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CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL HABILITAÇÃO EM PUBLICIDADE E PROPAGANDA YAN GONÇALVES DE CASTILHOS FILMES DE UM HOMEM SÓ: A ONIPRESENÇA DE SHANE CARRUTH CAXIAS DO SUL 2017

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CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – HABILITAÇÃO EM PUBLICIDADE E PROPAGANDA

YAN GONÇALVES DE CASTILHOS

FILMES DE UM HOMEM SÓ:

A ONIPRESENÇA DE SHANE CARRUTH

CAXIAS DO SUL

2017

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YAN GONÇALVES DE CASTILHOS

FILMES DE UM HOMEM SÓ: A ONIPRESENÇA DE SHANE CARRUTH

Trabalho de conclusão de curso apresentado como Requisito obrigatório para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Publicidade e Propaganda da Universidade de Caxias do Sul. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ivana Almeida da Silva.

Caxias do Sul 2017

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YAN GONÇALVES DE CASTILHOS

FILMES DE UM HOMEM SÓ: A ONIPRESENÇA DE SHANE CARRUTH

Trabalho de conclusão de curso apresentado como Requisito obrigatório para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Publicidade e Propaganda da Universidade de Caxias do Sul. Aprovado (a) em: __/12/2017.

Banca examinadora: ________________________________________ Prof.ª Dr.ª Ivana Almeida da Silva Universidade de Caxias do Sul ________________________________________ Prof. Me. Jacob Raul Hoffmann Universidade de Caxias do Sul ________________________________________ Prof.ª Esp. Flóra Simon da Silva Universidade de Caxias do Sul

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Dedico esta monografia ao meu “eu do futuro”, esperando que seja uma pessoa feliz e com uma mente mais em paz. Dedico também a todos os espíritos livres deste mundo louco.

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AGRADECIMENTOS

Antes de mais nada, preciso agradecer à minha pessoa favorita, Marliva Vanti

Gonçalves, carinhosamente apelidada de mãe. Agradeço por ser o melhor exemplo

possível, mesmo que eu não siga (embora devesse) esse exemplo em vários

momentos. Agradeço seu apoio em todas as decisões absurdas e incertas que já

tomei. Admiro o esforço por conseguir criar seus dois filhos sozinha e admiro seu

otimismo e a alegria com que vive a vida. Nunca terei palavras para expressar o que

sinto por ela.

Agradeço à minha orientadora, Ivana Almeida da Silva, pelos ensinamentos,

pela paciência e por sempre me apoiar quanto ao tema escolhido, não importando que

ele fosse difícil e que não possuísse muito referencial teórico (especialmente em

Português).

Agradeço também aos meus amigos verdadeiros, que me proporcionam o que

mais prezo na vida, o riso, sem o qual eu tenho certeza que não conseguiria

sobreviver.

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“Agora estou perdido em algum lugar, entre um futuro brilhante

e um sonho terrível”.

Fictionist

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RESUMO

O presente trabalho monográfico tem como tema a busca das marcas de Shane Carruth como diretor de cinema. A pesquisa gira em torno da questão norteadora, que procura entender de que forma Carruth, que participa de mais de uma área criativa de seus filmes, expressa sua marca pessoal em uma obra fílmica, quando se trata do cinema de caráter autoral. Para um melhor entendimento das marcas pessoais do diretor, foram analisados os filmes principais e mais conhecidos do cineasta, Primer (2004) e Upstream Color (2013). O método utilizado é a Análise de Conteúdo, proposto por Laurence Bardin (2011). Foram selecionadas cinco cenas de cada obra, para que fosse possível destacar os aspectos de direção, escrita (roteiro), edição, atuação e composição de trilha sonora do diretor. O principal resultado alcançado foi o de que essa direção onipresente deixa marcas únicas de seu criador, tornando seus filmes extremamente autorais. No caso de Carruth, uma forma de roteiro bastante mutável de um filme para o outro; uma direção focada em planos detalhe e composição de cena; um ritmo de edição frenético; uma atuação sem dramatização em excesso e uma ênfase na trilha sonora, sempre buscando sensibilizar a cena. O lado negativo depende do profissional que emprega este método de direção. No caso de Carruth, é sumarizado pela privação de ideias que poderia aderir de seus colegas de produção, sejam elas boas ou más. Palavras-chave: Cinema, Direção, Shane Carruth, Autor, Marca pessoal.

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ABSTRACT This monographic work is about Shane Carruth’s marks as a film director. The research revolves around the guiding question, which aims to understand how Carruth, who participates in more than one creative area of his films, espresses his personal marks in a film work, when it comes to the Auteur Cinema. For a better understanding of the director personal traits, were analyzed the filmmaker’s main and most recognizable works, Primer (2004) and Upstream Color (2013). The method used is Content Analysis, proposed by Laurence Bardin (2011). Five scenes of each work were selected, where it was possible to highlight aspects about the filmmaker’s direction, writing (script), editing, acting and soundtrack composition. The main result was that his onipresent direction leaves unique marks of its creator, making the authorship of his movies extremely evident. In Carruth’s case, a very changeable script form from one film to another; a direction focused on close-ups and shot composition; a frenetic pace of editing; acting without overdramatizing and an emphasis on the soundtrack, always trying to sensitize the scene. The negative side depends on the professional who employs this method of directing. In Carruth’s case it is summarized by depriving himself from his co-workers’s ideas, wether good or bad. Key-words: Cinema, Directing, Shane Carruth, Auteur, Personal Mark.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Sir. Charles Spencer Chaplin......................................................................48

Figura 2: George Orson Welles..................................................................................50

Figura 3: Akira Kurosawa...........................................................................................51

Figura 4: Edward Davis Wood Jr................................................................................54

Figura 5: Stanley Kubrick...........................................................................................55

Figura 6: Os Coen......................................................................................................56

Figura 7: Fincher........................................................................................................61

Figura 8: Tarantino.....................................................................................................65

Figura 9: Anderson.....................................................................................................69

Figura 10: Boyle.........................................................................................................73

Figura 11: Shane Carruth...........................................................................................77

Figura 12: Pôster de Primer.......................................................................................78

Figura 13: Pôster de Upstream Color.........................................................................81

Figura 14: Carruth no set de Upstream Color............................................................89

Figura 15: Comparativo entre diretores autores contemporâneos e Carruth (arte do

pesquisador).............................................................................................................128

Figura 16: Comparativo entre diretores autores do passado e Carruth (arte do

pesquisador).............................................................................................................128

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LISTA DE FOTOGRAMAS

Fotograma 1: Inside Llewyn Davis (2013)..................................................................60

Fotograma 2: The Curious Case of Benjamin Button (2008).....................................64

Fotograma 3: Inglourious Basterds (2009).................................................................68

Fotograma 4: The Darjeeling Limited (2007)..............................................................72

Fotograma 5: Trainspotting (1996).............................................................................75

Fotograma 6: Primer...................................................................................................90

Fotograma 7: Primer – Abe e Aaron...........................................................................91

Fotograma 8: Primer – Abe e Aaron no armazém......................................................92

Fotograma 9: Primer – Abe e Aaron dirigem..............................................................93

Fotograma 10: Upstream Color..................................................................................94

Fotograma 11: Upstream Color – Kris e Jeff..............................................................95

Fotograma 12: Upstream Color – Orquídea normal e orquídea infectada.................96

Fotograma 13: Upstream Color – Jeff e Kris começam a desvendar o caso.............97

Fotograma 14: Upstream Color – Kris tem uma visão...............................................97

Fotograma 15: Upstream Color – Kris e o leitão........................................................98

Fotograma 16: Primer – Cena 1...............................................................................100

Fotograma 17: Primer – Cena 2...............................................................................101

Fotograma 18: Primer – Cena 3...............................................................................103

Fotograma 19: Primer – Cena 4...............................................................................106

Fotograma 20: Primer – Cena 5...............................................................................110

Fotograma 21: Upstream Color – Cena 1................................................................112

Fotograma 22: Upstream Color – Cena 2................................................................114

Fotograma 23: Upstream Color – Cena 3 (arte do pesquisador).............................119

Fotograma 24: Upstream Color – Cena 4................................................................120

Fotograma 25: Upstream Color – Cena 5................................................................122

Fotograma 26: Primer – Créditos (arte do pesquisador)..........................................138

Fotograma 27: Upstream Color – Créditos (arte do pesquisador)...........................138

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO................................................................................................13

1.1 METODOLOGIA.............................................................................................18

1.1.1 Pesquisa qualitativa...................................................................................18

1.1.2 Pesquisa bibliográfica...............................................................................19

1.1.3 Análise de Conteúdo.................................................................................19

2. CINEMA............................................................................................................21

2.1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E LINGUAGEM.....................................21

2.2 O CINEMA AUTORAL: SURGIMENTO E CARACTERÍSTICAS....................30

3. DIREÇÃO DE CINEMA....................................................................................38

3.1 O DIRETOR....................................................................................................38

3.2 OS PROCESSOS CRIATIVOS E AS MARCAS PESSOAIS..........................43

3.2.1 A velha guarda...........................................................................................47

3.3 DIREÇÃO COM PERSONALIDADE CONTEMPORÂNEA.............................55

3.3.1 Os Coen......................................................................................................56

3.3.2 Fincher........................................................................................................61

3.3.3 Tarantino.....................................................................................................65

3.3.4 Anderson....................................................................................................69

3.3.5 Boyle...........................................................................................................73

4. SHANE CARRUTH...........................................................................................76

4.1 O HOMEM POR TRÁS DA CORTINA............................................................77

4.2 ANÁLISE DE CONTEÚDO - FASE 1..............................................................90

4.2.1 Primer..........................................................................................................90

4.2.2 Upstream Color..........................................................................................94

4.3 ANÁLISE DE CONTEÚDO – FASE 2.............................................................98

4.3.1 Primer........................................................................................................100

4.3.1.1 Cena 1: Mais Uma Noite de Quarta........................................................100

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4.3.1.2 Cena 2: Filé ou Tacos?...........................................................................101

4.3.1.3 Cena 3: A & B.........................................................................................103

4.3.1.4 Cena 4: Passo a Passo...........................................................................106

4.3.1.5 Cena 5: Herói..........................................................................................110

4.3.2 Upstream Color........................................................................................112

4.3.2.1 Cena 1: Sincronia....................................................................................112

4.3.2.2 Cena 2: Estorninhos................................................................................114

4.3.2.3 Cena 3: Conexão....................................................................................119

4.3.2.4 Cena 4: Descoberta................................................................................120

4.3.2.5 Cena 5: Tudo Está Bem..........................................................................122

4.4 ANÁLISE DE CONTEÚDO – FASE 3...........................................................123

4.4.1 Direção......................................................................................................123

4.4.2 Roteiro.......................................................................................................129

4.4.3 Edição.......................................................................................................132

4.4.4 Atuação.....................................................................................................134

4.4.5 Trilha sonora............................................................................................136

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................139

REFERÊNCIAS..................................................................................................144

ANEXO...............................................................................................................151

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1. INTRODUÇÃO

“Nós pensamos demais e sentimos de menos.”

Charlie Chaplin

Existem diversos estudos sobre diretores cinematográficos. Existem ainda mais

estudos sobre a arte do cinema ou sobre diretores famosos que alcançaram a

grandeza. Alguns aspectos que não são tão difundidos são o cinema independente,

de baixíssimo orçamento; diretores amadores e autodidatas e, principalmente,

cineastas que passam pelo grande obstáculo que é fazer um filme praticamente

sozinhos.

Na presente monografia, busca-se, como objetivo geral, antes de mais nada,

entender, de que forma o diretor Shane Carruth, que assume diferentes domínios do

fazer cinematográfico e que produz um Cinema Autoral consegue expressar sua

personalidade, ideias e marcas pessoais em suas obras. Também procura-se

compreender, no âmbito do cinema e mapeando historicamente na cinematografia

mundial, a presença de diretores com a habilidade de atuar em várias frentes.

Logo, deverá se adentrar ao que é necessário para ser um diretor de cinema.

Como objetivo especifico, procura-se entender a área da direção cinematográfica e,

de forma mais específica, os profissionais dessa área que assumem diferentes

competências no fazer fílmico. Posteriormente, como objetivo específico, busca-se

entender o que são marcas pessoais, como elas conseguem aparecer em uma obra

fílmica e o que isso revela sobre quem as produziu. O cinema de caráter autoral será

muito abordado, visto que tenta, entre outras questões, elucidar de quem é o controle

criativo de um filme. Como objetivo específico, busca-se aprender o que define o

Cinema Autoral e qual o impacto que essa abordagem traz ao universo

cinematográfico.

Shane Carruth foi o diretor escolhido para análise, justamente em função de se

encaixar nos temas descritos anteriormente. Um diretor “faz tudo”, independente e

autodidata, que imprime em seus filmes marcas características, mas que também

possui suas falhas, demonstrando que o fazer fílmico “onipresente” não está livre de

defeitos. É, um dos objetivos específicos, inteirar-se acerca desse diretor, para fazer

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uma análise mais aprofundada de suas obras. Outro objetivo especifico é analisar

brevemente os aspectos positivos e negativos relacionados à onipresença de um

cineasta em seus filmes.

Tudo que é relevante deixa marcas. No cinema, isso não é diferente. Filmes

deixam impressões duradouras no indivíduo, memórias que vão perdurar para

sempre. Um dos maiores responsáveis por esses momentos é o diretor, pois ele deve

dar o “tom” e a atmosfera do filme e, consequentemente, gravar sua marca pessoal

nas obras.

O fazer fílmico passou por muitas transformações, desde os nickelodeon1 em

1905, até os cinemas IMAX2, de hoje. Depois de todo esse tempo, torna-se

praticamente incontestável dizer que a experiência audiovisual é uma arte. Mais do

que arte, também é uma linguagem. Um dos primeiros “mágicos” do cinema foi

Georges Méliès, que entendeu que a arte tinha mais potencial do que simplesmente

capturar o mundano dia a dia.

A bem dizer, o cinema foi uma arte desde suas origens. Isso é evidente na obra de Méliès, para quem o cinema foi o meio, com recursos prodigiosamente ilimitados, de prosseguir suas experiências de ilusionismo e prestidigitação do Teatro Robert-Houdin: existe arte desde que haja criação original (mesmo instintiva) a partir de elementos primários não específicos, e Méliès, enquanto inventor do espetáculo cinematográfico, tem direito ao título de criador da sétima arte (MARTIN, 2003, p. 15).

Os filmes foram se ajustando, juntamente com seu público, ao constante

aperfeiçoamento da tecnologia, que permitiu aos diretores experimentarem novas

maneiras de fazer sua arte. Isso levou os filmes a patamares que eram, antes,

impensáveis. A tecnologia limitadíssima dos primórdios cinematográficos apresentava

muitos obstáculos para os pretensos diretores: sem cores e sem som; a montagem

que precisava ser cautelosamente editada à mão; filmes que, muitas vezes,

precisavam ser filmados em ordem. Essas obras “cruas”, sem muitos enfeites ou

1 Os nickelodeon (do Inglês estadunidense: nickel = moeda de 5¢, Grego: Odeion = teatro coberto) constituíram um tipo de primitivas e pequenas salas de cinema do início do século XX. Em locais onde a concorrência fosse maior, era frequente disporem de um piano ou de um órgão, onde se tocava a música que o pianista ou organista julgasse apropriada para cada cena. Disponível em https://historictheatres.org/blog/2016/11/14/behind-the-curtain-at-the-nickelodeon-americas-first-movie-theatre/ - Acessado em 10/06/2017 2 Image Maximum (IMAX) é um formato de filme criado pela empresa canadense IMAX Corporation que tem a capacidade de mostrar imagens muito maiores em tamanho e resolução do que os sistemas convencionais de exibição de filmes. Disponível em http://www.fundinguniverse.com/company-histories/imax-corporation-history/ - Acessado em 10/06/2017

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efeitos, serviam para proporcionar um entretenimento barato para o grande público,

mas que, certamente, foram necessárias para originar o cinema de hoje.

Com a evolução irrefreável da tecnologia, os filmes ganharam mais

possibilidades, montagens mais ousadas e criativas, enquadramentos nunca antes

vistos, qualidade de vídeo superior, som, cores. Conforme essas mudanças ocorriam,

o cinema foi ficando mais imersivo, ganhou consistência. Hoje, cineastas continuam a

extrapolar o que se considera já explorado. Filmes em 8mm, câmeras digitais,

programas para editar no conforto de casa em um computador, tecnologias cada vez

mais versáteis, que permitem a muito mais pessoas se aventurarem no audiovisual.

Filmes feitos inteiramente por celulares, como é o caso de Tangerine (Baker,

2015), fazem refletir que qualquer pessoa, com um mínimo de domínio da tecnologia

existente, pode fazer um filme, basta ter a determinação.

Um filme é feito de várias centenas de fragmentos cuja continuidade lógica e cronológica nem sempre é suficiente para tornar seu encadeamento perfeitamente compreensível ao espectador; ainda mais que, na narração fílmica, a cronologia muitas vezes é desrespeitada e a representação do espaço sempre foi das mais audaciosas (MARTIN, 2003, p. 16).

A edição é, talvez, o principal processo que se transformou para melhor se

aproximar das vidas apressadas que se têm hoje. Cortes rápidos, cenas que duram

pouquíssimos frames para condizer com essa era de curta atenção do mundo digital

podem exemplificar as escolhas feitas pelos diretores.

Mesmo assim, ainda existem diretores “puristas” que mantém um estilo clássico

de cenas mais lentas, mas eles constituem uma minoria e isso é ainda mais evidente

no cinema norte-americano.

(...) o cinema tornou-se pouco a pouco uma linguagem, ou seja, um meio de conduzir um relato e de veicular ideias: os nomes de Griffith e Eisenstein são os marcos principais dessa evolução, que se fez pela descoberta progressiva de procedimentos de expressão fílmicos cada vez mais elaborados e, sobretudo, pelo aperfeiçoamento do mais específico deles: a montagem (MARTIN, 2003, p. 16).

De acordo com Rabiger (2007), o cinema conquistou seu lugar por ser um meio

de comunicação coletivo, e não individualista. Pode-se entender que um filme é o

resultado do esforço de um time. Time este composto por roteiristas, que

proporcionam a parte vital do filme, a narrativa e as ideias que serão manipuladas na

tela; atores, que darão vida à história e farão a principal conexão com o público, sendo

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eles os únicos a serem vistos no transcorrer da obra; produtores, que possibilitam,

antes de mais nada, o próprio fazer do filme, dando o apoio financeiro necessário.

Dentre muitos outros membros do time, há também o diretor. Cabe a ele orientar tudo

e todos. É ele quem dá a palavra final e é o responsável pelo filme como um todo.

Há diretores que “quebram” um pouco o molde de orientador. Cineastas que

querem participar ao máximo de seus filmes, um Cinema Autoral que não é visto com

muita frequência. Há, também, diversos estilos: diretores que editam seus próprios

filmes, como era o caso de Akira Kurosawa; diretores que escrevem seus roteiros,

como os irmãos Coen; diretores que gostam de aparecer tanto na frente das câmeras

quanto de operá-las, como Clint Eastwood. E há ainda casos mais raros de diretores

que ocupam três e, às vezes, mais posições dentro de seu filme.

Shane Carruth não se limita apenas a “sentar na cadeira” do diretor, mas

também atua, escreve, edita, produz e compõe a trilha sonora de seus filmes. É uma

combinação perigosa e experimental e, muitas vezes, o diretor que se aventura a ser

tão onipresente em seus filmes tem resultados desagradáveis. Foi o caso de Ed Wood,

notório pelos seus filmes de qualidade mais que duvidosa e por muitos considerado o

pior diretor de todos os tempos.

Entende-se que, mesmo o profissional mostrando competência em tantos

campos diferentes de seu filme, ainda há pessoas para auxiliá-lo, sejam eles os

figurinistas, seus colegas atores, ou o próprio cinegrafista. O cinema realmente é uma

arte coletiva, sendo quase impossível e, provavelmente, não recomendável, fazer uma

obra audiovisual de modo totalmente “eremítico”, mas, mesmo assim, o caráter

experimental do cinema permanece como um traço forte, mesmo depois de todos

esses anos, a partir de seu início, com os irmãos Lumière e seu cinematógrafo, em

1895. Rabiger (2007) explica que para se tornar um bom diretor de cinema é preciso

ter uma identidade clara e forte em relação ao mundo ao seu redor e uma

compreensão nítida do que significa dramaturgia.

Um filme que tem seus aspectos-chave (direção, atuação, roteiro, conceito)

realizados pela mesma pessoa estabelece uma relação curiosa com a arte de uma

forma mais antiga. Como um pintor e seu pincel, dando vida a sua tela trivial, tornando-

a a mais improvável das belezas; apenas um homem e seu vislumbre de grandeza,

sua obra é sua essência e de mais ninguém, suas sensíveis marcas expostas. Um

diretor e sua câmera, capturando o comum de forma deslumbrante.

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O ser humano vive em um mundo comunicativo, trocando informações com as

pessoas, expondo ideias e opiniões para fazer-se entender e para se expressar. Mas,

as pinturas rupestres, gravadas em cavernas de tempos imemoráveis, provam que

sempre se sentiu a necessidade de ir além da simples troca de informações;

necessidade essa de passar uma sensação, de capturar um momento seu e

compartilhar com os outros. Necessidade de fazer arte, de ser compreendido. Logo,

afirma-se que expressar-se é vital nessa vida, e o audiovisual é uma das formas que

permite a expressão mais completa. Imagens, sons, música, roteiro, sentimento. Tudo

se une para formar a experiência única do filme.

O estudo da direção e seus diferentes estilos e marcas complementa a vida de

qualquer comunicador, pois é importante apreender diferentes métodos de diálogo,

ter a habilidade de desconstruir uma obra e entender o que se passa por trás de um

dos meios com o qual mais se convive no dia a dia, a partir da tão complexa arte do

cinema. Desse modo, pode-se ter um melhor aprendizado sobre como as marcas

pessoais, que se constroem consciente ou inconscientemente, são concebidas e o

que querem dizer sobre nós mesmos.

Um dos principais fatores que faz com que se volte de novo e de novo para o

cinema é a conexão com o filme. Acontece quando o público se identifica com o que

está assistindo e isso realmente muda a experiência de assisti-lo. O cinema não está

preso à realidade; nele, tudo é possível. Nesse sentido, Bernardet (2004) explica que

no cinema, fantasia ou não, a realidade se impõe com toda a força.

Mesmo quando se trata de algo que sabemos não ser verdade, como O Mágico de Oz, ou em um filme de ficção científica como 2001 ou Contatos Imediatos do Terceiro Grau, a imagem cinematográfica permite-nos assistir a essas fantasias como se fossem verdadeiras; ela confere realidade a essas fantasias (BERNARDET, 2004, p. 13).

O diretor que consegue se manifestar de forma tão competente é mesmerizante

por si só, mas há aqueles que se aprofundam mais ainda e se manifestam em mais

de uma área. E todo diretor, de propósito ou não, acaba por exprimir seu estilo na tela,

seja por meio de suas vivências, bagagem cultural e emocional, ideais ou mesmo de

seus gostos pessoais.

Depois de se elencar todos estes aspectos do cinema, pode ser traçada a

questão norteadora desse estudo: “de que forma Shane Carruth, que participa de

mais de uma área criativa de seus filmes, expressa sua marca pessoal em uma

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obra fílmica, quando se trata do cinema de caráter autoral? ” Para descobrir a

resposta e com os, já mencionados, objetivos definidos, o trabalho é organizado em

cinco capítulos. Após o Capítulo 1, que se constitui desta introdução, o Capítulo 2 trata

da história do cinema, desde antes de sua concepção até a maturidade da arte. O

Capítulo 2 também é composto pelo surgimento e pelas características do Cinema

Autoral. Já o Capítulo 3 introduz, de forma mais aprofundada, a figura dos diretores

de cinema, tanto os da antiguidade quanto os da contemporaneidade, juntamente com

suas marcas pessoais e processos criativos. Seletos diretores e seus estilos são

analisados mais “a fundo”. No Capítulo 4, é analisado o objeto de estudo dessa

monografia: Shane Carruth, que se destaca, principalmente, por ser independente e

participar de todas as áreas criativas de seus filmes. A análise será elaborada a partir

de suas duas obras e do que foi estudado nos capítulos anteriores. No Capítulo 5 são

feitas as considerações finais.

Roger Ebert (2004, p.11) disse melhor quando pronunciou que “(...) cinema é,

entre todas as artes, aquela que tem o maior poder de empatia, e bons filmes farão

de nós seres melhores”.

1.1 METODOLOGIA

O presente trabalho monográfico tem o viés qualitativo. O pesquisador utilizou-

se da pesquisa bibliográfica como procedimento metodológico e da Análise de

Conteúdo como método, com base em Laurence Bardin (2011).

1.1.1 Pesquisa qualitativa

Nesta monografia são analisadas as obras do diretor cinematográfico Shane

Carruth, e de que forma ele consegue expressar suas ideias e marcas pessoais nos

filmes, participando de todas as etapas de sua criação. Para isso, utiliza-se o viés

qualitativo. Para Marconi e Lakatos (2008), a metodologia qualitativa preocupa-se em

analisar e interpretar aspectos mais profundos, descrevendo a complexidade do

comportamento humano, por meio de detalhes sobre os hábitos, atitudes e tendências

de comportamento.

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(...) estas pesquisas partem do pressuposto de que as pessoas agem em função de suas crenças, percepções, sentimentos e valores e que seu comportamento tem sempre um sentido, um significado que não se dá a conhecer de modo imediato, precisando ser desvelado (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSNAJDER, 1999, p. 131).

Por conta das obras de Carruth serem produções com caráter subjetivo é

excluída a possibilidade de ser feita uma pesquisa quantitativa, porque esta tem um

caráter mais voltado ao uso de números e estatísticas.

1.1.2 Pesquisa bibliográfica

A pesquisa bibliográfica é o procedimento que acompanha a monografia, desde

seu início até o final.

É o planejamento global inicial de qualquer trabalho de pesquisa que vai desde a identificação, localização e obtenção da bibliografia pertinente sobre o assunto, até a apresentação de um texto sistematizado, onde é apresentada toda a literatura que o aluno examinou, de forma a evidenciar o entendimento do pensamento dos autores, acrescido de suas próprias ideias e opiniões (STUMPF, 2014, p. 51).

Gil (2008, p. 71) afirma que a pesquisa bibliográfica é desenvolvida tendo como

base materiais já elaborados, como livros e artigos científicos, por exemplo. “A

principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador

a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia

pesquisar diretamente”.

1.1.3 Análise de Conteúdo

O método de Análise de Conteúdo, com base em Laurence Bardin (2011),

conta com três fases: pré-análise (ou coleta do material), exploração do material e,

por fim, sua análise, inferências e interpretação. O principal foco de estudo deste

trabalho monográfico são obras cinematográficas. Por isso, é preciso compreender

não só as imagens, como também o roteiro, a atuação, a trilha sonora, a edição, a

direção com seus planos e enquadramentos, etc. Isso leva à primeira fase: pré-análise

ou coleta do material.

Bardin (2011, p. 124) evidencia que a pré-análise engloba três aspectos: “a

escolha dos documentos a serem submetidos à análise, a formulação das hipóteses

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e dos objetivos e a elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final”.

A autora ainda explica que “antes da análise propriamente dita, o material reunido

deve ser preparado e é aconselhável que se prevejam reproduções em número

suficiente. Neste trabalho, são analisados os filmes Primer (2004) e Upstream Color

(2013), do diretor Shane Carruth.

A segunda fase é a exploração do material. De acordo com Bardin (2011), é

nesse momento que o pesquisador seleciona recortes do material que será analisado.

Ela continua: “esta fase, longa e fastidiosa, consiste essencialmente de operações de

codificação, desconto ou enumeração, em função de regras previamente formuladas”.

Por isso, todo o material recolhido será dividido em categorias. No caso desta

monografia, é feita a decupagem de cinco cenas de cada um dos dois filmes

escolhidos e serão descritos, tanto os enquadramentos e a direção de cena, a

inserção de trilha sonora e os processos de edição (que se intuem a partir da descrição

das cenas), quanto o diálogo dos personagens.

A terceira fase é a análise, propriamente dita. Para Bardin (2011), a Análise de

Conteúdo procura conhecer aquilo que está por trás das palavras sobre as quais se

debruça. Por se tratarem de obras fílmicas, a análise de imagens igualmente é de

suma importância, já que servem para estudar o produto do trabalho do diretor e sua

equipe.

A imagem só existe para ser vista, por um espectador historicamente definido (isto é, que dispõe de certos dispositivos de imagens), e até as imagens mais automáticas, as das câmeras de vigilância, por exemplo, são produzidas de maneira deliberada, calculada, para certos efeitos sociais. Pode-se pois perguntar a priori se, em tudo isso, a imagem tem alguma parte que lhe seja própria: será tudo, na imagem, produzido, pensado e recebido como momento de um ato – social, comunicacional, expressivo, artístico etc? (AUMONT, 2004, p. 197).

As conclusões do pesquisador foram feitas após a decupagem de todas as

cenas elencadas. Bardin (2011, p. 31) explica que “o analista, tendo à sua disposição

resultados significativos e fiéis, pode então propor inferências e adiantar

interpretações a propósito dos objetivos previstos – ou que digam respeito a

descobertas inesperadas”.

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2. CINEMA

“Nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é

que esta fome, sendo sentida, não é compreendida.”

Glauber Rocha

O presente capítulo tem como principal objetivo contextualizar o cinema. Assim,

quando os próximos capítulos forem apresentados pode-se ter um entendimento

prévio e a familiarização com os temas. Neste capítulo, também busca-se abarcar as

mudanças e as evoluções primárias que ocorreram na fórmula fílmica, tanto na parte

técnica, quanto na artística e na sua linguagem. A história do cinema é muito mais

difícil de se datar do que parece. Pensando nisso, este capítulo procura, ainda,

evidenciar os fundamentais pré-cinemas. Depois disso, mais especificamente, há a

contextualização do Cinema Autoral, seus conceitos-chave, principais autores e até

teorias que o contradizem. O estilo Cinema Autoral será de suma importância para o

restante deste trabalho monográfico, visto que lida com a individualidade e a

autoridade do diretor, contrapondo o cinema arte ao cinema indústria.

2.1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E LINGUAGEM

De acordo com Comolli (apud MACHADO, 2002), o início do cinema é um

marco muito difícil de especificar. Não há consenso sobre um ponto de partida para

se dizer: aqui começa o cinema. Segundo o autor, outros especialistas como Sadoul

(1946), Deslandes (1966) e Mannoni (1995) apresentam alguns pontos de referência

da linha do tempo do cinema antes do cinema: os teatros de luz, encabeçados por

Giovanni dela Porta (século XVI), as projeções criptólogicas de Athanius Kircher

(século XVII), a lanterna mágica de Christiaan Huygens, Robert Hooke, Johannes

Zahn, Samuel Rhaenus, Petrus van Musschenbroek e Edme-Gilles Guyot (séculos

XVII e XVIII), o Panorama de Robert Barker (século XVIII), a fotografia por Nicéphore

Nièpce e Louis Daguerre (século XIX), os exercícios de decomposição do movimento

por Étienne-Jules Marey e Eadwerd Muybridge (século XIX), onde, usando 24

câmeras geraram-se 24 frames, evidenciando o galopar de um cavalo de corrida.

Finalmente, a junção de todas essas invenções e descobertas em um único aparelho

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foi patenteada por Thomas Edison e William Dickson em 1891: o Cinetoscópio,

aparelho este que foi aperfeiçoado ainda mais por Louis e Auguste Lumière,

resultando no Cinematógrafo.

Mesmo com tudo isso em mente, Machado (2002) acredita que técnicas e

costumes de tempos ainda mais imemoráveis também têm correlação com o cinema.

No século X, o astrônomo e matemático árabe Al-Hazen havia estudado diversos

procedimentos que, hoje, percebe-se serem cinematográficos. Na antiguidade, o

próprio Platão descreveu até os mínimos detalhes de como funcionaria o mecanismo

(na época ainda imaginário) da câmara escura de projeção, enquanto Lucrécio já se

referia ao dispositivo de análise de movimento em fotogramas separados.

Machado (2002) continua em sua explicação, propondo que o cinema é ainda

mais ancestral do que se pode conceber, já que ainda na Pré-História o homem

primitivo já esboçava algum raciocínio cinematográfico. Ele conta que os estudiosos

que se dedicam a pesquisar a cultura da era pré-histórica não têm dúvidas ao concluir

que nossos antepassados iam às cavernas para fazer sessões de “cinema” e assistir

a elas. As pinturas rupestres encontradas nas paredes rochosas de Altamira, no

Brasil, e Lascaux e Font-de-Gaume, na França, foram gravadas em relevo na pedra e

seus sulcos pintados com cores variadas. Enquanto o observador se locomove pela

caverna e a luz de sua lanterna ilumina e escurece parte dos desenhos, cores se

sobressaem umas às outras, enquanto algumas se apagam e, conforme o observador

continua caminhando, as figuras parecem se movimentar em relação a ele.

O que estou tentando demonstrar é que os artistas do paleolítico tinham os instrumentos do pintor, mas os olhos e a mente do cineasta. Nas entranhas da terra, eles construíam imagens que parecem se mover, imagens que ‘cortavam’ para outras imagens ou dissolviam-se em outras imagens, ou ainda podiam desaparecer e reaparecer. Numa palavra, eles já faziam cinema underground (WACHTEL apud MACHADO, 2002, p.14).

Desde o nascimento das imagens em movimento, os filmes eram

predominantemente monocromáticos, o que não quer dizer preto e branco e sim, um

único tom de cor. Preto e branco era apenas a opção mais barata, já que outros

pigmentos custavam muito caro na época. Ana Stamato, Gabriela Staffa e Júlia Von

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Zeidler (2013)3 descrevem que os primeiros filmes coloridos feitos por Méliès, Pathé

e Gaumont, eram pintados à mão por operários.

As pesquisadoras se utilizam de Dalpizzolo (2007) para evidenciar que,

conforme os filmes foram ficando maiores, o processo se provou trabalhoso demais.

Houve o método chamado tintagem, em que a película era tingida de cores uniformes,

cada uma representando algo em especifico: o azul simbolizava a noite e o verde era

usado para paisagens, por exemplo. Posteriormente, foram utilizados filtros, onde

cada cena era filmada diversas vezes com vários filtros, criando imagens bicolores.

Em 1902, Edward Turner produziu os primeiros filmes utilizando-se de cores

naturais ao invés de técnicas de coloração. Stamato, Staffa e Zeidler (2013) explicam

que, em 1930, criou-se a empresa Technicolor, que inventou uma película com três

cores, estas primárias, dando maior realismo aos filmes. O primeiro filme lançado pela

Technicolor foi Becky Sharp, de Rouben Mamoulian, em 1935. Houve o receio de que

as cores roubassem a atenção dos espectadores em relação ao enredo e aos atores

dos filmes. O público em geral, no início, também não acreditava que as cores seriam

mais um complemento narrativo para o cinema.

Na década de 1950, a porcentagem de filmes coloridos passou a 51% e nos

anos de 1960, filmes coloridos viraram o padrão. Por volta de 2010, os filmes coloridos

foram suplantados pela cinematografia de cor digital. “A cor começou a ser utilizada

tão intensamente que foram retratando os sentimentos e as personalidades dos

personagens pela cor, como em Moulin Rouge que utilizavam o vermelho para indicar

paixão” (BUNGARTEN apud STAMATO; STAFFA; ZEIDLER, 2013, s.p.).

Antonioni (apud MARTIN, 2003, p. 87), diz que “a cor é uma relação entre o

objeto e o estado psicológico do observador, no sentido em que ambos se

sugestionam reciprocamente”, ou seja, as cores podem nos influenciar tanto quanto

nós, os seres humanos, as influenciamos.

Juntamente com o movimento das cores no universo fílmico, na década de

1920 ocorreria uma mudança igualmente poderosa: o som. Entretanto, Demian Garcia

(2014)4 discorda que o primeiro uso de som tenha sido no famoso The Jazz Singer

3 STAMATO, Ana; STAFFA, Gabriela; ZEIDLER, Júlia Von. A Influência das Cores na Construção

Audiovisual. Disponível em: http://portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1304-1.pdf –

Acessado em 28/08/2017

4 GARCIA, Demian. O som no cinema e a música concreta. Disponível em http://www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/DemianGarcia_Artigo_Cientifica_V10.pdf – Acessado em 28/08/2017

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(Alan Crosland, 1927) e defende que o cinema, mesmo antes do seu nascimento,

sempre foi sonoro. Os pré-cinemas dos teatros de sombras, lanternas mágicas, teatro

ótico e outras formas de apresentações eram acompanhados por sons e músicas.

Desde a primeira exibição dos irmãos Lumière, A chegada do trem na estação

(1895), ao som de um piano, a música fez parte das projeções do cinematógrafo e de

todos os outros dispositivos cinematográficos depois dele. Porém, no início, essa trilha

musical externa talvez tivesse motivos primários, como, por exemplo, abafar o som

dos velhos projetores, animar a plateia, bloquear os ruídos vindos das ruas, etc. O

estímulo de incrementar a narrativa era mínimo. Sendo assim, e ainda segundo Garcia

(2014), o cinema sempre foi sonoro, pois o que ocorreu em 1927 teria sido apenas a

sincronização.

Odil Miranda Ribeiro (2013)5 explica que o resultado do cinema sonoro foi

polarizante, criando um movimento tradicional do cinema mudo versus o movimento

do cinema falado. Esses movimentos, por sua vez, exacerbaram um embate entre o

cinema de vanguarda não narrativo, que tem na imagem autônoma a sua grande força

expressiva e de representação do mundo, e o cinema mais narrativo subordinado à

representação de uma “realidade”. Nas palavras de André Bazin (apud RIBEIRO,

2013, s.p.): “(...) distinguirei no cinema de 1920 a 1940 duas grandes tendências

opostas: os diretores que acreditam na imagem e os que acreditam na realidade”.

Com base nessas informações, é possível compreender um pouco o motivo pelo qual

o público, que não tinha conhecimento prévio do cinema sonoro, se sentia apreensivo.

