cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

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ISSN 0103-9253 versão impressa ISSN 2236-7101 versão online CENÁRIOS E PERSONAGENS DOS ENTREVEROS HOMICIDAS NO BRASIL DO SÉCULO XXI. ANÁLISE DO CASO DE CAMPINA GRANDE-PB. SCENARIOS AND CHARACTERS OF HOMICIDES IN CENTURY XX IN BRAZIL. ANALYSIS CASE OF CAMPINA GRANDE-PB Vanderlan Silva Universidade Federal de Campina Grande Resumo Este texto apresenta e discute os principais resultados de pesquisa realizada durante os anos de 2010 e 2011 na cidade de Campina Grande sobre exclusão social e violência homicida. A pesquisa foi motivada pela crescente percepção da população campinense e dos relatos cotidianos da imprensa local sobre a vertiginosa incidência da violência homicida na cidade durante os primeiros anos da década inicial do presente século. Diante da singularidade objeto de estudo eleito, cujo evento ceifa a vida de um dos principais atores da cena social e coloca percentual considerável dos acusados de crime em situação de invisibilidade e emudecimento conscientemente produzidos, a pesquisa realizou coleta de dados sobre homicídios praticados na cidade durante os anos de 2009 e 2010 junto a quatro fontes secundárias, a saber: Instituto de Medicina Legal da Paraíba, Polícia Civil do estado, Jornal Diário da Borborema e Jornal da Paraíba. A análise documental empreendida na pesquisa mostrou que os homicídios praticados na cidade durante o recorte temporal feito na pesquisa indicam que Campina Grande tem vivido quadro alarmante de violência homicida, situação que a coloca entre as 200 (duzentas) cidades mais violentas do país. Outrossim, evidencia-se que os homicídios campinenses atingem de maneira desigual e antidemocrática a população da cidade, pois como

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ISSN 0103-9253 versatildeo impressa ndash ISSN 2236-7101 versatildeo online

CENAacuteRIOS E PERSONAGENS DOS ENTREVEROS HOMICIDAS NO BRASIL DO

SEacuteCULO XXI ANAacuteLISE DO CASO DE CAMPINA GRANDE-PB

SCENARIOS AND CHARACTERS OF HOMICIDES IN CENTURY XX IN BRAZIL

ANALYSIS CASE OF CAMPINA GRANDE-PB

Vanderlan Silva

Universidade Federal de Campina Grande

Resumo

Este texto apresenta e discute os principais resultados de pesquisa realizada durante os anos de 2010

e 2011 na cidade de Campina Grande sobre exclusatildeo social e violecircncia homicida A pesquisa foi

motivada pela crescente percepccedilatildeo da populaccedilatildeo campinense e dos relatos cotidianos da imprensa

local sobre a vertiginosa incidecircncia da violecircncia homicida na cidade durante os primeiros anos da

deacutecada inicial do presente seacuteculo Diante da singularidade objeto de estudo eleito cujo evento ceifa a

vida de um dos principais atores da cena social e coloca percentual consideraacutevel dos acusados de

crime em situaccedilatildeo de invisibilidade e emudecimento conscientemente produzidos a pesquisa realizou

coleta de dados sobre homiciacutedios praticados na cidade durante os anos de 2009 e 2010 junto a quatro

fontes secundaacuterias a saber Instituto de Medicina Legal da Paraiacuteba Poliacutecia Civil do estado Jornal

Diaacuterio da Borborema e Jornal da Paraiacuteba A anaacutelise documental empreendida na pesquisa mostrou

que os homiciacutedios praticados na cidade durante o recorte temporal feito na pesquisa indicam que

Campina Grande tem vivido quadro alarmante de violecircncia homicida situaccedilatildeo que a coloca entre as

200 (duzentas) cidades mais violentas do paiacutes Outrossim evidencia-se que os homiciacutedios

campinenses atingem de maneira desigual e antidemocraacutetica a populaccedilatildeo da cidade pois como

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 164

revelam os dados as principais viacutetimas satildeo atores sociais oriundos dos bairros pobres e perifeacutericos da

cidade jovens negros com baixo grau de escolaridade desempregados ou exercendo funccedilotildees de

baixa ou sem nenhuma formaccedilatildeo profissional

Palavras-chave Violecircncia Homiciacutedios Anaacutelise documental Campina Grande

ABSTRACT

This paper presents and discusses the main findings of a research concerning social exclusion and

homicidal violence carried out between 2010 and 2011 in Campina Grande city The research was

motivated by the growing perception of the aforementioned city population and daily reports from

the local press about the vertiginous incidence of deadly violence in the city during the early years of

the present century initial decade Due to the uniqueness of the study object whose event reaps the

lives of the main actors of the social scene and put considerable percentage of the criminals charged

in situations of invisibility and muteness the research conducted data collection on homicides

committed in the city during the years 2009 and 2010 together with four secondary sources namely

Institute of Forensic Medicine of Paraiba State Civil Police Borborema Daily Newspaper and Journal of

Paraiacuteba The document analysis has showed that the murders in the research study period indicate

that Campina Grande has lived alarming picture of homicidal violence a situation that places it among

the two hundred (200) most violent cities Furthermore as the data show the homicides reach in an

unequal and undemocratic way the citys population - the main victims are social actors coming from

the poor and peripheral areas of the city young people black people with low level of education

unemployed or low jobs workers or people without professional training

Keywords Violence Homicide Document analysis Campina Grande

Introduccedilatildeo

Este trabalho1 apresenta e discute os resultados de pesquisa realizada na

cidade de Campina Grande sobre exclusatildeo social e violecircncia homicida durante os

anos de 2009 e 2010 Segunda cidade do Estado da Paraiacuteba em importacircncia

1 Uma versatildeo preliminar deste texto foi apresentada durante o XVII Congresso Brasileiro de Sociologia realizado na cidade de Salvador-BA em setembro de 2013 cujo tiacutetulo foi Exclusatildeo e violecircncia letal O caso de Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 165

econocircmica e nuacutemero de habitantes Campina Grande conta com 402109 2

(quatrocentos e dois mil) habitantes e se destaca no cenaacuterio estadual e regional por

sua forte presenccedila na aacuterea de serviccedilos da induacutestria de transformaccedilatildeo e na produccedilatildeo

de grandes eventos culturais

A motivaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa pode ser atribuiacuteda a duas razotildees

Primeiro agrave percepccedilatildeo crescente dos casos de violecircncia entre muitos segmentos

sociais em Campina Grande e agrave divulgaccedilatildeo alarmante3 por parte da imprensa local

(tvrsquos raacutedios e jornais impressos) Esses fatores chamaram nossa atenccedilatildeo para o

fenocircmeno e despertaram a necessidade de entender os enredos de tais eventos

criminosos Segundo a divulgaccedilatildeo do Mapa da Violecircncia 2010 trazendo dados dos

homiciacutedios produzidos no Brasil ateacute o ano de 2007 mostrava que estava em curso

um forte processo de interiorizaccedilatildeo da violecircncia que atingia cidades de porte meacutedio

tal como Campina Grande de maneira nunca antes vista Nesse processo os iacutendices

nas principais metroacutepoles do paiacutes e na Regiatildeo Sudeste comeccedilavam a perder forccedila ao

passo que nas regiotildees Norte e Nordeste e mais particularmente nas cidades do

interior dos estados dessas regiotildees os casos de violecircncia letal comeccedilaram a mostrar

uma curva ascendente contiacutenua nos uacuteltimos anos

Na pesquisa estabelecemos como objetivo compreender como esse processo

de interiorizaccedilatildeo da violecircncia no paiacutes se apresentava no cenaacuterio campinense4 para

isso procuramos identificar e interpretar em que medida os casos crescentes de

violecircncia letal atingiam os vaacuterios segmentos da populaccedilatildeo de Campina Grande

Esse recente processo de interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil no iniacutecio de

seacuteculo XXI tem sido objeto de boas anaacutelises cientiacuteficas algumas das quais destacam

2 A uacuteltima estimativa feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e estatiacutestica) foi feita em 2014 httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=250400ampsearch=paraiba|campina-grande Acessado em fevereiro de 2015

3 Em muitos casos a percepccedilatildeo do crescimento da sensaccedilatildeo de inseguranccedila eacute reforccedilada pelos programas policialescos estaduais e municipais que fazem dos relatos sensacionalistas dos eventos violentos e crimes chamarizes para os ouvintes eou espectadores

4 Gentiacutelico de quem nasce em Campina Grande

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as vaacuterias transformaccedilotildees ocorridas no paiacutes nas uacuteltimas deacutecadas Entre tais variaacuteveis

vale ressaltar a forte repressatildeo dos oacutergatildeos policiais na regiatildeo Sudeste contra o crime

organizado e a consequente migraccedilatildeo de organizaccedilotildees criminosas para regiotildees nas

quais os aparatos policiais natildeo tecircm o mesmo poder de combate Agrega-se a isso a

variaacutevel da dinacircmica do mercado de bens liacutecitos e iliacutecitos que encontra na regiatildeo

Nordeste a possibilidade de expansatildeo de seus mercados em decorrecircncia dessa

regiatildeo ter tido crescimento5 econocircmico acima da meacutedia nacional na uacuteltima deacutecada

Vivendo em meio ao processo de ldquointeriorizaccedilatildeo da violecircnciardquo certamente

ainda eacute cedo para que consigamos dimensionar com competecircncia suficiente as

muacuteltiplas dimensotildees que tal processo tem produzido e produziraacute nos anos vindouros

no Brasil Contudo alguns estudos merecem destaque entre eles o Mapa da

Violecircncia 2008 publicado pelo Instituto Sangari6 cujo periacuteodo de anaacutelise cobre os

homiciacutedios entre 2002 e 2006 em cuja publicaccedilatildeo a cidade foco de nossa pesquisa

aparecia situada na 340ordf7 posiccedilatildeo entre os municiacutepios brasileiros com uma taxa8 de

362 mortes por grupos de cem mil habitantes Embora a posiccedilatildeo ateacute entatildeo ocupada

pela cidade no quadro dos municiacutepios mais violentos do paiacutes natildeo trouxesse razotildees

para comemoraccedilatildeo por parte de nenhum administrador da seguranccedila puacuteblica jaacute que

a taxa da cidade era superior agrave nacional Todavia o que se produziria nos anos

seguintes revelaria que o processo de aumento da violecircncia homicida no interior e

particularmente na cidade se intensificaria De acordo com nova publicaccedilatildeo9 que veio

agrave luz em 2011 Campina Grande chegou agrave taxa de 484 homiciacutedios por grupos de cem

mil habitantes em 2010 No prazo de quatro anos a cidade ldquosaltourdquo 160 (cento e

5 Particularmente a regiatildeo Nordeste A respeito ver importantes anaacutelise do IPEA

6 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violecircncia 2008 Satildeo Paulo Instituto Sangari Brasiacutelia Ministeacuterio da Justiccedila Ministeacuterio da Sauacutede RITLA 2008

7 Idem Os nuacutemeros apresentados mostram que Campina Grande ostentava em 2006 139 homiciacutedios em 2005 136 em 2004 124 em 2003 126 e em 2002 108 P 21

8 A taxa para grupos de cem mil mortes foi convencionada internacionalmente e eacute largamente utilizada em estudos e poliacuteticas puacuteblicas em todo o mundo para dimensionar o impacto dos homiciacutedios Vale lembrar que a ONU considera taxas acima de 10 casos por grupos de referecircncia como endecircmicas

9 WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 p 41

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sessenta) posiccedilotildees no quadro das cidades mais violentas do paiacutes passando a ocupar

a 180ordf posiccedilatildeo

Na busca de entender a relaccedilatildeo entre exclusatildeo social e crimes letais em

Campina Grande procuramos identificar os cenaacuterios e atores envolvidos nos

entreveros que produziram ldquomortes matadasrdquo Para isso procuramos conhecer os

seus lugares sociais a partir de variaacuteveis como idade gecircnero grau de escolaridade

local de moradia profissatildeoocupaccedilatildeo raccedila estado civil etc

A pesquisa foi realizada durante os anos de 2010 e 2011 e elegeu como

recorte temporal o biecircnio 2009 e 2010 Ateacute o final da pesquisa concluiacuteda em meados

de 2011 O Mapa da Violecircncia 2012 ateacute entatildeo natildeo havia sido publicado Apoacutes sua

publicaccedilatildeo no final de 2011 pudemos ter acesso aos dados sobre os homiciacutedios no

Brasil entre os anos de 2008 a 2010 Vale lembrar que esta ldquoausecircnciardquo de dados ateacute

entatildeo tambeacutem tinha servido como motivaccedilotildees para a realizaccedilatildeo da pesquisa muito

embora como esperamos deixar claro ao longo deste trabalho a publicaccedilatildeo do

