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1 CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS DEPARTAMENTO DE GEOCIÊNCIAS Thiago Guarido O “REDESCOBRIMENTO” DO SUPERAGÜI LONDRINA 2005

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CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS DEPARTAMENTO DE GEOCIÊNCIAS

Thiago Guarido

O “REDESCOBRIMENTO” DO SUPERAGÜI

LONDRINA 2005

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THIAGO GUARIDO

O “REDESCOBRIMENTO” DO SUPERAGÜI

Monografia apresentada ao Dep. de Geociências da Universidade Estadual de Londrina, para a obtenção do título de Bacharel em Geografia.

Orientadora: Profª Maria del Carmen M. H. Calvente

LONDRINA 2005

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THIAGO GUARIDO

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________

Profª Maria del Carmen M. H. Calvente orientadora

_____________________________________

Profª Rosely Maria de Lima Universidade Estadual de Londrina

__________________________________

Profª Yoshiya Nakagawara Ferreira Universidade Estadual de Londrina

LONDRINA - PR, 15 DE DEZEMBRO DE 2005

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Ao Universo, na infinidade de suas múltiplas dimensões.

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AGRADECIMENTOS

À minha família, que sempre me apoiou em todos os passos de minha vida. À minha namorada, Cecilia, que esteve presente no trabalho de campo, e em todas as etapas da construção deste trabalho. Aos meus amigos, que ajudaram a construir minha personalidade. Aos moradores do Superagüi, em especial à Dona Auzira, ao Seu Ciro, ao Seu Laurentino e ao Seu Alcides, com quem tanto simpatizei nas minhas estadas na ilha. À minha orientadora e aos demais professores e funcionários da UEL. A Deus.

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GUARIDO, Thiago. O “redescobrimento” do Superagüi. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade Estadual de Londrina.

RESUMO

A ilha do Superagüi-PR está situada em uma das poucas áreas no Brasil que ainda abrigam a Mata Atlântica em seu estado primitivo. Por isso, essa ilha passou a ser parte do “Parque Nacional do Superagüi”, pertencente a uma outra unidade de conservação, a “Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba”. A história da sua colonização data do século XVI, quando europeus adentraram no até então território dos indígenas. No século XIX iniciou-se no Superagüi uma colônia essencialmente suíça. A partir do declínio dessa colônia, nas primeiras décadas do século XX, Superagüi se tornou uma pacata comunidade de pescadores, culturalmente vinculada ao mar, onde o modo de vida dos moradores era ditado pelos fenômenos naturais. Contudo, essa população está modificando seus modos de vida para melhor abrigar os turistas, que estão “redescobrindo” o Superagüi. Com o crescimento do turismo na ilha, as comunidades conseguem auferir melhores rendimentos, gerando preocupação por parte do Parque Nacional do Superagüi no que diz respeito à conservação da natureza. A cultura popular do Superagüi está sujeita a mudanças, pois o modo de vida da população já sofreu alterações significativas com o advento do turismo na ilha. Cercados pelo Parque Nacional do Superagüi, os moradores locais sofrem com a ausência de saneamento básico e a precária infra-estrutura para desenvolver as atividades turísticas.

Palavras-chave: Ilha do Superagüi; Vila da Barra do Superagüi; Parque Nacional do Superagüi; Turismo; Cultura; Modo de Vida.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APA – Área de Proteção Ambiental

CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente

COPEL - Companhia Paranaense de Energia

IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas

ONG – Organização não governamental

PEAD – Polietileno de alta densidade

PEBD – Polietileno de baixa densidade

PET – Polietileno tereftalato

PNS – Parque Nacional do Superagüi

SPVS - Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental

SNUC - Sistema Nacional de Unidades de Conservação

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01 - Localização do Parque Nacional do Superagüi ......................................15

Figura 02 - Localização das unidades de conservação do Superagüi e região ........19

Figuras 03 e 04 - Bromélias na ilha do Superagüi....................................................20

Figura 05 - Mico-leão-da-cara-preta (Leontopithecus caissara) ...............................21

Figura 06 - Papagaio-de-cara-roxa, ou “chauá” (Amazona brasiliensis) ...................22

Figura 07 - O Superagüi retratado por W. Michaud..................................................25

Figura 08 - Construções à beira-mar em Paranaguá................................................28

Figura 09 - Porto de Paranaguá ...............................................................................29

Figura 10 - Limpeza do óleo na Baía de Paranaguá ................................................30

Figura 11 - Um dos diversos navios que transitam na Baia de Paranaguá ..............32

Figura 12 - Vista parcial da Vila da Barra do Superagüi ...........................................33

Figura 13 - Chegada de turistas à Barra do Superagüi ............................................34

Figura 14 - Pousada com boa infra-estrutura para o turismo ...................................39

Figura 15 - Propriedade adaptada para camping .....................................................40

Figura 16 - D. Auzira em sua casa conversa com uma turista .................................41

Figura 17 - “Os mascarados” em uma noite de carnaval..........................................42

Figura 18 - Apresentação de “fandango” no Bar Akdov............................................43

Figuras 19 e 20 - Lixo abandonado em quintal de um camping ...............................45

Figura 21 - Casa de uma família nativa....................................................................57

Figura 22 - Barcos “estacionados” na praia da Vila da Barra do Superagüi .............60

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Figura 23 - “Para-pente” amarrado a uma pequena lancha conduz um turista em

momento de lazer.....................................................................................................63

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .....................................................................................................11

1. A ILHA DO SUPERAGÜI..................................................................................14

1.1 UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E MATA ATLÂNTICA ...............................16

1.2 BREVE HISTÓRICO DA COLONIZAÇÃO DO SUPERAGÜI .........................22

1.3 RUMO À VILA DA BARRA DO SUPERAGÜI.................................................27

2. TURISMO: VILÃO OU HERÓI?........................................................................34

3. CULTURA E MODO DE VIDA .........................................................................51

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................65

BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................69

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INTRODUÇÃO

Há uma versão para a origem do nome “Superagüi” que diz que uma

índia, grávida, chamada Peragüi, veio de Cananéia-SP, com sua tribo, para descobrir

novas terras. Na praia deserta, foi abandonada pela tribo, quando começou a sentir as

contrações do parto. Mais tarde foi socorrida por um pescador, mas infelizmente seu

filho não sobreviveu. Agradecida pela ajuda do pescador, a índia jogou seu filho ao mar

e o abençoou, dizendo que seria um mar rico, e que nele nunca faltariam peixes. Ela

então foi ao mar, e quando mergulhou se transformou numa sereia. Superagüi quer

dizer: “Rainha dos Peixes” 1.

Em folders, páginas de internet e na bibliografia consultada, constatou-

se diferentes maneiras de se escrever “Superagüi”. Alguns autores não utilizam o trema

(¨) para acentuar o último “u” da palavra; outros escrevem: ”em Superagüi” ou “de

Superagüi”. O Parque Nacional que leva o nome da ilha denomina-se “Parque Nacional

do Superagüi”, portanto, adotou-se neste trabalho o mesmo princípio gramatical.

A porta de entrada dos colonizadores portugueses foi o litoral brasileiro.

Da mesma forma, o litoral paranaense, mais precisamente a ex-península do

Superagüi, foi aonde se iniciou o povoamento pós-indígena, em direção ao interior do

Paraná. Originalmente, o Superagüi era uma península, até a abertura do “Canal do

Varadouro”, em 1953, quando se transformou em uma ilha.

Relatos do explorador alemão Hans Staden, que esteve no Superagüi

no ano de 1549, confirmam a presença de portugueses vivendo em meio aos indígenas

1 A versão sobre a origem do nome “Superagüi” foi extraída da resposta, enviada por e-mail, da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), sobre tal questionamento.

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da região. Em 1852, o Superagüi tornou-se uma colônia particular, depois da chegada

de famílias provenientes quase que exclusivamente da Suíça (BOUTIN, 1983). Esses

imigrantes, juntamente com alguns poucos “brasileiros” que lá residiam, enraizaram

seus modos de vida nas atividades pesqueiras, agrícolas e extrativistas. Devido a uma

vasta gama de condicionantes; relatados no primeiro capítulo deste trabalho; que

impossibilitaram o desenvolvimento da colônia, Superagüi obteve uma notável redução

da população no início do século XX, tornando-se uma modesta comunidade de

pescadores.

O título O “Redescobrimento” do Superagüi faz alusão ao atual

crescimento da demanda de turistas para a ilha. Ao contrário de uma de suas ilhas

vizinhas, a Ilha do Mel, a ilha do Superagüi não foi um pólo turístico do litoral

paranaense, mantendo-se quase desapercebida pelos turistas. Em 1989, foi criado o

Parque Nacional do Superagüi (PNS), com o intuito de conservar o ecossistema da

região. Porém, o fato desse lugar ter se tornado uma unidade de conservação passou a

atrair a atenção de muita gente que se interessa pelo chamado “ecoturismo”.

Em 1998, a Companhia Paranaense de Energia (COPEL) concluiu a

instalação de cabos subterrâneos condutores de energia elétrica à Vila da Barra do

Superagüi, situada na parte meridional da ilha, possibilitando melhores condições às

atividades turísticas e provocando um aceleramento na “evolução” do “modo de vida”

dos moradores locais. Mas o intuito do PNS é garantir a conservação dos recursos

naturais do Superagüi, o que de certa forma vai contra a idéia de desenvolver o turismo

na região, visto como causador de impactos negativos ao meio natural.

Esse antagonismo envolvendo desenvolvimento e conservação será

analisado no decorrer do trabalho. No primeiro capítulo, há a apresentação da ilha do

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Superagüi, através da localização, das unidades de conservação envolvidas, da

vegetação típica e dos processos históricos de colonização. Ainda neste capítulo, há

um relato da viagem de Paranaguá-PR à Vila da Barra do Superagüi, no qual se optou

por narrá-la na primeira pessoa do singular, ou seja, basicamente descritiva e

carregada pela emoção vivenciada pelo autor.

Dois trabalhos de campo foram realizados para a efetivação desta

pesquisa. Na realidade, o primeiro, em fevereiro de 2004, serviu puramente para

reconhecer e observar o território que um ano depois seria analisado empiricamente,

com o resultado sintetizado neste trabalho. O objetivo primordial, nas idas ao campo, foi

perceber as múltiplas relações dos nativos do Superagüi entre eles e com os turistas.

Além das observações pessoais, foram realizadas entrevistas com moradores locais,

funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

Renováveis (IBAMA) e com o responsável pela “limpeza” do óleo derramado na baía de

Paranaguá, que atingiu a ilha do Superagüi, após um acidente de um navio em

novembro de 2004.