Por isso, não é surpreendente que a chegada do “cinema falado” tenha encontrado, a partir dessas duas atitudes, duas respostas radicalmente diferentes. Para alguns, o cinema sonoro, depois falado, foi saudado como a realização de uma verdadeira “vocação” da linguagem cinematográfica – vocação que fora até então suspensa por falta de meios técnicos. No limite, chegou-se a considerar que o cinema começava de fato com o cinema falado... para os outros, ao contrário, o som era muitas vezes recebido como um verdadeiro instrumento de degenerescência do cinema, como uma incitação a justamente fazer do cinema uma cópia, um duplo do real, às custas do trabalho sobre a imagem ou sobre o gesto. Essa posição foi adotada – às vezes até de maneira excessivamente negativa – por um bom número de diretores, alguns dos quais demoram muito para aceitar a presença do som nos filmes (AUMONT, 2004, p. 47-48).

5 RIBEIRO, Odil Miranda. Imaginários sonoros em obras cinematográficas: um estudo sobre os filmes limite e sudoeste. Disponível em http://www.humanas.ufpr.br/portal/imaginariossonoros/files/2014/02/Odil-Imagin%C3%A1rios-2013.pdf – Acessado em 28/08/2017

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Após The Jazz Singer se provar um sucesso, a Warner Bros Studios lançou

filme após filme com a sonoplastia sincronizada. Walt Disney “embarcou” no

movimento e lançou sua primeira animação sonora, estrelando Mickey Mouse

Steamboat Willie (1928). Após o embate dos filmes mudos versus os filmes falados

(chamados talkies), em meados de 1930 os filmes com som sincronizado viraram a

norma nos Estados Unidos e, em seguida, seriam a regra nos demais países e

continentes.

A partir daí, o visual se tornou audiovisual e, hoje, tanto o som quanto a trilha

sonora são tão importantes quanto o que se desenrola visualmente e, juntos, formam

uma experiência completa, podendo ditar desde o tom de uma cena ou mesmo do

filme como um todo.

No início, a duração da maioria dos filmes consistia de aproximados dez

minutos, pois era essa a capacidade do rolo de filme. Comédias normalmente

contavam com dois rolos, totalizando 20 minutos. O primeiro filme a ser considerado

um longa-metragem foi o australiano The Story of the Kelly Gang (Charles Tait, 1906)

com 60 minutos de duração. Historiadores especulam que foi a competitividade entre

o cinema e a televisão que resultou no aumento da duração dos filmes. A norma foi

de 90 minutos em 1931 para 120 minutos em 1960.

Machado (2002) explica que o que caracterizava o primeiro cinema era o fato

de tudo ser colocado de forma simultânea dentro do quadro. Por exemplo, o

desenrolar de uma cena acontecia ao mesmo tempo em um único quadro. Para os

que faziam cinema, essa simultaneidade dos dados começava a ficar problemática, à

medida que as histórias levadas à tela se tornavam cada vez mais complexas. Pode-

se concluir que havia diversos problemas com o uso dessa técnica. “Por exemplo,

como ter garantias de que os olhos do espectador não iriam se ‘distrair’, movendo-se

em direção a detalhes não necessariamente importantes para o desenvolvimento da

trama? ” (MACHADO, 2002, p. 100, grifo do autor).

Machado (2002) argumenta que essa preocupação - que não fazia sentido num

primeiro momento, mesmo porque o cinema ainda nem “contava” histórias – só

aparece por “culpa” do público, que era incapaz de perceber qualquer coerência na

“confusão” do quadro primitivo. Pode-se concluir que, ao invés da cena discorrer toda

de uma só vez, o melhor era mostrar uma coisa de cada vez, desfiando-se, como um

novelo. “Isso é exatamente o que chamamos a linearização do signo icônico e a

construção de uma sequência diegética pelo desmembramento dos elementos da

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ação em fragmentos simples e unívocos, os planos” (MACHADO, 2002, p.102, grifo

do autor).

David Wark Griffith foi um dos pioneiros a introduzir a figura do diretor, um

narrador invisível que guia as histórias a seu modo. Machado (2002) salienta que foi

a partir do filme The Drunkard’s Reformation (1909) que Griffith começou a tomar

consciência da ligação lógica que existe entre os pontos de vista específicos de cada

uma de três “entidades”: a câmera, o personagem e o espectador. Logo em seguida,

o cineasta se deu conta do poder autônomo que tem a câmera de fixar livremente o

ângulo de tomada, a distância, a duração e a escala de planos mais conveniente para

implicar o espectador na trama que se desenrola na tela.

Assim, os afetos, os processos de identificação, os saberes e as ignorâncias

do espectador em relação à história e aos personagens passam a ser trabalhados

pelo narrador com vistas a resultados mais ou menos calculados por meio dos planos,

de modo a produzir uma presença dinâmica do espectador na cena. Jogando-se com

o que o espectador sabe ou não sabe, pode-se controlar seus afetos e o modo como

reagirão aos fatos encenados.

Um dos aspectos que mais evoluiu durante o percurso do cinema foi a edição,

a chamada montagem. Ela dita o ritmo do filme. Marcel Martin (2003) diz que um filme

“normal” contém cerca de 500 a 700 planos. Um filme como Antoine et Antoniette

(Becker, 1947), com seus 1250 planos constituí uma exceção bastante notável, ao

passo que I Vitelloni (Fellini, 1952) ou Le Vacances de Mr. Hulot (Tati, 1953),

característicos pela lentidão (intencional) de ritmo, não contam com mais de 400

planos. Ossessione (Visconti, 1943) com sua duração de duas horas e 15 minutos

conta com menos de 350 planos. Ou seja, o número de planos e a sua velocidade

dependem de decisões do diretor.

Martin (2003) ainda afirma que Méliès, preso pela fixidez da câmera, não

compreendeu a natureza da montagem nem suspeitou de suas possíveis

contribuições. The Great Train Robbery (Edwin Stanton Porter, 1903) pode ser

considerado o primeiro filme contendo o essencial do cinema: a montagem narrativa.

Mas foi Griffith quem deu o avanço decisivo à linguagem fílmica. Martin (2003) se

utiliza da observação do teórico de cinema francês Jean Miltry: “Se não foi ele o

inventor da montagem alternada nem do primeiro plano (...), pelo menos foi o primeiro

a saber organizá-los e fazer deles um meio de expressão” (Miltry apud MARTIN, 2003,

p. 135). Com isso nasceu a montagem expressiva.

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Logo no final do cinema mudo e no começo dos talkies, em meados das

décadas de 1920 e 1930, Martin (2003) elucida que o frenesi da montagem expressiva

chegava ao delírio. Por exemplo, filmes como Vosstaniye rybakov (Piscator, 1932)

contêm dois mil planos, e alguns outros da época chegam a três mil. Estes filmes

fazem parte da grande época da montagem impressionista, onde o diretor se utilizava

de uma edição ultra-rápida; hoje, é um recurso praticamente extinto, pois se achava

estreitamente ligado ao cinema mudo. Tantos planos eram usados para compensar a

falta de falas ou de um narrador. Sendo assim, seria correto afirmar que a montagem

narrativa existiu por pura necessidade.

E foram os soviéticos que levaram a montagem ao seu apogeu, sob a forma de

um terceiro avanço decisivo – a montagem intelectual ou ideológica. Seu principal

praticante foi Eisenstein, que a aplica no cinema em Stachka (1925). Eisenstein (apud

MARTIN, 2003, p. 136) define esse tipo de montagem como sendo “(...) todo momento

agressivo – isto é, todo elemento teatral que faz o espectador sentir uma pressão

sensorial ou psicológica (...) de modo a produzir esta ou aquela emoção-choque”. A

partir daí, incontáveis vertentes de novos tipos e subtipos de montagem foram criados

e modificados e continuam a surgir até os dias de hoje.

Na maioria dos casos, uma montagem normal pode ser considerada caracteristicamente narrativa; já a montagem muito rápida ou muito lenta é antes de tudo expressiva, pois o ritmo da montagem desempenha então um papel diretamente psicológico (MARTIN, 2003, p. 134).

Ismail Xavier (2003) observa que as montagens produzem um efeito no

imaginário humano que, muitas vezes, acaba nos enganando e criando significados

que só existem na tela. O filme, como qualquer outra obra de arte, após ser lançado

ao mundo, se torna aberto a interpretações. Além, ainda, de caracterizar a leitura das

imagens como produção do ponto de vista do observador. Independentemente da

objetividade da imagem, o resultado da filmagem será a composição efetuada por

esse espectador e não o que diretamente a imagem permite mostrar quando isolada

dos demais elementos fílmicos. Ou seja, é uma questão de subjetividade e conteúdo,

também por parte do espectador.

As imagens têm muito poder na concepção do nosso imaginário. Pode-se

produzir, a partir da visão do cineasta, diversos significados para cada uma delas e

ainda, um novo significado quando observadas em uma sequência. Segundo Xavier

(2003), por isso o cinema nos remete ao engano, porque se deduz, perante um

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movimento de câmera, situações não existentes criadas no imaginário, de acordo com

o que é mostrado, sem indagar a veracidade dos fatos. Quando se assiste a um filme

de ficção, a preocupação não é se faz ou não sentido a junção daqueles fragmentos

de imagens. O público deseja apenas ver e crer no que é mostrado. Esse é o propósito

do cinema, segundo Xavier (2003, p. 35), ou seja, “instaurar um mundo imaginário”.

Ainda assim, o cinema lida com a ficção, incluindo os filmes baseados em fatos

reais, pois sempre há atores e atrizes interpretando, um diretor para guiá-los e um

roteiro a ser seguido. Currie (in Ramos, 2005) discorre sobre como o cinema e o teatro

não são locais especiais onde se assiste àquilo que não existe. Tampouco oferecem

experiências alucinatórias durante as quais pensa-se ver o que não está lá; a maior

parte do tempo, sabe-se que se enxerga apenas imagens em uma tela ou atores sobre

um palco. Esse pensamento se contrapõe ao “instaurar um mundo imaginário” de

Xavier (2003).

Os romances não nos dão os mundos ficcionais que criam: eles os descrevem para nós, fazendo a mediação entre ficção e leitor. É por esse motivo que falamos de narração literária. Meu argumento foi o de que filmes e peças também operam dessa forma. São narrações disponibilizadas por outros meios, por meio de objetos e imagens apresentados de forma visual. E, da mesma maneira que os romances, solicitam nossa participação na imaginação ou como testemunhas silenciosas – nos eventos que descrevem (CURRIE in RAMOS, 2005, p. 188).

Aumont (2004, p. 83) reflete sobre a “ligação emocional e cognitiva do

espectador com a imagem”. Segundo ele, “a arte imita a natureza, e essa imitação

gera um sentimento prazeroso”. De acordo com o autor, o cinema nada mais é que o

espelho do mundo. E assim como as artes plásticas, também foi influenciado pela era

moderna, onde começou a olhar para si mesmo. Para Aumont (2004), se equivale à

literatura.

Ainda sobre linguagem, Martin (2003) apresenta três principais “pontos fracos”

do cinema. Ele argumenta que o cinema é fragilidade, por estar preso a um suporte

material extremamente delicado e suscetível aos estragos dos anos; por ser objeto de

registro legal somente há pouco tempo, e porque o direito moral dos seus criadores é

mal reconhecido; por ser considerado uma mercadoria, e porque o proprietário tem o

direito de destruir os filmes como bem lhe aprouver. Ele é futilidade, por ser a mais

jovem de todas as artes, nascida de uma técnica comum de reprodução mecânica da

realidade; por ser considerado pela imensa maioria do público uma simples diversão

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que se frequenta sem cerimônia; porque a censura, os produtores, os distribuidores e

os exploradores podem cortar os filmes à vontade. Ele é facilidade, por apresentar-

se, geralmente, sob a capa do melodrama, do erotismo ou da violência; por consagrar,

numa grande parte de sua produção, o triunfo da estupidez. O autor conclui que essas

taras profundas prejudicam o desabrochar estético do cinema.

Convertido em linguagem graças a uma escrita própria que se encarna em cada realizador sob a forma de um estilo, o cinema tornou-se por isso mesmo um meio de comunicação, informação e propaganda, o que não contradiz, absolutamente, sua qualidade de arte (MARTIN, 2003 p. 16).

Conclui-se que o cinema está num processo constante de mudança e evolução

e em uma luta ininterrupta entre seu estado de obra de arte e as necessidades do

mercado como indústria cinematográfica. Martin (2003) diz que o cinema foi da

linguagem ao estilo e afirma que essa evolução da linguagem cinematográfica se

evidencia há algum tempo, como também coloca André Bazin:

“Fazer cinema hoje é contar uma história numa linguagem clara e perfeitamente transparente (...) Pela primeira vez desde as origens do cinema, os cineastas trabalham, no que diz respeito à técnica, nas condições normais do artista (...) O estilo do cineasta moderno cria-se a partir de meios de expressão perfeitamente dominados e tornados tão dóceis quanto o estilógrafo” (BAZIN apud MARTIN, 2003, p. 239).

Depois foi da fascinação à liberdade e após isso foi da imagem à realidade

onde o autor sintetiza que os diretores têm dois modos fundamentais de abordar o

mundo: um é mais cerebral e conceptual e o outro, prioritariamente sensorial e

intuitivo.

Enquanto os meios podem ser “dóceis”, também há a indústria com suas

exigências “cruéis” que influenciam os meios. Ou seja, os diretores nem sempre fazem

o que querem.

Entretanto, ainda segundo Martin (2003), uma “ameaça” paira sobre o universo

do cinema. O imperialismo hollywoodiano, onde é o dinheiro que comanda os filmes

e não mais seus próprios criadores. E os distribuidores-divulgadores têm a

preocupação prioritária de atender a pretensa demanda de um público cada vez mais

condicionado pela uniformização do “espetáculo” audiovisual que lhe é proposto.

O autor concorda que a situação é bastante crítica, mas também afirma que ela

não é desesperadora para o cinema: bastará sempre que haja alguns

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experimentadores, alguns exploradores de caminhos novos, para que seu futuro

esteja assegurado.

2.2 O CINEMA AUTORAL: SURGIMENTO E CARACTERÍSTICAS

Sobre o Cinema Autoral ou Cinema de Autor, Gustavo Faria e Stefânia Pereira

(2015)6 elucidam que esse tipo de produção cinematográfica elege o diretor como

principal foco e força criativa na realização de um filme. O fundamento principal dessa

teoria é que o diretor, por ter uma visão global da produção (áudio e imagens do filme)

deve ser considerado mais o autor da obra do que o roteirista, pois são os

enquadramentos de câmera, a iluminação, a duração da cena e todos os outros

elementos decididos pelo diretor que definirão os significados expressos pelo filme,

colocando o roteiro abaixo dessa hierarquia.

Pode-se dizer que nesse estilo de fazer, o filme acaba se configurando no

diretor, fazendo possível uma liberdade maior de criação mesmo com baixo

orçamento. Poderia-se dizer que os cinemas underground, independente ou

alternativo são subtipos do Cinema Autoral e que têm uma mesma linha de

pensamento: produzir filmes, preservá-los e distribuí-los à margem dos esquemas

comerciais da indústria cinematográfica. Segundo Faria e Pereira (2015) filmes de

Cinema Autoral normalmente têm uma maior expressão artística, pois respeitam a

liberdade de seu realizador (no caso, o diretor), diferente de filmes relacionados a

grandes estúdios, que atendem primariamente pedidos de uma produção executiva

ou elementos que envolvem marketing.

Faria e Pereira (2015) contam que as teorias e práticas do Cinema Autoral

surgiram através do cinema francês no final dos anos 1940 e as duas pedras

fundamentais desse cinema foram os influentes críticos e teóricos André

Bazin e Alexandre Astruc. O movimento Nouvelle Vague7 foi uma das primeiras

manifestações desse novo paradigma do cinema, e contou com a ajuda da revista

francesa Cahiers du Cinemá, que foi muito representativa na difusão dessas ideias.

6 FARIA, Gustavo; PEREIRA, Stefânia. O cinema autoral? A história do cinema autoral e a perspectiva de Barthes e Foucault aplicado ao modelo cinematográfico. Disponível em http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/encontros-nacionais/10o-encontro-2015/gt-historia-da-midia-audiovisual-e-visual/o-cinema-autoral-a-historia-do-cinema-autoral-e-a-perspectiva-de-barthes-e-foucault-aplicado-ao-modelo-cinematografico – Acessado em 31/08/2017 7 Nova Onda (Tradução do pesquisador).

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Nouvelle Vague foi uma nova estética de cinema criada na França, em 1958, como

reação contrária às superproduções hollywoodianas da época, encomendadas pelos

grandes estúdios. A contraproposta eram filmes mais pessoais e baratos. Ambos os

teóricos usaram a palavra auteur8 para distinguir cineastas cuja obra tem a força de

uma afirmação pessoal em termos de estilo e tema, envolvendo também, no caso,

diretores subordinados aos grandes estúdios. Faria e Pereira (2015) explicam que a

política dos autores da Nouvelle Vague consistia na ideia da subjetividade do diretor

sobre a obra, fazendo com que a “genialidade” pudesse advir exclusivamente do

diretor, que não mais poderia ser descrito como um mero funcionário de estúdio.

Diretores como Hitchcock, Ford, Hawks, Griffth serviam como uma das bases

da “política de autores”, já que deixavam suas marcas nos filmes, quase que uma

assinatura, como os cenários de Ford e as aparições de Hitchcock em seus filmes.

Diretores como Bergman, Fellini e Truffaut, cujos trabalhos eram tão distintos e

controlados do início ao fim, foram logo considerados autores.

Os autores também explicam que cineastas como Jean-Luc Godard e François

Truffaut deram importantes contribuições ao desenvolvimento da teoria do Cinema

Autoral. Entretanto, o Cinema Autoral foi muito além dos dois diretores e ultrapassou

a barreira do tempo.

No Brasil, pode-se dizer que Glauber Rocha, diretor/roteirista/editor de filmes

como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967) foi um cineasta

brasileiro que pode ser considerado "autoral" e que é respeitado no mundo todo. Outro

diretor brasileiro, Fernando Meirelles, também tem traços do Cinema Autoral. Sabe-

se que Meirelles recusa filmes de grandes estúdios e, certa vez, recusou-se a dirigir

um filme da saga Crepúsculo e outro de James Bond9. Meirelles optou por um projeto

menor, mais ousado e que lhe desse mais liberdade de ação. Essa pode ser

considerada uma característica de diretores autorais. Daí seu envolvimento com O

Jardineiro Fiel (2005). Apesar de seu filme mais famoso, Cidade de Deus (2002), ter

tido uma grandiosa repercussão pelo mundo, a obra não abandonou um estilo de

Cinema Autoral, já que evidenciava as marcas pessoais do diretor, como por exemplo,

seu interesse no comportamento e na moralidade humana.

8 Autor (Tradução do pesquisador). 9 Disponível em https://www.jamesbondbrasil.com/2012/08/fernando-meirelles-revela-que-recusou-dirigir-um-filme-de-james-bond/ - Acessado em 31/08/2017

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O Cinema Autoral, atualmente, pode ser considerado aquele que origina os

filmes mais voltados para expressões artísticas. Também pode ser o que origina o

filme que tem como maior foco o diretor, independente de indústria ou segmento, seja

um filme alternativo ou independente. Alguns festivais e mostras de cinema tem como

foco destacar filmes de Cinema Autoral. É o caso do Festival de Sundance (EUA); do

Festival de Berlim (Alemanha) e do Festival de Veneza (Itália).

Algumas produtoras/distribuidoras incentivam filmes autorais, como é o caso

da Imovision, que lançou o aclamado Azul é a Cor Mais Quente (Abdellatif Kechiche,

2013).

A evolução recente de um certo cinema de autor caracteriza-se pelo recurso sistemático ao plano-sequência, frequentemente ligado à grande duração do filme (...) essa evolução foi preparada pelas pesquisas de alguns mestres do underground, em particular Andy Warhol e Michael Snow, que já há algum tempo vêm realizando filmes extremamente longos (chegando a seis ou oito horas de duração, no caso de Warhol) e contendo pouquíssimos planos (as vezes um só), e sempre planos fixos (MARTIN, 2003 p. 133).

O que Martin (2003) expressa é que o plano-sequência não é algo comum e,

muitas vezes, é associado ao estilo e personalidade do diretor. Assim como foi

evidenciado anteriormente, a quantidade de planos influencia muito a percepção de

uma obra. Para contextualizar o conceito de autor, Faria e Pereira (2015) se utilizam

de Barthes em um sentido literário, mas que se aplica muito bem ao contexto fílmico.

O Autor, quando se acredita nele, é sempre concebido como o passado do seu próprio livro: o livro e o autor colocam-se a si próprios numa mesma linha, distribuída como um antes e um depois: supõe-se que o Autor alimenta o livro, quer dizer que existe antes dele, pensa, sofre, vive com ele; tem com ele a mesma relação de antecedência que um pai mantém com um filho (BARTHES apud FARIA; PEREIRA, 2015, s.p.).

Faria e Pereira (2015) apresentam o artigo que Astruc escreveu em março de

1948 para a revista L’écran Français, a publicação “Nascimento de uma nova

vanguarda: a caméra-stylo”. Nela, o cinema é tratado como uma nova linguagem tão

completa e complexa quanto a escrita (stylo significa caneta, na tradução para o

Português) ou a pintura, capaz de expressar com perfeição qualquer tipo de

pensamento de um determinado sujeito. Astruc (apud FARIA; PEREIRA, 2015) ainda

afirma que qualquer pessoa poderia ser autor ao pegar uma câmera 16mm e se filmar,

falando de qualquer coisa, tal qual escrevesse, e as pessoas iriam passar a alugar

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esse conteúdo. A internet e seus “youtubers”, hoje, podem ser vistos quase como a

concretização de sua “profecia”.

Em seu artigo, Astruc (apud FARIA; PEREIRA, 2015, s.p.) traz um dos

principais ideais do Cinema Autoral: para ser autor, o roteirista deveria ser também o

diretor. Para ele, a distinção entre roteirista e diretor não faz sentido no cinema de

autor. “O autor escreve com a câmera como o escritor escreve com a caneta”. (apud

FARIA; PEREIRA, 2015, s.p.).

É impossível que o cinema não se desenvolva. Essa arte não pode viver com os olhos voltados para o passado, remoendo lembranças, nostalgias de uma época encerrada. Seu rosto já está voltado para o futuro e, tanto no cinema quanto fora dele, não há outra preocupação possível exceto o futuro (ASTRUC apud FARIA, PEREIRA, 2015, s.p.).

Criar e manter um estilo reconhecível se transformou na característica definitiva

e no objetivo para qualquer aspirante a Cinema Autoral pelo mundo afora. O

pesquisador Alfredo Manevy (apud FARIA; PEREIRA, 2015) aponta que Bazin pensa

em sentido contrário.

O mérito das grandes obras de Hollywood está justamente no modo de produção coletivo, não no talento pontual dos autores. Bazin acreditava que um grande diretor pode realizar filmes menores e bons filmes podem surgir de maus autores, em razão do ‘gênio do sistema’ que está por trás (MANEVY apud FARIA; PEREIRA, 2015, s.p.).

Faria e Pereira (2015) também trazem os pontos de vista do crítico americano

de cinema Andrew Sarris, que analisa a política de autores como uma classificação

do cinema americano em específico, visto que esse tipo de cinema fornece bases

mais sólidas para a criação dos diretores. Porém, Sarris não pensava o mesmo sobre

o cinema europeu, pois, segundo ele, não seria um mérito tão grande a realização de

um filme autoral, já que as condições favoreciam um cinema mais ligado à arte. O que

defende Sarris é que o verdadeiro autor é quem enfrenta essas barreiras e, ainda

assim, consegue impor seu estilo.

Os autores também se utilizam das ideias de Pauline Kael, uma crítica

americana. Kael tinha uma linha de pensamento totalmente contrária à de Sarris. Além

de refutar o crítico, relativizando os termos aplicados por ele, ela desmonta uma das

principais referências quando o assunto é autor: Orson Welles. Para ela, a genialidade

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do filme Citizen Kane (1941) está longe de ser de inteira responsabilidade de Welles.

Segundo Kael, seria de Joseph Mankiewcz, roteirista da obra.

David Tregde (2013)10 se utiliza de Janet Staigner, ao afirmar que “a autoria

importa” porque expressa o problema de reconhecer o crédito por trás de uma obra.

Segundo o artigo, quando se abordam as partes específicas de um filme, é importante

saber por que tal análise é necessária, seja para entender de quem é o crédito quando

se trata de uma premiação ou então, descobrir por que a obra falhou.

Mas, ao dizer que o diretor é o autor de um filme se estariam excluindo editores,

compositores, atores, roteiristas, etc. e, nos tempos atuais, sabe-se que tanto o senso

comum quanto a indústria do cinema ditam que a autoria de um filme é claramente

compartilhada. Tanto que em festivais ou até no Oscar, os prêmios são divididos por

categorias. Faria e Pereira (2015) dão o exemplo da editora dos filmes de Martin

Scorsese, Thelma Schoonmaker, que recebeu três Oscars e ainda foi indicada outras

vezes, mas dessas premiações, Scorsese ganhou o prêmio de melhor diretor apenas

uma vez. Para os autores, as teorias citam a importância do diretor enquanto autor

por diferentes motivos. Compreende-se ser um filme uma obra coletiva, mas o diretor

assume a função principal por coordenar os setores, dando fluidez ao unir o melhor

de cada elemento.

Os autores ainda apresentam um aspecto muitas vezes negligenciado pelas

teorias: o espectador. Eles discorrem que poucas pessoas se importam se o filme a

que assistem é do diretor X ou Y. Por exemplo, não importaria o quão genial Clint

Eastwood pudesse ser, se o público não concordasse com ele ou não gostasse de

suas ideias. Se fosse assim, ele não seria o autor que é.

Basak Göksel Demiray (2014)11 traz o artigo de Jenefer M. Robinson, intitulado

Estilo e Personalidade no Trabalho Literário. Nele, Robinson condensa o que foi

apresentado até aqui, mas no contexto da literatura. Ela divide os estilos de autores

em duas categorias principais: geral e individual.

10 TREDGE, David. A case study on film authorship: exploring the theoretical and pratical sides in film production. Disponível em http://www.elon.edu/docs/e-web/academics/communications/research/vol4no2/01davidtregdeejfall13.pdf – Acessado em 01/09/2017 11 DEMIRAY,Basak Göksel. Authorship in cinema: author & reader. Disponível em https://cinej.pitt.edu/ojs/index.php/cinej/article/download/62/343 – Acessado em 01/09/2017

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If a work belongs to a general style category, then, although it may have formal and expressive qualities that are distinctive of that style, it may nevertheless remain “characterless”: no personality “informs” the work. Alternatively, there may be personality traits expressed but they do not seem to belong to any particular individual. The work has an “anonymous” air about it, because the artistic acts are performed in a way which is common to a large number of different writers […] the defining quality of an individual style is that it expresses a coherent set of attitudes, qualities of mind and so on which seem to belong the individual writer of the work: a work which has an individual style expresses the personality of the implied author of that work. (ROBINSON apud DEMIRAY, 2014, s.p.).12

Demiray (2014) acredita que, ao contrário de artes pessoais como a pintura ou

a literatura, cinema é uma arte feita por um time. Entretanto, o autor aponta o diretor

como um indivíduo que se coloca como uma autoridade ímpar no processo fílmico,

controlando todos os departamentos da produção e liderando-os, por meio de suas

escolhas e decisões. Demiray lança a si mesmo um questionamento: “e se não há

autor (diretor) no filme? Ele ainda terá um estilo? Qual estilo predominará: do diretor

de fotografia, do diretor de arte, do roteirista, do ator, do editor, do produtor ou do

público? ” (DEMIRAY, 2014, s.p.).

Ele procura responder, ressaltando que se um filme não tem um autor

especifico, acaba caindo num estilo eclético ou no “estilo geral” proposto por Jenefer

M. Robinson. E é nessa instância que cabe ao leitor, ao público enfim, revelar esse

“estilo” único de um autor – talvez com a necessidade de idealizá-lo ou de glorificá-lo

ou ainda, a partir da tendência de se identificar com ele.

Segundo Demiray (2014), Barthes e Foucault manifestavam a “morte do autor”

e o “nascimento do leitor”, porém, o pesquisador não concorda que, no cinema, o autor

precisa morrer para o leitor/espectador nascer, visto que é uma arte baseada em

exibição em lugares públicos. Cinema não é uma forma de arte para o autor produzir

e, depois, apreciá-la sozinho, em casa, sem mostrá-la a ninguém.

Sendo assim, o leitor/espectador é tão importante quanto o autor neste

processo, e o significado que o leitor/espectador deriva do “texto” entendido aí como

o filme, em si, é tão importante quanto o significado criado pelo autor. Além disso,

12 Se um trabalho pertence a uma categoria de estilo geral, então, mesmo tendo qualidades formais e expressivas que são distintas desse estilo, pode, mesmo assim, permanecer “sem carisma”: nenhuma personalidade “informa” a obra. Alternativamente, podem existir traços de personalidade expressos, mas eles não parecem pertencer a nenhum individuo em particular. O trabalho tem um ar “anônimo”, pois os atos artísticos são executados de uma forma que é comum para um grande número de escritores diferentes (...) a qualidade definitiva de um estilo individual é que expressa uma coleção de atitudes coerentes, qualidades mentais e assim por diante, que pareçam pertencer a um escritor individual da obra: um trabalho que contém um estilo individual expressa a personalidade do dito autor daquela obra (Tradução do pesquisador).

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esses dois significados não precisam ser os mesmos, visto que serão produzidos por

duas mentes diferentes. Às vezes, o leitor/espectador pode analisar aspectos

diferentes dos filmes, dos quais o autor nem está ciente, pelo menos conscientemente.

Entretanto, sem matar o autor e sua autoridade, o leitor/espectador deve levar o texto

em conta de maneira criteriosa, estudando os significados que percebeu nos filmes

do dito autor. Ele não deve ignorar o autor empírico e seus elementos, que distinguem

esse autor de todos os outros, mas, por outro lado, não pode se ater a eles cegamente.

Contudo, se um leitor/espectador não conseguir se manter longe da autoimagem do

autor, não conseguirá perceber um ponto de vista distinto. Ou seja, muitas vezes, para

fazer com que um filme pertença à categoria de Cinema Autoral, precisa-se da

participação intelectual/subjetiva do espectador.

Mas, além da teoria do autor, algumas outras teorias “concorrentes” foram

propostas. David Tregde (2013) comenta sobre a teoria do escritor. Geralmente

apresentando a supremacia do diretor na construção de um filme, a teoria do autor

ignora os escritores, os estúdios e toda a colaboração que está presente para

completar um longa-metragem. O pesquisador se utiliza do jornalista de arte, David

Kipen, que considera sua teoria do escritor digna do mesmo reconhecimento obtido

pela teoria do autor, justamente por considerar a parte que cria ao invés da parte que

conta. Kipen (apud TREDGE, 2013) afirma que o roteirista é a pessoa mais importante

de Hollywood.

Nos filmes mudos, o diretor era supremo, por não haver, à época, nenhum tipo

especifico de roteiro. O hábito de escrever um roteiro derivou-se, mais tarde, do teatro.

Tregde (2013) resume:

Simply put, one cannot build a skyscraper without a blueprint. So who writes the story? As basic as it may sound, the individual or group who put the words to paper creates the story. A writer is the architect of the movie, while the director and his crew are the foreman and construction workers. Buildings are credited to their architect, not their builder (TREDGE, 2013).13

A teoria do escritor pode ser refutada devido ao controle criativo. Uma vez que

o roteiro é vendido a um estúdio ou diretor, o escritor perde o direito do resultado final

13 Não se pode construir um arranha-céu sem as plantas. Então, quem é que escreve as histórias? Por mais básico que possa parecer, é o indivíduo ou o grupo, que põe as palavras no papel quem cria a história. O roteirista é o arquiteto do filme e o diretor e o resto da equipe são os construtores. E uma construção é sempre creditada ao arquiteto, seu criador, e não ao seu construtor (Tradução do pesquisador).

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gerado por sua ideia. Já os diretores estão livres para editar, mudar, adicionar ou

remover o que quiserem da história.

Tredge (2013) comenta que o crítico Richard Corliss admite que roteiristas

sofrem por não serem creditados por nenhum trabalho ou por serem creditados pelo

trabalho que não fizeram ou quando são múltiplos escritores creditados pelo mesmo

trabalho. Kipen (apud TREDGE, 2013, s.p.) diz que isso confunde a ideia da teoria do

autor, já que se torna muito difícil analisar escritores e autores quando não há

consistência sobre como suas contribuições são creditadas. Ele afirma que

“colaboração não se opõe à análise, apenas torna significativamente mais difícil de

“dar crédito quando o crédito é necessário”.

Mais uma teoria que difere da teoria do cinema autoral é a teoria colaborativa.

Desta vez, Tregde (2013) apresenta o escritor Paul Sellors, que afirma que a autoria

- seja para livros, filmes, ou outro tipo de arte – é uma questão de intenção. Ele

argumenta que todo o grupo por trás da comunicação da mídia em questão é o autor,

mas o conceito não é exclusivo a uma pessoa. Ao invés disso, pode ser aplicado ao

estúdio, ao diretor e ao escritor se todos desempenharam um papel na finalização da

obra.

Contudo, a teoria colaborativa enfrenta problemas semelhantes à teoria do

escritor. É mais fácil apontar membros da equipe com cargos altos como autores do

que explorar “a fundo”, nos créditos, para explicar a autoria coletiva. Embora esta seja

muito mais agradável para um estudo realista sobre filmes, uma autoria mais

especifica é necessária para discutir com eficácia um filme, como em análises críticas.

Tredge (2013) reconhece que as teorias do autor e do escritor apresentam formas

muito mais simples de debater autoria em esferas acadêmicas e públicas por causa

da facilidade de entendimento, não necessitando de uma pesquisa empírica.

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3. DIREÇÃO DE CINEMA

“O indivíduo é sempre considerado louco quando ele

descobre algo que os outros não conseguem compreender.”

Ed Wood

Neste capítulo será dada uma breve contextualização sobre o que é ser diretor

de cinema e qual o seu papel na criação das obras cinematográficas. Após, será

aprofundada a questão das marcas pessoais e dos processos criativos. Marcas, no

sentido do que é que o diretor consegue deixar em um filme para que o espectador

possa dizer: “este filme é claramente de Spike Jonze” ou “este filme é claramente de

Denis Villeneuve”. Para essas marcas existirem são necessários os abstratos

processos criativos. Cada diretor tem o seu, e um dos temas deste capítulo é explorar

como certos diretores autores se utilizam de suas bagagens, ideais e estilos para,

através de seus processos criativos, imprimir sua marca pessoal nos filmes. Primeiro,

serão levados em conta diretores de tempos passados e que fazem parte da fundação

do cinema hoje. Após, serão analisados seletos diretores bem-sucedidos do período

contemporâneo e que costumam trabalhar em mais de uma área do fazer fílmico.

Escrevendo o roteiro de seus próprios filmes, por exemplo. Tudo isso para melhor

entender como pensam, por que dirigem do jeito que dirigem e por que se destacam

tanto dentre outros diversos profissionais.

3.1 O DIRETOR

Dentro da linguagem fílmica existem inúmeros processos em ação e todos

devem ter equilíbrio entre si. Quem orienta e controla esses processos é o diretor.

O Diretor é a pessoa que manda no filme, junto com o produtor [...]. Ele é quem vai dar a palavra final nas decisões. O Diretor, além de ser o chefe, também tem a função de dirigir os atores, definir qual tipo de iluminação vai ser utilizada no filme, qual o cenário ele quer, quais as posições das câmeras, qual roupa os personagens irão usar, etc. O Diretor não precisa saber a fundo sobre todas as áreas do cinema, mas ele precisa ter, ao menos, conhecimentos básicos sobre elas (CASTILHO, 2013, p.24).

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Gilka Padilha de Vargas (2014)14 comenta sobre como o trabalho em equipe é

importante em uma produção cinematográfica e como o diretor deve colaborar com

diversos profissionais para alcançar o mesmo objetivo, que é o de concretizar o roteiro;

cada um deles, munido de seu arsenal de instrumentos de trabalho, de sua bagagem

cultural, de seu repertório visual. O artigo traz a seguinte fala da premiada diretora de

arte Patrizia Von Brandestein:

[...] convém nunca esquecer que um filme é um empreendimento coletivo. Diretores de arte e diretores de fotografia são como unha e carne. Nossos respectivos trabalhos são completamente interdependentes. As idéias do diretor de arte devem se encaixar com as do diretor de fotografia. Jamais me ocorreria utilizar uma cor em um ambiente sem ter consultado previamente o diretor de fotografia. Durante a filmagem é essencial estar em contato constante com o diretor e com o diretor de fotografia (BRANDESTEIN apud VARGAS, 2014).

Martin Scorsese (2004, p. 19) afirma que, apesar de admirar quase todos os

diretores de cinema, sempre teve maior interesse por aqueles que driblavam o sistema

para colocar sua visão na tela. “Às vezes, parecia que tudo conspirava para impedi-

los de alcançar a expressão pessoal. Pois havia regras, muitas regras, no jogo de

poder de Hollywood.”.

O autor continua, ao salientar que um poeta ou pintor pode ser solitário, mas o

diretor de cinema tem que ser, antes de tudo, membro de uma equipe. Sobretudo em

Hollywood. Para ele, a colaboração mais importante sempre foi entre diretor e

produtor. “Nos velhos tempos o diretor lidava com mandachuvas e grandes estúdios;

hoje ele enfrenta executivos e corporações gigantescas. Mas existe uma regra que

nunca mudou: cada decisão é modelada pela percepção que os homens do dinheiro

têm daquilo que o público quer” (SCORSESE, 2004, p. 20).

Para esses diretores sobreviverem e para que pudessem controlar o processo

criativo, Scorsese explica que cada cineasta teve que desenvolver sua própria

estratégia. Alguns, como Frank Capra, Cecil B. De Mille ou Alfred Hitchcock, cavaram

um nicho para si próprios, destacando-se num certo tipo de história e sendo

identificados com ele. Seus próprios nomes tornaram-se chamarizes de bilheteria.

14 VARGAS, Gika Padilha de. Direção de arte: a imagem cinematográfica e o personagem. Disponível em http://www.uel.br/eventos/encoi/anais/TRABALHOS/GT3/DIRECAO%20DE%20ARTE%20A%20IMAGEM%20CINEMATOGRAFICA.pdf – Acessado em 20/09/2017

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Alguns poucos até alcançaram o sonho de Capra e garantiram que seu nome fosse

escrito “acima do título”.

Eles tinham diretores maravilhosos na MGM, mas você não sabia quem eram. Nunca ouvia seus nomes. Mas ouvia falar de mim. Eu fazia meus próprios filmes e todo mundo sabia disso. Eu era o inimigo do grande estúdio. Acreditava na divisa “um homem, um filme”. Acreditava que um homem deveria fazer o filme e que o diretor deveria ser esse homem. Um homem deveria fazê-lo – não importa quem – mas o diretor era o mais indicado. Eu simplesmente não conseguia aceitar a arte como algo feito por um comitê. Só conseguia aceitar a arte como extensão de um indivíduo (CAPRA apud SCORSESE, 2004, p. 31).