Instituto Sangari natildeo se propotildee a fazer uma anaacutelise de profundidade dos dados ao

contraacuterio de nossa pesquisa

Construindo o campo metodoloacutegico em meio a arquivos

A pesquisa foi realizada a partir de dados secundaacuterios colhidos junto a quatro

fontes sendo duas oficiais (e estatais) e duas jornaliacutesticas respectivamente Poliacutecia

Civil da Paraiacuteba onde colhemos os Boletins de Ocorrecircncia (BOrsquos) sobre homiciacutedios

referentes aos anos pesquisados Instituto de Medicina Legal da Paraiacuteba doravante

IML no qual pesquisamos os laudos cadaveacutericos dos mortos por accedilatildeo violenta

provocada por outrem e Jornal da Paraiacuteba e Diaacuterio da Borborema10 Esses dois

uacuteltimos satildeo jornais vespertinos de circulaccedilatildeo estadual nos quais colhemos dados nas

10

Fechou as portas em fevereiro de 2012 A nossa pesquisa foi uma das uacuteltimas a ter acesso aos arquivos do jornal em pleno funcionamento

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 168

reportagens sobre crimes de homiciacutedio cometidos em Campina Grande durante o

periacuteodo ldquocobertordquo pela pesquisa

Eacute importante esclarecer que a escolha de muacuteltiplas fontes com informaccedilotildees

sobre os eventos homicidas na cidade durante o periacuteodo analisado foi enriquecedor

na medida em que nos permitiu fazer o cotejamento dos dados colhidos nas vaacuterias

fontes isso possibilitou o preenchimento de lacunas que por vezes se apresentava

nos dados produzidos por uma ou outra instituiccedilatildeo

A escolha de trabalhar com dados secundaacuterios em arquivos de jornais e em

instituiccedilotildees ligadas agrave Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica da Paraiacuteba estaacute diretamente

vinculada agrave natureza de nosso objeto de estudo Ao escolher trabalhar com

homiciacutedios por razotildees obvias nos foi impossiacutevel entrevistar as viacutetimas Restava-nos

ainda a possibilidade de se trabalhar com suspeitos e reacuteus dos crimes Todavia o

grande nuacutemero de casos de homiciacutedios cujos autores permanecem ldquodesconhecidosrdquo

se revelou um obstaacuteculo de difiacutecil superaccedilatildeo Especula-se que no Brasil apenas 8

(oito por cento) dos casos de homiciacutedios tem autoria esclarecida pela poliacutecia O

acesso aos familiares das viacutetimas por sua vez tambeacutem se mostrou difiacutecil por causa do

tempo exiacuteguo que tiacutenhamos para realizar um processo de aproximaccedilatildeo negociaccedilatildeo e

sensibilizaccedilatildeo com pessoas que passavam por processos psicoloacutegicos traumaacuteticos

apoacutes a perda de seus entes

Por sua vez o processo de negociaccedilatildeo com os responsaacuteveis pelas instituiccedilotildees

responsaacuteveis pelos dados foram realizados inicialmente atraveacutes de contatos

telefocircnicos e posteriormente oficializados mediante ofiacutecios da Unidade Acadecircmica

de Ciecircncias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande Um dos jornais

cobrou a taxa de R$ 3000 para acesso aos dados e limitou11 a quantidade de dias de

acesso aos arquivos

11

Posteriormente no decorrer da pesquisa in loco a limitaccedilatildeo de dias foi abolida restando apenas a exigecircncia de controle sobre horaacuterio e quantidade de pessoas que acessavam os arquivos dos jornais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 169

De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As

dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se

mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo

ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados

como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a

respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a

esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas

fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse

relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo

Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas

particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de

homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante

Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23

perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como

data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da

pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13

de acordo com a fonte acessada

A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em

termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas

fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e

personagens

12

Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela

13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos

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A construccedilatildeo dos dados

Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos

vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo

exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo

diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos

com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo

tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos

processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e

veicularam

Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como

marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima

de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como

classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos

fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em

Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens

entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos

dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos

de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala

muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas

paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados

cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares

e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas

relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo

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Discutindo a violecircncia homicida

Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009

e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das

principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de

(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a

violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem

seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A

compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas

manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia

Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica

sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia

A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua

incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma

sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute

colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece

afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o

homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e

na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo

algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente

nos dias atuais

Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos

produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de

(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que

A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social

entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 172

grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos

morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social

Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas

homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos

histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os

distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual

Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como

uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas

pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia

fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares

secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade

Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo

da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor

domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da

racionalidade moderna

No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como

conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de

ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das

aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de

violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os

homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes

meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila

da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus

14

Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 173

membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos

favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores

e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de

imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por

carecircncias das mais variadas ordens

Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)

aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais

contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir

sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que

a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um

excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a

informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos

imateriais de informaccedilatildeo

Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de

formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os

que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira

estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens

simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como

pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais

satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo

ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que

algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar

socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande

Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e

utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social

pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade

Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174

seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que

romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER

2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas

nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo

Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade

ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria

conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os

policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER

1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de

homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos

O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora

de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de

violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas

Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica

no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente

processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial

conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade

Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da

violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais

distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam

entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as

enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que

produzem

15

Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 175

Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande

Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da

Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e

reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das

praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo

tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo

que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo

De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado

em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio

Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada

menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em

2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo

analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma

maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante

mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso

contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos

puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em

Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre

gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de

masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem

16

WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa

17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176

como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 2: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 164

revelam os dados as principais viacutetimas satildeo atores sociais oriundos dos bairros pobres e perifeacutericos da

cidade jovens negros com baixo grau de escolaridade desempregados ou exercendo funccedilotildees de

baixa ou sem nenhuma formaccedilatildeo profissional

Palavras-chave Violecircncia Homiciacutedios Anaacutelise documental Campina Grande

ABSTRACT

This paper presents and discusses the main findings of a research concerning social exclusion and

homicidal violence carried out between 2010 and 2011 in Campina Grande city The research was

motivated by the growing perception of the aforementioned city population and daily reports from

the local press about the vertiginous incidence of deadly violence in the city during the early years of

the present century initial decade Due to the uniqueness of the study object whose event reaps the

lives of the main actors of the social scene and put considerable percentage of the criminals charged

in situations of invisibility and muteness the research conducted data collection on homicides

committed in the city during the years 2009 and 2010 together with four secondary sources namely

Institute of Forensic Medicine of Paraiba State Civil Police Borborema Daily Newspaper and Journal of

Paraiacuteba The document analysis has showed that the murders in the research study period indicate

that Campina Grande has lived alarming picture of homicidal violence a situation that places it among

the two hundred (200) most violent cities Furthermore as the data show the homicides reach in an

unequal and undemocratic way the citys population - the main victims are social actors coming from

the poor and peripheral areas of the city young people black people with low level of education

unemployed or low jobs workers or people without professional training

Keywords Violence Homicide Document analysis Campina Grande

Introduccedilatildeo

Este trabalho1 apresenta e discute os resultados de pesquisa realizada na

cidade de Campina Grande sobre exclusatildeo social e violecircncia homicida durante os

anos de 2009 e 2010 Segunda cidade do Estado da Paraiacuteba em importacircncia

1 Uma versatildeo preliminar deste texto foi apresentada durante o XVII Congresso Brasileiro de Sociologia realizado na cidade de Salvador-BA em setembro de 2013 cujo tiacutetulo foi Exclusatildeo e violecircncia letal O caso de Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 165

econocircmica e nuacutemero de habitantes Campina Grande conta com 402109 2

(quatrocentos e dois mil) habitantes e se destaca no cenaacuterio estadual e regional por

sua forte presenccedila na aacuterea de serviccedilos da induacutestria de transformaccedilatildeo e na produccedilatildeo

de grandes eventos culturais

A motivaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa pode ser atribuiacuteda a duas razotildees

Primeiro agrave percepccedilatildeo crescente dos casos de violecircncia entre muitos segmentos

sociais em Campina Grande e agrave divulgaccedilatildeo alarmante3 por parte da imprensa local

(tvrsquos raacutedios e jornais impressos) Esses fatores chamaram nossa atenccedilatildeo para o

fenocircmeno e despertaram a necessidade de entender os enredos de tais eventos

criminosos Segundo a divulgaccedilatildeo do Mapa da Violecircncia 2010 trazendo dados dos

homiciacutedios produzidos no Brasil ateacute o ano de 2007 mostrava que estava em curso

um forte processo de interiorizaccedilatildeo da violecircncia que atingia cidades de porte meacutedio

tal como Campina Grande de maneira nunca antes vista Nesse processo os iacutendices

nas principais metroacutepoles do paiacutes e na Regiatildeo Sudeste comeccedilavam a perder forccedila ao

passo que nas regiotildees Norte e Nordeste e mais particularmente nas cidades do

interior dos estados dessas regiotildees os casos de violecircncia letal comeccedilaram a mostrar

uma curva ascendente contiacutenua nos uacuteltimos anos

Na pesquisa estabelecemos como objetivo compreender como esse processo

de interiorizaccedilatildeo da violecircncia no paiacutes se apresentava no cenaacuterio campinense4 para

isso procuramos identificar e interpretar em que medida os casos crescentes de

violecircncia letal atingiam os vaacuterios segmentos da populaccedilatildeo de Campina Grande

Esse recente processo de interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil no iniacutecio de

seacuteculo XXI tem sido objeto de boas anaacutelises cientiacuteficas algumas das quais destacam

2 A uacuteltima estimativa feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e estatiacutestica) foi feita em 2014 httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=250400ampsearch=paraiba|campina-grande Acessado em fevereiro de 2015

3 Em muitos casos a percepccedilatildeo do crescimento da sensaccedilatildeo de inseguranccedila eacute reforccedilada pelos programas policialescos estaduais e municipais que fazem dos relatos sensacionalistas dos eventos violentos e crimes chamarizes para os ouvintes eou espectadores

4 Gentiacutelico de quem nasce em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 166

as vaacuterias transformaccedilotildees ocorridas no paiacutes nas uacuteltimas deacutecadas Entre tais variaacuteveis

vale ressaltar a forte repressatildeo dos oacutergatildeos policiais na regiatildeo Sudeste contra o crime

organizado e a consequente migraccedilatildeo de organizaccedilotildees criminosas para regiotildees nas

quais os aparatos policiais natildeo tecircm o mesmo poder de combate Agrega-se a isso a

variaacutevel da dinacircmica do mercado de bens liacutecitos e iliacutecitos que encontra na regiatildeo

Nordeste a possibilidade de expansatildeo de seus mercados em decorrecircncia dessa

regiatildeo ter tido crescimento5 econocircmico acima da meacutedia nacional na uacuteltima deacutecada

Vivendo em meio ao processo de ldquointeriorizaccedilatildeo da violecircnciardquo certamente

ainda eacute cedo para que consigamos dimensionar com competecircncia suficiente as

muacuteltiplas dimensotildees que tal processo tem produzido e produziraacute nos anos vindouros

no Brasil Contudo alguns estudos merecem destaque entre eles o Mapa da

Violecircncia 2008 publicado pelo Instituto Sangari6 cujo periacuteodo de anaacutelise cobre os

homiciacutedios entre 2002 e 2006 em cuja publicaccedilatildeo a cidade foco de nossa pesquisa

aparecia situada na 340ordf7 posiccedilatildeo entre os municiacutepios brasileiros com uma taxa8 de

362 mortes por grupos de cem mil habitantes Embora a posiccedilatildeo ateacute entatildeo ocupada

pela cidade no quadro dos municiacutepios mais violentos do paiacutes natildeo trouxesse razotildees

para comemoraccedilatildeo por parte de nenhum administrador da seguranccedila puacuteblica jaacute que

a taxa da cidade era superior agrave nacional Todavia o que se produziria nos anos

seguintes revelaria que o processo de aumento da violecircncia homicida no interior e

particularmente na cidade se intensificaria De acordo com nova publicaccedilatildeo9 que veio

agrave luz em 2011 Campina Grande chegou agrave taxa de 484 homiciacutedios por grupos de cem

mil habitantes em 2010 No prazo de quatro anos a cidade ldquosaltourdquo 160 (cento e

5 Particularmente a regiatildeo Nordeste A respeito ver importantes anaacutelise do IPEA

6 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violecircncia 2008 Satildeo Paulo Instituto Sangari Brasiacutelia Ministeacuterio da Justiccedila Ministeacuterio da Sauacutede RITLA 2008

7 Idem Os nuacutemeros apresentados mostram que Campina Grande ostentava em 2006 139 homiciacutedios em 2005 136 em 2004 124 em 2003 126 e em 2002 108 P 21