No segundo capítulo, discute-se os impactos negativos e positivos que

as atividades turísticas vêm proporcionando às comunidades do Superagüi, levando em

consideração a infraestrutura apresentada nessa ilha. Já no terceiro, e último capítulo,

analisou-se alguns aspectos da cultura e do modo de vida dos nativos, embasado em

conceitos de diferentes autores da Geografia Humana.

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1. A ILHA DO SUPERAGÜI

A ilha do Superagüi está situada no litoral norte do Paraná e pertence

ao município de Guaraqueçaba. Ligado anteriormente ao continente, o Superagüi

deixou de ser uma península para se tornar uma ilha artificial após a abertura do Canal

do Varadouro em 1953 (IBAMA, 2005), com o propósito de facilitar a navegação. Em

1970 a Divisão do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Paraná decretou a ilha do

Superagüi um Patrimônio Natural e Histórico. Esse processo foi contestado pela

Companhia Agropastoril Litorânea do Paraná em 1984, com intenção de tomar posse

das ilhas do Superagüi e das Peças para nelas desenvolver a criação de búfalos e fazer

delas um pólo turístico.

Para garantir a preservação do ecossistema na qual o Superagüi está

incluído, foi criado o Parque Nacional do Superagüi através do Decreto n° 97.688 de

25/04/1989 (IBAMA, 2005), que abrangia boa parte da área da ilha que deu nome ao

Parque, além da Ilha das Peças. Em 1991, essa região foi incluída na Reserva da

Biosfera Vale do Ribeira - Serra da Graciosa. Ao ser ampliado, em 1997, o PNS passou

a abranger também uma parte do continente, denominada Vale do Rio dos Patos, e as

ilhas do Pinheiro e Pinheirinho, aumentando a área da reserva de 21 mil para 30 mil

hectares (Figura 01). Em 1998, o PNS foi intitulado pela Organização das Nações

Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), um Sítio do Patrimônio

Natural da Humanidade.

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Figura 01 : Localização do Parque Nacional do Superagüi.

Fonte: SPVS, 2005 (adaptado).

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1.1 UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E MATA ATLÂNTICA

Desde o início da colonização brasileira, a Mata Atlântica têm sido

impiedosamente dizimada, vítima de sua posição geográfica ao longo de boa parte do

litoral do Brasil, ou seja, a “porta de entrada” de nossos colonizadores, os primeiros

navegadores que aqui desembarcaram em abril de 1500. “Hoje, cerca de 70% da

população brasileira vive na área antes recoberta pela Mata Atlântica” (Morell, 2004, p.

41); inclusive nas duas maiores cidades do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro.

Mesmo estendendo-se por menos de 7% de sua área original de 1,4 milhão de

quilômetros quadrados, a Mata Atlântica ainda abriga grande diversidade de

vida. Um estudo registrou mais de 450 espécies de árvores – número maior do

que em toda a Alemanha – em apenas 1 hectare (MORELL, 2004, p. 41).

Em contraposição à destruição da natureza efetuada por diferentes

civilizações em suas trajetórias, o mundo começou a perceber a necessidade de

conservar certas áreas. O século XIX foi o marco das criações de áreas naturais

protegidas, mas, no Brasil, somente em 1937 foi criado o primeiro Parque Nacional, o

Parque Nacional do Itatiaia, no estado do Rio de Janeiro (FISCHER, 2004). No final da

década de 1970, a expressão áreas protegidas, por ser muito abrangente, passou a ser

unidades de conservação. Em 18 de julho de 2000, através da Lei Federal N.º 9.985,

instituiu-se o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que definiu

Unidade de Conservação como sendo um:

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[...] espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas

jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído

pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob

regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de

proteção (BRASIL, 2002, p. 9).

Porém, atualmente existem áreas no Brasil que se encontram tão

ameaçadas que necessitam de um cuidado especial, ou seja, uma proteção integral.

Por esse e outros interesses, as Unidades de Conservação foram divididas em

“Unidades de Proteção Integral” e “Unidades de Uso Sustentável”. As Unidades de

Proteção Integral têm por essência o objetivo de preservar a natureza, sem envolver

consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais. Em compensação, o intuito

básico das Unidades de Uso Sustentável é compatibilizar a conservação da natureza

com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais. A expressão uso

sustentável é definida pelo SNUC da seguinte forma:

[...] exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos

ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade

e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e

economicamente viável (BRASIL, 2002, p. 10).

No caso do Superagüi, essas duas categorias de manejo estão

presentes, uma de uso sustentável - Áreas de Proteção Ambiental (APA) - e outra de

uso indireto - Parque Nacional. A ilha do Superagüi, com exceção da Vila da Barra do

Superagüi, pertence ao Parque Nacional do Superagüi (Figura 02), que por sua vez

está contido na Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba, “[...] a maior e mais

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representativa porção de Floresta Tropical Atlântica, em seu estado primitivo, de toda a

costa brasileira” (IPARDES, 2001, p. 3). Segundo o IBAMA (2005) o PNS faz parte do

“complexo estuarino lagunar”, conhecido por “lagamar”, integrado por Cananéia-SP,

Iguape-SP e Paranaguá-PR, um dos cinco ecossistemas costeiros mais notáveis do

globo terrestre. A vegetação do PNS, situado no domínio da Floresta Atlântica,

apresenta, segundo o IBAMA (2005, s/p):

“[...] Formações Pioneiras de Influência Marinha (vegetação de praias, dunas e

restinga); Formações Pioneiras de Influência Flúvio-Marinha (manguezais);

Floresta Ombrófila Densa de Terras Baixas (que ocorre nas planícies, até 50 m

a.n.m.) 2 e Floresta Ombrófila Densa Sub-Montana (que ocorre entre 50 a 500

m a.n.m.)”.

Ombrófila quer dizer afinidade com a umidade (IBAMA, 2005), o que

permite a presença de orquídeas e bromélias (Figuras 03 e 04) em todo a área do PNS.

Mas a biodiversidade desse ecossistema está ameaçada, com destaque para as duas

espécies em extinção que se tornaram símbolos da fauna do Superagüi, o “mico-leão-

da-cara-preta” (Leontopithecus caissara) e o “papagaio-de-cara-roxa”, ou “chauá”

(Amazona brasiliensis).

2 Acima do nível do mar (a. n. m.).

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Figura 02: Localização das unidades de conservação do Superagüi e região.

Fonte: SPVS, 2005 (adaptado).

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Figuras 03 e 04: Bromélias na ilha do Superagüi – Guarido, 2005.

O Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) desenvolve no Superagüi o

“Programa para a Conservação do Mico-leão-da-cara-preta”, iniciado em 1995. Estima-

se que existam apenas 400 indivíduos da espécie na natureza, estando, portanto, entre

as 25 espécies de primatas mais ameaçadas do mundo (IPÊ, 2005). Esses pequenos

primatas (Figura 05) estão distribuídos numa estreita faixa litorânea que inclui a ilha do

Superagüi e, na parte continental, a região do vale do Rio dos Patos (PR) e planície do

Ariri (SP), atingindo cerca de 300 quilômetros quadrados de extensão. Paralelamente a

esse projeto de pesquisa, o IPÊ vem implementando, junto às comunidades do entorno

do Superagüi, o “Programa de Educação Ambiental e Envolvimento Comunitário”, que

visa engajar essa população, participativamente, na conservação da natureza da

região.

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Figura 05: Mico-leão-da-cara-preta (Leontopithecus caissara).

Fonte: IPÊ, 2005.

Em contrapartida à captura clandestina dos frágeis filhotes dos

papagaios-de-cara-roxa (Figura 06) por contrabandistas, inclusive índios, para o

comércio ilegal, a Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental

(SPVS) desenvolve, desde 1998, o “Projeto de Conservação do Papagaio-de-cara-roxa”

no litoral paranaense. Essas aves, assim como o mico-leão-da-cara-preta, são

endêmicas da região, ou seja, somente são encontradas em um único lugar no mundo.

Sua área de abrangência vai do litoral sul de São Paulo até o extremo norte do litoral

catarinense, porém é no litoral norte do Paraná que vivem em maior número. Dos 6,5

mil indivíduos na natureza, cerca de 4,9 mil se encontram nessa região (SPVS, 2005).

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Figura 06: Papagaio-de-cara-roxa, ou “chauá” (Amazona brasiliensis).

Fonte: SPVS, 2005.

Percebe-se, portanto, a importância das unidades de conservação da

Mata Atlântica na região do Superagüi. Porém a criação do PNS se deu numa área já

habitada, gerando conflitos entre as comunidades do Superagüi, visto que o PNS

passou a ser “dono” de quase todo o território dos antigos moradores, com regras e

proibições que afetam seu “modo de vida”. No decorrer do segundo e terceiro capítulo

deste trabalho serão abordados alguns “conflitos” entre o PNS e as comunidades da

ilha, especialmente a da Vila da Barra do Superagüi, o foco central desta pesquisa.

1.2 BREVE HISTÓRICO DA COLONIZAÇÃO DO SUPERAGÜI

A região peninsular do Superagüi foi aonde se iniciou o povoamento do

que seria mais tarde o estado do Paraná. Boutin (1983) aponta que os primeiros relatos

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sobre esse território são do explorador alemão Hans Staden, que em 1549, após uma

violenta tempestade, arribou na península do Superagüi com o navio espanhol no qual

viajava, deparando-se com portugueses que conviviam com índios tupiniquim.

Na área de influência de Superagüi ocorreram quatro fases no seu

desenvolvimento: a primeira luso-indígena; a segunda – com o

estabelecimento de fazenda agro-pecuária dos jesuítas; a terceira, com a

colônia suíça de 1852 e a quarta com a transformação em simples e modesta

colônia de pesca, onde apenas alguns poucos descendentes da colônia suíça,

bastante caldeados com nacionais, formam a população local (BOUTIN, 1983,

p. 2).

Os “descobridores” do Superagüi, traficantes de índios, migrantes do

litoral paulista, degredados ou egressos da civilização, foram gradativamente se

adaptando ao meio físico e aos costumes dos primeiros povoadores do litoral

paranaense, os indígenas. Logo no início do século XVIII, os jesuítas já possuíam seus

sítios de produção agropecuária na península do Superagüi. No início do segundo

reinado, em 1840, a imigração européia já era notável, e fundavam-se colônias em todo

o sul do Brasil (PILETTI, 1996). Em 1852, foi fundada a colônia do Superagüi, antes

mesmo da emancipação do Paraná, em 1853, quando ainda pertencia à Província de

São Paulo.