Aumont (2004) comenta sobre a “luta” entre o diretor e o roteirista; o último, por

exemplo, tendo obtido no cinema francês, na década de 1930, o título de autor do

filme. Trata-se, no fundo, da célebre “querela” entre René Clair e Marcel Pagnol, um

querendo que o filme fosse criado na filmagem e montagem; o outro, que fosse apenas

a consequência de uma adaptação correta de seu roteiro. Luta entre diretor e produtor,

em contexto mais hollywoodiano, como testemunham, por exemplo, as memórias de

Frank Capra. Luta, às vezes, até entre diretor e fotógrafo, no período do cinema mudo,

durante o qual a imagem aparecia como veículo essencial do sentido de qualidade do

filme. Todos disputando a autoria.

Aumont (2004) discorre que para Jean-Claude Biette (2001), o termo neutro e

técnico é “diretor”, e deve apenas entrar nos créditos dos filmes com os outros

técnicos. Para Biette, o termo diretor significa técnico de filmagem, nada mais. Ele,

entretanto, dá a alternativa de mais três definições: autor, metteur en scène e cineasta.

Matteur en scène é aquele que se dispõe a exercer arte dentro da indústria fílmica. O

autor é aquele que pretende se igualar ao autor da literatura e, portanto, também deve

exercer o domínio sobre a história contada.

O cineasta é aquele que exprime um ponto de vista sobre o mundo e sobre o cinema e que, no próprio ato de fazer um filme, realiza essa dupla operação que consiste em cuidar, ao mesmo tempo, de manter a percepção particular de uma realidade (...) e de exprimi-la com base em uma concepção geral da fabricação de um filme” (BIETTE apud AUMONT, 2004, p. 147).

O cineasta Jean Cocteau tem uma reflexão similar quanto ao conceito de

cineasta de Biette e sobre a autoridade do diretor nas obras fílmicas.

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Não há dúvidas que o autor do filme é o diretor – aquele que produz as imagens -, contanto que seja também o autor do roteiro e, sobretudo, contanto que fosse mais geral e profundamente em tudo um sonâmbulo mergulhado em uma espécie de sono estafante (COCTEAU apud AUMONT 2004, p. 149).

Aumont (2004) conclui que o cineasta de Biette e o de Cocteau são menos

fazedores do que fomentadores de obra; permitem que esta advenha, e a ela se

dedicam por inteiro, mas, ao mesmo tempo, ela os ultrapassa e surpreende.

Para ser um bom diretor, Michael Rabiger (2007) elucida que é preciso ter uma

identidade clara e forte em relação ao mundo ao seu redor e uma compreensão nítida

do que significa dramaturgia. O autor se utiliza do exemplo do diretor Ingmar Bergman,

que avisa que o cinema é um esforço coletivo no qual a criatividade compartilhada

produz algo maior que a simples soma de suas partes. Rabiger (2007) acredita que o

artista, como individualista convicto, é uma invenção muito recente e não é a única,

nem a melhor, fonte de produção artística duradoura.

Do ponto de vista técnico, Rabiger (2007) aponta a importância da mise-en-

scène para distinguir cineastas. A mise-en-scène inclui: marcação de cena, câmera,

projeto da imagem, conteúdo dramático e sonoplastia. Ela tem de ser decidida para o

todo e, em um esboço abrangente, para o roteiro inteiro; depois, cada cena pode ser

planejada dentro das intenções da estrutura maior de forma prática e não racional,

pelo diretor.

O diretor deve conhecer as opções existentes e saber como discuti-las com o

diretor de fotografia, que para Rabiger (2007), é o colaborador mais importante

durante as filmagens. Também seria esse o momento para os diretores sucumbirem

à “famosa teimosia” dos diretores de fotografia. E esse seria mais um convite para

abdicar do papel do diretor.

O diretor Raoul Walsh (apud SCORSESE, 2004, p. 33) diz que “se você não

tem a história, você não tem nada”. Scorsese (2004) concorda que essa é uma regra

fundamental no cinema. Ele comenta que o cineasta norte-americano sempre se

interessou mais por criar ficção do que por revelar a realidade. Desde cedo, o gênero

documentário foi descartado ou relegado a uma condição marginal. Para Scorsese

(2004), o diretor de Hollywood é um homem do entretenimento: seu negócio é contar

histórias. Em consequência disso, ele está atrelado a convenções e estereótipos,

fórmulas e clichês, limitações que foram codificadas em gêneros específicos.

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O autor comenta que as plateias amavam filmes de gêneros específicos e os

velhos mestres nunca relutaram em abastecê-las. Dá o exemplo da apresentação de

John Ford, em uma reunião de diretores em 1950, que se apresentou do seguinte

modo: “Meu nome é John Ford. Eu faço faroestes” (FORD apud SCORSESE, 2004,

p. 33). O diretor tem filmes reverenciados como The Informer (1935) e The Grapes of

Wrath (1940), mas os faroestes eram aquilo de que mais se orgulhava - ou, pelo

menos, era nisso que queria que se acreditasse, ainda segundo Scorsese (2004). Os

gêneros cinematográficos serviram para organizar uma linha de produção: cada

estúdio fazia tantos faroestes, tantos musicais e assim por diante. O primeiro mestre

contador de histórias do Ocidente foi, como já comentado no capítulo anterior, Griffith.

O diretor tinha uma sensibilidade movida por uma tradição literária, advinda de

Dickens e Tolstói, Frank Norris e Walt Whitman.

Scorsese (2004), porém, concorda que os gêneros nunca foram rígidos e

cineastas criativos não cessavam de alargar suas fronteiras. Para ele, o cinema é uma

arte clássica em que a expressão pessoal sempre foi estimulada, e não inibida, pela

disciplina. O autor elucida que não basta ao diretor ser apenas um contador de

histórias. Para implementar sua visão, precisa ser um técnico e até mesmo um

ilusionista. Isso significa conhecer e dominar “a fundo” o processo técnico. O diretor

também esclarece que a indústria norte-americana do cinema nunca deixou de

assimilar novos avanços tecnológicos. De alguma maneira, ela progrediu mais

depressa e de modo mais decisivo que suas rivais estrangeiras.

Como disse o cineasta King Vidor (apud SCORSESE, 2004, p. 77), “o cinema

é o mais grandioso meio de expressão já inventado. Mas é uma ilusão mais poderosa

que qualquer outra e por isso deveria estar nas mãos dos mágicos e feiticeiros que

são capazes de lhe dar vida”.

Embora o sistema fílmico seja complexo e técnico, ele não é a prova de

brechas. Para Scorsese (2004), por essas brechas se infiltram contantemente

oportunidades e projetos que permitem a expressão de sensibilidades diferentes,

temas originais ou até mesmo concepções politicas radicais. “Quanto menos dinheiro,

mais liberdade” (SCORSESE, 2004, p. 113).

Talvez por isso mesmo o cinema independente seja tão sedutor a diretores,

tanto os amadores quanto os profissionais. O universo dos “filmes B” era mais propício

à experimentação e à inovação. Produções de baixo orçamento podem ter muito mais

controle criativo e ainda menos executivos vigiando suas obras. Os diretores podem

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introduzir toques incomuns, tramar enredos inesperados e, às vezes, transformar um

material rotineiro numa expressão muito mais pessoal. Para Scorsese (2004), em

certo sentido, os diretores se tornaram contrabandistas. Trapaceiam e, de algum

modo, escapam impunes.

O autor conclui que em Hollywood também há os diretores chamados de

iconoclastas: visionários, desbravadores e renegados, que desafiam abertamente o

sistema e expandem as barreiras da arte. Muitas vezes derrotados, por vezes fazendo

o sistema trabalhar a seu favor. “Hollywood sempre teve uma relação de amor e ódio

com aqueles que violam suas regras, exaltando-os num momento e queimando-os no

momento seguinte” (SCORSESE, 2004, p. 159). Para ele, a indústria do cinema

frequentemente confundiu entretenimento com escapismo. Mas, desde a época do

cinema mudo, alguns poucos cineastas desafiaram os ideais de “glamour” e diversão

sadia ao injetar uma dose de realidade em seus filmes, geralmente dentro da moldura

do melodrama.

3.2 OS PROCESSOS CRIATIVOS E AS MARCAS PESSOAIS

De acordo com Marty Neumeier (2009), marca não é apenas o logotipo ou a

propaganda da empresa, mas a percepção intuitiva de um cliente em relação a um

produto, serviço ou à própria empresa. No cinema, isso não é diferente. E o resultado

é aquele saber quase instintivo de que você está assistindo um filme feito por alguém

especifico, como Ingmar Bergman ou Andrei Tarkovski. Por que é possivel discernir

tal informação antes dos créditos aparecerem? Porque os diretores deixam marcas

pessoais em seus filmes. Atributos únicos de cada um, vestígios de sua

personalidade.

Para Catherine Kaputa (2008), as nossas muitas influências afetam nossas

marcas. Muitas podem ser explicadas e analisadas. Outras, não. Causa e efeito são

certos somente na ciência. A autora afirma que todas as experiências são dignas de

nota, visto que ajudam na complexidade e no estilo das marcas, mas é a sua inserção

que as torna boas ou más. Kaputa (2008) determina que a regra fundamental para

boas marcas é ser diferente das outras. Copiar é imitar, e quando se copia, não se

está sendo autêntico. Para a autora, é a autenticidade que define uma boa marca:

“quem você é e o que pode ser, não quem você quer ser ou quem os outros querem

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que você seja. É preciso descobir o que há de diferente em você e quais são suas

habilidades. E capitalizar em cima delas” (KAPUTA, 2008, p. 43).

É importante para um cineasta ser reconhecido por suas marcas pessoais

justamente para despertar no público o desejo de acompanhar seu trabalho. Roberto

Álvarez del Blanco (2010) expõe que o ativo mais importante de uma pessoa é o seu

nome. Uma boa reputação traz bons relacionamentos. Um nome sem brilho cria

dificuldades e frustração. Ainda mais grave, e muito complicado, é desfazer uma

reputação desfavorável. O autor explana que cada pessoa é uma marca, representada

por seu nome e sua personalidade. A marca pessoal se torna, portanto, um acúmulo

de tudo que a pessoa já fez, está fazendo ou irá realizar. Como Miguel de Cervantes

escreveu em Dom Quixote: “Mais vale um bom nome do que muitas riquezas”

(CERVANTES apud BLANCO, 2010, p. 11).

A personalidade e as marcas de um diretor podem transparecer na tela de

inúmeras formas, como por meio dos enquadramentos ou de uma sonoplastia distinta,

porém, um dos aspectos mais importantes que podem ditar o tom e a personalidade

de um filme é sua montagem, isto é, sua edição. Um dos grandes visionários dessa

área foi o já citado Griffith.

Meio século depois, Stanley Kubrick talvez estivesse pensando em Griffith quando observou que o verdadeiramente original na arte do cinema, aquilo que a distingue de todas as outras artes, é o processo de montagem ou edição (SCORSESE, 2004, p.78).

A edição dita o ritmo do filme, a ordem dos acontecimentos e é onde o cineasta

mais tem liberdade para se expressar. Eisenstein (2002) afirma que a cinematografia

é, em primeiro lugar e antes de tudo, montagem. O autor também elucida que a

montagem é o mais poderoso meio de composição para se contar uma história. “A

montagem nada mais era do que a marca, mais ou menos perfeita, da marcha real de

uma percepção de um acontecimento reconstituído através do prisma de uma

consciência e de uma sensibilidade de artista” (EISENSTEIN, 2002, p. 11).

Tânia Siqueira Montoro e Michael Peixoto (2009)15 tratam da figura do diretor

como um verdadeiro artista e como cada um pode deixar a própria marca pessoal em

suas obras. Os autores explicam que o exemplo mais difundido pelos críticos

15 MONTORO, Tânia Siqueira; PEIXOTO, Michael. O diretor enquanto artista. Disponível em http://www.cult.ufba.br/enecult2009/19375.pdf – Acessado em 20/09/2017

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franceses do diretor que conseguiu driblar o sistema “clássico” do fazer fílmico

hollywoodiano foi Orson Welles, que, desde o seu primeiro filme, soube imprimir a sua

marca pessoal. Aliás, para muitos, Citizen Kane representa o marco inaugural da

passagem do “cinema clássico” para o moderno.

Depois do filme de Welles, continuará a fabricação de produtos normatizados, conforme as regras mais ou menos lógicas, mais ou menos universais, elaboradas por Hollywood, mas se saberá que existe outra possibilidade de cinema, que não apenas autoriza a virtuosidade narrativa – misturar os tempos e as vozes -, de como permite reivindicar a responsabilidade plena e inteira do dizer e do dito, em suma, de comportar-se como autor de filmes, seguindo o modelo então confesso do romancista. André Bazin, sempre perceptivo, não se enganou quanto a isso, ao declarar que, com e depois desse filme, 'o cinema é, enfim, igual à literatura'. O igual: não o vassalo, não o equivalente, não uma vaga lembrança, e não, também não, o concorrente. '“Fazer cinema’ é igual a ‘fazer literatura (AUMONT, 2004 p. 32, grifos do autor).

Marcelo Moreira Santos (2015)16 salienta que o fato de o cineasta tomar as

decisões cruciais quanto à realização do filme não tira a coautoria dos outros agentes

nem o caráter poético de suas funções no que tange à confecção do filme. Seguindo

essa perspectiva, o que se constata é que “essas interações que compõem e moldam

a realização de um filme configuram-se como sistêmicas, isto é, há um conjunto de

agentes semióticos com funções específicas que interagem e se integram na

realização da obra” (MORIN apud SANTOS, 2015, s.p.).

O diretor de cinema concebe suas marcas pessoais por meio de processos

criativos. Para Lígia Dabul e Bianca Pires (2008)17 esses processos podem ser vistos

como rituais únicos de cada artista. Elas evidenciam que o processo criativo se deve

a diferentes práticas e formações das experiências vividas como excepcionais durante

a concepção de suas obras, incluindo aqueles estados especiais de inspiração.

Há registros das mais diferentes formas de os artistas alcançarem, inclusive

deliberadamente, essas situações especiais que se identificam com a criação artística.

Por exemplo, o ato de sentar-se em uma poltrona e deixar que cenas de seu filme

“passem” pela sua cabeça; colocar a tela em um cavalete e constatar que

imediatamente uma pintura “aparece”; situar-se em posição de “detetive” para

16 SANTOS, Marcelo Moreira. A direção de arte no cinema: uma abordagem sistêmica sobre seu processo de criação. Disponível em https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/view/23914 – Acessado em 20/09/2017 17 DABUL, Lígia; PIRES, Bianca. Set e “ação”: notas sobre processos criativos no cinema. Disponível em http://www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis12/Poiesis_12_setacao.pdf – Acessado em 21/09/2017

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“descobrir” a história que se está criando, são procedimentos que, apesar de

deflagrados muitas vezes em circunstâncias de solidão, o que na criação em literatura

parece consistir na regra, não devem ser necessariamente analisados como

experiências estritamente individuais. Para explicar, as autoras citam o precoce

criativo Fellini:

Gosto de estar sozinho comigo mesmo, refletir. Contudo, só sei estar só no meio das pessoas. Só penso bem se estou com pressa, pressionado, em meio a dificuldades, com assuntos por tratar, problemas a resolver, feras a domesticar. Isto me esquenta, me põe em forma. Nem sempre fui assim. Antes de começar a dirigir, achava assustadora a idéia de ter que criar no meio da confusão. (...) E, agora, cheguei a tal ponto que não consigo produzir se não houver à minha volta uma grande confusão (FELLINI apud DABUL; PIRES, 2008, s.p.).

Dabul e Pires (2008) também dão o exemplo de Akira Kurosawa, que formula

de maneira singular a incidência de fluxos criativos e de inesperados afloramentos de

personagens. Para ele, o momento da filmagem é único e por mais que escrevesse

roteiros e esperasse determinadas atuações e desenvolvimentos definidos dos

personagens, a própria interpretação dos atores acabava por transformá-las.

Ainda segundo as autoras, Kurosawa afirma que é dentro do set de filmagem

que os personagens ganham vida, e que nada seria mais prejudicial a um filme que o

diretor tentar cortar e conter ações bem-sucedidas de atores apenas para se manter

fiel a um roteiro: “personagens têm existência própria num filme. O diretor não é livre

para lidar com eles. Se insiste em manter sua autoridade perde a vitalidade”

(KUROSAWA apud DABUL; PIRES, 2008, s.p.).

Portanto processos criativos estão relacionados aos momentos de inspiração.

Fayga Ostrower (2010) situa o sentimento de inspiração como um momento decisivo

e criativo, o desfecho do fazer. Mas, a autora também discorre que a inspiração nasce

do trabalho, das tentativas que a precederam. Ela afirma que pensar na inspiração

como um instante aleatório que venha a desencadear um processo criativo é uma

noção romântica. Ostrower (2010) reafirma que não há como a inspiração ocorrer

desvinculada de uma elaboração já em curso, de um engajamento constante e total,

embora, talvez, não consciente.

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Ocorrem momentos em nossa vida, momentos conscientes, pré-conscientes, inconscientes, de grande intensidade emocional. Eles podem induzir em nós novas forças, estimular todo nosso ser, trazer novas ideias, reorientar-nos na vida. Podem oferecer propostas de trabalho, hipóteses de ordenação. Mas igual a outras, também essas ideias, propostas, hipóteses teriam que passar por um processo de elaboração subsequente a fim de evidenciarem sua validez. Talvez tenham sido ideias inspiradas, e talvez não (OSTROWER, 2010, p. 73).

Sobre a criatividade, Ostrower (2010) a define como um potencial inerente ao

homem, e a realização desse potencial, uma de suas necessidades.

A natureza criativa do homem se elabora no contexto cultural. Todo indivíduo se desenvolve em uma realidade social, em cujas necessidades e valorações culturais se moldam os próprios valores da vida (...) outra ideia é a de que criar corresponde a um formar, um dar forma a alguma coisa. Sejam quais forem os modos e os meios, ao se criar algo, sempre se o ordena e se o configura (OSTROWER, 2010, p. 5).

Pode-se concluir que é através dos processos criativos que cada cineasta

imprime sua diferenciada marca pessoal. Todo artista trabalha de uma forma diferente

e age por diferentes meios para apresentar uma narrativa. Cada um, com seus

próprios processos, formados por suas crenças, conhecimento, ideas, personalidade

e bagagem de vida. Orson Welles costumava fazer a sugestão de que o individuo

precisa criar seu estilo próprio, um estilo único e de fácil identificação para os outros.

3.2.1 A velha guarda

As primeiras décadas do cinema pareciam ter a questão da autoria muito

proeminente. Artistas dos primeiros filmes mudos e primeiros curtas cinematográficos

como Méliès precisavam participar de diversas áreas da criação fílmica para que sua

obra ficasse pronta. Porém, é provável que esse controle criativo, juntamente com as

marcas fílmicas, se devesse principalmente à falta de opção e não à escolha do

diretor. Por carência de pessoal especializado, mão-de-obra e tecnologia, os

cineastas daquela era inicial precisavam improvisar e, querendo ou não, passavam a

produzir filmes autorais com suas marcas pessoais muito presentes. Tudo isso, em

decorrência de participarem de modo direto em diversas áreas da produção.

Um importante autor surge nessa época: Charlie Chaplin, que

surpreendentemente produzia, dirigia, escrevia, atuava, editava e compunha a própria

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trilha sonora de seus filmes. Carl Davis (2011)18 alega que o estímulo de Chaplin era

como o de qualquer palhaço: a criação de um personagem. Com extenso controle

sobre suas obras, Chaplin imprimia seu estilo em todos os projetos. Davis (2011)

evidencia que Chaplin rebateu a vinda do cinema sonoro, mantendo seu personagem,

“Carlito”, mudo; mas, criando trilhas sonoras magníficas. Por não haver som nos

primeiros filmes, o cineasta se forçava, cada vez mais, a se concentrar no estilo do

filme para compensar e acabou criando um dos mais marcantes.

Stephen M. Weissman (2008) indaga de quem é a “psique” (do grego antigo,

originalmente "respiração", "sopro", era, entre os gregos, um conceito que definia o

self - si mesmo - abrangendo as ideias modernas de alma, ego, mente e espírito19)

que um filme expressa: do diretor? Do ator? Do escritor? Do editor? Do produtor?

Como cada um desses indivíduos é um profissional treinado, quando críticos de

cinema tentam abordar a origem criativa de dada obra, acabam pesando a

participação de cada profissional. Por isso, Weissman (2008) acredita que a grande

maioria dos filmes não é apta a uma profunda análise sistemática da “psique” dos

indivíduos envolvidos.

Todo o trabalho de Chaplin pode ser analisado do ponto de vista psicanalítico,

pois não há problema de atribuição. Seus filmes eram exclusivamente sua própria

18 DAVIS, Carl. Charlie Chaplin’s film music. Disponível em: https://www.theguardian.com/culture/2011/jan/01/carl-davis-charlie-chaplin-soundtracks – Acessado em 21/09/2017 19 Disponível em http://www.theoi.com/Ouranios/Psykhe.html - Acessado em 21/09/2017

Figura 1: Sir. Charles Spencer Chaplin

Fonte: lefis.ufsc.br/files

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expressão. Weissman (2008) conta que o filho de Chaplin, Charlie Chaplin Jr.

confessou que, se o pai tivesse o tempo necessário, teria produzido também as

vestimentas dos personagens. Weissman (2008) conclui que Chaplin era um

“workaholic” perfeccionista. O total controle sobre todos os aspectos de suas obras é

uma “lenda” em Hollywood.

In order to analyze the creative origins of a film as if it were the expression of one person’s psyche, academic film critics came up with the auteur theory. That theory makes the theoretical assumption--for rhetorical purposes--that films can be legitimately discussed as the creative expression of the director’s personal psychology. What co-contributors like Marlon Brando, Tennessee Williams and Bud Schulberg might have felt about Elia Kazan’s being credited as the auteur of films like Streetcar Named Desire or On The Waterfront is not known—and is certainly questionable (WEISSMAN, 2008, p. 222).20

Quando o público e os críticos passaram a ver o cinema como uma mídia mais

definida, estúdios começaram a gerar mais dinheiro e, sendo assim, os diretores

tiverem acesso à uma gama de possibilidades aumentada e à mais liberdade criativa.

Peter Wollen (1972) exemplifica a partir de Orson Welles, tomando-o como um

cineasta-autor que possuía, além de marcas pessoais evidentes em todas as suas

obras, também um controle criativo abrangente sobre elas, sendo que escreveu e

dirigiu todos os seus filmes e produziu mais da metade.

20 Para analisar as origens criativas de um filme como se ele fosse a expressão da psique de uma pessoa, críticos acadêmicos e filmes inventaram a teoria do autor. Essa teoria assume teoricamente – para propósitos retóricos – que filmes podem ser legitimamente discutidos como se fossem a expressão criativa, pessoal e psicológica do diretor. O que contribuidores como Marlon Brando, Tennessee Williams e Bud Schulberg podem ter sentido quanto a Elia Kazan ser creditada como a autora de filmes como Um Bonde Chamado Desejo ou Sindicato de Ladrões não é sabido – e é certamente questionável (Tradução do pesquisador).

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Wollen (1972) evidencia que uma das principais marcas de Welles era o uso

do foco profundo, uma técnica que requeria iluminação mais poderosa do que a luz

natural podia providenciar. Outra técnica era a de evidenciar o valor ou as emoções

do personagem através de enquadramentos e ângulos de câmeras antes não usados.

Por exemplo, quando um personagem se sentia empoderado e fazia um discurso

importante, a câmera o fitava de baixo, salientando a magnitude de sua fala. Wollen

(1972) afirma que Welles era visto, na época, como um inovador, um perigoso

experimentalista.

Porém, ele comenta que, hoje, essas afirmativas parecem absurdas. “Houve

uma total mudança de foco que tornou a história do cinema muito diferente. Eisenstein

ou Vertov parecem contemporâneos ao invés de antigos. Welles ou Jennings parecem

extremamente velhos e ultrapassados” (WOLLEN, 1972, p. 156). O autor propõe duas

respostas para os motivos dessa inversão: uma foi o surgimento do cinema

“underground” (um cinema que se encontra fora do padrão, seja ele de estilo, gênero

ou financiamento) e a outra foi Godard, com seu cinema Nouvelle Vague.

Akira Kurosawa foi outro diretor a mudar para sempre o universo fílmico. Ingmar

Bergman teria chamado seu próprio filme, The Virgin Spring (1960), de uma “imitação

barata de Kurosawa” (BERGMAN apud GADO, 1986, p. 241). A lista de fãs

hollywoodianos de Kurosawa conta com nomes como Altman, Coppola, Spielberg,

Figura 2: George Orson Welles

Fonte: http://www.bfi.org.uk/sites/bfi.org.uk/files

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Lucas, Scorsese, entre outros. O diretor pode ser considerado um visionário,

improvisando técnicas, como filmar cenas com as lentes viradas para o sol, um feito

nunca antes realizado. Federico Fellini, diz que “Akira Kurosawa é o maior exemplo

vivo do que um autor de cinema deveria ser” (FELLINI apud CARDULLO, 2006, p. 49).

A dissertação “Akira Kurosawa An Auteur” (2015)21 aponta que um dos

principais aspectos da marca pessoal de Kurosawa era o fato de que sua “voz”

começava na sala dos roteiros e terminava na sala de edição. O diretor escrevia,

produzia, dirigia e editava seus próprios filmes. A dissertação ressalta o fato de que

um diretor passa a maior parte da vida em um único filme. Para Kurosawa, esse filme

poderia ser o “de época”, gênero em que ele trabalhou quase todas as vezes. O Japão

medieval era perfeito para Kurosawa, pois tinha valor sentimental. Entre outros

motivos, um era o de que seu pai descendia de samurais.

21 Disponível em https://www.ukessays.com/essays/film-studies/akira-kurosawa-an-auteur-film-studies-essay.php – Acessado em 21/08/2017

Figura 3: Akira Kurosawa

Fonte: imdb.com

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O texto afirma que Kurosawa era um artista, antes de tudo, visual. Desde

pequeno, ele queria ser um pintor ou desenhista e isso fica óbvio ao se prestar atenção

a seus enquadramentos. Todos contêm a sensibilidade de um artista. Além disso, o

diretor procurou exercer total controle sobre tudo o que se passava na tela: da

composição à escolha da câmera. Ele queria pintar frame por frame. Ainda segundo

a dissertação, Kurosawa teria dito: “eu explico a imagem desejada em detalhes, não

apenas para o cinegrafista, mas também para todos os membros da equipe e os faço

fazer o máximo para produzir à melhor semelhança possível aquilo que imaginei”.

Porém, uma das maiores características do diretor era mesmo a sua forma de editar.

Todos que trabalhavam com ele apontavam a edição como a parte mais importante

de seu trabalho. Ele próprio, frequentemente teria dito que costumava fazer um filme

apenas pelo prazer de editá-lo depois.

Do “outro lado da moeda” há Ed Wood, um diretor famoso, não por ter sido

revolucionário ou por ser bom naquilo que fazia, e sim, por ser considerado um dos

piores diretores de todos os tempos. A reportagem “The Cinema of Ed Wood” (2011)22

contempla o fato do diretor ter extrapolado a teoria do cinema autoral até seu limite.

Mesmo considerados ruins, seus filmes são “distintamente dele”. Wood, apesar de

sem talento, escrevia seus filmes, os produzia e os dirigia, realizando-os onde e

quando podia, juntando o dinheiro necessário, alugando pequenos estúdios de som

para arquitetar seus mundos fantasiosos e trabalhando com talentos de Hollywood

cujos dias de glória já haviam há muito passado.

22 Disponível em http://www.forcesofgeek.com/2011/02/cinema-of-ed-wood.html – Acessado em 21/08/2017

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Alguns de seus roteiros eram estranhamente pessoais, como o caso de Glen

or Glenda (1953), cuja história aborda o caso de um homem que gosta de se vestir de

mulher (coisa que o diretor fazia em segredo). Porém, os filmes de Wood podem ter,

sobre o espectador, um efeito peculiar: são prazerosos de assistir, apesar de mal

feitos. São filmes divertidos e o espectador pode rir com eles.

Trabalhar em diversas áreas da produção requer um grandioso nível de

profissionalismo, mas pode resultar em um filme com personalidade, seja boa ou ruim.

A reportagem conclui, evidenciando que hoje, quase 40 anos depois de sua morte, fãs

do cinema conhecem o nome Ed Wood e ainda estão falando sobre seu trabalho. É

difícil pensar em um legado melhor do que esse. Tim Burton, fã do trabalho de Ed

Wood e diretor do filme baseado em sua vida teve o seguinte a dizer sobre suas obras:

Figura 4: Edward Davis Wood Jr.

Fonte: https://uinterview.com

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The films are unusual; I've never seen anything like them, the kind of bad poetry and redundancy; saying in, like, five sentences what it would take most normal people one, which I can also relate to. Yet still there is a sincerity to them that is very unusual, and I always found that somewhat touching; it gives them a surreal, weirdly heartfelt feeling (BURTON, 1994).23

A autoria e a personalidade andam de “mãos dadas” com o controle e a visão

criativa da obra. Para Joshua Greally (2013)24 um dos grandes autores foi Stanley

Kubrick. O autor escreve que Kubrick era um artista com criatividade de sobra. E que,

embora se inspirasse em livros com frequência, mudava o material de origem (o que,

muitas vezes, irritava os autores originais) para ficar de acordo com os seus ideais.

Ele também mantinha um seleto grupo de profissionais em muitos dos seus projetos.

James Liggat, seu diretor de elenco; sua filha, Vivian Kubrick, como atriz e Margaret

Adams, como gerente de produção. Greally (2013) diz que Kubrick tinha um estilo

muito reconhecível e distinto. Além de seu perfeccionismo, que beirava a obsessão,

ele gostava do uso de cores frias para causar o sentimento de isolamento, além de

tomadas longas, que perduravam por mais tempo do que outros filmes ousariam para

criar um sentimento de desconforo.

23 Os filmes são incomuns; eu nunca vi nada como eles, é o tipo de poesia ruim e redundante; dizendo em tipo, cinco frases o que uma pessoa normal diria em uma, com o que eu também consigo me identificar. E ainda há uma honestidade neles que é bem incomum, e que eu sempre achei de algum modo tocante; dá a eles um sentimento surreal, estranho e sincero (Tradução do pesquisador) Entrevista concedida a Gavin Smith em 1994 Disponível em https://nofilmschool.com/2013/08/tim-burton-explores-mediocrity-of-ed-wood - Acessado em 21/08/2017 24 GREALLY, Joshua. Auteur theory – Stanley Kubrick. Disponível em: https://prezi.com/pwicc1aicv3t/auteur-theory-stanley-kubrick/ – Acessado em 22/09/2017

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Esses elementos, juntamente com muitos outros aspectos, alimentavam um

dos temas principais do diretor: o medo. “O medo da raça humana e para onde ela se

dirige, onde ela se encontra e como chegou a este ponto” (GREALLY, 2013). Kubrick,

como outros diretores já citados, gostava de ter “as rédeas” de seus projetos nas

próprias mãos e era bem comum que, além de dirigir seus filmes, também os

escrevesse e os produzisse. Greally (2013) concede que muitos filmes de Kubrick

podem ser relacionados a gêneros específicos, mas como um verdadeiro autor, ele

conseguiu trabalhar dentro do confinamento de um gênero e fazê-lo seu.

3.3 DIREÇÃO COM PERSONALIDADE CONTEMPORÂNEA

Hoje em dia, parece um pouco mais raro para diretores participarem tanto das

produções a ponto de atuarem, editarem, dirigirem e escreverem. Uma possível

explicação seria a de que os estúdios querem ter o maior controle possível de um

filme ao invés do diretor. Mesmo assim, há alguns que se destacam por escreverem

e dirigirem ou produzirem e dirigirem. Todos que serão analisados em seguida se

destacam por apresentarem processos criativos diferenciados e marcas pessoais que

Figura 5: Stanley Kubrick

Fonte: ecufilmfestival.com

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se sobressaem até para o espectador mais distraído. Esses diretores não precisam,

necessariamente atuar em mais de uma área criativa de suas obras, visto que isso

não é, em específico, o que os torna especiais. O que se leva em conta é o fato de

serem considerados autores, peculiares e bem-sucedidos.

3.3.1 Os Coen

Jon Lewis (in TASKER, 2002) comenta sobre os irmãos Joel e Ethan Coen e

seu estilo cinematográfico. Ele explica que autoria e independência na Hollywood do

século XXI se intersectam de formas interessantes, e os irmãos Coen se apresentam

bem no meio dessa intersecção. Eles produzem, escrevem e dirigem todos os seus

filmes. A quantidade de controle que exercem sobre suas obras, portanto, é bastante

extensa.

A habilidade de financiar os filmes quando a grande maioria deles fracassa nas

bilheterias sugere um projeto de autor, um conjunto de obras unidas de forma

independente de suas motivações financeiras. Lewis (in TASKER, 2002) propõe a

teoria de que a noção de cinema independente é intrínseca ao constante fracasso dos

irmãos em fazerem muito dinheiro nas bilheterias.

Figura 6: Os Coen

Fonte: telegraph.co.uk

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O autor levanta a questão: “o que há nos irmãos Coen que os mantém no radar?

Que permite aos dois, acesso ao financeiro? Que os mantém interessantes?” (LEWIS

in TASKER, 2002, p. 108). Ele explica que há duas possíveis respostas para essas

perguntas, ambas relacionadas mais ou menos com o “velho conceito” de autoria.

Primeiro, é que os estúdios sabem o que esperar dos Coen. Os irmãos têm marcas

pessoais e processos criativos bastante pronunciados. Segundo, é que eles

conseguiram explorar o “comércio da autoria”. Apesar da falta de retorno financeiro

das bilheterias, mantêm uma aura de “autor-celebridade” em todas as suas obras.

Ainda segundo Lewis (in TASKER, 2002), esse estilo marcante foi evidenciado

já no primeiro longa dos diretores, Blood Simple (1984), apresentado em um festival

de filmes em Nova York, onde se destacou dos demais por ser diferente. Nas palavras

dos críticos da época: “mais mal feito do que os concorrentes”. Mas, de alguma forma,

o filme teve um efeito positivo na plateia, que o aplaudiu.

Boy do the Coen brothers have style. Amplified chunks of face are shoved up close to our dumbstruck gaze, prosaic household objects are given the fisheye and magically attain ominous connotations that don't mean anything in particular . . . Most of this vacant virtuosity is what the American screen can't get enough of and emphatically doesn't need (STEIN apud LEWIS in TASKER, 2002, p. 110).25

O autor ainda dá o exemplo da crítica de cinema Pauline Kael, que foi bastante

dura em relação aos irmãos. Ela os define como “autores da terceira geração”. Explica

que a primeira geração de autores era composta por figuras como Coppola, Altman e

Scorsese. Seus filmes, de acordo com ela, eram ótimos, originais e modernistas. A

segunda geração teria sido composta por diretores como Spielberg e Lucas, jovens

que “estragaram tudo para todos” quando trocaram seus talentos pelo simples e vazio

entretenimento hollywoodiano. Finalmente, a terceira onda geracional é composta por

profissionais como Tarantino e os Coen. Kael afirma ser a geração menos talentosa

das três. E prossegue: “essa jovem geração de autores tem conhecimento

enciclopédico do cinema, porém não possuem a experiência de mais nada” (KAEL

apud LEWIS in TASKER, 2002, p. 110). A crítica reclama que essa geração produziu

filmes baseados puramente em referências e alusões, e não em temas e enredos.

25 Cara, mas os imãos Coen têm estilo. Pedaços de rostos são enfiados à frente de nosso olhar embasbacado, objetos domésticos prosaicos são evidenciados em olho de peixe e magicamente se tornam conotações sinistras que não significam nada em particular... A maior parte dessa vaga virtuosidade é o que a tela americana não consegue saciar e enfaticamente não precisa (Tradução do pesquisador).

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Segundo Kael, filmes da terceira geração são passageiros e irônicos e despedaçaram

os gêneros clássicos do cinema.

Lewis (in TASKER, 2002) explica que, na época de Blood Simple, o cinema já

tinha caído no estilo vazio de Hollywood graças aos populares filmes de Steven

Spielberg e George Lucas. Mas, apesar de Blood Simple ter sido feito para audiências

mais elitizadas, ainda assim, segundo o autor, é apenas mais um filme “cínico”, tal

como Star Wars (1977), de Lucas ou Indiana Jones (1981), de Spielberg.

Lewis (in TASKER, 2002) aponta um possível motivo para o filme dos irmãos

Coen ter feito tanto sucesso: foi apresentado para uma classe de críticos de filme

ansiosa para ser entretida. “E o estilo independente, porém comercial dos irmãos,

levanta uma pertinente questão: podem filmes independentes serem classificados em

termos de prazer? Um prazer acessível? Um prazer visceral? ” (LEWIS in TASKER,

2002, p. 111).

Pode-se pensar que a razão para os irmãos serem tão importantes no cinema

contemporâneo é a sua insistência de que filmes independentes não precisam ser

intelectuais e elitistas, não precisam se levarem tão a sério, não requerem nenhum

tipo de real sofisticação para serem apreciados e compreendidos.

O autor acredita que haja duas chaves para o estilo dos Coen: ritmo e distância

crítica. Blood Simple é quase parado, completamente o oposto dos filmes “neo-noir”

da época. Isso também pode ser dito de outras obras dos irmãos, como Barton Fink

(1991), Miller’s Crossing (1990) e Fargo (1996). Porém, obras como The Hudsucker

Proxy (1994) são muito rápidas, assim como duas comédias dirigidas pelos irmãos:

Raising Arizona (1987) e The Big Lebowski (1998). Ambas se caracterizam pelo

humor atrapalhado e “lá pela metade”, se degeneram em uma sequência de cenas de

perseguição.

Todos os filmes citados são sobre “pessoas estúpidas” ou com problemas

quanto ao entendimento intelectual do mundo. Ironicamente, os Coen têm ensino

superior e são filhos de professores universitários. Outra característica quanto aos

personagens é que eles raramente morrem. Os diretores preferem muito mais deixá-

los vivos para sofrerem a troco de uma risada ou de uma “imagem legal”, levando a

um distanciamento quanto à história narrada.