8 A taxa para grupos de cem mil mortes foi convencionada internacionalmente e eacute largamente utilizada em estudos e poliacuteticas puacuteblicas em todo o mundo para dimensionar o impacto dos homiciacutedios Vale lembrar que a ONU considera taxas acima de 10 casos por grupos de referecircncia como endecircmicas

9 WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 p 41

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sessenta) posiccedilotildees no quadro das cidades mais violentas do paiacutes passando a ocupar

a 180ordf posiccedilatildeo

Na busca de entender a relaccedilatildeo entre exclusatildeo social e crimes letais em

Campina Grande procuramos identificar os cenaacuterios e atores envolvidos nos

entreveros que produziram ldquomortes matadasrdquo Para isso procuramos conhecer os

seus lugares sociais a partir de variaacuteveis como idade gecircnero grau de escolaridade

local de moradia profissatildeoocupaccedilatildeo raccedila estado civil etc

A pesquisa foi realizada durante os anos de 2010 e 2011 e elegeu como

recorte temporal o biecircnio 2009 e 2010 Ateacute o final da pesquisa concluiacuteda em meados

de 2011 O Mapa da Violecircncia 2012 ateacute entatildeo natildeo havia sido publicado Apoacutes sua

publicaccedilatildeo no final de 2011 pudemos ter acesso aos dados sobre os homiciacutedios no

Brasil entre os anos de 2008 a 2010 Vale lembrar que esta ldquoausecircnciardquo de dados ateacute

entatildeo tambeacutem tinha servido como motivaccedilotildees para a realizaccedilatildeo da pesquisa muito

embora como esperamos deixar claro ao longo deste trabalho a publicaccedilatildeo do

Instituto Sangari natildeo se propotildee a fazer uma anaacutelise de profundidade dos dados ao

contraacuterio de nossa pesquisa

Construindo o campo metodoloacutegico em meio a arquivos

A pesquisa foi realizada a partir de dados secundaacuterios colhidos junto a quatro

fontes sendo duas oficiais (e estatais) e duas jornaliacutesticas respectivamente Poliacutecia

Civil da Paraiacuteba onde colhemos os Boletins de Ocorrecircncia (BOrsquos) sobre homiciacutedios

referentes aos anos pesquisados Instituto de Medicina Legal da Paraiacuteba doravante

IML no qual pesquisamos os laudos cadaveacutericos dos mortos por accedilatildeo violenta

provocada por outrem e Jornal da Paraiacuteba e Diaacuterio da Borborema10 Esses dois

uacuteltimos satildeo jornais vespertinos de circulaccedilatildeo estadual nos quais colhemos dados nas

10

Fechou as portas em fevereiro de 2012 A nossa pesquisa foi uma das uacuteltimas a ter acesso aos arquivos do jornal em pleno funcionamento

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reportagens sobre crimes de homiciacutedio cometidos em Campina Grande durante o

periacuteodo ldquocobertordquo pela pesquisa

Eacute importante esclarecer que a escolha de muacuteltiplas fontes com informaccedilotildees

sobre os eventos homicidas na cidade durante o periacuteodo analisado foi enriquecedor

na medida em que nos permitiu fazer o cotejamento dos dados colhidos nas vaacuterias

fontes isso possibilitou o preenchimento de lacunas que por vezes se apresentava

nos dados produzidos por uma ou outra instituiccedilatildeo

A escolha de trabalhar com dados secundaacuterios em arquivos de jornais e em

instituiccedilotildees ligadas agrave Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica da Paraiacuteba estaacute diretamente

vinculada agrave natureza de nosso objeto de estudo Ao escolher trabalhar com

homiciacutedios por razotildees obvias nos foi impossiacutevel entrevistar as viacutetimas Restava-nos

ainda a possibilidade de se trabalhar com suspeitos e reacuteus dos crimes Todavia o

grande nuacutemero de casos de homiciacutedios cujos autores permanecem ldquodesconhecidosrdquo

se revelou um obstaacuteculo de difiacutecil superaccedilatildeo Especula-se que no Brasil apenas 8

(oito por cento) dos casos de homiciacutedios tem autoria esclarecida pela poliacutecia O

acesso aos familiares das viacutetimas por sua vez tambeacutem se mostrou difiacutecil por causa do

tempo exiacuteguo que tiacutenhamos para realizar um processo de aproximaccedilatildeo negociaccedilatildeo e

sensibilizaccedilatildeo com pessoas que passavam por processos psicoloacutegicos traumaacuteticos

apoacutes a perda de seus entes

Por sua vez o processo de negociaccedilatildeo com os responsaacuteveis pelas instituiccedilotildees

responsaacuteveis pelos dados foram realizados inicialmente atraveacutes de contatos

telefocircnicos e posteriormente oficializados mediante ofiacutecios da Unidade Acadecircmica

de Ciecircncias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande Um dos jornais

cobrou a taxa de R$ 3000 para acesso aos dados e limitou11 a quantidade de dias de

acesso aos arquivos

11

Posteriormente no decorrer da pesquisa in loco a limitaccedilatildeo de dias foi abolida restando apenas a exigecircncia de controle sobre horaacuterio e quantidade de pessoas que acessavam os arquivos dos jornais

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De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As

dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se

mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo

ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados

como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a

respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a

esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas

fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse

relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo

Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas

particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de

homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante

Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23

perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como

data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da

pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13

de acordo com a fonte acessada

A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em

termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas

fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e

personagens

12

Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela

13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos

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A construccedilatildeo dos dados

Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos

vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo

exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo

diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos

com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo

tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos

processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e

veicularam

Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como

marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima

de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como

classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos

fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em

Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens

entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos

dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos

de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala

muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas

paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados

cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares

e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas

relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo

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Discutindo a violecircncia homicida

Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009

e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das

principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de

(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a

violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem

seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A

compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas

manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia

Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica

sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia

A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua

incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma

sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute

colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece

afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o

homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e

na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo

algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente

nos dias atuais

Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos

produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de

(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que

A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social

entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo

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grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos

morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social

Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas

homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos

histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os

distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual

Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como

uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas

pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia

fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares

secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade

Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo

da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor

domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da

racionalidade moderna

No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como

conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de

ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das

aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de

violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os

homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes

meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila

da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus

14

Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio

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membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos

favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores

e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de

imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por

carecircncias das mais variadas ordens

Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)

aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais

contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir

sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que

a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um

excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a

informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos

imateriais de informaccedilatildeo

Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de

formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os

que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira

estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens

simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como

pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais

satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo

ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que

algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar

socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande

Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e

utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social

pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade

Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas

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seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que

romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER

2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas

nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo

Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade

ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria

conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os

policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER

1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de

homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos

O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora

de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de

violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas

Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica

no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente

processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial

conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade

Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da

violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais

distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam

entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as

enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que

produzem

15

Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos

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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande

Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da

Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e

reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das

praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo

tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo

que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo

De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado

em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio

Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada

menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em

2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo

analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma

maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante

mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso

contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos

puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em

Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre

gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de

masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem

16

WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa

17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais

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como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

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que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

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A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

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Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 3: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 165

econocircmica e nuacutemero de habitantes Campina Grande conta com 402109 2

(quatrocentos e dois mil) habitantes e se destaca no cenaacuterio estadual e regional por

sua forte presenccedila na aacuterea de serviccedilos da induacutestria de transformaccedilatildeo e na produccedilatildeo

de grandes eventos culturais

A motivaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa pode ser atribuiacuteda a duas razotildees

Primeiro agrave percepccedilatildeo crescente dos casos de violecircncia entre muitos segmentos

sociais em Campina Grande e agrave divulgaccedilatildeo alarmante3 por parte da imprensa local

(tvrsquos raacutedios e jornais impressos) Esses fatores chamaram nossa atenccedilatildeo para o

fenocircmeno e despertaram a necessidade de entender os enredos de tais eventos

criminosos Segundo a divulgaccedilatildeo do Mapa da Violecircncia 2010 trazendo dados dos

homiciacutedios produzidos no Brasil ateacute o ano de 2007 mostrava que estava em curso

um forte processo de interiorizaccedilatildeo da violecircncia que atingia cidades de porte meacutedio

tal como Campina Grande de maneira nunca antes vista Nesse processo os iacutendices

nas principais metroacutepoles do paiacutes e na Regiatildeo Sudeste comeccedilavam a perder forccedila ao

passo que nas regiotildees Norte e Nordeste e mais particularmente nas cidades do

interior dos estados dessas regiotildees os casos de violecircncia letal comeccedilaram a mostrar

uma curva ascendente contiacutenua nos uacuteltimos anos

Na pesquisa estabelecemos como objetivo compreender como esse processo

de interiorizaccedilatildeo da violecircncia no paiacutes se apresentava no cenaacuterio campinense4 para

isso procuramos identificar e interpretar em que medida os casos crescentes de

violecircncia letal atingiam os vaacuterios segmentos da populaccedilatildeo de Campina Grande

Esse recente processo de interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil no iniacutecio de

seacuteculo XXI tem sido objeto de boas anaacutelises cientiacuteficas algumas das quais destacam

2 A uacuteltima estimativa feita pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e estatiacutestica) foi feita em 2014 httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=250400ampsearch=paraiba|campina-grande Acessado em fevereiro de 2015

3 Em muitos casos a percepccedilatildeo do crescimento da sensaccedilatildeo de inseguranccedila eacute reforccedilada pelos programas policialescos estaduais e municipais que fazem dos relatos sensacionalistas dos eventos violentos e crimes chamarizes para os ouvintes eou espectadores

4 Gentiacutelico de quem nasce em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 166

as vaacuterias transformaccedilotildees ocorridas no paiacutes nas uacuteltimas deacutecadas Entre tais variaacuteveis

vale ressaltar a forte repressatildeo dos oacutergatildeos policiais na regiatildeo Sudeste contra o crime

organizado e a consequente migraccedilatildeo de organizaccedilotildees criminosas para regiotildees nas

quais os aparatos policiais natildeo tecircm o mesmo poder de combate Agrega-se a isso a

variaacutevel da dinacircmica do mercado de bens liacutecitos e iliacutecitos que encontra na regiatildeo

Nordeste a possibilidade de expansatildeo de seus mercados em decorrecircncia dessa

regiatildeo ter tido crescimento5 econocircmico acima da meacutedia nacional na uacuteltima deacutecada

Vivendo em meio ao processo de ldquointeriorizaccedilatildeo da violecircnciardquo certamente

ainda eacute cedo para que consigamos dimensionar com competecircncia suficiente as

muacuteltiplas dimensotildees que tal processo tem produzido e produziraacute nos anos vindouros

no Brasil Contudo alguns estudos merecem destaque entre eles o Mapa da

Violecircncia 2008 publicado pelo Instituto Sangari6 cujo periacuteodo de anaacutelise cobre os

homiciacutedios entre 2002 e 2006 em cuja publicaccedilatildeo a cidade foco de nossa pesquisa

aparecia situada na 340ordf7 posiccedilatildeo entre os municiacutepios brasileiros com uma taxa8 de

362 mortes por grupos de cem mil habitantes Embora a posiccedilatildeo ateacute entatildeo ocupada

pela cidade no quadro dos municiacutepios mais violentos do paiacutes natildeo trouxesse razotildees

para comemoraccedilatildeo por parte de nenhum administrador da seguranccedila puacuteblica jaacute que

a taxa da cidade era superior agrave nacional Todavia o que se produziria nos anos

seguintes revelaria que o processo de aumento da violecircncia homicida no interior e

particularmente na cidade se intensificaria De acordo com nova publicaccedilatildeo9 que veio

agrave luz em 2011 Campina Grande chegou agrave taxa de 484 homiciacutedios por grupos de cem

mil habitantes em 2010 No prazo de quatro anos a cidade ldquosaltourdquo 160 (cento e

5 Particularmente a regiatildeo Nordeste A respeito ver importantes anaacutelise do IPEA

6 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violecircncia 2008 Satildeo Paulo Instituto Sangari Brasiacutelia Ministeacuterio da Justiccedila Ministeacuterio da Sauacutede RITLA 2008

7 Idem Os nuacutemeros apresentados mostram que Campina Grande ostentava em 2006 139 homiciacutedios em 2005 136 em 2004 124 em 2003 126 e em 2002 108 P 21

8 A taxa para grupos de cem mil mortes foi convencionada internacionalmente e eacute largamente utilizada em estudos e poliacuteticas puacuteblicas em todo o mundo para dimensionar o impacto dos homiciacutedios Vale lembrar que a ONU considera taxas acima de 10 casos por grupos de referecircncia como endecircmicas

9 WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 p 41

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sessenta) posiccedilotildees no quadro das cidades mais violentas do paiacutes passando a ocupar

a 180ordf posiccedilatildeo

Na busca de entender a relaccedilatildeo entre exclusatildeo social e crimes letais em