A 14 de janeiro de 1852 o então cônsul suíço em São Paulo, Charles Perret

Gentil, naturalizado brasileiro, adquiriu, juntamente com o vice-cônsul Arthur

Guigner (com o qual formou uma sociedade colonizadora) 35 hectares de terra

na região de Guaraqueçaba (BOUTIN, 1983, p. 4).

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Perret Gentil adquiriu essas terras de um inglês chamado David

Sevenson e de sua mulher, e o documento foi reconhecido no Consulado Geral da

Suíça, no Rio de Janeiro. Os 35 mil hectares foram divididos em três partes; uma

abrangia uma porção da Serra do Mar; a segunda compreendia toda a península do

Superagüi, onde se instalou o núcleo ou a sede da colônia; e a terceira era a Ilha das

Peças. Obtida a devida autorização imperial, começaram a chegar os imigrantes.

Segundo Boutin (1983), de 13 famílias existentes em 1854, Superagüi

passou a ter 90 em 1860, totalizando 420 pessoas. Em 1870, já possuía 150 casas, das

quais 140 eram de estrangeiros. Esse surto de progresso econômico nos primeiros

tempos da colônia apoiava-se, além do esforço e da tenacidade dos primeiros

imigrantes, na fertilidade do solo para o cultivo de gêneros alimentícios diversos, na

pesca e na extração de madeira. Entretanto, a colônia caiu em esmorecimento a partir

da morte de seu diretor Perret Gentil, em 1875. A razão da decadência da colônia

deveu-se, sobretudo, a fatores como o não recebimento de subvenção do governo, por

se tratar de uma colônia particular; a falta de capitais; as dificuldades de transporte; o

êxodo de muitas famílias; e a ausência de um grande acervo de técnicas agrícolas e

industriais. No início do século XX a população diminuiu sensivelmente para apenas

125 pessoas, indicadas no censo de 1920. A colônia do Superagüi, ao contrário de

outras colônias de imigrantes, não progrediu a ponto de se tornar uma elite emergente,

participativa no desenvolvimento econômico, político e cultural da nação.

Dentre os primeiros imigrantes suíços que chegaram ao Superagüi, um

merece destaque: William Michaud, o “pintor do Superagüi”. Em 1849, aos vinte anos,

Michaud deixou o conforto da casa de sua família em Vevey, na Suíça, para vir ao

Brasil e nunca mais retornar (SCHERER, 1998). Após uma breve estada no Rio de

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Janeiro, o jovem Michaud se instalou definitivamente no Superagüi entre 1852 e 1854.

Lá se casou com uma nativa com quem teve nove filhos, e construiu sua ampla casa de

pedras ao pé do morro Barbado, sobre o qual plantou 1.600 videiras para fabricar vinho,

denominado por ele Petit Bordeaux (BOUTIN, 1983).

No Superagüi, Michaud foi professor e também juiz de paz local, mas

foi graças a sua produção artística que ele se destacou na região, retratando a

paisagem bucólica do Superagüi (Figura 07) em belíssimas pinturas em aquarelas. Sem

nunca ter freqüentado nenhuma escola de arte na Suíça, aperfeiçoou suas técnicas de

pintura como autodidata (SCHERER, 1998).

Figura 07: O Superagüi retratado por W. Michaud.

Fonte: Sherer, 1998.

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A partir da visita ao Superagüi do presidente do Paraná, Visconde de

Taunay, em 1885, Michaud aumentou sua produção artística. Taunay passou a lhe

enviar, regularmente, cartas, jornais, aquarelas, pincéis etc. Os poucos quadros que

hoje permanecem no Brasil foram os que Michaud deu de presente a Taunay. A grande

maioria de suas obras, Michaud enviou para a casa de sua família, em Vevey,

curiosamente transformada no “Museu da Velha Vevey”, onde está abrigado o acervo

de suas obras e as cartas que escreveu durante tantos anos (BOUTIN, 1983).

O que mais surpreende nesse empreendimento colonizador é a audácia

daqueles imigrantes europeus não ibéricos. O que os fizeram abandonar a civilização

para reiniciar a vida numa ilha subtropical tão selvagem e distante? Quais foram os

sentidos e as percepções despertadas ao pisarem as praias do Superagüi pela primeira

vez? Certamente carregaram no percurso medo, mas também excitação, de ter que

refazer seu “modo de vida”, conviver com os “selvagens”, se adaptar ao brusco

aumento da temperatura média e a outros fatores do clima local, aprender um novo

idioma e, concomitantemente, se esforçar pra conservar elementos da cultura de seus

ex-lugares.

No próximo item, será relatada a viagem de barco de Paranaguá à ilha

do Superagüi, mais especificamente, à Vila da Barra do Superagüi, a principal

comunidade da ilha. A travessia na baía de Paranaguá permitiu observações

maravilhosas, como a presença de golfinhos próximos ao barco, e a paisagem

dominada pela Serra do Mar e por ilhas encobertas pela floresta; mas também

proporcionou observações tristes, como a limpeza do óleo esparramado em toda a

baía, após um acidente com um navio que estava atracado no Porto de Paranaguá.

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1.3 RUMO À VILA DA BARRA DO SUPERAGÜI

Tive a oportunidade de fazer apenas duas viagens ao Superagüi; a

primeira no carnaval de 2004 e a segunda no mesmo período festivo de 2005. Em

minha primeira jornada também assumi o papel de turista, até então somente

idealizando a realização desta pesquisa. Já no segundo carnaval, por mais contraditório

que possa parecer, fui a trabalho. A razão de ter escolhido essa época do ano que

“pára” todo o Brasil por quatro dias teve como objetivo perceber as múltiplas relações

entre os habitantes da ilha e os turistas que geralmente a procuram para se refugiar das

longas e animadas comemorações das cidades.

Foi em Paranaguá, logo que entrei no barco que me levaria ao

Superagüi, que o trabalho de campo se iniciou. Era um barco pequeno movido a óleo

diesel, que outrora saía a procura de peixes, e hoje, devidamente adaptado aos

padrões de segurança exigidos pela Marinha, transporta os turistas sob o comando de

um ex-pescador e morador do Superagüi conhecido como Carioca, dono de uma das

pousadas com melhor infra-estrutura da ilha.

Ao deixar as antigas construções à beira-mar de Paranaguá (Figura

08), navegando em águas escuras em meio a bancos de areia encobertos por

manguezais, avistei em primeiro plano os movimentos de guindastes e contêineres do

Porto de Paranaguá (Figura 09), envolto pela imponente Serra do Mar, mais ao fundo.

Um pouco mais adiante, em direção ao “mar aberto”, o barco começou a contornar a

parte setentrional da Ilha do Mel, seguido de alguns poucos golfinhos que emergiam

constantemente. Não que isso seja incomum na Baia de Paranaguá, pois essa

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apresenta uma biodiversidade rica, mas o espantoso é o fato de encontrá-los ali mesmo

após o catastrófico acidente ocorrido no dia 15 de novembro de 2004, sofrido pelo navio

chileno Vicunã, de propriedade da Sociedad Naviera Ultragas (GALINDO, 2004).

Figura 08: Construções à beira-mar em Paranaguá – Guarido, 2005.

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Figura 09: Porto de Paranaguá – Guarido, 2005.

As duas explosões nos tanques de carga do navio foram tão fortes que

a cidade de Paranaguá ficou aterrorizada justamente na noite em que se comemorava,

a poucos quilômetros do local do acidente, o dia de Nossa Senhora do Rocio, padroeira

do estado do Paraná.

Durante a viagem presenciei uma equipe de trabalhadores que

pretendia remover as manchas de óleo ainda presentes nas rochas de algumas ilhas

próximas à Paranaguá, utilizando-se de bóias de contenção e mangueiras (Figura 10).

Alguns dias depois, já em Superagüi, numa conversa questionadora com o Sr. Carlos

Eduardo3, coordenador do tratamento e da limpeza do óleo em Superagüi, soube que

as mangueiras que expelem jatos d’água bombeados do mar são de baixa pressão,

pois mesmo não removendo completamente as manchas de óleo nas rochas, alguns

3 Carlos Eduardo é funcionário da empresa Hidroclean – Garner, acionada após o acidente pelo Clube de Seguros P&I, para fornecer serviços tais como o fornecimento de mão de obra especializada e o aluguel de equipamentos.

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moluscos e ostras nelas sobrevivem. O mesmo não aconteceria com as mangueiras de

alta pressão, que esterilizam as rochas e causam maior impacto ambiental, apesar de

melhorarem o visual.

Figura 10: Limpeza do óleo na Baía de Paranaguá – Guarido, 2005.

O óleo continua vazando do navio, já chegou a mar aberto, e a real dimensão

da tragédia ainda deve demorar para ser conhecida, mas certamente será

maior que o imaginado quando tudo aconteceu. [...] Tiveram de trazer

equipamentos de avião para recolher o óleo. Em um momento desses, é

preciso perguntar se essas máquinas já não deveriam estar em Paranaguá,

prontas para entrar em ação quando acontece alguma coisa (CAMPOS, 2004,

p. 5).

Esse despreparo para acidentes do Porto de Paranaguá também foi

identificado por Carlos Eduardo quando entrevistado no Superagüi. A mancha de óleo

se deslocou em direção ao oceano Atlântico e chegou até o Superagüi, em proporções

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bem menores do que nas ilhas mais próximas do acidente e nos manguezais de

Paranaguá. Segundo Galindo (2004, p. 3):

Dois dias após o acidente o Ibama decidiu multar cada uma das quatro

empresas envolvidas no valor de R$ 250 mil por não estarem cumprindo com

as metas de recuperação do meio ambiente. [...] As quatro empresas multadas

são a Sociedad Naviera Ultragas, empresa chilena proprietária do navio

Vicuña; a Cattalini, transportadora paranaense que é proprietária do píer em

que o navio estava atracado no momento da explosão; a Wilson Sons,

contratada como agência marítima pela Ultragas; e a P&I, responsável pelo

seguro da carga.

Mas outro problema ainda estava por vir, a proibição da pesca afetaria

a única fonte de renda da maioria da população dessa região. Segundo Galindo (2004,

p. 5), o ministro da Pesca e Aqüicultura, José Fritsch, anunciou que seria usado “[...] R$

1,7 milhão do Fundo de Amparo ao Trabalhador para pagar um salário mínimo a cada

um dos pescadores afetados pela proibição”, além do direito ao seguro-desemprego.