Além disso, os personagens, nos longa-metragens dos Coen, sempre se

encontram em situações familiares pertinentes ao gênero do filme, seja uma comédia

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ou um drama. A diferença é que esses personagens reagem de maneira louca ou

estúpida às situações.

Há o exemplo de Jerry, em Fargo, cujo plano para mudar de vida acaba da

forma como a maioria dos filmes dos Coen termina: com corpos destroçados e carros

destruídos. Jerry recorre ao crime quando seu plano (sequestrar a própria esposa e

pedir o dinheiro de resgate para o sogro) vira uma bagunça. Tudo começa porque seu

plano original, o de construir um estacionamento, não dá certo. Há pelo menos quatro

cenas em estacionamentos no filme, todas fundamentais para o enredo e cercadas

de centenas de vagas vazias.

De acordo com Lewis (in TASKER, 2002), os irmãos também parecem ser

especialmente maldosos com os personagens que são parecidos com eles próprios,

em especial judeus. Como por exemplo, no filme onde a história não chega a lugar

nenhum, The Big Lebowski. Um dos personagens, Walter, se converte ao judaísmo

com tamanha seriedade que acaba por não fazer sentido nenhum ao protagonista ou

mesmo aos próprios Coen. Quando o protagonista do filme pede a Walter para dirigir

no Sabbath, o homem enlouquece com a ideia de transgredir uma tradição que já dura

três mil anos. É um sarcasmo evidente em todas as obras. “O que não é motivo de

piada para os irmãos Coen?” (LEWIS in TASKER, 2002, p. 113).

Conforme o tempo passou, Joel e Ethan se tornaram muito bons na arte de

dirigir atores e atrizes. O que ajuda é que os irmãos têm o hábito de trabalhar com as

mesmas pessoas (um hábito comum na indústria fílmica). Mais algumas

características de seus filmes são o uso de narração e sequências fantasiosas

(normalmente sonhos). Os diretores também aparentam se preocupar em deixar o

público desconectado da ação, tanto que é difícil saber se qualquer coisa que

acontece deve ser levada a sério. A população dos filmes normalmente é composta

mais por caricaturas grotescas do que por personagens, o que afasta a identificação.

Além disso, Lewis (in TASKER, 2002) salienta que a violência é explícita e

penetrante, o que faz as obras parecerem pertencer a um cinema alternativo com

raízes em gêneros mais sensacionalistas. Por causa das cenas “fortes”, os irmãos

podem brincar com a expectativa do espectador. Miller’s Crossing, por exemplo, um

filme repleto de violência, apresenta na cena do clímax o protagonista Tom, que

decide poupar a vida do personagem Bernie na floresta, apenas para matá-lo

momentos depois.

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Outra cena do mesmo filme faz referência ao diretor Rainer Fassbinder, em seu

filme Fox and his Friends (1974). Assim como Tarantino e outros tantos autores da

“terceira geração”, os Coen fazem alusão a uma gama variada de filmes. Após o

mafioso Leo levar um tiro na cabeça, um garoto se aproxima do corpo e rouba sua

peruca. Esse tipo de violência é essencial até em The Big Lebowski, um filme feito

exclusivamente para as risadas. Nesse caso, a violência é usada justamente para

fazer rir do infortúnio do protagonista. Lewis (in TASKER, 2002) cita a sugestão de

Freud: as coisas são engraçadas quando acontecem com outra pessoa.

Fotograma 1: Inside Llewyn Davis (2013)

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3.3.2 Fincher

Devin Orgeron (in TASKER, 2002) afirma que o diretor David Fincher é uma

espécie de “anomalia”, visto como um cineasta que trabalha com grandes orçamentos,

filmes hollywoodianos comerciais, conceitos gigantescos e repletos de atores e atrizes

famosos. Porém, como Stanley Kubrick antes dele, Fincher dá um jeito de, dentro do

sistema, fazer filmes que são críticos ao sistema; seus filmes são especialmente

críticos quanto ao desejo aparente da geração de Fincher por estabilidade e estrutura.

Segundo Orgeron (in TASKER, 2002), Fincher é o mais novo cineasta pensante

de Hollywood, e também o link para mostrar que Kubrick não foi apenas um acaso

feliz. A utilização de temas como a alienação e o descontentamento presentes no final

do século XX, juntamente com o design visual de seus filmes, é descendente, sob

muitas formas, do estilo de Kubrick. E, também como Kubrick, os filmes de Fincher

(especialmente Fight Club, de 1999) foram motivo para debates muito acalorados,

especialmente quanto à contribuição do diretor naquilo que o próprio se propõe a

criticar. Talvez o filme em que Fincher melhor imprime a sua marca de “crítica do

século XX” é Seven (1995), onde ele expressa a opinião de que a complacência desse

século beirava a apatia.

Fonte: http://www.artofthetitle.com/designer/david-fincher/

Figura 7: Fincher

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Ainda conforme Orgeron (in TASKER, 2002), a noção “kubrickiana” do “homem

perdido no universo que ele criou para si mesmo” é um dos temas que Fincher explora

frequentemente em seus filmes. Um exemplo disso se mostra novamente no filme

Seven, onde o sentimento de isolamento é expresso por Fincher e seu diretor de

fotografia, Darius Khondji, através de uma cinematografia composta por ângulos

amplos de câmera, porém, com foco superficial. No filme, o espaço está ameaçando

engolir os personagens e prendê-los em seu próprio anonimato. Essas mesmas ideias

foram exploradas elegantemente e de forma bem literal por Kubrick no filme 2001: A

Space Odyssey (1968), onde é abordada a questão da exploração do espaço e o lugar

do indivíduo nele. Em Seven, o senso do isolamento de Fincher é mais palpável nas

partes em que o detetive Sommerset se encontra sozinho em seu apartamento,

contemplando seu envolvimento no caso do “serial killer” John Doe.

Ainda de acordo com Orgeron (in TASKER, 2002), outra característica de

Fincher é a tentativa de abrandar as especificidades, como por exemplo, a escolha de

localizar Seven em uma cidade qualquer, sem nome dado e sem características

marcantes. Até o momento histórico do filme é difícil de especificar. Personagens não

estão vestidos com roupas ligadas a modismos de qualquer década em particular.

Enquanto a tecnologia sugere o período dos anos de 1990, o trabalho de escritório

em terminais monocromáticos parece ter saído direto de um filme noir dos anos 1940.

O alto contraste das cores e o filtro amarelado com pouca iluminação também são

uma marca registrada do diretor26. Uma obra menos famosa é The Game (1997), onde

Fincher continua sua crítica em relação à complacência. O filme também um protótipo

para o caos da hiper-realidade de Fight Club. Fincher arranjou os detalhes da narrativa

de tal forma que é possível tirar satisfação até ao assistir o protagonista infeliz,

Nicholas Van Orton, ser abalado “até os ossos” em uma clássica forma

“Hitchcockiana”. Por isso, se assemelha à North by Northwest (1959), de Hitchcock.

Em ambos os filmes se vê um protagonista não muito “gostável”, arrogante, distante

e extremamente rico. Apesar de tudo, perdoável. No final do filme, após o distorcido

jogo ser terminado e o protagonista chegar ao “fundo do poço”, ele renasce, separado

de sua vida confortável, previsível, segura e de sua existência aparentemente sem

26 Leva-se em conta as participações e contribuições de seus diretores de fotografia, principalmente Jeff Cronenweth, que o auxiliou a passar suas marcas para a tela de forma mais eficiente. Esses profissionais se encarregam mais especialmente da iluminação, cor e do cenário da obra e são chefes da equipe de câmera e luzes, sendo resposáveis por tomar decisões artísticas e técnicas relacionadas com a imagem.

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emoção. Dois anos mais tarde, essa será a ideia no coração de Fight Club. O filme

continua perpetuando o que são claras obsessões temáticas de seu diretor: as cores

fracas e a pouca iluminação.

Outro tema constante em suas obras é a aparente repulsa pela “cidade”: como

a vida na cidade grande, cheia de confortos, pode destruir o homem. Isso leva a outro

aspecto importante de seus filmes: o estado emocional e psicológico do homem norte-

americano. Orgeron (in TASKER, 2002) evidencia que os filmes de Fincher não

possuem mulheres tridimensionais e, normalmente, marginalizam as personagens

femininas. Em Fight Club, as ideias de Fincher sobre o indivíduo na sociedade

contemporânea são melhor articuladas. E ainda mantém o interesse do diretor pelo

estado contemporâneo da masculinidade. Fight Club é remanescente de mais um

filme de Stanley Kubrick, A Clockwork Orange (1971), tanto em seus temas quanto na

crítica. Centrado na “ultraviolência” dos filmes de Kubrick, Fight Club é sobre homens

que, na superfície, parecem indiferentes às mulheres. É, finalmente, um filme crítico

quanto a seu próprio público.

O protagonista sem nome (ocasionalmente referindo-se a si próprio como

Jack), de Fight Club, é o que a jornalista Susan Faludi identifica como:

The modern male predicament: fatherless, trapped in a cubicle in an anonymous job, trying to glean an identity from Ikea brochures, entertainment magazines and self-help gatherings. Jack traverses a barren landscape familiar to many men who must contend with a world stripped of socially useful male roles and saturated with commercial images of masculinity (FALUDI apud ORGERON in TASKER, 2002, p.157).27

O argumento de Faludi de que o filme é “um conto quase feminista” se deve a

sua leitura do final clássico de filmes antigos de Hollywood, onde o desinteressado

protagonista dá as mãos (e suas forças) à única personagem feminina do filme, Marla,

cuja neurótica existência separada do “sistema” permaneceu invisível para ele até o

final do filme. O alter-ego do protagonista, Tyler Durden, é sua visão fantasiosa e

derivada da mídia de como seria a independência masculina. Tyler é a versão

hollywoodiana de um individualista: bonito, forte, e que mantém relações sexuais sem

laços ou emoções.

27 O moderno dilema masculino: sem pai, preso em um cubículo em um trabalho anônimo, tentando obter uma identidade através de panfletos da Ikea, revistas de entretenimento e grupos de autoajuda. Jack atravessa um terreno estéril familiar a muitos homens que devem se contentar com um mundo desprovido de papéis masculinos socialmente úteis e saturado com imagens comerciais de masculinidade (Tradução do pesquisador).

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Orgeron (in TASKER, 2002) afirma que Tyler é como um filme e filmes

seduzem. No decorrer de Fight Club, a noção de atingir o “fundo do poço” de Tyler é

sedutora, tanto para o protagonista quanto para o público. O “Projeto Mayhem” de

Tyler se torna uma operação fascista e militar, outro traço reminiscente de Kubrick;

neste caso a primeira metade de Full Metal Jacket (1981). Contudo, o filme, como

todas as obras de Fincher, tem bastante cuidado para não culpar o indivíduo pelos

problemas. O culpado derradeiro é sempre o sistema. O sistema inescapável, corrupto

e capitalista que desfaz o indivíduo.

Apesar de tudo isso, há um problema fundamental com os ideais de Fincher.

Apesar de suas pesadas críticas sobre a sociedade consumista, ele acabou por

participar dela de diversas formas. O diretor começou sua carreira trabalhando para

George Lucas, juntamente com um emprego em uma produtora, sendo que ele diz

não acreditar em escolas/cursos de cinema. Depois disso, trabalhou na direção de

videoclipes para artistas pop como Madonna e a banda Aerosmith. Ele fez comerciais

para marcas gigantes e inteiramente ligadas ao consumismo, como Coca-Cola, Pepsi

e Nike.A imagem do diretor é irônica e complicada. Orgeron (in TASKER, 2002)

conclui que Fincher não obedece ao típico padrão hollywoodiano, mas se coloca como

o modelo pós-moderno perfeito de paixão pela imagem. O amor quase infantil de

Fincher por coisas que parecem “legais” o mantém trabalhando em um reino visual

mais amplo, não limitado apenas ao nível cinematográfico.

Fotograma 2: The Curious Case of Benjamin Button (2008)

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3.3.3 Tarantino

Mauro Baptista (2002)28 apresenta três aspectos que fazem o cinema de

Quentin Tarantino: cenas do cotidiano, momentos exploitation e o jogo. O autor

acredita que o cinema do diretor surge de uma oscilação entre esses três modos de

representação que implicam notórias mudanças de tom e provocam reações de

natureza diversa no espectador, como o horror, o riso e a cumplicidade. Baptista

(2002) resume o cinema exploitation como filmes de baixo orçamento feitos fora da

indústria, que mostram mais violência, sexo e drogas do que as produções

majoritárias. No Brasil, os filmes do Zé do Caixão foram um exemplo do cinema

exploitation. O autor ainda afirma que Tarantino efetuou uma apropriação desse tipo

de cinema, similar à realizada por Truffaut e Godard com o cinema de gênero norte-

americano.

28 BAPTISTA, Mauro. O cinema de Quentin Tarantino e suas três principais formas de representação: as cenas do cotidiano, os momentos exploitation e o jogo num cinema de gênero paródico. Disponível em http://www.contracampo.uff.br/index.php/revista/article/download/467/232 – Acessado em 22/09/2017

Figura 8: Tarantino

Fonte: https://www.business2community.com

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Sobre as cenas do cotidiano, Baptista (2002) afirma que Tarantino mescla uma

situação típica do gênero do crime com aspectos próprios do banal, do rotineiro. Essa

situação híbrida sofre uma virada repentina, provocada pelo acaso, que detém o

avanço lógico da trama, para criar um aparente hiper-realismo que, rapidamente,

passa a ser absurdo e irreal. “O ponto inicial é o seguinte: você tem personagens de

gênero em situações de gênero que você já assistiu em outros filmes, mas, de repente,

sem razão aparente, eles são colocados em regras da vida real” (TARANTINO apud

BAPTISTA, 2002).

A estratégia baseia-se numa inversão das prioridades do gênero. Aspectos que

eram secundários se tornam principais, em detrimento da história central do gênero.

Em lugar do realismo, o espectador se vê perante uma magnificação do banal e do

acidental. Há a colisão do exploitation com seu lado contrário, as cenas do cotidiano.

Nos momentos mais comuns da história, Tarantino agrega a extrema violência, drogas

e outras bizarrices que chocam e agridem o espectador. Momentos que, graças à

paródia e ao “humor negro”, provocam emoções contraditórias e reações diversas

que, pela ambivalência proposital das cenas, dependem bastante do estado de

espírito do espectador. Baptista (2002) considera Tarantino o primeiro diretor de

grande porte a incorporar filmes exploitation a um cinema contemporâneo criativo.

O autor discorre que os momentos exploitation de Tarantino pertencem à

tradição lúdica do cinema de atrações, conceito desenvolvido pelo professor de arte

histórica, Tom Gunning, para estudar o cinema não-narrativo dos primeiros tempos.

O cinema de atrações, modo dominante até 1906-07, não teve como prioridade contar

uma história, mas sim, mostrar imagens excêntricas que chocavam, provocavam

surpresa e divertiam o público. Gunning (apud BAPTISTA, 2002) extrai o termo

atração do artigo de Sergei Eisenstein, sobre um novo modelo para o teatro.

Atração, para Eisenstein (2002) é todo elemento que submeta o espectador a

uma ação sensorial ou psicológica com o propósito de produzir nele certos choques

emocionais. Anti-ilusionista, a atração lembra continuamente o espectador que ele

está vendo um espetáculo. Gunning (apud BAPTISTA, 2002) assinala que, apesar da

supremacia do cinema narrativo, o cinema de atrações ainda persiste corno forma

secundária, e parte essencial do cinema popular. A estética das atrações pode não

dominar todo um longa-metragem, mas fornece uma corrente subterrânea que flui sob

a narrativa lógica e o realismo diegético. Tarantino se utiliza do cinema exploitation

para interromper o transcurso da história linear em direção a um objetivo.

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Baptista (2002) apresenta outro procedimento que suspende o envolvimento

do espectador: o jogo. Os filmes de Tarantino recorrem a diversas ferramentas para

distanciar o espectador da ficção. É uma marca pessoal muito saliente do diretor.

Alguns exemplos dessas ferramentas e técnicas são: letreiros que definem o

significado de “pulp” no início de Pulp Fiction (1994). Letreiros com os nomes dos

personagens em Reservoir Dogs (1992). Letreiros indicando onde e quando se passa

a história em Django Unchained (2012). Além disso, o uso de voice overs, câmera

lenta combinada com música, elementos lúdicos e excêntricos, não naturalistas, como

o quadrado que Mia Wallace desenha no ar em Pulp Fiction.

Baptista (2002) ainda evidencia que as técnicas que distanciam o espectador

podem criar, em certas ocasiões, passagens de metaficção, no sentido de projetar

imagens não do mundo, mas imagens que a comunicação construiu para representar

esse mundo. Quando o boxeador Butch escolhe a espada de samurai e desce a

escada em posição de combate, Pulp Fiction joga com imagens típicas de filmes de

artes marciais, com influências de Seven Samurai (1964) de Kurosawa.

Quando a imagem dos personagens Pumpkin e Honey Bunny, com as armas

empunhadas, se congela, evoca o similar procedimento de congelar os frames em

The Bad, the Good and the Ugly (1968), de Sergio Leone. Quando Jackie, em Jackie

Brown (1997), uma aeromoça, percorre o aeroporto ao som da música soul "110

Street", de Bobby Whomack, ou quando Mia Wallace desenha o quadrado no ar, pode-

se recordar procedimentos da primeira fase de Godard, em especial o minuto de

silêncio que os personagens e a narração fazem em Bande Apart (1964). A metaficção

implica evocar, citar, aludir, parodiar obras do passado. Tarantino parte de histórias e

técnicas presentes em outros filmes e marca diferenças, distanciando-as do

naturalismo.

Jennifer Holshausen (2013)29 salienta que os temas e mise-en-scène de

Tarantino têm seu estilo e marca pessoal, mas o diretor também se qualifica no sentido

literal de “autoria”, no sentido de que ele escreve os próprios roteiros e se envolve

profundamente na produção de seus filmes. Então, embora o status de autor de um

diretor seja normalmente baseado em uma personalidade única ou uso de mise-en-

29 HOLSHAUSEN, Jennifer. Is Quentin Trantino an auteur? Disponível em https://medium.com/beyond-words/the-autuer-polemic-as-applied-to-quentin-tarantino-b18b7f740fd7 – Acessado em 22/09/2017

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scène característico, no caso de Tarantino, essas características comuns se

estendem para o próprio roteiro. Holshausen (2013) confirma que todos os filmes do

diretor levam sua marca registrada, seja em ângulos de câmeras, temas centrais da

história, estilo dos personagens e outros detalhes técnicos. Por isso, ela acredita que

Tarantino se qualifica para ser um diretor autor, para aqueles inclinados a aceitar tal

teoria.

Fotograma 3: Inglourious Basterds (2009)

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3.3.4 Anderson

James MacDowell (2011)30 situa o diretor Wes Anderson dentro da

sensibilidade peculiar do cinema independente americano dos anos 1990 e 2000,

assim como Spike Jonze, Charlie Kaufman, etc. Segundo o pesquisador, o “peculiar”

é melhor reconhecido por sua comédia, um estilo visual que visa a artificialidade, o

interesse pela infância e a inocência e – de forma mais generalizada – um tom que

balança entre o distanciamento irônico e uma conexão sincera. MacDowell (2011)

aponta esta como uma das principais marcas pessoais de Anderson: balançar a ironia

e a sinceridade, o que constitui a expressão mais pura, para o autor, do que seja a

sensibilidade subjacente.

Elena Boschi e Tim McNelis (2011)31 apontam que os filmes de Anderson se

utilizam de uma simbiose entre visuais, canções e diálogo. A trilha sonora, por

exemplo, impulsiona a narrativa e enriquece a história dos personagens. O diretor

30 MACDOWELL, James. Wes Anderson, tone and the quirky sensibility. Disponível em http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17400309.2012.628227 – Acessado em 23/09/2017 31 BOSCHI, Elena; MCNELIS, Tim. ‘Same old song’: on audio-visual style in the films of Wes Anderson. Disponível em http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17400309.2012.631174 – Acessado em 23/09/2017

Figura 9: Anderson

Fonte: http://lounge.obviousmag.org

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ainda se utiliza da música para criar um sentimento de nostalgia e estruturar suas

sequências características. Boschi e McNelis (2011) salientam que o silêncio e a

música são favorecidos, ao invés de sons mais convencionais, para intensificar

momentos importantes da narrativa, além da trilha sonora adicionar camadas

emocionais extras. Os autores afirmam que estas técnicas audiovisuais fazem parte

do estilo de Anderson e são uma de suas distintas marcas pessoais.

Porém, a marca mais reconhecível de Anderson é a sua simetria. Humberto da

Cunha (2009)32 concorda que o diretor imprime um forte estilo visual em suas obras.

A maneira metódica de filmar inclui os ângulos de câmera de 90 graus, alinhamento

de formas paralela e perpendicularmente, e o constante uso da simetria. Cunha (2009)

aponta o uso de cores primárias e tons pastéis como outro traço do estilo do cineasta.

O autor define Anderson como um bom exemplo do diretor que faz escolhas

autorais na produção de seus filmes, limitando o designer de produção. Ele também

diz que, em sua filmografia, Anderson explora os mesmos temas, muitas vezes

trabalhando com os mesmos atores e equipe. Isso estabelece uma relação entre todos

os seus filmes, como se pertencessem ao mesmo universo de criação do diretor. Esta

é outra marca do diretor, a importância do design de produção, a cargo dele próprio.

O design caracteriza o universo do diretor e trabalha ativamente na narrativa.

Os objetos e cenários dos filmes são utilizados como elementos presentes da narrativa, podendo explicar um pouco mais sobre os personagens e o universo em que habitam. Como esses objetos e cenários são trabalhados de forma não naturalista, utilizando cores primárias bem fortes, acabam chamando atenção para si e evidenciando o elemento da narrativa para a qual foram concebidos (...) os figurinos estabelecem relação com o espectador por se tratarem de roupas comuns, mas chamam atenção para si intencionalmente por serem trabalhadas utilizando cores primarias forte e por suas repetições o que as torna como uniformes. Nos filmes de Wes Anderson o design de produção não se restringe só ao filme, mas também está presente em seus produtos relacionados como pôsteres, capas e menus de DVD (...) (CUNHA, 2009, s.p.).

Mark Browning (2011) afirma que a reputação de Anderson como um diretor

autor se deve ao fato de que o cineasta é um raro exemplo de um diretor

contemporâneo que participa de muitas áreas de seus filmes. Anderson dirige,

escreve, às vezes produz e desenvolve seus sets de maneira quase obsessiva. Tudo

32 CUNHA, Humberto Thimoteo da. O design de produção nos filmes de Wes Anderson. Disponível em http://tede.anhembi.br/tedesimplificado/bitstream/TEDE/1575/1/Humberto%20Thimoteo%20da%20Cunha.pdf – Acessado em 23/09/2017

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isso resulta em um estilo distinto, que separa seus filmes dos demais. Browning (2011)

salienta o fato de que o diretor faz parte da “moda” de diretores autodidatas.

O autor explana que o fato de Anderson escrever seus filmes (e não basear

seus roteiros em nenhuma obra já existente, tornando-os “originais”) fez com que o

diretor criasse uma voz distinta e individual, claramente diferente daqueles ao seu

redor e uma preocupação pelo estilo do ramo em que trabalha. Ainda segundo

Browning (2011), o fato de Anderson produzir roteiros originais é um de seus aspectos

mais louváveis. Em especial, quando se olha para a indústria de Hollywood, com medo

de correr riscos, onde roteiros são quase sempre baseados em textos pré-existentes.

Browning (2011) também comenta que a simetria de Anderson para equilibrar

cada cena lembra as técnicas utilizadas pela pintura. O autor vai mais longe, ao

afirmar que a maioria dos frames dos filmes de Anderson, quando congelados,

poderiam ser usados como o próprio pôster dos filmes, de tanto cuidado com cada

cena individual.

Anderson, vez ou outra, gosta de dar uma atmosfera “amadora” para seus

filmes. É o caso dos momentos em que se utiliza do zoom “chicote”, onde acontece

rapidamente um zoom in (aproximação da cena ou de um objeto). Porém, Browning

(2011) explica que o diretor nunca se utiliza de ferramentas que chamam demais a

atenção para elas mesmas, como, por exemplo, o dissolver de uma cena para a outra.

Além de todos esses aspectos, sua mise-en-scène peculiar também é

composta por takes que duram mais tempo do que o normal e quase nenhum

movimento de câmera. O diretor gosta de se utilizar de câmera de púlpito (câmeras

especiais usadas para animar objetos parados) e lentes grande-angulares que

capturam uma quantidade maior de detalhes na tela.

Outra característica interessante é que Anderson gosta de se utilizar de

pinturas para passar sentimentos específicos sobre determinada cena e, muitas

vezes, a pintura é usada como cenário. Na obra The Aquatic Life with Steve Zissou

(2004) há exemplos dessa técnica, onde pinturas são presentes no decorrer do filme

e costumam fazer parte importante do cenário. Browning (2011) elucida que Anderson

parece gostar de trabalhar em comerciais. Não querendo testar neles novos aspectos

técnicos do fazer fílmico, como David Fincher. Sua atração a eles parece se dever à

velocidade com que eles podem ser feitos.

Pode-se observar muitas similaridades entre o cinema de Anderson e os filmes

mudos. Browning (2011) explana que, mesmo que os filmes do diretor tenham muita

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música e cuidado com as cores, os filmes mudos sempre possuíam algum tipo de

composição para acompanhar as imagens e processos, como a tintagem (vista no

Capítulo 2), que podia dar uma forte impressão nas cores. O diretor também costuma

filmar muito rápido, com o processo normalmente durando apenas algumas semanas,

e a maioria das cenas, são feitas em apenas um take.

Ainda fazendo conexões com o ínicio do cinema, nos filmes de Anderson há

uma tendência de mostrar e contar (especialmente com texto na tela); de contratar os

mesmos atores e fazer que trabalhem a partir de personagens padronizados; de

humor físico (slapstick); de animações muito parecidas com os stop-motion de Méliès;

de quebra da quarta parede, entre diversos outros aspectos.

As sequências mais poderosas em seus filmes, normalmente, são montagens

não com diálogo, mas com música. The Darjeeling Limited (2007), um filme onde a

maiorias de suas cenas se passa dentro de um trem, assim como muitos dos primeiros

filmes mudos, é um exemplo dessa técnica, onde, sempre que algum personagem

passa por mudanças significativas, o momento é acompanhado por música e não por

falas.

Fotograma 4: The Darjeeling Limited (2007)

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3.3.5 Boyle

Danny Boyle tem distintas marcas que são demonstradas constantemente em

seus filmes. Danielle Wickingson (2011)33 aponta que os filmes do diretor,

normalmente, tratam de algum indivíduo desafortunado, cuja história é contada por

meio de flashbacks, além do uso de lentes grande-angulares, movimentos de câmera

cinéticos, com bastante energia e movimento e também uma edição “picotada”. Um

de seus filmes em que se pode ter uma noção dessas marcas é 127 hours (2010).

Wickingson (2011) explica que o filme também demonstra a predileção de Boyle por

sequências de abertura poderosas.

Segundo a pesquisadora, a abertura de 127 hours é um exemplo da ironia

latente do diretor: na sequência, são evidenciadas multidões de diversos países, e

logo, Aron Ralston, o protagonista do filme, vai estar completamente sozinho, longe

de qualquer tipo de civilização. Ainda na abertura, os closes (enquadramento muito

próximo, fechado) característicos de Boyle são evidenciados, enquanto Aron se

33 WICKINGSON, Danielle. An auteur study of diretor Danny Boyle. Disponível em http://dwickingson.yolasite.com/resources/Form%20and%20Style%20of%20Danny%20Boyle.pdf – Acessado em 24/09/2017

Figura 10: Boyle

Fonte: revistadonjuan.com

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prepara para sua aventura nos cânions de Utah (EUA). Isso, combinado com os cortes

rápidos, pretende dar ao público uma sensação de incerteza. Algumas cenas depois,

Aron é mostrado, pedalando por um terreno arenoso e Boyle, mais uma vez, faz uso

de suas lentes grande-angulares para destacar o vermelho brilhante da região. Toda

a mise-en-scène tem como objetivo emanar uma falsa sensação de segurança. Como,

em um lugar tão belo, algo poderia dar errado? O uso de câmera cinético é aplicado

para evidenciar a energia, confiança e vivacidade de Aron, até o momento em que,

finalmente, uma rocha esmaga sua mão, prendendo-o embaixo de um cânion. Closes

apertados são realizados, o que transpira o sentimento de claustrofobia. Daí em

diante, uma das marcas de Boyle, os flashbacks são empregados para dar mais

complexidade ao personagem, fazer o público se identificar com o mesmo e explicar

os hábitos tolos que acabaram por prendê-lo ali, em primeiro lugar.

Todos os fatores trabalhados pela cinematografia e edição são amplificados

pela trilha sonora, como explica Wickingson (2011). A música eletrônica intensa é

comum nos filmes do diretor. Boyle tem a sensibilidade de se utilizar da sonoplastia

em seu favor, como no caso onde Aron precisa cortar o nervo de seu braço. A cada

toque no nervo, a música irradia eletricidade, o que praticamente obriga o público a

sentir a dor junto ao personagem. Boyle tenta, constantemente, trazer seus filmes à

vida. No filme mais bem-sucedido de Boyle, Slumdog Millionaire (2008), suas marcas

também estão bem evidenciadas. O protagonista desfortunado da vez é Jamal Malik.

Logo na sequência de abertura, diversos traços do estilo distinto do diretor são “postos

em ação”. A cena é muito brilhante e vívida, com o contraste elevado. O close na face

sem esperança de Jamal é, novamente, claustrofóbico.

Momentos após a sequência de abertura, explica a pesquisadora, começam os

flashbacks. As cores e a iluminação do filme são sempre vibrantes, mesmo em seus

momentos mais obscuros, não importando se as cenas se passam na parte rica da

cidade ou nas favelas em que a família de Jamal morava. Para o público, pode-se

passar um constante sentimento de esperança, de que, no fim, tudo vai dar certo para

Jamal. Ainda segundo Wickingson (2011), uma vista panorâmica do ambiente que

Jamal habita exemplifica o lado artístico de Boyle, enquanto claramente mostra o

cenário, assim como o tom de uma cena especifica. O jogo de câmera cinética é usado

em instâncias, como quando Jamal ainda é uma criança e está correndo das

autoridades; ou quando ele e seu irmão pulam do topo de um trem e rolam ladeira

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abaixo, uma técnica que funciona muito bem para trazer o público “para dentro” do

filme.

De acordo com Wickingson (2011), uma das mais impressionantes

demonstrações de estilo e também de excentricidade é a trilha sonora da obra.

Enquanto a maior parte é composta pela trilha original do filme, há também canções

de hip hop e pop. No final, escuta-se uma trilha que consiste de novos sons

eletrônicos, enquanto mantém um toque da tradicional música indiana. A trilha convém

à emoção de cada cena até nos mínimos detalhes, e o aspecto mais impressionante

é que ela nunca passa despercebida. Wickingson (2011) afirma que Slumdog

Millionaire demonstra perfeitamente a personalização que Boyle aplica a todos os

seus filmes. Está claro que este é um diretor autor e realmente faz filmes “seus”, não

importando o fato de que vai de um gênero a outro. Ele possui a distinta marca de

querer que o público experiencie os filmes juntamente com seus personagens, se

utilizando primariamente de movimentos de câmera cinéticos e closes, enquanto

apresenta imagens vivas em cada cena individual. Wickingson (2011) conclui que

Boyle é um dos melhores diretores da atualidade e que todos os seus futuros filmes

irão demonstrar as mesmas características de estilo e a mesma qualidade que todos

os diretores gostariam de ter.

Fotograma 5: Trainspotting (1996)

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4. SHANE CARRUTH

“Se algo que seria difícil verbalizar pode ser explorado

ou iluminado, isso para mim é o que um filme deveria ser. É

como tentar explicar uma música. Você não consegue.”

“Eu vou fazer filmes e vou continuar trabalhando, não

importa o que eu tenha que fazer. E não pretendo pedir a

permissão de ninguém para isso.”

“Eu finjo ser um cineasta, na maior parte do tempo.”

Shane Carruth

Este capítulo reserva-se para compreender o objeto de estudo: o diretor

onipresente Shane Carruth. Melhor ainda, procura-se entender a pessoa por trás dos

filmes. A maior parte do primeiro subcapítulo é baseada em entrevistas concedidas a

jornais e revistas norte-americanos e ingleses. Após, busca-se analisar suas obras,

utilizando-se da metodologia de Laurence Bardin (2011) a respeito da Análise de

Conteúdo. Isso deverá conduzir a pesquisa às marcas pessoais de Carruth, que o

destacam dos demais diretores de cinema.

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4.1 O HOMEM POR TRÁS DA CORTINA

Onipresença é uma palavra que provém do latim medieval. Ela significa “estar

presente em todos os lugares”34. Shane Carruth é um roteirista, editor, produtor,

compositor, ator e diretor de cinema. Em uma entrevista (2013)35 ao Los Angeles

Times, o artista revela ter nascido em Myrtle Beach, na Carolina do Sul (EUA), em

1972. Seu pai era um sargento das forças aéreas e, por isso, sua família se mudou

muito. Frequentou o ensino fundamental e médio em Dallas, Texas, que é onde vive

atualmente. Formou-se em Matemática pela Stephen F. Austin State University. Antes

de se tornar um cineasta, ele conta que também trabalhou como um desenvolvedor

de softwares para aviação.

34 Disponível em https://en.oxforddictionaries.com/definition/omnipresent - Acessado em 30/10/2017 35 Entrevista concedida ao Los Angeles Times em 14/01/2013. Disponível em http://articles.latimes.com/2013/jan/14/entertainment/la-et-mn-sundance-carruth-20130115 – Acessado em 30/10/2017

Figura 11: Shane Carruth

Fonte: wired.com

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Em 2004, Carruth ganhou o prêmio mais prestigiado do Festival de Sundance,

o prêmio do Grande Júri, pelo seu primeiro longa-metragem: Primer. Além do festival

de Sundance, o longa arrebatou diversos prêmios em festivais menores. O cineasta

dirigiu, escreveu, editou, compôs a trilha e atuou como um dos protagonistas.

The film is hard sci-fi, a rarety in motion pictures even today. As a viewer, you’ll either love Primer or hate it. You will not understand it. At least not all of it on your first viewing. If you say you do, you’re lying or you just don’t realize you don’t (MCCONNELL, 2017).36

Para o cineasta independente Austin McConnell (2017)37, Primer se destaca

por dois motivos: ter um orçamento extremamente baixo e pelo diálogo técnico e

complexo. O autor afirma que a grande maioria dos filmes se utiliza de uma

“pseudociência”, um texto mais fácil para o público entender. Ao contrário, Carruth faz

36 O filme é ficção cientifica pesada, uma raridade em filmes até hoje em dia. Como um espectador, você vai amar Primer ou odiá-lo. Você não vai entendê-lo. Pelo menos não todo ele na sua primeira assistida. Se você disser que entendeu, você está mentindo ou simplesmente não sabe que não entendeu (Tradução do pesquisador). 37 MCCONNELL, Austin. Who is Shane Carruth? Redação audiovisual produzida em 20/04/2017. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ietwEVmfZgA – Acessado em 30/10/2017

Figura 12: Pôster de Primer

Fonte: http://www.impawards.com/2004/primer.html

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uso de seu conhecimento como engenheiro e de seu diploma em Matemática para

criar um diálogo denso e repleto de jargões utilizados por cientistas. McConnell (2017)

pondera que o filme não tem medo de se aprofundar na Física e nos detalhes técnicos

sobre viajar no tempo.

O autor continua, dizendo que o que chamou a atenção de todos no Festival de

Sundance de 2004 foi o fato de que ninguém jamais havia conseguido fazer um filme

tão complexo de ficção cientifica com um orçamento tão baixo (7 mil dólares) e ter um

lucro tão grande (425 mil dólares).

Shane’s strength wasn’t just in his writing. He was the quintessential jack of all trades: he produced, wrote, directed, edited, starred in and even wrote the music for the film. In a industry devoted in compartmentalizing itself, Shane stood out as a guy who chose to wear as many hats as possible on set. And here is the thing: it wasn’t just that he wore them, but that he wore them so well (MCCONNELL, 2017).38

Em uma entrevista para a revista britânica Dazed (2013)39, Carruth afirma que

sua paixão por roteiros começou na faculdade, mas não sabia como ganhar dinheiro

com a escrita. Depois de escrever Primer, o diretor resolveu se auto-ensinar sobre o

funcionamento de uma câmera de vídeo, seu diafragma, as lentes, etc. Na mesma

entrevista, Carruth explica o motivo de se envolver tanto em todas as áreas de seus

filmes:

It started off as necessity and just being naive – I didn’t know any musicians or how to hire them, so I just played around and it’s now the way it works. I know I’m not the best guy to be doing each of these jobs but I do think it adds a handcraftedness and makes it more singular. If the audience takes the film apart and dwells on it there’s something behind it. It’s not just a product of groupthink (CARRUTH, 2013).40

38 A força de Shane não era apenas a sua escrita. Ele era o pau para toda obra fundamental: ele produziu, escreveu, dirigiu, editou, estrelou e até compôs a música para o filme. Em uma indústria devota em se compartimentalizar, Shane se destacou sendo um cara que escolheu usar o máximo de chapéus possíveis no set. E é aí que está: não era apenas o fato dele usar os chapéus, mas o fato de que ele os usou tão bem (Tradução do pesquisador). 39 Entrevista concedida a Dazed em 19/08/2013. Disponível em http://www.dazeddigital.com/artsandculture/article/16889/1/shane-carruth-goes-upstream – Acessado em 30/10/2017

40 Começou como uma necessidade e ingenuidade – eu não conhecia nenhum músico e não sabia como contratá-los, então eu só fui brincando e agora é assim que funciona, eu sei que não sou o melhor para estar fazendo cada um desses trabalhos, mas acho que isso adiciona uma qualidade de feito à mão e torna a obra mais singular. Se o público analisa o filme a fundo, encontra algo por trás. Não é apenas um produto do pensamento de grupo (Tradução do pesquisador).

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Para McConnell (2017), Carruth era como seu personagem em Primer: um

inventor jovem, ambicioso, talentoso, sempre tentando o diferente. Em uma entrevista

para a revista Filmmaker (2004)41, Carruth explana que o motivo de ter se escalado

como ator principal se deve ao fato de que estava sendo muito difícil achar atores que

não “dramatizassem” demais. Ele revela que a maior parte do elenco é formada por

amigos ou familiares. McConnell (2017) evidencia que Carruth criou algo tão único,

intrigante, independente e experimental que todos esperavam que sua carreira fosse

decolar. Porém, ele sumiu.