Campina Grande procuramos identificar os cenaacuterios e atores envolvidos nos

entreveros que produziram ldquomortes matadasrdquo Para isso procuramos conhecer os

seus lugares sociais a partir de variaacuteveis como idade gecircnero grau de escolaridade

local de moradia profissatildeoocupaccedilatildeo raccedila estado civil etc

A pesquisa foi realizada durante os anos de 2010 e 2011 e elegeu como

recorte temporal o biecircnio 2009 e 2010 Ateacute o final da pesquisa concluiacuteda em meados

de 2011 O Mapa da Violecircncia 2012 ateacute entatildeo natildeo havia sido publicado Apoacutes sua

publicaccedilatildeo no final de 2011 pudemos ter acesso aos dados sobre os homiciacutedios no

Brasil entre os anos de 2008 a 2010 Vale lembrar que esta ldquoausecircnciardquo de dados ateacute

entatildeo tambeacutem tinha servido como motivaccedilotildees para a realizaccedilatildeo da pesquisa muito

embora como esperamos deixar claro ao longo deste trabalho a publicaccedilatildeo do

Instituto Sangari natildeo se propotildee a fazer uma anaacutelise de profundidade dos dados ao

contraacuterio de nossa pesquisa

Construindo o campo metodoloacutegico em meio a arquivos

A pesquisa foi realizada a partir de dados secundaacuterios colhidos junto a quatro

fontes sendo duas oficiais (e estatais) e duas jornaliacutesticas respectivamente Poliacutecia

Civil da Paraiacuteba onde colhemos os Boletins de Ocorrecircncia (BOrsquos) sobre homiciacutedios

referentes aos anos pesquisados Instituto de Medicina Legal da Paraiacuteba doravante

IML no qual pesquisamos os laudos cadaveacutericos dos mortos por accedilatildeo violenta

provocada por outrem e Jornal da Paraiacuteba e Diaacuterio da Borborema10 Esses dois

uacuteltimos satildeo jornais vespertinos de circulaccedilatildeo estadual nos quais colhemos dados nas

10

Fechou as portas em fevereiro de 2012 A nossa pesquisa foi uma das uacuteltimas a ter acesso aos arquivos do jornal em pleno funcionamento

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 168

reportagens sobre crimes de homiciacutedio cometidos em Campina Grande durante o

periacuteodo ldquocobertordquo pela pesquisa

Eacute importante esclarecer que a escolha de muacuteltiplas fontes com informaccedilotildees

sobre os eventos homicidas na cidade durante o periacuteodo analisado foi enriquecedor

na medida em que nos permitiu fazer o cotejamento dos dados colhidos nas vaacuterias

fontes isso possibilitou o preenchimento de lacunas que por vezes se apresentava

nos dados produzidos por uma ou outra instituiccedilatildeo

A escolha de trabalhar com dados secundaacuterios em arquivos de jornais e em

instituiccedilotildees ligadas agrave Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica da Paraiacuteba estaacute diretamente

vinculada agrave natureza de nosso objeto de estudo Ao escolher trabalhar com

homiciacutedios por razotildees obvias nos foi impossiacutevel entrevistar as viacutetimas Restava-nos

ainda a possibilidade de se trabalhar com suspeitos e reacuteus dos crimes Todavia o

grande nuacutemero de casos de homiciacutedios cujos autores permanecem ldquodesconhecidosrdquo

se revelou um obstaacuteculo de difiacutecil superaccedilatildeo Especula-se que no Brasil apenas 8

(oito por cento) dos casos de homiciacutedios tem autoria esclarecida pela poliacutecia O

acesso aos familiares das viacutetimas por sua vez tambeacutem se mostrou difiacutecil por causa do

tempo exiacuteguo que tiacutenhamos para realizar um processo de aproximaccedilatildeo negociaccedilatildeo e

sensibilizaccedilatildeo com pessoas que passavam por processos psicoloacutegicos traumaacuteticos

apoacutes a perda de seus entes

Por sua vez o processo de negociaccedilatildeo com os responsaacuteveis pelas instituiccedilotildees

responsaacuteveis pelos dados foram realizados inicialmente atraveacutes de contatos

telefocircnicos e posteriormente oficializados mediante ofiacutecios da Unidade Acadecircmica

de Ciecircncias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande Um dos jornais

cobrou a taxa de R$ 3000 para acesso aos dados e limitou11 a quantidade de dias de

acesso aos arquivos

11

Posteriormente no decorrer da pesquisa in loco a limitaccedilatildeo de dias foi abolida restando apenas a exigecircncia de controle sobre horaacuterio e quantidade de pessoas que acessavam os arquivos dos jornais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 169

De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As

dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se

mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo

ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados

como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a

respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a

esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas

fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse

relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo

Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas

particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de

homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante

Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23

perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como

data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da

pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13

de acordo com a fonte acessada

A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em

termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas

fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e

personagens

12

Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela

13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos

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A construccedilatildeo dos dados

Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos

vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo

exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo

diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos

com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo

tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos

processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e

veicularam

Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como

marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima

de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como

classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos

fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em

Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens

entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos

dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos

de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala

muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas

paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados

cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares

e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas

relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 171

Discutindo a violecircncia homicida

Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009

e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das

principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de

(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a

violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem

seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A

compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas

manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia

Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica

sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia

A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua

incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma

sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute

colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece

afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o

homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e

na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo

algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente

nos dias atuais

Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos

produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de

(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que

A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social

entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 172

grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos

morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social

Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas

homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos

histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os

distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual

Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como

uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas

pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia

fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares

secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade

Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo

da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor

domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da

racionalidade moderna

No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como

conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de

ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das

aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de

violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os

homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes

meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila

da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus

14

Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 173

membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos

favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores

e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de

imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por

carecircncias das mais variadas ordens

Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)

aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais

contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir

sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que

a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um

excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a

informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos

imateriais de informaccedilatildeo

Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de

formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os

que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira

estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens

simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como

pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais

satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo

ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que

algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar

socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande

Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e

utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social

pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade

Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174

seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que

romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER

2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas

nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo

Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade

ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria

conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os

policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER

1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de

homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos

O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora

de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de

violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas

Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica

no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente

processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial

conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade

Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da

violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais

distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam

entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as

enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que

produzem

15

Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 175

Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande

Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da

Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e

reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das

praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo

tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo

que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo

De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado

em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio

Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada

menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em

2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo

analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma

maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante

mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso

contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos

puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em

Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre

gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de

masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem

16

WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa

17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176

como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 4: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 166

as vaacuterias transformaccedilotildees ocorridas no paiacutes nas uacuteltimas deacutecadas Entre tais variaacuteveis

vale ressaltar a forte repressatildeo dos oacutergatildeos policiais na regiatildeo Sudeste contra o crime

organizado e a consequente migraccedilatildeo de organizaccedilotildees criminosas para regiotildees nas

quais os aparatos policiais natildeo tecircm o mesmo poder de combate Agrega-se a isso a

variaacutevel da dinacircmica do mercado de bens liacutecitos e iliacutecitos que encontra na regiatildeo

Nordeste a possibilidade de expansatildeo de seus mercados em decorrecircncia dessa

regiatildeo ter tido crescimento5 econocircmico acima da meacutedia nacional na uacuteltima deacutecada

Vivendo em meio ao processo de ldquointeriorizaccedilatildeo da violecircnciardquo certamente

ainda eacute cedo para que consigamos dimensionar com competecircncia suficiente as

muacuteltiplas dimensotildees que tal processo tem produzido e produziraacute nos anos vindouros

no Brasil Contudo alguns estudos merecem destaque entre eles o Mapa da

Violecircncia 2008 publicado pelo Instituto Sangari6 cujo periacuteodo de anaacutelise cobre os

homiciacutedios entre 2002 e 2006 em cuja publicaccedilatildeo a cidade foco de nossa pesquisa

aparecia situada na 340ordf7 posiccedilatildeo entre os municiacutepios brasileiros com uma taxa8 de

362 mortes por grupos de cem mil habitantes Embora a posiccedilatildeo ateacute entatildeo ocupada

pela cidade no quadro dos municiacutepios mais violentos do paiacutes natildeo trouxesse razotildees

para comemoraccedilatildeo por parte de nenhum administrador da seguranccedila puacuteblica jaacute que

a taxa da cidade era superior agrave nacional Todavia o que se produziria nos anos

seguintes revelaria que o processo de aumento da violecircncia homicida no interior e

particularmente na cidade se intensificaria De acordo com nova publicaccedilatildeo9 que veio

agrave luz em 2011 Campina Grande chegou agrave taxa de 484 homiciacutedios por grupos de cem

mil habitantes em 2010 No prazo de quatro anos a cidade ldquosaltourdquo 160 (cento e

5 Particularmente a regiatildeo Nordeste A respeito ver importantes anaacutelise do IPEA

6 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violecircncia 2008 Satildeo Paulo Instituto Sangari Brasiacutelia Ministeacuterio da Justiccedila Ministeacuterio da Sauacutede RITLA 2008

7 Idem Os nuacutemeros apresentados mostram que Campina Grande ostentava em 2006 139 homiciacutedios em 2005 136 em 2004 124 em 2003 126 e em 2002 108 P 21

8 A taxa para grupos de cem mil mortes foi convencionada internacionalmente e eacute largamente utilizada em estudos e poliacuteticas puacuteblicas em todo o mundo para dimensionar o impacto dos homiciacutedios Vale lembrar que a ONU considera taxas acima de 10 casos por grupos de referecircncia como endecircmicas

9 WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 p 41

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 167

sessenta) posiccedilotildees no quadro das cidades mais violentas do paiacutes passando a ocupar

a 180ordf posiccedilatildeo

Na busca de entender a relaccedilatildeo entre exclusatildeo social e crimes letais em

Campina Grande procuramos identificar os cenaacuterios e atores envolvidos nos

entreveros que produziram ldquomortes matadasrdquo Para isso procuramos conhecer os

seus lugares sociais a partir de variaacuteveis como idade gecircnero grau de escolaridade

local de moradia profissatildeoocupaccedilatildeo raccedila estado civil etc

A pesquisa foi realizada durante os anos de 2010 e 2011 e elegeu como

recorte temporal o biecircnio 2009 e 2010 Ateacute o final da pesquisa concluiacuteda em meados

de 2011 O Mapa da Violecircncia 2012 ateacute entatildeo natildeo havia sido publicado Apoacutes sua

publicaccedilatildeo no final de 2011 pudemos ter acesso aos dados sobre os homiciacutedios no

Brasil entre os anos de 2008 a 2010 Vale lembrar que esta ldquoausecircnciardquo de dados ateacute

entatildeo tambeacutem tinha servido como motivaccedilotildees para a realizaccedilatildeo da pesquisa muito

embora como esperamos deixar claro ao longo deste trabalho a publicaccedilatildeo do

Instituto Sangari natildeo se propotildee a fazer uma anaacutelise de profundidade dos dados ao

contraacuterio de nossa pesquisa

Construindo o campo metodoloacutegico em meio a arquivos

A pesquisa foi realizada a partir de dados secundaacuterios colhidos junto a quatro

fontes sendo duas oficiais (e estatais) e duas jornaliacutesticas respectivamente Poliacutecia

Civil da Paraiacuteba onde colhemos os Boletins de Ocorrecircncia (BOrsquos) sobre homiciacutedios

referentes aos anos pesquisados Instituto de Medicina Legal da Paraiacuteba doravante

IML no qual pesquisamos os laudos cadaveacutericos dos mortos por accedilatildeo violenta

provocada por outrem e Jornal da Paraiacuteba e Diaacuterio da Borborema10 Esses dois

uacuteltimos satildeo jornais vespertinos de circulaccedilatildeo estadual nos quais colhemos dados nas

10

Fechou as portas em fevereiro de 2012 A nossa pesquisa foi uma das uacuteltimas a ter acesso aos arquivos do jornal em pleno funcionamento

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 168

reportagens sobre crimes de homiciacutedio cometidos em Campina Grande durante o

periacuteodo ldquocobertordquo pela pesquisa

Eacute importante esclarecer que a escolha de muacuteltiplas fontes com informaccedilotildees

sobre os eventos homicidas na cidade durante o periacuteodo analisado foi enriquecedor

na medida em que nos permitiu fazer o cotejamento dos dados colhidos nas vaacuterias

fontes isso possibilitou o preenchimento de lacunas que por vezes se apresentava

nos dados produzidos por uma ou outra instituiccedilatildeo

A escolha de trabalhar com dados secundaacuterios em arquivos de jornais e em

instituiccedilotildees ligadas agrave Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica da Paraiacuteba estaacute diretamente

vinculada agrave natureza de nosso objeto de estudo Ao escolher trabalhar com

homiciacutedios por razotildees obvias nos foi impossiacutevel entrevistar as viacutetimas Restava-nos

ainda a possibilidade de se trabalhar com suspeitos e reacuteus dos crimes Todavia o

grande nuacutemero de casos de homiciacutedios cujos autores permanecem ldquodesconhecidosrdquo

se revelou um obstaacuteculo de difiacutecil superaccedilatildeo Especula-se que no Brasil apenas 8