Mas mesmo essa “ajuda” do Governo não recompensa os prejuízos dos pescadores,

justamente na época do ano em que a pesca é mais lucrativa.

Com uma canoa a remo ou um pequeno barco a vapor um trabalhador pode

ganhar R$ 80,00 por dia. Em épocas de entressafra, pode conseguir apenas

R$ 10,00. Alguns pescadores aproveitam as boas condições do fim do ano

para fazer uma pequena reserva e guardar para os momentos de pouco

rendimento (GALINDO, 2004, p. 3).

Não só a pesca foi prejudicada, mas também uma nova fonte de renda

que vem crescendo entre os moradores do Superagüi, o turismo, que obviamente

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também é mais rentável nas festas de fim de ano. Ao questionar três donos de

pousadas no Superagüi a respeito desse fato, soube que alguns turistas que já haviam

feito reservas cancelaram-nas depois que souberam do acidente, amplamente

divulgado em jornais e telejornais de todo o país.

Ao chegar na Ilha do Superagüi, após navegar ao lado de alguns

grandes navios de diferentes países (Figura 11) e contornar um trecho da Ilha das

Peças, desembarquei na Vila da Barra do Superagüi (Figura 12), a maior comunidade

da ilha, e a única situada fora dos limites do PNS. Foi nessa comunidade, aonde

acampei nas duas visitas que fiz à ilha, que realizei meus estudos sobre os impactos da

atividade turística no Superagüi.

Figura 11: Um dos diversos navios que transitam na Baia de Paranaguá – Guarido, 2005.

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Figura 12: Vista parcial da Vila da Barra do Superagüi – Guarido, 2005.

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2. TURISMO: VILÃO OU HERÓI?

Não é preciso muito esforço para entender os motivos do crescimento

da demanda de turistas na ilha do Superagüi (Figura 13). Refúgio de animais e plantas

endêmicas da região, esse “Sítio do Patrimônio Natural da Humanidade” vem se

tornando também abrigo de turistas a fim de desfrutar essa paisagem bucólica e

experimentar um pouco os modos de vida e demais elementos culturais das

comunidades da ilha. No entanto, esse contato mútuo dos turistas com a população da

área pode ser benéfico ou não, tanto à população local quanto aos visitantes,

dependendo de como se dá tal relação.

Figura 13: Chegada de turistas à Barra do Superagüi – Guarido, 2005.

Através da observação de campo e de entrevistas feitas com alguns

moradores, pretende-se refletir sobre o turismo nessa ilha. Diga-se de imediato que o

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objetivo não é formular um modelo único de como deve ser realizada a atividade

turística no território analisado, mas sim compreender como essa atividade vem

modificando as relações sociais, econômicas e culturais das comunidades locais,

considerando a necessidade de conservar os ecossistemas da região.

Na década de 1970, o Clube de Roma expressa as primeiras grandes

preocupações ambientais no relatório “Limite do Crescimento” (MEADOWS apud

SANTOS e CAMPOS, 2003) através de publicações que denunciam o crescente

consumo mundial e apontam um possível colapso dos recursos naturais. A partir de

então se iniciou um diálogo entre a economia e a ecologia em prol da questão

ambiental na tentativa de conciliar a conservação da natureza com a manutenção do

processo de crescimento econômico. No final da década de 1980, começou a circular

efetivamente a expressão “desenvolvimento sustentável”, criada pela UNESCO, que

com o passar do tempo, sofreu múltiplas interpretações, tornando-se concepção

política, instrumento administrativo e conceito em várias discussões e documentos

(SANTOS e CAMPOS, 2003).

Há muitas divergências nas discussões sobre desenvolvimento e

turismo sustentável. Weaver (apud NIEFER, 2002, p. 6) escreve que turismo

sustentável se refere a:

[...] todos os tipos de turismo existentes. A sua magnitude não deve ser

estimada, pois o conceito é relativamente novo, controverso e mal definido.

Ainda mais, é impossível prever os resultados das práticas consideradas

sustentáveis hoje e que podem mostrar-se prejudiciais em dez anos. Pode-se

afirmar somente que o interesse no conceito cresceu dramaticamente nos

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últimos anos, tanto no setor privado como no público e em todos os espectros

do produto turístico.

Muitos debates acerca da atividade turística em áreas consideradas

marginais ao desenvolvimento, como é o caso do Superagüi, pregam a necessidade de

que o turismo se caracterize por uma valorização do aspecto econômico, da justiça

social e da sustentabilidade ecológica. Porém esse discurso pregado pelo

desenvolvimento sustentável se contradiz com a opinião de Santos e Campos (2003), já

que esses autores afirmam que esse novo cenário do turismo exige uma nova política

dos setores públicos, privados e voluntariados através de uma ação conjunta e

coordenada que proporcione a consecução da competitividade através da qualidade e

da eficiência. Mas tratando-se do Superagüi, essa competitividade poderia ser

catastrófica para as relações sociais e culturais, elevando a desigualdade entre os

membros das comunidades e atraindo mais turistas e, conseqüentemente, mais

problemas para o PNS. Segundo Santos e Campos (2003, p. 161):

A noção de desenvolvimento, formulada na fase pós-segunda guerra mundial,

vista como crescimento econômico, é derivada da idéia de progresso.

Revelando-se como uma das idéias básicas da cultura moderna européia

ocidental, baseia-se na lógica da dinâmica predatória do capitalismo em que a

natureza aparece com funções bem especificas, como gerar todos os materiais

utilizados no processo produtivo e, ainda, após o seu uso, absorver os

resíduos, que retornam ao ecossistema em forma de contaminantes.

Já na opinião de Souza (1997), o significado de desenvolvimento não

deve ser entendido como sinônimo de desenvolvimento econômico, basicamente

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formado pelo crescimento econômico e pela modernização tecnológica.

Desenvolvimento deve designar um processo de superação de problemas sociais, em

cujo âmbito uma sociedade se torna mais justa e legítima.

Atividade complexa, de importância crescente e de significativo potencial de

impacto (positivo e negativo) sobre as relações sociais e o ambiente, o turismo

merece, por isso, mais que um lugar subalterno no contexto da reflexão teórica

sobre o desenvolvimento (SOUZA, 1997, p.17).

Se o objetivo fundamental é a satisfação humana, deve-se encontrar

caminhos para que o desenvolvimento do turismo viabilize o desenvolvimento local.

Coriolano (2003, p. 26) afirma que:

O desenvolvimento voltado para a escala humana pode ser entendido como

aquele que privilegia o ser humano, possibilitando o desabrochar de suas

potencialidades, assegurando-lhes subsistência, trabalho, educação e

condições de uma vida digna a todos os cidadãos. Ao contrário da economia

do ter, baseia-se na economia do ser, que se traduz em um modelo de

desenvolvimento centrado no homem, em uma cultura de cooperação e

parceria.

Para que se desenvolva um turismo “planejado” no sentido de evitar

grandes impactos negativos, é indispensável a participação da comunidade local, que

deve ser orientada para valorizar sua identidade cultural e demais elementos sócio-

culturais. O envolvimento da população local precisa ser empreendido com o intuito de

garantir a fixação, o emprego e a geração de renda nos espaços turísticos, para que

essa inserção não se torne meramente simbólica.

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Silva (2003) reconhece que a relação entre turismo e desenvolvimento

tem sido buscada através de teorias integradas e analisadas sob vários ângulos nas

Ciências Sociais, em especial a Geografia, a Economia, a Sociologia, a Antropologia e,

ultimamente, através da contribuição dos próprios pesquisadores do turismo. Contudo é

preciso avançar muito mais.

Entre esses estudiosos do turismo, existe uma preocupação quanto aos

efeitos da implantação e do desenvolvimento da atividade turística, sobre o crescimento

desordenado do turismo em regiões que apresentam uma economia embasada no

setor primário e sobre as mutações sócio-culturais que ocorrem neste tipo (BACAL e

MIRANDA, 1997).

Essa preocupação se encaixa perfeitamente no caso do Superagüi,

cuja economia depende da pesca e, a cada dia mais, do turismo. Os pescadores locais

passaram a enxergar no turismo uma boa oportunidade para aumentarem suas rendas.

As oito comunidades presentes na ilha do Superagüi são pequenas, sendo a Vila da

Barra do Superagüi a maior, com 179 domicílios e 580 moradores (IBGE, 2005). É

justamente o fato de os turistas poderem vivenciar um pouco a tranqüilidade e a beleza

natural dessa ilha que tem levado pessoas de diversas partes do Brasil até Superagüi.

Apesar dessa região ser relativamente pouco conhecida e longe de estar entre os

principais destinos turísticos dos estrangeiros que visitam o Brasil, nos trabalhos de

campo realizados constatou-se a presença de argentinos e canadenses.

Algumas pousadas no Superagüi já conseguiram se adaptar para

oferecer o mínimo de conforto aos turistas (Figura 14). Essas pertencem aos próprios

moradores da ilha, visto que existe um controle por parte do IBAMA que impede que

empreendimentos e residências sejam construídos na ilha por qualquer pessoa não

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pertencente às comunidades locais, como afirmou Selma Ribeiro, chefe da unidade do

IBAMA no Superagüi, em entrevista feita na ilha.

Figura 14: Pousada com boa infra-estrutura para o turismo – Guarido, 2005.

No entanto, nota-se claramente que até mesmo a comunidade da Vila

da Barra do Superagüi não é homogênea, no sentido de que há diferenças econômicas

entre os membros da comunidade. São poucos os que possuem pousadas ou

lanchonetes. Outras famílias que dependem da pesca estão se adaptando como podem

para aconchegar os “turistas de temporada” no “território” de suas casas, um espaço

arborizado sem cercas e relativamente grande à beira-mar, que serve perfeitamente

como camping (Figura 15). Mas o fato do turismo na ilha ser sazonal torna-se um

problema para os donos de pousadas e lanchonetes. Os turistas a visitam quase que só

durante o verão. Quando acaba a temporada, o movimento na ilha se restringe aos

próprios moradores. Portanto, ainda é inviável a todos os membros da comunidade

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depender exclusivamente da renda proveniente do turismo. A ilha ainda sobrevive da

pesca.

Figura 15: Propriedade adaptada para camping – Guarido, 2005.