Na entrevista ao colunista Mark Olsen, do Los Angeles Times (2013), Carruth

revela que em 2010 começou um novo projeto intitulado “A Topiary”. O filme teria

muitos efeitos especiais, que estavam sendo realizados pelo próprio Carruth, mas,

após alguns anos, foi deixado de lado. O diretor afirma que o projeto foi um

desperdício de tempo e energia. Isso mostra que ele prefere desistir de um projeto

inteiro (mesmo estando perto da finalização) por não atingir suas expectativas: melhor

não apresentar a obra do que apresentar um filme inferior.

Olsen (2013) comenta também que, mesmo tendo 40 anos, o diretor continua

com uma aparência juvenil. O colunista diz que Carruth tem um charme quieto e

intenso, juntamente com um “misticismo controlado”. No decorrer do almoço entre os

dois, tudo o que ele pediu foi uma salada sem tempero e um copo d’água.

Wether on purpose or by accident, Shane’s reputation morphed from the future of indie film, to that of the reclusive visionary. Shane was a ghost (...) it would take nearly a decade after the release of Primer for the silence to finally be broken (MCCONNELL, 2017).42

Em janeiro de 2013, Carruth mostrou ao mundo seu segundo longa: Upstream

Color, que teve sua première novamente no Festival de Sundance. Carruth, mais uma

vez, dirigiu, compôs a trilha, editou, escreveu e atuou como um dos protagonistas. O

filme ganhou o prêmio de Melhor Design Sonoro e foi indicado nas categorias de

Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz, Melhor Roteiro Original, Melhor

41 Entrevista concedida a Filmmaker em 2004. Disponível em http://filmmakermagazine.com/archives/issues/spring2004/features/tech_support.php#.WgzmNIj_rIW – Acessado em 30/10/2017 42 Tenha sido de propósito ou por acidente, a reputação de Shane foi de “o futuro do cinema independente” para o de “visionário recluso”. Shane era um fantasma (...) levou quase uma década depois do lançamento de Primer para que o silêncio fosse finalmente quebrado (Tradução do pesquisador).

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Cinematografia e Melhor Trilha Sonora. O editor Keith Kimbell (2013)43 escreveu que

o filme era o mais antecipado (e o mais difícil de descrever) do Festival e que a maioria

dos críticos não conseguia parar de comentar sobre a obra.

Austin McConnell (2017) explana que Primer fora um filme repleto de denso

diálogo e logísticas e que Upstream Color mostrou um cinema mais experimental,

porém, se focou principalmente na estética e na emoção. O orçamento do filme foi

maior que o de Primer, totalizando 50 mil dólares. O lucro, no entanto, foi similar: 444

mil dólares.

Na entrevista para o jornal Los Angeles Times (2013), Carruth revela que lida

até mesmo com a distribuição de seus filmes, pois precisa ter controle sobre seus

projetos. Em outra entrevista sobre Upstream Color para a revista digital IndieWire

(2013)44, Carruth afirma que se dependesse dele, todo o filme já estaria totalmente

43 Crítica feita por Keith Kimbell em 28/01/2013. Disponível em http://www.metacritic.com/feature/sundance-film-festival-reviews-2013 - Acessado em 30/10/2017 44 Entrevista concedida a Indiewire em 03/04/2013. Disponível em http://www.indiewire.com/2013/04/shane-carruth-explains-why-upstream-color-isnt-so-difficult-to-understand-and-talks-about-his-next-project-39752/ – Acessado em 30/10/2017

Figura 13: Pôster de Upstream Color

Fonte: http://www.imdb.com/title/tt2084989/

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organizado desde a etapa do roteiro. Admite não gostar de tomar decisões

importantes e mudar aspectos das obras na pós-produção.

Na mesma entrevista, o diretor comenta como se sente quando tem que dividir

sua visão e seus filmes com outros colaboradores. Segundo Carruth, se outras

pessoas conseguissem internalizar a história tão bem quanto ele, acreditaria em uma

verdadeira colaboração. Ele ainda afirma ter ficado muito contente por encontrar David

Lowery, que o ajudou a editar Upstream Color. Idem para o elenco do filme e o “resto

do pessoal” da produção. Mas, Carruth diz pensar que esse sentimento não seja algo

comum. Comenta que, às vezes, as pessoas podem trazer muito “ego” para um

projeto e sempre parecem saber o que é melhor para a história do filme.

Ele conclui, afirmando: “eu teria muito medo se tivesse que lutar pelo sentido

do filme. Eu preciso ter controle total” (CARRUTH, 2013). Paul Dallas, da revista

Interview (2013)45, indaga como Carruth conseguia editar enquanto filmava e ainda

dirigir e atuar quando o dia tem apenas 24 horas. O diretor confessa que, na época

de Upstream Color, estava dormindo em torno de 90 minutos por dia e que já estava

“enlouquecendo”. Segundo ele, o editor David Lowery salvou sua vida.

I didn’t expect it to work out nearly as well as it did. There’s two things: he innately understood the film, but at the same time we had lots of long conversations that made me confident that he really got it. He took what I’d already edited and the new material and seamlessly edited together things that were totally perfect. Once shooting was done, we were able to work together in the house for a couple weeks. His ideas are in the film as well—it was just a really great collaboration (CARRUTH, 2013).46

McConnell (2017) diz que, enquanto muitos se perguntavam se Carruth

finalmente veria a fama e o sucesso desta vez, alguns meses depois, ele sumiu de

novo.

Atualmente, surgiram notícias sobre o diretor estar trabalhando em seu próximo

filme: Modern Ocean. Detalhes são escassos, mas sabe-se que será um longa

baseado na vida das pessoas envolvidas em entregar encomendas internacionais por

45 Entrevista concedida a Interview em 03/04/2013. Disponível em https://www.interviewmagazine.com/film/shane-carruth-upstream-color – Acessado em 31/10/2017 46 Eu não esperava que fosse funcionar tão bem quanto funcionou. Há duas coisas: uma é que ele entendeu instintivamente o filme, mas ao mesmo tempo tivemos longas conversas que me deixaram confiante que ele realmente entendeu. Ele pegou o que eu já tinha editado e o material novo e conseguiu editar as coisas com fluidez perfeita. Depois que acabamos de filmar, nós pudemos trabalhar juntos no estúdio por algumas semanas. Suas ideias também estão no filme – foi uma ótima colaboração (Tradução do pesquisador).

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via marítima. Esse será o primeiro filme de Carruth que contará com um grande

orçamento e um elenco de renome. Anne Hathaway, Keanu Reeves, Tom Holland e

Daniel Radcliffe são alguns dos atores divulgados. Porém, a notícia do site Collider47

é de 2015 e o paradeiro do longa-metragem continua um mistério.

Foi em uma entrevista para a Vice (2015)48, que o cineasta conta sobre o filme:

“Nós somos um mundo de nós mesmos, para nós mesmos, no oceano moderno”

(CARRUTH, 2015). Quando entrevistado pelo Collider (2017)49 sobre o filme, o novo

Homem-Aranha, Tom Holland, ator que faz o papel do herói, disse que sempre

pressiona seu agente para que ele tente dar “um empurrão” em Modern Ocean,

levando a que seja feito de uma vez. E quanto ao roteiro, o ator opina: “aquele é, eu

acho, o melhor roteiro que eu já li. É a ideia mais maluca para um filme, é demais”

(HOLLAND, 2017).

I like telling stories that are universal, that aren't about a certain culture or about a certain country or state or even way of thinking. I want a story where the characters are motivated by things that everyone would find within themselves (CARRUTH, 2015).50

O sigilo de Carruth quanto a todos os seus projetos e a sua vida pessoal leva

McConnell (2017) a crer que “Shane Carruth não diz nada, até ele ter algo a dizer”. O

autor explica que, atualmente, a indústria do cinema se encontra em uma era em que

filmes são anunciados muito antes de serem terminados, algumas vezes antes de

começarem a ser filmados - como é o caso da Marvel, que anunciou em 2014 o

terceiro e quarto filme dos Vingadores (que, a princípio, serão lançados em 2018 e

2019, respectivamente), sendo que o segundo nem havia sido lançado ainda. E para

complementar essa questão, os fãs são constantemente atualizados sobre o status

47 Notícia do Collider postada em 03/11/2015. Diponível em http://collider.com/anne-hathaway-daniel-

radcliffe-keanu-reeves-shane-carruth-modern-ocean/ - Acessado em 31/10/2017 48 Entrevista concedida a Vice Magazine em 12/08/2015. Disponível em

https://motherboard.vice.com/en_us/article/4x399m/we-talked-to-shane-carruth-about-the-human-drama-behind-the-modern-ocean – Acessado em 31/10/2017 49 Entrevista concedida ao Collider em 11/04/2017. Disponível em http://collider.com/tom-holland-the-

modern-ocean-current-war-interview/ - Acessado em 31/10/2017

50 Eu gosto de contar histórias que são universais, que não são sobre uma certa cultura ou sobre um certo país ou estado ou até mesmo um jeito de pensar. Eu quero uma história onde os personagens são motivados por coisas que todos poderiam encontrar dentro de si mesmos (Tradução do pesquisador).

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do filme via redes sociais e a internet, em geral. Esse fato torna o comportamento de

Carruth ainda mais intrigante.

Paul Dallas, da revista Interview (2013), questionou Carruth quanto à habilidade

de manter seus projetos em segredo. O diretor revela que passou a tomar mais

cuidado com essa questão depois que seu projeto “A Topiary” teve o script vazado na

internet: “mesmo eu sendo um ninguém, de lugar nenhum, o script achou seu caminho

para o online”. O fato de que seu filme estava sendo analisado e julgado, antes mesmo

de ter sido editado, o deixou com “os nervos à flor da pele”.

A partir disso, em Upstream Color, o diretor manteve o maior sigilo possível.

“Quando existir um filme pronto para ser visto, aí sim deixemos as pessoas saberem

que ele existe”, disse, na mesma entrevista. Para o Los Angeles Times (2013), Carruth

reafirma que não quer falar nem um pouco sobre os aspectos técnicos de Upstream

Color. Ele explica que ficou feliz por exaltarem Primer, mas revela que nunca mais

quer ouvir a frase: “era um ótimo filme pelo orçamento que teve”. Dessa vez, ele

realmente não quis revelar quanto dinheiro gastou e no que gastou.

Em outra entrevista para a revista Paper (2013)51, Carruth deu suas ideias

quanto aos bônus de DVD e Blu-Ray:

I don't want any! I don't want a director's commentary, I don't want behind-the-scenes stuff. I don't want any of that. I've gotten to the point where I feel like that's a distraction from the actual purpose of the narrative to cultivate this idea that the experience has something to do with being behind the scenes and getting into the production (CARRUTH, 2013).52

McConnell (2017) também conta que Carruth não possui uma conta de Twitter

para expor sua opinião sobre política, religião ou a mídia, por exemplo. Ele também

não possui um blog. Ele não dá atualizações de seus filmes via Instagram. O autor

conclui que, embora o fato de não se utilizar das mídias sociais para promover suas

obras seja considerado “suicídio” no mundo do marketing, Carruth parece encontrar o

sucesso mesmo assim. Dallas (2013) descreve os filmes desse diretor onipresente

51 Entrevista concedida a Paper Magazine em 04/05/2013. Disponível em http://www.papermag.com/upstream-color-director-shane-carruth-its-all-just-a-massive-lie-1426868277.html - Acessado em 01/11/2017 52 Eu não quero nenhum! Eu não quero comentários do diretor, eu não quero um “por trás das cenas”. Eu não quero nada disso. Eu cheguei num ponto onde sinto que essas coisas são uma distração do propósito verdadeiro da narrativa, algo para cultivar essa ideia de que a experiência tem algo a ver com estar por trás das cenas e saber sobre a produção (Tradução do pesquisador).

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como “objetos feitos à mão”. O repórter ainda elogia o diretor por ter se auto-ensinado

cinematografia em 16mm para Primer, por fazer seus próprios efeitos especiais e por

ter filmado todas as cenas em apenas um take.

Dallas (2013) comenta que algumas das cenas mais “incríveis” de Upstream

Color lembram o cosmos nascente no filme Tree of Life (Terrence Malick, 2011). Isso

mostra que os “pequenos” filmes de Carruth podem estar, pelo menos para alguns,

em nível similar a filmes indicados ao Oscar. Na entrevista para a Paper (2013), o

diretor é questionado quanto ao seu autodidatismo. Ele confessa que não se lembra.

Simplesmente começou a “se ensinar” as técnicas necessárias quando sua ignorância

quanto a elas se tornou um problema. Outra qualidade de Carruth que McConnell

(2017) salienta é a de que o diretor, ao contrário da maioria dos cineastas

independentes, não pede dinheiro por meio de doações. Carruth junta seu próprio

dinheiro.

Carruth notou que se sentiu “ótimo” quando pôde lidar com a distribuição de

seus próprios filmes, justamente por tomar todas as decisões. Em entrevista

concedida para a Paper (2013) Carruth desabafa: “escolher um pôster que não vai

conter porcos, vermes e armas e sim pessoas perdidas, totalmente vestidas e

abraçadas em uma banheira, isso é algo que não posso abrir mão, agora que sei que

posso fazer isso”. Na entrevista para a revista Dazed (2013), o diretor promete que

nunca pedirá um dólar sequer para ninguém para fazer seus filmes. E todo o dinheiro

que ganhar com Upstream Color vai direto para seu próximo projeto. “Eu não posso

desperdiçar tempo tendo conversas idiotas com pessoas sobre financiamento. Isso

simplesmente não funciona para mim” (CARRUTH, 2013).

Shane doesn’t follow the rules of independent film. He doesn’t care about what is trending. Everything he makes is unlike anything else on the market. Where most filmmakers shamelessly copy and imitate what is known to work, Shane is in a constant pursuit to find that which is truly unique. He honestly seems to be in the game for the craft, not the cash. Shane wants to tell stories. He doesn’t wanna be a celebrity (MCCONNELL, 2017).53

53 Shane não segue as regras do cinema independente. Ele não se importa com os modismos. Tudo que ele faz é diferente de tudo mais que está no mercado. Onde a maioria dos cineastas copiam e imitam descaradamente o que é comprovado que funciona, Shane está em uma constante perseguição para achar aquilo que é verdadeiramente único. Ele honestamente parece estar nesse jogo pela arte e não pelo dinheiro. Shane quer contar histórias Ele não quer ser uma celebridade (Tradução do pesquisador).

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Ainda na entrevista para a Paper (2013), quando questionado sobre sua

identidade como cineasta, Carruth teve o seguinte a dizer:

Two things about that. One, I know that I have this, I mean everybody does, this idea that you've built up an identity, you have your political, religious, cosmic beliefs, whatever. Everything that you see and everything that you say seems to be framed according to this identity. I know that I'm guilty, if that's even the right word, absolutely. But as far as my identity as a filmmaker, I really don't want one or have one. I don't want a career. I've been telling all of the people that would care that I'm not trying to build a career. I'm trying to be consumed by whatever story's in front of me. It was Upstream Color, I'm currently writing something else right now that I cannot wait to sink into. I don't want a personality and any time I use my name as sort of a brand I'm really just trying to do what I can. If there's any value in it at all to get the project out

and raise awareness of it (CARRUTH, 2013).54

Na mesma entrevista, Carruth esclarece melhor o motivo de querer fazer, ele

mesmo, até a trilha sonora:

With the music, I didn't set out thinking I wanted to compose music for film but when I know what I want the music to sound like exactly it just makes more sense for me to spend the time it takes to get it done instead of trying to explain it to somebody and then really frustrate them when they don't deliver precisely what's in my stupid head (CARRUTH, 2013).55

Porém, McConnell (2017) também evidencia que Carruth apresenta falhas em

seu processo criativo. O autor acredita que a teimosia do diretor pelo total controle

criativo sobre suas obras, provavelmente fechou algumas portas para oportunidades.

Mas, Carruth parece não se importar.

Outro ponto a ser explorado é o fato de que como o diretor gerencia

basicamente todos os aspectos de seus filmes, se a sua criação tem sucesso, ele

ganha todo o crédito. Se, por outro lado, ela falha, leva toda a “culpa”. Felizmente,

54 Duas coisas sobre isso. Uma, eu sei que eu tenho isso, quero dizer, todo mundo tem, essa ideia que você construiu uma identidade, que você tem suas crenças políticas, religiosas, cósmicas, o que seja. Tudo que você ê e tudo que você diz parece estar enquadrado nessa identidade. Eu sei que sou culpado disso, se é que essa é a palavra certa, certamente. Mas em relação à minha identidade como cineasta, eu realmente não tenho uma. Eu não quero uma carreira. Eu venho dizendo para todas as pessoas que eu me importo que eu não estou tentando construir uma carreira. Eu estou tentando ser consumido por qualquer que seja a história que está na minha frente. Foi Upstream Color, e agora estou escrevendo outra coisa que mal posso esperar para mergulhar fundo. Eu não quero uma personalidade e todas as vezes que eu utilizar meu nome como um tipo de marca, é porque só estou tentando fazer o que eu posso. Se houver qualquer valor nisso para fazer o projeto ser feito e visto (Tradução do pesquisador). 55 Com a música, eu não saí pensando que queria compor música para filmes, mas quando eu sei como eu quero que a música seja exatamente, simplesmente faz mais sentido eu mesmo gastar o tempo necessário para que seja feita ao invés de explicar para alguém e depois frustrá-los quando eles não entregam precisamente o que estava na minha mente estúpida (Tradução do pesquisador).

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para Carruth, até agora o retorno foi positivo. McConnell (2017) salienta que os filmes

de Carruth, embora obscuros, foram aclamados pela crítica.

O colunista Tim Robey, do jornal britânico The Telegraph (2013)56, chama

Carruth de “o estranho autor”, devido a sua natureza pitoresca e filmes de caráter

autoral. Quando questionado por Robey (2013) sobre sua satisfação quanto a Primer,

Carruth admite não sentir prazer em assistir ao filme, demonstrando, com isso, uma

grande dose de senso crítico e busca pela perfeição. Talvez, humildade.

You know what? I am not happy with it. I see nothing but rough edges. I don’t enjoy looking at it. I don’t enjoy listening to it. I'm embarrassed by it, and I think of it as something that was made in eighth grade that I wish could not be attributed to me. At the same time, I could not be more grateful for how it’s been received or that anybody likes it, so it’s this very weird thing. I wouldn’t touch it for the world, but that’s mainly because of how I’ve been informed by George Lucas changing his works and stuff. I have a strong opinion about whether work should be revisited or whether it should be left how it was (CARRUTH, 2013).57

Robey (2013) acredita que os filmes de Carruth são obras “belíssimas,

estonteantemente espertas e o produto de uma mente intimidante”. Ele aponta que

Upstream Color é “o bebê” de Carruth, sendo que ele editou até mesmo o trailer, criou

o pôster e fez o design das embalagens de DVD e Blu-ray. Na entrevista, o diretor

afirma que o filme já é diversivo simplesmente por estar tentando algo novo.

Quando questionado pela revista New York (2013)58, sobre suas maiores

influências culturais, Carruth evidencia 20 delas. Entre essas, estão os filmes Pierrot

le Fou (1965) e Vivre Sa Vie (1962), de Jean-Luc Godard (mencionado no capítulo 2

como um dos pioneiros do cinema autoral); a trilha sonora de Ascenseur Pour

L’échafaud (1958), composta por Miles Davis; os jogos de videogame Grand Theft

56 Entrevista concedida ao Telegraph em 29/08/2013. Disponível http://www.telegraph.co.uk/culture/film/10255533/Shane-Carruth-interview-the-awkward-auteur.html - Acessado em 01/11/2017 57 Sabe de uma coisa? Eu não estou feliz com o filme. Eu não vejo nada a não ser pontas brutas sem lapidação. Eu não gosto de olhar para ele. Eu não gosto de escutar ele. Eu tenho vergonha dele, e eu penso nele como algo feito na oitava série que eu gostaria que não fosse atribuído a mim. Ao mesmo tempo, eu não poderia ser mais grato por como ele foi recebido e por alguém gostar dele, então é uma coisa muito estranha. Eu não mexeria nele por nada neste mundo, mas isso é, na maior parte, por causa de como fui influenciado por George Lucas ficar mudando seu trabalho e coisas do tipo. Eu tenho uma opinião forte quanto a se um trabalho deve ser revisitado ou se deve ser deixado como está (Tradução do pesquisador).

58 Entrevista concedida a New York em 15/04/2013 Disponível http://www.vulture.com/2013/04/shane-carruth-explains-his-cultural-influences.html - Acessado em 01/11/2017

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Auto IV (2008) e Portal (2007); o website Etsy; a série de televisão It’s Always Sunny

in Philadelphia (2005) e visitar mercearias abertas tarde da noite. O diretor diz que

andar pelos corredores das mercearias o acalma e o ajuda a pensar em novas ideias.

Isso tudo condiz com o que Dabul e Pires (2008) discutem no capítulo 3, sobre a

importância dos processos criativos, concebidos como rituais únicos de cada artista,

experiências vividas durante a concepção de suas obras.

É muito difícil conhecer o “lado pessoal” de Carruth. McConnell (2017) acredita

que o público cria muitas projeções quanto ao diretor. Para ele, existem “dois Shanes”:

a persona e a pessoa. A persona é o cineasta visionário recluso. Ele é, para seus fãs,

um gênio. Para seus críticos, esnobe. Para os estúdios, a aposta mais arriscada. Este

Carruth é uma combinação de aproximações. McConnell (2017) reflete que

preenchemos os espaços em branco com o que “parece” certo. E, por outro lado, há

a pessoa. Se você não for um familiar ou amigo, essa pessoa se mantém um mistério.

Talvez o “verdadeiro” Carruth possa ser, provavelmente, um meio termo entre esses

dois aspectos.

McConnell (2017) conclui que, no decorrer dos anos, Carruth amadureceu. Ele

foi do diretor de 30 anos de idade com o brilho nos olhos, tentando entender o por quê

de ser tão aclamado para um artista mais equilibrado e reservado que toma extremo

cuidado com o que fala. Acredita ainda que Carruth não se leva tão a sério quanto os

outros o levam. “Talvez ele tenha tudo planejado em sua cabeça ou talvez ele vá

improvisando conforme as coisas se desenrolam”. McConnell (2017) conclui que se

sabe, com certeza, apenas duas coisas sobre Carruth: que ele tem histórias para

contar e que leva um bom tempo para contá-las. Sobre perspectiva, o autor afirma ter

certeza que Carruth ainda está no jogo do fazer fílmico, lentamente conseguindo os

recursos para seu próximo filme.

It’s clear that he is talented and driven. Able to craft cool concepts for movies, but he is yet to really refine those concepts in a way that is coherent enough for mainstream audiences to understand. I don’t think that he has created his masterpiece yet, but I’m almost certain that one day he will. Untill then we will have to keep our eyes in the shadows for hints of movement and, if the time comes, when he has something to say, you can rest assured of one thing: he knows his way out of the darkness and into the light, to speak (MCCONNELL, 2017).59

59 Está claro que ele é talentoso e determinado. Capaz de criar conceitos de filmes legais, mas ele ainda tem que refinar esses conceitos de uma forma que seja coerente o suficiente para a massa entender. Eu não acho que já criou sua obra-prima, mas tenho quase certeza que um dia ele vai. Até lá, devemos manter nossos olhos nas sombras, em buscas de rastros de movimento e, se o momento

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É importante ressaltar que, apesar de Carruth não ter lançado nenhum longa

desde 2013, continua aparecendo em algumas obras. O diretor estrelou o curta

Everything & Everything & Everything (2014), produzido pela companhia de mídia

digital, Vice. Em 2015, estrelou mais dois curtas: We’ll find something e Memory Box.

Carruth trabalhou com o diretor/editor/roteirista vencedor do Oscar, Steven

Soderbergh (que também começou sua carreira tendo notoriedade no Festival de

Sundance).

Para Soderbergh, Carruth compôs a trilha sonora de sua série de TV, The

Girlfriend Experience (2016). Atuando na série e também como co-criadora, está Amy

Seimetz, a protagonista de Upstream Color, que também escreve, dirige, estrela e

edita suas próprias obras. Carruth se casou com Amy em 2016. Soderbergh teve a

dizer quanto ao estilo de Carruth: “eu o vejo como o filho ilegítimo de David Lynch e

James Cameron”60. Ainda em 2016, Carruth fez uma pequena ponta no filme Swiss

Army Man (Scheinert), estrelado por Daniel Radcliffe e em 2017, dirigiu um episódio

da série de televisão Breakthrough.

chegar, quando ele tiver algo para dizer, você pode ficar sossegado sobre uma coisa: ele sabe o caminho para fora da escuridão até a luz, para falar (Tradução do pesquisador).

60 Entrevista concedida a EW em março de 2013. Disponível em

www.ew.com/ew/article/0,,20685815,00.html – Acessado em 01/11/2017

Figura 14: Carruth no set de Upstream Color

Fonte: https://nofilmschool.com/2013/02/panasonic-gh2-shane-carruth-upstream-color-musgo

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4.2 ANÁLISE DE CONTEÚDO – FASE 1

Para a pré-análise ou coleta do material foram escolhidas as duas obras pelas

quais o diretor é mais reconhecido: seu primeiro filme, Primer (2004), e o segundo,

Upstream Color (2013). A seguir, encontra-se um resumo dos dois filmes,

evidenciando os aspectos mais importantes de cada um e que auxiliaram a execução

da fase 2, ressaltando as categorias para análise, adiante determinadas.

4.2.1 Primer

Quatro engenheiros – Aaron (Carruth), Abe, Robert e Phillip trabalham em uma

grande corporação durante o dia e, à noite, administram um pequeno negócio paralelo

na garagem de Aaron, onde constroem e vendem chips e circuitos. Depois de uma

discussão para decidir qual seria o próximo projeto do grupo, Aaron e Abe,

independentemente, resolvem ir atrás de tecnologias que alterem o peso de objetos.

Apesar do aparelho que construíram parecer funcionar como planejado, ele tem um

efeito colateral: um relógio deixado dentro do aparelho experienciou 1300 vezes mais

tempo do que quem estava do lado de fora. Abe teoriza que eles criaram uma máquina

do tempo.

Fotograma 6: Primer

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Depois de alguns testes, Abe, secretamente, monta um protótipo grande o

suficiente para abrigar uma pessoa e, depois de viajar para mais cedo daquele mesmo

dia, relata os resultados a Aaron. Abe e Aaron criam mais uma máquina (mais tarde

chamada de “a caixa”) e decidem cortar Robert e Phillip da descoberta, com a mentira

de que a garagem precisa ser fumigada. Abe e Aaron começam a usar a máquina do

tempo para ganhar dinheiro na bolsa de valores, mas, conforme seu conhecimento de

como a máquina funciona evolui, eles começam a ser mais aventureiros em suas

viagens.

Seus experimentos são interrompidos pela presença inesperada de Thomas, o

pai da namorada de Abe, Rachel, cujo apoio financeiro o grupo buscava conseguir.

As viagens temporais de Thomas o deixaram em estado de coma e nenhum dos dois

engenheiros consegue entender como ele descobriu “a caixa”. Abe fica

particularmente perturbado com esses eventos e conclui que as viagens no tempo são

perigosas demais e não devem prosseguir. Ele tenta prevenir o seu “eu do passado”

para não usar a máquina do tempo, e assim tornar nulas todas as suas

consequências. Para fazer isso, constrói outra máquina, que pensa ser à prova de

falhas. Esta, ele construiu às escondidas para viajar para “um ponto antes” de sua

primeira viagem e antes também de seu debate sobre viagens temporais com Aaron.

Fotograma 7: Primer - Abe e Aaron

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Abe viajou quatro dias no passado até o ponto de encontro e, sendo assim, ele

vai encontrar Aaron. Porém, Abe entra em colapso e desmaia. Depois que ele se

recompõe, Aaron revela que, sem o conhecimento de Abe, ele havia descoberto sua

máquina “à prova de falhas” e a usou para tomar o controle da situação. Aaron trouxe

consigo outra caixa, criando um falso ponto de encontro para fazer Abe crer que ainda

havia uma máquina à prova de falhas funcionando e esperando por ele. Assim, Abe

não conseguiu desfazer as ações de Aaron.

Aaron, então, revela que estava usando um gravador para recitar a conversa

de ambos de um período mais antigo. Ele explica como o encontrou, lutou e foi vencido

por uma versão dele mesmo que usou a máquina para voltar e fazer gravações, depois

de ter drogado o Aaron original. Porém, ele havia convencido sua outra versão de que

já que possuía as gravações feitas, poderia continuar a agir como Aaron. Essa versão

de Aaron, então, volta para o seu próprio tempo, deixando o “Aaron original” para

realizar seu plano de refazer os eventos de uma festa, em que um ex-namorado de

Rachel tenta disparar contra ela. Aaron a salvaria, sendo considerado um herói.

Fotograma 8 Primer - Abe e Aaron no armazém

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Abe concorda em tentar alterar os eventos da festa e os dois conseguem fazer

isso (embora não fiquem claras quantas tentativas foram necessárias). Suas

decepções e suas diferentes visões de como usar a máquina do tempo, infelizmente,

destruíram sua amizade. O uso contínuo da máquina também causou danos

cerebrais. Aaron parece sofrer um derrame, quando sangue flui de suas orelhas. Mais

tarde, no filme, ele reclama que sua caligrafia está piorando e já não consegue mais

ler.

Abe alerta Aaron para que não tente mais interferir com seus dublês de outras

linhas temporais e parte para seu plano de impedir que ambos descubram a máquina

do tempo. Sua ideia é alterar as máquinas para que o primeiro experimento com o

relógio não funcione. Enquanto isso, o outro Aaron, o que voltou no tempo para

realizar as gravações, fala no telefone com um sujeito não especificado. O filme

termina com uma cena onde Aaron comanda um time de trabalhadores franceses na

construção do que parece ser uma versão tamanho prédio da “caixa”.

Fotograma 9: Primer - Abe e Aaron dirigem

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4.2.2 Upstream Color

O filme começa com um homem (nós créditos chamado de “ladrão”) que parece

estar cultivando um tipo de larva com o objetivo de aproveitar-se dos estranhos efeitos

que ela tem sobre a mente humana, quando ingerida. O “ladrão” possui o que parecem

ser pupilos, que fazem chás com as larvas e exploram seus efeitos. Em uma boate,

Kris, a protagonista, é sequestrada pelo “ladrão”. Ele droga Kris com uma estranha

cápsula, induzindo-a a um estado de hipnose que deixa sua mente extremamente

sugestionável, o que o “ladrão” explora. Ele se utiliza de elaboradas distrações, como

por exemplo, fazendo-a criar uma corrente de papéis, onde cada pedaço contém

partes escritas do livro “Walden”. Tudo isso para distraí-la, enquanto ele executa seu

controle mental.

O “ladrão” a manipula para liquidar suas economias e também rouba uma

valiosa coleção de moedas raras. Através da hipnose, Kris é proibida de consumir

comidas sólidas. Ela só pode beber pequenas porções de água em intervalos

regulares, porções que ela é levada a crer que são incrivelmente refrescantes e

deliciosas. A cápsula administrada a Kris contém uma larva viva, encontrada entre as

folhas das especiais orquídeas azuis do “ladrão” – uma larva que está infectada com

uma lombriga que, mais tarde, também infecta o corpo de Kris.

Ela é liberta de sua suspensão de fome pelo “ladrão”, provavelmente para

incitar o crescimento da lombriga. Kris devora muitas refeições e cai no sono,

acordando em sua casa, depois, descobrindo muitas lombrigas se mexendo sob sua

pele. Kris tenta removê-las com uma faca de cozinha, porém, sem sucesso. Mais

Fotograma 10: Upstream Color

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tarde, um fazendeiro criador de porcos (que tem como hobby coletar os sons da

natureza com aparelhagem de estúdio) - chamado de o “coletor” - atrai Kris para sua

fazenda usando infrassônicos que, por sua vez, atraem as lombrigas.

O “coletor”, silenciosamente, executa uma transfusão na qual ele transfere o

verme do corpo de Kris para o corpo de uma jovem porca. Kris acorda em uma

caminhonete, abandonada na estrada, sem memória de todos esses eventos

traumáticos. Quando chega em sua casa desorganizada, ela nota sangue no chão e

nos lençóis de sua cama e considera chamar a polícia. Kris percebe, porém, que não

tem informação nenhuma para dizer a eles e interrompe a ligação. Depois de limpar a

casa, vai para o trabalho, onde é demitida por culpa de sua inexplicada ausência. A

ida a uma loja revela a Kris que toda sua poupança se foi, roubada pelo “ladrão”.

Um ano mais tarde, Kris conhece um homem chamado Jeff (Carruth) em um

trem e, sem perceber, se conecta com ele, aparentemente em um nível telepático.

Kris e Jeff saem diversas vezes, antes de finalmente passarem a noite juntos. Logo

após, percebem que ambos têm cicatrizes idênticas, resultado das transfusões

esquecidas. Os dois logo entendem que possuem experiências similares. Jeff perdeu

seu emprego por ter mudado os fundos da companhia para encobrir dinheiro roubado

por ele. Já que não se lembra disso, Jeff atribui o incidente ao abuso de drogas.

Ao mesmo tempo, é deixado claro para o público que existe um paralelo entre

as emoções que Kris e Jeff andam sentindo e as de dois porcos, um dos quais possui

o parasita de Kris e um outro, que possui o parasita de Jeff. Por exemplo: Kris,

erroneamente, acha que está grávida, ao mesmo tempo que “sua” porca está, de fato,

Fotograma 11: Upstream Color - Kris e Jeff

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prenha. Após consultar um médico, ela é diagnosticada com câncer de endométrio

que, aparentemente, foi removido com sucesso. Ela é informada que o suposto câncer

não é mais uma ameaça para seu corpo, mas deixou-a infértil. Isso tudo provém da

transfusão feita pelo “coletor”.

Este, descobre que a porca que contém o parasita de Kris está muito próxima

ao porco com o parasita de Jeff. O resultado foi que a porca deu à luz dois leitões. Ele

os joga em um saco, que atira em um rio. Este evento coincide com a cena em que

Jeff e Kris sentem um sentimento extremo de perda, frustração e tristeza. Ambos

agem como se algo terrível estivesse acontecendo a eles. Jeff, de livre e espontânea

vontade, arruma briga com dois colegas de trabalho, enquanto Kris revira a casa,

procurando algo que não perdeu.

Os dois, em seu estado de pânico, se reúnem e vão à casa de Kris, onde juntam

mantimentos, incluindo uma arma, e se abrigam na banheira do apartamento,

esperando o pior. Enquanto isso, o saco que contém os leitões é visto apodrecendo e

uma substância azul flui dos cadáveres dos leitões, enchendo as águas até a raíz das

plantas próximas. Plantas como as orquídeas que, com o tempo, se tornam do mesmo

tom azul, devido ao contato com a substância.

Fotograma 12: Upstream Color - Orquídea normal e orquídea infectada

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As flores são coletadas por fazendeiros, que as vendem na vizinhança onde o

“ladrão” vive. Esses eventos parecem desencadear mudanças. Kris e Jeff começam

a lembrar as histórias pessoais um do outro como se fossem deles. Jeff descobre Kris

murmurando frases do livro “Walden” enquanto nada. E é nesse momento que os dois

passam a desvendar o que aconteceu a eles.

Em uma sequência parecida com um sonho, Kris, Jeff e o “coletor” sentam-se

em uma mesma mesa, em um quarto branco e vazio. Kris revela ao “coletor” que está

ciente sobre ele; e este cai no chão, com o que parece ser um ataque cardíaco. A

cena corta para a fazenda de porcos, onde Kris dá um tiro e mata o fazendeiro. Kris e

Jeff roubam da fazenda uma caixa cheia de anotações, revelando outras pessoas que

foram drogadas da mesma forma que eles.

Fotograma 14: Upstream Color - Kris tem uma visão

Fotograma 13: Upstream Color - Jeff e Kris começam a desvendar o caso

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A dupla chama as outras vítimas, enviando as anotações e cópias de “Walden”

para cada uma delas. Todos se reúnem na fazenda e a remodelam, pintam suas

instalações e cuidam de seus porcos. Como resultado, mais nenhum porco é afogado

e as orquídeas no rio não se tornam mais azuis. O “ladrão” vasculha as floriculturas,

em vão, procurando suas orquídeas especiais. Não há mais larvas. A história termina

com Kris acariciando um leitão adormecido em seu colo. Como se, por um momento,

estivesse em paz.

4.3 ANÁLISE DE CONTEÚDO – FASE 2

Para a decupagem, foram escolhidas cinco cenas de cada filme. O critério para

a escolha de cenas foi o de que elas expressassem, de alguma forma, as marcas

pessoais de Carruth. Elas devem evidenciar os aspectos importantes de sua direção,

edição, atuação, roteiro e composição da trilha sonora. As cenas estão organizadas

na ordem cronológica em que aparecem nos filmes. Para melhor entendimento dos

enquadramentos e das terminologias usadas, segue uma pequena legenda61:

61 Site utilizado para definir os planos e enquadramentos de câmera. Disponível em http://www.primeirofilme.com.br/site/o-livro/enquadramentos-planos-e-angulos/ - Acessado em 01/11/2017

Fotograma 15: Upstream Color - Kris e o leitão

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Close: a figura humana é enquadrada dos ombros para cima, ou então, apenas o seu

rosto.

Plano médio: a figura humana é enquadrada da cintura para cima.

Plano geral: ângulo visual bem aberto. A câmera revela o cenário à frente e a figura

humana ocupa espaço bastante reduzido na tela.

Plano americano: a câmera enquadra a figura humana do joelho para cima.

Plano detalhe: é o enquadramento de uma parte do rosto ou do corpo. Também

utilizado para destacar objetos, como uma caneta sobre a mesa.

Panorâmica: movimento de câmera da esquerda para a direita ou vice-versa, a partir

de um grande Plano Geral.

Passeio: câmera acompanha o movimento do personagem ou outra coisa que se

mova, na mesma velocidade.

Zoom: câmera aproxima-se do objeto (zoom in) ou afasta-se dele (zoom out).

Voice over: palavras que estão sendo ditas por alguém que não está sendo visto.

Fade: quando uma cena se desvanece na próxima, normalmente expressando a

passagem de tempo.

(’): minuto.

(’’): segundo.