(oito por cento) dos casos de homiciacutedios tem autoria esclarecida pela poliacutecia O

acesso aos familiares das viacutetimas por sua vez tambeacutem se mostrou difiacutecil por causa do

tempo exiacuteguo que tiacutenhamos para realizar um processo de aproximaccedilatildeo negociaccedilatildeo e

sensibilizaccedilatildeo com pessoas que passavam por processos psicoloacutegicos traumaacuteticos

apoacutes a perda de seus entes

Por sua vez o processo de negociaccedilatildeo com os responsaacuteveis pelas instituiccedilotildees

responsaacuteveis pelos dados foram realizados inicialmente atraveacutes de contatos

telefocircnicos e posteriormente oficializados mediante ofiacutecios da Unidade Acadecircmica

de Ciecircncias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande Um dos jornais

cobrou a taxa de R$ 3000 para acesso aos dados e limitou11 a quantidade de dias de

acesso aos arquivos

11

Posteriormente no decorrer da pesquisa in loco a limitaccedilatildeo de dias foi abolida restando apenas a exigecircncia de controle sobre horaacuterio e quantidade de pessoas que acessavam os arquivos dos jornais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 169

De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As

dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se

mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo

ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados

como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a

respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a

esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas

fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse

relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo

Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas

particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de

homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante

Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23

perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como

data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da

pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13

de acordo com a fonte acessada

A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em

termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas

fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e

personagens

12

Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela

13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 170

A construccedilatildeo dos dados

Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos

vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo

exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo

diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos

com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo

tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos

processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e

veicularam

Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como

marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima

de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como

classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos

fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em

Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens

entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos

dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos

de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala

muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas

paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados

cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares

e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas

relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 171

Discutindo a violecircncia homicida

Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009

e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das

principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de

(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a

violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem

seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A

compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas

manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia

Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica

sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia

A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua

incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma

sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute

colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece

afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o

homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e

na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo

algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente

nos dias atuais

Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos

produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de

(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que

A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social

entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 172

grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos

morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social

Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas

homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos

histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os

distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual

Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como

uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas

pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia

fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares

secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade

Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo

da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor

domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da

racionalidade moderna

No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como

conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de

ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das

aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de

violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os

homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes

meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila

da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus

14

Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 173

membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos

favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores

e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de

imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por

carecircncias das mais variadas ordens

Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)

aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais

contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir

sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que

a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um

excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a

informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos

imateriais de informaccedilatildeo

Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de

formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os

que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira

estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens

simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como

pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais

satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo

ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que

algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar

socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande

Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e

utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social

pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade

Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174

seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que

romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER

2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas

nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo

Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade

ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria

conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os

policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER

1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de

homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos

O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora

de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de

violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas

Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica

no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente

processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial

conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade

Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da

violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais

distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam

entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as

enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que

produzem

15

Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 175

Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande

Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da

Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e

reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das

praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo

tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo

que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo

De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado

em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio

Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada

menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em

2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo

analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma

maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante

mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso

contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos

puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em

Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre

gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de

masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem

16

WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa

17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176

como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

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Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 5: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 167

sessenta) posiccedilotildees no quadro das cidades mais violentas do paiacutes passando a ocupar

a 180ordf posiccedilatildeo

Na busca de entender a relaccedilatildeo entre exclusatildeo social e crimes letais em

Campina Grande procuramos identificar os cenaacuterios e atores envolvidos nos

entreveros que produziram ldquomortes matadasrdquo Para isso procuramos conhecer os

seus lugares sociais a partir de variaacuteveis como idade gecircnero grau de escolaridade

local de moradia profissatildeoocupaccedilatildeo raccedila estado civil etc

A pesquisa foi realizada durante os anos de 2010 e 2011 e elegeu como

recorte temporal o biecircnio 2009 e 2010 Ateacute o final da pesquisa concluiacuteda em meados

de 2011 O Mapa da Violecircncia 2012 ateacute entatildeo natildeo havia sido publicado Apoacutes sua

publicaccedilatildeo no final de 2011 pudemos ter acesso aos dados sobre os homiciacutedios no

Brasil entre os anos de 2008 a 2010 Vale lembrar que esta ldquoausecircnciardquo de dados ateacute

entatildeo tambeacutem tinha servido como motivaccedilotildees para a realizaccedilatildeo da pesquisa muito

embora como esperamos deixar claro ao longo deste trabalho a publicaccedilatildeo do

Instituto Sangari natildeo se propotildee a fazer uma anaacutelise de profundidade dos dados ao

contraacuterio de nossa pesquisa

Construindo o campo metodoloacutegico em meio a arquivos

A pesquisa foi realizada a partir de dados secundaacuterios colhidos junto a quatro

fontes sendo duas oficiais (e estatais) e duas jornaliacutesticas respectivamente Poliacutecia

Civil da Paraiacuteba onde colhemos os Boletins de Ocorrecircncia (BOrsquos) sobre homiciacutedios

referentes aos anos pesquisados Instituto de Medicina Legal da Paraiacuteba doravante

IML no qual pesquisamos os laudos cadaveacutericos dos mortos por accedilatildeo violenta

provocada por outrem e Jornal da Paraiacuteba e Diaacuterio da Borborema10 Esses dois

uacuteltimos satildeo jornais vespertinos de circulaccedilatildeo estadual nos quais colhemos dados nas

10

Fechou as portas em fevereiro de 2012 A nossa pesquisa foi uma das uacuteltimas a ter acesso aos arquivos do jornal em pleno funcionamento

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 168

reportagens sobre crimes de homiciacutedio cometidos em Campina Grande durante o

periacuteodo ldquocobertordquo pela pesquisa

Eacute importante esclarecer que a escolha de muacuteltiplas fontes com informaccedilotildees

sobre os eventos homicidas na cidade durante o periacuteodo analisado foi enriquecedor

na medida em que nos permitiu fazer o cotejamento dos dados colhidos nas vaacuterias

fontes isso possibilitou o preenchimento de lacunas que por vezes se apresentava

nos dados produzidos por uma ou outra instituiccedilatildeo

A escolha de trabalhar com dados secundaacuterios em arquivos de jornais e em

instituiccedilotildees ligadas agrave Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica da Paraiacuteba estaacute diretamente

vinculada agrave natureza de nosso objeto de estudo Ao escolher trabalhar com

homiciacutedios por razotildees obvias nos foi impossiacutevel entrevistar as viacutetimas Restava-nos

ainda a possibilidade de se trabalhar com suspeitos e reacuteus dos crimes Todavia o

grande nuacutemero de casos de homiciacutedios cujos autores permanecem ldquodesconhecidosrdquo

se revelou um obstaacuteculo de difiacutecil superaccedilatildeo Especula-se que no Brasil apenas 8

(oito por cento) dos casos de homiciacutedios tem autoria esclarecida pela poliacutecia O

acesso aos familiares das viacutetimas por sua vez tambeacutem se mostrou difiacutecil por causa do

tempo exiacuteguo que tiacutenhamos para realizar um processo de aproximaccedilatildeo negociaccedilatildeo e

sensibilizaccedilatildeo com pessoas que passavam por processos psicoloacutegicos traumaacuteticos

apoacutes a perda de seus entes

Por sua vez o processo de negociaccedilatildeo com os responsaacuteveis pelas instituiccedilotildees

responsaacuteveis pelos dados foram realizados inicialmente atraveacutes de contatos

telefocircnicos e posteriormente oficializados mediante ofiacutecios da Unidade Acadecircmica

de Ciecircncias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande Um dos jornais

cobrou a taxa de R$ 3000 para acesso aos dados e limitou11 a quantidade de dias de

acesso aos arquivos

11

Posteriormente no decorrer da pesquisa in loco a limitaccedilatildeo de dias foi abolida restando apenas a exigecircncia de controle sobre horaacuterio e quantidade de pessoas que acessavam os arquivos dos jornais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 169

De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As

dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se

mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo

ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados

como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a

respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a

esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas

fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse

relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo

Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas

particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de

homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante

Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23

perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como

data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da

pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13

de acordo com a fonte acessada

A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em

termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas

fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e

personagens

12

Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela

13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos

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A construccedilatildeo dos dados

Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos

vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo

exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo

diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos

com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo

tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos

processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e

veicularam

Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como

marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima

de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como

classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos

fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em

Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens

entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos

dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos

de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala

muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas

paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados

cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares

e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas

relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 171

Discutindo a violecircncia homicida

Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009

e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das

principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de

(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a

violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem

seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A

compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas

manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia

Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica

sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia

A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua

incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma

sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute

colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece

afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o

homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e

na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo

algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente

nos dias atuais

Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos

produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de

(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que

A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social

entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 172

grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos

morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social

Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas

homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos

histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os

distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual

Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como

uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas

pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia

fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares

secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade

Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo

da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor

domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da

racionalidade moderna

No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como

conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de

ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das

aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de

violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os

homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes

meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila

da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus

14

Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 173

membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos

favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores

e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de

imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por

carecircncias das mais variadas ordens

Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)

aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais

contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir

sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que

a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um

excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a

informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos

imateriais de informaccedilatildeo

Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de

formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os

que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira

estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens

simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como

pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais

satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo

ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que

algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar

socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande

Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e

utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social

pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade

Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174

seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que

romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER

2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas

nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo

Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade

ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria

conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os

policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER

1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de

homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos

O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora

de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de

violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas

Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica

no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente

processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial

conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade

Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da

violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais

distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam

entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as

enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que

produzem

15

Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 175

Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande

Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da

Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e

reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das

praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo

tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo

que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo

De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado

em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio

Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada

menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em

2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo

analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma

maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante

mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso

contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos

puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em

Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre

gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de

masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem

16

WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa

17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176

como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

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Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

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Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da

SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 6: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 168

reportagens sobre crimes de homiciacutedio cometidos em Campina Grande durante o

periacuteodo ldquocobertordquo pela pesquisa

Eacute importante esclarecer que a escolha de muacuteltiplas fontes com informaccedilotildees

sobre os eventos homicidas na cidade durante o periacuteodo analisado foi enriquecedor

na medida em que nos permitiu fazer o cotejamento dos dados colhidos nas vaacuterias

fontes isso possibilitou o preenchimento de lacunas que por vezes se apresentava

nos dados produzidos por uma ou outra instituiccedilatildeo

A escolha de trabalhar com dados secundaacuterios em arquivos de jornais e em

instituiccedilotildees ligadas agrave Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica da Paraiacuteba estaacute diretamente

vinculada agrave natureza de nosso objeto de estudo Ao escolher trabalhar com

homiciacutedios por razotildees obvias nos foi impossiacutevel entrevistar as viacutetimas Restava-nos

ainda a possibilidade de se trabalhar com suspeitos e reacuteus dos crimes Todavia o

grande nuacutemero de casos de homiciacutedios cujos autores permanecem ldquodesconhecidosrdquo

se revelou um obstaacuteculo de difiacutecil superaccedilatildeo Especula-se que no Brasil apenas 8

(oito por cento) dos casos de homiciacutedios tem autoria esclarecida pela poliacutecia O

acesso aos familiares das viacutetimas por sua vez tambeacutem se mostrou difiacutecil por causa do

tempo exiacuteguo que tiacutenhamos para realizar um processo de aproximaccedilatildeo negociaccedilatildeo e

sensibilizaccedilatildeo com pessoas que passavam por processos psicoloacutegicos traumaacuteticos

apoacutes a perda de seus entes

Por sua vez o processo de negociaccedilatildeo com os responsaacuteveis pelas instituiccedilotildees

responsaacuteveis pelos dados foram realizados inicialmente atraveacutes de contatos

telefocircnicos e posteriormente oficializados mediante ofiacutecios da Unidade Acadecircmica

de Ciecircncias Sociais da Universidade Federal de Campina Grande Um dos jornais

cobrou a taxa de R$ 3000 para acesso aos dados e limitou11 a quantidade de dias de

acesso aos arquivos

11

Posteriormente no decorrer da pesquisa in loco a limitaccedilatildeo de dias foi abolida restando apenas a exigecircncia de controle sobre horaacuterio e quantidade de pessoas que acessavam os arquivos dos jornais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 169