Algumas famílias oferecem suas próprias casas aos turistas, como é o

caso da carismática Dona Auzira (Figura 16), a proprietária do camping que foi utilizado

para a hospedagem durante os trabalhos de campo. O fogão de sua cozinha, de

apenas três bocas (uma não funcionava), manteve-se aceso quase o tempo todo. Nas

pequenas filas que se formavam na cozinha durante o almoço, Dona Auzira era

bombardeada pelas conversas dos turistas, e ela, sempre com entusiasmo respondia

às inúmeras perguntas e contava histórias de sua vida e, é claro, da ilha.

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Figura 16: D. Auzira (à esquerda) em sua casa conversa com “uma turista” – Guarido, 2005.

Seu filho, Ciro, é quem administra o camping. No trabalho de campo,

em fevereiro de 2005, antes da chegada de uma segunda barraca, Ciro ainda terminava

de construir mais três banheiros na parte externa da casa, totalizando cinco. Com uma

grande quantidade de metros de fiação, levava bocais de lâmpadas escoradas nas

árvores para iluminar todo o camping. Alguns dias depois, quando as barracas já

haviam invadido todas as sombras das árvores, era o próprio Ciro quem religava

constantemente a chave elétrica, que periodicamente se desligava durante os

intermináveis banhos quentes dos turistas.

Durante o verão, quando os turistas se encontram em maior número,

algumas mulheres da ilha preparam pastéis e bolinhos de camarão, vendidos por

crianças da comunidade. Alguns pescadores alugam suas próprias bicicletas aos

turistas para que esses possam se embrenhar nas trilhas ou pedalar na Praia Deserta

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em linha reta, numa bela paisagem que se estende por 38 quilômetros, com vista para

o Oceano Atlântico a leste e para a Mata Atlântica a oeste.

Em algumas noites, pescadores e turistas se encontram no Bar Akdov

para dançar ao som do “fandango”, tocado por alguns poucos grupos vindos de

Guaraqueçaba e Paranaguá. Nas noites de carnaval diversas crianças nativas

confeccionam suas fantasias com máscaras, botas de borracha e qualquer outra coisa

que sirva de disfarce, como sacos plásticos e lonas (Figura 17).

Figura 17: “Os mascarados” em uma noite de carnaval – Guarido, 2005.

O Bar Akdov é uma espécie de “centro cultural da ilha”, onde

pescadores cheios de historias para contar se misturam com os visitantes. Seu

Laurentino, o dono do bar, quase não tem sossego quando ali toca o fandango. Seu

Alcides, 88 anos, que garante ser bisneto do pintor suíço William Michaud, dança com

quase todas as mulheres do bar, entre turistas e nativas, jovens e idosas. Mas o auge

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da festa é quando os turistas se retiram para apreciar Seu Alcides, Seu Laurentino e os

demais pescadores que estiverem por ali, calçarem seus tamancos de madeira para

sapatear o chão de concreto ao som do fandango (Figura 18).

Figura 18: Apresentação de “fandango” no Bar Akdov – Guarido, 2005.

Mas as experiências e observações feitas na ilha, também mostram que

essa ainda não oferece boa infra-estrutura para acomodar os turistas. Há uma grande

preocupação por parte do PNS com a questão ambiental e um pensamento de não

tornar a ilha um pólo turístico, como tem acontecido na Ilha do Mel, uma das vizinhas de

Superagüi. Mas a questão é que os turistas estão lá, e os pescadores estão

aumentando suas rendas com tal atividade e, portanto, estão cada vez mais se

preparando para a temporada seguinte.

Deve haver um planejamento turístico adequado ao desenvolvimento

humanitário de todos os membros da comunidade, através de investimentos por parte

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dos governos Federal e Estadual e da Prefeitura de Guaraqueçaba em infra-estrutura,

saúde e educação. Isso proporcionaria melhores condições de vida às comunidades,

melhores condições de fiscalização para o IBAMA, maior atuação de Instituições de

pesquisas envolvidas e de Organizações Não Governamentais (ONG’s), além de

garantir um turismo “controlado” e menos predatório.

A falta de saneamento básico é uma questão a ser destacada, pois com

o aumento crescente do turismo, esse problema tende a se agravar, tanto ambiental,

pela contaminação do solo e da água, quanto socialmente, pelos riscos de transmissão

de doenças. Outro impacto negativo diz respeito aos resíduos sólidos deixados pelos

turistas, que expõem um aparente descaso do IBAMA e da Prefeitura de Guaraqueçaba

na limpeza da ilha, e torna evidente que essa, portanto, está despreparada para o tipo

de turismo que vem sendo realizado. Boa parte do lixo é queimada ou enterrada pelos

moradores nos “fundos” de suas próprias casas. Materiais que podem ser reciclados,

principalmente latas de cerveja, são levados nos barcos de alguns pescadores para

serem vendidos em Paranaguá. Como a Vila da Barra do Superagüi é a única

comunidade da ilha que não está contida nos contornos do PNS, sofre com a disputa

entre a Prefeitura de Guaraqueçaba e o IBAMA em achar um responsável para recolher

o lixo da ilha. Segundo Fischer (2004, p. 52):

No abastecimento de água e no esgotamento sanitário, ao longo dos anos de

1993 e 1998, não houve mudanças quantitativas e qualitativas expressivas. A

exceção entre os itens de saneamento básico foi a destinação final do lixo, que

sofreu um retrocesso do ano de 1998 para o ano de 2003. Nesse período,

ocorreu a desativação do Programa Baía Limpa, que garantia o recolhimento

do lixo das Ilhas.

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Se por um lado o turismo traz para a ilha do Superagüi uma adição

financeira, por outro, o turista traz consigo materiais que serão descartados no final de

sua estada. Trata-se de suprimentos para camping, como, por exemplo, enlatados,

garrafas de plástico PET (Polietileno tereftalato) para armazenamento de água,

embalagens de PEAD (Polietileno de alta densidade), utilizadas em produtos de higiene

pessoal, e de PEBD (Polietileno de baixa densidade) presentes nas embalagens de

massas, biscoitos etc, além dos diferentes tipos de papel e de latas de alumínio.

Conseqüentemente, no final de cada temporada, grande parte desses resíduos sólidos

é acumulada nos diversos locais da ilha (Figuras 19 e 20). Muitos desses resíduos são

enterrados, outros são queimados, ambas práticas consideradas inadequadas pelo

Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) de destinação final destes resíduos

sólidos (COUTO, 1999).

Figuras 19 e 20: Lixo abandonado em quintal de um camping – Guarido, 2005.

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Surgem como alternativas para resolver o problema desta desenfreada

acumulação de lixo a educação ambiental e a realização de um projeto de coleta

seletiva dos resíduos sólidos dispensados na ilha. Para que a primeira alternativa

funcione é necessário que a população local, junto ao IBAMA, organize a distribuição

de panfletos indicando que o turista deve levar consigo todo o lixo produzido para

depositá-lo nas cestas de lixo, além de informações sobre o tempo que cada material

levaria para se degradar no meio ambiente. Outra maneira de tentar despertar a

conscientização do turista a respeito do seu próprio lixo é a fixação de placas

esclarecedoras sobre os malefícios que o lixo depositado inadequadamente pode

causar à ilha. E principalmente, a instalação de muitos recipientes de lixo por toda a

comunidade.

A segunda sugestão, a da implantação de um sistema de coleta

seletiva, somente terá sucesso se a população local tornar-se ciente dos danos que

este lixo mal gerenciado na ilha pode causar para a fauna, para a flora e para a

população em geral. Porém, não basta apenas que tomem consciência, é necessário

mostrar que esta prática também pode ser rentável.

Mas a coleta seletiva só se torna viável se nas cidades próximas existir

um mercado consumidor, isto é, empresas que compram resíduos sólidos recicláveis

para mais tarde revendê-los a outras, responsáveis por fabricar produtos recicláveis.

Essa prática é bastante comum nas cidades brasileiras e, inclusive, já existem projetos

de implantação da coleta seletiva na cidade de Guaraqueçaba e em Paranaguá.

Para que essa atividade se torne vantajosa é de suma importância à

criação de uma cooperativa na ilha que tenha como principal função, a venda desse

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material, já que, para realizar o transporte até o continente é necessário acumular uma

grande quantia para tornar a travessia rentável. Outra providência importante é a

construção de um galpão para armazenamento desse material porque quando exposto

à intempérie, o acumulo de água e o contato do lixo com o solo produzem danos para a

saúde da natureza em geral.

Essa atividade pode ser vista como uma forma complementar na

economia da comunidade, uma vez que a grande produção de lixo reciclável na ilha é

sazonal. A coleta seletiva seria, portanto, uma alternativa para minimizar as

conseqüências negativas do turismo e ao mesmo tempo uma fonte de renda

complementar para a comunidade.

Um passo importante dado para o desenvolvimento local, foi a

instalação de cabos submarinos em 1998 pela COPEL, que sai do continente desde

Pontal do Paraná e passa pela Ilha do Mel e Ilha das Peças transmitindo energia

elétrica até a Vila da Barra do Superagüi (FISCHER, 2004). É interessante pensar que

há sete anos atrás, os pescadores da ilha ainda conservavam seus peixes com sal e

não desfrutavam os benefícios da energia elétrica. Hoje podem conservar variados

tipos de alimentos em suas geladeiras e freezers, as lanchonetes vendem cerveja

gelada aos turistas, que também passaram a ter o direito de tomar banho quente, de

poder utilizar o rádio, o ventilador, etc. Atividades tão comuns como essas no cotidiano

de quase todos os núcleos urbanos do Brasil, só “desembarcaram” no Superagüi em

1998.

Entende-se que a energia elétrica é uma tecnologia capaz de modificar

algumas práticas sociais advindas do uso de novos serviços (eletrodomésticos,

equipamentos industriais, etc.), informações, modos de vida e de interação social, que

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podem ocasionar impactos positivos e negativos numa determinada sociedade. Por

isso, a disponibilidade de energia elétrica certamente gerou grande preocupação,

principalmente por parte dos gestores do PNS, sobre os possíveis impactos no âmbito

social, econômico e ambiental. Desde a sua descoberta, no século XIX, uma das

conseqüências provocadas pela energia elétrica foi o aglomerado urbano. Mas mesmo

com essa tecnologia que oferece melhores condições à realização da atividade

turística, não é possível se formar um conglomerado no Superagüi, conforme a

explicação de Selma Ribeiro sobre a proibição do IBAMA à chegada de novos

moradores na ilha. O crescimento vegetativo do Superagüi depende dos descendentes

dos moradores pré-existentes.

