.6. As Bases Ideológicas do Estado social .................................................108
IV.3.7.7. O Estado social e a democracia ............................................................110
IV.3.7.8. A Interpretação das Revoluções............................................................111
VIII
V. SOLIDARIEDADE, ICMS ECOLÓGICO E DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL .................................................................................... 112
V.1. AMOR, DIREITO E SOLIDARIEDADE EM AXEL HONNETH...............112
V.2. COMPROMETIMENTO, COMUNIDADE E DESENVOLVIMENTO
SOCIAL A PARTIR DE RAINER FORST .............................................. 123
V.2.1. Constituição do Eu ................................................................................125
V.2.2. A Neutralidade Ética do Direito.............................................................. 129
V.2.3. O Ethos da Democracia ........................................................................135
V.2.4. Universalismo e Contextualismo ........................................................... 143
V.2.5. Contextos da Justiça .............................................................................145
V.3. SOLIDARIEDADE E TRIBUTAÇÃO NO ICMS ECOLÓGICO ...............148
V.4. PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA VIGÊNCIA DA
SUSTENTABILIDADE ........................................................................... 150
V.5. POLÍTICAS PÚBLICAS AFIRMATIVAS E MEIO AMBIENTE................153
V.5.1. Ações Afirmativas em sua Relação com a Base Ideológica das
Políticas Públicas .................................................................................. 155
V.6. DIREITO TRIBUTÁRIO AMBIENTAL, DISTRIBUIÇÃO DE
RECEITAS E ICMS ECOLÓGICO......................................................... 157
V.6.1. Externalidades e sua Internalização......................................................159
V.6.2. Distribuição de Receitas: Caso do ICMS...............................................161
V.6.3. ICMS Ecológico: o Caso do Paraná ......................................................162
V.7. CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS ......................................................... 164
VI. CONCLUSÕES .....................................................................................165
VII. REFERÊNCIAS .....................................................................................173
9
I. INTRODUÇÃO
João Neves de Fontoura,1 citado por Viviane de Séllos Knoerr, nos
informa que
Todo o universo habitado é um sistema de vasos comunicantes. Um instituto político, jurídico, econômico, ou social, que desaba ou se transforma no Oriente, influi no similar do Ocidente como numa cadeia de reflexos. Subvertida a tábua dos logaritmos humanos, todas as operações parecem erradas, todas as equações mal enunciadas, todos os cálculos incertos.
A Internet demonstra essa teoria na prática. Uma barafunda sofisticada de
ligações coloca (os que tiverem meios de acesso à Internet) praticamente todo o
mundo interligado, seja quando se faz uma simples compra num supermercado, seja
quando se envia ou se recebe uma mensagem por correio eletrônico, seja quando
se coloca um comentário qualquer numa rede social, publicando coisas que serão
lidas por toda parte. Seriam, talvez, lidas na Lua, se lá se tivesse pelo menos dois
requisitos: (1) acesso à Internet e (2), o mais importante, pelo menos um ser
humano, devidamente interessado, para ler. Pode-se crer que assim será um dia.
Poder-se-ia dizer que essa é uma tentativa tosca de entender o
comentário de Fontoura, se não se soubesse que o pensamento do parágrafo
anterior não corresponde a uma pós-leitura de Fontoura: deriva de um entendimento
copartícipe de ideias filosóficas no mínimo gregas e até mesmo chinesas, quiçá
egípcias, aztecas, maias, aboriginais, lêmures, atlantes. Faz parte, diria talvez Carl
Gustav Jung, de uma intrincada rede arquetípica a que todos os seres humanos têm
possibilidades de aceder.
Não obstante, a ideia dos vasos comunicantes é muito ilustrativa, e por
isso mesmo didática: mostra de modo claro a analogia da interligação entre todos os
seres humanos em imensa rede social, em um tempo em que ainda não se cogitava
em computadores eletrônicos. Mostra mais: que, como na tese de doutoramento de
1 Fontoura, João Neves de. Discurso pronunciado no Teatro Municipal, em sessão cívica promovida pela Liga de Defesa Nacional, em 07/09/1936, no Rio de Janeiro. In Antologia de Famosos discursos brasileiros, pp. 130 e 131, apud Séllos, Viviane, A Ressocialização do Encarcerado: uma Questão de Cidadania e Responsabilidade Social. Rio de Janeiro: Clássica, 2012. Tese de doutorado publicada (cont.)
10
Viviane Séllos, todos são responsáveis uns pelos outros e, ainda, pela consecução
de um objetivo maior, que a todos diz respeito.
Viviane Séllos Knoerr, logo nas primeiras linhas de sua tese de
doutoramento, menciona a igualdade jurídica,2 além de outras prerrogativas
constitucionais. Essa igualdade jurídica faz com que todos, ao pleitear direitos
perante o Poder Judiciário, estejam plenamente em pé de igualdade: o Estado, o
empresário e o cidadão, mesmo que juridicamente confundidos, o que
eventualmente pode acontecer.
Esses três, iguais em si, têm de se relacionar para completar o triângulo
essencial de que depende a Sociedade que se pressupõe num Estado Democrático
de Direito nos dias atuais, mormente no caso brasileiro.
Viviane Séllos também deixa claro, em sua obra, como traduz a ideia de
Fontoura:
(...) em termos preconizados por Cícero: “O tema do dever é duplo; um se relaciona com a natureza do bem e do mal; outro encerra os preceitos que devem mediar todas as nossas ações.” Devemos fazer o bem. Devemos combater o mal e responsabilizarmo-nos por nossos próprios atos.
3
Cumprir com a responsabilidade de cada um é um tema que não é novo;
não obstante, a impressão que se tem, com frequência, é que apenas recentemente
recebe o relevo que merece, apesar da advertência dada a Sócrates pelo Oráculo
de Delfos. No “Conhece a ti mesmo” baseia-se imensa, e a maior, parcela da
construção científico-filosófica sobre moral e ética do Ocidente. A esse respeito, é
preciso levar em conta que a experiência jurídica não abdica, e aliás, extensamente
se vale, de sua relação com moral e ética, como se pode compreender pelo
ensinamento de Bobbio.4
como e-book em http://www.editoraclassica.com.br/novo/ebooksconteudo/eb2.epub, acesso em 17/06/2013. A citação se encontra à p. 17 da obra supra. 2 Séllos, Viviane. A Ressocialização do Encarcerado: uma Questão de Cidadania e Responsabilidade Social. Rio de Janeiro: Clássica, 2012. Tese de doutorado publicada como e- book em http://www.editoraclassica.com.br/novo/ebooksconteudo/eb2.epub, acesso em 17/06/2013, p. 14 e pp. 50ss. 3 Séllos, Viviane, op. cit., p. 17. 4 Bobbio, Norberto. Teoria Geral do Direito, passim; em particular, v. p. 205: “nenhum ordenamento nasce num deserto; metáforas à parte, a sociedade civil em que se vai formando um ordenamento jurídico, como o do Estado, não é uma sociedade natural, absolutamente desprovida de leis, mas uma sociedade em que vigem normas de vários tipos, morais, sociais, religiosas, comportamentais, costumeiras, convencionais e assim por diante. O novo ordenamento que surge nunca elimina completamente as estratificações normativas que o precederam: parte daquelas regras passa a integrar, através de uma recepção expressa ou tácita, o novo ordenamento, que, desse modo, surge limitado pelos ordenamentos anteriores. Quando falamos de poder originário, entendemos originário (cont.)
11
Trata-se a seguir de um tema que permeia a estrutura do Programa de
Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania oferecido pelo UNICURITIBA. Ao
abordá-lo, é de se ter em mente, como de fato deve ser, que todo o programa
contribui integralmente para esta discussão, que é, provavelmente, o cerne da
proposta deste programa: integrar a atuação estatal, a atuação empresarial e o
desenvolvimento da cidadania, de modo que a Ciência Jurídica tenha como se
mover livre e desembaraçadamente entre tais fatores, integrando-os,
proporcionando um resgate do que é verdadeiramente o Direito: tendo por centro o
ser humano, busca coordenar suas relações, oportunizando o desenvolvimento
coletiva e individualmente.
De modo a tratar de tão abrangente tema, faz-se necessário abordar que
espécie de situação é esta em que se encontram os três atores que participam deste
estudo. Isto é feito no primeiro capítulo, quanto ao qual cumpre esclarecer
inicialmente um ponto básico.
Usa-se adiante a expressão “responsabilidade fraternal”, e necessário se
faz dimensionar em que termos se usa a mesma, isto é, os limites da noção de
fraternidade que se propõe aqui aplicar. Primeiro, fique claro que o uso da
expressão “fraterna” ou “fraternal”, neste trabalho, impõe algo mais do que
simplesmente social; mas também compreende menos do que seria usual tratar em
termos religiosos.
Implica uma espécie de ética que vai além da pura e simples
responsabilidade social, mas abrange menos do que se pode esperar do sujeito
religiosamente dedicado a englobar espiritualmente a alteridade, pois não se pode
propor nem esperar, em um trabalho que pressupõe uma metodologia científica
relativamente às ciências jurídicas, uma atitude dogmática no sentido religioso da
expressão ética.
Considera-se que existe uma ética e uma moral na religião, e na prática
religiosa encontram-se os fundamentos daquela; mas aquilo de que aqui se fala não
é de um mundo que transcende este em que se vive: interessa falar deste lugar
onde se está, do mundo em que se vive, em que todos os problemas atuais
juridicamente, não historicamente. Podemos falar nesse caso de um limite externo do poder soberano”.
12
precisam ser considerados com o cuidado e a atenção necessários à preservação
da vida humana.
Se, por outro lado, o que aqui se expõe for relativamente congruente a
esta ou aquela práticas religiosas, deve-se ressaltar que é por força daquilo que, na
religião, está próximo do Direito (e vice-versa); isto é, que tanto no Direito, quanto na
religião, a justiça é meta comum; e que, para haver justiça, é preciso haver também
certo grau de racionalidade, coisa pressuposta como objetivo a atingir por meio do
“pacto social”.
Assim, se há uma intenção de entregar a tutela de parte dos direitos
individuais e coletivos ao Estado, para que este se encarregue de tornar a sociedade
possível, então é também preciso estar apto a definir em que medida ocorre o
engajamento num contrato social. Mais do que isso, o estabelecimento de direitos
fundamentais é mais do que simplesmente a assunção de direitos naturais, e
também representa outra ordem de pensamento.
Em segundo lugar, o uso do termo “responsabilidade”, aqui, é mais uma
consagração ao seu uso do que um paralelo imediato ao significado do termo em
Direito Civil, como em “responsabilidade civil”, coisa que nasce uma vez
descumprida uma obrigação (também determinada pela lei ou pelo contrato). A
responsabilidade “fraternal” no sentido aqui desenvolvido talvez possa ser percebida
contratualmente e talvez até possa ser defendida em uma discussão sobre aplicação
de princípios constitucionais; mas, afora situações em que a empresa se dedique às
circunstâncias aqui sugeridas em sede contratual, não é fácil prever, somente com
base no que se expõe neste texto, que a responsabilidade extracontratual esteja
sempre presente.
Mais além, o Constitucionalismo dos dias atuais (seja ou não
recepcionado como “neoconstitucionalismo”) implica em geral uma racionalidade que
admite, de maneira positivada, a existência de direitos fundamentais que
pressupõem-se, por sua vez, diretamente relacionados aos três preceitos
fundamentais da sociedade ocidental moderna, expressos pelo lema “liberdade,
igualdade, fraternidade”.
Em tais três dimensões alojam-se os direitos de liberdade, os direitos
sociais e os direitos transgeracionais; e é dentro desses limites que se pretende
colocar uma noção de fraternidade – algo não especificamente religioso, mas que
13
implica, certamente, em ampliação e aprofundamento necessários quanto à noção
de ética que vai além da simples responsabilidade social; isso inclui uma reflexão
que deve se basear na responsabilidade transgeracional posta na Constituição,
admitindo entre outras coisas a necessidade de preservar o meio ambiente para as
gerações presentes e futuras.
Em tempos de mundialização5 do capital e assunção de direitos
transindividuais e transgeracionais, como é o caso do direito ao meio ambiente
expresso na Constituição Federal, encontra-se forte impulso, não apenas por parte
da ordem jurídica, mas da sociedade em geral, e de variados setores da economia
nacional e internacional envolvendo a ética empresarial no sentido de, além de
cumprir com sua determinação, agir na direção do progresso sócio-cultural e
econômico dos componentes da sociedade.
Essa atitude pode ser analisada sob dois aspectos básicos: primeiro, da
aparência de redução dos lucros da atividade empresarial, analisando este ônus, e,
eventualmente, a eficiência da empresa ao levar sua produção ao mercado; e
segundo, do benefício atingido, a longo prazo, com o desenvolvimento de técnicas
aprimoradas e socialmente adequadas, voltadas à produção e ao desenvolvimento.
Este estudo tem por objetivo abordar os dois aspectos acima, de modo a
reforçar a ideia de que é não apenas “politicamente correto” atuar afirmativamente
visando o desenvolvimento harmônico da sociedade, mas, também, a médio e longo
prazo, é bastante lucrativo adaptar a empresa, seus valores e sua cultura, a uma
ética que abranja não apenas a missão primordial da empresa em sua precípua
atividade econômica, mas também outras atividades que não aparentam estar
incluídas na perspectiva empresarial estrita.
A dignidade humana é princípio efetivamente consagrado pelo
ordenamento jurídico brasileiro a partir mesmo de sua Constituição Federal, e eis
que as implicações contidas na defesa da dignidade humana obrigam a extensas
considerações sobre a proteção dos Direitos Fundamentais – absolutamente
necessários para preservar a dignidade do ser humano – de modo tal que é
imprescindível para o Brasil criar e manter instituições voltadas à preservação e
limitação de sua sociedade para que o desenvolvimento se dê mesmo segundo seu
5 Expressão utilizada por François Chesnais em seu livro “Mundialização do Capital” para designar genericamente o que o poder econômico anglo-americano chama de “globalização”.
14
lema – Ordem e Progresso, lema positivista, cientificista, lastreado em uma ética
humanista que não admite que não esteja em todo o centro de suas considerações o
ser humano, a individualidade de cada um e a coletividade de seres que compõem o
povo e as sociedades pública e privada em um Estado.
O estabelecimento de um Estado de Direito que tem de debruçar-se
constantemente sobre a necessidade de desenvolver seu povo preservando a
democracia e a sociedade é na verdade uma tarefa complexa, que impõe
considerações contínuas e, em certas ocasiões, aparentemente antinômicas, que,
mediante cuidadosa hermenêutica, permitem um progresso gradual e relativamente
ordenado.
Cabe neste processo uma abordagem detida do interesse público, de
suas implicações sobre o interesse privado; incluem-se observações sobre a
administração e a intromissão, por vezes necessária, do Estado no campo do direito
privado; envolve a percepção de que há mesmo interesses privados que influem
diretamente sobre as Razões que o Estado tem para investir nisto em detrimento
daquilo. Trata-se disso no segundo capítulo.
Como tudo o mais que depende de recursos que não são inesgotáveis, é
importante refletir sobre incontáveis situações em que o Estado parece ora inchar,
ora desinchar suas estruturas, tendo por meta maximizar sua eficiência na resolução
de questões que se impõem aos cidadãos de forma privada, mas obrigam o Estado
a intervir, procurando harmonizá-las, pacificando a sociedade ao mesmo tempo em
que propicia oportunidades.
As políticas regulatórias do governo, por certo, têm relação com a
responsabilidade social das empresas a elas sujeitas, na medida em que
representam disposições normativas de observância obrigatória. Assim, no terceiro
capítulo aborda-se o tema da regulação, procurando fornecer uma perspectiva sobre
o exercício de regulação levado a efeito pelo Estado na atividade econômica.
O pacta sunt servanda,6 argumento básico da disposição liberal que tanto
influenciou e ainda influencia a concepção de Estado Democrático de Direito, hoje
6 Do latim: “o contrato deve ser cumprido”, é um brocardo latino que propõe que aquilo que foi acordado deve ser cumprido nos limites da lei, originalmente obrigando absolutamente as partes ao estrito atendimento das cláusulas contratuais, por vezes partindo da ideia de que ambas as partes tiveram plena liberdade em contratar.
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não é mais tão típico como no Mercador de Veneza de Shakespeare.7 Hoje, não
apenas a autonomia da vontade nos contratos privados está submetida a regras que
a relativizam: o próprio Estado participa, por vezes, como se fosse um ente privado,
das relações contratuais.8
Trata-se, então, de razões que evidenciam a necessidade de atender a
questões que incluem o interesse público e que tornam o Estado um parceiro de
negócios com especiais interesses – enquanto é um Estado que tem mecanismos
para garantir incondicionalmente seus negócios, pode, porém, descumprir
determinadas obrigações, dependendo de condições relacionadas a um interesse
maior, e em tais casos, via de regra, está plenamente justificado ao fazê-lo, sendo
mesmo seu dever e não apenas uma opção que se coloca à sua frente.
Há consequências para um tal modo de ação, como ocorre em geral
quando há um contrato entre quaisquer partes; essas consequências se refletem, no
caso do Estado, interna e externamente, sob dimensões muito superiores às de uma
simples empresa.
Medidas como o denominado “Risco Brasil”, que indicam o quão confiável
é fazer investimentos em um país, estão relacionadas tanto ao valor da moeda nas
casas de câmbio e aos volumes de importação e exportação que devem ser
pesados na balança comercial quanto ao caixa disponível para programas de
combate e erradicação da miséria e do analfabetismo.
Bem assim se dá quanto à análise e alteração da carga tributária que
pretende financiar, manter ou estabelecer programas sociais que o governo deve ter
para obedecer à vocação máxima do Estado, preconizada pela Constituição.
Nesse ínterim, pressupõe-se que o Estado não pode, por exemplo, onerar
indefinidamente o contribuinte só porque é para ele que presta serviços, nem pode
deixar plenamente de cobrar seus tributos do povo – pois precisa no mínimo manter
uma estrutura de administração de fronteiras, mesmo que fosse possível deixar os
Direitos Fundamentais de segunda dimensão (sociais) para ater-se unicamente aos
políticos, como no caso da manutenção de uma ordem política. 7 De se ter em mente, aliás, que Shakespeare mesmo não considerava que a autonomia da vontade privada devia ser tão autonômica nem, aliás, exclusivamente privada, impressão que se tem pela solução dada pelo grandioso dramaturgo inglês aos assuntos que envolviam considerações privadas submetidas à mediação de um Estado em sua famosa peça. 8 É o caso das empresas públicas de direito privado e as sociedades de economia mista.
16
É um dilema digno de Têmis:9 justificar o Estado como executor de uma
vontade popular que dificilmente é estabelecida em um consenso simples, exigindo
contínua revisão, adaptação e aprofundamento.
Entre os antigos, até Platão se debruçou sobre a questão, em sua
“República”, que, aliás, começa por se perguntar o que é Justiça, e procura
estabelecer, para examinar o conceito, a administração democrática das coisas
públicas. Questão que interessa ao filósofo socrático é quem deve estar no topo da
administração da cidade-Estado, de modo a atender ao interesse que visa beneficiar
toda a coletividade e, deste modo, realizar a distribuição da Justiça.
No advento da modernidade, Montesquieu e outros refletiram sobre a
separação de poderes visando a administração harmoniosa do Estado e procurando
também pela Justiça e por um Estado capaz de representar o povo.
Hoje, praticamente todos os estudiosos da Ciência Política, da Filosofia
do Direito e do Constitucionalismo, bem como do Direito Civil, do Direito Econômico,
do Direito Empresarial, do Direito Administrativo e do Direito Tributário (para citar
apenas algumas áreas relevantes das Ciências Jurídicas relativamente ao tema em
exame) estão debruçados ativamente sobre o dilema da administração pública em
face das escolhas complexas que esta deve fazer e de quais princípios devem
nortear, virtualmente vinculando, todas as suas decisões, pelo tremendo impacto
que têm no cotidiano de milhões de pessoas.
Uma das questões que se impõe aqui, por exemplo, são as intervenções
que o Brasil fez, em várias ocasiões, mesmo depois da Constituição Federal de
1988, procurando conter as altas inflacionárias galopantes antes do advento do Real
como moeda brasileira.
Houve, por exemplo, o Plano Collor I,10 com o que foi conhecido como um
“confisco” em larga escala de ativos financeiros, limitando bruscamente a moeda em
circulação no país, procurando com isso conter a inflação. 9 Filha de Urano (o Céu) e Gaia (a Terra), está bem na origem da expressão popular que busca encontrar a fórmula mágica entre duas instâncias separadas pela imensidão: “Nem tanto ao Céu, nem tanto à Terra”. 10 Que teve dois momentos em seu estabelecimento, de março a maio de 1990, devido às Medidas Provisórias 168, de 15 de março de 1990, e 189, 30 de maio de 1990, segundo nos conta Luís Roberto Barroso em Temas de Direito Constitucional, Tomo I, (2ª. ed., Renovar, Rio de Janeiro: 2002) pág. 290 e seguintes. Outras medidas provisórias ‘costuraram’ o processo ao longo do caminho, inclusive procurando ‘engessar’ o Poder Judiciário.
17
Eram “Razões de Estado” que pareciam lastrear tal intervenção, que, ao
longo do tempo, perdeu força e acabou por soçobrar, sendo vencida por novas
investidas inflacionárias. Tais razões haviam se sobreposto a praticamente todos os
contratos privados vigentes então; muitos tiveram de se adaptar da noite para o dia
de modo a cumprir seus compromissos, e as quebras empresariais ocorreram aos
montes, contas vencendo e escassez de dinheiro para manter a produção e o
emprego.
Recentemente, o Brasil teve a experiência da CPMF, que, de contribuição
provisória sobre movimentação financeira, tornou-se permanente; mas, sem atender
a finalidade para a qual foi estabelecida – custear a saúde no Brasil – acabou por
morrer, e há algum tempo se esboça seu retorno. O impacto da CPMF foi sem
dúvida muito inferior ao do Plano Collor I; mas também haviam razões que a
suportavam e que, por vários motivos, não foram atendidas.
Não ocorreu, nos casos anteriores, nenhuma quebra direta de contrato
com as entidades privadas; mas o efeito foi, senão o mesmo (com quebras
ocorrendo por via indireta, ou rescisões em massa acontecendo pela incapacidade
de pessoas físicas e jurídicas honrarem seus compromissos), semelhante. Inclusive,
bem maior do que se houvessem apenas alguns contratos estabelecidos com
entidades privadas.
As quebras contratuais entre o Estado e os particulares, no entanto,
acontecem de forma análoga, embora em escala menor: há Razões de Estado
alegadas para que possam ocorrer tais rompimentos.
Pois, no final, o efeito de se ter um setor da sociedade obrigado a aceitar
o ônus decorrente de um benefício a ser proposto à sociedade toda ou a uma parte
maior dela pode (hipoteticamente) ser imposto, tendo por base a Lei Maior e visando
benesse passível de extensão a quem dele muito precisa, almejando inclusive
minimizar efeitos colaterais caso tal intervenção não seja levada a cabo.
Em menor escala, a quebra de contratos é uma quebra de lei pessoal,
entre os contratantes, que pode ter efeitos não apenas entre estes, mas também
relativamente a outros (via de regra terceiros com interesses secundários no
negócio) que têm de suportar as consequências indesejáveis da restrição sofrida
pelas partes contratuais.
18
Uma espécie de “efeito cascata” ou “dominó”: se Aecius deixar de pagar a
Balcius, Balcius poderá deixar de pagar a Cassius, mais por causa de não ter
recurso do que simplesmente porque sentiu-se autorizado a não pagar, embora este
último argumento também possa acontecer. Dionecius, Elcius e Fulvius poderão ser
atingidos, em consequência, e assim por diante.
É o que ocorreu no exemplo histórico que se deu acima. Claro que, ali, a
questão foi maior do que simplesmente um rompimento contratual; mas envolve
análoga espécie de ruptura, como também inclui Razões de Estado; relaciona-se ao
Interesse Público e tem impacto no Desenvolvimento Nacional, colocando a
necessidade de refletir sobre o Estado de Direito e o fato de estar ou não atendendo
a ele (e este atendendo à Constituição).
O Plano Collor I também foi chamado Plano Brasil Novo, como atesta Luís
Roberto Barroso a respeito do então Presidente da República:
Empossado, o novo Presidente deflagrou um ambicioso plano econômico, que, em medida de duvidosa constitucionalidade, promoveu a retenção da quase totalidade dos ativos depositados em instituições financeiras, inclusive cadernetas de poupança. O Plano Brasil Novo foi instituído mediante utilização abusiva das recém-criadas medidas provisórias, e, em pouco mais de um ano, já havia se tornado uma nova aventura monetária fracassada.
11
Durante o Plano Collor I, a primeira impressão, visível nas ruas do Brasil,
era de que finalmente seria contida uma “inflação galopante”. Mas, com o passar dos
dias e com as quebras contratuais que começaram a acontecer, com os ônus da
perda financeira e a desvalorização de muitos bens particulares, os gritos do
interesse privado sobrepuseram-se paulatinamente ao que parecia antes ser
interesse público, de tal modo que, em determinado momento, o Estado passou a
suportar o peso do descrédito geral, levando ao restabelecimento de processos
inflacionários menos de um ano após a Medida Provisória 168 de 1991.
A despeito do choque inicial, o discurso neoliberal e privatizante do Presidente contou com amplo apoio da mídia e da opinião pública. Sua credibilidade, todavia, começou a desmoronar no início do segundo ano de governo. Um provinciano desentendimento entre o Presidente e seu irmão trouxe à tona uma rede de extorsão e corrupção que comprometiam o Chefe de Estado e a eminência parda de seu governo, o tesoureiro da campanha, Paulo César Farias.
12
11 Barroso, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional, Tomo I. Doze Anos da Constituição
Brasileira de 1988. 2ª. ed., Renovar, Rio de Janeiro: 2002. Pág. 18. 12 Barroso, op. cit., pág. 18.
19
Como continua a narrar Luís Roberto Barroso, o Presidente Collor acabou
por sofrer processo de impeachment em fins de agosto de 1992, em processo
histórico. O saldo, porém, do Plano Brasil Novo, foi um tanto desastroso,
principalmente para a economia interna brasileira. A respeito do tema, tem-se
historicamente uma avalanche de ações no Poder Judiciário, que congestionou seus
serviços, tratando de aspectos relacionados ao que se chamou, motivadamente, de
confisco dos ativos financeiros.
Em 1993 a inflação encontrou freio com o Plano Real, durante a
presidência de Itamar Franco, tendo como Ministro da Fazenda Fernando Henrique
Cardoso. Esse plano econômico, que estabilizou a moeda corrente no Brasil, na
prática elegeu por duas vezes um Presidente da República.
O sucesso de um plano econômico elegeu e re-elegeu um Presidente da
República, e o impacto do insucesso de outro, segundo podemos supor, levou a
uma série de suspeitas que acabou por derrubar um Presidente da República
anterior. Tal percepção leva à observação de que o interesse público envolvido na
Administração Pública há de legitimá-la ou, em sentido contrário, até mesmo
destituí-la.
O que é, então, esse interesse público e o que o relativiza – relativizando
também as razões de Estado?
Em que circunstâncias as Razões de Estado podem ser colocadas de
modo tal que pode-se romper as condições contratuais estabelecidas entre o Estado
e entidades de direito privado?
Estes são apenas dois dos tópicos que se examina com relativa brevidade
no segundo capítulo, oferecendo uma reflexão a respeito, que permite compreender
do que se trata quando se fala do Estado de Direito, das Razões de Estado, do
interesse público e da necessidade eventual de descumprir cláusulas contratuais por
parte do Estado.
Entra em cena a importância da atividade regulatória. Põe freio, em nome
da cidadania, a ambos: Estado e Atividade Econômica, de um e outro lado,
procurando defender os interesses individuais e coletivos, colocando na mesa de
negociações Estado, Empresário e Cidadão. Não são, aliás, apenas as agências
reguladoras que tratam de impor freios à atividade econômica: o exercício da
20
cidadania também o faz, impondo limites ao capitalismo. Ser cidadão, aliás, não é
opção (nem, como se pode querer, um simples dever) do indivíduo: é opção, e de
certo modo, dever, para o empresário.
No quarto capítulo, procura-se analisar a atividade regulatória do Estado e
da Administração Pública na atividade econômica, tendo por foco principal o
exercício do poder regulamentar, limitando o exame à esfera federal, considerando-
o, no entanto, como modelo que em linhas gerais é seguido, resguardadas as
devidas proporções, nas esferas estadual e municipal. Não se tem a pretensão de
esgotar o tema relativamente aos limites, profundidade e detalhamento do poder
regulamentar das agências reguladoras.
Cidadania é mais que um status: é um processo contínuo. Envolve a
participação do indivíduo e da coletividade. Como tal, envolve o Estado (a grande
coletividade), a empresa (pequena coletividade) e o cidadão (indivíduos, vivendo em
comunidade). Daí também cabe em alguma medida abordar o que é a solidariedade
que embase o princípio ético da vivência fraterna, e sua relação com a justiça. Isso é
feito no penúltimo capítulo desta obra, dando-se, aliás, um exemplo prático da
aplicação do princípio da solidariedade nessa esfera de participação de atores
sociais, com o caso do ICMS Ecológico.
II. DIREITOS TRANSGERACIONAIS E DO ESTADO E O DIREITO
INTERNACIONAL: BALANÇO SOCIAL
II.1. MUNDIALIZAÇÃO
O termo foi proposto por François Chesnais em seu livro Mundialização
do Capital.
Enquanto o termo globalização, plural de significados, prolifera na língua
principal dos mercados mundiais – o inglês – encontra-se a expressão que lhe é
correlata, mundialização em francês, associada ao capital, ou seja, capitalismo
financeiro sem fronteiras.
21
Explica Chesnais que em 1994, as fronteiras do capital se haviam aberto,
por efeito do fim do Muro de Berlim, numa expansão sem precedentes do capital
ocidental através do mundo, na garupa da expansão da tecnologia e das
telecomunicações. A mensagem fora dada: capitalistas, o mundo é vosso, já não há
fronteiras. Ide e conquistai!
Ainda sob a perspectiva de Chesnais, a globalização é imposta a todos,
apresentada como processo benéfico, exigindo que se adaptem a uma liberalização
e desregulamentação que pretende dar liberdade de movimentos às empresas,
submetendo todos os campos da vida social à valorização pelo capital privado, que
se expande e assume feições corporativistas de um gigantismo sem precedentes,
superando o poder dos Estados.
Analisando esse movimento da mundialização em relação à economia
mundial, Chesnais traz a visão de um mundo excludente, que marginaliza países em
desenvolvimento.13 Em sua obra, Chesnais evidencia que a tecnologia desempenha
papel crucial neste processo, dando velocidade à expansão do capital por meio de
telecomunicações e automação industrial, modificando substancialmente a relação
entre capital e trabalho, fazendo a balança pesar para o lado do capital num
desequilíbrio no mínimo preocupante.
Chesnais expõe de modo geral que, diante da concorrência generalizada
pelos mercados, as megaempresas (multinacionais) parecem não sentir o peso dos
investimentos de capital necessários para se manter diante de atividades
econômicas nas quais as empresas de menor concentração de capital acabam se
vendo em apuros; aí, onde o capital e a tecnologia dominam, o valor do trabalho
humano é proporcionalmente menor, e o custo da qualificação proporcional é
progressivamente maior. Como resultado, ocorre a exclusão, principalmente nos
países que se encontram na periferia dos investimentos em capital.
Hoje, pelos noticiários mais recentes, esse processo atinge não apenas
os chamados “países em desenvolvimento”, mas, também, o “primeiro mundo”,
como recentemente ocorre na União Europeia.14 Esse argumento reforça a noção de
13 Chesnais, François. Mundialização do Capital, p. 33. 14 Aliás, os acontecimentos na União Europeia, com crises financeiras ocorrendo na Grécia e na Itália, percebidas pelos noticiários em outubro e novembro de 2011, reclamam a participação do Brasil e trazem reflexos para as finanças públicas vigentes, como, por exemplo, a intenção de prorrogar a Desvinculação das Receitas da União (DRU – art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal), expressa pela Presidenta Dilma Roussef no início de novembro (cont.)
22
que o Brasil não está só no que diz respeito à atividade econômica, isto é, a
atividade empresarial no Brasil e no mundo tem de se haver, hoje em dia, com os
reflexos da economia mundial sobre a economia nacional.
II.2. DIREITOS TRANSGERACIONAIS
Importa a abordagem da Sociedade de Risco de Ulrich Beck.15 Há riscos
que ameaçam levar ao colapso, não apenas da atividade empresarial, considerada
isoladamente, mas das economias em larga escala dos países e do mundo, e tais
riscos não são de ordem exclusivamente financeira.16
Dentre os riscos que são apenas parcialmente mensuráveis, pelo ponto
de vista econômico, encontra-se a escassez de recursos naturais, evidenciada pela
profunda crise ecológica que o mundo está hoje sofrendo, coisa também evidente
por uma simples pesquisa nos noticiários dos últimos cinco ou dez anos.
Maremotos, terremotos, vendavais, furacões, pragas, doenças,
contaminação, poluição, são termos que se associam para evidenciar reflexos, que
se reproduzem e intensificam a pobreza e a diferença entre as camadas sociais na
economia nacional e internacional.
Mas, como o próprio Ulrich Beck informa, não são apenas os mais pobres
que são hoje afetados pelos riscos da crise na ecologia.17 Como exemplo, pode-se
perceber facilmente que não há concentração de capital capaz de minimizar
de 2011 durante reunião no G-20: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,dilma-usa-crise-na-europa-para- defender-nova-dru,796033,0.htm, acesso em 21/11/2011 às 10h14. Ver também: http://noticias.r7.com/brasil/noticias/dilma-usa-crise-na-europa-para-manter-20-do-orcamento-livre-20111108.html, acesso em 21/11/2011 às 10h32. 15 Beck, Ulrich. Sociedade de Risco. Em sua obra, dentre outras coisas, tal autor propõe que a sociedade em que vivemos atualmente vai além da simples sociedade industrial de produção – naquela, a luta de classes era a tônica, lado a lado com a busca pela produção e pelo conforto; nesta, os riscos são compartilhados e ameaçam a civilização inteira e mesmo a continuidade da espécie humana, exigindo não apenas um comportamento de prevenção, mas também estabelecendo uma espécie de economia que procura absorver os próprios riscos como elemento econômico, inclusive gerando novos riscos. 16 Não obstante, é de se pensar que a atual crise no sistema financeiro mundial se deve também de maneira reflexa a certo descuido com questões sociais em prol de uma espécie de neoliberalismo que fez por negligenciar as lições anteriormente aprendidas (senão com a Filosofia e com a Economia, principalmente com a História, na primeira metade do Século XX). 17 Beck, Ulrich, op. cit., p. 47 e segs., “Situações de risco não são situações de classe”. Apesar disso, o autor aborda este tema recorrentemente ao longo dessa obra.
23
significativamente os efeitos extremamente nocivos de um terremoto, como o do
Japão18 (economia de primeiro mundo) ou o do Haiti
19 (considerado país de “terceiro
mundo”). Em ambos os casos, obviamente, há efeitos que vão além da mensuração
econômica a curto prazo e serão historicamente observados nas décadas que virão.
Se não bastar o exemplo dos terremotos e maremotos (que, por vezes,
podem ser atribuídos a “causas naturais”, que aparentemente fogem da percepção
humana, quanto aos atos, cometidos pela coletividade, que agridem a natureza, de
maneira praticamente irreversível),20 percebem-se os efeitos do acidente nuclear de
Chernobyl na Rússia em meados de 1986,21 ou os efeitos do desmatamento na
Amazônia e na Mata Atlântica brasileiras, que chegam ao ponto de exigir dispositivo
constitucional para sua proteção.22
De tal modo o mundo passou a se preocupar com as questões ambientais
– que dizem respeito à preservação da vida em larga escala – que o direito à vida se
desdobra no direito ao meio ambiente. Direito difuso, de natureza transindividual e
transgeracional, pois vai além do indivíduo no presente e perpassa a vida dos
indivíduos cuja existência ainda virá a ser: a Constituição defende o meio ambiente
para o presente e para as futuras gerações.
Por tal perspectiva, é preciso perceber que o ônus da preservação do
meio ambiente deve ser suportado por todos, independentemente da posição de
cada um. Verdade, porém, que esse suporte deve ser oferecido proporcionalmente a
18 Em março de 2011, forte terremoto atingiu Fukushima no Japão; e em julho de 2011, novo terremoto (embora em escala menor) em região próxima colocou não apenas o Japão, mas o mundo, em alerta: http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/forte+terremoto+provoca+tsunami+e+mata+centenas+no+japao/n1238148772147.html, acesso em 21/11/11 às 10h38; http://g1.globo.com/mundo/noticia/2011/07/terremoto-de-magnitude-73-atinge-o- japao.html, acesso em 21/11/11 às 10h39. Foram contabilizados 23 mil mortos nesse terremoto e imensos prejuízos para a economia mundial, com riscos, ademais devidos à radiatividade emitida por usina nuclear, que meses depois do terremoto ainda não haviam passado por adequada mensuração. 19 O terremoto ocorrido em 12 de janeiro de 2010 no Haiti ocasionou a morte de pelo menos 200 mil pessoas e afetou mais de 1,5 milhão de pessoas nesse país que é o mais pobre das Américas e a primeira república negra do mundo, fundada por ex-escravos em 1804; no Haiti mais da metade da população é subnutrida e vive com menos de 1,25 dólar por dia: http://www.brasilescola.com/geografia/o- terremoto-no-haiti.htm, acesso em 21/11/2011 às 10h48 e http://pt.wikipedia.org/wiki/Sismo_do_Haiti_de_2010, acesso em 21/11/2011 às 10h49. 20 Mas cujas consequências, como no caso da usina nuclear de Fukushima, certamente têm efeito na economia em um nível mundial: basta apenas pensar no comércio de pescados da região de Fukushima. 21 Fato inclusive observado por Ulrich Beck, no capitulo introdutório “A propósito da obra”, em sua obra Sociedade de Risco, p. 7-10. 22 Constituição Federal, art. 225, § 4º.
24
vários fatores (dentre eles, a ponderação quanto à atividade poluidora
desempenhada pelos agentes econômicos).23
II.3. OBJETIVOS CONSTITUCIONAIS
É mandatório observar os ditames da Constituição da República, pois ela
fundamenta toda a ordem jurídica nacional. O art. 3º. da Lei Maior dá sempre as
diretrizes permanentes (enquanto norma fundamental) que devem nortear toda a
atividade nacional (seja ou não de cunho econômico).24
Quando se fala de “responsabilidade livre, justa e solidária”, está-se
falando de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira dimensões: a
liberdade está expressa pelo fundamento primeiro do Estado e da democracia, o
pacto social amplamente baseado nela; a justiça pressupõe a ponderação acerca do
que é igualdade e em que termos ela se torna possível; e a solidariedade,
fundamento dos direitos difusos e coletivos, implica numa espécie de fraternidade
que não é especificamente familiar, mas envolve pensar que aquilo que o outro
precisa, qualquer um também pode precisar.
É nesse sentido que se pressupõe a irmandade: de que há determinadas
coisas que são não apenas para os que hoje vivem, mas também para aqueles que
viverão; e que não são, tais coisas, objeto de propriedade reservado a uns ou outros
especificamente, mas a todos, e por todos devem ser defendidas e preservadas. Se
há que se falar em propriedade, é em sentido difuso, caso do meio ambiente como
23 Canotilho, Joaquim José Gomes (org.) e Leite, José Rubens Morato, (org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. No livro, o artigo de Antônio Herman Benjamin (Capítulo 1: Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira) explica que a Constituição Federal impõe ao Poder Público e aos particulares um dever geral de não degradar, seguido de outros a este relacionados, “de cunho welfarista” (p. 132), nem sempre ostentando “a mesma titularidade obrigacional” (p. 133), não bastando impor deveres apenas contra o Estado. A sustentabilidade ecológica, para o autor, depende de todos os parceiros do pacto democrático. 24 Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
25
bem jurídico; e assim, também, a fraternidade pressupõe certo sentido difuso ao ser
especificada no âmbito da presente abordagem.25
O Dicionário Aurélio Eletrônico ilustra o verbete solidariedade:26
solidariedade [De solidári(o) + -edade.] Substantivo feminino. 1. Qualidade de solidário. 2. Laço ou vínculo recíproco de pessoas ou coisas independentes. 3. Adesão ou apoio a causa, empresa, princípio, etc., de outrem. 4. Sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria humanidade. 5. Relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s): solidariedade de classe. (...)
De tal modo assim é que, observando os incisos seguintes do mesmo
artigo do texto constitucional, tornar-se-á forçoso compreender que desenvolvimento
nacional, erradicação da pobreza e da marginalização, redução das desigualdades
sociais e regionais e a promoção do bem “de todos”, sem preconceito nem
discriminação,27 são coisas que se encontram relacionadas ao sentido difuso
implícito nos direitos transgeracionais, na medida em que todos os objetivos
fundamentais do Estado brasileiro são objetivos voltados a todos, indistintamente, e
a ninguém em particular.28
25 A esse respeito, v. Canotilho (org.) e Leite (org.), op. cit., p. 123. Antônio Herman Benjamin (in Canotilho e Leite, Direito Constitucional Ambiental Brasileiro) explica que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é de terceira geração, alicerçado na fraternidade (solidariedade), pertencendo a categoria de direitos que têm por destinatário o gênero humano como um todo, possuindo estrutura de direito tanto positivo quanto negativo. Seu exercício pode ocorrer tanto coletiva quanto individualmente, “não se perdendo a característica unitária do bem jurídico ambiental (...) ao reconhecer-se um direito subjetivo ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” (p. 123). 26 Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0. Copyright 2004 by Regis Ltda. Edição Eletrônica autorizada à Positivo Informática Ltda. Nossos os destaques em negrito e itálico. 27 V. art. 3º. da Constituição. 28 V. nota de rodapé 12, supra. Acrescente-se que a previdência, por exemplo, está calcada no princípio da solidariedade, conforme atesta o (RE 450.855-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 23-8-05, 1ª Turma, DJ de 9-12-05). Além disso, a respeito do desenvolvimento nacional, o Ministro Celso de Mello também pronunciou seu caráter difuso na ADI 3.540-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1º-9-05, Plenário, DJ de 3-2-06, afirmando: “A questão do desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II) e a necessidade de preservação da integridade do meio ambiente (CF, art. 225): O princípio do desenvolvimento sustentável como fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia. O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz (cont.)
26
Ademais, a atividade econômica no Brasil também é norteada pela
Constituição Econômica, cujos princípios gerais estão enunciados no art. 170 da
Constituição Federal.29,30
II.4. RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA
Segundo Fabiane Bessa,
A ‘demarcação jurídica’ de uma responsabilidade social das empresas passa necessariamente pela Constituição brasileira e pelas normas que regulam as relações mercantis. Mas seu ponto de partida há que ser a própria demanda social quanto ao tema.
31
(...) Uma empresa pode ser socialmente responsável, pagando seus impostos, se relacionando adequadamente com seus consumidores, com bom atendimento, ouvindo o seu público, lidando bem com o meio ambiente, com a comunidade onde está instalada, mas não necessariamente doando recursos. Ai é que vem a diferença. Responsabilidade social é uma obrigação legal e moral. Filantropia é eletivo: abro meu bolso, a minha carteira, se eu quiser. Se eu não fizer isso, não posso ser mal visto pela população.
32
Para Bessa, Responsabilidade Social não é especificamente
responsabilidade fraternal: inclui cumprir a lei e também inclui o atendimento de uma
bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações.” (Nossos os destaques em itálico). 29 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. 30 Ressalte-se que, como diz Eros Grau em A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (14ª. ed. rev. atu., Malheiros), “não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços” (p. 164). Daí enumeramos alguns princípios, mas não todos, destacando que o texto constitucional como um todo é que vai determinar o que prevalece, e em que situação isso se dá é elemento que depende do caso concreto. 31 Bessa, Fabiane. Responsabilidade Social das Empresas., p. 130. 32 ibid., p. 132.
27
ética empresarial. É dizer: bem cumprindo a lei e a Constituição, e sendo eticamente
correta – isto é, não transgredindo a regra ética que implica em ser uma empresa
cumpridora da lei e dos “bons” costumes (tem-se aqui a boa fé objetiva, apregoada
pelo Código Civil, como se vê pelo art. 422: Os contratantes são obrigados a
guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé).
Não inclui filantropia, nem implica necessariamente em caridade. A
empresa não pode ser mal vista por visar lucro – pois esta é a finalidade da
empresa: desempenhar atividade econômica organizada tendo o lucro como um de
seus objetivos, coisa aliás prevista e permitida segundo a lei.33
Se a empresa faz mais do que isso – isto é, se vai além de sua
responsabilidade social e, de uma maneira ou de outra, desenvolve ações às quais
não está legalmente obrigada – ela talvez seja politicamente correta ou, mais ainda,
fraternalmente34 responsável.
Em ambos os casos, a atividade empresarial seria posta em questão se,
além dos limites razoáveis, ultrapassasse as fronteiras de sua lucratividade, isto é,
da capacidade de prover retorno econômico quanto à atividade econômica por ela
desempenhada. Neste caso, ela estaria ameaçada com seu fim – e também não
estaria mais cumprindo sua função social, pois, como concorda a doutrina neste
ponto (pelo menos desde Adam Smith), a empresa cumpre grande parte de sua
função social, pelo simples fato de gerar empregos.35
Um dos elementos que trata de uma responsabilidade mais que
simplesmente social da empresa é o balanço social – uma espécie de balanço que
em alguns lugares é regulamentado legalmente e que, publicado pela empresa, 33 O Código Civil (Lei 10.406/2002) em seu artigo 966 define a empresa, e embora não especifique lucro, este é decorrente da circulação de bens e serviços; e sem ele dificilmente a empresa será capaz de sobreviver. 34 Veja o leitor as observações introdutórias. 35 Smith, Adam. A Riqueza das Nações. Diz Adam Smith: “(...) já que cada indivíduo procura, na medida do possível, empregar seu capital em fomentar a atividade nacional e dirigir de tal maneira essa atividade que seu produto tenha o máximo valor possível, cada indivíduo necessariamente se esforça por aumentar ao máximo possível a renda anual da sociedade. Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país e não de outros países ele tem em vista apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas a seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções”. (Adam Smith, A Riqueza das Nações, Col. Os Economistas, Vol. I, p. 379, São Paulo, Abril Cultural, 1983).