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4.3.1 Primer

Ano: 2004 Direção: Shane Carruth Produção: Shane Carruth Roteiro: Shane

Carruth Fotografia: Shane Carruth Música: Shane Carruth Montagem: Shane

Carruth Elenco: David Sullivan, Shane Carruth, Casey Gooden, Anand Upadhyaya,

Carrie Crawford, Samantha Thomson, Brandon Blagg Duração: 77 min.62

4.3.1.1 Cena 1: Mais Uma Noite de Quarta (45’’)

A cena começa com um zoom out da porta que dá acesso da casa para a

garagem. A trilha sonora é sensível, calma. Por essa porta, entra um homem, (Phillip),

distraído com um copo de café. Conforme o zoom out continua, percebem-se dois

homens (Aaron e Abe), mexendo com algum tipo de produto químico que produz muita

fumaça. Ambos usam máscaras.

ABE: Espere. Phillip, não vai querer vir até aqui. Phillip! Ponha uma máscara, certo?

Depois de tomar um gole do café, Phillip finalmente busca uma máscara,

enquanto Aaron e Abe continuam seu trabalho. O zoom out se encerra, enquanto a

62 Disponível em http://www.imdb.com/title/tt0390384/ - Acessado em 25/11/2017

Fotograma 16: Primer - Cena 1

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cena se dissolve para um momento mais tarde por meio de fades. Nesse instante, os

quatro engenheiros (Robert se juntou a eles) estão reunidos, conversando sobre uma

mesa cheia de entulhos, circuitos e peças de metal. Não há nenhum som a não ser a

tocante trilha sonora.

Phillip alcança a Abe um sanduíche; alguns deles sorriem enquanto conversam.

Mais um fade e vê-se um momento ainda mais tarde da noite, com o portão da

garagem se fechando. A câmera continua a observar os personagens através das

janelas embaçadas do portão, agora totalmente fechado. Somente quatro retângulos

de imagem são vistos na cena, o resto é escuridão. O único som continua sendo a

trilha sonora, notas de piano bem pronunciadas. O zoom out recomeça. Lá dentro, os

amigos se movimentam, enquanto discutem ideias para projetos. Com uma última

nota de piano, o fade vai para o preto.

4.3.1.2 Cena 2: Filé ou Tacos? (45’’)

Abe acorda as 19h em seu apartamento, depois de trabalhar no projeto da

máquina do tempo até a completa exaustão. Aaron liga para Abe, fazendo pressão

para que saiam para comer algo. Um homem identificado apenas como “Brad” está

no sofá de Abe. A sequência começa com um plano geral de Aaron e Abe, andando

em direção à caminhonete de Aaron para guardar peças de uma geladeira.

Fotograma 17: Primer – Cena 2

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AARON: Quanto tempo ele disse que ficaria?

ABE: Não muito.

AARON: Só acho que se ele tem problemas, ele precisa consertá-los. Você não é o

pai do cara.

ABE: Eu sei. Só pensei que seria legal fazer algo... caridoso.

AARON: Definitivamente é caridade. Pelo menos você admite isso.

Por alguns instantes, corta-se para um plano geral da parte dianteira da

caminhonete e dos protagonistas, de cima de um prédio. Agora, a cena alterna entre

plano médio de Aaron e Abe, enquanto conversam apoiados na caçamba da

caminhonete.

AARON: Ei. Está a fim de um filé? – Abe fica em silêncio - Para comer!

ABE: Não, não quero um filé. Vamos só pegar uns tacos no caminho à loja. Têm umas

coisas que eu quero tentar.

AARON: Está bem. Podemos pegar uns tacos no caminho, ou podemos comer um

filé mais tarde.

ABE: Do que você está falando? Eu não vou pagar por um filé.

Aaron fica em silêncio, esperando que Abe se dê conta de algum fato. Um fato

que mereça ser comemorado com filé. Aaron faz gestos com a cabeça, incentivando

Abe a encontrar a resposta.

ABE: Está estável? – Aaron dá tapas na caçamba da caminhonete e embarca no

assento do motorista - Aaron, está estável?

Termina com o plano geral de cima do prédio, mas agora, da traseira da

caminhonete, enquanto Aaron dá a partida no motor.

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4.3.1.3 Cena 3: A & B (2’ 13’’)

Abe fez testes, colocando relógios, tanto analógicos quanto digitais, na

máquina do tempo. Ele conta suas descobertas para Aaron e insiste para que o amigo

também faça o experimento. A cena começa na garagem, plano detalhe da mão de

Aaron enquanto segura um alicate, abrindo-o e fechando-o, impaciente. A câmera

sobe para um close de seu rosto, enquanto ele olha, apreensivo, para o relógio na

parede. No decorrer de toda essa sequência em que os personagens conversam, são

usados diversos planos detalhe (ocasionalmente, alguns com zoom) para mostrar

suas mãos mexendo na caixa, nos relógios de pulso, colocando os relógios dentro da

caixa ou retirando-os e mexendo nos demais aparelhos e botões. Há também closes

em seus rostos. A edição é frenética.

ABE: Pensamos que estávamos diminuindo a gravidade, certo? Que estávamos

bloqueando essa informação. Mas acho que fazemos mais que isso, acho que

bloqueamos mais que isso. Você notou? Quando controlava a alimentação, notou que

era parabólica? Ei, é importante. Parábolas são importantes. Aqui, dê uma olhada.

AARON: Eu não sei Abe...

ABE: Agora vou ligar e deixar rodar por 60 segundos com nada dentro ok? Está vazia

dessa vez.

Fotograma 18: Primer - Cena 3

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AARON: ... isso dá 22...

ABE: Em todas as equações que descrevem movimento, calor e entropia...

AARON: Só, só um minuto... um segundo.

ABE: Em todos os diagramas de Feynman, qual é a variável que pode virar negativa

e ainda dar respostas racionais?

AARON: Me dá um minuto!

ABE: Não é massa, não é...

AARON: 22 horas e 27 minutos na caixa.

ABE: É um número ímpar.

AARON: Quantos minutos é isso? São 1347 minutos.

ABE: Ok, é. 1347, cara, você pegou rápido.

AARON: Como sabia que seria ímpar?

ABE: Porque é assim. Isso é o que acontece: Tem uma ponta A e uma ponta B.

Digamos que a ponta A seja 12:00, e a ponta B seja 12:01. Certo? Ligamos a máquina

com o boneco na ponta A. Ele viaja para a frente...

Plano detalhe da mão de Aaron, enquanto ele apanha uma prancheta e mais

um, enquanto pega a caneta do bolso da camisa.

AARON: Você tem que anotar isso.

ABE: Aaron, não há nada para anotar.

AARON: Então eu vou anotar.

Seguem vários planos detalhe das anotações de Aaron, em sua maior parte

desenhos de parábolas e flechas levando a ponta A ou B para lá e para cá.

ABE: Certo. Ele viaja para a frente normalmente, em direção à ponta B. E quando

chega lá, a alimentação reduz parabolicamente até onde devia parar, mas não para.

Ela se curva novamente em direção à ponta A. E quando chega de volta em A... faça

uma curva aí. O boneco experimentou um total de 2 minutos, e novamente se curva...

AARON: Se curva de volta. Curva-se parabolicamente.

ABE: Certo, curva-se de volta novamente e faz isso umas 1300 vezes, e quando

finalmente sai na ponta B, já viajou um número ímpar de vezes para a frente e para

trás.

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AARON: O que há de tão especial em 1300? Por que cerca de 1300? Por que não dá

exato? Isso não é empírico.

ABE: Me dá isso.

Plano detalhe da mão de Abe, apanhando um dos relógios de pulso que estava

em cima da mesa e colocando-o dentro da máquina.

ABE: Não sei por que não dá exato. Aí tem algum tipo de probabilidade. Cada vez

que chega na ponta B, há uma chance... uma pequena chance de que não se curve

em direção à ponta A. E por alguma razão, leva umas 1300 viagens até que aconteça.

Mas ele tem que sair, senão não poderíamos vê-lo depois. Certo, vamos dar uma

olhada nisso... - Ele retira o relógio de dentro da caixa - 22 horas e 14 minutos.

AARON: ... 1334 minutos.

ABE: Par.

AARON: Entra na ponta B... sai na ponta B.

Um plano detalhe de Aaron, fazendo o círculo com a caneta em suas

anotações. De B até B. Close no rosto de Abe, esbaforido.

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4.3.1.4 Cena 4: Passo a Passo (3’)

Enquanto pensam em uma forma de ganhar dinheiro com a descoberta da

máquina do tempo, Aaron questiona o passo a passo para Abe, que já a usou uma

vez em si mesmo. A sequência parte de um plano geral dos dois personagens,

sentados na parte de fora de algum café, ao entardecer.

AARON: Por que não a loteria?

ABE: Podemos, se você quiser, mas só abre no sábado. E mesmo se ganharmos

todos os 10 milhões, são apenas 200 mil pelos próximos 30 anos.

AARON: Apenas?

ABE: E isso é apenas uma boa transação.

AARON: Alguns dias assim...

ABE: Eu só estava testando. Entrei e saí.

AARON: Quero fazer o que você fez, ok? Exatamente o que você fez.

Plano americano de uma manhã típica na casa de Aaron. Ele toma café e ajuda

a filha de uns cinco anos com a mochila. A partir de agora, todo o diálogo é em voice

over, já que se passa na parte de fora da cafeteria, enquanto as cenas são de algum

dia mais à frente.

Fotograma 19: Primer - Cena 4

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ABE: Tá bom, a primeira coisa que fiz foi ligar para o trabalho, avisando que estava

doente.

AARON: Certo, eu fiz isso.

ABE: Depois, fui até o armazém.

AARON: Ok, mas tenho que deixar Lauren na escola primeiro.

Plano geral de Aaron e Abe, chegando em seus respectivos veículos. Cortes

rápidos, mas sem mudar o plano, mostram Aaron entrando no carro de Abe e ambos

saindo de cena. A trilha sonora é bem presente no restante dessa sequência. Uma

trilha composta por notas de piano, simples e tristes.

ABE: Então, me encontre lá. Vamos precisar dos dois carros. Temos que estacionar

o seu na estrada, fora da vista do armazém.

AARON: Por que estamos fazendo isso?

ABE: Precisamos de uma carona pra casa.

AARON: O que isso...

ABE: Fará sentido.

AARON: Tá, serei paciente.

Plano geral da parte de dentro do armazém. O portão é aberto e vê-se Aaron e

Abe de pé, do outro lado. Depois disso, diversos planos detalhe das mãos dos

engenheiros manuseando fitas, caixas e a máquina do tempo dentro do armazém.

ABE: Quando cheguei ao armazém, enchi a caixa com argônio e tive que ajustá-la

bem para tapar os vazamentos.

AARON: Têm vazamentos?

ABE: Sempre têm vazamentos. Às 8:30 da manhã ajustei o timer para 15 minutos,

entrei no carro e dirigi até Russellfield.

Plano médio de ambos no carro. Abe dirige.

AARON: Tá, me perdi.

ABE: Que foi?

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AARON: Por que o timer?

ABE: Porque o momento que ligarmos aquelas máquinas será o momento que

sairemos delas e...

AARON: Certo. Entendi. Desculpe.

Plano detalhe da máquina, ligando.

ABE: ... não quero estar por perto quando fizerem isso. Enquanto eu estava na

estrada, às 8:45, a máquina ligou por conta própria e por volta de 8:49, já estava

completamente aquecida.

Volta para o plano geral de ambos, no carro. Plano americano de Abe e Aaron,

fechando as cortinas do quarto de hotel.

ABE: Em Russellfield, fui a um hotel e tentei me isolar.

AARON: Espera, o que quer dizer com “isolar”?

Plano detalhe de mãos, puxando tomadas de todos os tipos, da parede. Plano

médio de Aaron, fechando o armário da TV. Plano detalhe de Abe, colocando a placa

de “não perturbe” na porta do quarto.

ABE: Quero dizer que fechei as janelas, desliguei tudo no quarto, telefone, TV, relógio,

rádio, tudo. Não queria correr o risco de encontrar algum conhecido ou de ver algo

nos noticiários que pudesse... se estivermos lidando com casualidade, e... eu nem

tenho certeza de saber... eu só...

AARON: O quê?

Plano geral de ambos, em pé, no centro do quarto.

ABE: Me tirei da equação.

AARON: Errou por precaução.

ABE: Isso.

AARON: Então, o que você fez o dia todo?

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Plano detalhe da parte de cima de uma mesa, enquanto os dois jogam objetos

por cima. Um baralho de cartas, dados e diversos jogos de tabuleiro.

ABE: Eu só sentei lá. Tinham uns livros, mas...

AARON: O quê? Estava nervoso?

ABE: É. É que é tão difícil tentar prever tudo.

Plano médio de perfil dos protagonistas. Ambos estão comendo sanduíches,

enquanto brincam com um jogo de palavras. Abe tenta pegar a sobremesa de Aaron,

que a toma de volta. Mas, no fim, aceita trocá-la pela de Abe. Aaron, brincando com

o jogo das palavras, fala na cena de fato, sem o voice over:

AARON: Evacipar! (Palavra fictícia, criada por Carruth, que quer dizer “desfazer

as consequências de suas ações, apagar a sua própria história”).

Plano geral dos dois, procrastinando, jogando bolinhas de papel no lixo e se

divertindo. Plano geral de ambos, saindo de uma loja com um tanque de oxigênio e

entrando no carro. O diálogo volta a ser em voice over.

ABE: Às 14:30, passei na Suprimentos Médicos Williams e peguei um tanque de

oxigênio classe E e uma máscara. Liguei para minha companhia de investimentos e

perguntei quais ações em seu fundo tiveram a maior porcentagem de lucro no dia. A

ideia era apenas obter informações suficientes para uma boa transação.

A câmera os segue, em plano geral, visto de cima, enquanto caminham por

uma biblioteca.

AARON: Quando formos, podemos apenas baixar os dados e fazer transações em

cada movimento?

ABE: É, mas se fizermos isso, quero usar a biblioteca, em Russellfield. Usar os

computadores deles.

A cena retoma para o plano médio dos engenheiros dentro do carro e depois,

corta para um plano geral dos dois, andando pelos corredores do armazém.

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4.3.1.5 Cena 5: Herói (1’ 37’’)

No decorrer do filme, em alguns momentos, escuta-se a narração de Aaron,

como se estivesse falando ao telefone com alguém. Sendo assim, o diálogo dessa

cena é feito totalmente por voice over. Aaron e Abe, após uma discussão, resolvem

voltar no tempo para remodelar os acontecimentos de uma festa em que a namorada

de Abe, Rachel, foi quase morta por um ex-namorado, que invadiu, armado, uma festa

que ela estava dando. A sequência é repleta por planos gerais, detalhe, closes e

planos médios. A sala da casa está cheia de convidados, que conversam e bebem.

Os únicos sons que se ouvem são os da narração de Aaron e da trilha sonora, baixa

e misteriosa, com notas sutis de piano e violino.

AARON: Posso dizer, com certeza, o que fiz naquela noite, quando era a minha vez.

Mas acho que não ajudaria, porque o que o mundo se lembra, a realidade, a última

revisão, é o que conta, aparentemente. Então, quantas vezes Aaron levou... enquanto

fazia o ciclo das mesmas conversas, a fazer a trivial sincronização labial de novo e de

novo. Quantas vezes seriam necessárias até que ele conseguisse fazer direito? Três?

Quatro? Vinte?

Fotograma 20: Primer - Cena 5

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Plano americano de Aaron, conversando em diversos círculos de pessoas,

sorrindo e cumprimentando-as. Corta para um plano médio de Aaron e Abe na

cozinha, observando o ex-namorado de Rachel entrar na casa, transtornado. A

câmera, rapidamente, alterna entre closes do ex-namorado, Rachel, Abe e Aaron.

AARON: Decidi acreditar que só mais uma bastaria. Quase posso dormir de noite se

só tiver mais uma. Lenta e metodicamente, ele reconstruiu um momento perfeito. Ele

pegou de suas redondezas o que lhe era preciso e transformou em algo mais.

Plano americano de Aaron e Abe do lado de fora da casa, na escuridão. Abe

apanha um pé de cabra, o enrola em um pano e ameaça quebrar a janela do carro do

ex-namorado. Aaron o impede, para mostrar que a porta nem estava trancada.

Diversos planos detalhe mostram os dois, vasculhando o veículo até encontrarem a

espingarda. Aaron retira as balas.

AARON: E uma vez que os detalhes haviam sido arranjados com sucesso, não

haveria mais nada a fazer, a não ser esperar pelo conflito.

O ex-namorado, suficientemente bêbado, começa a brigar com Rachel em

plano médio. Plano americano de Aaron e Abe fingindo uma conversa, enquanto o ex-

namorado sai da casa para buscar sua arma.

AARON: Talvez o esperado debate moral do último minuto até que o barulho na sala

aumentasse até virar em pânico e em gritos ao fundo enquanto o atirador entra. E,

eventualmente, ele deve ter conseguido perfeitamente e deve ter sido lindo. Com

todos os elogios e adoração que teria. Ele provavelmente tinha salvo vidas, no fim das

contas.

Um plano geral da sala (cena do fotograma 15, onde Abe e Aaron estão

conversando e o atirador é posicionado entre os dois). Enquanto as pessoas gritam e

apontam para o atirador, Aaron se vira e caminha em sua direção, calmamente.

AARON: Quem sabe o que teria acontecido se ele não estivesse lá?

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A sequência termina com um plano geral em panorâmica da parte da frente da

casa. As luzes de seu interior fazem contraste com a escuridão da noite.

4.3.2 Upstream Color

Ano: 2013 Direção: Shane Carruth Produção: Shane Carruth Produtores

associados: Casey Gooden, Ben Leclair, Scott Douglass Roteiro: Shane Carruth

Fotografia: Shane Carruth Música: Shane Carruth Montagem: David Lowery e

Shane Carruth Elenco: Amy Seimetz, Shane Carruth, Andrew Sensenig, Thiago

Martins Duração: 96 min.63

4.3.2.1 Cena 1: Sincronia (4’)

Antes de mais nada, se ouve a trilha sonora com o fundo preto. Uma música

emocionante. Em plano detalhe, o sol da manhã ilumina sacos de lixo repletos de

correntes. Cada um de seus elos, feito de papel. A câmera acompanha os pés do

homem (“ladrão”) que está jogando fora os sacos de lixo. Dois meninos o seguem de

suas bicicletas em plano geral. A trilha não para por nenhum segundo, o ritmo do piano

aumenta e diminui, suavemente. Um sussurro indecifrável percorre a cena, enquanto

mostra o close de um dos meninos. Corta para o homem, dirigindo o carro em plano

médio.

63 Disponível em http://www.imdb.com/title/tt2084989/ - Acessado em 25/11/2017

Fotograma 21: Upstream Color - Cena 1

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O “ladrão” chega a seu destino, uma floricultura. A trilha ganha força. Neste

momento, muitos cortes, todos em plano detalhe. As costas do homem. Seu rosto à

procura de algo. Seus dedos percorrem as folhas das plantas, sentindo a textura. Seus

olhos parecem encontrar o que procurava. Plano detalhe do homem retirando seu

canivete do bolso. Ele raspa, com a lâmina, a folha da planta, para ter certeza. Um

pigmento azul é extraído, confirmando que essa é a flor que procura. Ele retira um

pouco de terra do vaso e, em sua palma, encontra vermes no meio da terra. Plano

americano do homem, levando muitas dessas flores na caçamba de sua caminhonete.

Quando chega em casa, plano detalhe do homem, enquanto abre algumas

flores, revelando uma tonalidade azul dentro de suas pétalas. Em seguida, em plano

médio, queima todas as plantas, mantendo somente a terra dos vasos. Plano detalhe,

mostrando que ele usa a peneira, até pegar os vermes que aparecem, um a um. Ele

os leva para o quarto, em plano médio, e os analisa cuidadosamente, colocando-os

na palma da mão e, em seguida, em potes de vidro.

Ele os separa em dois potes distintos. A trilha diminui um pouco o ritmo e a

cena corta para um dos meninos (menino 1), andando de bicicleta em plano geral. Ele

chega a uma casa, onde encontra um rapaz (menino 2), que entrega um copo cheio

de uma substância escura para outro garoto (menino 3). Este a ingere e devolve o

copo. O outro rapaz enche o copo novamente e ingere a bebida também. Em um close

de seus pés, percebe-se que ficam de frente, um para o outro.

MENINO 2: Feche os seus olhos. Feche-os.

Ele passa a mão pelos olhos do garoto e fica ao seu lado, também fechando os

olhos. Ambos levantam o braço em perfeita sincronia, mesmo com os olhos fechados.

Fazem os mesmos gestos com a mão. Enquanto isso, o menino da bicicleta os

observa.

MENINO 2: Você vê por quantos tem que passar para conseguir um bom?

O garoto está ensinando o menino 1 e se refere aos vermes que está

analisando em potes de vidro. Ele põe um deles em um coador e prepara um chá.

Corta para a água do chá se enchendo com pigmento azul. Corta para o que parecem

ser bolhas dentro do chá, que vão estourando, uma a uma. O rapaz termina a bebida

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e prepara mais uma para o menino da bicicleta, enquanto um homem os observa da

entrada do quarto. Corta para ambos os rapazes em uma espécie de garagem.

MENINO 2: Você está pronto?

MENINO 1: Não.

O homem os observa do lado de fora da casa, enquanto o menino 2 tenta dar

um soco no menino 1, que o bloqueia com graça, mesmo olhando para o lado. A trilha

sonora ganha força. Os dois garotos começam a bater as mãos e se empurrar,

suavemente. Seus movimentos, em perfeita sincronia.

4.3.2.2 Cena 2: Estorninhos (4’ 43’’)

Por culpa dos parasitas que habitaram seus corpos e das experiências

traumáticas que sofreram, Jeff e Kris começam a embaralhar suas próprias memórias.

Eles chegam ao ponto de trocar suas memórias e não saberem mais de quem é o

quê.

Kris e Jeff estão dentro do carro. Um close de perfil alterna entre ambos os

personagens, enquanto acontece um voice over da cena seguinte.

KRIS: Há... há uma direção em que você se sinta... que você está mais inclinado a

seguir?

JEFF: Eu não sei. Há uma que você se sinta mais inclinada a seguir?

Fotograma 22: Upstream Color - Cena 2

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A cena muda para um plano americano das costas dos dois personagens. Eles

pararam o carro e estão decidindo para qual lado de uma bifurcação devem seguir a

pé.

KRIS: Eu digo direita.

JEFF: Esquerda.

KRIS: Tem certeza?

JEFF: Não. Então, vamos para a direita. Eu vou para onde você for. Você sabe disso.

KRIS: Eu sinto como se você soubesse.

Enquanto os personagens conversam, eles se dão as mãos. Um plano geral

mostra que já não estão mais de mãos dadas e parecem perdidos. Eles permanecem

em silêncio, enquanto observam a bifurcação.

A partir de agora, a cena é editada de forma que muitos locais e planos são

mostrados, a maioria durando apenas alguns segundos. Com isso, notam-se

fragmentos das conversas dos protagonistas, uma conversa que se complementa e

faz parte de um assunto maior. A trilha sonora é sensível e tranquila.

QUARTO DE HOTEL – DIA

JEFF: Devíamos fazer uma viagem.

INTERIOR DE UM CARRO – NOITE

JEFF (VOICE OVER): Ir para algum lugar.

QUARTO DE HOTEL – DIA

KRIS: Para onde nós iríamos?

JEFF: Algum lugar claro.

Ambos se beijam, brevemente. Um plano detalhe de suas mãos, enquanto

andam pela bifurcação. Um plano médio os mostra em uma rua, à noite, conversando,

rindo e se beijando. Plano médio das costas desfocadas dos personagens, enquanto

eles observam uma árvore repleta de pássaros, ao crepúsculo.

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KRIS: Eles poderiam ser estorninhos. – Ela bate palmas e espanta os pássaros da

árvore.

RUA - CREPÚSCULO

KRIS: Quando eu era pequena, meu amigo Renny ia me visitar. E eu ficava brava

porque toda vez que minha mãe ia fazer biscoitos...

JEFF: Eu conhecia um garoto chamado Renny...

KRIS: Ele comia todos...

JEFF: Esse garoto gordo.

KRIS: Ele era gordo, meu vizinho Renny. Eu que te contei essa história.

Um plano geral do banheiro. Enquanto Kris maquia seus olhos, Jeff a observa.

KRIS: Não parece uma melhoria?

JEFF: Está bem melhor.

KRIS: Muito melhor, né?

JEFF: Eu achei.

Close de perfil de ambos, comendo comida chinesa em um restaurante e, logo

após, corta para a cena anterior, com os dois observando os pássaros.

JEFF: Quem disse que eles eram grackles? (Espécie de pássaro preto).

KRIS: Grackles. Eles poderiam ser estorninhos.

RUA – CREPÚSCULO

KRIS: Aí eu estava bem ansiosa para ir nadar.

JEFF: Sim.

KRIS: E ele nem teve a chance de me contar que tinha cocô de pássaro por todo o

escorregador, então eu desci mesmo assim.

JEFF: Espera.

KRIS: Renny.

JEFF: Certo.

KRIS: Meu vizinho. Você, você está fazendo de novo! (Risos)

JEFF: O garoto quase me afogou!

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Enquanto os personagens conversam em seu quarto de hotel, a cena “pula”

por várias imagens. Plano geral de ambos, levando mobília para dentro de uma casa;

plano americano de Jeff em algum quarto; plano detalhe de uma antiga TV; close dos

personagens, rindo, à noite, enquanto caminham pela rua; o banheiro onde Kris se

maquia e o quarto de hotel onde está ocorrendo, de fato, a conversa.

JEFF: Nós devíamos fazer uma viagem. Ir para algum lugar.

KRIS: Para onde iríamos? Para Vermont? Aquele lugar que você conhece?

JEFF: Talvez.

KRIS: Como se chega lá?

RUA – CREPÚSCULO

KRIS: Renny costumava nos visitar e comer todos os biscoitos de chocolate.

JEFF: Não, não, não. Estou falando de outro Renny. (Risos)

KRIS: Renny é o meu amigo! (Risos)

JEFF: Com a piscina e o escorregador.

KRIS: Com a piscina e ele tentando me afogar, sim! Eu te conto uma história, então

você a pega e faz como se fosse sua. Você faz isso o tempo todo.

HOTEL - DIA

KRIS: Como você chega lá? No lugar onde você e sua família iam passar as férias,

em Vermont.

JEFF: Você dirige, Kris.

KRIS: Que estrada você pegaria?

JEFF: Eu teria que arranjar um mapa.

KRIS: Você não se lembra?

JEFF: É só uma estrada qualquer do interior. Eu tinha seis anos.

KRIS: Não. Eu tinha seis anos.

BANHEIRO - NOITE

KRIS: Eu te contei aquela história.

JEFF: Não, você não contou, não.

KRIS: Sim, ele me segurou embaixo d’água, lembra? Ele me segurou embaixo.

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RUA - NOITE

KRIS: Então, eu não tenho permissão para falar sobre a minha infância? (Raiva)

JEFF: Fale o quanto quiser, só não fale da minha.

KRIS: Você acha que é a sua infância?

COZINHA - DIA

JEFF: E quanto ao trampolim? Com o Mick? (Raiva)

KRIS: Não, essa é sua. Essa é sua.

JEFF: Ah, essa é minha? Uau, obrigado por isso. E quanto ao Renny?

KRIS: Não.

JEFF: Que quase me afogou. Depois mentiu para a minha mãe sobre isso.

KRIS: Não, essa é minha.

JEFF: Ah, essa é você, claro. Ok.

KRIS: Isso aconteceu comigo! (Raiva)

JEFF: Kris!

RUA - NOITE

KRIS: Não só isso, mas você também está querendo me dizer que... – Homem

assobia, chamando a atenção dos dois por estarem brigando alto demais. Kris e Jeff

sorriem. Jeff olha para Kris, ainda sorrindo.

A cena final é com o mesmo plano das costas dos personagens, enquanto

observam os pássaros voarem da árvore, ao entardecer.

JEFF: Eles poderiam ser estorninhos.

KRIS: Eles poderiam ser estorninhos.

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4.3.2.3 Cena 3: Conexão (1’ 10’’)

Os porcos que contêm o parasita de Jeff e Kris tiveram seus filhotes mortos

pelo “coletor”. A dor e desespero dos porcos se reflete em Jeff e Kris, mesmo que eles

não saibam o por quê se sentem daquele jeito.

Um plano geral mostra o carro de Jeff, subindo o meio fio da casa de Kris e

entrando, apressadamente, na garagem aberta. Plano médio das costas dos

protagonistas dentro do carro, Jeff está dirigindo. Diversos cortes rápidos, todos em

plano detalhe, evidenciam os personagens saindo, atrapalhados e apressados, do

carro, em direção à casa. Kris se atrapalha com as chaves, mas consegue, enfim,

abrir a porta. Ambos vasculham a casa, freneticamente. Plano detalhe em zoom de

uma tigela com frutas. Ambos vasculham a casa, freneticamente. Plano detalhe em

zoom de garrafas d’água. Ambos vasculham a casa, freneticamente. Plano detalhe

em zoom de uma bandeja com kit de primeiros socorros. Ambos vasculham a casa,

Fotograma 23: Upstream Color - Cena 3 (arte do pesquisador)

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freneticamente. Plano detalhe em zoom de uma grande lanterna. Ambos vasculham

a casa, freneticamente. Plano detalhe em panorâmica de uma arma em cima da cama.

Plano detalhe de seus pés, correndo em direção ao banheiro. A câmera os

segue e eles fecham a porta. Corta para um plano geral, enquanto a câmera passeia

em direção a Jeff e Kris, abraçados, dentro da banheira. Mantimentos diversos estão

empilhados ao lado, juntamente com um machado. As luzes estão apagadas, mas

eles deixaram a grande lanterna acesa. Jeff fecha a cortina da banheira. Plano médio

de ambos em seu casulo, enquanto Kris abraça Jeff. Close de seus rostos. Jeff está

pensativo e Kris parece ter adormecido. Plano geral dos dois, deitados, entrelaçados

dentro da banheira. Enquanto Jeff fecha os olhos, Kris os abre e olha, apreensiva,

para o nada. Corta para close da face de dois porcos. Eles estão com um olhar

cansado e triste, suas faces encostadas uma na outra. Os porcos fecham os olhos.

4.3.2.4 Cena 4: Descoberta (3’ 53’’)

Esta é a sequência em que Jeff e Kris percebem estar conectados, de alguma

forma, ao livro “Walden”. Ambos sabem todos os versos e começam a se lembrar dos

eventos traumáticos pelos quais passaram. A cena abre com um close das costas de

Kris, enquanto ela está nadando na piscina de um ginásio, à noite. Sem foco, Jeff

aparece na outra ponta, carregando consigo o livro “Walden” e um saco de pedras.

Plano detalhe dos pés de Jeff, subindo os degraus que levam para a beira da

piscina. Um plano médio o mostra, deixando as pedras embrulhadas caírem no fundo

da piscina. Plano detalhe das pedras, caindo e afundando. Close de Kris, inspirando

Fotograma 24: Upstream Color - Cena 4

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fundo e mergulhando para buscá-las, uma a uma (passatempo que ela costuma

adotar quando nada sozinha). Plano médio de Kris embaixo d’água, nadando em

direção às pedras.

A sequência a seguir, novamente conta com inúmeros cortes rápidos, em sua

maioria planos detalhe. Jeff lê algum verso aleatório do livro e quando Kris volta das

profundezas para deixar uma pedra na borda da piscina, continua ou termina o verso.

Quando ela volta a mergulhar, Jeff lê mais algum trecho.

JEFF: Economia. Quando eu escrevi as seguintes páginas, ou melhor, a maior parte

delas, eu vivia sozinho na floresta, uma milha de distância de qualquer vizinho, em

uma casa que eu mesmo construí, na costa de Walden Pond. E meu ganha pão era o

trabalho que eu fazia com minhas próprias mãos, e apenas isso...

KRIS: ... eu vivi lá por dois anos e dois meses. Atualmente, sou novamente um

passageiro temporário da vida civilizada.

JEFF: Ele ouviu um som baixo e distante, porém grandioso e impressionante.

Diferente de qualquer coisa que ele já tenha ouvido...

KRIS: ... gradualmente aumentando e ficando mais forte...

JEFF: ... como se fosse ter um final universal e memorável...

KRIS: ... um rugido mal-humorado e apressado.

JEFF: Os raios que aparecem através da persiana...

KRIS: ... não serão mais lembrados quando a persiana for removida.

JEFF: As melhores qualidades de nossa natureza...

KRIS: ... como o florescer das frutas, podem ser preservadas.

JEFF: Um rio correndo naquela direção, através de um vale arborizado...

KRIS: ..., mas não havia nenhum rio.

JEFF: Estou contente por ter bebido água por tanto tempo...

KRIS: ... pela mesma razão pela qual prefiro o céu natural.

Kris termina de buscar as pedras. Close do rosto de Jeff, pensativo. Close no

rosto de Kris, enquanto se prepara para mergulhar mais uma vez. Plano médio de

Kris, embaixo d’água, e algo a surpreende. Planos detalhe em zoom de orquídeas

submersas e amarelas. Porém, dentro de suas pétalas, há uma estranha tonalidade

azul. A trilha sobe, emocionante. Kris estende a mão para um dos ramos de flores e

conforme vai se aproximando, a trilha cresce, aumenta o volume com notas de piano

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e sintetizadores. Quando Kris aperta as flores, corta para flashes de um outro lugar.

Isso a assusta, ela recua a mão. Passado um momento, ela aperta as flores

novamente, e de novo e de novo. A cada apertão, sons altos e indistintos são seguidos

por flashes de algum lugar; planos detalhe que giram, enquanto a câmera se aproxima

e faz o foco: um galho, uma pedra, um riacho, folhas, são imagens de uma fazenda.

Kris fita as orquídeas uma última vez e passa seus dedos delicadamente pelas

pétalas, antes de voltar à superfície.

4.3.2.5 Cena 5: Tudo Está Bem (1’ 15’’)

Após o “coletor” ser morto e a fazenda restaurada por todos aqueles que foram

vítimas tanto do “ladrão”, quanto do “coletor”, o ciclo das orquídeas azuis foi quebrado.

Plano médio do “ladrão” em uma floricultura. Ele observa, apreensivo, toda a

floricultura. A trilha é calma e tocante. Muitos planos detalhe de seus dedos, passando

pelas folhas para sentir a textura, procurando na terra dos vasos. Um de seus pupilos,

o menino 1, está ajudando o “ladrão” a procurar, levando alguns vasos até ele. Close

de perfil do “ladrão”, enquanto ele raspa, com seu canivete, a folha de uma planta.

Porém, desta vez, o pigmento azul não aparece. Ele balança a cabeça negativamente,

desolado.

Corta para a fazenda, com a luz da manhã iluminando alguns leitões em plano

geral. A trilha é contínua, forte, porém tranquila. Em plano americano, vê-se Kris

sentada no chão de um dos viveiros, observando os leitões. Close em um dos leitões.

A câmera segue sua face feliz, enquanto ele é erguido por Kris. Ela aproxima seu

Fotograma 25: Upstream Color - Cena 5

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rosto do dele e faz barulhos inaudíveis com a boca, como se estivesse contando uma

história para uma criança. Em plano médio, ela beija o leitão suavemente e o põe para

descansar em seu ombro. Em close, ela o nina lentamente, enquanto ele começa a

adormecer. A trilha é calma e poderosa. A câmera se move do leitão para o rosto de

Kris, em paz.

4.4 ANÁLISE DE CONTEÚDO – FASE 3

Nesta fase, será analisado o estilo de Carruth ao fazer seus filmes, focando-se

em sua direção, edição, atuação, escrita (roteiro) e composição da trilha sonora. Cada

uma das categorias (exceto a da direção, onde já houve o terceiro capítulo dessa

monografia) terá uma pequena nota de rodapé para contextualização. Serão feitas

conexões com os capítulos anteriores, juntamente com as cenas decupadas. Algumas

informações complementares de entrevistas, que esclarecem ainda mais o estilo

quase desconhecido do artista, serão acrescidas.

4.4.1 Direção

Ao contrário de Primer, Upstream Color é muito abstrato. Na entrevista para

Indiewire (2013), Carruth salienta que seus filmes não têm explosões ou tiroteios, mas

apresentam um pequeno e atraente quebra-cabeças que ele espera que o público

queira desvendar. Carruth explana que seu planejamento quanto à cinematografia é

juntar praticidade, o isolamento dos personagens e uma experiência subjetiva, sem

ter que se apoiar em planos de POV (point of view64). Quando uma cena muda, a

música muda com ela e esses dois elementos, segundo o diretor, equilibram o roteiro.

Upstream Color é filmado com pouca profundidade de campo, o que deixa

todos os objetos e pistas visuais em extrema evidência. Por meio de closes táticos,

Upstream Color lhe ensina como assisti-lo. Essa pode ser considerada uma das

marcas de Carruth: guiar o público para assistir seus filmes de uma certa maneira. E

ele faz isso de uma forma mais veemente que muitos outros diretores. Na entrevista

64 Ponto de vista (Tradução do pesquisador)

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à organização Film Society of Lincoln Center (FSLC) (2013)65, Carruth explica que se

utilizou de pouca profundidade de campo justamente pelo filme tratar de aspectos tão

naturais, como plantas e solo. Ele queria trazer essas texturas para a obra. Podem

ser traçados paralelos a Boyle (visto no Capítulo 3), que também possui essa

característica, de querer que o público “sinta” a cena enquanto a assiste.

Muitos aspectos da história são comunicados sem diálogo, como se pode

perceber na decupagem. Na entrevista para a revista Interview (2013), Carruth afirma

que para cada emoção que a personagem Kris sentia, ele se utilizava de diferentes

técnicas de câmera. Em seus momentos calmos ou “normais”, planos simples,

comuns e fixos. Nos sentimentos subjetivos, o diretor explica que precisava se utilizar

de toda ferramenta não-verbal que conseguisse. Planos mais criativos e fragmentados

foram usados para tentar expor esses sentimentos.

Na entrevista à FSLC (2013), o diretor afirma que todas as cenas da

cinematografia existiram em storyboard. O storyboard sempre servia como o plano

“A”. Quando os enquadramentos do plano previsto não funcionavam, só restava o

improviso.

A evolução da direção de Carruth fica evidente de um filme para o outro. A

primeira mudança que se nota é a qualidade da imagem. Em Primer, por causa do

equipamento semiprofissional, é possível perceber muito ruído nas imagens,

especialmente à noite. Mas, um dos aspectos consistente em seus dois filmes são os

enquadramentos, precisamente planejados. Quase cada plano poderia funcionar

como uma pintura. Carruth tem a sensibilidade, a paciência, a criatividade e a

preocupação de apresentar suas obras do jeito mais esteticamente atraente possível.