Mas se o intuito do PNS é não deixar que a Vila da Barra do Superagüi

cresça e se desenvolva a ponto de invadir seus limites, que ao menos tal comunidade,

assim como as demais contidas no PNS, tenham direito ao saneamento básico e ao

desenvolvimento econômico proporcionado pela pesca e também pelo turismo. Esse

último deveria ser orientado por um plano de manejo eficiente, elaborado pelo próprio

PNS, garantindo que as comunidades se responsabilizem pelo comércio e pela

acomodação dos turistas, incluindo o transporte marítimo à ilha, assim como passeios

de barco nas proximidades.

As reflexões feitas acerca do turismo que está sendo realizado no

Superagüi atualmente, mostram que essa região necessita de maior controle e melhor

infra-estrutura para se adaptar a esse tipo de atividade. O Superagüi enfrenta

dificuldades decorrentes da pobreza que a assola, com exceção de poucos moradores.

O turismo apresenta-se então, como uma atividade capaz de desenvolver essas

comunidades, desde que seja minuciosamente estudado com o propósito de não gerar

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impactos negativos irreversíveis ao ecossistema local e às relações sociais e culturais

dos moradores do Superagüi, que serão analisadas no capítulo seguinte. Santos e

Campos (2003, p.170-171) preferem não concluir a discussão que envolve os dilemas

do turismo, e explicitam isso da seguinte maneira:

O caráter ambivalente do turismo pode gerar vantagens no âmbito econômico,

ao passo que pode ser corrosivo sócio-culturalmente, além de contribuir para a

degradação ambiental e a perda da identidade local. Antes de ser um destino

turístico, as localidades devem existir para a sua população local, uma vez que

este é um dos pontos principais para que um destino turístico se desenvolva de

maneira sustentável. Assim, acreditamos que a partir da Agenda 21 Local

torna-se possível observar se o desenvolvimento do turismo em determinada

localidade será suportável ecologicamente, viável economicamente e eqüitativo

na perspectiva da justiça social das comunidades locais para, maximizar os

impactos positivos e minimizar os negativos.

Sabe-se que a procura dos turistas pela ilha do Superagüi tende a

crescer, uma prova disso é a explosão do turismo na ilha do Mel (LIMA, 2001). Se o

simples fato de um turista permanecer na ilha já ocasiona algum impacto negativo para

uma espécie vegetal ou animal qualquer, ou mesmo para o comportamento cotidiano

dos moradores da ilha, por outro lado, não se pode detê-lo, e mesmo que alguém o

fizesse, não teria a aprovação das comunidades locais, porque elas se preparam cada

vez mais para melhor acomodar os turistas.

O objetivo não é, portanto, propor a transformação dessa ilha num pólo

turístico e nem numa espécie de teatro, onde os turistas se portariam como

espectadores das peculiaridades culturais das comunidades locais e os moradores, por

sua vez, atuariam como “empresários”, tendo como cenário as unidades de

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conservação da Mata Atlântica. Mas o presente estudo do turismo sob a concepção

geográfica, se posiciona a favor de melhorias para as comunidades do Superagüi, na

tentativa de solucionar alguns de seus problemas sociais, tais como o lixo gerado e a

falta de saneamento básico. Nessa perspectiva, o turismo poderia também servir de

instrumento para reduzir a pobreza da ilha, ou até mesmo servir de estímulo para que o

Superagüi “cultive” suas raízes culturais, atraindo também pessoas que estejam

buscando justamente isso, um maior contato com as atividades presentes no cotidiano

da ilha.

O que não se pode fazer é deixá-los como estão, como sempre

viveram, antes desse “redescobrimento” do Superagüi pelos turistas. É inevitável que os

modos de vida dos moradores da ilha sofrerão mutações com o passar do tempo,

resultado do contato múltiplo desses com os turistas. Mas já que existe a atividade

turística na região, que ela seja então realizada visando o beneficio das comunidades e

a conservação da natureza.

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3. CULTURA E MODO DE VIDA

Não é difícil entender a atração que exercem as orlas marinhas sobre os seres

humanos. Para começar, sua forma tem dupla atração: por um lado, as

reentrâncias das praias e dos vales sugerem segurança; por outro lado, o

horizonte aberto para o mar sugere aventura. Além disso, o corpo humano, que

normalmente desfruta apenas do ar e da terra, entra em contato com a água e

a areia. [...] A praia também é banhada pelo brilho direto e refletido da luz do

sol, porém a areia cede à pressão, penetrando entre os dedos do pé e a água

recebe e ampara o corpo (TUAN, 1980, p.131).

Discutir os conceitos de “cultura” e “modo de vida” é uma tarefa

extremamente complexa devido à variabilidade de significados antagônicos ou

complementares de pensadores distintos das ciências humanas. A preocupação deste

capítulo não é explicar o funcionamento interno da cultura, nem se aprofundar em

descrever os paradigmas do comportamento humano, mesmo quando afetam a

superfície da Terra, mas sim avaliar o potencial técnico das comunidades do Superagüi

para usar e modificar seu habitat. Assim sendo, tal avaliação necessita de uma análise

dos elementos e das características da cultura local.

Primeiramente, se faz imprescindível abordar algumas definições de

cultura. O Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda

Ferreira (1986, p. 508) descreve cultura, dentre outros significados, como sendo “O

complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros

valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma

sociedade”.

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Na concepção de Wagner e Mikesell (2003), cultura serve de

instrumento para a compreensão sistemática de diferenças e semelhanças entre os

homens; quer seja considerada um atributo inerente aos seres humanos, ou

simplesmente um artifício para se generalizar os comportamentos dos homens. Porém,

a noção de cultura não considera indivíduos isolados, e sim comunidades com

numerosas características de crença e comportamento comuns aos seus membros,

ocupando um espaço determinado, amplo e geralmente contínuo.

[...] a cultura resulta da capacidade de os seres humanos se comunicarem

entre si por meio de símbolos. Quando as pessoas parecem pensar e agir

similarmente, elas o fazem porque vivem, trabalham e conversam juntas,

aprendem com os mesmos companheiros e mestres, tagarelam sobre os

mesmos acontecimentos, questões e personalidades, observam ao seu redor,

atribuem os mesmos significados aos objetos feitos pelo homem, participam

dos mesmos rituais e recordam o mesmo passado (WAGNER e MIKESELL,

2003, p. 28).

Nada impede, entretanto, que se contextualize esses símbolos de uma

determinada cultura com o pensamento de Vidal de la Blache, a partir de seus dois

artigos publicados na revista Annales de Géographie, em 1911, ao tratar da noção

fundamental de “gênero de vida”. Sorre (2002, p. 16 -17) afirma que:

A noção de gênero de vida é extremamente rica, pois abraça a maioria, se não

a totalidade, das atividades do grupo e mesmo dos indivíduos. É preciso

chegar a um estágio adiantado de cultura para assistir a uma espécie de

liberação. Estes elementos materiais e espirituais são, no sentido exato da

palavra, técnicos, processos transmitidos pela tradição e graças aos quais os

homens asseguram uma posse sobre os elementos naturais. Técnicas de

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energia, de produção de matérias-primas e de ferramentas são sempre

técnicas, assim como as instituições que mantêm a coesão do grupo,

assegurando sua perenidade.

Segundo Maia (2001), o termo gênero de vida, criado pela Geografia

francesa, foi retomado por Max Derruau, outro geógrafo francês, na tentativa de

analisar o mundo moderno. Durreau resgata as definições básicas dadas à noção de

gênero de vida para reavê-la sob a análise do denominado “modo de vida urbano”, no

qual entende haver uma multiplicidade de “modos de vida”. Nos estudos de Derruau

sobre os modos de vida no mundo contemporâneo, acrescenta-se o aspecto

profissional e social para se chegar à noção de “classe social”, abrindo mão dos

estudos da adaptação ao meio. A terminologia modo de vida passou então a ser

analisada a partir do gênero de vida urbano, fruto da Revolução Industrial. O modo de

vida chegou a estar intrinsecamente relacionado ao modo de produção, principalmente

entre os geógrafos que tomavam como base o pensamento marxista. Os gêneros de

vida que não fossem urbanos acabariam sendo gradativamente “dominados”.

Ainda segundo Maia, os modos de vida não podem se resumir somente

às maneiras de viver urbanas, posto que não houve uma homogeneização da vida

nessas “classes sociais”. Evocar noções como modo de vida ou gênero de vida se

tornou, portanto, um problema conceitual e metodológico. Por isso, neste capítulo

adotou-se a noção de modo de vida para se referir às maneiras ou formas de vida dos

habitantes do Superagüi.

[...] a noção de modo de vida e mesmo a francesa, genre de vie, permeadas

pela idéia central – a de expressar costumes -, foram muito utilizadas pela

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geografia e pelas ciências sociais de um modo geral. [...] Nessas abordagens,

existem diferenças teórico-metodológicas, visto que, em muitos trabalhos, os

modos de vida foram utilizados para designar ‘identidade de condutas em

determinados grupos’; em outros, talvez em menor numero, essa noção foi

usada como elemento significativo, variando ainda conforme as tendências, as

condições socioeconômicas e as conseqüentes diferenciações de classes

sociais (MAIA, 2001, p. 84).

Conjunto de técnicas, os modos de vida também são formas de

adaptação do grupo humano ao meio geográfico. A partir do momento em que o grupo

modifica o seu meio, conforme sua potencialidade e suas necessidades, ele determina

o seu “território”. Todo grupo cultural, para definir desde logo, se investe física e

culturalmente num território, ou seja, “[...] toda cultura se encarna, para além de um

discurso, em uma forma de territorialidade” (BONNEMAISON, 2002, p. 97). Em termos

de espaço, a idéia de cultura não se separa da idéia de território, posto que a criação

de um território se dá pela existência de uma cultura.

A relação entre cultura e espaço é simbólica, pois a cultura é abstrata,

mesmo sendo possível de se definir e de se identificar no espaço. Bonnemaison (2002)

afirma que cultura e sociedade são faces de uma mesma realidade, ou seja, o território

é, ao mesmo tempo, um “espaço social” e um “espaço cultural”, pois está associado

tanto à função social quanto à função simbólica. No que diz respeito ao espaço social

deve-se considerar a organização social e hierárquica, e as funções políticas, sociais e

econômicas que reproduzem as estruturas de poder de uma determinada sociedade.

Portanto, o espaço social é produzido, em termos de organização e produção, ao passo

que o espaço cultural é vivenciado, ou portador de sentido.

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A superfície da terra é extremamente variada. Mesmo um conhecimento casual

com sua geografia física e a abundância de formas de vida, muito nos dizem.