28
denota o quanto ela investe em situações que proporcionam retorno lucrativo de
longo prazo. Fabiane Bessa trata de tal elemento em sua obra Responsabilidade
Social das Empresas, e reitera que, através dessa espécie de divulgação,
“entrelaçam-se direitos fundamentais, responsabilidade social, direito à informação,
promoção da cidadania ativa, defesa da concorrência orientada pelo principio da
boa-fé”.36
O Balanço Social de que tratam Fabiane Bessa e outros autores, porém,
não é uma prática generalizada, nem tem, ainda, suficiente regulamentação legal e
técnica para proporcionar adequado retorno. Por enquanto, é só uma promessa, de
modo tal que aquele que pratica o balanço social nem sempre está obrigado a tanto,
embora seja de se considerar que, se o pratica sem estar a ele obrigado, decerto
estará investindo mais do que simplesmente aquilo que se relaciona especificamente
à lucratividade de sua própria atividade.37
Fabiane Bessa ainda ressalta que
(...) o balanço social apresenta-se como um dos possíveis instrumentos reguladores a facilitar a divulgação de ações e omissões relacionadas à sustentabilidade social, ambiental e econômica, auxiliando na mudança cultural e axiológica da sociedade ao introduzir, difundir ou promover a releitura de temas como: a) o direito a informação; b) a importância desta na prevenção ou reversão de ações eticamente reprováveis; c) o poderoso efeito das ações sociais organizadas como fatores de mudança social e efetivação dos direitos de toda ordem; d) a conscientização sobre os efeitos que toda a sociedade sofre em razão de ações prejudiciais realizadas por alguns grupos ou companhia.
38
II.4.1. “Politicamente Correto”, Porém Nem Sempre Lucrativo
Ser “politicamente correto” não é coisa que se possa considerar sempre
como atividade lucrativa; aliás, em geral, a curto prazo é o contrário que se dá. Não
36 Bessa, Fabiane, op. cit., pág. 215. 37 A esse respeito, v. Bessa, Fabiane, op. cit., p. 196 e segs., e Gomes, Karideny Nardi Modenesi, Responsabilidade Social nas Empresas – o Caso CST, na Internet, no endereço eletrônico http://www.ethos.org.br/_Uniethos/Documents/Responsabilidade%20Social%20nas%20Empresas.pdf, acesso em 27/11/2011 às 21h17. Modenesi Gomes afirma, a respeito, que “Através de um balanço social, é revelada a participação da empresa na sociedade proporcionando um certo status para a mesma perante a comunidade empresarial, tendo em vista que investir no social ainda é algo especial por não ser obrigatório, e serve de exemplo para outras empresas que ainda não descobriram esta nova realidade; daí a importância do verdadeiro marketing empresarial, o qual divulga de forma real e transparente o que está sendo feito pelas empresas, para a sociedade. Esta comunicação empresarial mostra que é possível agir em prol da comunidade situada em sua área de influência, assim como da sociedade em geral” (p. 15). 38 Bessa, Fabiane, op. cit., p. 208-209.
29
fosse assim e não se teria a constatação prática de que no campo tributário,39 por
exemplo, a sonegação sempre ameaça as finanças públicas. A responsabilidade
social, por vezes, não é congruente com a aparência da correção moral diante da
sociedade.
Sob o lado que se pode considerar positivo, observa-se com alguma
tranquilidade que a expressão popular “politicamente correto” designa de modo geral
uma atitude ética diante de problemas sociais que exigem uma resposta adequada,
razoável e proporcional no sentido de corrigir e prevenir, ou, pelo menos, aplicar
ações que debelem uma situação social coletiva e indesejada, localizada ou não.
Ora, tal espécie de ação muitas vezes ultrapassa o âmbito de atuação de
uma empresa, se esta ativer-se ao pensamento tradicional (e atualmente algo
antiquado) de que está separada de uma realidade macroscópica, em que a
produção e circulação de bens e serviços não é algo exclusivamente próprio de um
negócio privado em andamento. Antes do atual ordenamento jurídico, constitucional,
legal e infralegal, o direito privado não sofrera ainda a constitucionalização e
publicização pela qual hoje passa.
A sociedade de riscos, ademais, demanda uma atuação que exige a
consideração da realidade maior em que está inserido o direito privado, isto é,
qualquer negócio tem efeitos externos que não podem deixar de ser considerados
sob o ponto de vista da realidade sócio-econômica que subjaz à atuação
empresarial. E é claro que isso tem um custo adicional àquele que na realidade
anterior era habitualmente calculado.
Tal coisa não pode se dar – raciocinando com base num paradigma de
que o investimento tem que resultar em alguma espécie de retorno – simplesmente
com base numa postura de “dar sem olhar a quem”.
Modenesi Gomes afirma que
As empresas que são socialmente responsáveis lidam com o investimento no social não só como caridade, mas como um investimento propriamente dito, incorporando-o ao seu próprio planejamento estratégico. Atualmente, a responsabilidade social empresarial se
39 Em tal campo, a implicação é de ser “politicamente correto” e também “socialmente responsável”, de acordo com a definição de responsabilidade social da Profa. Fabiane Bessa. A empresa pode parecer correta ao público embora não pague os impostos devidos. Por outro lado, não parece incomum que a empresa pague seus impostos em dia e, no entanto, pareça “politicamente” incorreta. Tudo depende do modo como a tal “correção”, em termos políticos, se apresenta, e do que significa “política”. Neste caso, “politicamente correto” apresenta nuances que incluem (mas não se limitam a) a aparência de correção moral e a obediência a ditames da ordem política vigente.
30
incorpora à gestão e abrange toda a cadeia de relacionamentos: funcionários, clientes, fornecedores, investidores, governos, concorrentes, acionistas, meio ambiente e a sociedade em geral. Enquanto no Brasil, há cinco anos atrás ninguém falava em responsabilidade social - só em filantropia, hoje somente fazer doações a entidades filantrópicas já não são mais os objetivos principais de muitos empresários atentos a nova exigência do mercado: investir no social. O que se observa é que, diferente de uma ajuda assistencialista, as empresas se preocupam com o resultado de seus investimentos e exigem o monitoramento e a avaliação das ações.
40
De se observar, assim, que existe o espaço para ações éticas a partir das
empresas, que vão além da simples responsabilidade social no sentido estrito da
expressão, e incluem uma responsabilidade ética que de algum modo dá retorno ao
empresário e o coloca em evidência, obtendo ganhos que são expressos no mínimo
por uma perspectiva típica de marketing, mas que não se limitam a esse tanto.
II.4.2. Ações Afirmativas e o Lucro a Médio e Longo Prazo
Outra espécie de ação que dá a ideia de responsabilidade fraternal é o
procedimento que visa eliminar, minimizar e/ou corrigir a injustiça social por meio de
uma espécie de tutela que vai além da simples reparação que se dá após a
ocorrência do dano.
Atualmente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa,41
em sua obra sobre as ações afirmativas, estudou principalmente as formas e
estratégias mediante as quais o governo norteamericano procura incentivar o
combate à discriminação em suas várias formas (ênfase, neste caso, à
discriminação de raça e gênero sexual, mas com validade para o combate a
qualquer forma de discriminação que seja nociva ao desenvolvimento humano
individual e coletivamente).
Esclarece esse autor que o Estado norteamericano durante muito tempo
baseou-se num abstencionismo estatal oriundo da crença de que os princípios e
regras da igualdade formal asseguram a harmonia em sociedade, o que não se
40 Gomes, Karideny Nardi Modenesi, Responsabilidade Social nas Empresas – o Caso CST, p. 14. 41 Gomes, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade: o Direito como Instrumento de Transformação Social. As Experiências dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
31
mostrou suficientemente verdadeiro, nem plenamente eficaz. Percebendo que ainda
há uma marginalização, que evidencia que pouco ou nada muda simplesmente pela
assunção de uma igualdade formal muitas vezes distorcida na atuação privada, os
EUA passaram a repensar estratégias de intervenção42 social visando a modificação
das situações de discriminação e marginalização social, racial e de gênero.
As ações afirmativas, para o autor, são criação pioneira do Direito
norteamericano, visando, a princípio, regular certos aspectos da contratação no
trabalho e o acesso à educação: “ao invés de conceber políticas públicas de que
todos seriam beneficiários independentemente da sua raça, cor ou sexo, o Estado
passa a levar em conta esses fatores na implementação das suas decisões (...) para
evitar que a discriminação, que inegavelmente tem um fundo histórico e cultural, (…)
finde por perpetuar as iniquidades sociais”.43
Diferem tais ações das políticas governamentais de garantias
antidiscriminatórias, que têm conteúdo negativo/proibitivo, fornecendo meios de
reparação às vítimas, sempre depois do fato; as ações afirmativas visam evitar a
efetivação da discriminação por meio de normas gerais ou específicas (no terreno
formal) e mecanismos “informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas
culturais e no imaginário coletivo”.44
Resumindo, Joaquim Barbosa informa que são
políticas de inclusão pela sociedade pública e privada, além dos “órgãos de
competência jurisdicional”,45 visando a efetiva igualdade de oportunidades.
Mediante a efetivação de tais políticas, mostra Joaquim Barbosa que
muito se tem feito nas últimas décadas no que diz respeito à inclusão social das
mulheres e dos negros, procurando reverter situações de desigualdade histórica, e
proporcionando oportunidades de desenvolvimento que incluem essa parcela da
população norteamericana.46
Quanto às ações afirmativas, importa destacar no âmbito deste trabalho
os dois postulados que dizem respeito à fundamentação filosófica de tais ações, e
42 Trata-se aqui de intervenção em sentido lato: compreende incentivo, estímulo, regulação e mesmo formas de coerção relativamente branda, como demonstra o texto de Joaquim Barbosa. 43 Gomes, Joaquim B. Barbosa, op. cit., p. 39. 44 ibid., p. 41. 45 ibid., p. 41. 46 ibid., p. 48: “Nesse sentido, o efeito mais visível dessas políticas, além do estabelecimento da diversidade e representatividade propriamente ditas, é o de eliminar as ‘barreiras artificiais e invisíveis’ (‘glass ceiling’) que emperram o avanço de negros e mulheres, independentemente da existência ou não de política oficial tendente a subalternizá-los”.
32
também os resultados econômicos relacionados a tais práticas. Na exposição que se
segue, evita-se discutir argumentos pró e contra, considerando o espaço destinado a
esta abordagem e remetendo o leitor à obra original.
Em primeiro lugar, os postulados filosóficos que embasam as ações
afirmativas incluem a Justiça Compensatória e a Justiça Distributiva. O primeiro
parte da ideia de que a injustiça passada precisa ser compensada, e portanto cabem
ações reparatórias com o sentido de equilibrar as condições atuais. Por exemplo, se
estivessem em melhores condições no passado (de pobreza e falta de educação e
trabalho), populações inteiras poderiam, nesta época da atualidade, ter atingido
melhor condição de vida. A ação afirmativa com característica compensatória visa,
pois, corrigir a injustiça do passado.
Já a Justiça Distributiva remonta a Aristóteles e diz respeito a “promover a
redistribuição equânime dos ônus, direitos, vantagens, riqueza e outros importantes
‘bens’ e ‘benefícios’ entre os membros da sociedade”.47
Daí decorre que não é justo que os que sofrem as iniquidades tenham de
suportá-las continuamente, devendo “a adoção de oportunidades especiais” mitigar
e extirpar as “desvantagens oriundas de injustiça do passado” para “se construir uma
sociedade na qual todos os indivíduos tenham parcelas mais equitativas dos
benefícios e ônus da vida americana”.48
Justiça distributiva, pois, é uma busca de justiça no presente, ao passo
em que a justiça compensatória visa a retroação para reparação dos danos sofridos
no passado.
Destaque-se que Joaquim Barbosa deixa claro que as ações afirmativas
não se resumem a sistemas de cotas cegas; e o mesmo autor também assinala que
nem sempre as cotas resolvem questões, necessitando ser pensadas caso a caso e
não de maneira indiscriminada, ocasião em que não apenas não se resolve o
problema discriminatório como, eventualmente, tende-se a reforçá-lo.49
Veja-se aliás que a simples reflexão conduz ao pensamento de que a
justiça distributiva, em sua precisa medida, contribui para a consecução dos
objetivos fundamentais da Constituição da República, na medida em que se fala de
47 ibid., p. 66. 48 ibid., p. 66. 49 ibid., p. 40, nota 32. A leitura do texto que se segue dá a perspectiva de que o sistema de “cotas cegas” tende a reforçar a discriminação que se tentou cegamente debelar.
33
redução das desigualdades sociais e regionais e se luta pela erradicação da
pobreza.
Que se pense, aliás, que através da ação afirmativa o governo dos EUA
não apenas divisou um modo de fazer com que a empresa (classicamente
pertencente a um ambiente competitivo e meritocrático em que o melhor sobrevive e
o mais fraco sucumbe) contribua para a redução das desigualdades: demonstra-se
que há um retorno efetivo no sistema de produção e circulação de bens e serviços
em nível macroscópico, pois, na medida em que setores da sociedade melhoram
sua perspectiva de vida, trabalho, educação e consumo, todos os setores da
sociedade são indiretamente beneficiados pela geração de riquezas, com a
consequência de sua circulação em maior amplitude e profundidade, gerando novas
oportunidades tanto para a iniciativa privada quanto para a valorização do trabalho e
do emprego. Como atesta Joaquim Barbosa,
a implantação da diversidade acarreta inegáveis benefícios para o próprio país que, como se sabe, vê a cada dia acentuar-se o seu caráter multicultural. Assim, o erro estratégico consistente em não oferecer oportunidades efetivas de educação e de emprego a certos segmentos da população pode revelar-se num futuro bem próximo altamente prejudicial à competitividade e à produtividade econômica do país. Portanto, agir “afirmativamente” significa também zelar pela pujança econômica da nação.
50
Assim, o sistema econômico em geral lucra não apenas com o aumento
de consumidores, mas, também, com o fato de que os consumidores esclarecidos
contribuirão para a manutenção dos recursos materiais (hoje reconhecidamente
escassos):51 o pensamento aqui contido é de que o cidadão esclarecido contribui de
modo geral para um mundo em que a boa-fé objetiva é reforçador dos negócios.
Adicionalmente, na medida em que a educação e o trabalho estão mais
disponíveis, o empresariado de modo geral tende a um menor dispêndio quanto a
esclarecer o público sobre a natureza de suas ações. Isso é ruim apenas para o tipo
de empresário que não se importa com o meio em que se insere, e
proporcionalmente assim é, na medida em que incorre em tal atitude.
Assim, se o empresariado visa o esclarecimento do público quanto a, por
exemplo, a qualidade de seu produto, considera-se que terá revertido o investimento
50 ibid., p. 48. 51 A respeito, dentre muitos, v. Derani, Cristiane. Direito Ambiental Econômico, passim; e Canotilho, José Joaquim Gomes (org.), Leite, José Rubens Morato, (org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro, passim.
34
ético que teve ao participar das ações que direta ou indiretamente valorizam sua
atividade, pois há um retorno extrapatrimonial (a curto prazo) que implica, a longo
prazo, na valorização da empresa como patrimônio não apenas do empresário em
si, mas da região e do país no qual ela se insere.
É um trabalho que tem prazo maior de obtenção de dividendos do que
aquele que proporciona o retorno imediato, que em geral se espera de uma iniciativa
de produção numa cultura amoral de consumo; garante que a empresa terá um lugar
na sociedade, como o indivíduo que, por sua dignidade, estabelece seu lugar ao sol.
Atesta Modenesi Gomes que
Ao estabelecer como regra e praticar uma conduta ética, a empresa coloca-se em posição de exigir o mesmo de seus empregados e administradores. Desse modo, podem cobrar-lhes maior lealdade e dedicação. O ato de emprestar o seu trabalho a uma organização que age com ética constitui-se, para o empregado, em uma compensação abstrata, de valor incalculável. Enfim, a empresa ganha, pois os seus funcionários, mais satisfeitos, produzem mais; os funcionários ganham porque, investindo no social, a empresa está investindo na vida particular de cada funcionário e na comunidade em que ele se insere. A sociedade ganha, afinal é nela que todas estas transformações estão ocorrendo.
52
III. ORDEM PÚBLICA, RAZÃO DE ESTADO E OBEDIÊNCIA À CONSTITUIÇÃO
A seguir, aborda-se, além da qualidade da responsabilidade ética e
participativa na sociedade, as situações em que o Estado faz intervenções. Neste
capítulo, tratar-se-á de um exame da motivação que leva o Estado a suas práticas
administrativas. No capítulo seguinte, este estudo será complementado pela
investigação do mecanismo de regulação, constitucionalmente previsto.
III.1. SUPREMACIA CONSTITUCIONAL E RAZÕES DE ESTADO III.1.1. Razão de Estado
Em se tratando do uso da expressão “Razão de Estado”, é preciso
levantar certa especificidade ideológica típica do uso desta expressão na Sociologia
e também na Filosofia Política. Norberto Bobbio nos propicia um levantamento
52 Gomes, Karideny Nardi Modenesi, Responsabilidade Social nas Empresas – o Caso CST, p. 15.
35
histórico acerca do uso da expressão e, em vista do tema que aqui se está tratando,
tem-se de levá-lo em consideração:
Querendo resumir numa definição tão sintética quanto possível e, consequentemente, sumamente genérica e abrangente as teses da doutrina da Razão de Estado, esta tradição afirma que a segurança do Estado é uma exigência de tal importância que os governantes, para a garantir, são obrigados a violar normas jurídicas, morais, políticas e econômicas que consideram imperativas, quando essa necessidade não corre perigo. Por outras palavras, a Razão de Estado é a exigência de segurança do Estado, que impõe aos governantes determinados modos de atuar. A doutrina respectiva pode ser formulada, em seu núcleo essencial, quer como uma norma prescritiva de caráter técnico (como: ‘se queres alcançar esta meta, emprega estes meios’), quer como uma teoria empírica, que comprova e explica a conduta efetiva dos homens de Estado em determinadas condições.
53
Ou seja, a Razão de Estado surge quando se parece exigir justificativa
imediata para uma situação de emergência, em que é necessário tomar atitude
interventiva visando proporcionar certa segurança ao Estado. Essa conceituação
está ligada às origens medievais (também com base nos estudos de Maquiavel em
“O Príncipe”) e está relativizada pelo emprego da democracia nos dias atuais; mas
não se pode negar que há situações em que as Razões de Estado podem não ser
exatamente típicas do Estado, mas sim de uma facção política dele.
Observa-se que, em muitos casos, as classes políticas governantes, para derrotar a oposição, desrespeitam a legalidade, chegando mesmo ao golpe de Estado, e justificam o seu comportamento como um comportamento imposto pelas exigências de segurança interna; na realidade, estão instrumentalizando com fins partidários a Razão de Estado. Esta objeção chama a atenção para o problema real, nem sempre de fácil solução, de distinguir entre comportamentos objetivamente impostos pela Razão de Estado e comportamentos diversamente motivados, que usam como pretexto ou álibi a Razão de Estado
54.
III.1.2. Razão de Estado Democrática
Quando se trata de Estado Democrático de Direito, ocorre a regência a
partir de leis; e, no caso brasileiro, tem-se Estado Democrático Constitucional de
Direito, regido por uma Lei Suprema que é a Constituição da República. Em tal
situação, é de se observar que as Razões de Estado estão mais ligadas à execução
dos desígnios do Estado de acordo com a ordem democrática, e é de se supor que,
para que sejam legítimas Razões de Estado, devem ser congruentes com aquilo que
o ordenamento legal do Estado permite. 53 Bobbio, Norberto; Matteucci, Nicola; Pasquino, Gianfranco. Dicionário de Política. 11ª. Edição. Editora UNB, Brasília: 1998. Pág. 1066. 54 Bobbio, op. cit., pág. 1068.
36
Diz Norberto Bobbio que
Mesmo nos Estados democráticos mais sólidos, em situações reais de emergência, que, por sua natureza, não podem ser juridicamente reguladas de forma completa (em última análise, necessitas non habet legem), existem situações e casos de recorrência à Razão de Estado, exatamente provocados pela necessidade de salvar o Estado democrático. Nestes casos, é usual também a expressão Razão de Estado democrática, o que indica que, perante a consciência pública, o recurso à Razão de Estado só parece justificado quando se trata de defender a segurança da forma específica de Estado que é o Estado democrático. É de constatar que, nos Estados democráticos mais sólidos, isto é, com um maior consenso ou onde falta uma consistente oposição ao regime, encontra-se na população uma maior disposição a aceitar, em momentos de aguda crise, um espaço residual para a Razão de Estado, já que não se teme que ela seja usada para fins partidários; por razões iguais e contrárias, tal disponibilidade é indubitavelmente menor nos Estados democráticos onde não há perfeita identificação com o regime democrático por parte das forças políticas mais destacadas e, conseqüentemente, por parte do povo em conjunto.
55
III.2. ORDEM PÚBLICA E INTERESSE PÚBLICO
Necessário se faz conceituar pelo menos preliminarmente algumas
expressões que estão na base da discussão que se seguirá.
Nos fundamentos do debate acerca das Razões de Estado encontram-se
as noções de Ordem Pública e Interesse Público, ambos conceitos que
doutrinariamente prestam-se a várias interpretações, nem sempre concordantes: diz
Dolinger que a característica principal da ordem pública é a indefinição, também em
função de sua natureza “filosófica, moral, relativa, alterável”.56
Não obstante, Dolinger ensaia uma noção provisória, e afirma que o
princípio da ordem pública “é o reflexo da filosofia sócio-política-jurídica imanente no
sistema jurídico estatal, que ele representa a moral básica de uma nação e que
protege as necessidades econômicas do Estado. A ordem pública encerra, assim, os
planos filosófico, político, jurídico, moral e econômico de todo Estado constituído”.57
É importante perceber a importância tremenda da ordem pública, pois ela
está no fundamento mesmo da vida social; é subjacente, portanto, a qualquer
55 Bobbio, op. cit., pág. 1069. 56 Dolinger, Jacob. Direito Internacional Privado – Parte Geral. 9ª. edição atualizada. Ed. Renovar. Rio de Janeiro, 2008. Pág. 394. 57 Dolinger, op. cit., pág. 394.
pública imanente em certas regras de direito privado .
37
contrato em que se julgue possível pacificar os interesses – via de regra conflitantes
– das partes contratantes. Jacob Dolinger ensina que
Sabe-se que no direito interno a ordem pública funciona como princípio limitador da vontade das partes, cuja liberdade não é admitida em determinados aspectos da vida privada. Dos romanos nos chegou a regra de que privatorum conventio juri publico non derrogat, ou, em outra versão, jus publicum privatorum pactis mutari non potest, que espelha a impotência dos pactos entre os particulares para derrogar determinados princípios jurídicos que os romanos denominam de direito público e que, hodiernamente, abrangem também a ordem
58
O artigo 29, § 2º. da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma
que
No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática.
Para Flávio Knabben, “a ordem pública se materializa pelo convívio social
pacífico e harmônico, pautado pelo interesse público, pela estabilidade das
instituições e pela observância dos direitos individuais e coletivos das pessoas”.59
A observação de Dolinger supra dá pista para a compreensão do princípio
da supremacia do interesse público sobre o privado.
Neste trabalho trata-se em princípio do direito interno, aquele que diz
respeito à ordem jurídica no Brasil; e neste plano, “(...) a ordem pública funciona (...)
para garantir o império de determinadas regras jurídicas, impedindo que sua
observância seja derrogada pela vontade das partes. São, dentre outras, as leis de
proteção aos menores, aos incapazes, à família, à economia nacional e a outros
institutos civis e comerciais, que constituem, de certa forma, a publicização do direito
privado”.60
De notar, aliás, que o interesse público não exclui o privado, como
observa Celso Antônio Bandeira de Mello: “(...) é evidente, e de evidência solar, que
a proteção do interesse privado nos termos do que estiver disposto na Constituição, 58 Dolinger, op. cit. Pág. 393. 59 Knabben, Flávio. Poder de polícia: uma análise sobre fiscalização de alvarás em estabelecimentos de jogos e diversões públicas. Monografia apresentada como requisito parcial a obtenção do título de especialista no curso de Pós Graduação lato sensu em Administração de Segurança Pública. Universidade do Sul de Santa Catarina, Florianópolis: 2006, pág. 24. 60 Dolinger, op. cit., pág. 406.
38
é, também ela, um interesse público, tal como qualquer outro, a ser fielmente
resguardado”.61
Bem assim que a manutenção da ordem pública é mesmo condição para
que o particular possa sentir-se garantido e resguardado, sendo o interesse público
pressuposto de uma ordem social estável.62
Com base na supremacia do interesse público sobre o privado, o órgão
público encarregado de zelar por determinada parcela do interesse público,
exprimindo-o nas relações com particulares, está em posição privilegiada, possuindo
benefícios “que a ordem jurídica confere a fim de assegurar conveniente proteção
aos interesses públicos instrumentando os órgãos que os representam para um
bom, fácil, expedito e resguardado desempenho de sua missão”.63
Dentre tais privilégios que o representante do Poder Público possui,
encontra-se “a possibilidade, em favor da Administração, de constituir os privados
em obrigações por meio de ato unilateral daquela. Implica, outrossim, muitas vezes,
o direito de modificar, também unilateralmente, relações já estabelecidas”.64
Ocorre que, quando se trata de interesse público, este é naturalmente
abarcado pelos princípios constitucionais, ao passo em que há os que dizem que o
Direito Administrativo carece de ser constitucionalizado, colocando a supremacia da
Constituição acima da supremacia de um interesse público apenas difusamente
definido.
É de se ver que, quando se coloca uma diferença entre a Constituição e o
interesse público, fala-se de uma posição na qual o Direito Administrativo baseia-se
em fórmula tradicional que necessita ser constitucionalizada – isto é, trata-se de
subtrair das práticas administrativas o ranço65 de considerar a Constituição como
mero documento de direitos políticos, com normas que não possuem aplicabilidade
imediata.
Essa é uma perspectiva que remonta, no Brasil, a Constituições e
interpretações constitucionais anteriores à Constituição de 1988 e deve ser
modificada de acordo com as implicações atuais de um Estado Democrático de
61 Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 23ª. edição, atualizada até a EC
56/2007. Malheiros, São Paulo, 2008. Págs. 68-69. 62 Mello, op. cit., pág. 69. 63 Mello, op. cit., pág. 70. 64 Mello, op. cit., pág. 70. 65 Mais do que um ranço, é coisa praticamente incabível nos dias atuais.
39
Direito. O Constitucionalismo em si não prescinde da necessidade de, com Kelsen,
interpretar a Constituição como fundamento de validade de toda a ordem jurídica;66
isso equivale a dizer que ordem pública e Constituição devem ser considerados
como elementos congruentes, pois a própria Constituição não poderia subsistir, caso
não correspondesse à encarnação dos fundamentos da ordem e do interesse
(legitimamente) públicos (porque, também, eleitos segundo a decisão dos populares)
que a antecedem.
Por outro lado, um exercício simples de lógica diz que, se há Constituição
e é legítima a vontade constitucional, então a ordem pública corresponde aos
ditames da Lei Maior.
O fato de o interesse público ser difusamente definido não tira de lado o
fato de que a Constituição, necessariamente, tem de estar de acordo com a ordem e
o interesse públicos (legítimos, e a um tempo originadores e originários da própria
Constituição), sem o quê não há suficiente legitimidade (perdendo assim aquilo que
se conhece como vontade de Constituição, pois deixa de ser pelo povo e para o
povo; e aí não se está mais no Estado Democrático de Direito).67
À fórmula antiquada, por longo tempo tradicional, e no mínimo
equivocada, de que uma simples noção do interesse público pode relativizar o
mando constitucional (e em outros casos, infraconstitucional) deve se suceder a
plena compreensão de que a Constituição está acima de qualquer interesse que não
seja subordinado aos princípios constitucionais, o que equivale a dizer que, se há
interesse que de fato é público, é também constitucionalmente congruente; caso
contrário, está-se falando daquilo que Celso Antônio Bandeira de Mello aborda
quando diz que nem sempre o interesse de um órgão público traduz o interesse
público de fato: o interesse do administrador nem sempre é verdadeiramente
congruente com o verdadeiro interesse público.68
66 Barroso, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de uma Dogmática
Constitucional Transformadora. 6ª. edição. Saraiva, São Paulo: 2004. Pág. 57. 67 Uma rápida reflexão: o interesse público desemboca numa ordem pública que retroalimenta o interesse público, e isso é de tal modo cíclico que ambos originam um ao outro. Daí as normas contidas na lei fundamental de um sistema jurídico deverem corresponder à ordem e ao interesse públicos, na medida de uma legitimidade conferida por aquilo que Herman Hesse chama de vontade de Constituição. (V. Hesse, Konrad. A Força Normativa da Constituição, passim.) 68 Mello, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 25ª. ed., passim.
40
Em tais casos, os mecanismos de Controle de Constitucionalidade estão
entre os elementos de que o ente, sob a administração pública, pode se servir para
opor-se legitimamente ao comando ilegal.
Uma das coisas que se exige da administração pública é, justamente,
nunca deixar de atender, em primeiro lugar, ao interesse público, que a lei demanda.
E, para atendê-lo, é mister compreendê-lo como coisa que, uma vez atingida, no
dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello, “atingiria, também, conatural e
conjuntamente, uma generalidade de indivíduos ou uma categoria deles, por se
tratar de efeitos jurídicos que pela própria natureza ou índole do ato em causa se
esparziriam inexoravelmente sobre uma coletividade de pessoas, de tal sorte que
não haveria como incidir apenas singularmente”.69
Celso Antônio Bandeira de Mello cita Eduardo García de Enterría, e eis a
tradução:
A legalidade da Administração não é assim uma simples exigência por si mesma, que pudesse derivar de sua condição de organização burocrática e racionalizada: é também, antes disso, uma técnica de garantir a liberdade. Toda ação administrativa que force um cidadão a suportar o que a lei não permite não apenas é uma ação ilegal, é uma agressão à liberdade de tal cidadão. Deste modo a oposição a um ato administrativo ilegal é, em último extremo, uma defesa da liberdade de quem resultou injustamente afetado por tal ato.
70
Não obstante, sabe-se que o Poder Constituinte originário tem
legitimidade até mesmo para determinar efeitos retroativos sobre lei anterior,
embora, neste caso, tenha de ser comando feito por determinação explícita no texto
constitucional.71 Neste caso, porém, é diante da Lei Suprema que se encontra o
intérprete; e, se este se encontra no Estado Democrático de Direito, não há o que
criticar a respeito daquilo que a Constituição determina.
Veja-se Marçal Justen Filho a respeito da necessidade de
Constitucionalizar o Direito Administrativo:
69 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 25ª. Edição, Malheiros Editores, 2008, pág. 63. 70 Celso Antônio Bandeira de Mello, op. cit., págs. 63-64. 71 Barroso, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional, 2ª. Edição, pág. 302.
41
Trata-se de impregnar a atividade administrativa com o espírito da Constituição, de modo a propiciar a realização efetiva dos direitos fundamentais e valores ali consagrados. É fundamental dotar o País de uma Constituição, mas isso não basta para produzir um Estado democrático ou a realização dos valores desejados. A transformação concreta da realidade social e sua adequação ao modelo constitucional dependem primordialmente do desenvolvimento de atividades administrativas efetivas. O enfoque constitucionalizante preconizado consiste em submeter a interpretação jurídica de todas as instituições do direito administrativo a uma compreensão fundada concreta e pragmaticamente nos valores constitucionais. A supremacia da Constituição não pode ser mero elemento do discurso político. Deve constituir o núcleo concreto e real da atividade administrativa. Isso equivale a rejeitar o enfoque tradicional, que inviabiliza o controle das atividades administrativas por meio de soluções opacas e destituídas de transparência, tais como ‘discricionariedade administrativa’, ‘conveniência e oportunidade’ e ‘interesse público’. Essas fórmulas não devem ser definitivamente suprimidas, mas sua extensão e importância têm de ser restringidas à dimensão constitucional e democrática.
72
Daí que a atuação da Administração Pública deve ser plenamente
congruente com a Constituição, caso no qual será também coerente com a ordem
pública; em tal caso, aquilo que se conhece como supremacia do interesse público
sobre o privado é uma decorrência da supremacia constitucional sobre o
ordenamento jurídico, todo ele e não, convenientemente, partes do mesmo.
A interpretação e aplicação da Constituição exigem uso de cuidadosa
hermenêutica que leva em conta vários fatores; e cabe fazer com que seja
adequada a atuação da Administração Pública à Hermenêutica Constitucional, sem
o quê não se pode conceber um ato administrativo como cumprimento por Razões,
efetivamente, de Ordem Pública. Em tais casos, o uso da expressão “Razões de
Estado” não será compatível com as “Razões de Ordem Pública”, e o ato
administrativo estará eivado de inconstitucionalidade.
Ademais, as “Razões de Estado”, caso também sejam de Ordem Pública,
têm a seu encargo a proteção dos direitos fundamentais – isto é, não se pode
suprimi-los (Cláusula de Proibição de Retrocesso,73 resultante do cotejo entre os
arts. 1º. e 3º. da Constituição, tendo adicionalmente a proibição de supressão dos
direitos fundamentais expressa pelo § 4º. do art. 60 da Constituição da República), 72 Justen Filho, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4ª. edição. Saraiva, São Paulo: 2009, pág. 15. 73 Sobre o tema ver Fileti, Narbal Antônio Mendonça. O princípio da proibição de retrocesso social. Breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2059, 19 fev. 2009. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/12359>. Acesso em: 24 mar. 2011 às 14h37. Para Luís Roberto Barroso (in O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, 9ª. ed., Renovar, Rio de Janeiro, 2009, pág. 152), chama-se “(...) vedação do retrocesso. Por este princípio, que não é expresso mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da (cont.)
42
embora, dentro de certos limites, seja possível restringi-los (e isso não pode se dar
ao livre arbítrio do Administrador Público ou de outro qualquer com interesse em, de
maneira excusa, suprimir direitos fundamentais).
Os Direitos Fundamentais são, eles próprios, limitações à Administração
Pública, que tem os Três Poderes, em sua harmonia e com o sistema de freios e
contrapesos preconizado pelo Direito Constitucional, por um lado limitados e, por
outro, enobrecidos pela necessidade de garantir os direitos fundamentais de acordo
com os princípios que regem a solução de conflitos aparentes de normas.
Quando se fala sobre pontos em que o cumprimento de contratos entra
em conflito com as razões de Estado, está-se falando das diferenças entre direito
público e direito privado, colocando em lados – neste caso, relativamente opostos –
da balança o Direito Administrativo e o Direito Civil, via de regra com seus aspectos
Empresarial e/ou74 Comercial, e precisa-se tratar tanto da constitucionalização do
direito privado quanto do impacto da presente vertente do Constitucionalismo,
chamada às vezes de Neoconstitucionalismo, sobre o Direito Administrativo.
Luís Roberto Barroso considera, com relação aos direitos fundamentais e
à constitucionalização do direito privado, que “o ponto de vista da aplicabilidade
direta e imediata afigura-se mais adequado para a realidade brasileira e tem
prevalecido na doutrina e na jurisprudência”.75 Tal eficácia se dá “mediante um
critério de ponderação entre os princípios constitucionais da livre iniciativa e da
autonomia da vontade, de um lado, e o direito fundamental em jogo, do outro lado”.76
Ricardo Marcondes Martins recebe a constitucionalização do direito
privado comentando sobre a relatividade de seus termos; de como, por exemplo, o
direito à liberdade é restrito pela função social preconizada pela supremacia da
Constituição, admitindo, de resto, um direito à liberdade relativo, e uma
cidadania e não pode ser arbitrariamente suprimido”. Entre os defensores da ideia encontram-se os festejados Professores Ingo Wolfgang Sarlet e José Joaquim Gomes Canotilho. 74 Não se está com isso dizendo que Direito Empresarial e Direito Comercial são a mesma coisa – nem é intenção entrar nessa polêmica. Apenas observa-se que as noções de empresário e comerciante são diferentes no tempo e no espaço, inclusive por ocasião das situações jurídicas que tratam de tais termos na atualidade. O Prof. Fábio Tokars, entre outros, trata bem da questão em sua obra Primeiros Estudos de Direito Empresarial, LTr, São Paulo: 2007, pág. 19. Sem, porém, encarar a situação com muito rigor, Direito Empresarial e Direito Comercial são dois lados da mesma moeda. 75 Barroso, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 2ª. edição. Saraiva, São Paulo: 2010, pág. 372. 76 Barroso, ibid. pág. 372.
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constitucionalização do direito privado que, a partir de certo ponto, obriga não
apenas o público, mas também o particular, a concretizar o interesse público:
Por óbvio, os particulares não são obrigados, ao contrário da Administração Pública, a concretizar o interesse público. Não são obrigados a concretizar o princípio mais pesado, no caso concreto, na medida exata exigida pelo sistema. Possuem uma ‘zona livre’. Nessa zona, o sistema admite o afastamento, até um determinado grau, dos princípios incidentes. Vigoram o princípio da liberdade individual e, em decorrência dele, o princípio da autonomia privada; mantém-se a prerrogativa de reger (mais do que administrar) a própria esfera jurídica, vale dizer, de decidir ‘livremente’ qual princípio concretizar e até que ponto fazê-lo. Sem embargo, hoje os particulares são obrigados a concretizar o interesse público ao menos numa certa medida. A partir de um determinado limite não há mais liberdade de escolha, não há mais liberdade individual e autonomia privada, os particulares passam a ser obrigados a concretizar o interesse público. 77
Há a Constitucionalização do direito privado, mas também há o fato de
que a primazia da Constituição é sobre todo o ordenamento. No caso do direito
público a primazia da Constituição se traduz, pelo menos em parte, na supremacia
do interesse público sobre o privado.
A supremacia do interesse público sobre o privado, portanto, não apenas
é basilar ao Estado, como também é regida constitucionalmente (pois há a função
social da propriedade a relativizar o direito – antes tido como absoluto – de
propriedade; a livre concorrência e a busca pelo pleno emprego são mitigados e
relativizados pela redução das desigualdades regionais e sociais; a livre iniciativa é
relativizada pela proteção ao meio ambiente, e por aí vai).78
Pelo art. 37 da Constituição Federal, em seu caput, tem-se a informação
de que os princípios regentes da Administração Pública são os da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Naturalmente, qualquer ato da
Administração Pública que contrariar, em parte ou no todo, quaisquer deste
princípios, estará sob a suspeita de contrariar a Ordem Pública, de modo tal que,
numa primeira análise, alegada Razão de Estado para o cometimento de tal espécie
de ato trata-se de ilegitimidade. 77 Martins, Ricardo Marcondes. Abuso de Direito e a Constitucionalização do Direito Privado.
Malheiros, São Paulo: 2010, pág. 116. 78 Os comentários entre parênteses se referem exclusivamente ao art. 170 da Constituição Federal, apenas para mostrar que há em toda a Constituição circunstâncias que não apenas incluem, afirmando e reafirmando direitos fundamentais, mas também há a relativização dos mesmos dependendo da situação em que são considerados.
44
Evidente, também, que o ato cometido sem respaldo da legalidade não
merece ser considerado como Razão de Estado típica da proteção à Ordem Pública;
é um disparate, uma impostura, cometer qualquer ato que não se revista de mando
legal; de tal modo que, se aos particulares aquilo que não é proibido pode ser feito,
ao administrador público é negado qualquer ato que não seja legalmente autorizado,
é obrigatório todo ato legalmente preconizado, e o espaço de permissão facultativa
para os atos do administrador é bastante restrito e ocorre dentro dos limites
legalmente estabelecidos para sua atuação.
Se entre particulares já paira a constitucionalização do direito privado,
quando se trata de negociar com a Administração Pública há, pois, muito maior peso
do interesse público sobre o contrato, subordinando seu cumprimento de modo bem
mais restrito do que ocorre em geral no cotidiano dos particulares.
O Supremo Tribunal Federal, desde o advento da atual Constituição,
amadureceu79 paulatinamente seu entendimento a respeito do caráter democrático
da interpretação conforme à Constituição, trazendo observações pertinentes
relativas às Razões de Estado. Veja-se:
Leis de ordem pública – Razões de Estado – Motivos que não justificam o desrespeito estatal à Constituição – Prevalência da norma inscrita no art. 5º, XXXVI, da Constituição. A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro. Razões de Estado – que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo – não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria Constituição. As normas de ordem pública – que também se sujeitam à cláusula inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta Política (RTJ 143/724) – não podem frustrar a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade.
80
79 Há críticas a respeito da atuação do STF em termos de Jurisdição Constitucional; não se pretende
abordá-las neste modesto trabalho, mas dentre alguns dos examinadores (a quem se remete o leitor) da questão encontram-se Luís Roberto Barroso (entre outros trabalhos: Temas de Direito Constitucional, Tomo I, Doze anos da Constituição Brasileira, Renovar, 2002 e O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, 9ª. edição, Vinte anos da Constituição Brasileira de 1988: O Estado a que Chegamos, Renovar, 2009) e Francisco Gérson Marques de Lima (O STF na Crise Institucional Brasileira, Malheiros, 2009). Note-se porém, que o amadurecimento da Interpretação Constitucional na sociedade faz parte da consolidação do processo democrático e que hoje as instituições que protegem a democracia estão muito mais fortes do que há 20 anos, e essa força se reflete nos agente públicos de hoje em comparação com os de há vinte anos: mesmo quando são os mesmos, suas atitudes exibem certas mudanças, privilegiando com mais firmeza os princípios constitucionais e, com estes, os direitos fundamentais. Exemplo típico disso é a reforma que se fez, por via da Emenda Constitucional 32/2001 (proibindo explicitamente o sequestro de ativos financeiros, entre outras coisas), limitando o poder do Presidente da República quanto à emissão de Medidas Provisórias.
45
Não é outra, aliás, a compreensão de Luís Roberto Barroso (que aliás cita
o trecho acima em sua obra) acerca do tema, concluindo, entre outras coisas, que
“(...) as razões de Estado e as leis de ordem pública não exoneram a atividade
legislativa da observância da proteção constitucional do art. 5º, XXXVI (...)”.81
De modo geral a própria expressão “Razão de Estado” já é percebida de
modo negativo – por sua história, em virtude dos usos a que remonta, como se pode
ver consignado pelo Ministro Celso de Mello:
O Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez, teve o ensejo de repelir esse argumento de ordem política (RTJ 164/1145-1146, Rel. Min. Celso de Mello), por entender que a invocação das razões de Estado – além de deslegitimar-se como fundamento idôneo de impugnação judicial – representaria, por efeito das gravíssimas consequências provocadas por seu eventual reconhecimento, uma ameaça inadmissível às liberdades públicas, à supremacia da ordem constitucional e aos valores democráticos que a informam, culminando por introduzir, no sistema de direito positivo, um preocupante fator de ruptura e de desestabilização.
82
Pela leitura do trecho acima, vê-se que a simples menção às Razões de
Estado já enseja certa indisposição contra o que por meio da expressão se justifica,
de modo tal que o exame que se seguirá visa determinar, antes de mais nada, se há
congruência com a ordem constitucional – caso contrário, não pode prevalecer a
Razão de Estado como argumento justificador de qualquer espécie de intervenção
do Estado na vigência de um Estado Democrático de Direito.
III.3. OBEDIÊNCIA À CONSTITUIÇÃO
Luís Roberto Barroso ensina que o constitucionalismo, na prática, é a
única alternativa verdadeiramente democrática, em oposição franca a três escassas
alternativas: unipartidarismo (onde “o” Partido detém o poder), fundamentalismo
(onde “a” Religião detém o poder) e militarismo (onde, como no caso brasileiro, as
80 RTJ 164/1145, Rel. Min. Celso de Mello. 81 Barroso, Luís Roberto, Temas de Direito Constitucional, Tomo I, 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pág. 304. O inc. XXXVI do art. 5º. da CF diz: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Qualquer tentativa, portanto, de prejudicar o ato jurídico perfeito (caso da quebra dos contratos celebrados entre público e particular) é coisa que, se não preconizada pela Constituição em exceção própria (como ocorre ao se observar os preceitos do art. 37 da CF), não pode ser admitida pela lei. As exceções devem ser constitucionalmente previstas, sob pena de contrariar o comando constitucional.
46
Forças Armadas dizem o que é bom para um país).83 O Constitucionalismo mostra-
se como “a melhor opção de limitação do poder, respeito aos direitos e promoção do
progresso”.84
Não cabe ao Estado, ao mesmo tempo patrocinador, encarregado e
beneficiário da Ordem Pública, ir além dos limites que se estabelecem pelo
ordenamento jurídico – que em sentido estrito se traduz na parcela da Ordem
Pública que está concretizada de maneira positiva, sendo, no sentido amplo, grande
parcela da própria Ordem Pública, senão ela mesma;85 de modo que as Razões de
Estado também estão submetidas a vários mecanismos de controle – dentre eles, o
Controle de Constitucionalidade previsto pela Constituição Federal.
O Constitucionalismo tem como fundamento básico o fato de que a
Constituição é a lei suprema de um país; quando, ademais, caracteriza-se por ser
alterável somente mediante “processos, solenidades e exigências formais especiais,
diferentes e mais difíceis que os de formação das leis ordinárias ou
complementares”,86 diz-se que a Constituição é rígida. Observe-se o que diz José
Afonso da Silva:
Como lei superior, a Constituição encontra seu fundamento no princípio da rigidez, do qual deflui, como primordial corolário, o princípio da supremacia constitucional. Essa supremacia é que fundamenta a validade das normas infraconstitucionais e requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição. Essa conformidade com os ditames constitucionais, agora, não se satisfaz apenas com a atuação positiva de acordo com elas. Exige mais, pois omitir providências necessárias à aplicação de normas constitucionais constitui também conduta desconforme com o princípio da supremacia.
87
Todas as normas, portanto, devem obediência à Constituição; e qualquer
ato que a afronte é inconstitucional, podendo88 ser atacado mediante Controle de
82 DJU 07.12.2000, RE-AgR 263.831, Rel. Min. Celso de Mello, p. 1994. Ajustes ortográficos
promovidos a bem da clareza, durante a transcrição. 83 Barroso, Temas de Direito Constitucional (...), pp. 37-39. 84 Barroso, Temas (...), p. 37. 85 Neste caso incluiremos na noção de ordenamento jurídico a moral e a cultura vigentes, o que não é praxe – por isso nos referimos de modo geral ao sentido restrito de ordenamento jurídico como sendo esse conjunto de normas positivas, situação em que o ordenamento jurídico é uma parcela da Ordem Pública, tida esta em sentido amplo e reconhecidamente mutável em amplitude, significação e abrangência. 86 Silva, José Afonso da. Um Pouco de Direito Constitucional Comparado: Três Projetos de Constituição. Malheiros, São Paulo: 2009, p. 124. 87 ibid., p. 124. 88 A rigor, dever-se-ia dizer, neste trecho, devendo ser atacado, para ser coerente com o que aqui mesmo se apresenta; mas, como nem sempre isso acontece, e este espaço seria demasiado pequeno para discutir este trecho, deixou-se o “podendo”, com a presente ressalva.
47
Constitucionalidade, que pode ser concentrado (atacando por via direta a
inconstitucionalidade de emenda constitucional, lei ou dispositivo infralegal) ou
difuso (atacando por via indireta e incidental a inconstitucionalidade de emenda
constitucional, lei ou dispositivo infralegal),89 tendo como claro que o controle
concentrado relativamente à Constituição Federal só é possível através do STF.
A supremacia constitucional obriga a compreender que qualquer ônus que
tenha de ser suportado, tanto pública quanto particularmente, desde que obediente à
Constituição, é ônus necessário e inevitável – pois assume-se que necessário para a
manutenção de uma ordem estabelecida a partir da Constituição.