Tudo isso é muito semelhante ao modo, mencionado no Capítulo 3, como Wes

Anderson forja suas cenas, sendo cada detalhe cuidadosamente pensado, embora,

no caso de Carruth, com um pouco menos de simetria. Cenas como “Estorninhos”,

“Passo a passo”, “Descoberta” e “Tudo está bem” demonstram exatamente essa

marca pessoal do diretor.

Na cena “Conexão”, em Upstream Color, nota-se a criatividade do diretor.

Enquanto os personagens reviram a casa, mostra-se, em evidência o próximo item

importante que eles vão, eventualmente, pegar. Carruth dá, de modo visual, pistas do

que vai acontecer na cena e cabe ao público completar os eventos, mesmo que

65 Entrevista concedida a Film Society of Lincoln Center em 06/04/2013 Disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=5cjq_Lb2F2I – Acessado em 02/11/2017

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subconscientemente. Carruth se utiliza de diversos planos e enquadramentos para

contar suas histórias, mas um que predomina nas duas obras analisadas é o plano

detalhe. Em quase todas as cenas de seus dois filmes, o plano detalhe é

predominante, normalmente combinado com uma edição rápida – e por vezes

frenética.

Além disso, todas as cenas contam com um esforço consciente de promover

planos inusitados. O melhor exemplo seria o da cena “Filé ou tacos? ” onde se

posicionou a câmera em cima de um prédio para serem usados míseros segundos a

fim de compor a cena. Ao final de Upstream Color, “Tudo está bem” é possivelmente

a melhor cena, visto que engloba todos os aspectos da direção de Carruth e todos se

complementam perfeitamente. A resolução positiva, com Kris segurando o leitão, a

atuação singela da atriz Amy Seimetz, e a trilha sensível e reconfortante. “Ao mesmo

tempo em que a cena é pacífica, o contexto geral é terrível. Kris não poderá ter filhos

e os seus leitões nunca retribuirão seu amor da mesma forma” (CARRUTH, 2013). A

cena demonstra apenas uma felicidade passageira. Uma paz que não durará por

muito tempo. Isso condiz com uma das marcas do diretor, exemplificada pelo que

Carruth disse à revista Paper (2013): “eu não acredito em finais”.

Como o diretor filmou as cenas de Primer com apenas um take cada para

poupar tempo e dinheiro (similar a como Anderson costuma filmar suas obras, como

foi visto no Capítulo 3), quando havia algum erro (de continuidade, por exemplo), isso

resultava em horas de edição extras para consertar. É importante ressaltar o quão

absurdo ou incrível isso é, para um diretor em seu primeiro filme, fazer todas as cenas

na primeira tentativa e se auto-ensinar edição logo após. O já mencionado no terceiro

capítulo, Ed Wood, era um diretor “profissional” que tinha o costume de filmar suas

cenas apenas uma vez. O resultado eram filmes terrivelmente mal feitos, com erros

de continuidade grotescos. Isso mostra que Carruth tem um talento natural para o

cinema.

Pode-se dizer, de acordo com o segundo capítulo dessa monografia, que a

direção de Carruth é extremamente autoral. Ele, como diretor, tem total controle

criativo em relação a suas obras. Porém, isso se deve ao fato de que ele também é o

roteirista, editor, etc. de seus filmes. Foi visto que a Nouvelle Vague consistia na

proposta de filmes mais pessoais e baratos, não atrelados a grandes estúdios.

Dependendo do ponto de vista, ele também se encaixa em todas as teorias contrárias

a do cinema autoral ou ainda, nenhuma se aplica a ele. Observou-se, por exemplo,

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que a crítica Pauline Kael afirmava que o autor seria o roteirista e não o diretor. No

mesmo Capítulo 2 é dito que o cinema autoral de hoje em dia pode ser considerado

aquele que origina os filmes mais voltados para expressões artísticas, sejam

alternativas ou independentes.

Ainda no Capítulo 2, Astruc (1948) afirma que para um diretor ser considerado

autor, ele precisa ser o roteirista e essa distinção entre as duas áreas não faz o menor

sentido. Carruth, novamente, se encaixa nesta definição de autor, já que escreveu

todos os filmes que dirigiu. No Capítulo 3, Vargas (2014) se utilizou de Brandestein

para afirmar que um filme é um esforço coletivo. No mesmo capítulo, Scorsese (2004)

demonstra sentimentos parecidos ao expressar que o diretor é o membro de uma

equipe e não um poeta solitário. No segundo capítulo, também se viu que Demiray

(2014) acredita que, ao contrário das artes pessoais, como pintura ou literatura, o

cinema é uma arte feita por um time. Demiray ainda questiona qual estilo predomina

em uma obra fílmica: se é o do diretor, o do roteirista, o do produtor, o do editor.

Carruth, apesar de contar com uma pequena equipe, faz seus filmes praticamente

sozinho. Nesse sentido, fica muito próximo de um pintor, que cria sua obra do início

ao fim e o único estilo que predominará, ao final, é o seu próprio.

Ainda no segundo capítulo, Faria e Pereira (2015) comentam sobre a política

dos autores da Nouvelle Vague, que consistia na ideia da subjetividade do diretor na

obra, fazendo com que a “genialidade” viesse exclusivamente dele. As autoras dão o

exemplo de Bergman, Felini e Truffaut, que possuíam trabalhos tão distintos e

controlados do início ao fim, que foram logo considerados autores. As pesquisadoras

frisam que criar e manter um estilo reconhecível se transformou na característica

definitiva e no objetivo para qualquer aspirante a Cinema Autoral. Com isso, não há

dúvidas que Carruth pode ser considerado um autor.

No Capítulo 3, Rabiger (2007) elucida como uma mise-en-scene é importante

para distinguir um cineasta de outro. No mesmo capítulo, Scorsese (2004) afirma que

em uma produção cinematográfica, quanto menos dinheiro, maior é a liberdade.

Carruth, conhecido por seus filmes de baixíssimo orçamento, se utiliza de toda a

liberdade possível para forjar sua mise-en-scene peculiar. Esta poderia ser

considerada mais uma marca pessoal do diretor, embora ela pareça ser provisória,

pois seu próximo filme indica um grande orçamento. Apesar disso, provavelmente, a

liberdade continuará lá.

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O diretor/autor parece se encaixar no que Scorsese (2004) chama de

“iconoclasta”, no Capítulo 3. Scorsese (2004) afirma admirar os diretores, visionários,

desbravadores e renegados, que desafiam abertamente o sistema e expandem as

barreiras da arte. Também no terceiro capítulo, Blanco (2010) salienta que a marca

pessoal é importante, pois uma boa reputação traz bons relacionamentos. Ele ainda

diz que cada pessoa pode ser uma marca. Carruth encontrou muito sucesso em suas

duas obras, isso parece lhe ter rendido boas relações, visto que seu terceiro filme

supostamente conta com um grande orçamento e artistas de renome.

Por trabalhar em praticamente todas as áreas de suas obras, Carruth remonta

aos diretores do passado, como visto no Capítulo 3, onde era mais comum esse tipo

de prática. É impossível deixar de traçar comparativos com Charlie Chaplin, também

comentado no terceiro capítulo como um dos únicos artistas a se equipararem a

Carruth no quesito do controle total sobre suas obras. Chaplin também dirigia,

escrevia, estrelava, editava e compunha a trilha de seus filmes. No mesmo capítulo,

Weissman (2008) questiona de quem é a “psique” que um filme expressa: se é do

diretor, do escritor, etc. Weissman (2008) acredita que a maioria dos filmes não é apta

a uma análise psicanalítica profunda. Mas, este não é o caso de Chaplin, nem de

Carruth. O que condiz com a já mencionada, entrevista à Dazed (2013): quando se

analisa seus filmes encontra-se algo verdadeiramente próprio “por trás”, não é “só” o

pensamento de um grupo.

Um outro aspecto, evidenciado no terceiro capítulo, que diretores autores do

passado como Kurosawa e Kubrick gostavam de fazer para ter controle de seus filmes

era o de manter as rédeas da produção. Tornar-se produtor foi uma das primeiras

atitudes que Carruth tomou ao iniciar sua carreira.

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Pode-se ver um declínio nas áreas de participação do diretor entre as figuras

15 e 16. Carruth se encaixa mais entre os diretores do passado, em especial Chaplin.

Wood protagonizou um de seus filmes e editou outro, mas por serem casos isolados,

o diretor não foi considerado, de fato, um editor ou ator, pelo menos nesta pesquisa.

É o caso de Welles, que editou alguns projetos e curtas, mas não editava seus filmes

principais. De acordo com as figuras 15 e 16, as áreas mais comuns em que os

diretores autores preferem ter controle são a roteirização e a produção, enquanto a

composição de trilha sonora parece ser um dom para poucos diretores. Por exemplo,

apesar de Welles ser músico, ele não tinha o costume de compor para seus filmes.

O diretor/autor também teve cuidado quanto à iluminação de seus filmes,

utilizando-se de um filtro amarelado para Primer, com alto contraste. Esse tipo de

coloração lembra a técnica, mencionada no Capítulo 3, utilizada por Fincher na

maioria de seus filmes. Para Upstream Color, o diretor usou, na maior parte,

iluminação natural, compondo as imagens com tons de azul, um paralelo às orquídeas

do filme. No Capítulo 2, por meio do artigo de Stamato, Staffa e Zeidler (2013)

Figura 15: Comparativo entre diretores autores contemporâneos e Carruth (arte do pesquisador)

Figura 16: Comparativo entre diretores autores do passado e Carruth (arte do pesquisador)

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entende-se, que, a partir da inovação das cores no cinema, a arte fílmica se utilizou

delas para transmitir emoções e sentimentos. Isso também é uma forma de conduzir

o público a assistir o filme de uma certa maneira, o que condiz com a marca pessoal

de Carruth de guiar o público tanto quanto possível. Como viu-se no Capítulo 2, a

figura do diretor introduzida por Griffith é a do narrador invisível, que guia as histórias

ao seu modo. Portanto, pode-se concluir que Carruth e os novos diretores que surgem

são o resultado de toda a evolução do cinema, estudada no segundo capítulo.

Ressalta-se ainda, que Carruth parece querer testar novos padrões e limites -

inclusive pessoais - em cada obra. Ele é um experimentador ousado. Como se viu no

Capítulo 2, foi a linha de cinema experimental que impulsionou essa arte a evoluir.

Carruth foi descoberto no Festival de Sundance, uma premiação que recompensa,

anualmente, a inovação e a experimentação. Como percebe-se, também por meio do

Capítulo 2, o cinema sempre foi experimentação desde seus primórdios. Seus

aparatos tecnológicos também fazem parte do resultado e do processo de

experimentação, desde o cinematógrafo até os filmes feitos com celulares. A arte, em

si, foi e continua sendo um experimento.

A experimentação é uma das maiores marcas de Carruth. E como Martin (2003)

explanou, no final do segundo capítulo, sempre há a ameaça do “imperialismo

hollywoodiano”, onde o dinheiro comanda os filmes e não seus criadores. Martin

(2003) diz também que o cinema estará a salvo desde que haja exploradores de novos

caminhos e experimentadores. Não há exemplo maior, atualmente, do que Shane

Carruth.

4.4.2 Roteiro66

Carruth demonstra uma espécie de “quase egoísmo” por seus roteiros. Em

Primer, ele escreveu uma história com falas e jargões que apenas

engenheiros/cientistas poderiam compreender, pelo menos em um primeiro momento.

66 Ao roteirista cabe bem mais do que a elaboração dos diálogos. Na verdade, essa parte da tarefa acaba até sendo o menor dos problemas. O conceito com que todo roteirista deve lidar é o da visão fundamental da sequência de eventos, e isso inclui não só os diálogos ditos pelos atores como também a atividade física que exercem, o ambiente que os cerca, o contexto dentro do qual a história se desenrola, a iluminação, a música e os efeitos sonoros, os figurinos, além de todo o andamento e ritmo da narrativa. Mas não termina aí o trabalho do roteirista porque, além de todas essas considerações, o roteiro precisa ter clareza suficiente para que o diretor, fotógrafo, técnico de som e todos os outros profissionais criem um filme que se assemelhe às intenções originais do roteirista (HOWARD; MABLEY, 2002, p. 30).

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Claro que isso não acontece em todo o filme, mas o diretor parece não se preocupar

muito com o que o público vai absorver de fato, pois não muda o diálogo para se tornar

mais compreensível. Aos seus olhos, parece que seria um erro facilitar quanto à

linguagem, já que o “diálogo verdadeiro” não se passaria assim.

Na entrevista para o Los Angeles Times (2013), sobre Upstream Color, quando

questionado sobre o público-alvo do filme, Carruth apenas respondeu que para as

pessoas que gostarem. Ele parece não se importar, de fato, com quem vai ver seus

filmes. Está mais interessado em criar uma obra que acredita ser boa e, antes de mais

nada, ele a cria para si e espera que a recepção seja positiva. Carruth acredita em

vender um filme pelo que ele é e não pelo que um distribuidor mais convencional

possa querer que ele seja.

Na questão de roteiro, Upstream Color se difere (e muito) de Primer, sendo

aquele um filme mais íntimo e comovente; emocionalmente direto, enquanto

narrativamente abstrato. Carruth, porém, disse à revista digital Indiewire (2013) que,

apesar de Color ter menos diálogo, sente-se que o diálogo que possui é muito

substancial.

Upstream Color tem uma narrativa quase puramente visual e sonora, onde o

diálogo é minimizado ao máximo. Primer, por outro lado, não tem o que se poderia

chamar de “momentos emocionantes”. O que ele possui é um roteiro denso e bem

pensado. Para a Indiewire (2013), Carruth disse que a parte de Primer que considera

atraente é a lógica do tempo e as pessoas que observam o desenrolar dos eventos.

Muitos críticos chamaram o filme de “incompreensível”, rótulo que Carruth descreveu

como não agradável e espera tê-lo evitado em Upstream Color: “eu não quero este

conceito de que ‘Primer é um quebra cabeças’ ou ‘Color é um quebra cabeças’”

(2013). Como foi citado anteriormente, se fosse por ele, tudo já estaria decidido desde

o roteiro, toda a trilha, todos os takes, tudo!

O diretor tem o hábito de compor a trilha sonora conforme escreve o roteiro,

tanto que quando termina de escrever, já tem a trilha pronta. Sendo assim, pode-se

dizer que essas duas partes estão mais conectadas do que as outras, constituindo-se

em uma das marcas pessoais de Carruth, ou seja, a conectividade ente a narrativa de

uma cena, seu diálogo e a música que a acompanha. Mas, na mesma entrevista para

a Indiewire (2013), o diretor aponta que, às vezes, isso não dá tão certo. Em Upstream

Color, teve que jogar metade da trilha “no lixo”, pois, como ele conta, ao invés de estar

compondo para as experiências subjetivas dos personagens, estava compondo para

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as experiências do público. E só percebeu isso quando estava “bolando” os

enquadramentos.

Está claro que o roteiro é uma das maiores preocupações de Carruth, se não a

maior. Segundo uma entrevista para a revista Interview (2013), o diretor pensa na

narrativa como duas metades: a exploração e o entretenimento minuto a minuto. Ele

afirma que, enquanto a exploração é importante, deve-se ter algo que mantenha o

público prestando atenção, se não o filme terá teses secas e ideias que ninguém vai

querer entender. Na mesma entrevista, Carruth foi questionado sobre a estrutura

narrativa de Upstream Color e o motivo de ser tão interessante. O diretor explica que,

um pouco, é por causa de sua própria estética de apresentar informação. Mas, ele

disse gostar de olhar a história do filme em três partes: uma, é objetiva; uma, tem um

tom mais subjetivo e a última parte é uma confusão de emoções, motivações e

entrelinhas. A linguagem do roteiro tem que fazer jus às três partes. “É cada vez

menos importante falar sobre tudo e cada vez mais importante ficar em silêncio. E se

falarmos, quebraremos o encanto”, afirma Carruth.

Como muito do filme é não-verbal, a maioria das coisas é sugerida e não dita,

de fato. Essa parece ser a principal característica do roteiro de Upstream Color. A

maior parte dos acontecimentos do filme é expressa sem diálogo, em um tipo próprio

de linguagem cinematográfica, onde nunca se utilizam exposição ou explicações

sobre o que está acontecendo.

Para o jornal Telegraph (2013), Carruth admite que a narrativa do filme é

“opaca” e densa, mas acredita que, em uma boa assistida, é possível entendê-la. E

se precisar de mais de uma, ele espera que não seja algo árduo de se fazer. Na

entrevista para a revista Paper (2013), Carruth admite que o único tipo de narrativa

que tem paixão por escrever é o “tipo universal”, ou seja, aquela que tem potencial

para ser importante no futuro. O diretor diz que jamais faria um roteiro sobre a eleição

de Barack Obama, por exemplo, pois isso seria muito temporal. Porém, afirma que

“adoraria” fazer um roteiro sobre como o poder corrompe. Por isso, quanto à estrutura

do roteiro, prefere escrever histórias que envolvam cidades sem nome; histórias que

possam ser sempre reformuladas. Carruth dá o exemplo do conto da lebre e da

tartaruga, algo atemporal que pode ser contado de muitos jeitos. Para ele, a narrativa

precisa ter uma base sólida para permitir-se ser explorada depois.

Em uma entrevista para a FSLC (2013), Carruth afirma que o roteiro minimalista

de Upstream Color resultou dos diálogos complexos de Primer, como uma espécie de

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pedido de desculpas. Ainda na mesma entrevista, Carruth revela que muito pouco de

Color foi improvisado; o roteiro foi seguido “à risca”. A única instância em que ele se

recorda de haver improvisação, por parte do elenco, foi na cena “Estorninhos”. Para

ele, aquele é um tipo de cena em que a improvisação funciona melhor do que aquilo

que possa se escrever em um roteiro. Pode-se refletir que se a colaboração de outros

no processo criativo dá certo, o diretor não tem problemas em aceitar isso, mesmo

que as ideias não tenham partido dele.

Talvez nenhuma cena demonstre melhor a “incompreensibilidade” de Primer

do que “A & B”. O diálogo demonstra a preocupação de Carruth com o realismo e

como o diálogo do filme é rápido e opaco. Já em Upstream Color, pode-se ver um

estilo oposto de narrativa, evidenciada pela cena “Conexão”, onde o roteiro foi apenas

direção de cena. É possível que o aspecto “roteiro” seja o que mais se diferencia de

um filme para o outro. Enquanto em todas as outras áreas podem se traçar

comparativos, na questão da narrativa, os filmes são quase opostos.

A cena “Herói”, de Primer, é repleta de diálogo, sem nenhum momento

silencioso. Já em Upstream Color não é o diálogo que impulsiona a história. Uma das

exceções é a cena “Descoberta”, onde o diálogo foi fundamental para que a história

seguisse em frente. Mesmo assim, logo após servir a seu propósito, acabou-se. Tanto

foi assim que esta é a última cena falada do filme. Ao contrário de Primer, Color pode

ser considerada uma obra “quieta” e abstrata.

No segundo capítulo dessa monografia, Ismail Xavier (2003) discorre sobre

como os filmes, depois de lançados ao mundo, se tornam abertos a interpretações.

Esse é exatamente um dos objetivos de Carruth, que evita ao máximo, responder

perguntas sobre a narrativa de suas obras. Provavelmente, quer que o público pense

por si mesmo.

4.4.3 Edição67

Embora muito de Upstream Color tenha sido editado por Carruth, ele

necessitou da ajuda de David Lowery. Na entrevista para a revista Interview (2013),

67 Numa obra audiovisual, o ritmo de uma cena depende de muitas coisas (roteiro, decupagem, direção e forma de interpretação do ator), mas ele se cristaliza na montagem/edição. O montador, ao retirar ou acrescentar fotogramas/frames a cada início ou fim de plano, está criando, de forma artificial, o ritmo da narrativa (GERBASE, 2003, p. 110).

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Carruth revela que não dormia direito e a produção do filme estava ficando para trás

porque ele não conseguia editar rápido o suficiente. Após finalmente ceder e pedir

ajuda a Lowery, Carruth se surpreendeu porque, segundo ele, o editor entendeu

instintivamente o filme. Ele olhou o que Carruth já tinha editado e montou o resto com

um resultado, de acordo com o diretor, “perfeito”. Lowery chegou ao ponto de adicionar

pequenas ideias à edição que Carruth não tinha sequer imaginado.

A questão de ser um diretor “onipresente” pode ser considerada uma das

“fraquezas” de Carruth, visto que ele mesmo reconhece que o editor trouxe boas ideias

para o filme. Pode-se refletir, portanto, que o diretor perde ideias valiosas de outros

colaboradores por querer trabalhar quase exclusivamente sozinho.

A edição de Carruth é uma marca presente em quase todos os momentos de

ambas as suas obras, a partir da característica de velocidade. Como foi visto no

Capítulo 2, Martin (2003) salienta que, enquanto uma montagem “normal” é

basicamente narrativa, uma montagem muito rápida é, antes de tudo, expressiva. O

ritmo da edição desempenha um papel diretamente psicológico. A montagem de

Carruth é frenética e devido ao favoritismo por planos detalhe, pode se tornar

“estonteante”. Talvez devido ao roteiro mais monótono de Primer, Carruth quis

compensar na edição, o que funciona. Todas as cenas apresentam um corte de

imagens criativo, nunca parecendo aleatório. E, mesmo no filme mais calmo e etéreo

que é Upstream Color, a edição continua rápida. Na entrevista para a revista Dazed

(2013), Carruth afirma que seu desejo é que os filmes se movam rápido e que sejam

atraentes minuto a minuto.

Talvez a melhor relação sobre a velocidade na edição possa ser feita entre as

cenas “Passo a passo”, de Primer, e a cena “Estorninhos”, de Color. As cenas são

parecidas em muitos aspectos. Ambas possuem voice-overs (o que pode-se

considerar também uma marca de Carruth) e montagem rápida que passa por

diversos planos e enquadramentos, quase sem nenhum espaço para respiro. A edição

de Carruth é tão frenética que quando ela finalmente para por mais de alguns

segundos em algum enquadramento, o público sabe que existe motivo. Algo na cena

é importante e merece atenção.

No Capítulo 3, Eisenstein (2002) salienta que a edição é o mais poderoso

instrumento de composição para se contar uma história. Ele afirma que a montagem

é a marca da percepção de um acontecimento através do prisma sensível de um

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artista. Carruth demonstra um esforço visível para manter a edição criativa e que

engaje o público. Mais uma de suas marcas.

4.4.4 Atuação68

Como já foi evidenciado neste capítulo, o principal motivo para Carruth ter se

escolhido como um dos protagonistas em Primer, foi o de que ele interpretaria o papel

sem ser dramático demais. Na entrevista para a revista Dazed (2013), Carruth afirma

que, em alguns momentos de Upstream Color, ponderou a ideia de contratar outro

ator para o seu papel. Ele conta que já recebeu tweets reclamando de sua atuação

em Color, mas isso não o abala, ele acha até engraçado. Revela que atuou como um

protagonista por necessidade e também, simplesmente, porque tinha vontade de

atuar; para manter as coisas “menores” e ter uma pessoa a menos para agendar

horários. Essa preferência por um elenco menor pode ser confirmada em seus filmes,

pelo fato de que os dois contam com uma dupla de protagonistas. Abe e Aaron em

Primer e Kris e Jeff em Upstream Color.

É importante ressaltar que Carruth não se contenta com apenas uma ponta em

seus filmes, como por exemplo, Alfred Hitchcock. Nas duas obras, ele tem o papel de

um dos protagonistas. A performance de Carruth pode ser seca, principalmente em

Primer, mas não é desprovida de emoção. Na cena “Passo a passo”, Carruth

apresenta convincentemente seu personagem como ambicioso, um dos momentos do

filme em que se vê seu lado mais humano e descontraído. Já na cena “A & B”, onde

o diálogo é denso, em nenhum momento a atuação deixa de ser convincente. Talvez

possa-se dizer que a atuação de Carruth é profissional, porém “chata”. No máximo.

Em Upstream Color, um filme mais sensível, a atuação de Carruth é mais

silenciosa, mas não destoa de sua performance em Primer. Ela continua uma atuação

crível, como na cena “Estorninhos”, que equilibra emoções que vão da alegria à

confusão, da curiosidade à raiva. Na cena “Conexão”, Carruth precisa transmitir o

sentimento de desespero apenas pela linguagem corporal, sem o uso de palavras.

68 Considero o elenco parte integrante – e fundamental – do núcleo criativo de um filme. Creio que eles devem – na verdade, precisam – ler o roteiro na íntegra, conhecer todos os personagens e suas relações dramáticas, construir motivações internas para cada ação e ensaiarem muito (...) para que a interpretação seja a mais adequada em cada cena do filme/vídeo como um todo (GERBASE, 2003, p. 10).

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Talvez pelo fato do diretor querer fugir do clichê da dramatização em excesso, isso

possa ter contribuído para que algumas pessoas achem sua atuação “contida”.

De todos os aspectos de seus filmes, a atuação parece ser aquele em que

Carruth coloca menos foco. Com certeza, na atuação o diretor não demonstra o

mesmo vigor de sua cinematografia, por exemplo. Carruth demonstra teimosia,

perfeccionismo e tudo precisa estar categoricamente planejado. Mas, como um bom

profissional ele entende que os improvisos são necessários, mesmo que devam ser

mínimos e passar, claro, pela sua aprovação. Como já foi evidenciado, a única cena

que o diretor se lembra de ter sido improvisada é “Estorninhos”, de Upstream Color.

Cena que, segundo ele, não funcionaria se fosse escrita. O resultado foi um dos

momentos mais emocionantes, naturais e bem executados do filme.

Carruth, como também já mencionado nesse capítulo, filmou todas as cenas

de Primer com apenas um take cada. Provavelmente por conta de seu orçamento

minúsculo e tempo apertado. É impossível saber ao certo, mas isso não parece ter

refletido significativamente na questão da atuação. Porém, com mais takes, é provável

que pudesse ficar ainda melhor.

Mas, igualmente, poderia se dizer que essa falta de foco na atuação se deve

simplesmente ao fato de que seus filmes ainda não necessitaram desse fator.

Levando-se em consideração o elenco de “estrelas” que está sendo planejado para

seu terceiro filme, o diretor parece ter mudado, dando mais foco à atuação. É

importante ressaltar ainda que Carruth demonstra estar se esforçando, cada vez mais,

para refinar sua própria atuação, aparecendo em diversos projetos de outros diretores

como ator. Talvez ele mesmo tenha percebido este como seu “ponto fraco”.

No princípio de sua carreira, ficou nítido que o diretor via a atuação como algo

prático, contratando seus amigos e familiares para atuar consigo, apenas pela

facilidade e por causa do pequeno orçamento. Em Upstream Color, houve um avanço

nessa questão, quando procurou atores profissionais que pudessem trazer ao filme

um novo nível de qualidade nesse quesito. Poderia se dizer que uma de suas marcas

é a produção de obras com menor foco na atuação, mas isso não parece ser correto,

visto que o diretor estava muito limitado financeiramente quanto às obras aqui tidas

como objeto de estudo, e também pelo fato de estar aperfeiçoando essa área, tanto

em relação à própria atuação quanto em relação à contratação de profissionais

experientes e famosos.

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4.4.5 Trilha sonora69

Como já foi evidenciado, Carruth compõe a trilha enquanto escreve o roteiro.

Ele prefere que a trilha represente a experiência subjetiva dos personagens ao invés

de enquadrar a experiência do público. Esses ideais transformaram a música em algo

“menos orquestrado”. Na entrevista para a revista Paper (2013), Carruth expressa que

a trilha de Upstream Color é mais atmosférica e etérea e isso, em sua opinião, a torna

mais emocional. Além disso, a trilha tem um aspecto “sintético”, que deixa a

experiência do filme, como diz o diretor, “atmosférica”. É um contar de histórias sônico,

onde a música toma o lugar do diálogo em quase todos os momentos.

O ritmo do filme é desorientador, mas para o “cinéfilo intrépido”, oferece uma

experiência única: uma viagem paranoica, pontuada por momentos de

transcendência. A trilha sonora e o roteiro parecem ser os aspectos pelos quais

Carruth tem uma verdadeira paixão e onde ele deposita esforço extra. São habilidades

mais antigas que foram cultivadas, visto que o diretor se apaixonou pela escrita ainda

na faculdade e, provavelmente, aprendeu a tocar instrumentos musicais desde a

infância. É algo mais pessoal do que a cinematografia, edição e atuação, que foram

aprendidos, primeiramente, como obstáculos para concretizar o roteiro de Primer.

A trilha de ambos os filmes tem similaridades. São sensíveis, quase tristes.

Notas de piano são as mais pronunciadas (supõe-se ser o instrumento favorito de

Carruth, visto que ele o toca em outros curtas). Em Upstream Color, o foco na música

é maior do que em Primer. São raros os momentos em que não há um instrumental

presente nas cenas. É como se Carruth se utilizasse da trilha como roteiro. Em Primer,

pode-se perceber essa característica na cena “Mais uma noite de quarta”, uma rara

instância do filme em que há pouco diálogo. A cena “Sincronia”, de Color, mostra esta

qualidade ainda mais pronunciada. Contendo quase nenhum diálogo, todo o resto do

sentimento é transmitido pela música, mais segura e distinta.

Carruth, de certa forma, se utiliza de elementos do cinema mudo, como referido

no Capítulo 2, no sentido de que mesmo não havendo diálogo, a música era constante,

como se fosse uma ferramenta utilizada para transmitir emoção. Assim como Chaplin

69 Talvez a única definição suficientemente justa para a função da música no cinema é de que, de uma maneira ou de outra, ela existe para “tocar” as pessoas. “Tocar” pode ser emocionar, arrancar lágrimas, causar tensão, desconforto, incomodar, narrar um acontecimento (...) enfim, de um jeito ou de outro, a boa composição não existe em vão. Ela está lá por algum motivo, e ainda que não a ouçamos, podemos senti-la (BERCHMANS, 2006, p. 20, grifos do autor).

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e Anderson, há muita ênfase na música em suas obras. O foco na trilha sonora é uma

das marcas pessoais de Carruth mais bem pronunciadas em suas obras. É quase

como se a música, em si, se tornasse, também, personagem dos filmes e uma

extensão ressonante de si mesmo.

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Fotograma 26: Primer – Créditos (arte do pesquisador)

Fotograma 27: Upstream Color – Créditos (arte do pesquisador)

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

“O homem é um gênio quando está sonhando.”

Akira Kurosawa

O cinema é uma área muito estudada, mas por ser tão vasta, conta com

aspectos menos conhecidos. Alguns, esquecidos pelo tempo; outros, simplesmente

obscuros. Obscurecidos, muitas vezes, pelas áreas mais atraentes, como os

blockbusters multimilionários.

Quanto à questão norteadora dessa monografia: “de que forma Shane

Carruth, que participa de mais de uma área criativa de seus filmes, expressa sua

marca pessoal em uma obra fílmica, quando se trata do cinema de caráter

autoral? ”, pode-se concluir que foi respondida de modo satisfatório. O Cinema

Autoral é conhecido por originar um tipo de obra com as marcas pessoais do diretor

muito proeminentes e distintas. Foram analisados diversos diretores que se provam

autores no Capítulo 3 e pôde-se compreender como são variados os meios de fazer

uma boa obra fílmica.

Sobre os objetivos estipulados nessa monografia, partiu-se de um, geral:

desvendar de que forma o diretor Shane Carruth, que assume diferentes domínios do

fazer cinematográfico e que produz um Cinema Autoral consegue expressar sua

personalidade, ideias e marcas pessoais em suas obras. Pode-se dizer que ele foi

alcançado, já que se realizou uma longa e minuciosa análise sobre suas duas obras,

as quais puderam ser melhor interpretadas pelo pesquisador, a partir da aplicação da

Análise de Conteúdo.

Quanto aos objetivos específicos, o primeiro deles, o de entender a área da

direção cinematográfica e, de forma mais especifica, os profissionais dessa área que

assumem diferentes competências no fazer fílmico, também se entende como

atingido. Mesmo assim, é praticamente impossível a um indivíduo se inteirar sobre

toda a área da direção, que está em constante mudança e evolução, é ampla demais.

Mas, isso não é algo ruim, não se deve estabelecer como objetivo entender

absolutamente todos os aspectos da direção de cinema, pois no momento que se

pensa ter todo o conhecimento, limita-se e fecha-se a mente para mais aprendizado.

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Cinema é uma arte para constante aperfeiçoamento, não se pode ficar satisfeito.

Nesse estudo, buscou-se, mais humildemente, entender com mais detalhes o que faz

um diretor de cinema especifico e como os profissionais que atuam em diferentes

áreas fílmicas se expressam.

Sobre mapear historicamente, na cinematografia mundial, a presença de

diretores com a habilidade de atuar em diversas frentes, pode-se declarar que o

objetivo foi alcançado. Foram vistos, no Capítulo 2, diretores “da velha guarda” que

eram autores, e no Capítulo 3, viu-se que eles não se limitavam a dirigir. O exemplo

mais marcante foi Charlie Chaplin, com quem Carruth pode traçar um paralelo na linha

do tempo, no quesito de multipresença. É interessante notar as similaridades que os

diretores com estilos muito marcantes e filmes de caráter autoral compartilham. Por

exemplo, a predileção por produzirem e escreverem seus próprios filmes e usar a

mesma equipe nas obras. A maioria dos diretores tem apenas um editor para seus

filmes e costumam escalar um elenco similar ao dos seus projetos passados.

Outro objetivo buscou inteirar-se acerca do diretor escolhido, Shane Carruth,

para análise de suas respectivas obras. Pode-se dizer que foi atingido, pois foi feita

uma grande análise de suas obras, seu estilo como cineasta e foram pesquisadas

diversas informações sobre “a pessoa” de Carruth, já que uma das marcas de todo

diretor é imprimir sua personalidade na obra. Só se conhece, de fato, um diretor

através de seus filmes, não há jeito melhor.

Além disso, um dos objetivos específicos era o de analisar os aspectos

positivos e negativos relacionados à onipresença do diretor. Pode-se considerar que

foi parcialmente atingido. Isso porque Carruth não apresentou reais aspectos

negativos para esse tipo de direção. Não era a intenção do pesquisador apresentar

apenas os pontos positivos de uma direção com controle total, mas ao que tudo indica,

os poucos diretores que conseguem se arriscar a agir assim são profissionais, em sua

maioria, competentes em diversas áreas. Além de Carruth, que foi bem-sucedido

quanto à crítica de suas obras, o único diretor que apresentou esse tipo de

onipresença foi Chaplin que, indiscutivelmente encontrou grande prestigio no universo

cinematográfico.

A pesquisa não evidenciou, de fato, os defeitos que esse tipo de direção pode

trazer. No caso desta monografia, a única questão que pode ser levantada é que

Carruth poderia tornar seus filmes melhores (ainda que um pouco menos autorais) se

contasse com a colaboração de outros membros da equipe cinematográfica, visto que

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o mesmo se impressionou com as contribuições de David Lowery, que o ajudou a

editar Upstream Color; ou com os improvisos propostos por alguns atores em seus

filmes. O pesquisador tentou encontrar críticas negativas a Carruth e suas obras, mas,

em sua grande maioria, todas se limitavam a reclamações rasas e sem real

substância. Além disso, focavam-se em um único aspecto: o de que os filmes de

Carruth são difíceis de entender e muito abstratos. As críticas se apoiam no argumento

de que as obras são filmes independentes, pretensiosos, feitos justamente para não

serem compreendidos. Críticas dessa natureza não ajudaram o estudo, visto que todo

artista ou filme tem sua pequena ou grande legião de críticos.

Em relação a aprender o que define um Cinema Autoral e qual o impacto que

essa abordagem traz ao universo cinematográfico, pode-se considerar como mais um

objetivo alcançado. Foi dada, no Capítulo 2, uma explicação sobre o surgimento do

Cinema Autoral e suas características. Quanto ao impacto dessa abordagem, viu-se

que é deveras polêmica, sendo que muitos se opõem a ela e criaram teorias

divergentes a do Cinema Autoral.

Sobre a relevância dessa monografia, o pesquisador, como amante da Sétima

Arte, viu a chance de se inteirar sobre o que faz um diretor se destacar. Em um mundo

onde centenas de cineastas independentes fracassam todos os dias, Carruth, com

seu pequeno orçamento e grandes sonhos, obteve o que se pode chamar de “relativo

sucesso”. Entendeu-se a importância de uma boa marca pessoal, algo que é único de

cada pessoa, mas que devesse conseguir imprimir da melhor forma em tudo o que se

faz. A construção dessa marca vem das vivências e da bagagem cultural do diretor,

não negligenciando, claro, uma dose de determinação, para experimentar e aprender,

que permitem ao artista inteirar-se sobre os aspectos técnicos da produção fílmica e,

assim, dar vida aos seus projetos. É importante ressaltar também como uma boa

característica para a determinação de uma marca pessoal cada vez mais pronunciada,

a humildade de aprender com os erros e admitir quando se está errado.

Essa pesquisa monográfica é relevante também no sentido de fazer mais

pessoas se familiarizarem com o trabalho de Carruth, visto que não há muitos artigos

sobre o diretor. Este trabalho se aventura em algo novo. Um profissional

surpreendente e que, de alguma forma, consegue se manter recluso e afastado da

“máquina hollywoodiana”, merece mais reconhecimento. É extremamente difícil ser

selecionado para entrar no Festival de Sundance, milhares de curtas são enviados,

poucas dezenas escolhidos. E apenas um ganha o Prêmio do Grande Júri. Carruth

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conseguiu tudo isso com seu primeiro filme, sem ter experiência na área. Um filme

com cenas gravadas em apenas um take cada, com uma edição e cinematografia que

ele mesmo “se” ensinou.

O pesquisador se identifica com Carruth. Sempre admirou autodidatismo, talvez

até o “egoísmo” de fazer algum tipo de trabalho quase inteiramente sozinho e receber

os créditos por isso. Vencer o Festival de Sundance ou criar belas obras com pouco

dinheiro é algo instigante. Afinal, o Festival de Sundance está muito mais próximo dos

desejos da pessoa comum do que a cerimônia do Oscar.