De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As

dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se

mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo

ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados

como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a

respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a

esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas

fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse

relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo

Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas

particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de

homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante

Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23

perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como

data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da

pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13

de acordo com a fonte acessada

A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em

termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas

fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e

personagens

12

Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela

13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 170

A construccedilatildeo dos dados

Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos

vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo

exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo

diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos

com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo

tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos

processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e

veicularam

Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como

marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima

de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como

classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos

fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em

Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens

entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos

dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos

de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala

muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas

paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados

cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares

e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas

relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 171

Discutindo a violecircncia homicida

Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009

e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das

principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de

(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a

violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem

seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A

compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas

manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia

Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica

sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia

A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua

incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma

sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute

colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece

afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o

homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e

na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo

algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente

nos dias atuais

Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos

produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de

(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que

A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social

entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 172

grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos

morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social

Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas

homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos

histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os

distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual

Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como

uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas

pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia

fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares

secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade

Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo

da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor

domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da

racionalidade moderna

No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como

conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de

ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das

aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de

violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os

homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes

meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila

da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus

14

Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 173

membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos

favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores

e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de

imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por

carecircncias das mais variadas ordens

Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)

aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais

contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir

sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que

a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um

excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a

informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos

imateriais de informaccedilatildeo

Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de

formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os

que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira

estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens

simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como

pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais

satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo

ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que

algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar

socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande

Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e

utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social

pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade

Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174

seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que

romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER

2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas

nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo

Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade

ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria

conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os

policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER

1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de

homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos

O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora

de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de

violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas

Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica

no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente

processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial

conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade

Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da

violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais

distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam

entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as

enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que

produzem

15

Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 175

Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande

Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da

Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e

reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das

praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo

tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo

que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo

De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado

em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio

Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada

menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em

2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo

analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma

maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante

mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso

contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos

puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em

Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre

gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de

masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem

16

WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa

17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176

como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 7: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 169

De iniacutecio foram colhidos os dados produzidos pelos dois jornais indicados As

dificuldades de acessar informaccedilotildees a respeito de crimes de homiciacutedios se

mostraram abundantes Em primeiro lugar nenhum dos jornais possuiacutea ldquocadernosrdquo

ou paacuteginas especiacuteficas destinados aos acontecimentos comumente classificados

como policiais o que dificultou sobremaneira a ldquoidentificaccedilatildeordquo de reportagens a

respeito dos homiciacutedios praticamente exigindo a leitura de todo o jornal Segundo a

esporadicidade das reportagens sobre a temaacutetica tornou nossa pesquisa nessas

fontes aacuterdua e por vezes produzia a sensaccedilatildeo de lsquotempo perdidorsquo A partir desse

relato talvez se possa pensar que esse foi um peacuteriplo de pesquisa pouco produtivo

Poreacutem se considerarmos a problematizaccedilatildeo12 da produccedilatildeo dos dados por jornalistas

particularmente na atribuiccedilatildeo de categorias agraves viacutetimas e aos agressores de casos de

homiciacutedios certamente esse percurso de pesquisa se mostraraacute bem mais instigante

Na coleta dos dados nas vaacuterias fontes nos utilizamos de questionaacuterio com 23

perguntas versando sobre as caracteriacutesticas das viacutetimas de homiciacutedios tais como

data do crime local motivaccedilatildeo idades de viacutetima e suspeito arma utilizada cor da

pele escolaridade profissatildeo estado civil entre outras O formulaacuterio foi adaptado13

de acordo com a fonte acessada

A pesquisa junto ao IML e agrave Poliacutecia Civil se mostrou bem mais profiacutecua em

termos de coleta de dados do que nas fontes anteriormente citadas pois essas

fontes tinham muitas informaccedilotildees a respeitos dos homiciacutedios seus contextos e

personagens

12

Esta discussatildeo seraacute desenvolvida um pouco mais a frente mesmo que natildeo constitua o objetivo principal do texto em tela

13 Informaccedilotildees sobre a data da reportagem que no caso dos jornais se mostrava imprescindiacutevel era desnecessaacuteria para o BOacutes e para os Laudos cadaveacutericos

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A construccedilatildeo dos dados

Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos

vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo

exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo

diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos

com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo

tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos

processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e

veicularam

Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como

marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima

de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como

classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos

fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em

Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens

entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos

dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos

de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala

muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas

paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados

cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares

e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas

relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo

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Discutindo a violecircncia homicida

Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009

e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das

principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de

(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a

violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem

seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A

compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas

manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia

Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica

sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia

A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua

incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma

sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute

colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece

afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o

homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e

na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo

algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente

nos dias atuais

Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos

produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de

(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que

A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social

entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 172

grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos

morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social

Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas

homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos

histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os

distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual

Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como

uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas

pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia

fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares

secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade

Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo

da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor

domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da

racionalidade moderna

No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como

conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de

ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das

aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de

violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os

homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes

meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila

da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus

14

Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 173

membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos

favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores

e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de

imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por

carecircncias das mais variadas ordens

Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)

aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais

contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir

sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que

a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um

excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a

informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos

imateriais de informaccedilatildeo

Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de

formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os

que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira

estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens

simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como

pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais

satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo

ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que

algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar

socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande

Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e

utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social

pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade

Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174

seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que

romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER

2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas

nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo

Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade

ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria

conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os

policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER

1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de

homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos

O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora

de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de

violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas

Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica

no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente

processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial

conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade

Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da

violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais

distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam

entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as

enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que

produzem

15

Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos

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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande

Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da

Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e

reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das

praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo

tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo

que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo

De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado

em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio

Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada

menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em

2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo

analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma

maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante

mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso

contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos

puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em

Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre

gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de

masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem

16

WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa

17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176

como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

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A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 8: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 170

A construccedilatildeo dos dados

Ao se trabalhar com dados produzidos por terceiros noacutes pesquisadores nos

vemos ldquoobrigadosrdquo a fazer uso de termos e classificaccedilotildees sobre os quais natildeo

exercemos nenhuma influecircncia no seu processo de construccedilatildeo Isso todavia natildeo

diminui nossa responsabilidade no uso de tais categorias Assim ao trabalharmos

com as categorizaccedilotildees propostas por jornalistas policiais e peritos procuramos natildeo

tomaacute-las como valores em si mesmos mas como objetivaccedilotildees de muacuteltiplos

processos e expressotildees de distintas visotildees dos atores sociais que as produziram e

veicularam

Entre as muitas categorizaccedilotildees utilizadas vemos atribuiccedilotildees tais como

marginal usuaacuterio de drogas noiado analfabeto desocupado negro pobre queima

de arquivo baderneiro marginal etc Essas foram registradas e tomadas como

classificaccedilotildees que expressam as leituras de mundo que jornalistas policiais e peritos

fazem do mundo e particularmente dos envolvidos em casos de homiciacutedios em

Campina Grande Embora natildeo tenhamos entrevistado diretamente esses personagens

entendemos que tais categorizaccedilotildees expressam amostras de suas visotildees atraveacutes dos

dados que produziram E essas foram tomadas ao longo da pesquisa como pontos

de vistas que precisam ser compreendidos a partir do lugar social de quem fala

muitas vezes expressando visotildees estigmatizadoras outras vezes enunciando oacuteticas

paternalistas Seja como for satildeo classificaccedilotildees que satildeo tomadas como dados

cristalizados frutos de enunciados polissecircmicos que resultam e enunciam os lugares

e valores sociais de seus produtores E como tal precisam ser questionadas

relativizadas colocadas em suspeiccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 171

Discutindo a violecircncia homicida

Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009

e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das

principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de

(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a

violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem

seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A

compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas

manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia

Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica

sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia

A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua

incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma

sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute

colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece

afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o

homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e

na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo

algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente

nos dias atuais

Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos

produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de

(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que

A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social

entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 172

grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos

morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social

Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas

homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos

histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os

distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual

Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como

uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas

pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia

fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares

secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade

Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo

da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor

domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da

racionalidade moderna

No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como

conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de

ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das

aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de

violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os

homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes

meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila

da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus

14

Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 173

membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos

favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores

e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de

imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por

carecircncias das mais variadas ordens

Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)

aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais

contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir

sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que

a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um

excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a

informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos

imateriais de informaccedilatildeo

Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de

formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os

que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira

estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens

simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como

pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais

satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo

ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que

algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar

socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande

Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e

utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social

pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade

Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174

seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que

romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER

2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas

nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo

Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade

ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria

conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os

policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER

1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de

homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos

O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora

de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de

violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas

Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica

no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente

processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial

conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade

Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da

violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais

distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam

entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as

enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que

produzem

15

Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 175

Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande

Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da

Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e

reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das

praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo

tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo

que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo

De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado

em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio

Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada

menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em

2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo

analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma

maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante

mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso

contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos

puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em

Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre

gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de

masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem

16

WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa

17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176

como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

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Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 9: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 171

Discutindo a violecircncia homicida

Os eventos homicidas ocorridos em Campina Grande durante os anos de 2009

e 2010 com os quais trabalhamos em nossa pesquisa preenche bem algumas das

principais definiccedilotildees do conceito de violecircncia Partindo-se da perspectiva de

(MICHAUD 2001) (FREUND 1983) MAFFESOLI (2001) pode-se afirmar que a

violecircncia se configura como conjunto de accedilotildees e estrateacutegias utilizadas contra algueacutem

seja esse indiviacuteduo ou grupo levando-o a agir (e a sentir) contra a sua vontade A

compreensatildeo do fenocircmeno da violecircncia natildeo pode ser reduzida agraves suas

manifestaccedilotildees mais visiacuteveis e diretas nas quais o uso da forccedila fiacutesica se evidencia

Todavia eacute inegaacutevel que sua manifestaccedilatildeo direta parece ser tomada como claacutessica

sobre a qual parece natildeo restar qualquer duacutevida de sua existecircncia

A percepccedilatildeo sobre os homiciacutedios e os consequentes impactos gerados por sua

incidecircncia variam em consonacircncia com os contextos histoacuterico e social Em uma

sociedade cristatilde e capitalista como a nossa na qual teoricamente o ldquobem da vidardquo eacute

colocado como uacutenico e supremo a manifestaccedilatildeo de praacuteticas homicidas parece

afrontar e destruir aquilo que algueacutem pode possui de mais relevante De fato o

homiciacutedio anuncia o fim de uma trajetoacuteria ele acaba com a existecircncia de indiviacuteduos e

na maioria dos casos prenuncia sofrimento para amigos e familiares Essas satildeo

algumas das razotildees que tornam o evento do homiciacutedio tatildeo relevante socialmente

nos dias atuais

Contudo mesmo sem se mostrar insensiacutevel agraves dores e aos sofrimentos

produzidos em decorrecircncia dos homiciacutedios ficamos atentos agraves palavras de

(MICHAUD 2001p 93) ao afirmar que

A tarefa da teoria social eacute compreender a violecircncia como fenocircmeno social

entre outros Ainda que pareccedila uma aberraccedilatildeo uma cataacutestrofe ou uma disfunccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 172

grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos

morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social

Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas

homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos

histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os

distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual

Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como

uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas

pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia

fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares

secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade

Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo

da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor

domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da

racionalidade moderna

No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como

conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de

ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das

aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de

violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os

homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes

meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila

da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus

14

Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 173

membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos

favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores

e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de

imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por

carecircncias das mais variadas ordens

Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)

aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais

contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir

sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que

a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um

excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a

informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos

imateriais de informaccedilatildeo

Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de

formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os

que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira

estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens

simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como

pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais

satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo

ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que

algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar

socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande

Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e

utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social

pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade

Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174

seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que

romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER

2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas

nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo

Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade

ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria

conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os

policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER

1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de

homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos

O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora

de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de

violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas

Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica

no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente

processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial

conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade

Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da

violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais

distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam

entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as

enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que

produzem

15

Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos

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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande

Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da

Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e

reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das

praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo

tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo

que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo

De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado

em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio

Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada

menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em

2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo

analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma

maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante

mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso

contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos

puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em

Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre

gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de

masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem

16

WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa

17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais

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como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