Fora destes termos, encontra-se o que se abordou acima: “Razões de
Estado” que não correspondem de fato àquilo que o Estado deveria fazer em prol
dos seus. Trata-se a seguir de condições em que as “Razões de Estado” são,
também, “Razões de Ordem Pública” e correspondem a “Razões Constitucionais”,
isto é, obedecem à Constituição e, em o fazendo, preservam a sociedade de males
maiores.
Há dois tipos de soluções que se divisa aqui com relação ao cumprimento
(ou não) de contratos entre Estado e particulares: (a) as soluções
constitucionalmente previstas para a intervenção no cumprimento dos contratos por
via extraordinária, e tais se dão em, basicamente, três modalidades; (b) as soluções
tipicamente administrativas – tal e qual subordinadas à Constituição, mas que se dão
mediante a modificação e/ou extinção de contratos administrativos, tendo por base
os princípios que os norteiam e que, muitas vezes, estão previstos nas cláusulas
contratuais típicas do contrato administrativo.
III.3.1. Soluções constitucionalmente previstas (via extraordinária)
As soluções previstas no bojo da Constituição são dotadas de natureza
especial que permite, obedecendo à Lei Suprema, tomar ações que não se
89 A esse respeito, entre outros, podemos consultar José Afonso da Silva, op. cit., pág. 124 e
seguintes; e também do mesmo autor, Curso de Direito Constitucional Positivo, 27ª. ed., Malheiros, São Paulo: 2006 (pág. 46 e seguintes); também, entre muitas outras obras, a de Luís Roberto Barroso, O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, 4ª. ed., Saraiva, São Paulo: 2009. A lista é grande e tememos não sermos capazes de enumerá-la adequadamente, mas tratamos neste rodapé de dar um ponto de partida.
48
submetem diretamente ao processo legislativo tradicional (aquele de criação das leis
ordinárias e complementares). Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello,90
, são de
três tipos: as medidas provisórias; as medidas de administração típicas do estado de
defesa; as medidas de administração típicas do estado de sítio.
III.3.1.1. Medidas Provisórias
As medidas provisórias estão previstas no art. 62 da Constituição Federal,
e foram limitadas, como se comentou acima, pela Emenda Constitucional 32/2001,
precisamente para evitar que se consiga aspecto de legalidade para “Razões de
Estado” que não se sustentem como Razões de Ordem Pública quando submetidas
a exame mais atento.
Uma vez expedidas, devem imediatamente ser submetidas ao exame do
Congresso Nacional; e, além das vedações constitucionalmente impostas à edição
das Medidas Provisórias, é absolutamente necessário que preencham os requisitos
de relevância e urgência de modo a serem admitidas. Em que pese que relevância e
urgência são conceitos relativos, atualmente há restrições importantes. As MPs
possuem força de lei, equiparando-se, portanto, à lei ordinária.
As restrições impostas pelos parágrafos do art. 62 restringem o regime de
excepcionalidade da edição da medida provisória tanto no tempo quanto em relação
à matéria, evitando que o Presidente da República tenha demasiado poder – de
modo a intervir na ordem pública e causar estragos de tal monta que o custo de
correção dos problemas assim gerados não seja demasiado alto, como foi o caso do
Plano Brasil Novo, em que houve avalanche de ações abarrotando o Poder
Judiciário, além da geração de uma insegurança econômica e jurídica cujos efeitos
ainda se fazem sentir em nosso país, na psicologia própria do empresariado e dos
populares.
90 Mello, op. cit., págs. 126 e seguintes.
49
III.3.1.2. Estado de Defesa e Estado de Sítio
Nos casos de Estado de Defesa e Estado de Sítio, a característica da
concessão de poder é diferente daquela típica da medida provisória. Nestas
condições, o Estado está mais seriamente ameaçado em sua condição de
permanência, e o legislador optou por delegar ao Presidente da República mais
poderes – escalonando conforme a gravidade específica do estado a que se
submeter a República, seja de Defesa (menos grave) ou de Sítio (de gravidade
extrema, como no caso de decretação de guerra).
Em ambos os casos, os direitos fundamentais sofrem restrição. Estão
previstos no Capítulo I do Título VI da Constituição Federal, e as disposições que
regulam tais estados (de defesa e de sítio) vão dos artigos 136 a 142 da Lei
Suprema.
A restrição de direitos fundamentais já denota casos especialíssimos, de
ocorrência plenamente imprevista, cujas necessidades apontam para um mal menor
– restrições – contra a supressão plena de liberdades que são confiadas ao Estado
para que, em condições normais restabelecidas, o Estado mesmo as preserve,
restauradas as condições usuais do Estado Democrático de Direito.
Ressalte-se que nestes casos o Estado Democrático de Direito continua a
sê-lo, desde que observadas as restrições constitucionais tipificadas nos artigos em
tela, sobre as quais não se discorrerá no âmbito deste trabalho.
Exige-se, para a decretação tanto do estado de defesa quanto do estado
de sítio, o permissivo do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional;
no caso de estado de sítio (também em virtude da gravidade da situação), o
Congresso Nacional deverá autorizar sua decretação.
Em caso de não-ratificação pelo Congresso quanto ao estado de defesa,
findada estará tal situação e restabelecida a normalidade.
Quanto ao estado de sítio, o Congresso Nacional permanece em
funcionamento até o término das medidas coercitivas (art. 138, § 3º), também como
garantia explícita da preservação da ordem democrática.
Veja-se que, para decretar os estados de defesa e de sítio, há diferenças
no procedimento de legitimação, proporcionais à gravidade da situação; mas em
ambos os casos a presença do Congresso Nacional paira sobre o ato que autoriza o
Presidente da República a proceder – no caso menos grave, o estado de defesa
50
deve ser ratificado; no caso mais grave, a decretação do estado de sítio deve ser
autorizada. Não obstante, sobre os atos Presidente da República pousa o olhar
fiscalizador da Democracia, através do Poder Legislativo; o contrário disso teria
precisamente os ares de golpe de Estado, coisa da qual a história brasileira se
ressente.
III.3.2. Soluções tipicamente administrativas
Tais soluções, como acima se expôs, caracterizam-se por estar dentro
dos limites aplicáveis pelas cláusulas especiais do contrato administrativo, isto é,
pairam sobre elas as soluções típicas dos contratos de direito privado, onde
couber;91 e, adicionalmente, os contratos administrativos estão submetidos aos
princípios do Direito Administrativo, que permitem, por exemplo, atos unilaterais por
parte da Administração Pública.
Tal unilateralidade, se respeitar a legalidade e os demais princípios da
Administração Pública (principalmente aqueles derivados da Constituição), não pode
ser considerada mais do que, eventualmente, um prejuízo necessário que a pessoa
(física ou jurídica) sob os auspícios da administração pública deveria, supõe-se, ter
mecanismos para prever.
Essa possibilidade de previsão (baseada na soma das disposições
legalmente aplicáveis e das cláusulas específicas do contrato) assume de resto que
Administrador e Administrado estão cientes daquilo sobre o que se estabelece o
contrato, havendo, mesmo, mecanismos legais para minimizar qualquer impacto
negativo que o administrado venha a sofrer, caso a lesão por este sofrida não seja
de sua exclusiva responsabilidade.
Celso Antônio Bandeira de Mello, entre outros autores, contribui com
extenso estudo a respeito deste assunto em seu Curso de Direito Administrativo,92
em particular no capítulo X – O Contrato Administrativo, e de modo geral a obra
inteira propõe mecanismos para refletir de modo aprofundado acerca do contrato
administrativo. 91 Isto é, onde as condições são típicas do direito privado. 92 Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 23ª. edição, atualizada até a EC 56/2007. Malheiros, São Paulo, 2008..
51
A seguir, expõem-se considerações sobre outra dinâmica de controle
sobre a atividade privada exercida pelo Estado, a regulação.
IV. BREVES CONSIDERAÇÕES QUANTO À DINÂMICA DO PODER
REGULATÓRIO NA ATIVIDADE ECONÔMICA
IV.1. ANÁLISE DE FÁBIO COMPARATO
No epílogo a sua obra A Afirmação Histórica dos Direitos
Humanos,93 o Professor Comparato discorre acerca da necessidade atual, muito
presente, de transformar as instituições mundiais para estabelecer democracias de
fato e não farsas quase que exclusivamente voltadas para o atendimento de
interesses econômicos capitalistas.
Na crítica que expõe, Comparato apresenta o mito de
Prometeu e Epimeteu – o que pensa antes e o que pensa depois, o previdente e o
imprevidente. A conclusão que mostra é estabelecida através da dinâmica entre
Zeus e Hermes, quando o primeiro manda o segundo levar aos homens as noções
de justiça e dignidade pessoal, não sem, contudo, dar por igual, a todos, a condição
de saber político imprescindível à vida em sociedade. Recomenda, por último, que
se institua a pena de morte para aqueles incapazes de governar, pelas
consequências catastróficas que seus atos representam para seus governados.
Como é mito, tem-se que há de fato – e vive-se triste epidemia
– governantes incapazes de fazer significativo bem à coletividade. E Comparato
atribui grande parte disso ao capitalismo e sua forma devoradora em que engole os
seres humanos para dar posse, sobre tudo e todos, ao capital.
Comparato não fica apenas no mito: mostra números e
estatísticas sem dúvida alarmantes, que levam a concluir pelo tremendo dissabor
presente na estrutura capitalista atual, em que a democracia de modo geral é uma
93 Comparato, Fábio K. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3ª. Ed. de 2003, revista e ampliada, Ed. Saraiva.
52
farsa de representação que, comumente, tem levado a tragédias políticas e sócio-
econômicas.
Atestando que o homem tornou-se, no Século XX, “senhor e
possuidor da natureza”, ainda parafraseando Descartes, Comparato adverte para o
perigo da autodestruição da humanidade – perigo esse sobre o qual também se
adverte em outra obra, por Ulrich Beck, em sua Sociedade de Risco.
Há uma percepção evidente de que a humanidade se encontra
em uma senda que demanda resposta imediata. O que foi protelado durante
décadas agora exige solução de pronto, pois a natureza dá sinais do desgaste em
que se encontra, e a sociedade encontra-se em dificuldades extremas para suportar
o descompasso nas relações sociais e políticas na atualidade, enquanto os
governantes parecem não estar interessados em mudanças efetivas, capazes de ir
além do simples protelar de uma situação em que há lucro excessivo para uns
poucos detentores do capital, enquanto bilhões sofrem. Destes, grande parcela sofre
terrivelmente as agruras da fome, da doença, da miséria levada a extremos, coisas
que (assim é preferível pensar) nunca antes se imaginou que aconteceriam em tal
escala.
Corriqueiramente, fala-se em um domínio da natureza
enquanto se evidencia um descontrole dela própria – e também se percebe a ficção
em se imaginar senhor da natureza, quando os terremotos, os maremotos e o
desequilíbrio ecológico estão na porta das casas: veja-se as nevascas no Hemisfério
Norte, os terremotos e maremotos tropicais, as enchentes nas grandes cidades
brasileiras; incêndios nas florestas do Hemisfério Norte, destruição por tremores de
Terra no Japão e no Haiti (este com um milhão de mortes no mais recente
terremoto). Os governos pensam-se senhores, mas não o são,94 e os governantes,
por vezes, mal têm condições de se declararem senhores de si, já que, de fato, não
são, sequer, daquilo que, sob pretexto, governam.
Não obstante, é um caos que está aí (e muitos não sabem ao
certo como chegaram a este ponto, dando explicações, por vezes, estapafúrdias ao
ponto de serem calamitosas), e é preciso tratar com ele.95
94 Governo e governantes são representantes. São senhores apenas enquanto a delegação de poder
a eles dada durar. Caso contrário, são tiranos. 95 Tal afirmação dificilmente carece de demonstração. É comparar os noticiários e os avisos dados por inúmeros cientistas ao longo dos últimos cinquenta ou setenta anos (para não citar sociedades de (cont.)
53
Deste modo, o Prof. Comparato expõe a alternativa de
estabelecer uma democracia mundial, um governo democrático a partir das
estruturas já existentes, presentes na Organização das Nações Unidas.
Lembra o Agamenon de Ésquilo ao criticar a minoria opulenta:
“O desastre (...) é filho das ousadias temerárias dos que se comprazem no orgulho
desmedido, quando suas casas transbordam de opulência”.96
A psicologia, principalmente a junguiana (de Carl Gustav
Jung)97 tem muito a dizer a respeito disso: típico do indivíduo que se encontra sob
domínio de uma certeza patológica de sua própria infalibilidade diante das coisas, a
“hybris” encontra em si mesma a semente da ruína daquele que por ela se deixa
dominar. É o caso da opulência cega que deixa uma imensidão na indigência e
escraviza bilhões de pessoas: seu destino está traçado em si mesmo.
Porém, Comparato quer crer que é possível mudar; diz que
ainda é tempo. Encontra a aurora no estabelecimento de um governo mundial.
Uma conversa com os próprios botões poderia gerar dúvidas a
respeito disso. É que a estrutura atual demanda muitas mudanças – o próprio
Comparato as enumera em parte, considerando a necessidade de dar poderes ao
órgão econômico e social da ONU e a ele subordinar FMI, Banco Mundial e OMC;
também fala da necessidade de mudar o sistema de veto do Conselho de
Segurança, e estas são apenas duas das mudanças substanciais que não se vê
acontecer no mundo.
Talvez um único governo mundial não seja de fato a solução.
Dois, talvez; três, talvez mais idealmente (pois aí se estabelece uma dialética, coisa
difícil em um governo único). É que um só governo seria algo difícil de encarar como
base cultural diferente da Ocidental), a respeito do desgaste dos recursos naturais, da necessidade
de desenvolver valores, da importância de erradicar a pobreza, de cuidar da saúde, da educação, do trabalho, da moradia. Olhando tais acontecimentos, a impressão que se tem é que o ser humano é surdo, cego e louco; e, por vezes, é bem assim. Hoje muitos colocam as mãos na cabeça e se perguntam: “como foi que chegamos neste ponto”? Mas isso tem história, e, se o ser humano não quiser admitir, ao menos, sua inépcia na escolha de seus governantes, tem de admitir que há um fator psicológico, que Jung e Freud chamaram inconsciente, que interfere nas escolhas, tanto individuais quanto coletivas, e atrapalha todo o processo pelo qual a sociedade pretende passar no caminho do desenvolvimento. Olhando a história, a filosofia e o direito, em certa medida é possível compreender como se chegou a isso; mas raramente é possível aceitar que se tenha chegado a isso sem que se tivesse indícios de maneiras pelas quais se poderia escapar às catástrofes hoje vividas em larga escala. 96 Comparato, op. cit., p. 551. 97 Jung, Carl Gustav. Obras Completas. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes. Obra em 18 Volumes.
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coisa efetivamente capaz de atender a todas as necessidades em todas as partes.
Se o Constitucionalismo, em seu estágio atual, não é capaz de fazer com que os
Estados de Direito que se conhece – quer se crer, dentre eles, democraticamente, o
Brasil – sejam capazes de autogoverno efetivo, tem-se que reconhecer a
perniciosidade do capitalismo, mas também se tem que admitir, junto com
Comparato, que a democracia é a única forma de organização política que pode
assegurar o “respeito integral à dignidade humana”.98
Porém, sob a batuta atual das Nações Unidas, um governo
mundial seria o lugar onde a imensa maioria não tem direito a voto nenhum. As
alterações sugeridas por Comparato, ademais, não parecem a solução ideal. Por
exemplo, quando diz que “o peso demográfico não pode deixar de ser levado em
consideração na regulação do sufrágio”,99 é preciso, democraticamente, discordar: a
China, com seus dois bilhões e tanto de habitantes, teria praticamente um terço dos
votos. Com isso os EUA, com sua política de dominação capitalista, nunca
concordariam – isso se a China se tornasse de fato um Estado Democrático de
Direito.
Não se tem, aliás, como considerar a China um Estado
Democrático, embora também seja difícil considerá-la como um comunismo estrito
nos dias de hoje. As dificuldades, neste argumento, são demasiadas – há
demasiada quantidade de corações endurecidos nesse ínterim em que importa a
capacidade de reconhecer as próprias limitações.
O argumento a seguir relembra o texto de Comparato e fala da
presente indignação. A grande – maior – parte da produção mundial, hoje, vem da
China. Os chineses comem baratas, aranhas, intestinos de frango, carne de
cachorro. Comem o que aparece pela frente, apenas para se manterem vivos. Em
contraste, o conforto relativo vivido por uma parcela da sociedade norteamericana é
pago com o suor de muitos povos. E a opulência dos mais ricos do mundo, com toda
certeza, é aviltante, como demonstra Comparato ao falar sobre o imposto de 1%
sobre a fortuna dos duzentos mais ricos do mundo como forma de custear a
educação primária de “todas as crianças em idade escolar do mundo inteiro”.100
98 Comparato, op. cit., p. 546. Que se pense, aliás, do que se trata esse “asseguramento”. 99 Comparato, op. cit.,, p. 547. 100 Comparato, op. cit.,, p. 530. Paradoxalmente, hoje a China produz praticamente tudo, para o mundo todo, que compra; e parar de comprar, a essas alturas, parece temerário.
55
Por que, então, não se cria o imposto sobre as duzentas
maiores fortunas do mundo, como propõe Comparato? Parece que seria mais fácil
do que alterar e fazer cumprir a Carta da ONU. Poder-se-ia, até, descobrir que um
imposto de 3% ou 4% sobre, talvez, as mil maiores fortunas do mundo, poderia se
revelar em fonte de solução de uma série de problemas que, antes agudos, hoje são
crônicos na sociedade mundial.
A indagação sem resposta justifica a necessária atividade
regulatória do Estado sobre a economia, visando a concretização constitucional e
dos Direitos Humanos, viabilizadores de uma economia solidária e sustentável.
IV.2. ANÁLISE DE ANTONIO ENRIQUE PEREZ LUÑO101
Assinalando a grande equivocidade presente na expressão
direitos humanos, Perez Luño distingue três tipos de definições de direitos humanos:
1) tautológicas (circulares, sem elementos novos); 2) formais, que indicam o estatuto
desejado ou proposto de tais direitos, mas não especificam seu conteúdo;
3) teleológicas, em que se apela a valores suscetíveis de diversas interpretações.102
Daí Perez-Luño sublinha a importância da crítica da linguagem
– no interesse de refinar as ambiguidades e promover o entendimento das
diferenças plurais contidas no uso dos termos. Cita Bentham, observando que há
termos sobre os quais se pensa haver acordo, quando, no entanto, há grande
número de acepções distintas em seu uso.103
Então Perez-Luño propõe definir os limites linguísticos da
expressão “direitos humanos”, procurando distinguir os objetos de que a expressão
trata daqueles que não podem sê-lo, e fixar o contexto dentro do qual os direitos
humanos têm significado, afirmando que, para isso, é preciso reconstruir a história
do conceito e sua função.104
101 Perez-Luño, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho Y Constitucion. 8ª. Ed,
Tecnos, págs. 21 a 184. 102 ibid., p. 25. 103 ibid., p. 27-28. 104 ibid., p. 28-29.
56
Traça distinções: direitos humanos não são direitos naturais, a
não ser para os jusnaturalistas (de modo algum para os juspositivistas).105 Explica
que os direitos fundamentais são aquela parcela dos direitos humanos positivados
nas Constituições.106 Quanto à relação entre direitos humanos e direitos subjetivos,
considera que, se os últimos são expressão de todos os atributos da personalidade,
então os primeiros são um subconjunto dos segundos; no entanto, se os direitos
subjetivos são vistos como prerrogativas que dão origem a situações especiais e
concretas (caso no qual não incluem os direitos de personalidade) em proveito de
particulares, já não há congruência entre as expressões.107
Ao tratar de direitos individuais, Perez-Luño deixa claro que
não se pode considerar os direitos humanos como sinônimo daqueles, pelo fato de
que aí não se considera a sociabilidade típica do ser humano.108
O mesmo autor explica que, historicamente, os direitos
humanos têm como antecedente imediato “a noção dos direitos naturais em sua
elaboração doutrinal pelo jusnaturalismo racionalista”,109 e o surgimento dos direitos
humanos se dá pela subjetivação dos direitos naturais, o que procura demonstrar
citando diferentes filósofos e estudiosos do jusnaturalismo.
Não obstante, Perez-Luño informa que o uso plural da
expressão “direitos humanos” é visto com reprovação por Maritain,110 que afirma que
a inadequação do uso da expressão levou à descrença geral com relação à mesma.
Para lidar com as ambiguidades e ambivalências no uso da
expressão, propõe uma definição,111 que diz que direitos humanos são “um conjunto
de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as
exigências da dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser
reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos a nível nacional e
internacional”;112 Perez-Luño considera ainda que, com tal proposta de definição, ele
atinge os três tipos de definição – tautológica, formalista, teleológica. 105 ibid., p. 30. 106 ibid., p. 31. 107 ibid., p. 32. 108 ibid., p. 35. 109 ibid., p. 39. Tradução livre, a partir do texto original. 110 ibid., p. 44. 111 Tradução livre em 02/03/2012. 112 ibid., p. 48. Tradução livre, a partir do texto original.
57
No capítulo seguinte, Perez Luño fala a respeito da positivação
dos direitos fundamentais e das perspectivas doutrinárias que aludem a respeito.
Os jusnaturalistas consideram que o processo de positivação é
apenas uma concretização do que antes era direito natural; os positivistas são
radicalmente opostos, tendo por norte o fato de que só a norma jurídica
positivamente estabelecida diz o que é direito.
A tais duas concepções contrapõe as teses realistas,113
segundo as quais o processo de positivação não significa a declaração de direitos
anteriores, nem representa a constituição positiva de tais direitos (que só assim
passam a existir), pressupondo que a positivação não é o fim de um processo, mas
uma condição de desenvolvimento de técnicas de proteção dos direitos
fundamentais;114 ou seja, é pela práxis que se obtém a significação de tais direitos.
Discorre sobre os níveis de positivação dos direitos
fundamentais, percebendo-os no nível Constitucional, classificando-os como
1) “valores e princípios constitucionais programáticos”,115 que designam um caminho
a seguir – sem, porém, especificá-lo; 2) “princípios constitucionais para atuação dos
poderes públicos”,116 que orientam a atuação do poder público para delimitar as
modalidades de exercício de tais direitos; 3) “normas ou cláusulas gerais a
desenvolver por leis orgânicas”,117 isto é, direitos que precisam ser desenvolvidos
em seu alcance e conteúdo; 4) “normas específicas ou casuísticas”,118 quando
atuam diretamente, tendo seu alcance e significação delimitados; 5) “normas de
tutela”,119 que visam garantir os direitos formulados.
Expõe uma concepção que parece um tanto ultrapassada,
daqueles que negam o valor positivo das declarações de direitos e preâmbulos
constitucionais, mantendo-se, no caso brasileiro, apenas a perspectiva, quanto ao
preâmbulo, sem que, no entanto, seja o preâmbulo arguível, mesmo limitadamente,
quando se trata de falar dos valores que norteiam nosso ordenamento.120 Quanto à
113 ibid., p. 59. 114 ibid., p. 59. 115 ibid., p. 66. 116 ibid., p. 66. 117 ibid., p. 67. 118 ibid., p. 67. 119 ibid., p. 67. 120 Veja-se a respeito o Portal do Supremo Tribunal Federal, A Constituição e o Supremo, p. 1: “Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a Constituição e que devem servir de (cont.)
58
executoriedade dos princípios contidos na Constituição, há algum tempo se percebe
os mesmos como largamente executáveis no sistema legal brasileiro, atualmente
vencendo as poucas resistências em contrário, se é que ainda existem em alguma
escala capaz de ir além do simples resmungo. Daí, inclusive, a base para o controle
de constitucionalidade: os princípios constitucionais norteiam o sistema legislativo
em sua inteireza e, onde a norma não obedece à hierarquia que põe a Constituição
no topo, é caso de declarar (ou pelo menos reconhecer) sua inconstitucionalidade e
suprimi-la do sistema.
Perez-Luño dedica parte de sua exegese à Declaração
Universal de Direitos Humanos, da ONU;121 cita Kelsen, para quem a Declaração
possui elevada autoridade moral, mas nenhuma autoridade jurídica, não devendo
formar parte do direito internacional (sabe-se, porém, que não é assim que se vê a
postura do direito internacional quanto aos direitos positivados naquela carta, e
mesmo na Constituição Brasileira percebe-se isso claramente pela leitura da CF, em
especial no art. 4º., II; mas também pelo art. 5º., §§ 1º. a 4º.).
A posição nacional a respeito da força jurídica de tal
Declaração, portanto, confere um comprometimento do governo brasileiro quanto
aos direitos humanos e também quanto à parte destes constitucionalmente
positivada, os direitos fundamentais; e, embora não coloque tais valores acima da
orientação para a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei 8.899/1994 a elas. Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao Preâmbulo da Constituição, no qual se contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988 (...). Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem-estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se firme como uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, escolia José Afonso da Silva que ‘O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’, tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico’ (...). Na esteira destes valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade.” (ADI 2.649, voto da Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 8-5-2008, Plenário, DJE de 17-10-2008.). Os destaques em negrito ocorrem por conta deste trabalho. Se há algo de programático na Constituição, é, basicamente, em seu preâmbulo. Conquanto não possa ser arguido a não ser por aquilo que designa, é elemento de orientação que mostra ao pesquisador que toda ela se dirige a um fim, ao qual persegue, de tal modo que, mais tarde, a norma reafirma o preâmbulo, quando é o caso. 121 ibid., p. 77.
59
Constituição, confere aos mesmos, no mínimo, status supra-legal, podendo dar-lhes
o status de Emenda Constitucional, caso sua ratificação se dê pelo Congresso
Nacional, na forma estabelecida no § 3º. do art. 5º. da CF.
Análogo tratamento Perez-Luño dá aos direitos econômicos e
sociais, evidenciando que há perspectivas que os veem como programáticos,
enquanto outras concepções, como a socialista, colocam os direitos sociais no
centro de sua estrutura social, ao passo em que, apesar das diferenças entre os
direitos de liberdade e a categoria dos direitos sociais, Perez Luño não lhes nega
complementaridade (em relação aos direitos de liberdade) nem positividade.122
Perez Luño, além de falar da perspectiva histórica em que
surgem (a) os direitos de liberdade, e (b) os direitos econômicos e sociais (do Século
XIX em diante), fala (c) da fundamentação dos direitos humanos (subjetivista,
objetivista, intersubjetivista), de acordo com a filiação filosófica que embasa as
perspectivas em que são reconhecidos, pois compete ao Estado fazer cumprir o que
se estabelece, por direito e por obrigação.
Eis que, com base neste estudo, extrai-se, basicamente, que
(a) os direitos fundamentais são, caracteristicamente, direitos humanos
constitucionalmente positivados; (b) os direitos “de solidariedade” (3ª. dimensão) e
os “de igualdade” (2ª. dimensão), que eventualmente podem ser considerados como
de caráter programático, por vezes são de aplicação e eficácia imediata, quando se
observa as garantias que a própria Constituição Brasileira estatui.
Sabendo por hora que a administração pública tem plena
obrigatoriedade de responder pela garantia, preservação e efetivação de direitos
humanos, aí compreendidos direitos fundamentais, direitos sociais e direitos
transgeracionais, tecer-se-á a seguir considerações, da ordem do Direito Econômico,
que dizem respeito aos direitos humanos, examinando a relação entre crescimento e
desenvolvimento.
122 ibid., p. 87.
60
IV.3. CRESCIMENTO OU DESENVOLVIMENTO EMPRESARIAL E SOCIAL?
Em razão da análise tecida a partir de Comparato, cabe observar que,
embora coloquialmente os vocábulos crescimento e desenvolvimento sejam usados
sem diferenciação nítida, é de bom alvitre diferenciá-los quando se está falando de
Direito e Economia.
O desenvolvimento pressupõe o crescimento; este último, porém, nem
sempre se traduz naquele. Relacionados ambos ao produto interno bruto (que mede
sob certos parâmetros as riquezas geradas em um país ou região dados na unidade
de tempo), são, no entanto, coisas bastante diferentes: desenvolvimento pressupõe
alterações estruturais necessárias e eventualmente profundas, que trazem
modificações de ordem econômica à qual acompanham outras mudanças culturais,
sociais, psicológicas; já o crescimento se caracteriza por surtos que não se fazem
acompanhar de estabilidade, em geral sendo analisado sob uma perspectiva de não-
continuidade. 123
Afirma Fábio Nusdeo que124
(...) o desenvolvimento exige e impõe a elaboração de uma política econômica decidida e consistente, para que ele possa se implantar, e venha a fazê-lo com o mínimo possível de custos sociais. Essa política econômica desdobra-se por um conjunto complexo e extenso de medidas, e se estende por largo período de tempo, abarcando mais de uma geração. Daí ser imprescindível que ela mantenha alguns parâmetros mínimos de consistência e de congruência, pela definição de instituições estáveis e colocadas ao abrigo de impulsos e iniciativas ávidas de obtenção de resultados retumbantes a curto prazo (...).
A atividade regulatória, como parte da política econômica vigente, é uma das
formas delineadas pela ordem jurídica brasileira, intervindo indiretamente na
economia, tendo por objetivo macroscópico a promoção do desenvolvimento.
O que se quer, especificamente, é fazer notar que há condições que
precisam ser satisfeitas, pelas agências reguladoras, no exercício dos poderes que a
Constituição Federal e a lei lhes delegam. Isso se dá à moda de deveres, pois a
atividade de regulação tem de visar os objetivos fundamentais da Constituição da
República, além de observar os princípios que instruem a ordem econômica. 123 Nusdeo, Fábio. Desenvolvimento econômico – um retrospecto e algumas perspectivas. Apud Salomão Filho, Calixto (coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 17-18. 124 Nusdeo, Fábio, op. cit., p. 23.
61
Assim se distribuirá o estudo que segue: (a) breve histórico da introdução do
mecanismo regulatório na realidade atual; (b) o mecanismo de regulação da
atividade econômica; (c) o poder regulador; (d) o exercício do poder de regular;
(e) considerações adicionais.
De início, assinale-se que no Brasil a experiência reguladora não foi
adequadamente introduzida. Feita às pressas, com um preparo que não atendeu às
diretrizes gerais estabelecidas pelo Organização de Cooperação e Desenvolvimento
Econômico, a regulação no Brasil (embora já houvessem indícios anteriores à
Constituição de 1988) tomou corpo, efetivamente, a partir da reforma neoliberal
introduzida na Lei Maior Brasileira, na década de 1990.
E essa (um tanto) atabalhoada reformulação da atividade econômica
nacional gerou certo mal-estar125 e até hoje passa por intenso debate, que visa
corrigir os efeitos inicialmente inadequados, para proporcionar o que de melhor o
mecanismo regulatório pode oferecer para o desenvolvimento econômico e social.
As Emendas Constitucionais da última década do Século XX procuraram
trazer condições, para o Estado e a sociedade brasileira, de ampliar o espectro de
liberdade da iniciativa empresarial, por um lado, e desonerar o Estado –
basicamente, retirando-o do cenário de atividade econômica em que esteve mais
engajado, no período político-econômico imediatamente anterior – do custo da
ineficiência na manutenção de sua presença em um leque, relativamente amplo, de
atividades que até então desempenhava, eventualmente exercendo monopólio.
Tal reforma, no comportamento interventivo do Estado na atividade
econômica nacional, retirou o Estado de um procedimento interventivo direto126 para
uma atuação interventiva predominantemente indireta, que é caracterizada pela
atuação estatal no sentido da atividade regulatória da economia, o que inclui a
atividade de fomento. 125 Ver adiante, quando se fala da história recente do Brasil. 126 Mediante o qual o Estado participa de maneira imediata na atividade econômica, como no caso da empresa pública. A intervenção direta do Estado na atividade econômica na atualidade, por força do caput do art. 173 da Constituição Federal, se dá (ou só assim se pode dar) hoje apenas com base naqueles ditames: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Eis que, afora os imperativos da segurança nacional e do relevante interesse coletivo (ambos por si suficientes para amplo e profundo estudo), os casos ressalvados e previstos na Constituição são, no dizer de Eros Grau, os previstos nos arts. 177 e 21, inc. XXIII do texto constitucional, constituindo-se em exploração direta da (cont.)
62
O Brasil, praticamente, deixou de atuar como Estado-empresário (que
exerce a atividade econômica massivamente) para atuar como interessado no
desenvolvimento da atividade econômica nacional, com isso almejando atingir os
objetivos fundamentais estatuídos na Constituição Federal (de modo geral, no art.
3º.; de modo específico, espalhados e detalhados por praticamente todo o texto
constitucional).127
Examina-se adiante de que modo o Estado exerce a atividade reguladora,
após retirar-se, muito expressivamente, da intervenção direta na economia.
IV.3.1. Breve Histórico da Introdução do Mecanismo Regulatório na Realidade
Atual128
Não será longo levantamento histórico o que se apresenta neste capítulo.
Trata-se de colocar algumas palavras a respeito da reforma econômica que resultou
na situação atual.
Saindo de um período de ditadura militar, em que o Brasil-Estado suportou
forte carga de intervenção direta do Estado na economia (é suficiente atentar para o
fato de que nesse período, imediatamente anterior à presente Constituição,
encontra-se a expansão da Eletrobrás e da Telebrás e das estatais estaduais
exploradoras de energia elétrica e telecomunicações), sucedeu-se, imediatamente,
retomada mais expansiva da atividade econômica por parte do setor privado.
Tal circunstância foi acompanhada por, ou acompanhou, ideologia
neoliberal, que exige a mínima participação do Estado na exploração da atividade
econômica, com considerações, acerca das garantias sociais, de um otimismo no
mínimo duvidoso, o qual, apesar de sugerir um retorno ao liberalismo clássico,
atividade econômica em sentido estrito (v. Grau, Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1988,
14ª. ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 282-283). 127 Em relação à atividade econômica (evidentemente, com reflexos na ordem social) trata-se o tema nos arts. 170 e seguintes da Constituição Federal, sem que se descure da relação com outros temas relevantes da Lei Maior, pois, como afirma Eros Grau, a Constituição não pode ser lida em tiras. (V. Grau, Eros, op. cit., p. 164). 128 Acerca de uma abordagem historicamente mais abrangente do fenômeno da regulação, recomenda-se a leitura de Moreira Neto, Diogo de Figueiredo, Rumos do Direito Regulatório, Apud Mutações do Direito Público, Rio de Janeiro: Renovar, 2006 (p. 383 e seguintes). Em tal texto, o autor encontra indícios da atividade regulatória, remontando até mesmo à Idade Média, e trata do (cont.)
63
mostrou-se verdadeiramente impraticável no cenário mundial: não é possível confiar
exclusivamente no “mercado”, para acreditar que a sociedade se há de suprir de
bem-estar, exclusivamente, pela garantia da livre iniciativa. O capitalismo, deixado a
si mesmo, é autofágico, e é preciso que seja defendido (pelo Estado) contra os
capitalistas.129
Luís Roberto Barroso,130 a respeito do processo que levou ao modelo atual
de Estado brasileiro, encontra três fases:
1) a pré-modernidade, durante a qual vigeu o Estado liberal, na virada do
Século XIX para o XX, em que o Estado tinha suas funções bastante reduzidas e
limitadas; nesta época se estabeleceram os direitos de liberdade, “ao lado dos
direitos de participação política”.131 Economicamente, traduziam-se tais direitos “na
liberdade de contrato, na propriedade privada e na livre iniciativa”;132
2) a modernidade ou Estado social, a partir da década de 1920. Nesta época
o Estado passou a atuar na economia, conduzindo o desenvolvimento e
influenciando a distribuição de riquezas, introduzindo conceitos como “os de função
social da propriedade e da empresa”.133 Nesta época surgem os direitos sociais, com
a proteção do emprego e do trabalho;134
3) a pós-modernidade, iniciada no final do Século XX, que coincide com o
Estado percebido como ineficiente, dispendioso, moroso, burocrático e corrupto. É
um tempo cujo discurso equivale à desregulamentação, privatização da máquina
estatal e criação das organizações não-governamentais. Os direitos que aqui
surgem são difusos, “caracterizados pela pluralidade indeterminada de seus titulares
e pela indivisibilidade de seu objeto”,135 aí incluída a proteção ao meio ambiente, ao
consumidor, aos bens e valores de natureza cultural.
Assinala Luís Roberto Barroso que o Brasil chegou à terceira fase sem
atingir, de fato, os modelos preconizados nas fases anteriores: “no período liberal, fenômeno moderno da regulação como surge nos EUA, expandindo-se posteriormente a outras regiões do globo terrestre. 129 V. Grau, Eros, op. cit., p. 56-57. 130 Barroso, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática. In: Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. (p. 159-193). 131 Barroso, Luís Roberto, op. cit., p. 160. 132 ibid., p. 160. 133 ibid., p. 160. 134 ibid., p. 160. 135 ibid., p. 161.
64
jamais nos livramos da onipresença do Estado”;136 na fase da modernidade,
ocorreram ciclos ditatoriais, que, de algum modo, interferiram no estabelecimento da
ordem econômica e social preconizada nas Constituições de 34 e 46. Chega-se à
pós-modernidade enfrentando, de início, a crise do governo deposto – “primeiro
governo constitucionalmente deposto na história do país”.137
Luís Roberto Barroso nota que a atuação do Estado na economia tem
relação com o fato de que o capitalismo demanda intensa ação do Poder Público,
em sua defesa, nas “sociedades capitalistas periféricas, de industrialização
tardia”,138 pois não se tem, em tais sociedades, a aparente vantagem da
desregulamentação, tanto em relação à livre concorrência, quanto em relação ao
mercado de trabalho: a fragilidade do capital, nessa espécie de configuração sócio-
econômica, precisa da iniciativa oficial do Estado.
Tal condição aparece demonstrada pela criação de grande número de
empresas estatais brasileiras, que, no final da ditadura militar, ultrapassavam a cifra
das 500 pessoas jurídicas públicas “de teor econômico”.139
No final do século XX, porém, o Estado não resiste ao esvaziamento,
mundial, do modelo até então vigente, em que o Poder Público era centro do
processo econômico. O Estado brasileiro de então ocupava um papel “onipotente,
arbitrário e ativo – desastradamente ativo – no campo econômico”.140 É, pois, na
condição de Estado “grande, ineficiente, com bolsões endêmicos de corrupção”,141
incapaz de vencer a pobreza e a concentração de renda, que o Brasil se vê
compelido a mudar pela mesma classe dominante que por ele foi servida. O
processo de privatização é visto como uma possibilidade para um Estado “que,
infelizmente, não cumpriu adequadamente o seu papel”.142
Quanto às reformas econômicas recentes no Brasil, Luís Roberto Barroso
divisa três transformações estruturais – duas por efeito de Emendas Constitucionais,
136 ibid., p. 161. 137 ibid., p. 161. Note-se que esse é um sinal histórico de fortalecimento da democracia, embora não, especificamente, um amadurecimento. 138 ibid., p. 162, nota 5. 139 ibid., p. 162. 140 ibid., p. 163. 141 ibid., p. 163. 142 ibid., p. 164.
65
e a última “mediante a edição de legislação infraconstitucional e a prática de atos
administrativos”.143
Primeiramente, ocorreu a eliminação de certas restrições ao capital
estrangeiro, através da Emenda Constitucional nº 6/95, mediante (principalmente) a
supressão do art. 171, que tratava das empresas brasileiras de capital nacional,
admitindo às mesmas a outorga de “proteção, benefícios especiais e
preferências”.144 Dispensou-se também a exigência do controle do capital nacional
para a pesquisa e lavra de recursos minerais e aproveitamento de potencial elétrico
(art. 176 da Constituição Federal). A Emenda Constitucional 7/95 flexibilizou a
navegação de cabotagem, das embarcações a ela autorizadas e da nacionalidade
de seus tripulantes (art. 178). E em 2002 a Emenda Constitucional 36 “permitiu a
participação de estrangeiros em até trinta e cinco por cento do capital das empresas
jornalísticas e de radiodifusão”.145
Em segundo lugar, houve a “flexibilização dos monopólios estatais”,146 com
as Emendas Constitucionais 5/95, 8/95 e 9/95, rompendo o monopólio estatal na
distribuição de gás canalizado, serviços de telecomunicações e de radiodifusão e
atividades relacionadas ao petróleo: pesquisa e lavra de jazidas, refinação,
importação, exportação e transporte de produtos e derivados.
Em terceiro lugar, ocorreu a privatização, chamada por Luís Roberto Barroso
de “transformação econômica de relevo”,147 com a Lei 8.031/90 (Programa Nacional
143 ibid., p. 164. 144 ibid., p. 164. Eis o texto do (revogado) art. 171 da Constituição:
Art. 171. São consideradas: (Revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995) I - empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País; II - empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades. Revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 15/08/95 § 1º - A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital nacional: I - conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País; II - estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras condições e requisitos: a) a exigência de que o controle referido no inciso II do "caput" se estenda às atividades tecnológicas da empresa, assim entendido o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para desenvolver ou absorver tecnologia; b) percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou entidades de direito público interno. § 2º - Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional.(Revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)
145 ibid., p. 164. 146 ibid., p. 164. 147 ibid., p. 165.
66
de Privatização), depois substituída pela Lei 9.491/97. Entre os objetivos de tal
programa estavam os incisos I e IV do art. 1º. da Lei 8.031/90:
I - reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; (...) IV - contribuir para modernização do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia;
Informa Luís Roberto Barroso que o programa de desestatização tem-se
levado a cabo por meio de mecanismos como a) alienação do controle de entidades
estatais, em bolsa de valores, e b) concessões de serviços públicos a empresas
privadas.148
Ao lado das privatizações, o governo tem legislado sobre temas econômicos,
criando as agências reguladoras, relacionadas aos temas que foram objeto do
programa de privatização, além de legislar, defendendo a concorrência, e tratar de
temas como concessões e permissões de serviços públicos.149
A respeito do neoliberalismo, movimento que na década de 1980150 (com
reflexos mais pronunciados até 1990, declinando posteriormente) vagou pelo
mundo, afirma Eros Grau: “A política neoliberal (...) é incompatível com os
fundamentos do Brasil, afirmados no art. 3º. da Constituição de 1988, e com a norma
veiculada pelo seu art. 170”.151
Ao fazer tais afirmações, Eros Grau não está afirmando simplesmente que a
política de privatização empreendida após a reforma econômica da Constituição de
1988 não tinha razão de ser; é outro seu discurso, como podemos verificar, quando
atesta que em nossa Lei Máxima “se encontram parâmetros a informar a necessária
desprivatização do Estado, bem assim elementos que podem nutrir o movimento da
desregulamentação da economia. Não, porém, a velas pandas”.152
Trata-se de privilegiar os princípios gerais da atividade econômica, dentre os
quais se encontram a livre iniciativa, a livre concorrência e a valorização do trabalho
148 ibid., p. 165. 149 ibid., p. 165-166. 150 V. Grau, Eros, op. cit., p. 44: “Sucede que o novo papel do Estado passou a ser vigorosamente questionado desde os anos oitenta do século passado, na afirmação dos discursos da desregulação e do neoliberalismo”. 151 Grau, Eros. op. cit., p. 45 e seguintes. 152 Grau, Eros. op. cit., p. 290.
67
humano,153 numa harmonia necessária entre o desenvolvimento da economia e o
desenvolvimento da ordem social.
Quando trata de desprivatização, Eros Grau está falando da retirada do
Estado da exploração direta da atividade econômica: a desprivatização inclui a
estratégia de privatização,154 que ocorre acompanhando a reforma da Constituição
Federal, que incluiu as Emendas Constitucionais que promoveram uma espécie de
desregulamentação que, no entanto, não deve implicar em um novo e mais danoso
laissez-faire do Estado em relação à ordem econômica:
A ordem econômica que deve ser, projetada pelo texto constitucional, reclama o amplo fornecimento de serviços públicos à sociedade, exigindo também, por outro lado, sejam providas a garantia do desenvolvimento nacional, a soberania nacional, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, o pleno emprego, entre outros fins. As tensões entre interesses, no evolver da realidade, mercê de inúmeras motivações, poderão tanto conduzir à ampliação do campo dos serviços públicos, quanto a um novo desenho do perfil assumido pelo Estado enquanto agente econômico. Há que conjugar as imposições da desregulamentação com as exigências de um modelo de sociedade de bem- estar adequado à realidade nacional.
155
Nesse prisma é que importa tratar de regulação: se é o caso de fazer um
repasse da atividade econômica (em sentido lato) ao setor privado, este deve, em
um número de circunstâncias, submeter-se a um controle sem o qual a sociedade
não tem a garantia do bem-estar que se visa proporcionar a partir da afirmação de
direitos fundamentais em nossa Constituição, que, repetindo Eros Grau, não pode
ser interpretada de maneira isolada, às expensas do todo que o texto constitucional
objetiva alcançar.
É movimento que envolve a privatização de empresas estatais prestadoras
de serviço público e/ou a privatização das empresas estatais que desenvolvem
atividade peculiar do setor privado (coisa que diz respeito ao art. 173 da Constituição
Federal).156
Há razões que vão além de um simples modismo neoliberal tendente a
privatizar a atividade econômica prestada pelo Estado, e incluem tanto a
necessidade do Estado levantar recursos financeiros para o custeio de obras sociais
153 De modo nenhum deixando de lado os outros princípios estabelecidos no art. 170 da Constituição Federal. 154 Que corresponde à transferência da atividade econômica, que antes era explorada pelo Estado, para o capital privado. 155 Grau, Eros, op. cit., p. 290-291. 156 V. nota 124, acima, e Grau, Eros, op. cit., p. 292.
68
quanto a necessidade de livrar o Estado de empresas que, em suas mãos, revelam-
se ineficientes em virtude de excessiva (e real) ingerência política.
Complementa Grau:
Há consenso quanto à necessidade da reforma do Estado, a fim de que ele se possa dedicar, eficientemente, à provisão dos serviços públicos essenciais e de atividades de relevância para a satisfação do interesse social (atuação em setores estratégicos, promoção do desenvolvimento tecnológico, v. g.). Mas se impõe, também, discernirmos a necessidade de desprivatização do Estado, providência indispensável a sua reeticização.
157
De se considerar os argumentos de Diogo Rosenthal Coutinho,158 que
recapitula a reforma do Estado ocorrida na década de 1990, evidenciando como o
imediatismo de então privilegiou uma lógica instrumental (para “dar guarida à
estabilização econômica e também para maximizar o valor de venda das empresas
estatais nos leilões de privatização”),159 deixando de lado uma estratégia clara para
a universalização.