Mas são mais variadas as maneiras como as pessoas percebem e avaliam

essa superfície. Duas pessoas não vêem a mesma realidade. Nem dois grupos

fazem exatamente a mesma avaliação do meio ambiente. A própria visão

científica está ligada à cultura – uma possível perspectiva entre muitas. (TUAN,

1980, p. 6)

É seguindo essa linha de raciocínio que se pretende associar o

referencial teórico citado com a realidade do Superagüi. A cultura e, por conseguinte, os

modos de vida dos habitantes dessa ilha, são uma herança de seus antepassados, que

se organizaram para desenvolver técnicas possibilitadas, ou até mesmo determinadas,

pelo meio. Quando Perret Gentil iniciou a colonização européia no Superagüi, deparou-

se com índios e caboclos que habitavam a região. Os modos de vida que esses

imigrantes haviam trazido do “velho mundo”, obviamente, não poderiam se manter

inalterados naquela região encoberta pela selvagem Mata Atlântica. O “choque” entre

grupos sociais de atitudes e “etnias” tão diferentes ocasionou a fusão de alguns

elementos culturais de europeus e nativos, e fez surgir uma nova cultura e um novo

modo de vida adaptado ao ambiente daquela região.

A cultura, ou melhor dizendo, “as culturas” desse novo grupo social

foram se transformando com o passar do tempo. O contato e a comunicação com

outros grupos próximos, de ilhas vizinhas ou do continente, expandiram os limites de

uma área aonde as pessoas passaram a exercer basicamente as mesmas atividades,

utilizando-se das mesmas técnicas relacionadas à pesca, à caça, à extração e à

agricultura, ou seja, exercendo o mesmo modo de vida, caracterizando uma mesma

cultura.

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Como identificar então a cultura, ou, possivelmente, as culturas, dos

moradores do Superagüi? Uma possível alternativa seria classificá-los em um grupo

definido que ocupa uma área delimitada por características comuns verificáveis. Por

exemplo, na pesquisa bibliográfica realizada para sua dissertação, Calvente (1993)

informa que “caiçara” é o nativo tradicional que habita a faixa do litoral brasileiro

compreendida entre os estados do Paraná e do Rio de Janeiro. A “cultura caiçara” é

tradicionalmente composta por indivíduos com um modo de vida enraizado na

agricultura de subsistência e na pesca. Seu tempo de trabalho não é controlado pelo

relógio, mas por fenômenos naturais. Entretanto, a noção de cultura, em toda a sua

complexidade, é dinâmica. Ela existe em processo, em movimento, e se transforma

com o tempo sempre que necessário.

A “área cultural” do caiçara tem, em comum, elementos sociais e

culturais de bases históricas e de influências étnicas, como o comportamento cultural e

a linguagem (SOUZA, 2004). Mas apesar de abranger os estados do Paraná e do Rio

de Janeiro, a cultura caiçara está mais associada ao litoral de São Paulo, graças à

quantidade e qualidade dos artigos científicos publicados sobre o litoral paulista.

Contudo, existe uma notável peculiaridade dos moradores do Superagüi que os

distinguem, em relação ao seu modo de vida, dos caiçaras paulistas. Esses últimos

passaram a conviver com a especulação imobiliária e o processo de urbanização

promovido por um grupo social economicamente dominante, que assim também se

considera no âmbito cultural. Alguns caiçaras incorporaram fortemente os valores

individualistas objetivando a acumulação capitalista (CALVENTE, 1993). Já no caso do

Superagüi, a jurisdição do PNS não permite que seus moradores se tornem, grosso

modo, “agentes imobiliários”, como já foi dito no capítulo anterior.

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Até mesmo diante desse fator, que de certa forma controla o

desenvolvimento do modo de vida dos moradores do Superagüi, essa “cultura popular”

coexiste com as “culturas” dos turistas, estando com isso sujeita a mudanças

constantes. Como cultura não é algo estático, mas dinâmico, não é possível se pensar

em preservação de cultura, como, por exemplo, adotar uma política protecionista das

atividades tradicionais. Isso significaria resumir e reduzir tal cultura a um estilo

arquitetônico (Figura 21), a objetos criados, a instrumentos, etc. Mesmo com a

influência dos turistas na transformação da paisagem da ilha do Superagüi e do modo

de vida de sua população, a cultura subsiste através de elementos antagônicos de

resistência e de conformismo.

Figura 21: Casa de uma família nativa – Guarido, 2005.

Antes de prosseguir com essa idéia de resistência / conformismo, se faz

necessário analisar outros conceitos polêmicos nas ciências humanas, os de tradição e

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de costume, que “costumam” se confundir nas discussões culturais. Autores como Erick

Hobsbawm deram maior contribuição à analise da tradição; outros como E. P.

Thompson dedicaram-se mais ao estudo dos costumes. O termo costume não deixa de

ser um repertório coloquial, pois diz respeito a usos costumeiros. Já o vocábulo

tradição, é proveniente da palavra traditione, em latim, que em princípio pode ser

entendida como o ato de transmitir ou entregar (MAIA, 2001).

Para Maia (2001), a noção de tradição, analisada por autores da

denominada Sociologia do Desenvolvimento, freqüentemente é aliada à idéia de

estabilidade, ou seja, à uma conotação empírica de transição de elementos da vida

social que implica um conformismo com as regras de conduta socialmente aprovadas.

De maneira geral, nas denominadas “sociedades tradicionais”, a tradição agiria como

uma grande força retardadora de mudanças, que impediria o rompimento com os

mandamentos validados pelo passado, em respeito ao projeto inicial. Nesse sentido, os

conceitos filosóficos de conformismo e de resistência estão relacionados à adesão ou à

repulsa às ordens específicas das sociedades e das culturas vigentes. A tradição

também pode ser, portanto, um princípio teórico de uma forma de dominação.

Segundo Calvente (1993, p.15), “[...] não acreditar ou não valorizar o

saber que existe na cultura popular serve aos interesses da classe dominante”. Essas

“culturas populares”, como ocorre entre os caiçaras, possuem uma consciência étnica,

ou consciência de classe, fortemente ligada a um sentimento de territorialidade, que

pode se expressar como um fator de resistência aos valores que são inculcados de

fora. Surge então uma nova questão que merece ser destacada, a distinção entre

cultura dominante (pessoas “cultas”, letradas e eruditas) e cultura dominada (pessoas

“incultas” e atrasadas). Essa distinção não escapa tanto à mentalidade do turista quanto

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à do nativo, pois os dois focalizam aspectos bem diferentes do meio ambiente. Tuan

(1980, p. 72 - 73) afirma que:

[...] somente o visitante (e especialmente o turista) tem um ponto de vista; sua

percepção freqüentemente se reduz a usar os seus olhos para compor

quadros. Ao contrário, o nativo tem uma atitude complexa derivada da sua

imersão na totalidade de seu meio ambiente. [...] O ponto de vista do visitante,

por ser simples, é facilmente enunciado. A confrontação com a novidade,

também pode levá-lo a manifestar-se. Por outro lado, a atitude complexa do

nativo somente pode ser expressa com dificuldade e indiretamente através do

comportamento, da tradição local, conhecimento e mito.

O turista avalia o meio essencialmente pela estética. É a visão de um

estranho, e por isso ele julga pela aparência, por algum critério formal de beleza,

freqüentemente sendo capaz de perceber méritos e defeitos. É preciso um certo

esforço por parte do turista para sentir empatia em relação às vidas e valores dos

habitantes locais. O destino turístico geralmente é vinculado a: sossego, descanso,

aventura, diversão, consumo e conforto, e por isso o visitante traz consigo uma feição

escancaradamente mais alegre. Para o nativo, contente ou não com a presença do

visitante em seu território, que no contexto é o Superagüi, a temporada de férias do

turista significa trabalho e mudança no seu cotidiano. Aquele tempo cíclico, orientado

pela natureza, vivenciado e sentido pelo nativo, passou também a ser sazonal no

sentido econômico.

No entanto, não há como pensar culturalmente no Superagüi sem

pensar em pesca. Como em qualquer “cultura insular”, o modo de vida das famílias

locais está vinculado às atividades pesqueiras. O meio de transporte vigente na ilha é o

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barco, e sendo a praia o estacionamento (Figura 22), o mar pode ser considerado uma

extensão da vida do pescador. A salinidade, a umidade e o som que vem do mar

ajudaram a esculpir, ao longo dos anos, o modo de vida e a cultura popular do

Superagüi.

Figura 22: Barcos “estacionados” na praia da Vila da Barra do Superagüi – Guarido, 2005.

Cabe salientar que cultura e modo de vida são conceitos

complementares, mas não são sinônimos. Maia (2001) afirma que na constituição do

pensamento geográfico clássico, onde a cultura é temática de presença marcante,

surge a necessidade da criação de uma categoria geográfica que conseguisse explicar

a grande diversidade cultural relacionada à variedade do meio natural. Essa categoria,

que serviu de base para a construção da Geografia Humana, são os gêneros de vida e,

mais recentemente, os modos de vida.

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Entrevistado em seu camping, Ciro disse que, assim como ele, os

outros pescadores da Vila da Barra do Superagüi se lançam ao mar para pescar

durante o alvorecer e só retornam por volta das 14:00 horas. A rede é preparada

especialmente para o camarão, pois, ao contrário dos peixes, o primeiro se pesca

fartamente quase em todo o ano, exceto nos meses de março a junho, quando o

IBAMA proíbe tal atividade para assegurar a reprodução dos camarões. Segundo Ciro,

em “tempo bom” ele retira do mar entre cem e duzentos quilos de camarão em uma

pescaria. O irmão de Ciro, chamado Mauricio, compra camarão dos pescadores, assim

como faz um outro pescador, para vendê-lo em Paranaguá, a R$ 9,00 o quilo de

camarão cru, e no litoral de São Paulo, próximo ao Superagüi, onde se paga R$ 12,00

no quilo do camarão cozido.

Na cultura do Superagüi, o papel dos sexos é fortemente diferenciado.

Se essa cultura está enraizada na pesca, quais são os papéis das mulheres?

Antigamente cabia a elas a educação dos filhos e o trabalho doméstico, que incluía a

agricultura e a ajuda ao marido na limpeza do pescado. Hoje a agricultura é impedida

pelo PNS, mas as mulheres seguem com as tarefas do lar, educando seus filhos e

ainda se ocupando com atividades turísticas, ajudando o marido a administrar tais

negócios. São elas que preparam as refeições que são servidas nas pousadas e

lanchonetes. Algumas mulheres, como já foi dito no capítulo anterior, fazem “salgados”

de camarão para as crianças perambularem na praia em busca de fregueses.