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Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 10: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 172

grave o socioacutelogo natildeo pode se deixar levar pela aparecircncia ou ceder a julgamentos

morais e deve situaacute-la na unidade do funcionamento social

Nessa direccedilatildeo eacute razoaacutevel supormos que os sentidos atribuiacutedos agraves praacuteticas

homicidas atualmente satildeo diferentes de outras configuradas em momentos

histoacutericos distintos do nosso mas certamente tambeacutem se diferenciam entre os

distintos grupos sociais que convivem no interior da sociedade brasileira atual

Diante de certas oacuteticas tradicionais o homiciacutedio parece se apresentar como

uma das mais abominaacuteveis praacuteticas de violecircncia por causa das razotildees acima referidas

pois como mostrou (ELIAS 1994) na modernidade as demonstraccedilotildees de violecircncia

fiacutesica foram sendo desestimuladas desvalorizadas e relegadas aos lugares

secundaacuterios quando comparados aqueles ocupados por exemplo durante a Idade

Meacutedia Na modernidade o uso das forccedilas fiacutesicas passou a ser visto como expressatildeo

da incapacidade dos indiviacuteduos de se autoconterem demonstrando um menor

domiacutenio de si mesmo o que equivaleria a um menor (ou precaacuterio) uso da

racionalidade moderna

No curso desse processo o uso da violecircncia simboacutelica passou a ser vista como

conquista dos segmentos que tiveram acesso aos ldquobons niacuteveisrdquo de escolaridade e de

ldquorefinamentordquo social Por conseguinte aqueles que restaram agrave margem das

aquisiccedilotildees dessas conquistas continuariam fazendo uso de ldquoformas arcaicasrdquo de

violecircncia para resolver seus conflitos14 Eacute nessa perspectiva que muitos veem os

homiciacutedios em nossos dias Natildeo por acaso os crimes ocorridos entre as classes

meacutedias brasileiras geram tanto clamor social como se esses atestassem a presenccedila

da ldquobarbaridaderdquo que se acreditava sob controle e portanto distante de seus

14

Conflito eacute aqui tomado como o conjunto de disposiccedilotildees latentes eou manifestos construiacutedos e utilizados por indiviacuteduos e grupos para expressarem suas discordacircncias frente aos adversaacuterios Os conflitos ajudam a compor a tessitura da vida social (SIMMEL 1995) e diferentemente da violecircncia que implica na tentativa de fazer imposiccedilotildees a sua vontade do adversaacuterio o conflito enuncia posiccedilotildees distintas frente ao um mesmo objeto de desejo (GIRARD 2008) sem necessariamente implicar em violecircncia A violecircncia prescinde do conflito mas natildeo o contraacuterio

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 173

membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos

favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores

e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de

imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por

carecircncias das mais variadas ordens

Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)

aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais

contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir

sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que

a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um

excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a

informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos

imateriais de informaccedilatildeo

Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de

formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os

que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira

estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens

simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como

pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais

satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo

ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que

algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar

socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande

Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e

utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social

pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade

Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174

seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que

romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER

2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas

nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo

Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade

ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria

conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os

policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER

1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de

homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos

O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora

de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de

violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas

Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica

no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente

processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial

conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade

Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da

violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais

distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam

entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as

enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que

produzem

15

Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 175

Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande

Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da

Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e

reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das

praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo

tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo

que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo

De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado

em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio

Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada

menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em

2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo

analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma

maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante

mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso

contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos

puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em

Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre

gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de

masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem

16

WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa

17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176

como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

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contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de

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Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013

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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 11: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 173

membros Inversamente quando os homiciacutedios atingem os segmentos menos

favorecidos eles satildeo vistos e relatados por muitos segmentos sociais conservadores

e elitistas notadamente tambeacutem pelas forccedilas policiais e por parte dos oacutergatildeos de

imprensa como ldquoacontecimentos normaisrdquo para contextos fortemente marcados por

carecircncias das mais variadas ordens

Ao analisar esse processo de ldquosensibilizaccedilatildeordquo moderna (ELIAS Idem 1994)

aponta para uma novas configuraccedilotildees da violecircncia nas sociedades ocidentais

contemporacircneas Seguindo a mesma seara (MARTUCELLI 1999 p 162) ao refletir

sobre as condiccedilotildees da violecircncia na condiccedilatildeo moderna observa que

a violecircncia eacute representada sob a forma de um deacuteficit de informaccedilatildeo e um

excesso de accedilatildeo fiacutesica ou de energia Na violecircncia a accedilatildeo impotildee-se sobre a

informaccedilatildeo ela eacute uma desmedida energeacutetica num mundo de fluxos

imateriais de informaccedilatildeo

Portanto o uso da forccedila fiacutesica revelaria ausecircncia de acesso ou de domiacutenio de

formas ldquomais racionais e suavesrdquo de ser resolver conflitos Como consequecircncia os

que fazem uso deste tipo de violecircncia nos dias atuais seriam vistos de maneira

estigmatizada tidos como grupos e indiviacuteduos com acesso restrito aos bens

simboacutelicos e materiais das sociedades burguesas contemporacircneas Tal como

pudemos ler nos ldquodiscursosrdquo durante nossa pesquisa as viacutetimas dos entreveros letais

satildeo apontados como ldquopobresrdquo ldquoanalfabetosrdquo ldquonegrosrdquo ldquofaveladosrdquo ldquosertanejosrdquo

ldquodesocupadordquo ldquomaconheirordquo ldquonoiadordquo ldquomelianterdquo para natildeo citar mais do que

algumas classificaccedilotildees largamente empregadas por jornalistas e policiais para situar

socialmente vitimas e suspeitos de homiciacutedios em Campina Grande

Ao contraacuterio daqueles que nos querem fazer crer em visotildees profeacuteticas e

utoacutepicas a violecircncia tal como os conflitos natildeo pode ser extirpada da vida social

pois ela constitui um elemento importante na configuraccedilatildeo da vida em sociedade

Todavia em niacutevel de senso comum e mesmo para algumas abordagens cientiacuteficas

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174

seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que

romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER

2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas

nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo

Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade

ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria

conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os

policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER

1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de

homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos

O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora

de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de

violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas

Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica

no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente

processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial

conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade

Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da

violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais

distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam

entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as

enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que

produzem

15

Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 175

Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande

Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da

Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e

reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das

praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo

tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo

que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo

De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado

em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio

Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada

menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em

2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo

analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma

maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante

mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso

contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos

puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em

Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre

gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de

masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem

16

WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa

17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176

como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na

contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de

1998

ARENDT Hannah Sobre a Violecircncia Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2001

BAUMAM Zygmunt Medo Liacutequido Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2008

BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999

CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours

Paris Hachette 1981

CLASTRES Pierre Arqueologia da violecircncia Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003

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Janeiro Jorge Zahar Editor 1994

FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983

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MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto

Alegre Sulina 2001

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MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183

NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em

Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE

2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)

SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle

Muller Saulxures Editions Circeacute 1995

WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia

Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo

Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo

Paulo Instituto Sangari 2010

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da

Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo

Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da

SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 12: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 174

seus praticantes contemporacircneos 15 parecem ser tomados como indiviacuteduos que

romperam com certo contrato social Mesmo que como bem observa (HERITIER

2004) ldquonenhuma sociedade permite ao individuo matar livremente outros mas

nenhuma sociedade o interdita completamenterdquo

Assim embora o uso da violecircncia fiacutesica permaneccedila como uma possibilidade

ao alcance de todos a autorizaccedilatildeo para o seu uso de forma legal somente seria

conferida ao Estado (atraveacutes de seu corpo de funcionaacuterios especializados os

policiais) enquanto detentor do monopoacutelio do uso legal da forccedila fiacutesica (WEBER

1982) Por conseguinte os que natildeo se enquadram neste perfil e praticam crimes de

homiciacutedio entre outros satildeo considerados por princiacutepio juriacutedico como criminosos

O Estado portanto se constituiria como instituiccedilatildeo mediadora e reguladora

de conflitos entre indiviacuteduos e grupos sociais fazendo com que as manifestaccedilotildees de

violecircncia sejam minoradas senatildeo evitadas

Nesse sentido a perspectiva que analisa o controle do uso da violecircncia fiacutesica

no mundo contemporacircneo tambeacutem pode ser tomada como ldquodenunciardquo do crescente

processo de intoleracircncia contra as manifestaccedilotildees da violecircncia fiacutesica em especial

conta agravequelas que natildeo tecircm o aval de legitimidade

Com efeito eacute importante natildeo se perder de vista que a esteacutetica (esteacuteticas) da

violecircncia contemporacircnea se produz em meio a interesses e conflitos das mais

distintas ordens Por sua vez a maneira como esses satildeo sentidos e julgados guardam

entrelaccedilamentos com as visotildees e praacuteticas de mundo de indiviacuteduos e grupos que as

enunciam natildeo soacute pelas accedilotildees de suas matildeos mas tambeacutem pela forccedila dos dados que

produzem

15

Ao utilizar a expressatildeo ldquopraticantes contemporacircneosrdquo gostariacuteamos de sublinhar que qualquer um pode ser autor ou viacutetima de tal evento contudo aqui trabalhamos como casos empiacutericos a partir dos quais os discursos utilizados satildeo acionados para classificar os atores sociais envolvidos

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 175

Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande

Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da

Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e

reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das

praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo

tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo

que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo

De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado

em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio

Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada

menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em

2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo

analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma

maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante

mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso

contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos

puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em

Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre

gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de

masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem

16

WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa

17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176

como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na

contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de

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CLASTRES Pierre Arqueologia da violecircncia Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003

ELIAS Nobert O Processo Civilizador Uma Histoacuteria dos Costumes Vol I Rio de

Janeiro Jorge Zahar Editor 1994

FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983

GIRARD Reneacute A violecircncia e o Sagrado 3ordf Ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2008

HERITIER Franccediloise Les fondements de la violence Analyse anthropologique In

TOUATI Aramand (Org) Violences De la Reacuteflexion agrave lacuteIntervention Paris Cultures

em Mouvements 2004

MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto

Alegre Sulina 2001

MARTUCCELLI Danilo Reflexotildees sobre a violecircncia na condiccedilatildeo moderna Tempo

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MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183

NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em

Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE

2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)

SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle

Muller Saulxures Editions Circeacute 1995

WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia

Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo

Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo

Paulo Instituto Sangari 2010

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da

Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo

Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da

SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

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Resultados Cenaacuterios e personagens da violecircncia homicida em Campina Grande

Os dados colhidos junto aos arquivos dos jornais da Paraiacuteba Diaacuterio da

Borborema IML e Poliacutecia Civil satildeo ldquoretratosrdquo de uma realidade social captados e

reveladosproduzidos a partir do registro de dado fenocircmeno social - a incidecircncia das

praacuteticas de homiciacutedio no municiacutepio paraibano de Campina Grande Ao mesmo

tempo como jaacute delineamos anteriormente os dados satildeo visotildees leituras de mundo

que estatildeo situadas nas redes de relaccedilotildees sociais na cidade foco de nosso estudo

De acordo com os dados colhidos junto a essas fontes no periacuteodo analisado

em nossa pesquisa foram registrados 327 crimes de homiciacutedios16 no municiacutepio

Desses 140 ocorreram no ano de 2009 e 187 em 2010 Dentre as viacutetimas nada

menos do que 304 (trezentos e quatro) eram do gecircnero masculino17 sendo 129 em

2009 e 175 no ano seguinte o que perfaz 93 dos eventos letais durante o periacuteodo

analisado Talvez esse percentual pudesse ser explicado como resultado de uma

maior exposiccedilatildeo e circulaccedilatildeo dos homens nos espaccedilos puacuteblicos Poreacutem eacute importante

mencionar que natildeo se trata apenas de maior circulaccedilatildeo e exposiccedilatildeo pois caso

contraacuterio como relacionariacuteamos as conquistas femininas na ocupaccedilatildeo de espaccedilos

puacuteblicos agrave ldquobaixardquo incidecircncia de violecircncia homicida que atinge o gecircnero feminino em

Campina Grande no biecircnio 2009-2010 Certamente a explicaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre

gecircnero masculino e violecircncia homicida passa pela compreensatildeo dos modelos de

masculinidade e expressotildees de violecircncia utilizadas em eventos conflituosos bem

16

WAISELFISZ Julio JacobosMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011 publicado no final de 2011 traz nuacutemeros diferentes e ligeiramente superiores aos coletados na presente pesquisa Segundo o Mapa teriam sido 155 homiciacutedios em 2009 e 218 em 2010 Em parte essa diferenccedila pode ser explicada pelo tratamento metodoloacutegico dedicado aos dados A nossa pesquisa cobriu os dados brutos sem revisatildeo e sem possiacuteveis alteraccedilotildees No caso da publicaccedilatildeo citada o autor se refere aos dados de 2010 como ldquopreliminaresrdquo (p 19) mostrando assim que os mesmos poderiam ser alterados Apesar da diferenccedila numeacuterica isso natildeo representa um problema para a presente pesquisa haja vista o propoacutesito estabelecido na presente pesquisa