O Programa Nacional de Desestatização (da década de 90) previa
privatizações de empresas estatais “prestadoras de serviço público em larga
escala”,160 de maneira a resolver a deterioração das finanças públicas, transferindo à
iniciativa privada o encargo principal de investir na infraestrutura, através do instituto
jurídico da concessão. Comenta Diogo Rosenthal Coutinho: “esperou-se de maneira
ingênua, que o setor privado realizasse esses investimentos espontaneamente e,
com isso, fosse contemplada a universalização do acesso a tais serviços”.161
Criaram-se então obrigações contratuais e investimentos, combinadas com metas
qualitativas e quantitativas, para os serviços públicos assim privatizados. 157 Grau, Eros, op. cit, p. 293. Grau observa aliás que há a situação de poder e dever ocorrer a privatização, ao passo em que há situação em que pode ocorrer a privatização e há situação em que ela não deve ocorrer, nada podendo ser dito simplesmente e de maneira genérica, ocultando a realidade com seus vários aspectos. 158 Coutinho, Diogo Rosenthal. A universalização do serviço público para o desenvolvimento como uma tarefa da regulação. In: Salomão Filho, Calixto (coord.). Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. (p. 65-86). 159 ibid., p. 70. 160 ibid., p. 70-71. 161 ibid., p. 71.
69
Informa Diogo Rosenthal Coutinho que, segundo a OCDE,162 é importante
por em prática um novo regime regulatório, institucionalmente planejado, antes de
promover a reestruturação das companhias objeto da privatização, para só então
privatizá-las, havendo “intensa articulação entre os formuladores de políticas
públicas e a autoridade de defesa da concorrência antes da privatização para que
esta possa, com sua expertise em matéria antitruste, indicar formas pró-competitivas
de modelagem e reestruturação (desverticalização) das estatais”.163
Temos, como resultado, diante de nós, agências reguladoras incumbidas de
regular setores da economia relacionados a serviços públicos, e outras atividades
econômicas de relevante interesse coletivo, que, no entanto, não estão, de modo
geral, suficientemente preparadas para atender a uma finalidade mais ampla do que,
simplesmente, atender aos que detêm as concessões.
Construído o mecanismo regulatório com atraso, mercê da inexperiência,
ficaram as agências regulatórias brasileiras, de início, ao sabor do vento
proporcionado pelos entes regulados (estes, dotados de experiência em regulação,
advinda do convívio com outros países) e pela dança governamental, pressionando
com a necessidade de decisões rápidas.
Diante de tal incerteza, as concessionárias de serviço público ficaram livres
para escolher o caminho mais lucrativo e menos dispendioso, “muitas vezes
baseando-se em regras genéricas e dúbias para as quais falta regulação concreta e
definição de parâmetros de interpretação”,164 permitindo um oportunismo só oposto
por “contenciosos judiciais infindáveis”.165
162 Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, OCDE. De seu website extraímos: The mission of the Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD) is to promote policies that will improve the economic and social well-being of people around the world. (A missão da OCDE é promover políticas que melhorarão o bem-estar social e econômico dos povos ao redor do mundo). Composta de 34 países, com sede em Paris, na França, e estabelecida em 1961, tal organização iniciou seus trabalhos visando estabelecer planos para o restabelecimento dos países europeus, economicamente debilitados após a Segunda Guerra Mundial. Fonte: http://www.oecd.org/pages/0,3417,en_36734052_36734103_1_1_1_1_1,00.html, acesso em 11/12/2011 às 6h07. 163 ibid. p. 72. 164 Coutinho, Diogo Rosenthal, op. cit., p. 74. 165 ibid., p. 74.
70
IV.3.2. O Mecanismo de Regulação da Atividade Econômica
A atividade reguladora do Estado vem afirmada no caput do art. 174 da
Constituição Federal: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica,
o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e
planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor
privado”.
Esse texto já oferece pistas para o que se considera a seguir, junto com
Eros Grau; isto é, que as agências reguladoras são espécies de repartição pública,
tratando-se de autarquias fundadas no âmbito do Poder Executivo, “desempenhando
funções administrativas e normativas, estas últimas no exercício de capacidade
regulamentar”.166
Marçal Justen Filho explica que “a regulação vale-se não somente da
imposição da repressão (deveres de abstenção), mas incorpora a promoção
(deveres de fazer) como solução indispensável para atingir os resultados
pretendidos pelo Estado”,167 anotando, ademais, que “o modelo do Estado
Regulador ainda está sendo produzido”.168
Pertinente o comentário de Renata Porto Adri:
Se por um lado a atuação reguladora desses “órgãos reguladores” parece estar se delineando, com os aperfeiçoamentos legislativos e as determinações judiciais das contendas, por outro, a fiscalização das atividades reguladas e as expectativas de representatividade e legitimidade conferidas pela sociedade brasileira nas relações com as instituições privadas ainda reclamam muita reflexão e atuação efetiva. O art. 174 da Constituição da República de 1988, ao tratar da função normativa e reguladora da atividade econômica do Estado, acaba por abordar as “agências reguladoras”, instituídas, por lei, como autarquias, sob regime especial, sendo-lhes conferida autonomia administrativa, patrimonial e financeira, com dirigentes com investidura a tempo certo, sendo discutível e inaceitável, diante dos ditames constitucionais, a autonomia ampla para exercício da competência normativa regulamentar, uma vez que há limites à faculdade regulamentar que não podem ser exorbitados e ensejam controle. Com isso, pretende-se chamar a atenção, para a proliferação das agências reguladoras, que diante da ausência de um planejamento e, consequente, plano operacional que preveja os meios de produção e os fins a que se destinam, acaba por segmentar a realidade social, pois nem sempre a especialização, que se traz como bandeira reflete sua atuação e afeta, diretamente, as políticas públicas com efeito nefasto e destruidor aos direitos dos cidadãos,
166 Grau, Eros. As Agências, essas Repartições Públicas. Apud Salomão Filho, Calixto (coord.), Regulação e Desenvolvimento, São Paulo: Malheiros, 2002, p. 27. 167 Justen Filho, Marçal. Curso de Direito Administrativo, 4ª. ed. rev. e atual.. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 566. 168 ibid., p. 567.
71
bem como ao desenvolvimento nacional equilibrado, diante da insegurança jurídica gerada pelos resultados imprevistos e imprevisíveis.
169
Como autarquias especiais, as agências reguladoras são criadas tendo por
finalidade disciplinar e controlar certas atividades, conforme atesta Celso Antônio
Bandeira de Mello,170 que ainda as classifica em autarquias relacionadas a
(a) serviços públicos propriamente ditos, caso da Agência Nacional de Energia
Elétrica – ANEEL; da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL; da
Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT; da Agência Nacional de
Transportes Aquaviários – ANTAQ; da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC;
(b) atividades de fomento e fiscalização da atividade privada, caso da Agência
Nacional do Cinema – ANCINE; (c) atividades exercitáveis para promover a
regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da
indústria do petróleo, cuja disciplina compete à Agência Nacional do Petróleo, Gás
Natural e Biocombustíveis – ANP; (d) atividades que o Estado também protagoniza
(e quando o fizer serão serviços públicos), mas que, paralelamente, são facultadas
aos particulares, coisa que “ocorre com os serviços de saúde, que os particulares
desempenham no exercício da livre iniciativa”,171 sob controle da Agência Nacional
de Vigilância Sanitária – ANVISA; e da Agência Nacional de Saúde Suplementar –
ANS; e (e) regulação de uso de bem público, como ocorre com a Agência Nacional
de Águas – ANA.
Por último, Celso Antônio Bandeira de Mello enumera item que se considera
como (f) entidades cujas funções são de índole equivalente (embora sem a
denominação de “agência reguladora”), caso da Comissão de Valores Mobiliários –
CVM.172
Ainda no âmbito federal, pode-se, junto com Luís Roberto Barroso,173 e com
relativa segurança, considerar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica
169 Adri, Renata Porto. Da Função Estatal de Planejar a Atividade Econômica: Breves Reflexões sobre
o Art. 174 da Constituição da República de 1988. Apud Sparapan, Priscilia (coord.); Adri, Renata Porto (coord.). Intervenção do Estado no Domínio Econômico e no Domínio Social. Homenagem ao Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 152. 170 Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 25ª. ed. rev. e atual. até a EC 56/2007. São Paulo: Malheiros, 2008, p 169-170. 171 Mello, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 170. 172 ibid., pp. 170-171. 173 Barroso, Luís Roberto, op. cit., p. 170. Embora nascido anteriormente à Constituição Federal, a Lei 8.884/94 transformou o CADE em autarquia e deu-lhe atribuições que permitem dizer que é o CADE uma agência reguladora, conforme se vê adiante.
72
(CADE) como agência reguladora após a Lei 8.884/94, embora não leve tal nome,
pois tal entidade obedece aos requisitos estabelecidos por Ricardo Antônio Lucas de
Camargo174 e aditados por Eros Grau:
175
i) as agências de regulação são autarquias, cujo objeto é a garantia da não interrupção da prestação de serviços que sejam delegados à iniciativa privada; ii) sendo autarquias, inserem-se na estrutura do Estado, desempenhando função administrativa [e normativa, digo eu
176], estando ubicadas na órbita do Poder Executivo, que
tem como dirigente supremo o respectivo Chefe – o Presidente da República, no âmbito federal, o Governador, no âmbito estadual, e o Prefeito, no âmbito municipal. Sua qualificação como autarquias sob regime especial decorre da circunstância de lhes ser assegurada (i) ausência de subordinação hierárquica, (ii) independência ou autonomia administrativa, financeira, patrimonial, de gestão de recursos humanos e técnica e (iii) mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes. Eros Grau destaca ainda que o “mandato fixo e estabilidade de seus
dirigentes” são inovações “franca e irremediavelmente inconstitucionais”,177 seguindo
aliás a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello,178 pois os dirigentes de
autarquias não podem ser “titulares de direitos a serem mantidos além de um
mesmo período governamental, o que, na expressão de Celso Antônio,
consubstanciaria uma fraude contra o próprio povo”.179
Forçoso concluir que constitucional e legal é considerar que o mandato dos
dirigentes de autarquias especiais (tipicamente funcionando como agências
reguladoras) não deve ultrapassar o mesmo período governamental. No mais,
sujeita-se tal mandato ao controle de constitucionalidade.
IV.3.3. Poder Regulador
O poder regulador inclui a função reguladora e o exercício do poder
regulamentar, nem sempre atividades congruentes.
Deste tema trata Celso Antônio Bandeira de Mello, informando que
O verdadeiro problema com as agências reguladoras é o de se saber o que e até onde podem regular algo sem estar, com isto, invadindo competência legislativa. Em linha de principio, a resposta não é difícil. Dado o princípio constitucional da legalidade, e consequente vedação a que atos inferiores inovem inicialmente na ordem jurídica (...), resulta claro que as determinações normativas
174 in Grau, Eros. As Agências (...), p. 27. 175 ibid., p. 27. 176 Eros Grau é quem o diz. 177 ibid., p. 27. 178 Mello, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 175. 179 Grau, Eros. As Agências (...), p. 28.
73
advindas de tais entidades hão de se cifrar a aspectos estritamente técnicos, que estes, sim, podem, na forma da lei, provir de providências subalternas, conforme se menciona (...) ao tratar dos regulamentos. Afora isto, nos casos em que suas disposições se voltem para concessionários ou permissionários de serviço público, é claro que podem, igualmente, expandir as normas e determinações da alçada do poder concedente (...) ou para quem esteja incluso no âmbito doméstico da Administração. Em suma: cabe-lhes expedir normas que se encontrem abrangidas pelo campo da chamada “supremacia especial” (...). De toda sorte, ditas providências, em quaisquer hipóteses, sobre deverem estar amparadas em fundamento legal, jamais poderão contravir o que esteja estabelecido em alguma lei ou por qualquer maneira distorcer-lhe o sentido, maiormente para agravar a posição jurídica dos destinatários da regra ou de terceiros; assim como não poderão ferir princípios jurídicos acolhidos em nosso sistema, sendo aceitáveis apenas quando indispensáveis, na extensão e necessidade requeridas para o atendimento do bem jurídico que legitimamente possam curar e obsequiosas à razoabilidade. Alexandre Mazza recusa-lhes, inclusive, a possibilidade de uma competência regulamentar propriamente dita, fundado na singela mas certeira observação de que esta é, pelo Texto Constitucional, declarada privativa do Chefe do Poder Executivo.
180
Observe-se que Celso Antônio Bandeira de Mello é um tanto pessimista
quanto aos poderes concedidos às agências reguladoras, pois prevê que elas
exorbitarão de seus poderes, baseadas no título que lhes foi dado, supondo-se
“investidas dos mesmos poderes que as ‘agências’ norte-americanas possuem, o
que seria descabido em face do Direito brasileiro, cuja estrutura e índole são
radicalmente diversas do Direito norte-americano”,181 pois “no Direito Constitucional
brasileiro, ao contrário do norte-americano, pelo que vimos, não haveria como criar
‘entidades intermediárias’ com poderes legislativos ausentes espaço, assento ou
previsão constitucional”.182 E não faltam exemplos debatendo tal ponto na literatura
que trata do assunto.
Marçal Justen Filho expõe o fato de que a regulação inclui “novo”
instrumental jurídico.
Além da visão clássica autoritária, mediante a qual a norma jurídica impõe
padrão de conduta de observância obrigatória (de modo tal que se aplica um direito
administrativo sancionador conforme o caso e a dicção legal), o Estado Regulador
(...) também recorre a outras vias para influenciar o comportamento humano. Trata-se não apenas da já referida concepção promocional do direito, em que a obtenção de condutas desejadas é induzida por meio de sanções ditas positivas ou premiais. Além disso, torna-se extremamente relevante um instrumento normativo que poderia ser qualificado como atenuado.
180 Mello, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p. 172-173. 181 ibid., p. 173. 182 ibid., p. 173.
74
Há manifestações estatais de incentivo, orientação, sugestão. Em muitos casos, o Estado não determina, mas solicita a adoção de certos parâmetros. Em outros, há soluções negociadas, em que se compõem os interesses por meio de avenças de cunho bilateral. É problemático reconduzir essas espécies de providências estatais ao esquema normativo tradicional. Perante esse, essas fórmulas de atuação estatal são classificadas como “não jurídicas” ou meras manifestações irrelevantes. No entanto, constata-se que esses instrumentos prestam-se a influenciar, de modo efetivo, a conduta dos seres humanos e das empresas. Generalizou-se, em doutrina, a denominação “soft-law” (direito suave) para indicar “uma declaração cujo intento é normativo (no sentido de dirigir-se a influenciar a conduta dos destinatários), as mais das vezes adotadas pela Administração Pública ou por organizações internacionais, mas definidas (geralmente pelos próprios autores) como carentes de uma plena força jurídica vinculante”. Tal como exposto (...), essas figuras são consideradas por alguns como uma das características do chamado direito pós-moderno.
183
Essa perspectiva de atuação das agências reguladoras no exercício de um
poder regulador que inclui o consensualismo não é pouco utilizada fora do Brasil,
como se pode ver pelo exemplo da Espanha.184
A favor de tal perspectiva encontra-se Diogo de Figueiredo Moreira Neto,
que informa que, diante de uma avalanche de processos judiciais contra o Poder
Público “em todos os países que adotaram as premissas do Estado Democrático de
Direito”,185 essa modalidade de atuação administrativa é espécie de instituto que
“pode atuar vantajosamente na prevenção administrativa de conflitos”.186
Não seria exagero apontar essas novas vias, não só de atuação preventiva como de composição de conflitos administrativos já instaurados, como importantes conquistas da cidadania e da sociedade, em geral, ora alcançadas graças a essas possibilidades desenvolvidas de utilização do consenso como modalidade substitutiva da ação unilateral e imperativa do Estado.
187
Mais adiante, Diogo de Figueiredo Moreira Neto explica o que entende por
função reguladora e o fato de que esta compreende o poder regulamentar, mas a ele
não se limita:
A atividade dos institutos que conformam os subsistemas de harmonização é a função reguladora, que, não obstante o étimo, que a aproxima da voz vernácula regra, o que traz a ideia de normatividade, é mais que isso: é um híbrido de atribuições de variada natureza, informativas, fiscalizadoras e negociadoras, mas, também, normativas, gerenciais, arbitradoras e sancionadoras.
183 Justen Filho, Marçal, op. cit., p. 569. 184 Para uma perspectiva do direito administrativo espanhol a respeito da administração consensual, v. Font y Llovet, Tomàs. Desarrollo reciente de los instrumentos de la administración consensual en España. Apud Moreira Neto, Diogo de Figueiredo (Coord.). Uma avaliação das tendências contemporâneas de direito administrativo. Rio de janeiro: Renovar. 2003. (p. 363-382) 185 Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 343. 186 ibid., p. 343. 187 ibid., p. 343.
75
Todas essas distintas funções são concentradas em um órgão regulador, para que defina os interesses que deverão ser atendidos e de que maneira, nas relações sujeitas à regulação.
188
Isto posto, Diogo de Figueiredo Moreira Neto observa ainda que as normas
reguladoras são distintas das normas legais, no sentido de que as normas legais
compreendem um interesse público específico, pré-definido em texto constitucional
ou legal,189 que deve ser realizado, enquanto na norma reguladora o interesse
público “é considerado ponderadamente em conjunto com vários outros interesses
protegidos pela ordem jurídica, pois o que se visa, afinal, é a realização harmônica
de valores protegidos”.190
IV.3.4. O Exercício do Poder de Regular
Eis o que ensina José Afonso da Silva ao tratar dos Princípios Gerais da
Atividade Econômica:
(...) a liberdade de iniciativa econômica privada, num contexto de uma Constituição preocupada com a realização da justiça social (o fim condiciona os meios), não pode significar mais do que “liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público, e, portanto, possibilidade de gozar das facilidades e necessidade de submeter-se às limitações impostas pelo mesmo”. É legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima, quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário. Daí por que a iniciativa econômica pública, embora sujeita a outros tantos condicionamentos constitucionais, se torna legítima, por mais ampla que seja, quando destinada a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
191
Assim, não há que se falar em atividade reguladora sem tratar das
preocupações que o Estado tem para com o beneficiário dos princípios da atividade
econômica. Não importa apenas a livre iniciativa, pois esta se encontra mitigada, a
todo pano, por outros princípios constitucionais que visam a realização dos objetivos
fundamentais da República.
As agências reguladoras estão aí não apenas para garantir que as
concessionárias possam exercer sua liberdade de iniciativa; sua missão máxima, na
atividade de regulação, é olhar por aqueles que são os beneficiários da iniciativa
188 ibid., p. 392. 189 Legalidade, aqui, em sentido verdadeiramente estrito. 190 ibid., p. 395. 191 Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª. ed. rev. e atual. até a EC 52/2006. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 794.
76
privada. Não pode negligenciar os concessionários, sob pena de completamente
desestimular a iniciativa privada, que toma para si a responsabilidade de realizar a
atividade econômica (em sentido lato) que assumiu; mas de maneira nenhuma pode
deixar de lado aquele que deve por ela ser beneficiado. Nesse sentido, constitui-se a
agência reguladora, v.g., em efetiva realizadora de política de defesa dos direitos do
consumidor, aliás levando a efeito o preceito contido no inc. V do art. 170 da
Constituição Federal.192
Note-se aliás que a atividade regulatória deve coibir o abuso do poder
econômico. José Afonso da Silva explica que a livre concorrência é uma
manifestação da liberdade de iniciativa, “e, para garanti-la, a Constituição estatui que
a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à
eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (art. 173, § 4º.)”.193
Assim é que se chega à leitura do art. 174 da Lei Maior: a intervenção do
Estado no domínio econômico se legitima e justifica quando o Estado o faz
exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento.194,195
Quer-se, com isso, notar que, considerando-se a função reguladora em
qualquer extensão – seja por um viés autoritário, seja por um viés consensual – deve
ela incluir parâmetros para seu estabelecimento, que dizem respeito à missão da
agência reguladora.
Tal missão nunca é unilateral, no sentido de apenas bem atender os entes
regulados explorando a atividade econômica em sentido amplo, pois a razão dos
regulados se encontrarem sob os auspícios do ente regulador é, claramente, o
mando constitucional, e tal determinação não é lida em privilégio de uns poucos e
em detrimento de uma organização social que a Constituição da República
preconiza.
192 As agências reguladoras podem, também, realizar políticas de defesa do idoso, da mulher que
sofre violência doméstica, da pessoa portadora de deficiência, e assim por diante. As possibilidades são amplas, quando se fala de atender a objetivos constitucionais, e se ampliam na medida em que se considera o fundamental princípio constitucional da dignidade humana. 193 Silva, José Afonso da, op. cit., p. 795. 194 Posição expressa por Mello, Tanya Kristyane Kozicki de. Defesa do Consumidor e Defesa do Meio Ambiente: A Busca por um Novo Paradigma para a Realização de Direitos Fundamentais. Apud Revista Jurídica do Centro Universitário Curitiba. Número 23, Curitiba, 2009. Internet: http://www.unicuritiba.edu.br/sites/default/files/publicacoes/edicoes/20100420010437juridica232009- 2.pdf, acesso em 11/12/2011 às 10h12, p. 162. 195 V. subtítulo IV.3.3, acima.
77
IV.3.5. Mais Considerações196
Em nota de rodapé em sua obra Curso de Direito Administrativo, Celso
Antonio Bandeira de Mello situa uma crítica muito presente e recorrente com relação
à atividade reguladora.
Afirma Celso Antonio Bandeira de Mello que, no
serviço público – importa ressaltar – a figura estelar não é seu titular nem o prestador dele, mas o usuário. Com efeito, é em função dele, para ele, em seu proveito e interesse que o serviço existe.
197
Eis, porém, que o mesmo autor anota:
Esta é a lógica que preside juridicamente o assunto, embora não seja minimamente a realidade. As agências reguladoras que na linguagem oficial foram supostamente criadas para assegurar os direitos dos usuários comportam-se como se fossem inteiramente desinteressadas disto e muito mais interessadas nos interesses das concessionárias, ao ponto de se poder supor que foram introduzidas entre nós com este deliberado propósito. A situação calamitosa dos serviços aéreos serve de excelente demonstração da nulidade das agências reguladoras na defesa do usuários. As telecomunicações telefônicas são disparadamente as campeãs brasileiras em reclamações dos consumidores, sem que daí resultem as presumidas sanções supostas na legislação.
198
É fácil perceber a verdade presente em tais observações: basta procurar
atendimento das empresas de telecomunicações para resolver algum problema
singelo relacionado à interrupção na prestação, por exemplo, do serviço de Internet,
ou explicações relativas ao aumento ou introdução de obscuras tarifas que
eventualmente aparecem contabilizadas nas contas telefônicas. A própria tentativa
de encerramento da relação contratada com uma empresa de telefonia já é uma dor
de cabeça bastante comum. São coisas que ocorrem tão corriqueiramente, de tal
modo banalizadas, que levam a pensar se é alguma obra de – emprestando a
expressão da psicologia comportamental – dessensibilização sistemática199 que se
196 Embora não definitivas, ausente a pretensão de esgotar o tema. 197 Mello, Celso Antonio Bandeira de, op. cit., p. 665. 198 Mello, Celso Antonio Bandeira de, op. cit., p. 665, nota 20. 199 Dessensibilização sistemática é uma técnica que visa, especificamente, tornar aquele que é assim tratado imune a determinado estímulo. Certas espécies de fobias podem, por exemplo, ser tratadas desse modo, com resultados relativamente satisfatórios. O que importa notar, aqui, é que, por meio de tal técnica, aquilo sobre o qual se está promovendo a dessensibilização deixa de assumir aspecto de relevância para quem se defronta com tal objeto; assim, cedo ou tarde o sujeito deixa de notar que está passando por determinado incômodo, em relação a certa situação. Mais: “A Dessensibilização Sistemática, desenvolvida originariamente por Wolpe em 1958, é um conjunto de técnicas de exposição à vivência traumática. A exposição ao vivo é precedida pela exposição imaginária, construída dentro do consultório, e trabalhada numa hierarquia de situações temidas – desde as consideradas mais fáceis de enfrentamento, até as mais difíceis. Foa & Kozac utilizam-se bastante da exposição sistemática sugerindo que por meio dela a memória poderia alterar sua estrutura semântica gerando um registro mnêmico mais preciso e atual, integrando o trauma aos esquemas (cont.)
78
está levando a cabo, para acostumar o usuário de telefonia a não ser atendido
adequadamente, até que simplesmente se habitue a ser aviltado no atendimento.
Segundo aqui se entende, as consequências da política neoliberal foram
desastrosas, não apenas para o desenvolvimento no Brasil, mas também em outras
partes do mundo. Não obstante – e falando da experiência tupiniquim, que é o que
aqui interessa – tem-se agora uma tarefa a executar, que consiste em fazer com que
as transformações estruturais, ocorridas na década de 1990, tragam benefícios
sociais, efetivamente atendendo aos ditames da ordem econômica constitucional.
Em texto em que discorre acerca das falhas do Estado em contraste com as
falhas do mercado, Fábio Tokars afirma:
Independente do regime econômico instalado, o inimigo real não é o mercado, gerador de riquezas meritórias, mas sim a corrupção, geradora da riqueza podre, esta sim derivada da exploração da ignorância e da pobreza alheias, enquanto a riqueza meritória é fruto essencialmente do trabalho próprio.
200
A riqueza meritória, desde que apropriadamente ajustada aos princípios
constitucionais que delimitam a atividade econômica (como a função social da
propriedade, a valorização do trabalho humano e a defesa do meio ambiente) e
outros que dos primeiros derivam (como a função social da empresa, a função social
do contrato, a boa-fé objetiva), certamente é fruto de trabalho não apenas próprio, e
ademais, digno.
No mesmo trabalho, Tokars fala a respeito das questões que relativizam a
representação popular exercida pelos políticos corruptos que, por vezes,
abandonam aqueles que os elegeram para exercerem preferências pessoais ou
mesmo de setores de poder político, econômico ou mesmo social, com motivações
relativamente obscuras.
cognitivos pré-existentes e criando novos repertórios cognitivo-comportamentais. Semelhantemente, a Teoria do Processamento Emocional de Lang, sugere que a exposição repetida à lembrança traumática num ambiente controlado, terapêutico, gerará a habituação ao medo e posterior modificação do esquema disfuncional de esquiva”. (Knapp, Paulo e Caminha, Renato M. Terapia cognitiva do transtorno de estresse pós-traumático. Apud Revista Brasileira de Psiquiatria, vol. 25, supl. 1., São Paulo, junho de 1993. Internet: http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44462003000500008, e também: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462003000500008, acesso em 10/12/2011 às 22h51). 200 Tokars, Fábio. Das Falhas de Mercado às Falhas de Estado. Apud Revista Jurídica do Centro Universitário Curitiba. Número 21. Curitiba, 2008, p. 156. Internet: http://www.unicuritiba.edu.br/sites/default/files/publicacoes/edicoes/20100420010437juridica_21.pdf, acesso em 11/12/2011 às 08h30.
79
Percebendo o governo não apenas por essa ótica mas, por vezes, pelo
despreparo técnico da atuação estatal em uma série de assuntos que exigem
qualificação técnico-científica crescente, é de refletir sobre o valor e a necessidade
do mecanismo de regulação e, mesmo, da efetivação do poder regulador
desempenhado por tais agências.
No entanto, na medida em que as agências reguladoras perpetuam de
maneira tal e qual obscura sua atuação, deixando de lado a parcela de sua atenção
que deveria ser dedicada mais ao usuário do que às concessionárias, tem-se de
observar que a atividade regulatória acaba por cometer um erro mais grave ainda do
que o político que, eleito pelo povo, se corrompe: pois a agência reguladora e seus
dirigentes não estão lá por voto direto.
Em que pese que, sempre havendo a possibilidade de fiscalizar a atuação
da própria agência reguladora, raro é ouvir que tal tem acontecido, e seria de supor,
não fosse a realidade, que as agências reguladoras estão funcionando devidamente;
mas como já foi notado por Celso Antônio Bandeira de Mello, não é bem assim.201
Neste caso, urge que o Poder Público, organizado para a fiscalização – pelo
menos o Ministério Público – esteja atento à necessidade de adequar a atividade
reguladora dentro de seus limites, atentando, ademais, para o exercício da função
reguladora por parte das agências que têm tal encargo. Estas, uma vez situadas
corretamente em relação a seus fins, estarão cumprindo eficazmente com a
finalidade para a qual foram estabelecidas, cuidando para que a atividade
econômica exercida pelos exploradores de serviços públicos, ou mesmo outras
atividades econômicas, de relevante interesse coletivo, cumpram os ditames
constitucionais, não apenas em relação à preservação do sistema capitalista, mas,
também, à consecução dos objetivos nacionais, que incluem o desenvolvimento
nacional.
Afirma Daniel Ferreira, com razão, que “como adrede referido, os
regulamentos apenas podem se prestar à fiel execução da lei, sob pena de flagrante
ilegitimidade”.202
201 Quer-se, contudo, crer que as coisas se encaminham para uma maturidade na atividade regulatória. 202 Ferreira, Daniel. Alternativas Legais à Sanção Administrativo-Ambiental: Uma Questão de Dignidade da Pessoa Humana e de Sustentabilidade da Atividade Empresarial. Apud Revista Jurídica do Centro Universitário Curitiba. Número 22. Curitiba, 2009, p. 71. Internet: (cont.)
80
Sabendo que a atividade reguladora não consiste apenas em regulamentar,
ajunta-se a isso que não é apenas de fiel execução de lei que vivem as agências
reguladoras, mas de cumprimento de ditames (mormente princípios) constitucionais:
no exercício de seus poderes.
Não podem, pois, omitir-se as agências de cumprir com aquilo que a
Constituição Federal estatuiu como objetivos fundamentais da República. E é
também este tipo de exercício de poder regulamentar que se espera das agências
reguladoras, isto é, que façam valer, no interesse do usuário do serviço público, ou
da atividade econômica de relevante interesse coletivo, aquilo para o que foram
instituídas.
O ordenamento jurídico brasileiro não consagrou o princípio da
subsidiariedade como é praticado, por exemplo, na União Europeia.203 Isso significa
que não é caso de se pensar que a intervenção do Estado na atividade econômica
só se deve dar em última hipótese.
A Constituição procura conciliar direitos de liberdade, igualdade e
fraternidade – os primeiros, típicos do capitalismo; os segundos, caracterizadores do
Estado Social de Direito; os terceiros, intimamente relacionados aos direitos
transgeracionais representados pela necessidade de preservar o meio ambiente,
trazendo consigo uma percepção de que há direitos que não pertencem a um só,
mas a coletividades, específicas ou não. Na efetivação dessa perspectiva, é preciso
afastar a tentação de privilegiar a livre iniciativa, fazendo com que só de forma
subsidiária o Estado intervenha na atividade econômica.
Liberdade de iniciativa e livre concorrência, sim; mas, de toda forma,
segundo a mui saudável fórmula da prudência que manda fiscalizar e controlar para
que o capitalismo, fundamentalmente autofágico, não acabe (engolindo a si mesmo)
prejudicando toda a estrutura social sem a qual não se viabiliza o pacto
http://www.unicuritiba.edu.br/sites/default/files/publicacoes/edicoes/20100420010406juridica2220091. pdf, acesso em 11/12/2011 às 9h00. 203 A esse respeito, que se lembre a lição de Emerson Gabardo, destacando que o princípio da subsidiariedade, que estabelece que a atuação interventiva do Estado na economia só deve ocorrer em situações de excepcionalidade, legando-se à iniciativa econômica privada a liberdade de atuar, não pode ser invocado para barrar (dando como excepcional) a intervenção pública; para ele, o Estado social necessariamente opõe-se à subsidiariedade; não se pode abandonar a preocupação com a natureza e a urbanização, mormente quanto à função social da propriedade urbana, no segundo caso, e quanto ao fato do meio ambiente representar fator de desenvolvimento, no primeiro. V. Gabardo, Emerson. Interesse Público e Subsidiariedade. O Estado e a Sociedade Civil para Além do Bem e do Mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 177.
81
constitucional, o sentimento constitucional204 e a vontade de Constituição
205 que
legitimam o Estado brasileiro. Aí a razão de existir das agências reguladoras e
também os limites do poder regulamentar a elas confiado.
Diz Salomão Calixto Filho em seu Prefácio à obra Regulação e
Desenvolvimento: “Passada a primeira onda regulatória e revelada a impropriedade
e risco da retirada pura e simples do Estado da esfera econômica, aberto está o
caminho para a maturidade regulatória”.206
Espera-se que seja mesmo possível tal maturidade, uma vez que, como
afirma Luís Roberto Barroso, o fracasso de tal projeto obrigaria a um “longo caminho
de volta”.207
IV.3.6. A Atuação Estatal sobre o Desenvolvimento e a Sustentabilidade
Eros Grau propõe investigar o aspecto jurídico da Ordem Econômica (que
ele identifica com o “mundo do dever ser”)208 sob duas formas de indagação:
interpretando a Constituição Econômica e analisando o caráter da ordem econômica.
Para tanto, principia distinguindo a atuação estatal sobre a atividade
econômica em dois sentidos: amplo e estrito. É em sentido amplo que ocorre a
atuação estatal quando não se trata de diferenciar se ela ocorre sobre o domínio
público ou privado; é em sentido estrito – e é sinônimo de intervenção – quando o
Estado atua em área “de titularidade do setor privado”.209
Considera que a intervenção do Estado atinge principalmente o regime
dos contratos, pois a liberdade de contratar deriva da propriedade privada dos bens
de produção. 204 V. Gabardo, Emerson, op. cit., p. 181. 205 A esse respeito, V. Hesse, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1991, p. 32: “A resposta à indagação sobre se o futuro do nosso Estado é uma questão de poder ou um problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição, bem como de seu pressuposto fundamental, a vontade de Constituição. Essa tarefa foi confiada a todos nós”. 206 Calixto Filho, Salomão (coord.). Regulação e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. 207 Barroso, Luís Roberto, op. cit., p. 193. 208 Grau, Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 14ª. Ed. Rev. e Atual. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 88. 209 ibid., p. 91.
82
Essa interferência se maximiza na medida em que o Estado passa de um
modelo liberal (no qual impera o voluntarismo) para um modelo intervencionista, que
Josserand chama de dirigismo contratual; os contratos deixam de ser uma
prerrogativa quase absoluta das partes de criar o seu próprio direito para se
transformar em “condutos da ordenação dos mercados, impactados por normas
jurídicas que não se contêm nos limites do Direito Civil”,210 pois na “publicização” do
Direito Privado procura-se atender ao desenvolvimento e à justiça social mais clara e
dinamicamente que no modelo liberal que o antecede.
Nessa perspectiva, o Estado deixa de atuar de maneira meramente
dispositiva, para intervir em formas e fórmulas contratuais, além de legislar sobre a
obrigação de contratar ou não contratar, surgindo daí duas novas perspectivas,
oriundas da expectativa diante da Administração Pública: (a) de comportamento
assumido perante o Estado e (b) de comportamento assumido diante dos demais
agentes econômicos.211 Normatiza-se, assim, não apenas a atividade econômica em
termos de seu exercício pura e simplesmente, mas também as relações dos agentes
econômicos entre si, o que parece causar certo impacto na espontaneidade da
vinculação contratual.
Grau cita a classificação de Larenz para as limitações que incidem sobre
a liberdade de contratar: limitações imanentes ao próprio instituto contratual e
limitações derivadas de princípios de economia dirigida.212 As primeiras dizem
respeito ao interesse público, ao dever profissional (obrigações inerentes à atividade
profissional) e à proteção da livre concorrência; as segundas tratam, como diz a
ementa do exemplo dado pela Lei 8.884/94, da “prevenção e a repressão às
infrações contra a ordem econômica” (infrações definidas pela intervenção estatal
sobre o domínio econômico).213
Eros Grau ressalta, ademais, o dirigismo sobre o próprio exercício da
atividade econômica, indo além da limitação sobre a liberdade de contratar, caso da
proibição de cessação de atividade sob pena de perda de concessão. 210 ibid., p. 93. 211 ibid., p. 96. 212 ibid., p. 96. 213 A lei 8884/94 foi revogada pela Lei 12.520/2011, que “Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica (...)” e define a estrutura vigente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).
83
Reitera que o contrato coativo214 é contrato, isto é, a presença do dever
jurídico vincula apenas uma das partes,215 havendo ainda manifestação de vontade
de outra(s) das partes integrantes.
A partir disso, afirma que os contratos não são objeto de estudo exclusivo
do Direito Civil, mas também do Direito Econômico.
Cumpre então determinar o que é atividade econômica. É então que Grau
informa que atividade econômica é ora gênero e ora espécie: trata-se de gênero
quando é atividade econômica em sentido amplo – incluindo aí a espécie serviço
público; trata-se de espécie quando atividade econômica em sentido estrito, distinta
da espécie serviço público, caso no qual a primeira está para o setor privado na
medida em que a segunda está para o setor público.216
Assinala o autor, ademais, que a atividade econômica em sentido amplo
inclui uma terceira espécie – a atividade ilícita, que é coibida pela Lei Penal.
Isto posto, considera Eros Grau que a inconsistência da Emenda 19/98
em relação às licitações, que obviamente devem ocorrer tanto para as empresas
estatais217 que prestam serviço público, quanto para aquelas que exercem atividade
econômica em sentido estrito, não pode dar origem a uma interpretação que isente
as empresas estatais devotadas ao serviço público em termos da necessidade de
licitação, pois o princípio republicano acaba por impor o princípio da isonomia
(implicando em igualdade de oportunidade, a todos, em termos de atividade
econômica, em sentido amplo, prestada por empresas estatais), de tal modo que,
214 Característica típica dos contratos administrativos, em que por vezes a vontade de pelo menos uma das partes é substituída pela vontade da lei (v. Grau, op. cit., p. 98). Nesse ínterim, Grau destaca que a situação obrigacional a que o particular se submete decorre de obrigação, assumida em virtude de dever jurídico que vincula o particular. A obrigação, para Grau, é em geral decorrente de manifestação de vontade, enquanto o dever jurídico se impõe; no caso do contrato coativo, a obrigação é assumida como imposição do dever dado pela vontade da lei. 215 ibid., p. 98. Eis a percepção que é suscitada no presente trabalho: vincula uma das partes de cada vez – não parece difícil imaginar situações em que, assumido o contrato, há situações em que uma parte é obrigada por determinada cláusula enquanto outra é obrigada por outra cláusula, ambas as cláusulas podendo ser legalmente impostas; é caso de contratos do tipo composto, em que há mais de uma contratação sob o mesmo instrumento. 216 ibid., p. 101: “(...) inexiste, em um primeiro momento, oposição entre atividade econômica e serviço público; pelo contrário, na segunda expressão está subsumida a primeira”. 217 ibid., pp. 103-106. O conceito aqui em uso é o do próprio Eros Grau, no mesmo texto, à p. 110 – englobando empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entes controlados pelo Estado e exploradores de atividade econômica em sentido amplo.
84
ainda assim, seria necessária alguma espécie de seleção, regida pelos princípios
que regem em geral a atividade estatal.218
As fronteiras entre o serviço público e a atividade econômica em sentido
estrito são delimitadas pelas flutuações entre forças sociais e suas relações.
Incluem-se aí os conflitos entre interesses capitalistas e trabalhistas, para não dizer
que há outros.219 O capital pretende reservar para si aquela parcela da atividade
econômica (restringindo-a) que possa ser explorada imediata ou potencialmente,
sendo “objeto de profícua especulação lucrativa”,220 enquanto o trabalho aspira que
se atribua ao Estado a maior amplitude possível de atividade econômica (em sentido
amplo mesmo). Não obstante, serviço público e atividade econômica em sentido
estrito estão sujeitos a regimes jurídicos diferentes (pela Constituição, em seus arts.
173 e 175).221
Mais adiante, o autor distingue entre serviço público privativo e serviço
público não-privativo. O primeiro é privativo do Estado, podendo, porém, ser
desenvolvido por entidade privada em regime de concessão ou permissão, nos
ditames do art. 175 da Constituição Federal.
Já o serviço público não-privativo constitui-se em subespécie da atividade
econômica em sentido estrito, tendo como exemplo a prestação de serviço de saúde
e/ou educação, atividade econômica explorável tanto pelo particular quanto pelo
público. Pelo primeiro, afirma Grau que pode ser explorado independentemente de
permissão, autorização ou concessão.
No dizer de Eros Grau cabe, porém, o exame da Constituição para cada
caso, de modo a determinar se este ou aquele serviço é público ou não, e se é
privativo ou não: “pois é certo que a Constituição encerra todos os elementos e
critérios que permitem identificação de quais atividades empreendidas pelo Estado
consubstanciam serviço público”,222 sendo que, quando não for explícita tal
identificação, tem-se como suposta a partir do texto constitucional (e eis que a lei 218 E com isso é de se crer que em algum momento cair-se-ia em interpretação que levasse à aplicação da Lei 8.666/93 no âmbito federal, enquanto Eros Grau informa que há estados e municípios que possuem sua própria legislação a respeito do tema. 219 Apenas como exemplo, a proteção do meio ambiente. 220 Grau, Eros, A Ordem Econômica (...), p. 108. 221 ibid., p. 109. 222 ibid., p. 124.
85
ordinária para definir serviço público naturalmente tem de se conformar à
Constituição).
Importa, ainda, determinar o interesse local, referido no art. 30 da
Constituição, como predominantemente local, para evitar confusões ao definir o
serviço público prestado em âmbito municipal.
Quanto à intervenção – que para Grau se opera na atividade econômica
em sentido estrito223 – Eros Grau assinala o preceituado no art. 173 da Constituição,
destacando que tal espécie de exploração “só será permitida quando necessária aos
imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme
definidos em lei”.224
Inclui-se nessa concepção a intervenção estatal a modo de monopólio,
coisa constante do art. 177 da Constituição. Há, pois, que se tomar certos cuidados
quanto a identificar, em certas categorias de atividade econômica em sentido amplo,
a presença do serviço público, como adverte Eros Grau com relação aos artigos 173
e 177 da Constituição Federal.
O Estado não precisa de permissão (que é o caso do art. 173 quanto à
exploração de atividade econômica em sentido estrito) para executar serviço público,
pois é seu dever prestá-lo.225
O interesse coletivo não se identifica plenamente com
o interesse social (este último, típico do serviço público).226 Daí Grau explora uma
noção de serviço público: “é atividade ‘indispensável à realização e o
desenvolvimento da interdependência social’”, devendo estar vinculado à coesão e
ao interesse social (no plano da universalidade). 227
Isto posto, distingue o interesse social do interesse coletivo, embora o
interesse público os componha em si.
O conteúdo principiológico da Constituição Brasileira – mormente os arts.
1º., 3º. e 170 – obriga o Estado a zelar, mesmo provendo à sociedade, seja a modo
de serviço público ou a modo de atividade econômica em sentido amplo, tudo que
for tido como indispensável à realização dos objetivos nacionais, à coesão e à
223 ibid., p. 109. 224 Constituição Federal, art. 173, caput. 225 Grau, Eros, A Ordem Econômica (...), p. 127. 226 ibid., pp. 127-128. A respeito do interesse social, afirma Grau: “Este está ligado à coesão social, aferido no plano do Estado, plano da universalidade” (ibid., p. 127). Quanto ao interesse coletivo: “Os interesses coletivos são aferidos no plano da sociedade civil, expressando particularismos, interesses corporativos” (ibid., pp. 127-128).
86
interdependência social. Não obstante, a sociedade também é responsável, como
um todo, pela consecução dos objetivos constitucionais fundamentais, como Eros
Grau expõe, afirmando que, quando a Constituição “refere ‘a República Federativa
do Brasil’, está de fato a mencionar ‘Brasil’, a sociedade brasileira”.228 Observe-se:
Por isso dizemos que o Brasil tem como fundamentos aqueles indicados no art. 1º. e que os objetivos fundamentais do Brasil são os descritos no art. 3º. do texto constitucional. Por isso mesmo cumpre também observarmos que aí, nesses preceitos, opera-se a superação da dissociação entre a esfera política e a esfera social – aí caminham juntos, voltando-se à realização dos mesmos fins, o Estado e a sociedade.
229
A obrigação do Estado, nesse ínterim, decorre de ser um Estado
preconizado como forte e desenvolto, na medida em que for necessário, para que
realize fundamentos e concretize objetivos constitucionais de maneira plena, “a ele
incumbindo a responsabilidade pela provisão, à sociedade, como serviço público, de
todas as parcelas da atividade econômica em sentido amplo que sejam tidas como
indispensáveis à realização e ao desenvolvimento da coesão e da interdependência
social”.230
Cite-se Grau: “o interesse social exige a prestação de serviço público; o
relevante interesse coletivo e o imperativo de segurança nacional, o
empreendimento de atividade econômica em sentido estrito pelo Estado”.231
Neste ponto, Grau se propõe a aprimorar a noção fornecida acima tendo
em vista a Constituição toda, e não seus pedaços.232
É assim que considera o serviço público como historicamente
indispensável em relação à Constituição (a partir de Duguit) ou como atividade
definida constitucionalmente como serviço essencial à sociedade em determinado
momento (a partir de Cirne Lima).233
A coesão e interdependência social presentes na noção de serviço
público colocam em evidência o princípio da continuidade da prestação do serviço
227 Grau, Eros, A Ordem Econômica (...), p. 128. 228 ibid., p. 130. 229 ibid., p. 130. 230 ibid., p. 130-131. 231 ibid., p. 132. 232 ibid., p. 134: “(...) não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços”. 233 ibid., p. 135.
87
público, indo contra a possibilidade de sua interrupção além do que for
regulamentarmente aceitável.234
Prosseguindo no exame das noções, Eros Grau propõe que o serviço
público caracteriza-se pelo privilégio em sua prestação, ao passo em que a atividade
econômica em sentido estrito caracteriza-se pela competição “em clima de livre
concorrência”.235
O “privilégio” envolvido na prestação do serviço público inclui em si o
atrativo para sua exploração em regime de concessão, ou permissão, por parte da
iniciativa privada, e atende à necessidade especial que determina que o serviço
público deve responder ao interesse público, atendendo ao princípio da
continuidade.
No caso do serviço público, o princípio da continuidade impõe; no caso da
atividade econômica de sentido estrito, são o ordenamento jurídico e/ou o princípio
da livre concorrência que impõem.
Isto posto, Grau estabelece a diferença entre a concessão e a delegação
do serviço público. A primeira permite prorrogação de contrato e está submetida a
condições de fiscalização, caducidade e rescisão; a segunda, não. E é o que ocorre
quando a empresa estatal é criada especificamente para fazer a exploração do
serviço público, recebendo delegação para tanto.
Veja-se, ademais, que a empresa concessionária, via de regra, tem por
objetivo o lucro (não fosse assim e dificilmente as empresas privadas teriam
interesse em serem permissionárias ou concessionárias de serviços públicos),
enquanto a empresa delegada visa o interesse público, podendo, por vezes, ser
deficitária em seu balanço financeiro, dependendo de subsídio estatal, coisa que,
não-raro, acontece.
Na delegação está o próprio Estado, mediante descentralização
administrativa, prestando a atividade econômica em sentido amplo; já na concessão
ou na permissão, o interesse privado está em jogo na maioria das ocasiões
(podendo ocorrer tônica específica quando há a concessão por parte de entidades
federativas distintas, p. ex., a União concedendo a exploração da energia elétrica a
234 Sublinhe-se: regulamentarmente (e não regularmente) aceitável. Entende-se, aliás, que a
presença de regulamento obriga a que a este anteceda determinação constitucional ou legal, estrita, que o delimita e autoriza. 235 Grau, A Ordem Econômica (...), p. 139.