A fé também é um traço marcante na cultura local. A Vila da Barra do

Superagüi possui uma igreja católica, e duas evangélicas (uma da Assembléia de Deus

e outra da Congregação Cristã no Brasil). A existência dessas três opções religiosas

gera certa intolerância, principalmente entre as mulheres, que podem comprometer

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interesses comuns à comunidade. “Em função desse enfrentamento, a Associação das

Senhoras não foi contemplada com uma cozinha comunitária, como a existente, até

hoje, na Ilha das Peças” (FISCHER, 2004, p. 68). Os elementos espirituais têm seu

lugar na cultura, mas no caso da Vila da Barra do Superagüi, as diferentes religiões

tornaram-se motivos de desavenças e rivalidade entre alguns moradores.

Diferenças à parte, a cultura local possui um elemento que fortifica as

relações afetivas das comunidades, e que também serve como um grande atrativo para

os visitantes da ilha, o fandango. Essa dança de origem espanhola (GIFFONI, 1955),

também dançada em Portugal, surgiu no século XVIII, e logo chegou ao sul do Brasil,

se incorporando fortemente na cultura caiçara do Paraná. Mas o fandango corre um

sério risco de se extinguir no Superagüi, pois os responsáveis por manter essa tradição

são praticamente os adultos e idosos. No campo constatou-se que, enquanto os turistas

se dirigiam ao bar Akdov “curtir” o fandango, os jovens nativos da ilha se encontravam

no bar ao lado, ao som de axé e de outros ritmos “modernos”. O motivo desses jovens

se negarem a dar continuidade ao tradicional fandango, não pôde ser desvendado no

contexto deste trabalho. Talvez seja por vergonha, ou simplesmente pelo fato de

quererem romper com esse aspecto da cultura local, baseada no passado.

A cultura caiçara depende do modo de vida que os jovens da ilha irão

adotar. Como já argumentado neste capítulo, a cultura não se resume a objetos, à

arquitetura e nem ao folclore. Ela evolui e se adapta à nova realidade, mesclando

elementos de outras culturas. Todavia, é fácil entender a admiração que os jovens

sentem pelos turistas. Ao desembarcarem na ilha, os turistas trazem consigo um modo

de vida urbano, com roupas, penteados, acessórios, sotaques e idéias que não existem

por lá (Figura 23). Os turistas estão lá para se divertir e consumir, o que de certa

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maneira causa inveja, admiração ou até mesmo raiva em alguns nativos que se vêem

“obrigados” a trabalhar para esses “invasores” de seu território. Pode-se afirmar isso

pois, no campo, numa noite em que turistas e nativos se divertiam ao som do fandango

no bar Akdov, um pescador, que se encontrava alcoolizado, perguntava a alguns

turistas: – “Quem vocês acham que eu sou? Vocês pensam que são melhores do que

eu?”. Outros pescadores logo trataram de acalmá-lo, o que indica que sentimentos

como esses podem ser despertados e explicitados em alguns, mas não em todos os

membros da comunidade.

Figura 23: “Para-pente” amarrado a uma pequena lancha conduz um turista em momento de lazer –

Guarido, 2005.

O turismo é um catalisador para as transformações da cultura caiçara.

Como visto anteriormente, a cultura se modifica com o tempo. Assim sendo, a cultura

caiçara também está fadada a mudanças, e isso inclui o desaparecimento de antigos

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costumes e alterações no modo de vida dos nativos do Superagüi. Agentes externos

como a televisão, que só pôde chegar na ilha após a instalação de cabos transmissores

de energia elétrica, ajuda a disseminar os ideais e os valores das culturas urbanas

pautadas no consumismo. O contato direto dos nativos com os visitantes tem causado

mudanças significativas na cultura analisada. Esse processo inevitável pode acarretar a

perda da identidade cultural local. Por isso, os próprios moradores deverão decidir o

que vale a pena ser conservado e o que deverá ser adaptado em sua cultura, com a

ajuda, e não com a determinação, de ONG’s e instituições públicas e privadas

envolvidas com as causas do Superagüi, através de práticas coletivas que fortaleçam o

poder popular.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ilha do Superagüi, a “Rainha dos Peixes” como foi denominada na

língua indígena, sempre foi caridosa em servir em abundância os “produtos” do mar aos

seus moradores. A fartura de água na região proporcionou a formação de um dos mais

exuberantes ecossistemas do mundo. A majestosa Serra do Mar se mostra uma grande

barreira protetora de um litoral caracterizado por ilhas e baías, cercadas pela densa

Mata Atlântica. Sendo assim, pode-se considerar que a configuração física do litoral

norte do Paraná é uma dádiva às inúmeras espécies da fauna e da flora daquele lugar

e, conseqüentemente, às comunidades que escolheram a ilha do Superagüi para

morar.

Após a fracassada tentativa de fazer prosperar uma colônia suíça no

Superagüi, seus habitantes passaram a levar uma vida simples, baseada na pesca e na

agricultura de subsistência. Seu tempo era percebido pelos elementos climáticos e

biológicos, e seu saber empírico pautava-se na relação com a natureza. Dela se

retirava o alimento, o produto de suas relações comerciais com os povos vizinhos e os

recursos para a construção de seus barcos e de suas casas. Em troca, o pouco impacto

das atividades humanas possibilitou a conservação daquele ecossistema.

Entretanto, a praia é um dos destinos favoritos dos turistas, e esses,

quando dispõem de altos rendimentos, podem se apropriar facilmente do território dos

nativos e promover a especulação imobiliária, sem respeitar as culturas tradicionais e a

própria natureza. Essa apropriação capitalista foi consumada em quase toda a costa

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brasileira, mas, no Superagüi, o PNS foi criado a tempo de impedir que esse processo

se realizasse.

As atividades turísticas são vistas como causadoras de impactos

positivos e negativos à natureza e às comunidades tradicionais, embasadas

economicamente no setor primário, como é o caso do Superagüi. A natureza

certamente sofrerá impactos negativos com a presença de turistas na ilha, mas deve-se

considerar, no caso, a magnitude dos impactos. A questão primordial é: é possível

implantar um turismo caracterizado pela valorização do aspecto econômico, da justiça

social e da sustentabilidade ecológica? O turismo que vem sendo realizado no

Superagüi não oferece um sentimento de otimismo. Apesar da melhoria na renda da

parcela da população que aderiu à atividade, problemas de saneamento básico tendem

a se agravar. Não existe na ilha um sistema de esgoto, e o lixo, quando não retorna à

natureza em forma de contaminantes, é enterrado ou queimado.

No âmbito sócio-cultural, o turismo modifica o modo de vida da

população nativa, acelerando as mutações culturais. Entende-se que a cultura está

sempre sujeita a mudanças, pois se adapta à realidade contemporânea num processo

ambíguo de conformismo e de resistência, mas dependendo de como se dá tal relação,

as comunidades tradicionais podem vir a perder sua identidade cultural, ao “aceitarem”

e adotarem os modos de vida urbanos expostos pelos turistas.

Sítio do Patrimônio Natural da Humanidade, a ilha do Superagüi merece

maior atenção, tanto na conservação de seus recursos naturais, quanto na valorização

da cultura popular da ilha. Ainda há muito que fazer para tornar o Superagüi um

exemplo a ser seguido por outras comunidades tradicionais, no que diz respeito ao

desenvolvimento social e econômico de sua população e à conservação da natureza.

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O turismo pode ajudar a solucionar a pobreza que assola boa parte de

seus moradores, desde que seja controlado pelo PNS para garantir a participação de

toda a população na renda proporcionada pelo turismo, gerando condições para a

valorização de sua cultura popular. O poder popular deve ser fortalecido para que sua

cultura possa ser devidamente valorizada. O papel da população local não deve ser

meramente simbólico, ou seja, apenas oferecer os serviços exigidos pelos turistas, mas

deve ser um papel participativo no desenvolvimento da ilha, através da união e do

companheirismo das comunidades para valorizar sua cultura.

O recente, controverso, e mal definido conceito de turismo sustentável,

mostrou-se extremamente difícil de ocorrer no Superagüi. O PNS decretou inúmeras

regras e proibições que coíbem as ações dos moradores da ilha, porém não foi capaz

de formular um plano de manejo adequado ao tipo de turismo que está sendo realizado,

o que contradiz com a idéia de valorização do aspecto econômico, da justiça social e da

sustentabilidade ecológica. O PNS precisa ter conhecimento do número máximo de

turistas que o Superagüi pode comportar (capacidade de carga). Já que, atualmente, a

única maneira de se chegar a essa ilha é partindo de Paranaguá, deveria haver nessa

cidade um rígido controle do número de turistas que pretendem visitar a ilha.

A idéia de desenvolver a ilha do Superagüi não se resume apenas ao

desenvolvimento econômico, mas deve ser voltada para solucionar seus problemas

sociais. Entende-se que a necessidade de conservar a natureza do Superagüi de

maneira a possibilitar melhorias nas condições de vida da população local deve ser o

objetivo primordial do PNS, mas essa não é uma tarefa fácil. O PNS precisa adotar uma

postura mais atuante no desenvolvimento da região.

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Muitos nativos enxergam no turismo a solução para seus problemas

econômicos, sem perceber as conseqüências negativas que essa atividade pode

ocasionar. A temporada turística na ilha do Superagüi é ansiosamente aguardada pelos

nativos, pois esses visam apenas a melhoria que essa atividade proporciona às suas

rendas. Como discutido neste trabalho, o turismo exerce impactos negativos no âmbito

social, cultural e ecológico. Uma alternativa viável para tentar despertar a

conscientização dos moradores do Superagüi, seria a implantação de programas de

educação ambiental e de palestras que expliquem a realidade na ilha, ou seja, como o

turismo que vêm sendo realizado pode ser prejudicial às próprias comunidades.

Antes de ser um destino turístico, a ilha do Superagüi é o território de

seus moradores, e por isso o desenvolvimento do turismo deve ser planejado para o

benefício das comunidades locais. A ilha do Superagüi carece de maiores cuidados e

de um melhor planejamento. O primeiro passo para desenvolver a ilha do Superagüi

seria, portanto, canalizar os recursos financeiros do poder público vinculado a essa

região, para solucionar os problemas sociais das comunidades, possibilitando assim um

modelo turístico pautado no respeito à cultura local e controlado de forma a garantir a

conservação da natureza.

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