O nome de Shane Carruth aparecia constantemente em buscas relacionadas a

esses tópicos. E embora sempre tenha havido uma admiração pelo trabalho do diretor,

este pesquisador nunca, realmente, apreciou suas obras. Esta monografia mudou

essa visão, pois agora pensa-se que os filmes de Carruth são muito mais do que

apenas belos exemplos técnicos de cinema ou de alguém que decidiu trabalhar

sozinho porque não tinha dinheiro ou porque era autocentrado demais. O pesquisador

passou a vê-los como obras de arte profundas e interessantes.

Em um primeiro momento da pesquisa, pensou-se que Carruth revelaria ser

uma pessoa “chata” ou um esnobe intelectual. Entretanto, todas as vezes que a cortina

foi puxada para revelar o homem por trás dela, o que se encontrou mostrou-se

diferente. Durante a pesquisa, descobriu-se que, em diversos momentos, Carruth foi

tentado a dar algum tipo de resposta comprometedora, fazendo reclamação contra

Hollywood e seu modo capitalista de fazer filmes, mas, em nenhuma das ocasiões, o

diretor “mordeu a isca”. Em uma dessas entrevistas, alguém da plateia foi longe o

suficiente para perguntar a Carruth se ele se achava mais inteligente do que

Hollywood. Considerando a pergunta engraçada, a resposta foi um simples “eu não

me acho mais inteligente do que ninguém” (CARRUTH, 2013)70.

Nesse mesmo sentido, muitos questionamentos surgiam sobre o livro filosófico

Walden (1854, Thoreau), lido pelos personagens de Upstream Color. Nas entrevistas,

perguntava-se a Carruth se tinha tomado por base as teologias e ensinamentos do

livro para criar seu próprio roteiro. No entanto, o diretor admitiu que, na verdade, só

precisava de um livro que estivesse em domínio público e que fosse exaustivo de se

ler. Ao olhar do pesquisador, Carruth é um “cara” normal, porém talentoso. Um ser

humano “legal”, que quer contar histórias ‘legais”. Porém, este pesquisador não pensa

70 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=DtpXniXDLZU&t=130s – Acessado em 01/12/2017

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que o diretor é livre de defeitos e nem concorda com o jeito que o cineasta é

endeusado em algumas entrevistas.

Carruth parece estar em uma jornada pessoal de autoaperfeiçoamento. Ele

testa seus limites constantemente, aprendendo técnicas novas para cada filme. Em

sua obra não terminada “A Topiary”, o diretor faria até os complexos efeitos especiais.

Seus filmes, muito antes de serem feitos para o público, são feitos para ele próprio.

Também é interessante observar o “tipo de humildade” expresso por Carruth

ou como ele ama seus projetos profundamente e, após terminados, os enche de

críticas – mas, se recusa a fazer qualquer modificação para melhorá-los. É importante

ressaltar também que, como produtor de suas obras, descobrir-se que o diretor gosta

de criar todos os materiais adjacentes, como trailer, cartaz, arte do DVD, provando

que os filmes são realmente dele e isso é algo que esse pesquisador faria, se algum

dia produzisse um filme.

O que contribui para a formação das marcas pessoais é a vivência do diretor,

sua bagagem cultural. Carruth era um engenheiro formado em Matemática, não uma

pessoa vinda das artes. Além de ser algo um tanto incomum, isso influencia, de

alguma forma, suas obras.

Por fim, conclui-se que esse trabalho monográfico foi de suma importância para

ter um melhor entendimento da arte cinematográfica e que, nessa arte, a maior parte

de seus aspectos não é “preto no branco”. Não existe uma fórmula exata para fazer

obras de sucesso. O estudo foi relevante, também, para o pesquisador, que tem

admiração pelo trabalho do diretor de cinema, em especial aquele que faz a maior

parte de seus filmes. Como futuro publicitário, será sempre uma busca inteirar-se, o

máximo possível, a respeito das diferentes formas de comunicação e, principalmente,

sua subjetividade e profundidade. O pesquisador também evoluiu durante o processo,

visto que passou a gostar da pesquisa, ganhou mais disciplina e maior contexto a

respeito de um assunto, que para ele, é muito relevante.

Espera-se que esta monografia sirva de inspiração para futuros estudantes de

Comunicação e/ou aspirantes ao cinema. Como Chaplin pronunciou: “o tempo é o

melhor autor, ele sempre escreve o final perfeito”. Mas, como diria Carruth “eu não

acredito em finais”.

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VÍDEOS ND/NF Q&A: “Upstream Color”, Shane Carruth. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5cjq_Lb2F2I Upstream Color Q&A (IFC Center). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DtpXniXDLZU&t=130s Who is Shane Carruth? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ietwEVmfZgA

FILMOGRAFIA Primer. Direção: Shane Carruth (EUA, 2004). Inglourious Basterds. Direção: Quentin Tarantino (EUA/Alemanha, 2009). Inside Llewyn Davis. Direção: Joel Coen e Ethan Coen (EUA/França, 2013). The Curious Case of Benjamin Button. Direção: David Fincher (EUA, 2008). The Darjeeling Limited. Direção: Wes Anderson (EUA, 2007). Trainspotting. Direção: Danny Boyle (Reino Unido, 1996). Upstream Color. Direção: Shane Carruth (EUA, 2013).

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ANEXO

PROJETO – MONOGRAFIA I

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

YAN GONÇALVES DE CASTILHOS

FILMES DE UM HOMEM SÓ:

A ONIPRESENÇA DE SHANE CARRUTH

Projeto de Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado como requisito para aprovação

na disciplina de Monografia I.

Orientador (a): Profa. Dra. Ivana Almeida da

Silva

CAXIAS DO SUL

2017

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 03

1.1 PALAVRAS-CHAVE 06

2 TEMA 07

2.1 DELIMITAÇÃO DO TEMA 07

3 JUSTIFICATIVA 08

4 QUESTÃO NORTEADORA 09

5 OBJETIVOS 10

5.1 OBJETIVO GERAL 10

5.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS 10

6 METODOLOGIA 11

7 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 14

7.1 DIREÇÃO 14

7.2 MARCA PESSOAL 17

7.3 CINEMA AUTORAL 18

7.4 SHANE CARRUTH 19

8 ROTEIRO DOS CAPÍTULOS 21

9 CRONOGRAMA 22

REFERÊNCIAS 23

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1 INTRODUÇÃO

Tudo que é relevante deixa marcas. No cinema, isso não é diferente. Filmes

deixam impressões duradouras no indivíduo, memórias que vão perdurar para

sempre. Um dos maiores responsáveis por esses momentos é o diretor, pois é ele

quem deve dar o tom e a atmosfera do filme e, consequentemente, deixar sua marca

pessoal gravada nas obras.

O fazer fílmico passou por muitas transformações, desde o nickelodeon71 em

1905, até os cinemas IMAX72, de hoje. Depois de todo esse tempo, torna-se

praticamente incontestável dizer que a experiência audiovisual é uma arte. Mais do

que arte, também é uma linguagem.

A bem dizer, o cinema foi uma arte desde suas origens. Isso é evidente na obra de Méliès, para quem o cinema foi o meio, com recursos prodigiosamente ilimitados, de prosseguir suas experiências de ilusionismo e prestidigitação do Teatro Robert-Houdin: existe arte desde que haja criação original (mesmo instintiva) a partir de elementos primários não específicos, e Méliès, enquanto inventor do espetáculo cinematográfico, tem direito ao a título de criador da sétima arte (MARTIN, 1990, p. 15).

Os filmes foram se ajustando, juntamente com seu público, ao constante

aperfeiçoamento da tecnologia, que permitiu aos diretores experimentarem novas

maneiras de fazer. Isso levou seus filmes a patamares que eram, antes, impensáveis.

A tecnologia limitadíssima dos primórdios cinematográficos apresentava muitos

obstáculos para os pretensos diretores. Sem cores, sem som, a montagem que

precisava ser cautelosamente editada a mão; filmes que, muitas vezes, precisavam

ser filmados em ordem. Essas obras cruas, sem muitos enfeites ou efeitos, serviam

para proporcionar um entretenimento barato para o grande público, mas que

certamente foram necessárias para originar o cinema de hoje.

Com a evolução irrefreável da tecnologia, os filmes ganharam mais

possibilidades, montagens mais ousadas e criativas, enquadramentos nunca antes

71 Os Nickelodeons (do Inglês estadunidense: nickel = moeda de 5¢, Grego: Odeion = teatro coberto) constituíram um tipo de primitivas e pequenas salas de cinema do início do século XX. Em locais onde a concorrência fosse maior, era frequente disporem de um piano ou de um órgão, onde se tocava a música que o pianista ou organista julgasse apropriada para cada cena. 72 Imagem Maximum (IMAX) é um formato de filme criado pela empresa canadense IMAX Corporation que tem a capacidade de mostrar imagens muito maiores em tamanho e resolução do que os sistemas convencionais de exibição de filmes.

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vistos, qualidade de vídeo superior, som, cores. Conforme essas mudanças ocorriam,

o cinema foi ficando mais imersivo, ganhou consistência. Hoje, cineastas continuam a

extrapolar o que achamos que já foi explorado. Filmes de super 8mm, câmeras

digitais, programas para editar no conforto de um computador, tecnologias cada vez

mais versáteis, que permitem que muito mais pessoas se aventurem no audiovisual.

Filmes feitos inteiramente por celulares, como é o caso de Tangerine (2015) fazem

refletir que qualquer pessoa, com um mínimo de domínio da tecnologia existente, pode

fazer um filme, basta ter a vontade.

Um filme é feito de várias centenas de fragmentos cuja continuidade lógica e cronológica nem sempre é suficiente para tornar seu encadeamento perfeitamente compreensível ao espectador; ainda mais que, na narração fílmica, a cronologia muitas vezes é desrespeitada e a representação do espaço sempre foi das mais audaciosas (MARTIN, 1990, p. 16).

A edição é, talvez, o principal processo que se transformou para melhor se

aproximar das vidas apressadas que temos hoje. Cortes rápidos, cenas que duram

pouquíssimos frames para condizer com essa era de curta atenção do mundo digital

podem exemplificar as escolhas feitas pelos diretores.

Mesmo assim, ainda existem diretores puristas que mantém um estilo clássico

de cenas mais lentas, mas eles são uma minoria e isso é ainda mais evidente no

cinema americano.

(...) o cinema tornou-se pouco a pouco uma linguagem, ou seja, um meio de conduzir um relato e de veicular ideias: os nomes de Griffith e Eisenstein são os marcos principais dessa evolução, que se fez pela descoberta progressiva de procedimentos de expressão fílmicos cada vez mais elaborados e, sobretudo, pelo aperfeiçoamento do mais específico deles: a montagem (MARTIN, 1990, p. 16).

De acordo com Rabiger (2003), o cinema conquistou seu lugar por ser um meio

de comunicação coletivo, e não individualista. Pode-se entender que um filme é o

resultado do esforço de um time. Time este composto por roteiristas, que

proporcionam a parte vital do filme, a narrativa e as ideias que serão manipuladas na

tela; atores, que darão vida à história e farão a principal conexão com o público, sendo

eles os únicos a serem vistos no transcorrer da obra; produtores, que possibilitam,

antes de mais nada, o próprio fazer do filme, dando o apoio financeiro necessário.

Dentre muitos outros membros do time, há também o diretor. Cabe a ele orientar tudo

e todos, é ele quem dá a palavra final e é o responsável pelo filme como um todo.

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Segundo Eisenstein (ano, p.), a “(...) profissão de um diretor de cinema pode e deve

ser uma profissão tão preciosa e de prestigio; que nenhum homem que aspira a ela

pode desconsiderar qualquer conhecimento que o fará um melhor diretor ou ser

humano”.

Há diretores que quebram um pouco o molde de orientador. Filmmakers que

querem participar ao máximo de seus filmes. Um cinema autoral que não é visto com

muita frequência. Há diversos estilos: diretores que editam seus próprios filmes, como

era o caso de Akira Kurosawa; diretores que escrevem seus roteiros, como os irmãos

Coen; diretores que gostam de aparecer tanto na frente das câmeras quanto de operá-

las, como Clint Eastwood. E há ainda casos mais raros de diretores que ocupam três

e, às vezes, mais posições dentro de seu filme.

Shane Carruth não se limita apenas a sentar na cadeira do diretor, mas

também atua, escreve, edita, produz e compõe a trilha sonora de seus filmes. É uma

combinação perigosa e experimental e, muitas vezes, o diretor que se aventura a ser

tão onipresente em seus filmes tem resultados desagradáveis, como por exemplo, Ed

Wood, notório pelos seus filmes de qualidade mais que duvidosa e por muitos

considerado o pior diretor de todos os tempos.

Entende-se que mesmo o profissional tendo a competência em tantos campos

diferentes de seu filme, ainda vão haver pessoas para auxiliá-lo, sejam eles os

figurinistas, seus colegas atores, ou o próprio cinegrafista. O cinema realmente é uma

arte coletiva, sendo quase impossível e, provavelmente, não recomendável fazer uma

obra audiovisual de modo totalmente “eremítico”, mas, mesmo assim, o caráter

experimental do cinema permanece um traço forte, mesmo depois de todos esses

anos. Rabiger (2003) explica que para se tornar um bom diretor de cinema é preciso

ter uma identidade clara e forte em relação ao mundo ao seu redor e uma

compreensão nítida do que significa dramaturgia.

Um filme que tem seus aspectos chave (direção, atuação, roteiro, conceito)

realizados pela mesma pessoa estabelece uma relação curiosa com a arte de uma

forma mais antiga. Como um pintor e seu pincel, dando vida a sua tela trivial, tornando-

a a mais improvável das belezas; apenas um homem e seu vislumbre de grandeza,

sua obra é sua essência e de mais ninguém, suas sensíveis marcas expostas. Um

diretor e sua câmera, capturando o comum de forma deslumbrante.

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1.1 PALAVRAS CHAVE

Direção. Marca pessoal. Cinema autoral. Shane Carruth.

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2 TEMA

O papel do diretor em uma produção fílmica.

2.1 DELIMITAÇÃO DE TEMA

O cinema autoral do diretor de cinema Shane Carruth.

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3 JUSTIFICATIVA

Nós vivemos em um mundo comunicativo, trocando informações com as

pessoas a nossa volta, expondo nossas ideias, opiniões, para nos fazer entender e

para nos expressar. Mas as pinturas rupestres, gravadas em cavernas de tempos

imemoráveis, provam que o ser humano sempre sentiu a necessidade de ir além da

simples troca de informações; necessidade essa de passar uma sensação, de

capturar um momento seu e compartilhar com os outros. Necessidade de fazer arte,

de ser compreendido. Logo, afirma-se que expressar-se é vital nessa vida, e o

audiovisual é uma das formas que permite a expressão mais completa. Imagens,

sons, música, roteiro, sentimento. Tudo se une para formar a experiência única do

filme.

Como foi mencionado na introdução, o filme vem do esforço conjunto de muitos

profissionais e um dos mais importantes é o diretor. O estudo da direção para um

melhor entendimento sobre o que é um bom diretor complementa a vida de qualquer

comunicador, pois é importante apreender formas de comunicar, ainda mais a partir

de uma tão complexa quanto é o cinema. Desse modo, pode ter um melhor

conhecimento de si próprio e aprender como se comunicar mais claramente.

Um dos principais fatores que nos faz voltar de novo e de novo para o cinema

é a conexão que fazemos com o filme. É quando você se identifica com o que está

assistindo que realmente muda a experiência. O cinema não está preso à realidade,

nele tudo é possível, como Méliès foi o primeiro a perceber. Bernardet explica que no

cinema, fantasia ou não, a realidade se impõe com toda a força.

Mesmo quando se trata de algo que sabemos não ser verdade, como O Mágico de Oz, ou em um filme de ficção científica como 2001 ou Contatos Imediatos do Terceiro Grau, a imagem cinematográfica permite-nos assistir a essas fantasias como se fossem verdadeiras; ela confere realidade a essas fantasias. (BERNARDET, 1980, p. 13).

O diretor que consegue se manifestar de forma tão competente é mesmerizante

por si só, mas há aqueles que se aprofundam mais ainda e se manifestam em mais

de uma área. Shane Carruth é de extrema relevância, um comunicador assombroso

que se difere dos demais por fazer seus filmes praticamente sozinho. Roger Ebert

(2002) disse melhor quando pronunciou que o “(...) cinema é, entre todas as artes,

aquela que tem o maior poder de empatia, e bons filmes farão de nós seres melhores”.

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4 QUESTÃO NORTEADORA

De que forma um diretor expressa sua marca pessoal em uma obra fílmica,

quando tratamos do cinema de caráter autoral? Estudo de caso: Shane Carruth.

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5 OBJETIVOS

5.1 OBJETIVO GERAL

Desvendar de que forma os diretores que assumem diferentes domínios do

fazer cinematográfico e que produzem um cinema autoral (em especial Shane

Carruth) conseguem expressar sua personalidade, suas ideias e suas marcas

pessoais em suas obras.

5.2 OBJETIVOS ESPECIFICOS

- Entender a área da direção cinematográfica e de forma mais específica os

profissionais dessa área que assumem diferentes competências no fazer fílmico;

- Mapear historicamente na cinematografia mundial a presença de diretores

com a habilidade de atuar em várias frentes;

- Inteirar-se acerca do diretor escolhido, Shane Carruth para análise de suas

respectivas obras;

- Analisar os aspectos positivos e negativos relacionados à onipresença do

diretor;

- Aprender o que define um cinema autoral e qual o impacto que essa

abordagem traz ao universo cinematográfico.

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6 METODOLOGIA

O presente trabalho monográfico tem o viés qualitativo, no qual o pesquisador

se utilizou da pesquisa bibliográfica como procedimento metodológico e Análise de

Conteúdo para a decupagem, baseado em Laurence Bardin. E a principal ferramenta

metodológica será o estudo de caso.

6.1 PESQUISA QUALITATIVA

Nesta pesquisa serão analisadas as obras do diretor cinematográfico Shane

Carruth, e de que forma ele consegue expressar suas ideias e marcas pessoais em

seus filmes, participando de todas as etapas de sua criação. Para isso, essa

monografia se utiliza de métodos qualitativos. Para Marconi e Lakatos (2011), a

metodologia qualitativa preocupa-se em analisar e interpretar aspectos mais

profundos, descrevendo a complexidade do comportamento humano, por meio de

detalhes sobre os hábitos, atitudes e tendências de comportamento.

Por conta das obras de Carruth serem produções com caráter subjetivo é

excluída a possibilidade de ser feita uma pesquisa quantitativa, por ser uma forma em

que são usados, em grande maioria, números e estatísticas.

6.1.1 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA

Antes que possam ser esclarecidas quaisquer questões ou alcançar qualquer

objetivo, uma pesquisa bibliográfica aprofundada é necessária. Gil (2008) afirma que

a pesquisa bibliográfica é desenvolvida tendo como base materiais já elaborados,

como livros e artigos científicos, por exemplo. “A principal vantagem da pesquisa

bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de

fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente” (GIL,

2008, p.71).

6.1.2 ESTUDO DE CASO

Também será usado o estudo de caso. Segundo Robert Yin é: “[...] uma

inquirição empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de um contexto

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da vida real, quando a fronteira entre o fenômeno e o contexto não é claramente

evidente e onde múltiplas fontes de evidência são utilizadas (YIN, 2001, p.32). Este

método foi escolhido pela facilidade de dar exemplos práticos a partir das teorias

analisadas na pesquisa qualitativa.

Dentro do estudo de caso há a análise fílmica que segundo Vanoye (2008, p.

15), significa “despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e

denominar materiais que não se percebem isoladamente a olho nu”. Para que isso

posa acontecer, esta análise deve ir muito além do que apenas as imagens do filme,

buscando entender o processo criativo do fazer fílmico e todos os demais processos,

tanto os concretos quanto os subjetivos que englobam sua concepção como um todo.

6.1.3 ANÁLISE DE CONTEÚDO

O segmento de análise de conteúdo contará com três vertentes: pré-análise,

exploração do material e, por fim, análise do material. O principal foco de estudo desse

trabalho monográfico são obras cinematográficas, é preciso compreender não só as

imagens, como também o roteiro, atuação, trilha sonora, edição, direção,

enquadramentos, etc. Isso leva à primeira vertente: pré-análise (coleta do material).

Bardin evidencia que a pré-análise engloba três aspectos: “a escolha dos documentos

a serem submetidos à análise, a formulação das hipóteses e dos objetivos e a

elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação final” (BARDIN, 2011,

p.124). A autora ainda explica que “antes da análise propriamente dita, o material

reunido deve ser preparado e é aconselhável que se prevejam reproduções em

número suficiente. Nesse trabalho serão analisados os filmes Primer (2004) e

Upstream Color (2013).

A segunda vertente é a exploração do material (decupagem). De acordo com

Bardin (2004), é nesse momento que o pesquisador seleciona recortes do material

que será analisado. Ela continua: “esta fase, longa e fastidiosa, consiste

essencialmente de operações de codificação, desconto ou enumeração, em função

de regras previamente formuladas. ” Por isso, todo o material recolhido será dividido

em categorias.

A terceira fase é a análise propriamente dita. Para Bardin (2004), a Análise de

Conteúdo procura conhecer aquilo que está por trás das palavras sobre as quais se

debruça. As conclusões do pesquisador serão tiradas após a decupagem de todas as

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cenas elencadas. Bardin explica que “o analista, tendo à sua disposição resultados

significativos e fiéis, pode então propor inferências e adiantar interpretações a

propósito dos objetivos previstos – ou que digam respeito a descobertas inesperadas”

(BARDIN, 2011, p.31).

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165

7 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

7.1 DIREÇÃO

Dentro da linguagem fílmica há inúmeros processos em ação e todos devem

ter equilíbrio entre si. Quem orienta e controla esses processos é o diretor.

O Diretor é a pessoa que manda no filme, junto com o produtor [...]. Ele é quem vai dar a palavra final nas decisões. O Diretor, além de ser o chefe, também tem a função de dirigir os atores, definir qual tipo de iluminação vai ser utilizado no filme, qual o cenário ele quer, quais as posições das câmeras, qual roupa os personagens irão usar, etc. O Diretor não precisa saber a fundo sobre todas as áreas do cinema, mas ele precisa ter, ao menos, conhecimentos básicos sobre elas. (CASTILHO, 2013, p.24)

Há, porém, diretores que vão muito além do que Castilho elucida, como o

estudo de caso dessa monografia, Shane Carruth, que se mostra hábil em

praticamente todas as áreas do fazer cinematográfico e seu conhecimento vai muito

além do básico.

O livro O olhar e a cena, de Ismail Xavier (2003) é de muita ajuda para melhor

entender o que se passa na cabeça de um diretor e como funciona seu processo

criativo. Xavier, entre outros temas, aborda diretores específicos e esclarece como

esses artistas conseguem de destacar dos demais. Cada diretor possui suas

características e seu método de transmitir a linguagem do cinema.

A obra As teorias dos cineastas, de Jacques Aumont (2002) é de muita utilidade

nessa pesquisa, porque Aumont segue em um sentido diferenciado. Ele acredita na

teoria de quem faz cinema e deixa de lado as grandes arquiteturas teóricas

tradicionais. Não se trata de analisar filmes, mas sim se ater a entrevistas, ensaios

dispersos e alguns livros de diretores que realmente pensaram na sua arte.

No livro Direção de cinema, de Michael Rabiger (2003) o autor demonstra todas

as orientações para quem quer ser um diretor, desde suas formas de trabalho, a

linguagem do cinema e todas as etapas de produção fílmica. A obra também fornece

orientação técnica sobre roteiro, estética e atuação.

O artigo Direção de arte: a imagem cinematográfica e o personagem, de Gilka

Padilha de Vargas (2014) comenta sobre como o trabalho em equipe é importante em

uma produção cinematográfica e como o diretor deve colaborar com diversos

profissionais para alcançar o mesmo objetivo, que é o de concretizar um roteiro lido;

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cada um deles munido de seu arsenal de instrumentos de trabalho, de sua bagagem

cultural, de seu repertório visual. O artigo traz a seguinte fala da premiada diretora de

arte Patrizia Von Brandestein:

[...] convém nunca esquecer que um filme é um empreendimento coletivo. Diretores de arte e diretores de fotografia são como unha e carne. Nossos respectivos trabalhos são completamente interdependentes. As idéias do diretor de arte devem se encaixar com as do diretor de fotografia. Jamais me ocorreria utilizar uma cor em um ambiente sem ter consultado previamente o diretor de fotografia. Durante a filmagem é essencial estar em contato constante com o diretor e com o diretor de fotografia (BRANDESTEIN apud VARGAS, 2002).

O artigo The Technological Evolution of Filmmaking and its Relation to Quality

in Cinema73 de Ryan A. Piccirillo (2011) frisa que não é a tecnologia que define o

diretor e sim, como o diretor se utiliza do que está disponível em sua era para criar

um produto de qualidade. Na maior parte das vezes, a obra do diretor reflete sua

visão sobre o mundo e suas críticas a respeito dos assuntos. A sua bagagem

cultural, suas vivências e até o país onde mora serão os maiores influenciadores da

sua obra cinematográfica.

Para melhor se aprofundar no estudo do cinema será utilizada a obra Lendo

as imagens do cinema de Laurent Jullier e Michel Marie (2007) onde os autores

analisam os filmes com uma lupa para melhor entender o que se passa na tela. O

objetivo principal do livro é decifrar o filme de maneira que se possa ver a obra não

como um todo, mas como uma arte de diversas camadas, cada uma

minuciosamente pensada e orquestrada.

O livro A linguagem cinematográfica, de Marcel Martin (1990) é fundamental, já

que ele evidencia um lado que não é tão debatido: o poder de linguagem do cinema.

O tema discutido pelo autor se aprofunda nos sentimentos do público enquanto está

assistindo um filme, em relação a suas transições, roteiros, enquadramentos e

escolhas de cores e como isso tudo impacta o indivíduo.

O capítulo l do livro O Olhar e a Cena, de Ismail Xavier (2003) é Cinema:

Revelação e Engano. Neste capitulo ele observa que as montagens produzem um

efeito em nosso imaginário que, muitas vezes, acabam nos enganando e criando

significados que só existem na tela. O filme, como qualquer outra obra de arte, após

ser lançado ao mundo, se torna aberto a interpretações. Além ainda, de caracterizar

73 A evolução tecnológica do fazer fílmico e sua relação para a qualidade do cinema – Tradução do aluno.

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a leitura das imagens como produção do ponto de vista do observador, onde,

independente da objetividade da imagem, o resultado da filmagem será a composição

efetuada por ele e não o que diretamente a imagem permite mostrar quando isolada

dos demais elementos fílmicos. As imagens têm um poder imensurável na concepção

do nosso imaginário. Podemos produzir perante a visão do cineasta diversos

significados para cada uma delas e ainda, um novo significado quando observadas

em uma sequência. O cinema nos remete ao engano, porque deduzimos, perante um

movimento de câmera, situações não existentes que criamos no imaginário de acordo

com o que nos é mostrado sem indagar a veracidade dos fatos (XAVIER, 2003).

Quando assistimos a um filme de ficção não nos preocupamos se faz ou não sentido

a junção daqueles fragmentos de imagens, estamos ali para ver e crer no que nos é

mostrado. Esse é o propósito do cinema, segundo Xavier (2003, p. 35), ou seja,

“instaurar um mundo imaginário”.

A obra O cinema e a produção, de Chris Rodrigues (2002) é importante nessa

pesquisa, pois preenche a lacuna de como é produzido um filme. O livro explica os

bastidores do fazer fílmico, com uma linguagem voltada especialmente para a

comunicação social e contém um breve histórico dos movimentos fundamentais do

cinema.

Na obra A Imagem, Aumont (1995, p. 83) reflete sobre a “ligação emocional e

cognitiva do espectador com a imagem”. Segundo ele, “a arte imita a natureza, e essa

imitação gera um sentimento prazeroso”. De acordo com Aumont (2007), o cinema

nada mais é que o espelho do mundo. E assim como as artes plásticas, também foi

influenciado pela era moderna, onde começa a olhar para si mesmo, e, para o autor,

se equivale à literatura.

O livro Teoria contemporânea do cinema, de Fernão Pessoa Ramos (2004) é

relevante nesse estudo por sua análise profunda do cinema. O livro discorre sobre

como o cinema tem sido um modificador de comportamento, assim como um

propagador de valores e apresenta teorias e filosofia presentes em diversas obras.

A obra Pré-cinemas & pós-cinemas, de Arlindo Machado (1997) é valorosa no

sentido que destaca o contraste (e as similaridades) do antigo cinema em relação ao

cinema contemporâneo. Um diálogo no tempo, uma busca esclarecedora sobre o que

fez e o que continua fazendo o cinema, que é uma arte em constante evolução e

mudança, com novos movimentos se reinventando a cada dia.

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7.2 MARCA PESSOAL

De acordo com Neumeier (2009), marca não é apenas o logotipo ou a

propaganda da empresa, mas a percepção intuitiva de um cliente em relação a um

produto, serviço ou a própria empresa. No cinema isso não é diferente. É aquele saber

quase instintivo de que você está assistindo um filme feito por alguém especifico.

Saber se está presenciando um filme de Ingmar Bergman ou um filme de Andrei

Tarkovski. Por que conseguimos discernir tal informação antes dos créditos

aparecerem? Porque os diretores deixam marcas pessoais em seus filmes. Atributos

únicos de cada um, traços de sua personalidade. No livro A forma do filme, de Sergei

Eisenstein (1949) o autor discute em detalhes como a montagem do filme, isto é, sua

edição cria um efeito muito pessoal em cada obra, como diferentes métodos criam

atmosferas distintas.

O artigo O diretor enquanto artista, de Tânia Siqueira Montoro e Michael

Peixoto (2009) foi de muito valor nesse projeto pelo fato que evidencia o diretor como

agente criativo. Ele trata da figura do diretor como um verdadeiro artista e como cada

um pode deixar sua própria marca pessoal em suas obras. Os autores explicam que

o exemplo mais difundido pelos críticos franceses do diretor que conseguiu driblar o

sistema “clássico” do fazer fílmico hollywoodiano foi Orson Welles, que, desde o seu

primeiro filme soube imprimir a sua marca autoral. Aliás, para muitos, “Cidadão Kane”

representa o marco inaugural da passagem do “cinema clássico” para o moderno.

Aumont ainda defende:

Depois do filme de Welles, continuará a fabricação de produtos normatizados, conforme às regras mais ou menos lógicas, mais ou menos universais, elaboradas por Hollywood, mas se saberá que existe outra possibilidade de cinema, que não apenas autoriza a virtuosidade narrativa – misturar os tempos e as vozes -, de como permite reivindicar a responsabilidade plena e inteira do dizer e do dito, em suma, de comportar-se como autor de filmes, seguindo o modelo então confesso do romancista. André Bazin, sempre perceptivo, não se enganou quanto a isso, ao declarar que, com e depois desse filme, 'o cinema é, enfim, igual a literatura'. O igual: não o vassalo, não o equivalente, não uma vaga lembrança, e não, também não, o concorrente. '“Fazer cinema’ é igual a ‘fazer literatura. (2008 p. 32)

A obra Fifty contemporary filmmakers74, de Yvone Tasker (2002) é

imprescindível nessa pesquisa, pois apresenta cinquenta diretores contemporâneos,

74 Cinquenta filmmakers contemporâneos – Tradução do aluno.

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assim como seus métodos e técnicas em detalhes. O livro também dá um destaque

às diretoras, algo que os autores não mencionam muito e ao contraste do estilo de

cada indivíduo, evidenciando também que não existe um método melhor que outro. O

artigo Poética do cinema: sobre complementariedade, direção e método no processo

de criação de Marcelo Moreira Santos (2015) salienta que o fato de o cineasta tomar

as decisões cruciais na realização do filme não tira a co-autoria dos outros agentes

nem o caráter poético de suas funções no que tange à confecção do filme. Seguindo

essa perspectiva, o que se constata é que:

Essas interações que compõem e moldam a realização de um filme configuram-se como sistêmicas, isto é, há um conjunto de agentes semióticos com funções específicas que interagem e se integram na realização da obra. (MORIN, 2008, p. 105)

O artigo A Direção de Arte no Cinema: uma abordagem sistêmica sobre seu

processo de criação de Marcelo Moreira Santos (2016) expande esse assunto sobre

a cooperação entre o diretor cinematográfico e seus colegas de projeto, com ênfase

no diretor de arte e qual seu papel na consolidação do produto final.

7.3 CINEMA AUTORAL

O "Cinema Autoral" ou "Cinema de Autor" é um estilo de produção

cinematográfica que destaca o diretor como principal foco e força criativa na

realização de um filme. O fundamento principal dessa teoria é que o diretor, por ter

uma visão global da produção (áudio e imagens do filme) deve ser considerado mais

o autor da obra do que o roteirista, pois são os enquadramentos de câmera, a

iluminação, a duração da cena e todos os outros elementos decididos pelo diretor que

definirão os significados expressos pelo filme, colocando o roteiro abaixo dessa

hierarquia. Dessa forma, o filme acaba se configurando no diretor, fazendo possível

uma liberdade maior de criação e até mesmo com baixo orçamento. O Cinema

Underground, Independente ou Alternativo são classificações que pertencem ao

Cinema Autoral e que têm basicamente o mesmo significado, preservando

filmes feitos e distribuídos à margem dos esquemas comerciais da indústria

cinematográfica. Os filmes de Carruth se enquadram nessas categorias. Geralmente

filmes de cinema autoral tem uma maior expressão artística, pois respeitam a

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liberdade de seu realizador (neste caso, o diretor), diferente de filmes relacionados a

grandes mercados, que atendem pedidos da produção executiva ou até mesmo de

elementos que evolvem teorias de marketing.

O artigo O Cinema Autoral? A história do Cinema Autoral e a perspectiva de

Barthes e Foucault aplicado ao modelo cinematográfico de Gustavo Txai Torres de

Faria e Stefânia Paula Fernandes Pereira (2015) é de importância, pois discorre sobre

os primórdios da tática, ele remonta as origens do cinema, os autores fazem relação

da influência literária para com o universo fílmico e tenta ainda apontar um autor para

o cinema no geral, concluindo que seriam os franceses.

O livro O que é Cinema de André Bazin (2004) ajuda a entender sobre as

diferentes escolas cinematográficas, desde a italiana e soviética até o western e pin

ups. Bazin foi um dos primeiros a usar a palavra auteur (autor) para distinguir

cineastas cuja obra tem a força de uma afirmação pessoal em termos de estilo e tema,

envolvendo também, no caso, diretores subordinados aos grandes estúdios.

O artigo Authorship in Cinema75 de Basak Goksel Demiray (2014) levanta

questionamentos como qual a relação entre o autor e o público e quem são os

verdadeiros autores do cinema.

A obra Ismos - Para entender o cinema de Ronal Bergan (2011) busca abarcar,

com seus 51 ismos, a diversidade da produção cinematográfica internacional. Nomes

alinhados com o chamado "cinema de autor", como Federico Fellini, Akira Kurosawa

e Glauber Rocha, convivem aqui com produtos típicos do mainstream de Hollywood,

com a politização do cinema soviético, com o experimentalismo das vanguardas

europeias do início do século XX, com a vitalidade dos filmes asiáticos do século XXI.

No artigo A Case Study on Film Authorship: Exploring the Theoretical and

Practical Sides in Film Production76 de David Tregde (2013) o autor traz muitas

referências dos críticos das Cahiers du Cinema, que foram quem deram origem a

teoria do autor no cinema. Andrew Sarris usou essa teoria para categorizar os

diretores no nível de sua autoria artística, solidificando a ideia do diretor como um

único autor de um filme.

7.4 SHANE CARRUTH

75 Autoria no cinema – Tradução do aluno 76 Um estudo de caso da autoria fílmica: explorando os lados teóricos e práticos na produção cinematográfica

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O livro Independent Filmmaking and Digital Convergence: Transmedia and

Beyond77 de Vladan Nikolic (2016) aborda de forma ampla o conceito das constantes

mudanças que o cinema está experienciando, entre elas o cinema experimental e o

cinema independente. O livro trata da convergência digital e o que isso significa para

o futuro dos filmes. O autor faz diversos ganchos a Shane Carruth e como o diretor

multifuncional, sem quase nenhuma verba, conseguiu driblar as dificuldades e se

destacar no ramo.

O artigo An Article on Shane Carruth de Dan Salitt (2004) reflete sobre o estilo

de direção do artista, com foco em sua primeira obra: Primer. Novamente o baixo

orçamento da produção ganha destaque, frisando que o filme ganhou o

disputadíssimo prêmio do grande júri do festival de cinema de Sundance. Não há

dúvidas que seus trabalhos possuem diversas facetas e nas palavras do próprio

Carruth: “Eu acredito que estou tentando algo novo em termos de linguagem

cinematográfica. ”

77 O fazer fílmico independente e a convergência digital: transmídia e além – Tradução do aluno.

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8 ROTEIRO DOS CAPÍTULOS

CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO

1.1 METODOLOGIA

CAPÍTULO 2 – CINEMA

2.1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E LINGUAGEM

2.2 O CINEMA AUTORAL: SURGIMENTO E CARACTERÍSTICAS

CAPÍTULO 3 – O DIRETOR DE CINEMA

3.1 OS PROCESSOS CRIATIVOS E AS MARCAS FÍLMICAS

3.2 O DIRETOR-AUTOR IMPRIME A MARCA PESSOAL

CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DE CONTEÚDO

4.1 SHANE CARRUTH - O DIRETOR ONIPRESENTE

4.2 PRIMER

4.3 UPSTREAM COLOR

CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

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173

9 CRONOGRAMA

Atividade Julho Agosto Setembro Outubro Novembro Dezembro

Estudos

Bibliográficos

x x

Redação da

Introdução e

do capítulo 2

x x

Redação do

capítulo 3

x

Redação do

capítulo 4

x

Redação da

Conclusão

x

Revisão,

formatação e

encadernação

x x

Defesa da

Monografia

x

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174

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São Paulo, 2007.

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GOMES DE MATTOS, Antônio Carlos. Do Cinetoscópio ao Cinema Digital.

ROCCO, 2006.

MACIEL, Luiz Carlos. O Poder do Clímax. Record, 2003.

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BERNARDET, Jean-Claude. O Que é Cinema. Editora Brasiliense, 2004.

RODRIGUES, Chris. O Cinema e a Produção. DP&A Editora, 2002.

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TXAI TORRES DE FARIA, Gustavo; FERNANDES PEREIRA, Stefânia Paula. O

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Foucault aplicado ao modelo cinematográfico. 2015. UFRGS, 2015. Disponível

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do-cinema-autoral-e-a-perspectiva-de-barthes-e-foucault-aplicado-ao-modelo-

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Acesso em: 10 maio 2017.