88
uma estatal estadual). Não obstante, é de se ter em mente que o regime de licitação
entra em jogo com relação às permissões e concessões.
A partir daí, o autor passa à classificação das modalidades de atuação
estatal na atividade econômica em sentido estrito – isto é, das espécies de
intervenção, em três classes: (a) intervenção por absorção ou participação, (b)
intervenção por direção e (c) intervenção por indução.236
No primeiro caso, o Estado atua como agente econômico direto,
explorando a atividade econômica em sentido estrito em regime de monopólio (caso
de absorção) ou em competição com o setor privado (caso de participação); Eros
Grau chama a isso intervenção no domínio econômico.
No segundo e no terceiro casos, o Estado intervém como regulador,
dirigindo (exercendo pressão sobre a economia, exercendo controle por via de
comandos legais) ou induzindo (estimulando, fomentando, incentivando ou
desencorajando por via de disposições legais) a atividade econômica em sentido
estrito, e Eros Grau chama a isso intervenção sobre o domínio econômico.
IV.3.7. O Estado Intervencionista Segundo Bonavides
No prefácio à 7ª. edição de sua obra,237 Paulo Bonavides brinda o leitor com
considerações que resumem seu esforço – de mais de cinquenta anos – pela
compreensão das necessárias mudanças que levam do Estado Liberal ao Estado
Social, enfatizando a importância fundamental deste último: “O Estado social, nós o
vislumbramos há cinco décadas, e o temos ainda por chave da crise institucional
deste País. (...) Com o Estado social se positivam os direitos fundamentais das
Constituições progressistas e libertárias” (p. 10). Referindo-se ao livro, afirma o
autor: “Vincula-se ele, por inteiro, a um pensamento constitucional de justiça,
liberdade, igualdade, pluralismo e democracia participativa, cultivado e desenvolvido
desde os saudosos dias de sua elaboração como tese de acesso à cátedra”.238
É neste espírito – de que se está no necessário caminho de tratamento das
mazelas que afligem a sociedade brasileira – que se lê esta contribuição do notável 236 ibid., pp. 146-147. 237 Bonavides, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 10ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
89
Professor Paulo Bonavides, que anuncia por onde se embasa o Estado social ainda
no prefácio, afirmando que o Estado social “(...) tem por si a legitimidade da letra
constitucional e não unicamente a legalidade dos códigos ou das regras alteráveis
ad nutum dos legisladores de ocasião, sem mandato popular, sem legitimidade, sem
respeito à soberania”.239
Antes ainda de escrever tais comentários (observando agora seu prefácio à
6ª. edição da obra), afirmou Bonavides que o Estado Social, em sua condição
intervencionista, institui “um regime de garantias concretas e objetivas”,
diferentemente do que ocorre com o “feroz individualismo das teses liberais e
subjetivistas do passado”, sem laços com a paz e a justiça na sociedade.240 Ao
neoliberalismo associa as estratégias do capital na globalização: observando que
esse “capital internacional”241 tem “ação predatória sobre a base econômica dos
países em desenvolvimento, porquanto gira de maneira especulativa, provoca crises,
abala a fazenda pública, desorganiza as finanças internas, derruba bolsas, dissolve
economias, esmaga mercados”.242
Em outras palavras, o próprio autor afirma que o neoliberalismo transforma o
Estado e seus mecanismos em anacronismo; suas “correntes desnacionalizadoras”,
porém, são impotentes para “arrebatar o futuro” e “calar o ânimo” das aspirações
nacionais.243
O autor afirma que o Estado liberal, ao formalmente proteger a liberdade
humana, estabeleceu um Estado policial a serviço da burguesia e falhou em
preencher plenamente os conteúdos materiais da liberdade.
Para Bonavides, porém, justiça e segurança da cidadania “repousam sempre
no binômio liberdade e igualdade”,244 de modo tal que o Estado social, inclinado
irreversivelmente “para formas superiores de convivência e aperfeiçoamento
qualitativo das instituições”,245 consagra em si os valores de um sistema
238 ibid., p. 10. 239 ibid., p. 11. 240 ibid., p. 12. 241 ibid., p. 12. 242 ibid., p. 12. 243 ibid., p. 13. 244 ibid., p. 14. 245 ibid., p. 14.
90
democrático: “expressão participativa a mecanismos tais como a iniciativa, o
plebiscito, o referendo e o veto popular”.246
Liberdade e igualdade caminham no Estado social promovendo-se uma à
outra:
Ontem, a liberdade impetrava o acréscimo da igualdade; hoje, a igualdade impetra o acréscimo da liberdade, acréscimo material, tudo isso com o objetivo de fazer ambas concretas, tanto a liberdade como a igualdade. Tais acréscimos, conjugadamente, preenchem as lacunas dos dois conceitos e colocam a liberdade e a igualdade no patamar da concretude constitucional propriamente dita, que é a concretude normativa a caminho da aplicabilidade imediata, acima portanto da retórica programática dos textos constitucionais que correspondem ao período de um Estado social até ha pouco meramente doutrinário, impalpável e abstrato.
247
A democracia, considerada conceito-chave do Estado social, surge mais
como direito (aliás fundamental) do que como forma de governo: “(...) o mais
fundamental dos direitos da nova ordem normativa que se assenta sobre a
concretude do binômio igualdade-liberdade (...)”.248
E continua, explicando como se organizam (em termos de gerações) tais
direitos fundamentais típicos do Estado social, arrematando-os em sua titularidade,
distribuídos em quatro gerações
(...) numa linha ascendente de desdobramento conjugado e contínuo, que principia com os direitos individuais, chega aos direitos sociais, prossegue com os direitos da fraternidade e alcança, finalmente, o último direito da condição política do homem: o direito à democracia. (...) Com efeito, tomando por base a sua titularidade, os direitos humanos da primeira geração pertencem ao indivíduo, os da segunda ao grupo, os da terceira à comunidade e os da quarta ao gênero humano.
249
Para o autor, a enunciação da democracia como direito fundamental permite
concretizá-la em âmbito internacional, penetrando nas consciências dos povos e dos
cidadãos, para depois “passar ao texto das constituições e à letra dos tratados”.250
O Estado social, enfim, é considerado por Paulo Bonavides como a própria
democracia, que surge primeiro como direito natural e em seguida é positivada na
justiça e na razão humanas.
A atitude mesma do jurista no Estado Social difere substancialmente
daquela do jurista do Estado Liberal: os primeiros são
246 ibid., p. 14. 247 ibid., pp. 14-15. 248 ibid., p. 16. 249 ibid., p. 17.
91
passionais fervorosos da justiça; trazem o princípio da proporcionalidade na consciência, o princípio igualitário no coração e o princípio libertário na alma; querem a Constituição viva, a Constituição aberta, a Constituição real. Às avessas, pois, dos juristas do Estado liberal, cuja preocupação suprema é a norma, a juridicidade, a forma, a pureza do mandamento legal com indiferença aos valores e portanto à legitimidade do ordenamento, do qual, não obstante, são também órgãos interpretativos.
251
De modo tal assim é, para Bonavides, que a hermenêutica de um modelo de
Estado não serve àquela que se liga ao outro; compara os liberais aos
conservadores, e os sociais aos criativos e renovadores.
Chamando o neoliberalismo de “traição nacional”,252 o autor faz discurso
apaixonado defendendo o Estado social e condenando o liberalismo que depreda a
sociedade, transformando as conquistas sociais em miséria e violência
generalizados.
Em um tempo em que ainda existia o Estado socialista de inspiração
marxista, considerou Bonavides o fim do Estado liberal e viu no ocidente um conflito
entre o Estado social, de orientação democrática, opondo-se ao Estado socialista,
“amparado na ideia de conciliação da personalidade com a justiça social”.253
Identificando resumidamente o substrato histórico e filosófico que dá base ao
Estado liberal e, de seus escombros, faz surgir o Estado social, Bonavides coloca a
célebre pergunta de Hamlet no centro da questão que deve conduzir à “maioridade
política, social e econômica”.254
Então avisa das modalidades que distingue do Estado social: a marxista,
com “supressão da infraestrutura capitalista”,255 e a democrática, que conserva as
bases do capitalismo.
Reconhece Bonavides, nas máximas de Jellinek, a consagração da “verdade
mais simples e elementar da ciência política: o dissídio milenar entre o individual e o
social”256 cujo conflito está obviamente (mais ainda, depois dos cinquenta anos da
obra de Bonavides) longe de acabar. 250 ibid., p. 18. 251 ibid., p. 19. 252 ibid., p. 21. 253 ibid., p. 24. 254 ibid., p. 24. 255 ibid., p. 25. 256 ibid., p. 26.
92
Bonavides informa que, do século XVIII ao XX, o mundo passou por duas
transformações revolucionárias que tinham por fim debater dois temas que delineiam
historicamente toda a situação presente, sintetizados nas ideias de liberdade e
igualdade; para o início da segunda metade do século XX, percebe mais duas
revoluções: a da fraternidade e a do estabelecimento do Estado social, que
concretiza constitucionalmente os direitos de liberdade e de igualdade.
Afirma que as duas primeiras revoluções se estabelecem no Primeiro Mundo
e a terceira e a quarta têm como cenário principal o que hoje se conhece como
Segundo e Terceiro Mundos – usando a expressão de Bonavides, “os povos
subdesenvolvidos”.257
Em cada revolução, enxerga a concretização de um modelo de Estado: o
liberal na primeira; o socialista na segunda; o Estado social “das Constituições
programáticas”258 na terceira; e o Estado social dos direitos fundamentais na quarta
– “este, sim, por inteiro capacitado da juridicidade e da concreção dos preceitos e
regras que garantem estes direitos”.259
Situa um momento efetivamente culminante para o jusnaturalismo na história
em tempo de Revolução Francesa, e deriva desta a produção, até hoje, de
“correntes de pensamento que transformam ou tendem a transformar a Sociedade
moderna”.260
Bonavides afirma que, nos alicerces de uma polis que pretende englobar
todo o gênero humano, encontram-se os valores abstratos da liberdade, igualdade e
fraternidade.
Mesmo reconhecidos os precursores da Revolução Francesa na inspiração
inglesa (Magna Carta, Bill of Rights) e americana (como ocorreu no Pacto Federativo
da Filadélfia), é na Declaração Universal dos Direitos do Homem que a fé política se
estabelece ideologicamente, com a universalização da ideia de cidadania.
O povo assim qualificado, titular da nova legitimidade, não somente encarna a vontade dos governados, senão que a transmuta em vontade governante. Sujeito da nova titularidade do poder, entrava ele a operar a grande estratégia libertadora do ente humano ao longo dos tempos vindouros mediante processo centralizador ainda agora em curso e com o qual se familiariza cada geração política.
261
257 ibid., p. 29. 258 ibid., p. 29. 259 ibid., p. 29. 260 ibid., p. 30.
93
Na Revolução Francesa, surge o Estado de Direito, a separação dos
poderes; surgem os códigos da sociedade civil logo a seguir às Declarações de
Direitos. E aí se caracteriza o Estado liberal. Bonavides se propõe a sondar a origem
filosófica desta modalidade de Estado.
Vem a seguir o movimento socialista, com a ditadura do proletariado
oprimindo a liberdade humana, propondo-se a abolir desvios de poder que apenas
faz se propagarem. Se no liberalismo há desvios de poder típicos da ditadura do
capitalismo, há desvios de poder na ditadura do proletariado.
Porém, o Estado social constitui-se em espécie de formulação de origem
diversa do capitalismo e do socialismo, ambos nascidos na guerra. O Estado social
(que não se constitui das extremas direita ou esquerda) “deriva do consenso, das
mutações pacíficas do elemento constitucional da Sociedade, da força desenvolvida
pela reflexão criativa e, enfim, dos efeitos lentos, porém seguros, provenientes da
gradual acomodação dos interesses políticos e sociais, volvidos, de último, ao seu
leito normal”.262
Neste ponto, Bonavides percebe mudanças adaptativas no Estado social:
nascido a princípio para realizar a igualdade, “com o mínimo possível de sacrifício
das franquias liberais”,263
era um Estado social do Estado “e não o Estado social da
Sociedade, aquele que se há teorizado de último, de maneira tão correta, embora
passional. Era também o Estado social das Constituições programáticas, de que já
fizemos menção”.264
O Estado social da Sociedade, “dos direitos fundamentais”, faz-se permear
de esperanças liberais, e procura ademais preparar o advento dos direitos de
terceira geração, “os da fraternidade”.265 Aí liberdade e igualdade não se
contradizem tanto quanto em outrora; aí, segundo o autor, o cidadão vislumbra a
possibilidade de ser “efetivamente livre, igualitário e fraterno”.266 Sua legitimidade
decorre do primado dos direitos fundamentais.
Bonavides cita as duas guerras mundiais como elementos que influenciaram
(por seus resultados) a compatibilização entre os direitos de liberdade e de
261 ibid., p. 31. 262 ibid., p. 32. 263 ibid., p. 33. 264 ibid., p. 33. 265 ibid., p. 33. 266 ibid., p. 33.
94
igualdade, com a tentativa de advento dos direitos de fraternidade:267 já não se trata
de filosofia, mas de normatização positiva do respeito da humanidade a um leque de
direitos fundamentais que é “ponto de partida para a futura Constituição de todos os
povos”.268
O fim do socialismo fez ressurgir o ímpeto liberal através dos movimentos
neoliberais, mormente no “Estado do Terceiro Mundo”,269 onde o Estado tem de
socorrer à economia capitalista, recaindo no “colonialismo da primeira época
industrial – de todos os colonialismos, o mais refratário à emancipação dos
povos”.270
E a solução para isso, na perspectiva de Paulo Bonavides, é justamente o
Estado social calcado nos princípios originalmente delineados pela Revolução
Francesa e seus teóricos: liberdade, igualdade, fraternidade: “os escritores políticos
do século XVIII, quanto tiveram a intuição do Estado social e proclamaram a
legitimidade do poder democrático, estavam já, sem saber, formulando e
decretando, com dois séculos de antecedência, as bases da futura Sociedade aberta
do Terceiro Milênio”.271
Paulo Bonavides reafirma a importância do Estado social como solução para
o conflito identificado desde o início entre indivíduo e sociedade:
Positivado como princípio e regra de um Estado de Direito reconstruído sobre os valores da dignidade da pessoa humana, o Estado social despontou para conciliar de forma duradoura e estável a Sociedade com o Estado, conforme intentamos demonstrar. O Estado social de hoje é, portanto, a chave das democracias do futuro.
272
267 ibid., p. 34. 268 ibid., p. 34. 269 ibid., p. 35. 270 ibid., p. 35. 271 ibid., p. 36. 272 ibid., p. 38.
95
IV.3.7.1. Das Origens do Liberalismo ao Advento do Estado Social
Bonavides estuda inicialmente a liberdade frente ao Estado como elementos
opostos, tendo em conta o Estado burguês de Direito, para o qual, com Kant, é
histórica e racionalmente na Sociedade que o homem desfruta de plena liberdade;
Estado e soberania restringem a liberdade primitiva e contra ela se postam, de modo
que é preciso limitar o Estado a um mínimo, o Estado que resguarda os direitos de
liberdade do homem, o Estado-gendarme, “demissionário de qualquer
responsabilidade na promoção do bem comum”, 273 só aliás alcançado quando os
indivíduos “se entregam à livre e plena expansão de suas energias criadoras, fora de
qualquer estorvo de natureza estatal” – o que reduz a sociedade, pelo liberalismo, à
“poeira atômica de indivíduos”.274
O Estado, assim, é “criação deliberada e consciente da vontade dos
indivíduos que o compõem, consoante as doutrinas do contratualismo social”.275
Como, em teoria, ao monopolizar o poder e deter a soberania o Estado pode se
voltar contra a Sociedade que o cria, é preciso que o jusnaturalismo zele pela
criação de uma técnica da liberdade, que deve limitar o poder do “implacável
Leviatã”.276
Bonavides afirma que o “ordenamento abstrato e metafísico, neutro e
abstencionista de Kant” busca “a uma regra definitiva que consagre, na defesa da
liberdade e do direito, o papel fundamental do Estado” – como “armadura de defesa
e proteção da liberdade”.277
Essa, pois, é a primeira noção do Estado de Direito, filosófica e politicamente
evoluída; tal essência, porém, esgota-se em alheamento e falta de iniciativa social.
O direito natural, nascido na Idade Média, é utilizado pela burguesia para
limitar os poderes da Coroa; esta, tendo por esteio a teoria da monarquia divina, foi
vencida pelo jusnaturalismo.
A concepção burguesa da ordem política coloca o Estado como guardião
das liberdades individuais a partir da Revolução Francesa, entendendo a sociedade
273 ibid., p. 40. 274 ibid., p. 40. 275 ibid., p. 41. 276 ibid., p. 41. 277 ibid., p. 41.
96
como “soma de átomos”.278 A classe antes dominada, agora dominante, formula os
princípios filosóficos sobre os quais opera sua revolução, e depois os generaliza
“como ideais comuns a todos os componentes do corpo social”.279
Porém, ao apoderar-se do controle da Sociedade, a burguesia já não
propugna mais pelos princípios que antes defendia, sustentando-os agora apenas
formalmente, enquanto mantém uma ideologia política de manutenção de classe, o
que representa profunda contradição na dialética do Estado moderno.
O curso das ideias, pois, pede novo leito, na medida em que a doutrina de
uma classe torna-se em doutrina de todas as classes: “da liberdade do Homem
perante o Estado, a saber, da idade do liberalismo, avança-se para a ideia mais
democrática da participação total e indiscriminada desse mesmo Homem na
formação da vontade estatal”.280 Eis, pois, o princípio democrático surgido do
princípio liberal, “rumo ao sufrágio universal”.281
Entretanto, é só no século XIX, e de modo sangrento, que o
constitucionalismo francês estabelece o sufrágio universal, com o estabelecimento
da democracia política.
Explica Bonavides que a formulação mais acabada da técnica de separação
de poderes se deve a Montesquieu, tendo por intuito a proteção dos direitos da
liberdade.282 É assim que os primeiros teóricos do constitucionalismo divisam a
solução para o “problema de limitação da soberania”, preocupação típica do
liberalismo preconizado por Locke, Kant e Montesquieu. Ao decompor os poderes,
salva-se a liberdade.
Montequieu, apoiando-se em Locke e equivocadamente supondo a divisão
dos três poderes na realidade constitucional inglesa, identifica o fato de que ‘o poder
detém o poder’,283 e tal divisão torna-se técnica “acauteladora dos direitos do
indivíduo perante o organismo estatal”,284 sem necessariamente implicar em outra
forma de governo. A separação de poderes é, pois, técnica do liberalismo. 278 ibid., p. 42. 279 ibid., p. 42. 280 ibid., p. 43. 281 ibid., p. 43. 282 ibid., p. 44. 283 ibid., p. 45. 284 ibid., p. 45.
97
Locke, porém, não é plenamente feliz em sua formulação, embora
Bonavides considere praticamente inigualáveis seus argumentos em defesa dos
direitos e liberdades individuais como oponíveis ao poder político.
Em Locke, o poder se limita pelo consentimento, pelo direito natural, pela virtude dos governantes, de maneira mais ou menos utópica. Em Montesquieu, sobretudo pela técnica de sua organização, de forma menos abstrata.
285
Enquanto Locke é otimista, Montesquieu é pessimista. Bonavides mostra
que Locke defende a prerrogativa do monarca, como “o poder de fazer o bem
público, na ausência da lei”.286 Embora afirme que a limitação da prerrogativa pode
ocorrer da parte do povo, a ampla esfera de competência que Locke concede ao
monarca é interpretada por Bonavides como ato típico de absolutismo.287
Montesquieu é radicalmente contra o absolutismo. Sua doutrina
“corresponde a uma distribuição efetiva e prática do poder entre titulares que não se
confundem”.288 Segundo Bonavides, Montesquieu não é condescendente com “as
formas mitigadas de limitação do poder”.289
Segundo Bonavides, “a ideia essencial do liberalismo não é a presença do
elemento popular na formação da vontade estatal, nem tampouco a teoria igualitária
de que todos têm direito igual a essa participação ou que a liberdade é formalmente
esse direito”.290
O autor afirma que a igualdade vem do contratualismo de Rousseau, “de seu
afamado pacto social (...) em que o Homem de sua época acorrentado à torpe
servidão do absolutismo (...) sonha com a idade de ouro que antecedeu a coação
estatal”.291
Para Bonavides, Rousseau não teme o poder, nem o vê como antítese do
direito; reveste o poder de caráter jurídico e transfere-o do soberano ao povo,
integralmente, falhando nisso, pois conserva assim “aberta a porta que conduzia aos
regimes despóticos”.292
285 ibid., p. 47. 286 ibid., p. 49. 287 ibid., p. 48. 288 ibid., p. 49. 289 ibid., p. 49. 290 ibid., p. 50. 291 ibid., p. 50. 292 ibid., p. 51.
98
Não obstante, Montesquieu e Rousseau encontram êxito e são acolhidos
pela teoria constitucional da Revolução.
A “vontade geral” de Rousseau, fundada no consentimento, dá ao contrato a
“transmutação dos direitos naturais em direitos civis”. A burguesia em sua ideologia
revolucionária acolheu e conciliou os princípios formulados por Montesquieu e
Rousseau (respectivamente, pluralismo e monismo); e, vinculando-os, construiu a
“engenhosa teoria do Estado liberal-democrático”.293
No entanto, Bonavides nos informa que “liberalismo e democracia nem
sempre coincidiram e se conciliaram em sua verdade conceitual”294 – e o encontro
entre ambos os princípios é mais contingente que necessário, de modo que o caráter
liberal da democracia é decorrência da oposição entre a filosofia política dos séculos
XVII e XVIII contra o absolutismo.295
Não obstante, nota Bonavides, citando Leibholz, que a democracia não se
aliou a elementos antiliberais ao longo da história. A dissociação entre liberalismo e
democracia decorre do fato de que a democracia se volta para a comunidade,
enquanto que o liberalismo não o faz. Cita ainda Luis Legaz y Lacambra, afirmando
que “a tensão entre os valores de liberdade e igualdade, constitui a essência do
drama político de nossos dias”.296
E prossegue, afirmando que: “Antes, o político (...) tinha ascendência sobre
o econômico (o feudo). Depois, dá-se o inverso: é o econômico (a burguesia, o
industrialismo) que inicialmente controla e dirige o político (a democracia), gerando
uma das mais furiosas contradições do século XIX: a liberal-democracia”.297
Tal equilíbrio se rompeu em seguida, quando a ideia democrática contida na
igualdade preponderou, com a democracia de massas ou “governante” sobre a
“democracia governada” do liberalismo.298
Bonavides considera que, para Vierkandt, a civilização se faz com a tradição
que se transmite, com alguma coisa que antecede, um esforço ou trabalho “a que se
vai ligar”.299
293 ibid., p. 52. 294 ibid., p. 52. 295 ibid., p. 53. 296 ibid., p. 54. 297 ibid., p. 55. 298 ibid., p. 55. 299 ibid., p. 55.
99
Cita Vierkandt, informando que “as necessidades e interesses de uma
classe, nomeadamente da classe privilegiada, determinam em larga escala as
concepções de toda a sociedade acerca dos direitos e deveres, a moral e a baixeza,
e até mesmo, a contragosto das demais classes, o predomínio de umas sobre as
outras, através de meios espirituais e influências psíquicas”300
.
Para Vierkandt (segundo Bonavides), a constituição tem um sentido genérico
como “arte por que se distribui o poder no seio da ordem estatal”;301 na vigência do
Estado autoritário de sua época, já não ocorre a distribuição do poder segundo a
regra originária da filosofia política da democracia liberal, “mas conforme critério
largamente desigual, concentrando-se a autoridade nas mãos do princípio absoluto
ou da classe preponderante”.302
O liberalismo de então (do século XIX para o XX)
“expunha, no domínio econômico, os fracos à sanha dos poderosos. O triste capítulo da primeira fase da Revolução Industrial, de que foi palco o Ocidente, evidencia, com a liberdade do contrato, a desumana espoliação do trabalho, o doloroso emprego de métodos brutais de exploração econômica, a que nem a servidão medieval se poderia, com justiça, equiparar”.
303
As sangrentas catástrofes que avassalaram o mundo no século XX, para
Bonavides, testemunharam o esforço de “fazer surdir a liberdade humana
resguardada em direitos e garantias”.304
Bonavides enxerga em Vierkandt a importância não de uma liberdade de
arbítrio, mas sim a liberdade ética, importando nela o modo como utilizá-la, “o que se
há de fazer com ela”.305 Assim, “seria correto o conceito de liberdade do liberalismo
se os homens fossem dotados de igual capacidade”.306
Porém, a igualdade do liberalismo é apenas formal e encobre muitas
desigualdades de fato, o que faz concluir que a “valorosa” liberdade do liberalismo é
na verdade uma “real liberdade de oprimir os fracos, restando a estes, afinal de
contas, tão-somente a liberdade de morrer de fome”.307
300 ibid., p. 56. 301 ibid., p. 57. 302 ibid., p. 57. 303 ibid., p. 59. 304 ibid., p. 59. 305 ibid., pp. 60-61. 306 ibid., p. 61. 307 ibid., p. 61.
100
E a Primeira Guerra Mundial parece abrir os olhos dos pensadores “da
escola liberal para essa triste e dolorosa verdade”.308
As doutrinas socialistas viam o liberalismo em contraste com a “escravidão
social dos trabalhadores”,309 que “morriam de fome e opressão, ao passo que os
mais respeitáveis tribunais do Ocidente assentavam as bases de toda sua
jurisprudência constitucional na inocência e no lirismo daqueles formosos postulados
de que ‘todos os homens são iguais perante a lei...’”.310
Assim é que Bonavides declara que
Tanto a filosofia política da esquerda como a da direita chegaram a esse resultado comum: a superação da liberdade qual a conceituava outrora o liberalismo, sem a consideração dos fatores econômicos, reconhecidos, hoje, como indispensáveis à prática da verdadeira liberdade humana.
311
A identidade do Direito com a Justiça pressupõe, assim, a recomposição do
liberalismo, temperado com os “ingredientes da socialização moderada”,312 não
apenas na forma, mas também social e economicamente.
IV.3.7.2. O Estado Liberal e a Separação dos Poderes
O art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem, em 1791, dizia que “Toda
sociedade que não assegura a garantia dos direitos nem a separação de poderes
não possui constituição”.313
Bonavides nos informa que esse princípio “já não oferece, em nossos dias, o
fascínio das primeiras idades do constitucionalismo ocidental”,314 tendo representado
seu papel histórico em tempo devido. Para ele, a separação de poderes é técnica
em declínio, tendo importância secundária em vista da necessidade de se colocar “o
social antes do humano”.315
308 ibid., p. 61. 309 ibid., p. 61. 310 ibid., p. 61. 311 ibid., p. 62. 312 ibid., p. 62. 313 ibid., p. 63. 314 ibid., p. 64. 315 ibid., p. 65.
101
O que parece com isto afirmar é que trata-se de “conduzir o aparelho estatal
para uma democracia efetiva, onde os poderes públicos estejam capacitados a
proporcionar ao indivíduo soma cada vez mais ampla de favores concretos”,316
afastando-se da separação clássica entre poderes.
Bonavides nota que a separação de poderes representava, em seu devido
tempo (da Revolução Francesa e circunstâncias históricas circundantes), uma das
bases de grande renovação promovida para sepultar o feudalismo, o corporativismo,
os privilégios absolutistas do rei e as contradições com as liberdades recém-
adquiridas.317
Porém, a burguesia, ao triunfar, tomava todos os poderes, “e se justificava
socialmente como se fora o denominador comum de todas as classes, por cuja
liberdade – uma liberdade que, de modo concreto, só a ela aproveitava em grande
parte – havia terçado armas com o despotismo vencido”.318
A burguesia participava essencialmente na formação da vontade estatal do
novo Estado “liberal-democrático”,319 constituindo sua classe dominante.
O sufrágio, não-universalizado, mantinha a burguesia com seus privilégios; a
burguesia precisava garantir sua liberdade, para não ter embaraçada a livre iniciativa
material e espiritual do indivíduo.
Adota-se a doutrina de Montesquieu,320 de modo que a separação de
poderes limita o Estado e garante o indivíduo, assim se explicando a origem do
princípio de separação de poderes.
Tratava-se, indubitavelmente, da ideia que se afirmaria mais viva e palpitante no normativismo constitucional subsequente à Revolução Francesa.
321
Bonavides afirma que o padecimento com os abusos do absolutismo
justificou a elaboração da separação de poderes como técnica impeditiva à tomada
de controle absoluto do poder estatal.322
“Devemos entendê-la, pois, como arma de que se valeu a doutrina para
combater sistemas tradicionais de opressão política”.323
316 ibid., p. 66. 317 ibid., pp. 66-67. 318 ibid., p. 67. 319 ibid., p. 67. 320 ibid., p. 68. 321 ibid., p. 71.
102
Porém, o Estado social moderno viu os fins do Estado crescerem. O
princípio de Montesquieu era melhor aplicável à limitação do poder do Estado e não
ao seu aumento. Daí a motivação para a mitigação deste princípio, na medida em
que o mundo moderno obriga o mundo estatal à ampliação de seus fins e sua esfera
de responsabilidades.324
No Estado moderno, em termos jurídicos e democráticos, há uma tendência
para algumas espécies de vinculação entre os poderes, com síntese e colaboração
entre os mesmos.
O mecanismo constitucional de nossos dias apresenta algumas formas de
correção da técnica separatista, de modo a desmenti-la parcialmente em relação ao
rigor doutrinário de outrora.
O sistema de freios e contrapesos constitui a primeira correção essencial que se impôs ao referido princípio, como decorrência, até certo ponto empírica, da prática constitucional, bem que não estivesse ausente das reflexões de Montesquieu.
325
Dentre tais freios encontram-se o veto e a mensagem, nas relações entre
Executivo e Legislativo, apenas para exemplificar.
Em vista do entrosamento necessário dos poderes, o arrefecimento da
mecânica anterior de separação, acentuando a solidariedade íntima entre
instituições políticas, sofreu considerações por parte de Jellinek, que afirmou que a
separação entre poderes é apenas política, com uma unidade estatal que é
preservada em termos teoricamente democráticos, opondo-se ao despotismo;
porém, o apoio da soberania sobre a vontade geral do povo demonstrou para
Jellinek (segundo Bonavides) que o senhor do Estado mudou de nome, mas não de
essência. Antes era o rei (com Hobbes); agora, se chama povo, com Rousseau.326
Bonavides cita Jellinek, que afirma que não devemos falar em divisão de
poderes, pois “o ‘poder não se divide subjetivamente, nem mesmo como atividade; o
que se divide é o objeto do poder, ao qual se dirige a atividade estatal’”.327
No exame da evolução da separação entre poderes da Revolução Francesa
até os dias atuais, Bonavides identifica uma tendência do constitucionalismo
322 ibid., p. 72. 323 ibid., p. 72. 324 ibid., p. 73. 325 ibid., p. 75. 326 ibid., p. 77.
103
contemporâneo para “estreitar a colaboração e vinculação dos poderes”. Bonavides
apoia a restrição na separação dos poderes, e propõe que a redução em suas
proporções à atual moldura é coisa adequada às funções que o Estado moderno
assume, ajuntando que a simples presença do princípio da separação dos poderes
nas Constituições presidencialistas não fez o homem mais livre.328
IV.3.7.3. O Pensamento Político de Kant
Em seguida, Bonavides aborda a influência filosófico-política de Immanuel
Kant sobre os sistemas e considerações políticas da atualidade. Nesta esteira,
considera Kant como o maior filósofo da Idade Moderna – e talvez de todos os
tempos.
Importante é a contribuição de Kant para a passagem do estado natural ao
estado civil: o direito, aqui, deixa de ser pretensão, para ser possibilidade concreta,
amparada por um poder externo, inviolável, tutelar, criado em benefício de todos: o
Estado-instituição.329
Estudando os três poderes, Kant considera o Legislativo como
irrepreensível; o Executivo, como irresistível; o Judiciário, como inapelável.330
A ordem estatal constitui um silogismo entre os poderes, colocando o
Legislativo na condição de premissa maior, o Executivo como premissa menor, e o
Judiciário como conclusão.
Kant é considerado por Bonavides, em função de propugnar pela proteção
das liberdades, como um filósofo liberal, de modo algum vinculado à base (posterior)
do pensamento marxista.
Kant é referência de liberdade para o Prof. Bonavides: “Quando a liberdade
estiver em perigo e o Direito abalado em seus últimos alicerces, haverá sempre, na
história das ideias, a imperiosa necessidade de um retorno a Kant. Não para extrair
de suas páginas cópias servis e imprestáveis, ou justificações pueris da exploração
burguesa, senão para nutrir o espírito da riquíssima e fecunda seiva de seu
327 ibid., p. 78. 328 ibid., p. 88. 329 ibid., p. 112. 330 ibid., p. 113.
104
pensamento profundamente humano. Outra, por conseguinte, não poderá ser a
glória e a imortalidade desse grande filósofo”.331
IV.3.7.4. O Pensamento Político de Hegel
Afirma Bonavides:
De Hegel já se disse que a sua filosofia “é idealista, porque faz da Ideia o princípio do mundo; dinâmica, porque define o Universo pelo movimento dialético; antinômica, porque faz da oposição dos contrários o princípio mesmo da vida; humanista, porque não admite outro sujeito pensante senão o Homem”.
332
Para Bonavides, Hegel repete Kant com uma complicação adicional – em
Kant as antinomias estão imóveis, enquanto, para Hegel, surge um movimento
dinâmico que Kant ignorava.
Em Hegel, o movimento ocorrente é uma variação de compromisso entre
Ideia e Natureza, de maneira que Bonavides considera instável.
O sistema de Hegel possui três partes, que são fases do conhecimento – a
Lógica, a Filosofia da Natureza; e a Filosofia do Espírito.
Marx é um dos hegelianos de esquerda que tratam do pensamento
hegeliano, levando o princípio dialético, segundo Bonavides, “às últimas
consequências”,333 levando tais ideias à formulação do pensamento socialista.
Viveu Hegel uma das idades mais conturbadas na história do mundo. Foi contemporâneo da Revolução que acabou com a Idade Média e proclamou os direitos do homem, antes de descer às agruras da desordem, da violência e do terror.
334
Hegel presenciou as guerras napoleônicas e também a revolução liberal da
burguesia orleanista,335 e espelhou em parte seus inscritos nos acontecimentos do
país vizinho ao território alemão em que vivia; sua influência sobre Marx faz com que
este último tome a França como “palco da tragédia política na Idade Moderna”,336
331 ibid., p. 118. 332 ibid., p. 120. 333 ibid., p. 121. 334 ibid., p. 126. 335 ibid., p. 127. 336 ibid., p. 127.
105
afirmando que os sucessos da “vida pública francesa expõem fielmente a história
das ideologias que deram corpo e realidade ao mundo em que vivemos”.337
Bonavides expõe que o momento histórico apresentava o ideário da
Revolução Francesa mitigado por um reacionarismo pós-napoleônico dos
restauradores, “aforçurados em recobrar as posições perdidas no passado e em
destruir indiscriminadamente as ideias novas, como se pudessem obrigar a História
a inopinados recuos”.338
Adepto da monarquia constitucional, é por isso removido Hegel, segundo
Bonavides, do epíteto de “o mais ilustre teorista do absolutismo”.339 Não obstante,
considera o autor que os estudos da corrente neo-hegeliana procuram reforçar a
interpretação usual de que Hegel seria uma espécie de “codificador do
despotismo”.340
Granjeia para si a antipatia dos franceses, que a ele se opõem, como Duguit,
que em seu tratado de Direito Constitucional opõe o Estado-colaboração francês ao
Estado-poder dos alemães.341
O século XVIII encara o Estado como mal necessário, Leviatã, inimigo da
liberdade humana, tolerável apenas porque indispensável à vida social;342 o critério
ético de valoração “residia no indivíduo e não na coletividade”.343
Hegel, ao procurar a conciliação entre indivíduo e coletividade, simpatiza
com o Estado forte, “e não com o Estado abstencionista e neutro”.344
Dessa doutrina surgirá uma esquerda hegeliana que fará, segundo
Bonavides, a “mais violenta retaliação ideológica que o século XIX já fez à doutrina
dos restauradores”.345
Para Bonavides, a crítica de Hegel à separação dos poderes leva à
conclusão de que, paradoxalmente, o filósofo contribui para as ideias liberais:
“reelaborou as bases do princípio da separação de poderes, fundou-o na ideia
organicista de interdependência e, reconciliando a base dos poderes que se
337 ibid., p. 127. 338 ibid., p. 127. 339 ibid., p. 128. 340 ibid., p. 129. 341 ibid., p. 128. 342 ibid., p. 131. 343 ibid., p. 132. 344 ibid., p. 132. 345 ibid., p. 133.
106
excluem com a tese dos poderes que se coordenam, deu, por último, ao poder a
base ética necessária, que o liberalismo extremado do século XVIII lhe solapara”.346
IV.3.7.5. A Liberdade Antiga e a Liberdade Moderna
(Aparentemente, segundo Bonavides) mortos em primeira instância os ideais
liberais, com o fim da Primeira Guerra Mundial, uma tendência antiliberal investe
contra “um moinho de vento”,347 em um “esforço ideológico de preservação da
liberdade humana”.348
Bonavides considera que a democracia, para sobreviver, depende de uma
teoria política que afirme e reconcilie a ideia dos direitos sociais, que faz lícita uma maior intervenção do poder estatal na esfera econômica e cultural, com uma ideia não menos justa do individualismo, que pede a segurança e o reconhecimento de certos direitos fundamentais da personalidade, sem os quais esta se deformaria e definharia, como fonte que se deve sempre conservar de iniciativas úteis, livres e fecundas.
349
Perdura um conflito entre as ideias de liberdade antigas e modernas, em
embate no qual “o que se decide é a sorte de uma concepção de vida, ligada a um
sistema social em crise, que não despreza, contudo, frente aos padecimentos da
enfermidade que o devora, as esperanças de cura radical”.350
Benjamin Constant, constitucionalista francês, proferindo discurso em Paris,
em 1819, produz uma síntese considerada como das maiores e mais bem-
elaboradas por Bonavides, que o cita, evidenciando o contraste de duas
concepções:
“é para cada um o direito de não sujeitar-se senão às leis, de não poder ser preso, detido, condenado à morte, maltratado, sob qualquer pretexto, como decorrência do arbítrio de um ou vários indivíduos. O direito de manifestar opinião, escolher a profissão e exercê-la! Dispor da propriedade e até abusar da mesma; de ir e vir, sem obter permissão e prestar contas de seus atos ou intenções. É, para todos, o direito de reunião, seja para deliberar acerca de interesses pessoais, seja para professar o culto que lhe aprouver, a si a aos seus associados, seja, simplesmente, para preencher, da maneira mais conforme aos respectivos sonhos e pendores, os dias e as horas. É, em suma, o direito que a cada um assiste de influir no governo, já pela nomeação de todos ou de alguns funcionários, já por representações, petições, exigências, que a autoridade é mais ou menos compelida a tomar em consideração. Comparai então a esta liberdade a dos antigos.
346 ibid., p. 138. 347 ibid., p. 139. 348 ibid., p. 139. 349 ibid., p. 140. 350 ibid., p. 140.
107
“Consistia essa em exercer coletiva porém diretamente várias partes de toda a soberania, em deliberar, na praça pública, a respeito da guerra e da paz, em selar com os estrangeiros tratados de aliança, em votar leis, proferir julgamentos, examinar as contas, os atos, a administração dos magistrados, fazê-los comparecer perante o povo inteiro, acusá-los, condená-los ou absolvê-los; mas, ao mesmo tempo que havia isso, que os antigos chamavam de liberdade, admitiam eles, por compatível com essa liberdade coletiva, a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo. Não encontrareis entre eles quase nenhum dos direitos que acabamos de ver como parte da liberdade entre os modernos”.
351
Conclui Bonavides que a liberdade praticada pelo mundo clássico equivale,
na modernidade, ao “cativeiro da personalidade humana”.352
Esse antiindividualismo do Estado-Cidade (índole coletivista das cidades
gregas) se impunha sobre o indivíduo da antiguidade, como nota Burckhardt, citado
por Bonavides:
“Nos tempos modernos, exceto nos programas filosóficos e idealistas, é essencialmente o indivíduo que postula o Estado, da maneira como o necessita. Exige dele, na verdade, apenas segurança, a fim de então poder desembaraçadamente desenvolver as suas forças; para tanto, oferece-lhe com prazer um sacrifício bem medido, conservando-se, porém, tanto mais grato ao Estado, quanto menor for a sua ação ulterior. A Cidade grega, todavia, parte, de antemão, do todo, que existe antes da parte, a saber, antes do lar, do homem individual. Devemos, por determinismo lógico, acrescentar: o todo sobreviverá à parte; não se trata apenas de uma preferência do geral sobre o particular, mas do permanente ao momentâneo e transitório”.
353
Segundo Bonavides, a liberdade em Burckhardt é inexistente quanto à polis
grega: “A propriedade e a vida não ostentam em face do Estado nenhuma
garantia”.354
Bonavides lembra, ainda, o comentário de Miguel Reale a respeito da polis
grega e da urbe romana:
“Quem quer que se empenhe na solução dessa antítese poderosa não poderá contestar a premente necessidade de volver os olhos para as raízes do problema, analisando na polis e na urbe um valor de liberdade que ainda não se ligara, definitiva e irrefragavelmente, à ideia de igualdade; liberdade que muitas vezes não era senão a igualdade mesma no exercício da vida política, sem reflexos diretos e imediatos no plano das garantias da vida privada... “Havia, pois, um tipo especial de liberdade, que só brilhava em sua plenitude quando o cidadão afirmava a sua vontade dentro dos limites da polis, decidindo no tumulto das assembleias: era a liberdade incipiente do homem como momento de uma vivência coletiva, identificada com a liberdade ético-religiosa da polis, semelhante até certo ponto, guardadas as diferenças de civilização, à trágica
351 ibid., pp. 145-146. 352 ibid., p. 146. 353 ibid., p. 148. 354 ibid., p. 149.
108
liberdade do homem-massa, do homem-raça, do homem-nação, ou do homem- classe de nossos dias, ditada pelos imperativos de uma ‘ideologia’ qualquer, que, como um sistema cerrado e intolerante de ideias, acaba dominando os corações e as inteligências, com o sacrifício dos valores supremos da pessoa humana”.
355
Bonavides considera que no antiliberalismo das doutrinas totalitárias ocorreu
uma simpatização com o organicismo “da Antiguidade, numa possível síntese de
elementos colhidos da filosofia política de Nietzsche e Hegel. Outra ideologia de
negação mais áspera da liberdade, como a praticou o liberalismo, surde na doutrina
de Marx, Engels e Lênin”.356
É assim que o socialismo acomete contra o Estado liberal, “com furor
inaudito”.357
A profecia da extinção do capitalismo profetizada pelo Manifesto Comunista,
porém, não se viu cumprir, apesar de Bonavides considerar que a “morte do Estado
liberal é fato que já teve repercussões profundas na estrutura política dos povos
ocidentais”.358
O Estado liberal será substituído na contemporaneidade pelo Estado social,
que Bonavides se propõe a analisar a seguir.
IV.3.7.6. As Bases Ideológicas do Estado social
Bonavides considera que a ação genial de Rousseau no plano das ideias em
seu século só se compara à de Marx em nossos dias.
Rousseau deu à democracia moderna sua teoria pura. Marx emprestou ao socialismo a feição científica de que carecia, libertando-o das velhas utopias, comuns a todos os predecessores. A revolução capitalista tivera em Smith o teórico que a legitimara no campo econômico. Mas em Marx, e somente em Marx, encontrou o seu primeiro e autêntico refutador.
359
É em Rousseau, segundo Bonavides, que existe um meio entre liberalismo e
marxismo, “sobraçando a velha tese dos gregos, bastante remoçada, qual seja, a
355 ibid., pp. 160-161. 356 ibid., p. 164. 357 ibid., p. 164. 358 ibid., p. 164. 359 ibid., p. 165.
109
democracia como ação política, que já não se apresenta fragmentária, mas pertence
a todos, não distingue classes e se integra na volonté générale”.360
Bonavides informa que Rousseau não considera irremediável a antítese
entre liberdade e autoridade, desde que não se ponha a ambos em antagonismo,
sendo possível integrar a liberdade com o poder: seu contratualismo tem por
consequência a ideia de democracia, entregando o poder ao povo, considerado
como seu titular legítimo.361
Ao propor a democracia, a “vontade geral” Rousseauniana “não se
compadece (...) com a índole e a estrutura do capitalismo, quando a
compreendemos em toda a inteireza”.362
Neste sentido, Rousseau se aproxima de Marx; ambos são pessimistas, nota
presente no pensamento dos dois, que examinam a sociedade de maneira
profundamente crítica e negativa, visando sua reforma e reconceituando a liberdade
do Homem.
Considera Bonavides que “o Contrato Social sacode o homem do século
XVIII com a mesma intensidade com que o Manifesto Comunista abala o século
XX”.363
Mas Rousseau não é um só, segundo o Prof. Bonavides; “seu delírio da
vontade popular, como volonté générale, é, evidentemente otimista”.364
E comenta, informando que o Homem de Rousseau não existe particular e
individualmente: é social.
Em Marx o pensamento afasta-se da política para chegar na Economia
Política. Para Marx, citado por Bonavides, a anatomia da sociedade encontra-se na
Economia Política, de modo tal que as formas de Estado e as relações jurídicas, por
si mesmas, não se explicam por si mesmas.365
Bonavides considera que Rousseau e Marx contribuem para o moderno
Estado social, na medida em que, por vias distintas, buscam a sociedade igualitária
360 ibid., p. 166. 361 ibid., pp. 168-169. 362 ibid., p. 169. 363 ibid., p. 169. 364 ibid., p. 171. 365 ibid., p. 173.
110
e criticam as mazelas do Estado liberal – Marx discutindo em detalhe, aliás, as
deformações do sistema capitalista.366
Rousseau, porém, “atende com mais proveito do que Marx à criação de um
Estado social”367 porque formula sua teoria política de modo a “permitir acesso a um
socialismo moderado, por via democrática”.368 Em doutrina, Rousseau constitui, para
Paulo Bonavides, “o ponto de partida para uma compreensão social da liberdade,
revigorada com a sugestão clássica do modelo ateniense”.369
IV.3.7.7. O Estado social e a democracia
O Estado social não é um Estado socialista, nem possui “uma socialização
necessariamente esquerdista, da qual venha a ser o prenúncio, o momento
preparatório, a transição iminente”.370
Para Bonavides, o Estado social, por sua riqueza de matizes, “se
compadece com regimes políticos antagônicos, como sejam a democracia, o
fascismo e o nacional-socialismo (...) e até mesmo (...) com o bolchevismo!”.371
É o Estado social um espaço “em que se busca superar a contradição entre
a igualdade política e a desigualdade social”,372 tornando-se fator de conciliação
entre o trabalho e o capital, mitigando os conflitos sociais.
O Estado social é, por natureza, intervencionista, e “requer sempre a
presença militante do poder político nas esferas sociais, onde cresceu a
dependência do indivíduo, pela impossibilidade em que este se acha, perante
fatores alheios à sua vontade de prover certas necessidade existenciais
humanas”.373
Sob certo aspecto, o Homem de nossos dias deixou de ser tranquilo com a
superpopulação, as guerras e dificuldades econômicas e sociais; com isso, os laços
de dependência em face do Estado acentuam-se, colocando o indivíduo em perigo,
366 ibid., p. 174. 367 ibid., p. 175. 368 ibid., p. 175. 369 ibid., p. 181. 370 ibid., p. 184. 371 ibid., p. 184. 372 ibid., p. 185. 373 ibid., p. 200.
111
tendo o Estado a possibilidade de transformar-se, sob o leme dos governantes
errados, em Estado social de totalitarismo, explorando a dependência básica do
indivíduo.374
Porém, o Estado social se consagra na democracia moderna, por limitar o
Estado e a economia sem eliminar as liberdades, oferecendo garantia tutelar dos
direitos da personalidade, constituindo-se na opção política e doutrinária de Paulo
Bonavides.
IV.3.7.8. A Interpretação das Revoluções
Bonavides oferece reflexões conclusivas, importando destacar alguns
pontos.
Não há Revoluções precoces; elas sempre têm o seu momento infalível, guiadas e decretadas por uma lei fatal, inexorável, suprema, contra a qual se erguem, impotentes para represá-las, os diques da ordem reacionária e as combinações ardilosas da categoria social decadente, abraçada aos símbolos do passado.
375
Nem a Revolução Francesa se legitima pelo terror, nem a Russa pela
ditadura do proletariado burocratizado.376
Conclui o autor, explicando que “criou a Sociedade vocacionadamente
universal de nosso tempo o primado dos direitos humanos fundamentais. Entraram
eles, já, na consciência de todos os povos, por obra daquelas Revoluções, cujo
alcance intentamos medir e interpretar”.377
374 ibid., p. 201. 375 ibid., p. 207. 376 ibid., p. 210. 377 ibid., p. 211.
112
V. SOLIDARIEDADE, ICMS ECOLÓGICO E DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL
V.1. AMOR, DIREITO E SOLIDARIEDADE EM AXEL HONNETH
Em sua obra Luta por Reconhecimento,378 Axel Honneth, Professor da
Universidade de Frankfurt e diretor, desde 2001, do Instituto de Pesquisa Social
sediado na mesma cidade, desenvolve os fundamentos de uma teoria social de teor
normativo partindo do modelo conceitual hegeliano de uma ‘luta por
reconhecimento’.
Tal desenvolvimento é a culminação de um trabalho que começa com
Habermas e que Honneth, que foi Assistente de Habermas, retoma, considerando o
que identificou como uma espécie de falha na teoria habermasiana, especificamente
o modo como a Teoria Crítica percebe o conflito social como parte intrínseca ao
“sistema” e sua lógica instrumental. Assim, para Honneth, a base da interação é o
conflito, e sua gramática, a luta por reconhecimento.
A crítica do autor procura retomar o pensamento do jovem Hegel, que “até
hoje não rendeu efetivamente os devidos frutos”,379 e que deu uma espécie de
“guinada teórica” na espécie de filosofia política antes produzida por Maquiavel e
Hobbes.
A partir de Hegel, segundo Honneth, “aquele processo prático de um conflito
entre os homens passou a ser atribuído a impulsos morais, não aos motivos da
autoconservação; e só porque havia conferido ao processo de ação de luta o
significado específico de um distúrbio e de uma lesão nas relações sociais de
reconhecimento”380 é que Hegel encontrou (no reconhecimento) o “medium central
de um processo de formação ética do espírito humano”.381
A referência que Honneth retoma nos escritos de Hegel encontra-se,
segundo Axel, basicamente no “Sistema de eticidade” desenvolvido por Hegel a
partir de 1802/1803 e no “sistema de filosofia especulativa” de 1803/1804, 378 Honneth, Axel. Luta por Reconhecimento: a Gramática Moral dos Conflitos Sociais. São Paulo:
Editora 34, 2003. 379 ibid., p. 30. 380 ibid., p. 30.
113
considerando que a partir daí “podem ser reconstruídas as premissas de uma teoria
social autônoma”.382
Basicamente, o autor expõe que Hegel encontrou no início do Século XIX
concepções atomísticas procurando explicar a sociedade como algo construído a
partir de indivíduos isolados, de modo tal que a sociedade é uma terceira coisa
explicada como algo estranho a tais indivíduos singularmente considerados, o que
leva a pensar a comunidade como algo constituído de muitos associados; o
pensamento de Hegel diverge de tais concepções no sentido de uma “unidade ética
de todos”, intuição de juventude (segundo Honneth) que faz com que Hegel encontre
na polis um modelo político e institucional, particularmente baseando-se nas
cidades-Estado da antiguidade. 383
Em tais cidades, Hegel considera o modo como os membros da comunidade
se reconhecem a partir de sua convivência pública.384 Sob tal perspectiva, a
comunidade é uma espécie de organismo vivo, cuja ética implica em “liberdade
universal e individual” como fundamento da liberdade individual e não como
resultado da mesma: isto é, como “a possibilidade de uma realização da liberdade
de todos os indivíduos em particular”.385
Hegel, segundo o autor, encontra-se em estreita conexão com a concepção
aristotélica segundo a qual “o povo por natureza é anterior ao indivíduo; pois, se o
indivíduo não é nada de autônomo isoladamente, então ele tem de estar, qual todas
as partes, em uma unidade com o todo”.386
Assim, o convívio intersubjetivo aparece como algo que precede o indivíduo,
havendo pois uma espécie de “contrato social originário”387 que dará origem à
organização social que pressupõe a “relação de totalidade ética”. Não é tanto, aliás,
uma questão de gênese, mas sim de “transformação e ampliação das formas
primevas de comunidade social em relações mais abrangentes de interação
social”.388
381 ibid., p. 30. 382 ibid., p. 30, e também mesma página, nota 6. 383 ibid., pp. 38-40. 384 ibid., p. 40. 385 ibid., p. 41. 386 ibid., p. 42-43, com supressão das reticências e colchetes do original. 387 ibid., p. 43. 388 ibid., p. 44.
114
É, porém, ao reinterpretar a doutrina do reconhecimento de Fichte que Hegel
encontrará a explicação para um processo essencial à intersubjetividade, que resulta
tanto em
crescimento dos vínculos de comunidade quanto de aumento da liberdade individual; pois só quando o curso histórico-universal do “vir-a-ser da eticidade” é concebido como um entrelaçamento de socialização e individualização pode-se aceitar que seu resultado seria também uma forma de sociedade que encontraria sua coesão orgânica no reconhecimento intersubjetivo da particularidade de todos os indivíduos.
389
Honneth destaca que Hegel descreve o surgimento da individualidade
através do reconhecimento recíproco das pessoas como seres que amam e carecem
de amor, e que o reconhecimento de tais sentimentos que incluem dependência
relativamente aos bens da vida dirige-se à formação de uma independência do
sujeito em termos de formação de uma identidade;390 a essa etapa segue-se uma
segunda, que considera “as relações de troca entre proprietários reguladas por
contrato”:391
O caminho que conduz à nova relação social é descrito como um processo de universalização jurídica: as relações práticas que os sujeitos já mantinham com o mundo na primeira etapa são arrancadas de suas condições de validade meramente particulares e transformadas em pretensões de direito universais, contratualmente garantidas. Doravante os sujeitos se reconhecem reciprocamente como portadores de pretensões legítimas à posse e desse modo se constituem como proprietários; na troca, eles se relacionam como “pessoas”, às quais cabe o direito “formal” de poder reagir com sim ou não a todas as transações ofertadas. Nesse sentido, o que aqui encontra reconhecimento no indivíduo particular, sob a forma de um título jurídico, é a liberdade negativamente determinada, “o oposto de si mesmo em relação a uma determinação de ser”.
392
Esse caminho, porém, não está isento de conflito: é pavimentado de
relações conflituosas, como evidencia Honneth.
Os diversos atos de destruição ocorrentes no ínterim de tais lutas são
chamados por Hegel de “crime”.393 Explica Honneth o que Hegel considera como
crime:
(...) ali ele entendera o ato de crime como uma ação que está ligada ao pressuposto social das relações jurídicas, na medida em que ela resulta justamente da indeterminidade da liberdade meramente jurídica do indivíduo: em uma ação criminosa os sujeitos fazem um uso destrutivo do fato de, como portadores de direitos de liberdade, não estarem incluídos no convívio social senão negativamente.
394
389 ibid., p. 45. 390 ibid., p. 49. 391 ibid., p. 50. 392 ibid., p. 50. 393 ibid., p. 51.
115
Aparentemente, tal “crime” é devido ao não-reconhecimento:
Se essas formulações são concentradas e relacionadas com a antiga concepção, resulta daí a suposição de que Hegel atribui a origem de um crime ao fato de um reconhecimento ter sido incompleto: nesse caso, o motivo interno do criminoso é constituído pela experiência de não se ver reconhecido de uma maneira satisfatória na etapa estabelecida de reconhecimento mútuo.
395
A terceira etapa da liberdade negativa é, segundo se depreende de Honneth
em sua leitura de Hegel, a luta por honra.396 Aqui a questão não é defender um
direito lesado, mas a personalidade inteira: “honra”, neste caso, e “a postura que
adoto em relação a mim mesmo quando me identifico positivamente com todas as
minhas qualidades e peculiaridades”.397
Há uma espécie de aprendizado de conteúdo prático e moral em tais
conflitos, uma vez que dos mesmos deve emergir “relações de reconhecimento
eticamente mais maduras, sob cujo pressuposto se pode desenvolver então uma
‘comunidade de cidadãos livres’ efetiva”,398 havendo concomitantemente, para cada
um, aumento de saber “sobre sua própria e inconfundível identidade”.399
A partir dessas lutas individuais os seres, enfim integrando-se como
membros de um todo, hão de assumir confrontos entre comunidades sociais.400
Aqui, segundo nossa leitura, parece haver o argumento de que é
precisamente dessa espécie de “guerra civil” que surge um movimento civilizatório
de qualidade superior:
(...) pois, ferindo as pessoas primeiramente em seu direito e depois em sua honra, o criminoso faz da dependência da identidade particular de cada indivíduo em relação à comunidade o objeto de um saber universal. Nesse sentido, somente aqueles conflitos sociais nos quais a eticidade natural se despedaça permitem desenvolver nos sujeitos a disposição de reconhecer-se mutuamente como pessoas dependentes umas das outras e, ao mesmo tempo, integralmente individuadas. 401
O reconhecimento que ocorre não é puramente cognitivo, mas possui
também uma qualidade afetiva, que inclui a categoria da solidariedade entre os
394 ibid., p. 52. 395 ibid., pp. 52-53. 396 ibid., p. 55. 397 ibid., p. 55. 398 ibid., pp. 56-57. 399 ibid., p. 57. 400 ibid., p. 57. 401 ibid., p. 58.
116
indivíduos, através da qual os mesmos podem se comunicar dentro do quadro de
uma comunidade ética.402
Tal espécie de formulação, em seguida, encontrará em Hegel uma mudança
de enfoque, tendo agora por objeto uma filosofia da consciência.
A “constituição de uma coletividade política como um processo de
desdobramento conflituoso de estruturas elementares de uma eticidade originária e
‘natural’”403 passa a ser entendida “como um processo de formação do espírito; esse
processo se efetua através da série de mediações próprias dos meios linguagem,
instrumento e bem familiar”404 através dos quais a consciência passa a perceber-se.
Neste caso, a realização do indivíduo se dá quando o outro, reconhecendo-o, entra
em conflito com ele.405
Em suma, o jovem Hegel tinha um projeto
(...) quase materialista: reconstruir o processo de formação ética do gênero humano como um processo em que, passando pelas etapas de um conflito, se realiza um potencial moral inscrito estruturalmente nas relações comunicativas entre os sujeitos.
406
Com tal obra, Hegel coloca em marcha um processo que em Feuerbach,
Marx e Kierkegaard culminará com uma crítica do idealismo da razão que não mais
será detido.407
Para fazer então sua leitura dos trabalhos do jovem Hegel – em vista da
atualidade histórica que procura impedir uma “recaída” a uma postura metafísica –
Honneth coloca três necessidades: (1) a de uma psicologia social empiricamente
sustentada (que Honneth encontra em George Herbert Mead;408 (2) de uma
“fenomenologia empiricamente controlada de formas de reconhecimento, mediante a
qual a proposta de Hegel pode ser examinada e, se for o caso, corrigida”;409 (3) a
consideração histórica do desenvolvimento da teoria hegeliana, pois “(...) só a virada
histórico-materialista de seus sucessores pôde-lhe conferir um lugar na realidade
social”.410
402 ibid., pp. 57-58. 403 ibid., p. 63. 404 ibid., p. 63. 405 ibid., pp. 63-64. 406 ibid., p. 117. 407 ibid., p. 118. 408 ibid., p. 123. 409 ibid., p. 121. 410 ibid., p. 122.
117
A perspectiva de Mead interessa a Honneth porque se encontra muito em
consonância com a perspectiva de luta por reconhecimento de Hegel:
(...) a psicologia obtém um acesso ao seu domínio objetual desde a perspectiva de um ator que se conscientiza de sua subjetividade porque ele, sob a pressão de um problema prático a ser solucionado, é forçado a reelaborar criativamente suas interpretações da situação (...).
411
Ocorre aí uma espécie de conflito cuja solução exige considerações sobre a
interação entre os vários organismos implicados na situação social: “o
comportamento social bem-sucedido (...) leva a um domínio em que a consciência
de suas próprias atitudes auxilia no controle do comportamento de outros”.412
O processo de conscientização exige, para Mead (segundo Honneth), um
objeto social de reflexão, o “Me”,413 a que se referem as experiências subjetivas. O
“eu” sob esse aspecto está representado por algo diferente do “me” (mim), de tal
modo que o primeiro não é percebido como objeto de estudo, mas como sujeito
atuante, enquanto o segundo tem relação com a “imagem que o outro tem de mim”,
fornecendo à relação entre “eu” e “mim” possibilidade análoga à do diálogo.414
A relação com o “me” ou vários “me”(s) não é apenas da espécie de uma
interação cognitiva, mas também possui uma qualidade de experiência normativa no
sentido da formação de um juízo moral que representa a solução intersubjetiva de
conflitos.415
Ao aprender a generalizar em si mesmo as expectativas normativas de um número cada vez maior de parceiros de interação, a ponto de chegar à representação das normas sociais de ação, o sujeito adquire a capacidade abstrata de poder participar nas interações normativamente reguladas de seu meio; pois aquelas normas interiorizadas lhe dizem quais são as expectativas que pode dirigir legitimamente {a} todos os outros, assim como quais são as obrigações que ele tem de cumprir justificadamente em relação a eles. 416
Do conflito entre “eu” e “me”, nas inúmeras ocorrências da exigências de
caráter moral que surgem no processo de vida social, “surge para Mead o
movimento que constitui o processo de evolução social”,417 pois
411 ibid., p. 126. 412 ibid., p. 128. 413 Em inglês, “mim”. 414 ibid., p. 130. 415 ibid., p. 133. 416 ibid., p. 135. A preposição entre chaves foi incluída por clareza, pois não se encontra no texto e é um tanto difícil dar significado à frase sem considerar que talvez, por erro de tradução ou mesmo de tipografia, se tenha omitido tal preposição na construção da frase. 417 ibid., p. 143.
118
(...) os sujeitos não podem outra coisa senão se assegurar reiteradamente, na defesa de suas pretensões espontaneamente vivenciadas, do assentimento de uma coletividade contrafaticamente suposta, que lhes faculta, comparada à relação de reconhecimento estabelecida, um maior número de direitos à liberdade. (...) “Essa é a maneira pela qual a sociedade continua a se desenvolver, a saber: por uma influência recíproca, como a que se efetua ali onde uma pessoa pensa algo até o fim. Mudamos constantemente, em alguns aspectos, nosso sistema social, e podemos fazê-lo com inteligência, porque podemos pensar”.
418
Há uma classe independente de pretensões do “eu” que agrupadas
constituem o que para Mead chama-se “autorrealização”. Ela constitui uma “espécie
particular de reconhecimento”,419 pois ocorre na relação com os outros, tendo de ser
por eles reconhecida.
Por autorrealização Mead entende o processo em que um sujeito desenvolve capacidades e propriedades de cujo valor para o meio social ele pode se convencer com base nas reações de reconhecimento de seu parceiro de interação.
420
A ideia de autorrealização de Mead carrega em si uma ideia de
“superioridade” que se constitui no “cumprimento de funções definidas”,421 como no
caso de um bom cirurgião ou um bom advogado.
A solução que Mead tem em vista é a de um vinculo entre a autorrealização e a experiência do trabalho socialmente útil: a medida de reconhecimento demonstrada a um sujeito, que cumpre “bem” a função atribuída a ele no quadro da divisão social do trabalho, basta para lhe proporcionar uma consciência de sua particularidade individual.
422
No lugar em que as concepções partilhadas do que é bom e útil (tratado
genericamente como “vida boa” por Honneth),423 coisa tratada por Mead através da
concepção de autorrealização reconhecida por todos como o que é bom ética e
moralmente, encontra-se a “solidariedade” de Hegel.424
(...) por si mesma, ela se apresenta como uma síntese dos dois modos precedentes de reconhecimento, porque ela partilha com o “direito” o ponto de vista cognitivo do tratamento igual universal, mas com o “amor”, o aspecto do vínculo emotivo e da assistência. 425
Tais elementos são, pois, padrões de reconhecimento intersubjetivo: amor,
direito e solidariedade. 418 ibid., p. 143. 419 ibid., p. 147. 420 ibid., pp. 147-148. 421 ibid., p. 150. 422 ibid., p. 150. 423 ibid., p. 151. 424 ibid., p. 153. 425 ibid., p. 153.
119
A partir de então Honneth descreve uma forma de desenvolvimento da
personalidade na psicanálise de Winnicott, em que a mãe aparece como modelo a
partir do qual a criança desenvolverá mais tarde suas relações com outros objetos
sociais; daí, o modo como se desenvolve a relação amorosa significa uma espécie
de relação particular de reconhecimento recíproco, e um padrão para posteriormente
perceber e atuar socialmente.426
Toda relação amorosa, seja aquela entre pais e filho, a amizade ou o contato íntimo, está ligada, por isso, à condição de simpatia e atração, o que não está à disposição do indivíduo; como os sentimentos positivos para com outros seres humanos são sensações involuntárias, ela não se aplica indiferentemente a um número maior de parceiros de interação, para além do círculo social das relações primárias. Contudo, embora seja inerente ao amor um elemento necessário de particularismo moral, Hegel faz bem em supor nele o cerne estrutural de toda eticidade: só aquela ligação simbioticamente alimentada, que surge da delimitação reciprocamente querida, cria a medida de autoconfiança individual, que é a base indispensável para a participação autônoma na vida pública. Da forma de reconhecimento do amor, como a apresentamos aqui com o auxílio da teoria das relações de objeto, distingue-se então a relação jurídica em quase todos os aspectos decisivos; ambas as esferas de interação só podem ser concebidas como dois tipos de um e mesmo padrão de socialização porque sua lógica respectiva não se explica adequadamente sem o recurso ao mesmo mecanismo de reconhecimento recíproco. Para o direito, Hegel e Mead perceberam uma semelhante relação na circunstância de que só podemos chegar a uma compreensão de nós mesmos como portadores de direitos quando possuímos, inversamente, um saber sobre quais obrigações temos de observar em face do respectivo outro: apenas da perspectiva normativa de um “outro generalizado”, que já nos ensina a reconhecer os outros membros da coletividade como portadores de direitos, nós podemos nos entender também como pessoa de direito, no sentido de que podemos estar seguros do cumprimento social de algumas de nossas pretensões.
427
Tratando ainda da questão do respeito, Honneth distingue da
autorrealização outro elemento ao qual chama “autoestima”, identificando duas
categorias de respeito – um atribuído ao reconhecimento jurídico, e outro à estima
social.428
Para tanto Honneth refere-se a Ihering:
no “reconhecimento jurídico”, como ele também já diz em seu texto, se expressa que todo ser humano deve ser considerado, sem distinção, um “fim em si”, ao passo que o “respeito social” salienta o “valor” de um indivíduo, na medida em que este se mede intersubjetivamente pelos critérios da relevância social.
429
A diferença entre um e outro importa em ver que em um a pessoa é
reconhecida por suas propriedades universalmente aceitas como tal (comuns a
426 ibid., pp. 159- 176. 427 ibid., pp. 178-179. 428 ibid., pp. 185-186. 429 ibid., p. 184.
120
todos), enquanto em outro há avaliação “gradual de propriedades e capacidades
concretas”.430
Do reconhecimento da pessoa enquanto tal se distingue então a estima por um ser humano, porque está em jogo nela não a aplicação empírica de normas gerais, intuitivamente sabidas, mas sim a avaliação gradual de propriedades e capacidades concretas; daí ela pressupor sempre, como Darwall afirma em concordância com Ihering, um sistema referencial valorativo que informa sobre o valor de tais traços de personalidade, numa escala de mais ou menos, de melhor ou pior.
431
Axel Honneth sublinha que é “(...) central para o reconhecimento jurídico a
questão de como se determina aquela propriedade constitutiva das pessoas como
tais, enquanto para a estima social se coloca a questão de como se constitui o
sistema referencial valorativo no interior do qual se pode medir o ‘valor’ das
propriedades características”.432
Aí surge inclusive a importância da luta por reconhecimento para a
compreensão de uma noção de justiça, pois a questão de
(...) qual propriedade universal deve ser protegida nos sujeitos juridicamente capazes se define pela nova forma de legitimação a que está ligado o direito moderno segundo sua estrutura: se uma ordem jurídica pode se considerar justificada e, por conseguinte, contar com a disposição individual para a obediência somente na medida em que ela é capaz de reportar-se, em princípio, ao assentimento livre de todos os indivíduos inclusos nela, então é preciso supor nesses sujeitos de direito a capacidade de decidir racionalmente, com autonomia individual, sobre questões morais; sem uma semelhante atribuição, não seria absolutamente imaginável como os sujeitos devem ter podido alguma vez acordar reciprocamente acerca de uma ordem jurídica. Nesse sentido, toda comunidade jurídica moderna, unicamente porque sua legitimidade se torna dependente da ideia de um acordo racional entre indivíduos em pé de igualdade, está fundada na assunção da imputabilidade moral de todos os seus membros.
433
Mais adiante,
A ampliação cumulativa de pretensões jurídicas individuais, com a qual temos de lidar em sociedades modernas, pode ser entendida como um processo em que a extensão das propriedades universais de uma pessoa moralmente imputável foi aumentando passo a passo, visto que, sob a pressão de uma luta por reconhecimento, devem ser sempre adicionados novos pressupostos para a participação na formação racional da vontade; já havíamos deparado com uma tese de teor análogo quando encontramos a consideração especulativa de Hegel segundo a qual o criminoso força a ordem jurídica burguesa a uma ampliação das normas jurídicas, incorporando a dimensão da igualdade material de chances. Na ciência do direito, tornou-se natural nesse meio-tempo efetuar uma distinção dos direitos subjetivos em direitos liberais de liberdade, direitos políticos de participação e direitos
430 ibid., p. 186. 431 ibid., p. 187. 432 ibid., p. 187. 433 ibid., p. 188.
121
sociais de bem-estar; a primeira categoria refere-se aos direitos negativos que protegem a pessoa de intervenções desautorizadas do Estado, com vista à sua liberdade, sua vida e sua propriedade; a segunda categoria, aos direitos positivos que lhe cabem com vista à participação em processos de formação pública da vontade; e a terceira categoria, finalmente, àqueles direitos igualmente positivos que a fazem ter parte, de modo equitativo, na distribuição de bens básicos. 434
No contexto dos direitos fundamentais, Honneth cita Jellinek e Alexy,
discutindo o status negativo, o status positivo e o status ativo da pessoa de direito.435
A partir das considerações traçadas, Honneth chega a um terceiro elemento
característico das posições em que uma pessoa reconhece a si mesma, o
autorrespeito,436 segundo o qual “um sujeito é capaz de se considerar, na
experiência do reconhecimento jurídico, como uma pessoa que partilha com todos
os outros membros de sua coletividade as propriedades que capacitam para a
participação numa formação discursiva da vontade”,437
podendo referir-se
positivamente a si mesmo desse modo. Assinala Honneth, ainda, que o
autorrespeito, em geral, só é percebido em sua forma negativa – isto é, quando se
sofre com sua falta, devendo-se inferir o autorrespeito faticamente, a partir de
comparações empíricas entre grupos de pessoas, obtendo-se daí a experiência do
desrespeito.
A exposição a respeito das relações sociais de reconhecimento é resumida
por Honneth em um quadro de sua obra, onde encontramos três modos de
reconhecimento padrão: o amor (dedicação emotiva), o reconhecimento jurídico
(respeito cognitivo) e a solidariedade (estima social).438
Em seguida, Honneth discorre a respeito de identidade pessoal e as formas
de desrespeito nas mesmas três esferas de reconhecimento: na da dedicação
emotiva, considera a violação; na do respeito cognitivo, considera a privação de
direitos; na da estima social, observa a degradação.439
Na terceira parte de seu livro, Honneth aborda a filosofia social, tratando de
expor “indicadores históricos e empíricos que de modo geral fazem parecer plausível
falar, com vista aos processos de transformação histórica, do papel de dinamizador
434 ibid., p. 189. 435 ibid., p. 189. 436 ibid., p. 197. 437 ibid., p. 197. 438 ibid., p. 211. 439 ibid., pp. 213-224.
122
atribuído a uma ‘luta por reconhecimento’”;440 para tanto, Honneth procura falar a
respeito da “lógica moral de lutas sociais, de sorte que não pareça mais inteiramente
despropositado do ponto de vista empírico supor aí a verdadeira fonte motivacional
de um progresso social”.441
Estudando Marx, Sorel e Sartre, aborda suas obras do ponto de vista que as
mesmas possuem a respeito da formação e dinâmica social; e considera que os três
“detiveram-se igualmente, num nível pré-científico, à experiência de que a
autocompreensão dos movimentos sociais de sua época estava atravessada
fortemente pelo potencial semântico do vocabulário conceitual do
reconhecimento”.442 Menciona a sociologia de Durkheim e Weber, para expor o fato
de que nem um nem outro, apesar das evidências, expuseram o substrato moral
inerente às lutas sociais.443
Assim, Honneth propõe que, a partir de Hegel e Mead, é possível encontrar
historicamente “o nexo afirmado entre desrespeito moral e luta social”.444
(...) são três as formas de reconhecimento do amor, do direito e da estima que criam primeiramente, tomadas em conjunto, as condições sociais sob as quais os sujeitos humanos podem chegar a uma atitude positiva para com eles mesmos; pois só graças à aquisição cumulativa de autoconfiança, autorespeito e autoestima, como garante sucessivamente a experiência das três formas de reconhecimento, uma pessoa é capaz de se conceber de modo irrestrito como um ser autônomo e individuado e de se identificar com seus objetivos e seus desejos. Ora, essa tripartição se deve a uma retroprojeção teórica de diferenciações que só puderam ser obtidas em sociedades modernas sobre um estado inicial aceito hipoteticamente; pois em nossa análise vimos que a relação jurídica só pôde se desligar do quadro ético da estima social no momento em que é submetida às pretensões de uma moral pós-convencional. Nesse sentido, é natural adotar para a situação inicial do processo de formação a ser descrito uma forma de interação social em que aqueles três padrões de reconhecimento ainda estavam entrelaçados uns nos outros de maneira indistinta; a favor disso pode depor a existência de uma moral arcaica e interna de grupo, no interior da qual os aspectos da assistência não estavam separados completamente nem dos direitos de membro da tribo nem de sua estima social. Por isso, o processo de aprendizado moral, que o quadro interpretativo em vista deve expor como modelo, teve de render duas realizações inteiramente distintas de uma vez só: provocar uma diferenciação dos diversos padrões de reconhecimento e, ao mesmo tempo, dentro das esferas de interação assim criadas, liberar o respectivo potencial internamente inscrito. Se nós distinguimos nesse sentido entre o estabelecimento de novos níveis de reconhecimento e o destacamento de suas estruturas intrínsecas, não é difícil reconhecer que somente o segundo processo se pode atribuir diretamente ao impulso das lutas sociais.
445
440 ibid., p. 228. 441 ibid., p. 228. 442 ibid., p. 253. 443 ibid., p. 254. 444 ibid., p. 256. 445 ibid., pp. 266-267.
123
Honneth conclui em seu estudo que “o reconhecimento jurídico contém em si
um potencial moral capaz de ser desdobrado através de lutas sociais, na direção de
um aumento tanto de universalidade quanto de sensibilidade para o contexto”.446
Os pressupostos jurídicos da autorrealização representam uma grandeza suscetível de desenvolvimento, visto que podem ser aperfeiçoados na direção de uma consideração maior da condição particular do indivíduo, sem perder seu conteúdo universalista; por esse motivo, a relação jurídica moderna só pode entrar na rede intersubjetiva de uma eticidade pós-tradicional, como um segundo elemento, quando pensada de maneira mais ampla, incorporando esses componentes materiais.
447
O direito, deste modo, limita tanto a relação de amor quanto as condições de
exercício da solidariedade: ao passo em que protege o indivíduo, realimenta o
reconhecimento jurídico e estabelece posições morais e sociais, de modo que “a
questão sobre em que medida a solidariedade tem de entrar no contexto das
condições de uma eticidade pós-tradicional não pode ser explicada sem uma
referência aos princípios jurídicos”.448
V.2. COMPROMETIMENTO, COMUNIDADE E DESENVOLVIMENTO SOCIAL A
PARTIR DE RAINER FORST
Rainer Forst se dispõe a examinar a “possibilidade de um
conceito de justiça política e social fundamentado moralmente, que evita tanto a
objeção da cegueira frente ao contexto como também a objeção de um
contextualismo que desconhece o núcleo universalista da reivindicação por
justiça”,449 partindo de um diferenciação dos contextos em que a justiça é
conceituada ou situada.
Forst estabelece o prisma sob o qual pretende examinar os
“contextos” em que se delimita a noção de justiça, remetendo “(a) ao problema
central tratado por uma teoria da justiça; (b) ao tipo de abordagem escolhido para
esse problema; e (c) a uma proposta de solução conceitual”.450 Explica, na
446 ibid., p. 277. 447 ibid., p. 277. 448 ibid., p. 278. 449 Forst, Rainer. Contextos da Justiça. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010, p. 8. 450 ibid., p. 9.
124
sequência, que seu estudo se dirige a um exame do debate complexo que se trava
entre concepções universalistas e contextualistas da justiça; notando que “é
injustificado supor que há homogeneidade em ambos os lados, como também é
equivocada a ideia de que os argumentos liberais e comunitaristas são, em princípio,
irreconciliáveis entre si”.451
Ressalta que para a perspectiva comunitarista os princípios de
justiça “resultam de um dado contexto comunitário”,452 valendo somente nele e
somente ali podendo ser realizados, enquanto que, para uma perspectiva de um
liberalismo social, ocorre uma espécie de censura à teoria comunitarista
“caracterizando-a como obcecada pelo contexto”.453
Para sua investigação, considera Forst, como central, uma
investigação de quatro planos conceituais que situam contextos de problemas
teóricos a respeito da justiça,454 e identifica tais planos por capítulos: primeiro,
criticando a concepção de pessoa; segundo, analisando a perspectiva de prioridade
dos direitos individuais frente ao bem comunitário, concepção presente nas ideias
liberais; terceiro, expondo a “força insuficientemente ‘ética’ e integradora das
concepções liberais da comunidade política”;455 e quarto, criticando as teorias
universalistas da moral.
Assim, Rainer Forst propõe basicamente que uma teoria da
justiça não pode prescindir do exame dos contextos teóricos de pessoa, direito,
política e moral: “os planos distinguidos por esse modo de abordar o debate
possibilitam não apenas uma análise clara dos problemas nele envolvidos, como,
tomados em conjunto, constituem – e aqui reside o que há de específico na
controvérsia – o âmbito no qual uma teoria da justiça tem de se confirmar”,456 de
modo tal que “a estrutura básica da sociedade pode ser considerada justa (ou
justificada) à medida que é ‘justa’ para as pessoas em todas essas dimensões”,457
451 ibid., p. 10. 452 ibid., p. 11. 453 ibid., p. 11. 454 ibid., p. 12. 455 ibid., p. 12. 456 ibid., p. 12. 457 ibid., p. 13.
125
podendo-se considerar como “justa a sociedade que, de maneira apropriada, unifica
esses contextos”.458
V.2.1. Constituição do Eu
No primeiro capítulo, Forst toma passo na análise da “constituição
do eu”, procurando criticar o contexto ético em que se define a pessoa tanto no
liberalismo quanto no comunitarismo, identificando o que há de próprio, o que há de
impróprio, o que há de conciliável entre ambas as posições; para isso, analisa
inicialmente Rawls (e Dworkin) e Kant numa perspectiva liberal-deontológica e
contrapondo-lhes Sandel como comunitarista, Nozick como “libertário”459
e
pontuando Taylor e MacIntyre (também como comunitaristas).460
Citando Forst,
A discussão poderia ser resumida assim: enquanto Rawls procura avaliar as pretensões dos indivíduos diante da sociedade segundo princípios de justiça aos quais todos poderiam dar seu assentimento a partir de um ponto de vista equitativo, Nozick absolutiza as pretensões
458 ibid., p. 14. 459 ibid., p. 11. 460 De se notar, aqui, um ponto a respeito da tradução efetuada por Denilson Luís Werle a respeito dessa obra: peca o tradutor por não oferecer uma diferença (que parece fundamental) entre “self” (inglês) e “selbst” (alemão) e “I” e “Ich” (respectivamente, inglês e alemão). Pois, para a maioria das teorias da personalidade típicas de grande gama da teorias em Psicologia, self e selbst não são diretamente idênticos a I e Ich, ou seja, há uma diferença entre o que é tido em português como si- mesmo e o que é visto como eu ou ego na língua portuguesa. Na medida em que o tradutor não fez essa discriminação, reduziu a chance de compreender as sutis diferenças que existem entre uma referência à personalidade como um todo (si-mesmo) e uma referência apenas parcial à personalidade (eu, ego), restringindo o que tornaria o debate mais rico, mais profundo e menos complicado. Não obstante, e tendo em mente um conhecimento (quando muito) bastante parco da língua alemã, assinala-se desta parte que talvez essa crítica seja quase imperceptível para o filósofo que não se aprofundou nas teorias psicológicas sobre a formação da personalidade (psíquica) e deixou para uma perspectiva menos profunda a questão de diferenciar entre as noções de eu e si- mesmo; mas importa que se note que, nessa perspectiva, tal distinção certamente tem relação muito próxima com as diferenças de concepção da pessoa – uma em que a pessoa se deriva a partir da comunidade, outra em que da pessoa se deriva a comunidade – de modo tal que a discussão se beneficiaria de tal diferenciação. A diferenciação entre “mim” e “eu” aparece na p. 29, com os termos em inglês “me” e “I” ao citar Mead; a psicanálise de base lacaniana sublinha a diferença entre um “moi” (francês) e o “je” (eu, em francês). Pois em ambos há uma referência a uma consciência de si- mesmo; mas a consciência de si-mesmo nem sempre é o “si-mesmo”, daí a diferença entre “eu” e “mim” – que, aliás, pouco se percebe na língua portuguesa da atualidade, por conta do precário ensino em nossas escolas; e isso mesmo tem consequências funestas para a formação dos profissionais brasileiros, mormente os que dependem de sutilezas da língua para pensar questões humanas profundamente. A ideia de autonomia ética, por exemplo, presente à p. 30 da obra de Forst, faz parte de teorias do desenvolvimento da personalidade em Psicologia (não especificamente com essa expressão, mas na prática com o mesmo intuito, isto é, da relatividade e dos limites da autonomia da escolha consciente ou, como diz Rainer Forst, “a reflexão sobre a vida própria” [ibid., p. 30]).
126
(“naturais”) dos indivíduos contra o ponto de vista da justiça social, e Sandel absolutiza, em contraposição a isso, a pretensão prioritária de uma comunidade em relação a seus membros.
461
Após traçar considerações críticas sobre a concepção de “eu”
segundo a perspectiva liberal-deontológica e sua oposta comunitária, Forst nos traz
uma percepção que mostra as falhas da concepção de Sandel segundo a qual a
identidade da pessoa se constitui na comunidade:
(...) o que falta é um olhar diferenciado sobre as diversas formas de comunidades às quais as pessoas pertencem, sobre as normas e valores diversos por meio dos quais essas comunidades são integradas e sobre a questão acerca do quanto a identidade dos sujeitos é afetada por isso. Tal quadro diferenciado tem de fornecer uma compreensão mais dialética das relações recíprocas da individualização e da socialização do que se pode encontrar em Sandel; um modelo das relações do eu e da comunidade que esteja para além da alternativa atomismo e monismo social.
462
Neste ponto, o autor mostra que Rawls busca um equilíbrio “entre
a possibilidade dos indivíduos de formar (e revisar) seus planos de vida e a
constituição social dos indivíduos, de modo a tornar plausível a primazia da justiça
em ambas as perspectivas”.
Segundo sua concepção, é indiscutível que a fala, o pensamento e a ação dos indivíduos são constituídos socialmente e que os seres humanos se realizam em relações intersubjetivas. Entretanto, disso não se segue que não existe a possibilidade de revisar e modificar determinados objetivos, interesses e concepções do bem. Rawls conclui que o direito à liberdade pessoal corresponde, portanto, ao “desejo de ordem superior” (...) dos indivíduos de assegurar essa possibilidade. Os princípios da justiça, segundo Rawls, são compatíveis com “a natureza social dos seres humanos” (...) num sentido mais amplo. Tornam possível a existência de “uma união social de uniões sociais” na medida em que formam o quadro da cooperação social na qual os indivíduos se autorrealizam em diversas formas de vida e comunidades. Contudo, todas essas comunidades colaboram, segundo regras reconhecidas universalmente, para a vantagem geral da sociedade como um todo. Nessa visão da sociedade bem-ordenada, argumenta Rawls, ficam em aberto do ponto de vista ético quais as concepções do bem são possíveis – desde que se movimentem no espaço da justiça – concepções individualistas como também comunitaristas ou religiosas (...).
463
De tal modo isso se dá que, em Rawls (segundo diz Forst) a
justiça está estreitamente vinculada aos indivíduos, havendo congruência entre o
bom e o justo, entre a vida boa e a vida justa, possibilitando-se assim a
autorrealização dos indivíduos, bem como a ação segundo princípios de justiça,
461 ibid., p. 27. 462 ibid., p. 32. 463 ibid., p. 32.
127
juntando tudo em uma vida que “torna possível o autorrespeito no reconhecimento
pelos outros”.464
Porém, Forst nota que o “Rawls tardio” diferencia-se dessa
perspectiva da congruência entre o bom e o justo. A “posição original”465 de Rawls,
incorpora, segundo o próprio Rawls, “um ideal de pessoa que fornece o ponto de
vista arquimediano para julgar a estrutura básica da sociedade”,466 tendo a posição
original a “tarefa de conceitualizar o ponto de vista moral imparcial de pessoas
autônomas, isto é, pessoas razoáveis livres e iguais”;467 “(...) a pessoa que está na
base da ‘posição original’ é caracterizada por duas capacidades fundamentais: de
ter uma concepção de bem e de ter um senso de justiça”.468 Aí o “bom” aparece
constrangido, embora não determinado, pelo “justo”. Há certo afastamento em
relação à metafísica kantiana, que porém preserva a concepção kantiana da
igualdade, na teoria de Rawls.469
Forst ainda sublinha que para Rawls há uma prioridade do
razoável (capaz de um senso prático, efetivo da justiça) sobre o racional (que inclui o
poder moral de “formular, rever e perseguir uma concepção do bem”.470 “A
‘prioridade da correção deontológica’ (ou do justo) não pode ser (...) entendida como
a prioridade do sujeito racional da livre escolha, mas sim como a do ponto de vista
da cooperação social equitativa diante da liberdade subjetiva de escolha”.471
Encontra-se assim, em Rawls, um conceito fundamental de
pessoa que não restringe o modo “como se constitui a identidade ética de uma
pessoa”,472
não impedindo os “vínculos constitutivos”, mas sublinhando a
possibilidade da pessoa examinar criticamente sua identidade e conferindo a ela um
senso de justiça que segue a princípios publicamente endossados, que norteiam a
disposição da pessoa em agir,473 o que evidencia uma atribuição moral de “razoável”
que inclui uma “concepção política de pessoa”, tal concepção de cidadania sendo
464 ibid., p. 33. 465 ibid., p. 16, n. 2. 466 ibid., p. 33. 467 ibid., p. 33. 468 ibid., p. 34. 469 ibid., p. 34. 470 ibid., p. 35. 471 ibid., p. 36. 472 ibid., p. 37. 473 ibid., p. 37.
128
necessária para caracterizar legitimamente uma sociedade como democrática,474
isto é, há uma participação do cidadão na cooperação social que envolve um grau
de escolha consciente nada desprezível, pois permeia toda a fundamentação de
princípios da justiça.
Neste caminho, a pessoa de direito recobre a pessoa ética, de tal
modo que a “vida boa consiste em ter direitos que permitem uma livre escolha de
valores” (p. 38). A identidade particular fica limitada pela identidade política-jurídica:
“entre a perspectiva normativa fundamentada em direitos e a perspectiva ontológica
existe uma diferença conceitual central”.475
Essa identidade caracteriza a pessoa e sua liberdade num ponto de vista tripartite, isto é, como uma pessoa com determinadas concepções do bem e com direitos iguais para perseguir objetivos próprios e para sua possível revisão; como uma pessoa que faz determinadas reivindicações (legais) em favor de seus próprios interesses; e como pessoa que assume a responsabilidade por seus fins (...). Desse modo, pode também ser caracterizada como “identidade jurídica”, pois aqui a pessoa é considerada como sujeito de direito, como pessoa com um status legal.
476
Rawls sublinha ainda uma distinção entre Estado e comunidade,
na medida em que o primeiro é uma organização política que depende da “justiça
como equidade”, enquanto a segunda envolve perspectivas particulares de moral e
ética que, estivessem incluídas na ideia de Estado, conduziriam a “uma negação
sistemática das liberdades básicas e o uso opressivo do monopólio (legal) da força
do Estado” .477
“Pessoa do direito” é um conceito abstrato que não deve ser entendido ontologicamente; nas relações jurídicas, trata-se de direitos e deveres fundamentais que formam a base da estrutura fundamental regulada juridicamente; nas relações éticas, trata-se de doutrinas éticas “abrangentes” que determinam a vida boa dos indivíduos e as “avaliações fortes” (Taylor) de sua identidade. (...) É importante observar que a liberdade jurídica-“negativa” (liberdade pessoal de ação) e a liberdade ético-“positiva” (no sentido de uma autorrealização) estão certamente vinculadas em uma relação complexa (...) mas não se encontram, porém, situadas no mesmo plano conceitual.
474 ibid., p. 37, n. 14. 475 ibid., p. 38. Entende-se particularmente isto, entre outras coisas, como o fato de que aquilo que se é intimamente, em termos político-jurídicos, é irrelevante, na medida em que as escolhas são coerentes com a fundamentação normativa que permite agir, isto é, o que se é (eticamente) difere daquilo que “é” (ou melhor, se manifesta) no mundo do dever-ser. 476 ibid., p. 38. 477 ibid., p. 39. Nesta leitura isso se dá de modo tal que a multiplicidade contida no liberalismo é garantida pela abstenção do Estado em relação à noção de bem que é particularmente defendida por esta ou aquela comunidade, tendo o Estado que ater-se à justiça como tal (e neste sentido somente a uma concepção universal de bem que possa ser aceita por todas as comunidades que do Estado participam). Este “bem”, porém, sublinha Forst, “não pode ser considerado como uma concepção do bem que determina a identidade ética das pessoas” (ibid., p. 39).
129
Argumentar a favor dos direitos individuais não significa argumentar a favor de planos de vida individualistas de pessoas “desvinculadas”.
478
Feitas tais distinções, Rainer Forst sublinha as diferenças entre
valores éticos, normas jurídicas e normas morais: os primeiros pressupõem validade
individual por adesão; as segundas, validade delimitada pela extensão da
comunidade jurídico-política a que se reportam; as terceiras possuem validade
“universal” vinculando os membros de uma comunidade “sem valerem no sentido
jurídico-positivo”.479
Tal distinção, no entanto, não invalida que os valores éticos e as
normas morais e jurídicas possam se interpenetrar, de modo tal que podemos
encontrá-los uns nos outros.
Forst propõe diferenciar melhor entre ética e direito, entre ética e
política e entre ética e moral nos capítulos seguintes, procurando ainda responder se
direito, democracia e moral podem ser definidos sem um conceito constitutivo do
bem.480
V.2.2. A Neutralidade Ética do Direito
Acerca do liberalismo, Forst explica que não é uma teoria moral
uniforme, mas uma teoria política construída historicamente, possuindo três valores
centrais: liberdade pessoal, pluralismo social e constitucionalismo político.481
“Argumentos a favor da igualdade social ou da soberania popular devem ser
construídos com base nesses valores, pois ambas não são partes desses
fundamentos centrais”.482
Forst ajunta que os princípios liberais, que incluem “direitos iguais
e um sistema político justo, isto é, que salvaguarda direitos fundamentais definidos
constitucionalmente”,483 são justificados moralmente sob argumentos diversos que
correspondem aos três valores acima expostos, ou seja, (a) sob um ponto de vista
478 ibid., p. 40. 479 ibid., p. 41. 480 ibid., p. 43. 481 ibid., p. 46. 482 ibid., p. 46. 483 ibid., p. 46.
130
individualista, como liberdades negativas (ou garantias de proteção e liberdade
pessoal); (b) sob um ponto de vista pluralista, como acordo de tolerância recíproca
de diferenças éticas (pluralismo); (c) sob um ponto de vista procedimental, como
interesse universal representado pelo consenso mútuo de todos os envolvidos.484
Citando Dworkin, Ackerman e Larmore em suas posições
respectivas na defesa do liberalismo, Forst mostra que o princípio da neutralidade
norteia um espécie de independência em relação às noções pessoais ou particulares
de bem, e que, embora não exclua as perspectivas típicas desta ou daquela posição
ética, implica tal princípio em que nenhuma concepção de bem seja superior à outra,
e que, para se resolver pontos controversos, é preciso retroceder a um fundamento
neutro comum visando superar desacordos.485 Assim, a exclusão de argumentos
éticos só ocorre na medida em que não há consenso entre posições discordantes.
O fundamento “neutro” não é resultado, mas sim pressuposto do
acordo racional,486 constituindo-se em exigência moral:
O que é exigido dos cidadãos não é a luta pela paz social, mas o reconhecimento moral das normas do diálogo racional e o respeito recíproco das pessoas como fins, em sentido kantiano, exigido pelo próprio diálogo (e, portanto, mais fundamental). O princípio da neutralidade não é, portanto, apenas uma oportunidade em vista das oposições éticas intransponíveis, mas é um princípio moral de justificação: “se nosso propósito é imaginar princípios de associação política e se nesse esforço estamos decididos a respeitar cada um como pessoa, então os princípios a serem estabelecidos devem ser justificáveis a todos os que a eles estarão vinculados”.
487
O desacordo, porém, pode chegar aos limites do que é razoável, reduzindo a
existência de um fundamento comum neutro à observação de regras de
compromisso (representando, por isso, conflito quanto aos fundamentos morais da
norma). As soluções para tal impasse são variadas, começando pela posição das
regras de compromisso488 e indo em Nagel, por exemplo, à ideia de “imparcialidade
de ordem mais elevada”, remetendo a uma “justificação pública”.489 Neste caso, o
argumento é de que tal imparcialidade está acima de qualquer questão ética, sendo
fundamento para o direito válido e encontrando-se no plano do que é universalmente
vinculante. Dois são os argumentos que justificam (segundo Nagel) tal fundamento: 484 ibid., p. 47. 485 ibid., pp. 48-50. 486 ibid., p. 51. 487 ibid., p. 51. 488 ibid., p. 52, n. 8. 489 ibid., p. 52.
131
o kantiano, de reciprocidade, e o epistemológico, de universalidade; e ambos os
argumentos visam a separação entre valores éticos (particulares) e princípios
políticos (públicos).
A reciprocidade consiste em considerar como imoral forçar alguém a
perseguir fim de cuja necessidade não se ache plenamente convencido, e ainda aqui
tal consideração depende do modo como a situação é descrita.490 Já o argumento
da universalidade “pretende mostrar que é ilegítimo recorrer à verdade de uma
concepção ética para justificar a coerção jurídica”.491 Isso significa separar crença
(verdade pessoal) de verdade (no sentido universal, isto é, algo que possa ser aceito
por aqueles que não defendem pessoalmente determinado preceito); novamente,
tem-se a separação entre domínio privado e público em sentido epistemológico, pois
no caso da crença a verdade é privada, enquanto no reconhecimento público a
verdade pode aspirar à universalidade, ultrapassando, portanto, o terreno da
concepção ética particular.
Tal separação epistemológica, porém, nem sempre corresponde a algo que
se possa considerar como verdadeiro – pois, por vezes, a verdade privada pode ser
defendida publicamente.492 Nestes casos é preciso afirmar a possibilidade de pontos
de vista imparciais em que seja possível se colocar no lado externo ao ponto de vista
particular, de modo a observá-lo com a imparcialidade necessária, constituindo-se tal
critério em objetividade que vai além da simples aceitabilidade, sendo a objetividade
“condição da universalidade e publicidade”.493
Observa Forst que não deve haver possibilidade de que o reconhecimento
de uma convicção subjetiva (ética) questione a validade de um fundamento moral,
separando-se os contextos.
Por meio de um limite de reciprocidade e universalidade (…) as pessoas são protegidas de serem forçadas a adotar modos de vida que não podem ser exigidos recíproca e universalmente; mas normas que não podem ser rejeitadas por tais razões devem ser aceitas – nisso reside o momento deontológico da ideia de justificação pública.
494
Neste ponto Forst nota que, apesar da neutralidade representar elemento
constitutivo da teoria liberal, Rawls confunde moral e política, emprestando ao
490 ibid., p. 52. 491 ibid., p. 53. 492 ibid., p. 54. 493 ibid., p. 54. 494 ibid., p. 56.
132
fundamento de moralidade uma conotação que na verdade pressupõe uma
concepção política da moral (assim identificando moral e política).495 Assim, afirma
Forst que, neste ponto, Rawls defende um ponto de vista ético sobre no que se
constitui a “vida boa”.
Desenvolvendo o tema, o autor afirma que “O reconhecimento dos limites da
reciprocidade e da universalidade é uma exigência normativa indispensável para os
membros de uma comunidade jurídica”,496 isto é, tais membros devem ser tão
razoáveis que seja possível aplicar criteriosamente tais limites, de modo a resolver
os conflitos que surgirem, e isso implica um grau de tolerância capaz de reconhecer
racionalmente as limitações próprias no contexto ético.
Assim, Forst refina o significado de neutralidade, como sendo uma
imparcialidade moral da justificação que inclui a neutralidade de justificação, a
neutralidade das razões e a neutralidade procedimental, como critério de justificação
da validade; isso significa que “os princípios do direito são justificados de acordo
com os critérios da reciprocidade e da universalidade estrita e podem ser limitados
somente com razões que satisfazem esses critérios”,497 inclusive a discussão sobre
a justificação (que implica em validade) de direitos fundamentais.498 Deste modo, as
normas universais “formam a estrutura para o tratamento das questões que são
controversas no sentido razoável”.499
Além disso, “os critérios de universalidade estrita e limitada não desvinculam
de seus contextos sociais as argumentações nem as normas justificadas”,500 isto é,
posições éticas e políticas podem ser incluídas como válidas e universais desde que
sejam traduzíveis como argumentos universais.
A neutralidade proíbe a discriminação eticamente motivada de formas de vida, mas não garante que todos serão atingidos da mesma maneira pelas decisões, pelo desenvolvimento da comunidade política e pelas mudanças sociais. Uma fundamentação ética das regulações jurídicas não pode ser inferida dos diferentes efeitos que essas regulações podem ter sobre as comunidades éticas. Embora isso seja possível no sentido crítico, não se segue daí nenhuma consequência afirmativa no sentido de que o direito é e deveria ser fundamentado eticamente sem reservas. 501
495 ibid., p. 57, e também p. 57 n. 9. 496 ibid., p. 63. 497 ibid., p. 64. 498 ibid., p. 63. 499 ibid., p. 65. 500 ibid., p. 66. 501 ibid., p. 66.
133
MacIntyre, segundo Forst, é acidamente cético à proposta de neutralidade
liberal, considerando que tal concepção é uma tentativa do Iluminismo de “justificar
uma concepção moral livre das tradições históricas, das práticas éticas e de uma
visão teleológica da natureza humana”,502 elementos centrais para um conceito de
virtude, sem os quais não se pode conceber a justiça. MacIntyre considera que o
pluralismo, na ausência de uma concepção comum de bem, é outra espécie de
guerra civil.
Para MacIntyre, os valores pessoais são construídos no seio da comunidade
a que o indivíduo pertence, e não podem ser abandonados para dar lugar a uma
concepção de neutralidade.
Rebatendo tal concepção, Dworkin destaca: “o liberalismo não pode ser
baseado no ceticismo. Sua moralidade constitutiva afirma que os seres humanos
têm de ser tratados como iguais por seus governos, não porque não existe o certo e
o errado na moralidade política, mas porque isso é o que é correto”.503
MacIntyre diz ainda que o liberalismo não pode aspirar a uma validade
universal, mas apenas ocidental, estando fundamentando numa concepção
“específica da vida boa”.504 Comenta ainda que a validade da concepção liberal é
ainda mais restrita, no ocidente, às culturas que compartilham “uma teoria
individualista do bem”505 na qual o liberalismo se apoia.
“O liberalismo não apenas não é neutro quanto ao seu efeito, mas também
quanto aos seus objetivos e sua justificação; por isso a ética que o fundamenta é
sem substância”,506 eis como Forst expõe a crítica de MacIntyre e outros
comunitaristas, que vêm no liberalismo uma “má teoria do bem”,507 justificado mais
política do que filosoficamente.
A tais críticas respondem os liberalistas, tendo como argumentos básicos
fatores que implicam em fundamentar a prioridade moral sobre a ética. Veja-se
Ackerman, ressaltando os elementos que justificam tal perspectiva: “realismo sobre
a corruptibilidade do poder; o reconhecimento da dúvida como um passo necessário
502 ibid., p. 67. 503 ibid., p. 69. 504 ibid., p. 70. 505 ibid., p. 70. 506 ibid., p. 70. 507 ibid., p. 70.
134
ao conhecimento moral; respeito pela autonomia das pessoas; e ceticismo no que se
refere à realidade do significado transcendente”.508
Para Rawls, que não nega haver na teoria liberal uma concepção subjacente
de bem, é o caso de afirmar que tal bem é de natureza universalista, incluindo
tolerantemente o bem de todos segundo parâmetros moralmente determinados; tais
ideias, de natureza política (procurando conduzir a uma sociedade ordenada em
padrões semelhantes aos de uma orquestra em harmonia), “são ou podem ser
compartilhadas por cidadãos livres e iguais” e “não pressupõem qualquer doutrina
abrangente plena (ou parcial) particular”.509
Abordando a questão de saber se e quando a concepção ideal da pessoa de
direito eticamente neutra se transforma em uma espécie de “camisa de força
ética”,510 Forst pergunta “como identidades éticas podem ser reconhecidas e
protegidas por um direito formulado universal e formalmente”,511 levando em
consideração, por exemplo, diferenças de origem, gênero e religião.
Tratando da importância da universalidade moral do direito, Forst afirma que
A convicção de uma pessoa é digna de proteção por ser determinante da identidade, e não por ser religiosa. Assim, não são nem a liberdade voluntarista de escolha e nem o valor intrínseco da religião que devem ser protegidos, mas sim a possibilidade da pessoa de poder formar e manter (bem como de também poder mudar) identidades éticas. Do ponto de vista do direito, reconhecer valores éticos determinantes da identidade não significa substituir normas morais universais por meio de valores éticos.
512
Quanto à questão que aborda como o direito “pode fazer justiça às
identidades particulares sem, por um lado, fixá-las aos padrões dos papéis
tradicionais ou, por outro, estigmatizá-las como o ‘outro’”,513 tendo em vista formas
de preservação da diferença com a eliminação concomitante de seus efeitos
desvantajosos, Forst trata do tema do reconhecimento da diferença: “Como a
imparcialidade pode fazer justiça a partes específicas e desiguais?”514
Minow propõe uma “abordagem de relações sociais” que coloca a “diferença” em um contexto social concreto: quais identidades são definidas como “diferentes” e de que modo? Quem faz essa definição? Quais identidades são autoescolhidas e quais não? (…) Consequentemente, a sensibilidade do direito depende de os próprios atingidos examinarem os conceitos de diferença e igualdade existentes em seu direito em vista de
508 ibid., p. 73. 509 ibid., p. 75. 510 ibid., p. 91. 511 ibid., p. 91. 512 ibid., p. 92. 513 ibid., p. 96. 514 ibid., p. 96.
135
sua gênese e possibilidade de sua justificação e reconhecimento (…) Aqui, direitos são indispensáveis: por enquanto, os grupos excluídos articulam seus interesses e necessidades na linguagem dos direitos (…). Na medida em que o direito reconhece essas reivindicações, reconhece simultaneamente as pessoas como “particulares” e “iguais” – com um direito ao tratamento igual material, que, segundo o contexto, torna necessárias regulações para garantir direitos iguais a uma identidade predeterminada. Diferentemente de um conceito comunitarista substantivo ou ético-liberal de pessoa de direito, uma compreensão procedimental do direito fornece, nesse contexto, a possibilidade de deixar em aberto esse conceito como “capa protetora” de identidades éticas e não lhe acrescentar, em nome de valores sociais, critérios que especifiquem quais identidades e de que modo devem ser reconhecidas. (…) A justificação recíproca e universal de normas, no entanto, exige que as reivindicações particulares ao reconhecimento jurídico-universal sejam justificadas universalmente, isto é, que possam se referir a uma reinterpretação das normas de tratamento igual. Uma “falsa” universalidade existente deve ser criticada e modificada com argumentos justificados universal e reciprocamente – que se referem a tratamentos desiguais em contextos concretos. 515
De tal perspectiva, e de seu desenvolvimento, deriva-se mais além a posição
segundo a qual os direitos subjetivos de liberdade, justificados universal e
reciprocamente, asseguram como consequência liberdades éticas positivas516 (por
meio da imposição de sua proteção negativa) assegurada juridicamente,517 de tal
modo que “direitos subjetivos básicos são, portanto, garantidos por normas que ‘não
podem ser razoavelmente rejeitadas’, que correspondem a critérios estritos da
‘reciprocidade’ e ‘universalidade’”,518 por isso mesmo não admitindo contestação.
V.2.3. O Ethos da Democracia
Tendo observado as posições a respeito da constituição da identidade ética
da pessoa e sua inserção (como pessoa de direito) em uma comunidade de direitos,
Forst move-se para o campo político e agora se debruça sobre a pessoa política, isto
é, sobre a questão da cidadania. Valendo-se do que até então foi estudado, afirma
que
Do ponto de vista típico ideal, se o comunitarismo apreende a cidadania como sendo constituída eticamente e caracterizada por virtudes orientadas para o bem comum, o liberalismo, por sua vez, entende a cidadania como sendo primeiramente um status jurídico de liberdades subjetivas iguais. Do mesmo modo, enquanto uma posição comunitarista compreende a integração social e política como a afirmação da unidade social sobre o solo de valores ético-culturais compartilhados, que vinculam a identidade dos sujeitos e da
515 ibid., p. 96-97. 516 I. é., liberdades de ser, de escolher a posição ética particular. 517 ibid., p. 105. 518 ibid., p. 105.
136
coletividade, uma posição liberal faz apenas suposições mínimas sobre quais aspectos comuns (...) integram normativamente uma comunidade política, a saber, a garantia recíproca de direitos fundamentais e princípios fundamentais.
519
Assim, a perspectiva de Forst a respeito de cidadania, do ponto de vista
comunitarista, está associada a uma consciência eticamente orientada para uma
coisa determinada que se visualiza como bem comum, enquanto, do ponto de vista
liberal, a cidadania se constitui naquele conjunto de liberdades que é típico de todos
os integrantes de uma dada comunidade política. No comunitarismo, há uma espécie
de pertencimento, enquanto, no liberalismo há um estado de garantias possíveis
previamente estabelecidas.
Por um lado, pois, entende-se a comunidade política como comunidade
ética; por outro, como comunidade de direito.520
No espaço político, moral e ética e regras de justificação podem ser uma
espécie de “camisa de força” para o discurso político; Forst explica que
Os discursos políticos têm primordialmente a tarefa de assegurar a coexistência social por meio da garantia dos direitos subjetivos – com isso, a interpretação desses direitos e a legitimação de decisões políticas em discursos argumentativos desempenham um papel subordinado. A defesa da “neutralidade” da pessoa de direito leva a uma “neutralização” dos discursos políticos entre os cidadãos. O pluralismo ético leva a um minimalismo político- jurídico em relação às questões de legitimação e integração política.
521
Uma das coisas que Forst evidencia como ligadas à percepção do que é
justo, na esfera política, é o fato de que, “à medida que existe uma ‘congruência’
entre o que é bom subjetivamente e o que é justo moralmente, como algo apropriado
à natureza social dos seres humanos, ‘a participação na vida de uma sociedade
bem-ordenada é um grande bem’”.522
Nota Forst que Rawls propõe que, para que uma sociedade seja ao mesmo
tempo pluralista e estável, “uma concepção política de justiça deve ser compatível
com uma multiplicidade de valores éticos e formas de vida e, portanto, ela mesma
deve evitar pretensões de validade ética – ela deve ser aceitável e razoável para as
519 ibid., p. 116. 520 ibid., p. 116. 521 ibid., p. 122. Uma interpretação particular de tal leitura poderia resumir tal posição como aquela do “politicamente correto”, que evita ser rechaçado por posições políticas “particulares” ou, no dizer de Forst, questões éticas que aparecem como questões privadas (ibid., p. 122). 522 ibid., p. 122.
137
concepções éticas, sem contestar a verdade delas”.523 Trata-se de verificar, contudo,
o que é o mínimo que se pode assegurar em tais circunstâncias.
O “mínimo”, aliás, não exclui de todo as convicções éticas; aliás, é percebido
de todo que dificilmente um agente político abandona suas convicções; não
obstante, elas devem ser justificadas publicamente, e isso deve se dar por meio de
uma tradução gradual dos argumentos éticos “em razões que sejam aceitáveis
segundo os valores e princípios da razão pública”,524 sem o quê, em termos
políticos, a justiça não é legitimada. Assim, a fundamentação política para uma
justificação pública se dá em razões politicamente aceitas – isto é, com base no
direito e seus princípios fundamentais.525
Não obstante, Forst propõe que a justificação pode se dar mais
apropriadamente por critérios procedimentais que condicionem as razões que
atenderão ao critério de reciprocidade,526 de modo tal que não ocorra um uso da
razão pública por razões particulares, mas, diversamente, que a justificação pública
ocorra também em função da concepção de cidadania, que inclui as chamadas
“virtudes políticas” – “disposição para cooperar, tolerância, razoabilidade,
equidade”.527
Explica Forst que, dentro desse âmbito, para Rawls, “cidadãos são pessoas
com as duas capacidades morais – de ter uma concepção própria do bem e de ter
um senso de justiça – que convivem num sistema de reconhecimento recíproco e
cooperação mútua”.528
Os comunitaristas, por sua vez, concebem a comunidade política
considerando que a moral universalista corresponde a uma catástrofe moral
esvaziada de sentido, exemplificando com os ideais atuais de administradores,
terapeutas e estetas ricos e considerando a necessidade de uma tradição moral que
reencontre valores que ponham como finalidade a trindade de práxis, tradição e
biografia subjetiva, visando o enobrecimento da “narrativa da vida individual”.529
523 ibid., p. 123. 524 ibid., p. 127. 525 ibid., p. 127. 526 ibid., p. 127. 527 ibid., p. 129. 528 ibid., p. 129. 529 ibid., p. 132.
138
Somente comunidades que se integram com base em características étnico-culturais e religiosas comuns estão em condição de criar semelhante forma de identidade e de vida virtuosa, e de saírem ilesas da nova era das trevas decorrente da perda da virtude.
530
Os comunitaristas, prosseguindo em sua crítica ao liberalismo, advertem que
há um empobrecimento dos “recursos conceituais que os sujeitos usam para
descreverem a si mesmos na sua vida social”531 e também um “empobrecimento do
espaço público e da própria busca por um bem comum”:532 “Isso leva a um
privatismo ensimesmado, autocentrado psicológica e politicamente, que põe em
risco a “ecologia social” de uma comunidade política”.533
De modo geral, consideram os comunitaristas que não é possível a uma
comunidade política sem a virtude do patriotismo, que o liberalismo falha em
promover, pelo enfraquecimento dos valores próprios de um bem comum de
perspectiva esmaecida na concepção liberal dessa espécie de comunidade.
Para Taylor, na perspectiva de Forst, o patriotismo não pode ser
simplesmente constitucional – ele deve ter um teor de amor, algo como o
pertencimento a uma família; deve ser, por conseguinte, sentido como uma
experiência própria, e não apenas algo ao qual se adere racionalmente.534 Deve, por
conseguinte, haver não apenas identificação, mas também participação na
concepção de cidadania de Taylor, e sem isso não pode haver solidariedade nem
estabilidade em um regime livre, que neste caso é em si mesmo um bem comum
imediato para todos os participantes da comunidade política.
Forst critica tal perspectiva sob o aspecto de que
quando o assentimento em relação aos princípios fundamentais da justiça e a participação nos discursos políticos não forem suficientes para garantir a lealdade dos membros, a teoria de Taylor parece colocar exigências muito elevadas sobre a homogeneidade de uma população política, que, no entanto, são muito difíceis de conciliar com o ‘fato’ de sociedades ética, étnica e culturalmente pluralistas.
535
É disso que trata Walzer, de cujo estudo Forst conclui que “a unidade da
comunidade política não é garantida por meio de uma identidade cultural, mas por
530 ibid., p .133. A referência de Forst é à exposição de MacIntyre a respeito do tema. 531 ibid., p .133. 532 ibid., p .133. 533 ibid., p .133. 534 ibid., p .134. 535 ibid., p. 135.
139
um acordo sobre os princípios políticos da cidadania liberal”,536 de modo tal que
“cidadania é um conceito político, e não cultural”.537
Deste modo, nacionalismo e comunitarismo não são opções racionais que
apreendem a complexidade da situação americana.
Daí que o modelo de Rawls, da “união social de uniões sociais”,538 parece o
mais adequado nesta situação. A comunidade política “deve encontrar um modelo
de integração capaz de fazer a mediação entre a unidade necessária e a
multiplicidade possível, que não exclua identidades particulares, e que não obstante
não abandone uma identidade ‘abrangente’”,539 sendo, portanto, definida política e
não eticamente, afirmando Forst que “um Estado democrático tem a tarefa de
promover associações e comunidades, mas ele não pode substituí-las”.540
Os cidadãos pertencem a várias comunidades; eles são religiosos, eleitores,
contribuintes, pertencentes a diversas classes de divisão social onde vivenciam a
comunidade de todo, não podendo recorrer a um valor de bem comum, mas sim “ao
assentimento com base no consenso sobre princípios fundamentais comuns de
responsabilidade e reconhecimento recíproco”,541
devendo “responder aos
concidadãos e poder justificar-se perante eles”.542
A partir de sua crítica, Forst evidencia a necessidade de uma teoria além de
liberalismo e comunitarismo, e procura formulá-la introduzindo as noções de
sociedade civil e democracia deliberativa.
Segundo uma interpretação, a sociedade civil caracteriza um domínio parcial de associações e esferas públicas no interior da sociedade, nas quais os cidadãos deliberam sobre problemas e interesses comuns e, eventualmente, introduzem suas reivindicações nos processos institucionalizados politicamente.
543
Interessa nesse contexto, para que apareçam os cidadãos, a sociedade civil
política, uma “comunidade de comunidades sociais”,544 onde as pessoas estão
vinculadas como cidadãos e a ação política é medida por associações e
comunidades. Em tal contexto, “o Estado não é um espaço passivo da sociedade
536 ibid., p. 137. 537 ibid., p. 137. 538 ibid., p. 138. 539 ibid., p. 138. 540 ibid., p. 142. 541 ibid., p. 142. 542 ibid., p. 142. 543 ibid., pp. 144-145. 544 ibid., p. 145.
140
civil nem um domínio que dela se separa estritamente, e nem um centro ativo que
tudo abrange; antes, é o lugar e o instrumento da coordenação comum da
convivência social justificada universalmente”.545
Essa “sociedade civil” requer a legitimação deliberativa do direito em procedimentos de “justificação pública” e uma forma de integração política que faça justiça tanto à pluralidade social quanto à necessidade de determinadas condições de realização da democracia deliberativa.
546
De modo geral, Forst expõe argumentos que demonstram que na sociedade
civil há uma dimensão de publicidade e responsabilidade que remete ao princípio de
justificação pública e fundamenta a democracia. Em tal dimensão, os cidadãos
assumem uma forma de responsabilidade mútua uns para com os outros, e vice-
versa.
As razões políticas têm de ser justificadas pelos cidadãos perante a comunidade de todos os cidadãos e a comunidade tem de poder assumir em comum a responsabilidade pelas decisões políticas. Essa responsabilidade não cabe aos indivíduos isolados, mas a todos como participantes de discursos e autores do direito. Nesse sentido, uma comunidade de justificação procedimental é uma comunidade de responsabilidade que tem, ao menos, a “substância” de que os cidadãos se compreendam como participantes dessa comunidade; deliberam reciprocamente e chegam a decisões que podem ser responsabilizadas coletivamente perante e com os outros. Essa forma exigente de integração política é acompanhada pela ideia de autonomia política.
547
A democracia deliberativa coloca a fonte de legitimação no processo de
“formação discursivo-argumentativa e deliberativa de uma decisão política
fundamentada universalmente, contudo sempre provisória e passível de revisão”.548
A esse respeito explica Forst que o discurso público não substitui “os
procedimentos do Estado de direito (...) e nem os domínios sociais integrados
sistemicamente, antes caracterizam a dimensão da formação da opinião e da
vontade, da qual uma sociedade constituída democraticamente não pode, em
princípio, prescindir”.549
Pretensões e razões têm de passar por procedimentos institucionais que
também têm de se submeter à justificação pública.
O princípio da democracia deliberativa é um princípio de legitimação democrática: somente podem pretender legitimidade as normas e decisões políticas que, num discurso entre cidadãos livres e iguais, podem ser questionadas e aceitas em suas consequências gerais e
545 ibid., p. 145. 546 ibid., p. 145. 547 ibid., p. 150. 548 ibid., p. 154. 549 ibid., p. 154.
141
particulares. Somente assim, como diz Habermas, “podem ter a seu favor a suposição da razão prática”.
550
Para Forst, em resumo, trata-se de “(a) descoberta, (b) problematização e
(c) afirmação de uma linguagem pública entre membros de uma comunidade
política”.551
A linguagem universal dos discursos políticos está
exposta à suspeita permanente de declarar interesses particulares como se fossem universais e tem de ser vista como uma linguagem “em disputa”. Reivindicações por reconhecimento questionam tal linguagem; porém, desembocam numa linguagem “nova”, que deve ser forte o suficiente para conceder e para realizar esse reconhecimento. Universalidade e solidariedade são condições inevitáveis do reconhecimento das identidades particulares diferentes e da realização desse reconhecimento nas instituições e práticas de uma comunidade política.
552
A democracia deliberativa tem a cidadania como modo de
reconhecer a participação política não apenas como um valor instrumental, mas também como constitutivo para a vida virtuosa. Consequentemente, a democracia deliberativa não coloca, para seus cidadãos, apenas as exigências cognitivas da argumentação recíproca, mas espera deles a promoção do bem comum como um bem de ordem superior.
553
A cidadania proporciona ao cidadão uma inclusão jurídica e social que torna
possível e virtuosa a participação política, o que conduz à investigação relativa a
questões de justiça social, que, para Forst, “pertence de modo inseparável ao ethos
de uma comunidade política democrática”.554
A noção de justiça social em Forst parte da teoria da justiça de Rawls, que a
desenvolve a partir de uma “posição original” na qual as partes “são dotadas da
capacidade para a reflexão racional com base em determinadas informações sobre
as ‘circunstâncias da justiça’ e sobre as questões de organização econômica e
social”,555 que incluem escassez de recursos e necessidades econômicas e
subjetivas, tendo como pressuposto a capacidade para cooperar. Uma espécie de
lista de bens básicos que preenchem a um critério de igualdade de oportunidades
sociais, é mais ou menos definida; e as partes são colocadas diante da necessidade
de se colocarem no lugar uns dos outros para que sejam capazes de escolher
550 ibid., p. 154. 551 ibid., p. 155. 552 ibid., p. 167. 553 ibid., p. 168. 554 ibid., p. 172. 555 ibid., p. 174.
142
princípios de igualdade – sem sacrificar a liberdade individual em prol da igualdade e
vice-versa.556
A posição original assim obtida é delineada segundo os seguintes princípios:
Primeiro princípio: cada pessoa tem o direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades iguais fundamentais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos. Segundo princípio: As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de modo que: (a) sob a restrição do justo princípio da poupança, elas devem trazer benefícios aos menos favorecidos; e (b) devem estar vinculadas a posições e cargos públicos abertos a todos sob as condições de uma justa igualdade de oportunidades.
557
Tais princípios
não garantem uma distribuição igual de todos os bens básicos. Porém, exigem uma igualdade: absoluta quanto aos direitos e liberdades fundamentais da pessoa, a maior possível quanto às oportunidades; e relativa quanto aos recursos materiais, segundo a qual as desigualdades precisam ser justificadas, mas que, eventualmente podem até mesmo ser justificadas.
558
Forst prossegue em sua análise da Teoria de Rawls e conclui por três
pontos de referência. O primeiro explicita que “circunstâncias sociais, enquanto
produzidas socialmente e modificáveis, não precisam ser justificadas: portanto, o
princípio da pertença igual não implica uma distribuição estrita de renda e riqueza,
mas a necessidade de justificar as distribuições desiguais”,559 tendo-se em mente
que aqueles que têm mais também têm mais a justificar perante os que têm menos.
Segundo, uma teoria procedimentalista não apenas provê argumentos para
a justificação universal mas, também, impede que “o poder econômico se transforme
em poder político e que a desigualdade social leve à exclusão política e social”.560
Terceiro, ao falar de justiça é preciso ter em mente o que é cidadão, como
membro de uma comunidade política.561
De se considerar que as “listas de bens básicos” não são definíveis a priori:
em uma sociedade o autorrespeito pode demandar estes bens e em outra pode ser
necessário aqueles outros, relativizando não apenas o teor material da justiça social
mas, também, a instrumentalização para atingi-la.562
Os três pontos de vista – a necessidade universal de justificação das desigualdades sociais, a necessidade de realização dos direitos e a garantia da possibilidade de reconhecimento e
556 ibid., p. 174. 557 ibid., p. 174. 558 ibid., p. 174. 559 ibid., p. 179. 560 ibid., p. 180. 561 ibid., p. 180. 562 ibid., p. 180.
143
autorrespeito – formam o cerne de uma teoria da justiça social simultaneamente universalista e contextualista.
563
A seguir, Forst propõe-se avaliar o contexto da moral (após avaliar o
contexto ético, o do direito e o político).
V.2.4. Universalismo e Contextualismo
No que diz respeito à tentativa de encontrar um ponto de encontro entre o
que é universal e o que e contextual, Forst trata de expor o fato de que esta
controvérsia vem desde a Grécia Antiga (do ponto de vista da Filosofia),
demarcando tal posição ao citar a posição idealista de Platão em contraste com o
que chama de ceticismo aristotélico.564
Esta diferença é tomada pelos críticos na modernidade – uns advogando em
favor de concepções universais a partir das quais se poderia extrair as perspectivas
particulares; outros, defendendo o contexto como única realidade possível, em
oposição à utopia de uma universalidade inatingível; outros, ainda, procuram um
equilíbrio entre o universalismo e o contexto – um universalismo contextualista.
Para Walzer, por exemplo,565 há uma primazia da perspectiva da “caverna”
sobre os ideais platônicos, e aferra-se à diferença entre verdade filosófica e
realidade social.
Segundo Walzer, o que é importante é achar uma forma de pensamento político que evite tanto o fundamentalismo das teorias morais realistas quanto o abandono de uma teoria crítica da comunidade.
566
Para tal forma de crítica, a justificação das normas sob critérios universais é
algo limitado e idealizado:
as normas que são justificadas dessa maneira estão muito distantes dos contextos das comunidades concretas para poderem reivindicar validade para elas. São hipóteses abstratas e universais que não fazem justiça à pluralidade e ao caráter social das concepções existentes do bem.
567
563 ibid., p. 181. 564 ibid., p. 194. 565 ibid., p. 195. 566 ibid., p. 195. 567 ibid., pp. 195-196.
144
Porém, notando que não se pode simplesmente abandonar o uso de
princípios universais, aqui também Forst nota um problema de contexto:
Deve-se fazer a distinção entre três questões: a da fundamentação filosófica de princípios morais, a do melhor caminho da crítica social e a da autodeterminação de uma comunidade política. Somente assim pode-se perceber o vínculo entre elas, que, diferentemente do que acredita Walzer, consiste no fato de que representam contextos diversos do princípio de justificação recíproca e universal.
568
Assim, Forst examina a noção de construtivismo na teoria de Rawls e em
seus críticos comunitaristas, e evidencia ao final deste capítulo que é possível um
diálogo entre o contextualismo e o universalismo na medida em que se pode chegar
à priorização de um bem universal, almejado pela moral, que está diretamente
relacionado à noção de justiça como coisa razoável e almejável politicamente.
(...) a moral não se refere à vida boa individual, mas à de todos de modo igual. À moral não corresponde uma determinada concepção (substantiva) do bem, mas a possibilidade universal de uma vida autônoma dentro de limites morais: o bem moralmente relevante é o universal e formal. Mas disso não se segue uma prioridade conceitual do bem, pois ele já é definido moralmente em sua formalidade e universalidade: o bem de uma existência pessoal livre é determinado por meio dos critérios de reciprocidade e universalidade como um “bem moral”, cujo respeito e concessão não podem ser negados a nenhuma pessoa com boas razões. A determinação formal, universal e “não relativa” desse bem pressupõe conceitualmente os critérios do “justo”, e não o contrário. A prioridade conceitual e normativa da moral são inseparáveis: o bem – seja compreendido de modo “forte” ou “fraco” – somente adquire validade por meio do que é justificado de modo universal e recíproco como base das pretensões morais. Assim, evidencia-se em que medida o direito a esse bem não pode ser limitado a uma determinada comunidade. Ele tem uma prioridade normativa sobre as concepções concorrentes do bem. Na medida em que a moral é explicitada – por meio de determinados do bem individual ou social – ela impõe a essa explicação determinados critérios universalizantes e formalizantes de reciprocidade e de universalidade, que são prescritos a toda validade moral de normas e à sua fundamentação “razoável” “entre” pessoas. Na ausência de “bens últimos”, o cerne de uma moral “sem andaimes” consiste nessa “incondicionalidade” autocrítica recursiva da razão. O princípio da justificação universal, por meio de seu caráter procedimental, faz jus às concepções substantivas do bem das pessoas nas comunidades sem se apoiar numa teoria do bem: em vista de questões de autodeterminação, direitos iguais, autonomia política e integridade moral, refere-se aos respectivos contextos, que são preenchidos concretamente, por pessoas morais em seu respeito mútuo. A razão prática da “moralidade” não suprime nenhum conteúdo “ético”, mas formula princípios que tornam possível conjuntamente a autodeterminação individual e coletiva. Nessa visão complexa dos diferentes contextos das questões práticas e do reconhecimento recíproco reside a possibilidade de um vínculo entre universalismo e contextualismo.
569
568 ibid., p. 196. 569 ibid., p. 274.
145
V.2.5. Contextos da Justiça
Chega-se afinal, segundo parece, ao ponto culminante da exposição de
Forst, em que, sintetizando toda sua pesquisa, ele expõe sua teoria, afirmando que
princípios de justiça são aqueles que são justificados de modo universal e imparcial na medida em que correspondem, de maneira apropriada, aos interesses, necessidades e valores concretos daqueles atingidos por eles. De acordo com esses princípios, a identidade ética das pessoas é reconhecida e protegida juridicamente numa sociedade e, na verdade, por meio do direito estatuído de modo político autônomo no interior de uma comunidade política de membros com plenos direitos – direito esse que possui um conteúdo moral em seu cerne, que respeita a integridade das pessoas morais. A tese de que todos os princípios de justiça possuem um vínculo com o contexto deve ser, portanto, relacionada com a diversidade dos contextos – de tipo ético-substantivo até moral-universalista – nos quais as pessoas são membros (de modo normativamente substantivo) de comunidades, mas de comunidades muito diferentes. E a partir dessa constituição múltipla de mundos normativos seguem-se modos diversos de reconhecimento recíproco e de justificação normativa. Esse novo modo de redesenhar o mapa da teoria da justiça aqui proposto exige a vinculação dessas dimensões em uma estrutura básica da sociedade justificada. Nisso consiste o ideal de uma sociedade justa.
570
A integração das pessoas nesses contextos que se encontram de algum
modo relacionados é também discutida por Forst:
(...) as normas jurídicas não precisam apenas ser justificadas e afirmadas institucionalmente, mas também realizadas na práxis política e social no interior de uma comunidade política, práxis na qual os cidadãos se compreendem como membros de uma comunidade e se concedem os pressupostos necessários para a autonomia pessoal e política. As pessoas do direito são, como indivíduos, responsáveis diante do direito; os cidadãos são em comum responsáveis pelo direito. Os cidadãos criam e realizam o direito no qual pessoas éticas (particulares) são reconhecidas como pessoas do direito (iguais). As autonomias ética, jurídica e política formam um vínculo interno.
571
Na medida em que os cidadãos pertencem a um mecanismo de criação,
revisão e realização do direito visando à justiça social, eles participam de uma
democracia deliberativa, que mediante “procedimentos de argumentação
recíproca”572 produz acordos e compromissos de maneira discursiva. “Esses
procedimentos não excluem nem temas nem participantes; eles tornam possível
uma ‘razão pública’, cujo conteúdo concreto é averiguado politicamente e em
comum”.573
O quarto conceito de autonomia diz respeito à autonomia moral, que aborda
o fato de que as “pessoas morais possuem determinados direitos e deveres de
570 ibid., p. 276. 571 ibid., p. 280. 572 ibid., p. 282. 573 ibid., p. 282.
146
reconhecimento para com, em princípio, ‘cada’ pessoa – direitos que o conceito
concreto de pessoa do direito deve ter em seu cerne”.574
É importante perceber que nem o conceito procedimental de razão prática – que se expressa em diferentes contextos de justificação normativos – nem o imperativo do respeito moral e da justificação universal são abstratos de modo falso. Normas morais protegem as pessoas concretas somente onde o contexto da humanidade comum existe como base normativa, e à obrigação do respeito moral corresponde a obrigação de justificar de modo universal e recíproco a ação moral segundo normas com pretensão de validade universais – uma obrigação que surge da “situação” intersubjetiva comunicativa do ser humano comum. (...) O princípio da justificação universal é transcendente ao contexto não no sentido de que viola os contextos de autodeterminação individual e coletiva, mas porque caracteriza um padrão mínimo no interior do qual a autodeterminação é “reiterada” (...).
575
A entrar pelo terreno de um “construtivismo teórico-discursivo”,576 “como
uma alternativa a Rawls”,577 tem-se a necessidade de uma versão recursiva e
discursiva da razão prática: “na ausência de verdades objetivas, moralmente
transcendentes, não podemos, e não devemos, desistir da pretensão de validade
moral pois esta é entendida como pretensão ‘razoável’ que não pode ser rejeitada
com razões universais e recíprocas”.578 Assim, um princípio possível de justificação
prática racional “se refere a diferentes modos e contextos de justificação”.579 Assim
que se encontra um sentido político ao buscar a justiça social, e tem-se essa espécie
de pertencimento a uma democracia deliberativa na qual se busca constantemente a
melhor forma de justificação com base no que pode ser razoavelmente pretendido e
estendido a todos (de maneira universal).
Uma teoria da justiça não deve tornar absoluta uma dessas dimensões e formar as outras a partir dela; a justiça mantém os limites entre essas esferas ao assegurar a identidade ética, os direitos iguais, a pertença política e o respeito moral segundo normas justificadas universalmente. (...) A pessoa que está no centro de uma teoria da justiça não é exclusivamente pessoa ética, pessoa do direito, cidadão ou pessoa moral; ela é simultaneamente tudo isso de modo diverso: é autônoma ética, jurídica, política e moralmente.
580
Forst continuamente traz à tona (de maneira obviamente mais
esclarecedora) representações que nos fazem voltar a seu prefácio, onde trata da
imagem de Têmis representada com a espada em uma das mãos e a balança na
outra, com a venda sobre seus olhos:
574 ibid., p. 283. 575 ibid., p. 283. 576 ibid., p. 284. 577 ibid., p. 284. 578 ibid., p. 284. 579 ibid., p. 284. 580 ibid., p. 286.
147
No que se refere à integração de contextos diferentes no interior da estrutura básica da sociedade, isso nos leva à questão da justiça: os princípios desta protegem a autonomia ética por meio de direitos à autodeterminação pessoal; além disso, representam princípios procedimentais e direitos políticos à autodeterminação política de cidadãos, bem como princípios de justiça social que ajudam a realizar a liberdade pessoal e política. Ao lado disso, têm de satisfazer critérios morais de reconhecimento das pessoas. Uma concepção de justiça é ela própria “autônoma” e justificada como concepção da razão prática se combinar esses contextos da justiça. Tal teoria está para além da questão da prioridade do que é bom eticamente ou do que é justo moralmente; ela harmoniza a prioridade da razão, bem como uma perspectiva intersubjetivista sobre os “contextos” de pessoas e comunidades nos quais se pode falar com sentido (e criticamente) sobre a prioridade do bom, dos direitos individuais, do que é justificado de modo geral ou do que é justo moralmente. Naturalmente, uma tal teoria da justiça harmoniza esses contextos como “contextos de reconhecimento”. A partir da explicação teórica moral da questão da justificação como vista a partir da perspectiva performática de pessoas que têm de resgatar pretensões de validade diante e dentro das comunidades (diferentes), reconhecem a si mesmo e aos outros. Por conseguinte, a análise das diferentes comunidades de justificação – que se funda num conceito de razão prática justificadora – aponta para diferentes relações de reconhecimento. Contudo, sua análise não tem uma importância teórica fundamentadora, mas explicativa; complemente e explica a ideia de contextos normativos e mostra os fenômenos do reconhecimento e especialmente os fenômenos da ausência de reconhecimento, para os quais uma teoria da justiça tem de ter um sensor conceitual.
581
A ideia de reconhecimento envolve o desenvolvimento de relações de
reciprocidade entre sujeitos tidos como mutuamente iguais em direitos, sobre cuja
base se pode desenvolver “formas ampliadas de reconhecimento político e social”.582
A perspectiva da teoria do reconhecimento mostra o enraizamento dos conceitos da teoria da justiça na vida social e objetiva. (...) uma teoria da justiça – em especial uma teoria dos “contextos” da justiça – tem de poder considerar adequadamente os fenômenos e experiências (subjetivas ou coletivas) de injustiça. Aplicado de forma positiva, isso significa que tem de tornar claro quais as formas de reconhecimento que uma sociedade justa tem de assegurar.
583
Tratando dos contextos de reconhecimento, Forst conclui que a prática da
injustiça nos contextos em que se define a pessoa (ética, de direito, política e moral)
paulatinamente destrói o autorrespeito (também nos quatro contextos), de modo que
se produzem, como no dizer de Hannah Arendt sobre os campos de
concentração,584 “cadáveres vivos”, seres cuja voz da consciência acaba por
silenciar, restando apenas a morte física para corroborar essa morte antes ética,
moral, política, sepultadora do direito.
Daí a importância fundamental da dignidade humana: “como tais, as
pessoas têm o direito moral a uma justificação recíproca e universal de todas as
581 ibid., p. 326. 582 ibid., p. 327. 583 ibid., p. 329. 584 ibid., p. 344.
148
ações que atingem sua integridade. A forma básica de reconhecimento moral reside
na atribuição desse direito”.585
E Forst considera finalmente:
O esclarecimento aqui sugerido dos conceitos fundamentais mostrou que a pessoa, que está no centro das questões sobre a justiça, não deve ser entendida exclusivamente como pessoa ética, como pessoa do direito, como cidadão ou como pessoa moral, mas como pessoa em todas essas dimensões comunitárias. A tarefa de uma teoria da justiça consiste em definir e reunir adequadamente esses contextos da justiça. Segundo essa teoria, uma sociedade que harmoniza esses contextos pode ser considerada justa.
586
Tratar de reconhecimento e justiça, com base nas exposições acima, tem o
sentido de chegar a um ponto em que a dimensão de fraternidade (exposta por seu
correlato, a solidariedade), no Direito, encontra-se explicitamente diante do leitor,
para considerar o desenvolvimento sustentável e a participação dos três atores
“desenvolvimentais”, Estado, Empresa e Cidadão.
A seguir, dá-se um exemplo, no campo da repartição das receitas tributárias,
ligado ao Direito Ambiental e ao Direito Financeiro, criando possibilidades para uma
abordagem voltada à sustentabilidade onde todos os setores da sociedade podem
efetivamente participar, em seus diferentes papéis.
V.3. SOLIDARIEDADE E TRIBUTAÇÃO NO ICMS ECOLÓGICO
Investiga-se, a seguir, em que medida políticas públicas afirmativas,
especificamente relacionadas ao meio ambiente e distribuição estadual de receitas
do ICMS aos municípios, atendem ao princípio da igualdade.
Tal investigação busca levar ao leitor aspectos relevantes acerca do
que se conhece como ICMS Ecológico; isto é, a forma de aplicação de parte da
receita oriunda de tributação, a partir do modo como os entes federados estaduais
dispõem legalmente da parcela que lhes cabe, segundo parâmetros que dizem
respeito, em primeira análise, à preservação da natureza; mas que, em última
análise, atendem de modo geral às mais recentes propostas relativamente ao
desenvolvimento sustentável.
585 ibid., p. 344. 586 ibid., p. 345.
149
Quando se fala em sustentabilidade, o tripé liberdade-igualdade-
fraternidade coloca em relevo tanto a igualdade quanto a fraternidade, não raro
relativizando o elemento “liberdade” (de nenhum modo eliminando-o), deixando claro
que o comportamento liberal clássico e seu correlato contemporâneo – o
neoliberalismo – de modo algum se prestam a um mundo onde se pretende garantir
o direito à vida, tanto no presente quanto no futuro, imediato ou remoto: a situação
mundial é cada vez mais calamitosa quanto ao esgotamento e dificuldade de
renovação de recursos naturais.
Como em Direito sempre há muito a dizer e o espaço de que se
dispõe para tanto é curto, valer-se-á este artigo de uma delimitação que, de outro
modo, enveredaria pelo Direito Constitucional, pelo Direito Tributário Ambiental e
pela Repartição das Receitas nos níveis Federal, Estadual e Municipal, passando a
seguir para as considerações a respeito das formas de aplicação das receitas
ligadas ao desenvolvimento sustentável.
Tratar-se-á, portanto, em linhas gerais, da apresentação do princípio
constitucional da igualdade, e de sua relação com o desenvolvimento sustentável; a
seguir, apresentam-se as políticas públicas de característica afirmativa e sua relação
com a preservação do meio ambiente; depois vêm considerações a respeito da
tributação com traço ambiental, da distribuição de receitas e do ICMS Ecológico;
finalmente, conclui-se com o que se pode inferir a partir dos tópicos apresentados.
Reconhece-se que há considerações que se impõem quando se trata
de falar da tributação. Certamente não basta o princípio da legalidade quando se
fala da imposição de tributos.
Em tempo de tributo, é de se observar o modo como são
estabelecidos (dentre outras coisas, a espécie tributária a que pertence cada tributo),
sua vinculação com o destino da receita que permitem arrecadar, e o modo como a
receita daí oriunda é repartida.
Não há como, neste espaço, ocorrer aprofundamento em detalhe no
tratamento dos princípios que envolvem a tributação e a defesa do meio ambiente.
Deste modo, apenas as linhas gerais da tributação ambiental, com relação a seus
princípios, são expostas, passando-se ao largo de uma exposição mais profunda
sobre o tema.
150
Do mesmo modo, as possibilidades envolvidas na implementação
dos tributos com finalidade ambiental são variadas, e aqui elas são apenas
indicadas, para que se trate especificamente de uma forma de distribuição da receita
obtida com a tributação (caso do ICMS Ecológico) – esta distribuição é que tem, de
fato, finalidade ambiental; e como tal não se aplica de maneira direta às
considerações típicas do Direito Tributário, mas atende aos ditames do Direito
Ambiental e relaciona-se estreitamente à extrafiscalidade.
V.4. PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA VIGÊNCIA DA SUSTENTABILIDADE
O mundo atual é de fato o lugar onde toda a liberdade que se
exerceu amplamente a partir da ascensão da burguesia (leia-se, historicamente, da
Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa), que acabou por
dominar a economia mundial no último quarto do Século XX, também se mostrou
desastrosa em relação ao desrespeito que o ser humano exerceu contra si próprio
em todas as partes.
A liberdade não pode ser exercida às expensas do direito à
igualdade, e tal descoberta se dá tão duramente quanto a que se segue: que a
fraternidade (medida em termos de solidariedade), caso não seja exercida, impedirá
mesmo que igualdade e liberdade se concretizem, tanto no presente quanto no
futuro imediato da humanidade, pois o que se vê hoje é a ameaça concreta da
extinção da vida no planeta Terra – leia-se, a respeito (mas não somente), Ulrich
Beck com sua Sociedade de Risco.
Fábio Konder Comparato, por exemplo, discorre acerca da
necessidade atual, muito presente, de transformar as instituições mundiais para
estabelecer democracias de fato e não farsas quase que exclusivamente voltadas
para o atendimento de interesses econômicos capitalistas.587
A humanidade que antes não pensou, à moda de Epimeteu, tem
agora de recorrer ao dom pelo qual Prometeu foi acorrentado justamente pensando
587 Comparato, Fábio K. A Humanidade no Século XXI: a Grande Opção, epílogo da obra “A
Afirmação Histórica dos Direitos Humanos”, 3ª. Ed. de 2003, revista e ampliada, Ed. Saraiva.
151
em salvá-la, isto é, ao fogo da razão, que dissipa as trevas da ignorância em que,
por impulso, foi levada a queimar os recursos naturais como se fossem inesgotáveis,
em nome de um bem-estar que não foi ampla, mas apenas restritivamente atingido.
Comparato lembra o Agamenon de Ésquilo ao criticar a minoria
opulenta: “O desastre (...) é filho das ousadias temerárias dos que se comprazem no
orgulho desmedido, quando suas casas transbordam de opulência”.588
Fato é que a opulência já não pode ser desfrutada da mesma forma.
Admitindo-se de plano as diretrizes mundiais para um mundo onde o
desenvolvimento só é aceitável se também for sustentável, há que se ter em mente
a efetivação do princípio constitucional da igualdade sob sua dimensão de igualdade
formal – que exige o estabelecimento de desigualdades visando mitigar
desigualdades (lembrando Rui Barbosa).589
Lendo-se o art. 3º. da Constituição da República, encontram-se os
objetivos fundamentais da República Brasileira, que incluem I - construir uma
sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III -
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Aí presente o contexto da sustentabilidade (do que se trata mais
adiante), é também o caso de se ler o art. 5º. da Constituição da República, em seu
caput, que determina que, nos termos que a Constituição estabelece, “Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Eis, pois, que evidentemente a leitura da Constituição da República
obriga à consideração de que os objetivos fundamentais, para serem efetivados, têm
necessariamente de passar pela efetivação da igualdade em sua dimensão formal.
Examinando Perez-Luño encontra-se justificação para tanto: tal autor
observa características típicas da igualdade formal (e sua correspondência com as
exigências da segurança jurídica): (1) a exigência de generalidade, abstração e
universalidade, que exclui privilégios, distinções e predeterminação; (2) a igualdade
588 op. cit., p. 551.
152
ante a lei como exigência de equiparação, que obriga a considerar-se irrelevantes
determinadas situações ou circunstâncias “para o desfrute ou exercício de
determinados direitos ou para a aplicação de uma mesma regulamentação
normativa”;590 (3) a exigência de diferenciação, que evita que tal princípio se “traduza
em um uniformismo, que suporia tratar tudo da mesma maneira, quando ‘os
pressupostos de fato que se produzem na vida são tão distintos entre si que não
permitem medir tudo pelo mesmo raciocínio’”;591 (4) a exigência de regularidade do
procedimento, que corresponde a uma garantia não estrutural, mas funcional quanto
à aplicação das normas, fazendo com que todos os cidadãos se achem sujeitos aos
mesmos procedimentos ou regras procedimentais.
Perez-Luño comenta, ainda, que “o princípio da igualdade diante da
lei, que sintetiza as características da igualdade formal, compreende uma série de
exigências e incide em uma diversidade de planos, que nem sempre foram
devidamente matizados”.592 Daí se percebe que, para implementar a igualdade, são
necessárias considerações em profundidade, amplitude e detalhe, que de modo
geral escapam ao objeto deste trabalho; porém, é possível abordar a implementação
do princípio da igualdade (e sua defesa) em certa medida ao tratar do tema do
desenvolvimento sustentável.
A se observar o contexto da sustentabilidade – que trata não
simplesmente do crescimento (em sua dimensão econômica, que se traduz em
simples inchaço na produção e geração de riquezas, sem preocupação efetiva com
a preservação de recursos e/ou a distribuição igualitária da riqueza), nem tampouco
exclusivamente do desenvolvimento (em que há certa preocupação com a
distribuição de riqueza, mas não há evidência do interesse em preservar e renovar
recursos), mas sim de um desenvolvimento sustentável, é de se perceber que, ao
compreender o direito fundamental ao meio ambiente sadio e equilibrado não
apenas para as gerações presentes, mas também futuras (preconizado pela
Constituição em seu art. 225, caput) como direito transindividual e transgeracional,
trata-se de garantir as medidas necessárias à igualdade formal num contexto que
589 Barbosa, Rui. Oração aos Moços. Internet: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/aosmocos.html,
acesso em 21/07/2012. 590 Perez-Luño, Antonio Enrique. Dimensiones de la Igualdad. 2ª. edición, Madrid: Dykinson, 2007, p. 24. 591 op. cit., p. 28. 592 op. cit., p. 21.
153
não é unicamente presente, estando preocupado integralmente com aqueles que
virão a ser no futuro próximo ou distante.
Segundo Juarez Freitas, está posto o direito fundamental à
sustentabilidade multidimensional, que aliás deriva do princípio constitucional da
sustentabilidade, evidenciado pela interpretação sistemática da Constituição da
República. A respeito disso, diz Freitas:
trata-se do princípio constitucional que determina, independentemente de regulamentação legal, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar físico, psíquico e espiritual, em consonância homeostática com o bem de todos. 593
A consagração do direito ambiental, em termos jurídicos, começa
pelo art. 225 da Constituição da República. O bem ambiental é res communi
omnium, isto é, coisa de todos em comum. Não pertence a um só, nem a vários,
mas a todos, indistintamente; por isso sua titularidade é difusa e sua defesa pode
ser exercida por um (o diretamente lesado que depende do bem ambiental) e por
muitos (todos aqueles que direta ou indiretamente dependem da manutenção do
bem ambiental). Daí que todos – toda a sociedade, o público e o privado – devem
zelar pela manutenção do meio ambiente.
V.5. POLÍTICAS PÚBLICAS AFIRMATIVAS E MEIO AMBIENTE
Das leituras acima, sabe-se que é preciso – para efetivar a igualdade
no império do desenvolvimento sustentável – certo grau de diferenciação (lembrando
o adágio que simplifica a abordagem supra: “igual para os iguais, desigual para os
desiguais”).
Essa diferenciação traduz-se em ações que implicam tanto o Poder
Público quanto a sociedade em geral, isto é, todos têm sua parcela inarredável de
dever diante da necessidade de renovação e preservação de recursos para um
mundo melhor.
593 Freitas, Juarez. Sustentabilidade: Direito ao Futuro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011, pp. 40-
41.
154
Exposta tal determinação a que, supõe-se, devem todos submeter-se
sem exceção, é caso de verificar, no que diz respeito ao Poder Público, que espécie
de atos este propõe-se a efetivar no que diz respeito à preservação do meio
ambiente.
Lembre-se que, nesta abordagem, “meio ambiente” é expressão
consagrada pelo uso, e que tem um sentido lato, não se restringindo exclusivamente
à preservação da natureza, mas também ao ambiente artificial onde a vida de
relação se reproduz – como o trabalho, onde há necessidade de condições
saudáveis (e não apenas isso) para a produção humana.
Leia-se, a respeito, Maria Helena Diniz,594 que inclui em suas
considerações o meio ambiente do trabalho, onde devem haver regras que
mantenham as boas condições de trabalho, pelas quais se preservam direitos
difusos de seres humanos “cuja qualidade de vida, por esse motivo, dependerá da
qualidade daquele ambiente”.595 Ao perceber-se tal necessidade, Diniz em seguida
relaciona a necessidade da responsabilidade social da empresa, mediante controles
que não visam atender apenas aos aspectos físicos, mas também psicológicos,
relacionados à vida (e portanto à saúde física e mental) do trabalhador.
Com que base pode o Poder Público proceder, pois, de modo a
destinar os necessários recursos e imprescindíveis normas (pois em Direito
Administrativo nada se faz sem a legalidade) para que se implemente a igualdade
visando a sustentabilidade?
A resposta se encontra quando se lê o art. 170 da Constituição:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) (...)
O destaque sublinhado acima é feito para que se observe a
importância do texto constitucional ao autorizar que o tratamento diferenciado se
implemente para que seja possível defender o meio ambiente. Assim, ao ler a
594 Diniz, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002. 595 op. cit., p. 714.
155
Constituição em relação a outros princípios, ter-se-á em mente o que acima se
estabelece.
V.5.1. Ações Afirmativas em sua Relação com a Base Ideológica das Políticas
Públicas
Ao pensar em Políticas Públicas, logo vêm à mente mecanismos de
que o Poder Público pode dispor para implementar meios de corrigir distorções
indesejadas na busca de um equilíbrio nas condições de desenvolvimento de uma
sociedade. Este mecanismo é fundamentalmente o mesmo das ações afirmativas,
do modo como são percebidas por Joaquim Barbosa.596
Joaquim Barbosa faz uma exposição acerca da base ideológica que
sustenta as ações afirmativas. Impende apresentar a fundamentação de tais
políticas públicas (ações afirmativas) com base na perspectiva de dois postulados
nos quais a justiça se baseia.
O Postulado da Justiça Compensatória considera que é central a
“necessidade, para as sociedades que por longo tempo adotaram políticas de
subjugação de um ou vários grupos ou categorias de pessoas por outras, de corrigir
os efeitos perversos da discriminação passada”.597
O intuito reparatório de tais ações se justifica pela “inegável
inclinação perenizante” do processo de marginalização social.598 Nestes casos, a
questão não é tanto a promoção da justiça distributiva, mas um remediar das
injustiças passadas.
Barbosa assinala um dos pontos mais perceptíveis dessa
perspectiva, que se situa no campo da educação: os membros do grupo vitimizado
pela discriminação no campo educacional se veem desprovidos dos meios
indispensáveis à sua inserção social em pé de igualdade com os beneficiários da
injustiça perpetrada, o que indica privação de oportunidades.599
596 Gomes, Joaquim B. Barbosa. Ed. Renovar. Ação Afirmativa e o Princípio Constitucional da Igualdade. 597 op. cit., p. 62. 598 op. cit., p. 62. 599 op. cit., p. 63.
156
Para a teoria compensatória, a solução consiste em aumentar as
chances dessas vítimas históricas com relação às oportunidades que teriam
naturalmente, caso não houvesse discriminação.600 Barbosa ainda nota que há
casos em que a ação compensatória pode não parecer assim por parte do agente
que a executa, embora sempre o seja para a vítima.
A tese compensatória é enfraquecida por essa perspectiva, isto é, o
raciocínio jurídico tradicional se baseia em ilicitude, dano e remédio, e tais implicam
em que somente quem sofre diretamente o dano pode postular a compensação,
enquanto somente quem efetivamente praticou o ato ilícito que resultou no dano
deve ser responsável pela compensação.
Não obstante, Joaquim Barbosa considera que as ações afirmativas
se justificam melhor pela perspectiva da justiça distributiva do que pela
compensatória, embora ambas frequentemente se conjuguem.
A Justiça Distributiva remonta a Aristóteles e diz respeito a “promover
a redistribuição equânime dos ônus, direitos, vantagens, riqueza e outros
importantes ‘bens’ e ‘benefícios’ entre os membros da sociedade”.601
Daí decorre que não é justo que os que sofrem as iniquidades
tenham de suportá-las continuamente, devendo “a adoção de oportunidades
especiais” mitigar e extirpar as “desvantagens oriundas de injustiça do passado”
para “se construir uma sociedade na qual todos os indivíduos tenham parcelas mais
equitativas dos benefícios e ônus da vida americana”.602
Justiça distributiva, pois, é uma busca de justiça no presente, ao
passo em que a justiça compensatória visa a retroação para reparação dos danos
sofridos no passado.
Sob essa ótica, “a ação afirmativa define-se como um mecanismo de
‘redistribuição’ de bens, benefícios, vantagens e oportunidades que foram
indevidamente monopolizadas por um grupo em detrimento de outros, por intermédio
de um artifício moralmente e juridicamente condenável – a discriminação, seja ela
racial, sexual, religiosa ou de origem nacional”.603
600 op. cit., p. 63-64. 601 op. cit., p. 66. 602 op. cit., p. 66. A referência à vida americana ocorre em virtude do contexto da obra de Joaquim Barbosa; todavia, por “vida americana” pode-se entender, sem prejuízo, a vida brasileira. 603 op. cit., p. 68.
157
Há ainda, entre os que apoiam o distributivismo, a perspectiva
utilitarista, que vislumbra um substrato de tal espécie. Nesse contexto, a
redistribuição promove o bem-estar geral, pois ao se reduzirem a pobreza e a
desigualdade também tendem a desaparecer o rancor, o ressentimento e a perda do
autorrespeito decorrentes da desigualdade. Dentre os que abraçam tal argumento,
segundo Joaquim Barbosa, encontram-se Wassertrom e Dworkin. Assinala ainda
Joaquim Barbosa que a tese da justiça distributiva “é sustentada pela grande maioria
dos partidários das ações afirmativas, que nela veem o seu fundamento
definitivo”.604
Assim, tomar-se-á como predominante o entendimento de que as
políticas públicas afirmativas visam a promoção do bem-estar geral, promovendo ao
mesmo tempo a justiça compensatória e a justiça distributiva, buscando a
implementação do princípio da igualdade.
Ademais, de se concluir, com base no acima exposto, que, ao
implementar política pública afirmativa que inclui tratamento diferenciado na intenção
da defesa, preservação e renovação do meio ambiente, o Poder Público age visando
a implementação do princípio da igualdade e o atendimento dos critérios que
embasam o desenvolvimento sustentável, na medida em que a ambos vier a
atender.
Segue-se uma exposição sobre a tributação, sua vocação em relação
ao meio ambiente e o modo como se direcionam receitas para, efetivamente,
atender às necessidades presentes e futuras de um mundo sustentável, expondo o
caso específico do ICMS Ecológico.
V.6. DIREITO TRIBUTÁRIO AMBIENTAL, DISTRIBUIÇÃO DE RECEITAS E ICMS
ECOLÓGICO
Cristiane Derani afirma que “o tributo é um instrumento de
redistribuição de riquezas”.605
604 op. cit., p. 72. 605 in Amaral, Paulo Henrique do. Direito Tributário Ambiental. São Paulo: RT, 2007. Apresentação, p. 16.
158
Paulo Henrique do Amaral, abordando o tema da do Direito Tributário
Ambiental,606 faz uma série de importantes considerações, que abarcam muito mais
do que se tem condição de expor neste breve trabalho, motivo pelo qual, aqui, ater-
se-á a aspectos pontuais do Direito Tributário Ambiental.
Primeiro, o fato de que os chamados “tributos ambientais” encontram-
se em franca utilização na Europa. Há impostos sobre emissões de enxofre, gás
carbônico, óxidos de nitrogênio, e formas de diferenciação fiscal de combustíveis,
que acabam por reduzir as emissões de poluentes nos combustíveis consumidos,
com benefícios como melhoria significativa na capacidade de tratamento de água.
Tais impostos ocorrem na Escandinávia, na Áustria, Bélgica, França, Alemanha,
Holanda, Reino Unido. Além disso, há os incentivos e cobranças ligados a condutas
empresariais, visando amenizar (ou mesmo impedir) a degradação ambiental.607
No Brasil, a implementação da tributação ambiental é ainda
incipiente, embora esteja se realizando – um dos resultados de tal movimento foi a
Emenda Constitucional 42/2003, que resultou no inc. VI do art. 170 da nossa
Constituição, que já foi citado acima.
Paulo Henrique do Amaral também nos informa que as medidas de
proteção ambiental – diretamente ligadas ao princípio do desenvolvimento
sustentável (medidas que incluem medidas de ordem econômica, tributária, jurídica,
regulamentadora, e assim por diante) – “almejam a alteração de condutas poluidoras
ou a estimulação de atividades voltadas para a proteção ambiental, além de captar
recursos para custear projetos de desenvolvimento sustentável”.608
Sabe-se que o Estado deve cumprir os objetivos fundamentais
constitucionais e, de todo modo, atender aos ditames constitucionais e à ordem que
se estabelece a partir da Constituição da República. Para isso, o Estado necessita
de recursos financeiros; e o capital estatal tem sua base nos tributos pagos pelo
contribuinte, “sendo o tributo uma ‘prestação pecuniária compulsória’” (art. 3º. do
Código Tributário Nacional).609 No tributo não há somente uma imposição que,
descumprida, leva a uma punição: aí encontra-se a possibilidade de realização de
bens e serviços que um só indivíduo dificilmente poderia realizar isoladamente.
606 Amaral, Paulo Henrique do. Direito Tributário Ambiental. São Paulo, RT, 2007. 607 op. cit., p. 27-28. 608 op. cit., p. 38. 609 op. cit., p. 49.
159
O desenvolvimento regional sustentável impõe imenso desafio aos
governantes brasileiros: a instalação de indústrias altamente poluentes em regiões
carentes não pode resolver o problema da pobreza às custas de desprezo pela
proteção ambiental – pois, como anteriormente se expôs, a sustentabilidade é
multidimensional: social, econômica, ambiental, jurídica, política, e assim por diante.
Em tempos de implementação do desenvolvimento sustentável,
cabem políticas públicas (e ações afirmativas), eventualmente por meios tributários e
econômicos, que visem reorientar as condutas dos agentes poluidores – de modo a
adotarem formas de tratamento e redução dos poluentes, eliminando-os, e ainda
assim tornar suportáveis os custos de produção.
A utilização do sistema tributário em benefício da proteção ambiental
não exclui medidas administrativas, civis, econômicas e penais.
V.6.1. Externalidades e sua Internalização
Em relação à proteção ambiental, há o que se chama externalidade
no processo produtivo. Como explica Paulo Henrique do Amaral, “Por exemplo, o
produtor e o consumidor de um produto poluidor não levam em conta o prejuízo que
a contaminação produz a terceiros. Como consequência, o preço do produto só tem
custos e benefícios privados (de produtores e consumidores) e não custos sociais
(os prejuízos sobre terceiros)”.610
Claro que a percepção da necessidade de tratar o meio ambiente
com relação à poluição nele gerada tem um custo – que via de regra refletir-se-á no
produto quando se trata de impor um custo social, se o Poder Público tiver de
absorver e tratar a externalidade gerada pelo processo produtivo, isto é, a
consequência – de natureza indesejável – gerada pelo processo produtivo, que de
qualquer forma é absorvida pela sociedade em geral.
Assim, a poluição gerada, caso não seja tratada, é absorvida pelo
entorno de uma indústria, com consequências desastrosas que estão nos meios de
comunicação, visíveis em todos os noticiários. 610 op. cit., p. 53.
160
Há também que se perceber que o próprio tributo – caso seja
efetuado sobre uma atividade poluidora para que ocorra seu controle – pode gerar
outra externalidade (inclusos aí os custos do processo produtivo). Porém, esse custo
é necessário para que se financie o desenvolvimento da atividade produtiva com a
correspondente absorção (internalização) de necessidade adicional que antes não
era considerada – a que diz respeito o desenvolvimento sustentável.
Há algo mais a se considerar, e pode-se aí dar outro exemplo. Em
uma região metropolitana há via de regra vários municípios que dela participam. Um
deles, por ser particularmente dotado de águas em sua região, pode sofrer o ônus
de não poder desenvolver determinadas atividades produtivas (porque demasiado
poluentes) com o fim de preservar as águas que servem a toda a região
metropolitana à qual pertence; isso, por óbvio, limitando a atividade produtiva
daquele município – que serve água para todos os outros – acabará por empobrecê-
lo, ao ponto de inviabilizar a própria proteção da água que serve.
Este é o caso que ocorreu durante certo tempo no Município de
Piraquara, pertencente à Região Metropolitana de Curitiba, no Estado do Paraná.
Tornou-se o Município mais pobre do Paraná, preservando as águas que servem
praticamente toda a Região Metropolitana da “Grande” Curitiba.
Que solução dar a este problema? Seria preciso ter meio de
sustentar o Município de Piraquara para que, socialmente, fosse possível manter
certo padrão, incluindo educação, saúde, e outras coisas que não excluem o custeio
mesmo da própria administração municipal; economicamente, ter-se-ia de dar modo
de manter a economia do lugar; em termos de proteção ambiental, a própria
atividade de policiamento florestal tem custo que não pode ser desprezado. Mais
adiante tratar-se-á desta questão.
Informa Paulo Henrique do Amaral que
(...) a intervenção do Estado na economia, visando corrigir falhas de mercado, poderá se dar por meio da implementação de política tributária ecológica capaz de incentivar atividades econômicas não-poluidoras ou desestimular as agressoras ao meio ambiente, por exemplo, mediante a adoção de equipamentos de neutralização, diminuição e prevenção do dano ambiental. Essa política poderá comportar a utilização de incentivos fiscais com a finalidade de desonerar a produção por adotar mecanismos limpos e a instituição de tributos, objetivando desestimular a poluição ou na instituição de tributo sobre atividades agressoras ao meio ambiente.
611
611 op. cit., p. 57.
161
A instituição e destinação de tributos é matéria de estudos – como
também o são as limitações ao poder de tributar – que de modo geral escapam às
reduzidas perspectivas deste artigo.
Não obstante, é de peculiar atenção o fato de que, com finalidade
extrafiscal (e dentro de certos limites),612 pode haver modificação na destinação da
receita repartida – oriunda da arrecadação de tributos.
V.6.2. Distribuição de Receitas: Caso do ICMS
A Constituição da República, tratando da Repartição das Receitas
Tributárias a partir de seu art. 157, dispõe várias normas que especificam o modo
como as receitas (oriundas dos vários tributos arrecadados pelos entes federativos)
serão distribuídas.
De especial atenção para o presente caso é a repartição das receitas
oriundas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de
Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (conhecido
como ICMS) definido na Constituição da República no art. 155, II e § 2º. (e incisos e
alíneas), que tem suas normas gerais dadas pela Lei Complementar nº 87, de 13 de
setembro de 1996, cuja competência de instituição (para regras específicas)
pertence aos Estados e Distrito Federal dentro das respectivas competências
legislativas territoriais.
O art. 158 da Constituição da República, no que dispõe acerca da
distribuição das receitas oriundas de ICMS aos Municípios, dispõe o seguinte:
Art. 158. Pertencem aos Municípios: (...) IV - vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.
612 Eis o que diz Paulo Henrique do Amaral (op. cit., p. 64) a respeito: “(...) os tributos têm dupla função que é fundamentalmente diferenciada pelo fim que perseguem. Por um lado, a natureza arrecadatória dos tributos é seu fim fundamental para o Estado poder custear as necessidades públicas, caracterizando, assim, a função primária do tributo. Em contrapartida, o tributo pode ser adotado como instrumento de política social, econômica e, é claro, ambiental, com a finalidade de levar a cabo os fins constitucionais”. Bem assim se conclui que a função extrafiscal é justamente a utilização do tributo como instrumento de política – o que cabe no caso da destinação da receita do ICMS, como se vê adiante.
162
Parágrafo único. As parcelas de receita pertencentes aos Municípios, mencionadas no inciso IV, serão creditadas conforme os seguintes critérios: I - três quartos, no mínimo, na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, realizadas em seus territórios; II - até um quarto, de acordo com o que dispuser lei estadual ou, no caso dos Territórios, lei federal.
Eis que a Constituição, pois, dá aos Estados e ao Distrito Federal
(ou, se vierem a existir, à própria União, em caso de se tratar de Território) poderes
para dispor de até um quarto dos 25% do produto da arrecadação do ICMS por meio
de lei. Esta norma representa autorização de manejo da receita do ICMS, por parte
do Estado ou do Distrito Federal, visando – entre outras coisas – a solução de
questões ligadas ao desenvolvimento sustentável (mormente em termos de
viabilização econômica) dos Municípios que integram a respectiva unidade da
federação.
V.6.3. ICMS Ecológico: o Caso do Paraná
Caso emblemático – porque o primeiro Estado da Federação em que
foi instituída lei dispondo daquela parcela do ICMS relativamente aos municípios – é
o do Paraná.
Eis o que diz website que informa a respeito do ICMS Ecológico
quando aborda o âmbito paranaense:
O movimento paranaense teve origem na mobilização política de municípios, associada à necessidade de modernizar as políticas públicas ambientais e mediada pelo Poder Legislativo, haja vista que o ICMS Ecológico foi criado ainda por conta da Constituição Estadual, em 1989, tendo sido regulamentado por lei complementar dois anos depois, em 1991. À época, os municípios mobilizados consideravam-se prejudicados por terem parte do seu território, ou em alguns casos a totalidade, restrito ao uso econômico tradicional por abrigarem mananciais de abastecimento público para municípios vizinhos ou, ainda, por possuírem Unidades de Conservação da Natureza. Nesse contexto, o ICMS Ecológico surgiu como forma de compensar os municípios que se viam privados do uso de suas terras, espírito legal que, com o tempo, adquiriu novo caráter, o de premiação aos que possuem qualidade na gestão de suas áreas. Desde que foram criados até os dias atuais, os critérios ambientais e a efetiva aplicação do ICMS Ecológico aprimorou-se graças aos incansáveis esforços do Instituto Ambiental do Paraná – IAP, por intermédio de Wilson Loureiro, um dos profissionais mais atuantes nessa temática em todo o Brasil, coordenador da pasta responsável pelo ICMS Ecológico no IAP e que colaborou com diversos estados brasileiros para a implantação desse mecanismo em seus respectivos ordenamentos jurídicos. Um dos principais resultados da experiência paranaense é o aumento da superfície das áreas protegidas, além da melhoria na performance qualitativa das Unidades de Conservação, já que esse incentivo econômico está associado a outros instrumentos de política pública que visam à criação, implementação e gestão de Unidades de Conservação
163
e outras áreas protegidas, com o objetivo de formação de corredores ecológicos, o que denota o caráter de integração do ICMS Ecológico em relação às demais políticas públicas ambientais do estado.
613
Assim, a criação de destinação diferenciada de parcela da
arrecadação do ICMS para os municípios do Estado do Paraná relacionados com a
preservação do meio ambiente possibilitou certo grau de redução das desigualdades
econômicas – e, por reflexo, sociais – regionais naquelas municipalidades obrigadas
à preservação ecológica e com dificuldades para justificar a necessária redução e/ou
limitação na atividade econômica dentro de seus territórios.
O sistema de distribuição do quarto constitucional previsto no inc. II
do parágrafo único do art. 158 da Constituição da República, no Paraná, apresenta-
se da seguinte forma:
O sistema de funcionamento do ICMS Ecológico no Paraná está baseado em dois critérios: áreas protegidas e mananciais de abastecimento, possuindo cada um 2,5%, inteirando os 5% do critério ecológico presente na lei. Os restantes 20% que complementam o total que o estado pode dispor está dividido entre: 8% para produção agropecuária, 6% para número de habitantes na zona rural, 2% segundo a área territorial do município, 2% como fator de distribuição igualitária e 2% considerado o número de propriedades rurais.
614
Observe-se que o critério de distribuição – que origina a alcunha de
ICMS Ecológico – na verdade é de uma distribuição visando à sustentabilidade, pois
há preocupação com produção, população na zona rural, área territorial (para
desenvolver o município segundo sua área), busca por distribuição igualitária e
número de propriedades rurais, além da preservação de áreas protegidas e
mananciais de abastecimento.
No caso paranaense, a legislação que trata do tema está assim
disposta (até o nível normativo dos decretos): Constituição do Estado do Paraná, de
5 de dezembro de 1989; Lei n.º 9.491, de 21 de dezembro de 1990 (Estabelece
critérios para fixação dos índices de participação dos municípios no produto da
arrecadação do ICMS); Lei Complementar n.º 59, de 1.º de outubro de 1991 (Dispõe
sobre a repartição de 5% do ICMS, a que alude o art. 2.° da Lei n°. 9.491/90, aos
municípios com mananciais de abastecimento e unidades de conservação
ambiental, assim como adota outras providências); Lei Complementar n.º 67, de 8 de
janeiro de 1993 (Dá nova redação ao art. 2.º, da Lei Complementar n.º 59, de 1.º de
613 http://www.icmsecologico.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=74&Itemid=77,
acesso em 21/07/2012.
164
outubro de 1991); Decreto n.º 2.791, de 27 de dezembro de 1996 (Critérios técnicos
de alocação de recursos a que alude o art. 5.º da Lei Complementar n.º 59, de
01/10/1991, relativos a mananciais destinados a abastecimento público); Decreto n.º
3.446, de 14 de agosto de 1997 (Criadas no Estado do Paraná as Áreas Especiais
de Uso Regulamentado – ARESUR); Decreto n.º 1.529, de 2 de outubro de 2007
(Dispõe sobre o Estatuto Estadual de Apoio à Conservação da Biodiversidade em
Terras Privadas no Estado do Paraná, atualiza procedimentos para a criação de
Reservas Particulares do Patrimônio Natural – RPPN – e dá outras providências).
As tabelas que dizem respeito aos repasses estão disponíveis nos
endereços da Internet já citados; apenas como exemplo, o Município de Piraquara,
no ano de 2005, recebeu o montante que se apresenta na tabela abaixo:615
V.7. CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS
A observar-se a composição da receita oriunda de ICMS que foi
destinada ao Município de Piraquara em 2005, percebe-se claramente que quase
70% da receita foi oriunda do ICMS Ecológico.
Daí que a política pública de extrafiscalidade, relacionada à
repartição da receita tributária oriunda do ICMS arrecadado pelo Estado do Paraná,
tem servido, evidentemente, para o aporte de importantes recursos que visam prover
meios para que os Municípios tenham condições de promover a sustentabilidade
(em seus vários aspectos) em seus próprios territórios. 614 ibid. 615 A fonte é a mesma do endereço eletrônico na nota 27 acima.
valores em reais (R$)
Repasse da cota
parte do ICMS no
ano de 2005
Valores Líquidos
(já deduzidos o
Fundef)
Composição no
Fator Ambiental
(%)
Valor do ICMS
correspondente a cada
Fator Ambiental
Valor do
repasse
corresponden
te ao "ICMS
Ecológico" no
ano de 2005
Conser- vação
Mananciais Conservação Mananciais
Piraquara 11.389.114,42 2,68 64,75 305.000,48 7.374.907,15 7.679.907,63
165
Aproxima-se assim da almejada isonomia na repartição das receitas
entre os municípios, corrigindo desigualdades mediante um mecanismo de
diferenciação típico de uma política pública afirmativa; deste modo, implementa-se o
conteúdo da igualdade formal atendendo aos requisitos do desenvolvimento
sustentável.
Resta, pois, demonstrado que é de grande importância o manejo dos
tributos e da receita tributária – ao menos no âmbito do manejo do ICMS – para o
desenvolvimento sustentável e a implementação do princípio da igualdade.
O ICMS Ecológico, segundo as notícias do website do ICMS Ecológico, está
hoje implementado em catorze estados brasileiros.
VI. CONCLUSÕES
Trata este trabalho de englobar as noções relativas a direitos
transgeracionais, ações afirmativas e princípio da solidariedade sob a expressão
“responsabilidade fraternal”, delimitando-se como responsabilidade ética,
significativamente importante para a continuidade e participação da empresa no
cenário atual, esclarecendo que a responsabilidade fraternal assim prevista tem
abrangência maior do que a simples responsabilidade social nos termos usualmente
empregados pela doutrina, e fornecendo a compreensão de que, na medida em que
a empresa contribui de maneira fraternal para com a sociedade, está contribuindo
não somente para seu futuro na atividade econômica que desempenha, mas
também para o atingimento dos objetivos fundamentais nacionais.
Há grande número de razões, que não são novidade, pelas quais é de
importância crescente (e, sob vários aspectos, vital para a economia nacional e
mundial) agir de maneira representativamente ética e solidária para com a
comunidade em que uma empresa se insere, visando, ademais, o maior raio de
influência possível em relação à localização em que uma empresa exerce sua
atividade econômica.
166
Nas páginas anteriores expôs-se uma pequena parte dessas razões, que
convencem academicamente da importância do agir racionalmente fraterno visando
a comunidade, a preservação do meio ambiente, a erradicação da pobreza, o
desenvolvimento nacional, a redução das desigualdades; isso pode perfeitamente se
dar através de ações que visam proporcionar educação e trabalho, além da
preservação ambiental tão imprescindível nos dias atuais.
Pondere-se, por fim, o fato de que parte da doutrina considera que a
responsabilidade social abrange também esta porção da atuação ética da empresa a
que se atribuiu a significação de “fraternal”, como expõe Elaine Arantes:
o Instituto Ethos preconiza que responsabilidade social é uma forma de gestão definida por uma relação ética e transparente da empresa com todas as partes interessadas: funcionários, fornecedores, governo, meio-ambiente, concorrência, consumidores/clientes, acionistas, comunidade e sociedade. Além de gerenciar este relacionamento permeado pela ética e transparência, a empresa socialmente responsável respeita a diversidade e considera o desenvolvimento sustentável em cada tomada de decisão relativa ao negócio.
616
O mesmo trabalho de Elaine Arantes, aliás, expõe o fato de que, no
período de outubro de 2001 a outubro de 2005, as ações de empresas ligadas a
boas práticas de responsabilidade social, ambiental e corporativa (Fundo ABN Amro
Ethical) valorizaram cerca de 30% a mais do que as ações componentes do
Ibovespa.617 E este indicador menciona apenas uma experiência brasileira, que é
ratificada no mesmo relatório por outros índices diferenciados, relacionados ao Dow
Jones.618
O investimento em educação infantil, por exemplo, promete resultados
para o futuro, no caminho da formação da mente do brasileiro e também da
obtenção de mão-de-obra qualificada – que as empresas não tenham de importar –
e na geração de tecnologia de custos menores, pois as empresas poderão ter seus
tecnólogos em território nacional, não tendo também de importá-los a peso de ouro
de outros países. Eis o que disse a respeito Regina de Assis, Consultora em
616 Arantes, Elaine. Investimento em Responsabilidade Social e sua Relação com o Desempenho Econômico das Empresas. Internet: http://www.reciclecarbono.com.br/biblio/retorno.pdf, acesso em 27/11/2011 às 23h27, p. 3. 617 Arantes, Elaine, op. cit., p. 4-5. 618 Arantes, Elaine, op. cit., p. 4. O índice de sustentabilidade Dow Jones, entre 1993 e 2005, indica cerca de 60% a mais de valorização em relação ao índice Dow Jones geral; em 2005, o Banco Itaú, a Cemig e a Aracruz faziam parte do índice Dow Jones de sustentabilidade. Só isso já é uma considerável propaganda em favor de tais empresas.
167
Educação, relatora das Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil, em entrevista
à Revista Escola da Editora Abril em maio de 2000:
Pesquisas desenvolvidas nos Estados Unidos, na Escandinávia e na Itália mostram que a criança que passa por um bom programa de Educação Infantil chega ao primeiro ciclo lendo, escrevendo e trabalhando com quantidades muito bem. Além disso, molda uma boa auto-estima. Quem recebe uma formação adequada antes dos 6 anos dificilmente fracassa no Ensino Fundamental. Se os governos só estão pensando em cifrões, fiquem sabendo que vão lucrar, porque investir em Educação Infantil significa diminuir a repetência e a evasão.
619
Talvez este tema seja antigo, batido em sua origem – pois há anos muitos
clamam pela importância da participação empresarial em questões sociais – mas é
de se perceber que hoje tais perspectivas não se constituem unicamente em pedido,
mas também em alerta contra o colapso da economia mundial.
A absorção de uma crise econômica não pode se dar só pelas empresas:
embora elas estejam na base da economia, não se pode esquecer que a produção
de riquezas também se dá através do trabalho, e o consumo também se dá através
da informação e da educação do consumidor,620 sem esquecer do inegável papel do
Estado na educação, na promoção da justiça e na defesa da livre iniciativa e da
valorização do trabalho.
A despeito de todo o exposto, outras perspectivas são possíveis. Negar a
responsabilidade ética também é sempre possível, em certa medida, mas equivale,
em forma de anedota, ao popular “tiro no pé”: de posse de uma arma, o atirador
despreparado não acerta no alvo em que pretende mirar, mas em si mesmo,
aleijando sua chance de atingir um objetivo almejado.
O empresário, em relação à formação da mentalidade nacional do futuro,
será lembrado por suas medidas de participação e omissão nesse ato de construção
da cidadania, preconizado pela Constituição Federal, que exige de todos os setores
da sociedade alguma espécie de esforço.
Toda política de incentivo pode, eventualmente, transformar-se em norma
com conteúdo obrigatório, e vice-versa – deixando de ter o sentido obrigatório, pode
tornar-se um simples elemento típico de fomento ou estímulo.
619 http://revistaescola.abril.com.br/educacao-infantil/educacao-infantil-no-brasil/educacao-infantil-
retorno-419438.shtml, acesso em 27/11/2011 às 23h43. 620 A Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), que em seu artigo 1º. (caput) esclarece que “estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social”, ao estabelecer em seu art. 4º. a Política Nacional das Relações de Consumo, inclui em seu inciso IV os princípios da educação e informação “de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo”.
168
Hoje, por exemplo, o balanço social pode ser algo de curioso interesse
para o setor de marketing de uma empresa; amanhã, pode ser uma obrigação de
natureza fiscal. A adaptação das empresas a esse tipo de possibilidade pode se
mostrar interessante na medida em que se vive em um mundo cujas transformações,
em razão dos problemas ambientais, estão longe de se amenizarem.
A escassez dos recursos naturais e a necessidade de sua preservação,
hoje, é fator altamente tendente a limitar a atividade econômica; certamente, as
empresas que forem capazes de lidar com tais considerações serão aquelas que
terão mais chances de sobrevivência, em uma ordem jurídica futura, que passe a
exigir procedimentos semelhantes, ou análogos, no momento de prestação das
contas da empresa para com a sociedade.
Além disso, o empresário previdente sabe que tem de suportar impacto
significativo para adaptar-se às mudanças legislativas. Quando está preparado para
lidar com a iminência delas, é quase certo que seu negócio se recuperará mais
rápido, tendo grande chance de sair à frente da concorrência. Com tal pensamento
presente, é de se considerar as possibilidades aqui previstas, não apenas como um
fator ético e uma perspectiva de lucros futuros, mas, também, como possibilidades
sobre as quais vale à pena se debruçar, estimando custos para eventuais
necessidades de transformação.
Apresentou-se, ademais, uma breve discussão acerca das diferenças entre
Ordem Constitucional, Ordem Pública e Razões de Estado, apresentando as
condições nas quais o interesse público é satisfeito e discorrendo por alto a respeito
dos mecanismos para garantia da ordem constitucional quando (a) as Razões de
Estado são inconstitucionais; (b) as Razões de Estado são constitucionais.
Qualquer espécie de intervenção que o Estado venha a promover em
domínios que se refletem no campo dos contratos – em especial o domínio
econômico – causa impactos via de regra indesejáveis, embora nem sempre
imprevisíveis.
É de se imaginar que os efeitos, quando imprevisíveis para o particular –
seja em termos de sua espécie ou em termos de sua quantidade – em geral dizem
respeito a atos que, levados a termo pela Administração Pública, muitas vezes são
explicados como Razões de Estado, embora nem sempre sejam coerentes com a
Ordem Pública e Constitucional.
169
Na medida em que se reconhece a relatividade das razões de Estado,
percebe-se o fortalecimento da democracia. Se cidadão não puder perceber a
diferença entre a vontade constitucional e a vontade da Administração Pública, nem
sempre congruentes, ameaçada estará a democracia, o processo democrático e, de
todo, a Constituição como Lei Suprema de um Estado, pairando sobre este a
desintegração de qualquer segurança jurídica que se proponha manter.
Apresentou-se brevemente a atividade reguladora no Brasil, descrevendo
basicamente a função reguladora e incluindo considerações acerca do fato de que a
função reguladora, em sua extensão, deve considerar a missão para a qual a
agência reguladora foi criada, tendo fundamento constitucional que a valida e
também a limita em sua existência e atuação.
À guisa de conclusão, deve-se observar que a verdadeira liberdade é
exercida dentro dos limites que a ela são impostos, em razão da imperatividade das
normas e, também, de uma postura ética necessária. A ordem social como um todo
se beneficia disso, e tanto o empresário, quanto o cidadão, quanto o Estado,
enquanto integrantes da sociedade, podem de tal circunstância extrair o máximo
para a consecução de seus próprios objetivos – individuais, coletivos,
transindividuais e transgeracionais – visando uma harmonia que é preconizada pelo
Estado Social, Democrático e Ambiental de Direito.
Na pág. 77 da presente exposição, falou-se a respeito da “publicização do
Direito Privado”, o que também foi chamado de “constitucionalização do Direito
Civil”.
De pensar que o Direito Privado é uma faceta do Direito sobre a qual
sempre paira o Direito Público, porque mais abrangente e supostamente mais
sintonizado com as necessidades coletivas do que essa parte do Direito que rege
exclusivamente as relações particulares.
Mais além, é preciso reconhecer que, num Estado que prima pela
participação democrática, pelo desenvolvimento social e pela sustentabilidade, deve
haver o reconhecimento de que é preciso ter um olhar sobre as relações privadas,
na medida em que estas nunca prescindem de conexões com outros setores de
atividade, privada ou não. Sobre tais condições a Constituição reina, absoluta, e o
Direito Civil não pode ser imune a isso; quando se fala de Constitucionalização do
170
Direito Civil, o que se faz, na verdade, é colocar em prática a harmonização dos
direitos de liberdade, de igualdade e de fraternidade.
De se perceber que numerosos trabalhos, na atualidade, são publicados
permeando a importância de medir-se com relação à sustentabilidade. Exemplo é o
livro organizado pela Profa. Mara Darcanchy, onde se encontra “um conjunto de
capítulos relativos aos direitos fundamentais, à ética, ao terceiro setor, ao acesso
judicial a medicamentos, ao meio ambiente, à governança corporativa, à função
social, ao trabalho, à conciliação, à dignidade humana e às práticas sociais das
empresas, entre outros temas constitucionais, empresariais, tributários, trabalhistas,
civis, socioambientais e filosóficos, sempre com interfaces à justiça social”.621
Assim, percebe-se uma relação tripartite, em que Estado, Empresa e
Cidadão participam na construção da Sociedade, não apenas como livres, nem
apenas como iguais, mas também como solidários, eventualmente confundidos em
duas partes, ou mesmo os três entre si.
Estão amarrados entre si, compromissados não apenas pela necessidade
de sobrevivência, mas por um movimento científico, do qual não se abstraem as
ciências jurídicas, que participam com a compreensão de que é necessária uma
intervenção visando salvar e preservar.
A integração com a luta por reconhecimento de Honneth também traz a
perspectiva de que, no caminho de desenvolvimento da sociedade, também há um
entrelaçamento com o desenvolvimento individual, de modo que o desenvolvimento
da sociedade também depende do desenvolvimento do indivíduo em acordo com a
sociedade. Na medida em que ambos se reconhecem (e conhecem a si mesmos,
indivíduo e sociedade), é possível estabelecer, num caminho de degraus de
aprofundamento, direitos de liberdade, igualdade, solidariedade e, na 4ª. dimensão,
democracia.
A tese de doutorado da professora Viviane Séllos Knoerr tem algo a dizer
a respeito. O direito à ressocialização do encarcerado é um direito de todos; não
apenas do encarcerado, pois seu desenvolvimento pessoal se traduz em acréscimo
de liberdade coletiva e individual para a sociedade e outros indivíduos a ela
621 Darcanchy, Mara. Direito, Inclusão e Responsabilidade Social. 1ª. ed. São Paulo: LTr, 2013. O
comentário reproduzido é da sinopse do livro, impossível de resumir neste contexto.
171
pertencentes. O reconhecimento de tal direito é um exemplo de concepção solidária
com relação ao desenvolvimento, dentro de uma perspectiva de sustentabilidade.
A exposição de um substrato moral inerente às lutas sociais, considerada
a luta por reconhecimento, implica em restabelecer um status fundamental à máxima
socrática do “conhece a ti mesmo”, dando relevo aos processos de formação
psicológica nas relações sociais, e sublinhando a necessidade de considerar ética e
detidamente o modo como tais relações se estabelecem, o que em parte é objeto do
Direito, pois, se este pretende regular as relações sociais, usando também da
administração da Justiça (isto é, pacificando-as em princípio, conciliando vontades e
cumprindo o honeste vivere, neminem ledere, cuique suum tribuere),622 precisa estar
atento às minúcias em um mundo onde toda verdade é relativa.
Frase que complementa esse raciocínio é de Francisco Cardozo de
Oliveira: “A ordem jurídica comprometida com a tutela efetiva dos direitos deve estar
orientada para assimilar os valores da situação de fato. O que não significa,
entretanto, o abandono puro e simples da formulação teórica. A abstração conceitual
deixa de ser a premissa fundamental do conhecimento jurídico que passa a
reconhecer válida a teoria que seja capaz de incorporar os elementos valorativos da
situação de fato a ser regulada, ou seja, que possa dar conta do processo de
interpretação e concretização do direito”.623
Este trabalho, em síntese, constitui-se também numa espécie de relato,
uma assimilação, uma construção relativa ao trabalho que se vem desenvolvendo no
Programa do Mestrado em Direito e Cidadania do UNICURITIBA, pois a articulação
das leituras e a estreita colaboração entre as disciplinas do programa permite
adquirir a compreensão vívida do Princípio Constitucional da Sustentabilidade, tão
imprescindível para o mundo atual, tão premente e tão presente em praticamente
todos os ramos do Direito.
Quando se fala em preservar, incluindo-se aí algo de um reciclar, há um
movimento todo que se deve perceber na Constituição, na lei internacional e
nacional, nas escolas de pensamento filosófico e jurídico, que se pretendeu
espelhar, embora palidamente, neste breve trabalho, cujo ponto alto foi a ênfase na
622 Frase atribuída a Ulpiano: Viver honestamente, a ninguém lesar, dar a cada um o que lhe é
devido. 623 Oliveira, Francisco Cardozo. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 1.
172
percepção dessa necessidade de integração entre os diferentes atores que
participam dessa necessidade de desenvolvimento sustentável: mais do que uma
discussão sobre fundamentos estabelecidos, o que se procurou foi fornecer bases
para a visualização de uma ordem em que se vislumbre uma colaboração e não uma
competição.
Não está o cidadão ameaçado de desaparecer sozinho, nem tampouco o
Estado, como também não pode a empresa sobreviver sem os outros dois; porém,
na prática diária, o que se observa são incongruências que, eventualmente,
necessitam de uma perspectiva supra, como um afastamento relativo e uma
observação sobre o todo. Assim, pode-se identificar alguns aspectos que, numa
barafunda de detalhes, não aparecem como pontos comuns em um todo.
Identificados tais pontos, pode-se construir estratégias de ação. Uma
dessas, talvez, será objeto de tese de doutorado, a seguir-se em outro trabalho.
173
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