17 Idem (2011 p 67) mostra que no Brasil no ano de 2010 914 das viacutetimas de homiciacutedios eram do gecircnero masculino o que demonstra uma ldquosintoniardquo entre os dados de Campina Grande e os nacionais

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176

como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na

contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de

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BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999

CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours

Paris Hachette 1981

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2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)

SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle

Muller Saulxures Editions Circeacute 1995

WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia

Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo

Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo

Paulo Instituto Sangari 2010

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da

Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo

Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da

SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 14: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 176

como pelas precaacuterias investigaccedilotildees policiais e as consequentes taxas elevadas de

impunidade que prevalecem na realidade do paiacutes

Igualmente revelador eacute o fato que 200 (duzentas) viacutetimas de violecircncia letal na

cidade de Campina Grande durante o periacuteodo analisada eram jovens com idades

entre 14 e 2918 anos o que equivale a mais de 61 do universo investigado

Dentre os dados disponiacuteveis referentes ao estado civil 164 (cento e sessenta e

quatro) das viacutetimas foram descritas como solteiras representando 50 do total Na

mesma esteira de informaccedilotildees referente ao grau de escolaridade havia referecircncias agrave

escolaridade de 91 (noventa e um) pessoas para o ano de 2009 das quais 68 natildeo

tinham completado o Ensino Fundamental 7 (sete) o tinham completado 8 (oito)

haviam completado o Ensino Meacutedio e 2 dois tinham esse niacutevel incompleto 1 (um)

tinha curso superior e 5 (cinco) foram descritos como alfabetizados No ano de 2010

o quadro se apresenta com os seguintes nuacutemeros Havia dados disponiacuteveis

referentes agrave escolaridade para 112 (cento e doze) viacutetimas Entre essas 74 (setenta e

quatro) tinham o Ensino Fundamental incompleto 21 (vinte e uma) o haviam

completado 8 (oito) tinham cursado o Ensino Meacutedio e 2 (duas) natildeo tinham

completado tal niacutevel de ensino 6 (seis) apareciam como alfabetizada e 1 (uma) tinha

curso superior

Se considerarmos a junccedilatildeo dos nuacutemeros na categoria Ensino Fundamental

incompleto nos dois anos veremos que 142 (cento e quarenta e duas) viacutetimas forma

incluiacutedas nessa categoria perfazendo 70 das viacutetimas Inversamente quando

computados os nuacutemeros de viacutetimas com curso superior obtemos o percentual de 1

Uma primeira observaccedilatildeo salta aos olhos aos constatarmos que os homiciacutedios

atingem predominantemente as pessoas com graus mais baixos de escolaridade

Todavia essa eacute uma relaccedilatildeo que precisa ser mais bem estudada e compreendida Se

entendermos a violecircncia como um instrumento tal como (ARENDT 2001) veremos

18

Aqui trabalhamos com a indicaccedilatildeo da Secretaria Nacional de Juventude que pensa as pessoas ateacute 29 anos como jovens adultos Na presente anaacutelise quando se considera jovem ateacute 24 anos passamos a ter o percentual de 40

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na

contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de

1998

ARENDT Hannah Sobre a Violecircncia Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2001

BAUMAM Zygmunt Medo Liacutequido Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2008

BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999

CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours

Paris Hachette 1981

CLASTRES Pierre Arqueologia da violecircncia Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003

ELIAS Nobert O Processo Civilizador Uma Histoacuteria dos Costumes Vol I Rio de

Janeiro Jorge Zahar Editor 1994

FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983

GIRARD Reneacute A violecircncia e o Sagrado 3ordf Ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2008

HERITIER Franccediloise Les fondements de la violence Analyse anthropologique In

TOUATI Aramand (Org) Violences De la Reacuteflexion agrave lacuteIntervention Paris Cultures

em Mouvements 2004

MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto

Alegre Sulina 2001

MARTUCCELLI Danilo Reflexotildees sobre a violecircncia na condiccedilatildeo moderna Tempo

Social Rev Sociol USP Satildeo Paulo 11 (1) 157- 175 maio de 1999

MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183

NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em

Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE

2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)

SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle

Muller Saulxures Editions Circeacute 1995

WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia

Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo

Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo

Paulo Instituto Sangari 2010

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da

Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo

Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da

SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 15: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 177

que os segmentos mais pobres da populaccedilatildeo campinense tecircm menos ou em muitos

casos nenhum acesso a outros instrumentos de resoluccedilatildeo de conflitos a exemplo da

justiccedila e poliacutecia (a natildeo ser na condiccedilatildeo de suspeito) entre outros

Outra variaacutevel que merece ser destacada nesta pesquisa eacute a da raccedila Mesmo

considerando a possiacutevel fragilidade com que tal variaacutevel foi construiacuteda pelos autores

dos dados com os quais trabalhamos eacute preciso lembrar que tal ldquofragilidaderdquo eacute

resultado das ldquomedidas largasrdquo a partir das quais se define raccedila no Brasil Seja como

for dentre os dados consultados havia referecircncia para 223 (duzentas e vinte e trecircs)

viacutetimas Dessas 218 (duzentas e dezoito) foram apontadas como negras19 e 5 (cinco)

como brancas Curiosamente ou natildeo o percentual de negros vitimados representa

97 das viacutetimas para agraves quais havia referecircncias agrave cor da pele Os nuacutemeros natildeo

parecem apenas alarmantes no fundo eles revelam os resultados mais visiacuteveis de um

processo cruel de discriminaccedilatildeo e dizimaccedilatildeo da populaccedilatildeo negra paraibana De

modo semelhante encontramos em outra publicaccedilatildeo 20 quadro semelhante de

incidecircncia de violecircncia homicida sobre a populaccedilatildeo negra do Estado da Paraiacuteba

Os tipos de armas utilizadas nos eventos letais e os locais de moradias das

viacutetimas foram duas outras categorias consideradas em nossa pesquisa Dentre os

meios utilizados para levar a cabo a morte de outrem em 260 (duzentos e sessenta

eventos) foram utilizados armas de fogo em 30 (trinta) foram empregados armas

brancas e nos demais foram empregados paus pedras espancamento esganadura

etc O total de eventos letais nos quais armas de fogo foram empregadas com o

intuito de matar equivalem a 80 dos casos de homiciacutedios em Campina Grande

durante os anos de 2009 e 2010

19

Aqui trabalhamos com a definiccedilatildeo proposta pela IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica) que inclui pardos e pretos na categoria negro

20 WAISELFISZ Julio Jacobo (Op Cit2011 p 62) revela que no ano de 2010 das 1378 (mil trezentas e setenta e oito) pessoas assassinadas no Estado da Paraiacuteba 1329 (mil trezentas e vinte e nove) eram negras e 49 (quarenta e nove) eram brancas O percentual de negros neste quadro equivale a 964 Portanto semelhante agravequilo que se produz em Campina Grande

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na

contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de

1998

ARENDT Hannah Sobre a Violecircncia Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2001

BAUMAM Zygmunt Medo Liacutequido Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2008

BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999

CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours

Paris Hachette 1981

CLASTRES Pierre Arqueologia da violecircncia Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003

ELIAS Nobert O Processo Civilizador Uma Histoacuteria dos Costumes Vol I Rio de

Janeiro Jorge Zahar Editor 1994

FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983

GIRARD Reneacute A violecircncia e o Sagrado 3ordf Ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2008

HERITIER Franccediloise Les fondements de la violence Analyse anthropologique In

TOUATI Aramand (Org) Violences De la Reacuteflexion agrave lacuteIntervention Paris Cultures

em Mouvements 2004

MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto

Alegre Sulina 2001

MARTUCCELLI Danilo Reflexotildees sobre a violecircncia na condiccedilatildeo moderna Tempo

Social Rev Sociol USP Satildeo Paulo 11 (1) 157- 175 maio de 1999

MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183

NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em

Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE

2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)

SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle

Muller Saulxures Editions Circeacute 1995

WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia

Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo

Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo

Paulo Instituto Sangari 2010

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da

Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo

Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da

SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 16: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 178

A grande circulaccedilatildeo de armas nas matildeos da populaccedilatildeo brasileira pode ser vista

como um potencializador de homiciacutedios Todavia por mais obvio que pareccedila natildeo eacute a

simples presenccedila21 de arma que determina o seu uso para fins letais mas sim a

decisatildeo do indiviacuteduo de usaacute-la Basta lembrar que o Brasil possui atualmente cerca

de 15 milhotildees de armas em matildeos privadas das quais mais da metade natildeo eacute

registrada Nos Estados Unidos existem 270 milhotildees de armas nas matildeos da

populaccedilatildeo Haveremos de supor portanto que nos Estados Unidos se mata muito

mais por armas de fogo do que no Brasil Todavia natildeo eacute o que acontece pois no

Brasil se mata trecircs vezes e meia mais com armas de fogo do que nos Estados Unidos

Com relaccedilatildeo ao local de moradia22 das viacutetimas 210 (duzentas e dez) residiam

em bairros com condiccedilotildees precaacuterias de infraestrutura marcados pela ausecircncia de

equipamentos puacuteblicos de uso coletivo como praccedilas postos de sauacutede rede de

esgoto escolas espaccedilos de lazer etc Coincidentemente haacute uma forte correlaccedilatildeo

entre lugar de moradia e de ocorrecircncia dos eventos criminosos mostrando que a

espacialidade geograacutefica nos casos dos crimes de homiciacutedios ocorridos em Campina

Grande assume uma relevacircncia singular na configuraccedilatildeo social dos crimes de

homiciacutedios Natildeo se trata portanto da viacutetima estar no lugar ldquoerradordquo na hora ldquoerradardquo

pois em boa parte dos casos as viacutetimas se encontravam em lugares proacuteximos agraves suas

casas que se espera seja um ambiente de acolhimento repouso respeito e proteccedilatildeo

agrave sua integridade fiacutesica

Com base no quadro de ocorrecircncia homicidas em Campina Grande

certamente eacute possiacutevel falarmos em bairros nos quais as praacuteticas de violecircncia

homicida satildeo mais suscetiacuteveis de ocorrer com destaque para localidades perifeacutericas

como Pedregal Gloacuteria Bodocongoacute Distrito de Satildeo Joseacute da Mata Araxaacute Jeremias

21

Sobre informaccedilotildees a respeito das quantidades de armas no Brasil e nos EUA ver httpwwwbbccoukportuguesenoticias201212121218_armas_brasil_eua_violencia_mmshtml Acesso em 10 de agosto de 2013

22 Nesta pesquisa os bairros da cidade foram considerados a partir de cinco categorizaccedilotildees nobre perifeacuterico centro distrito e zona rural As condiccedilotildees econocircmicas das populaccedilotildees dessas localidades e a infraestrutura dos bairros tiveram relevacircncia na classificaccedilatildeo

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na

contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de

1998

ARENDT Hannah Sobre a Violecircncia Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2001

BAUMAM Zygmunt Medo Liacutequido Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2008

BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999

CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours

Paris Hachette 1981

CLASTRES Pierre Arqueologia da violecircncia Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003

ELIAS Nobert O Processo Civilizador Uma Histoacuteria dos Costumes Vol I Rio de

Janeiro Jorge Zahar Editor 1994

FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983

GIRARD Reneacute A violecircncia e o Sagrado 3ordf Ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2008

HERITIER Franccediloise Les fondements de la violence Analyse anthropologique In

TOUATI Aramand (Org) Violences De la Reacuteflexion agrave lacuteIntervention Paris Cultures

em Mouvements 2004

MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto

Alegre Sulina 2001

MARTUCCELLI Danilo Reflexotildees sobre a violecircncia na condiccedilatildeo moderna Tempo

Social Rev Sociol USP Satildeo Paulo 11 (1) 157- 175 maio de 1999

MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183

NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em

Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE

2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)

SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle

Muller Saulxures Editions Circeacute 1995

WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia

Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo

Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo

Paulo Instituto Sangari 2010

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da

Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo

Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da

SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 17: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 179

Morro do Urubuacute Todavia essa maior suscetibilidade eacute resultado da relaccedilatildeo de

variaacuteveis que incluem ausecircncia de infraestrutura pouca23 presenccedila estatal no campo

da seguranccedila e na regulaccedilatildeo de conflitos praacuteticas comerciais iliacutecitas em algumas

localidades forte ingestatildeo de bebidas alcooacutelicas em outras etc Nesse cenaacuterio vale

relembrar a presenccedila de armas de fogo e armas brancas em dadas situaccedilotildees de

conflitos tambeacutem deve ser considerada como ldquopotencializadorardquo de homiciacutedios

Muitas das reportagens e BOacutes aos quais tivemos acesso durante a pesquisa

indicavam que os suspeitos residiam nas mesmas localidades das viacutetimas o que

fortalece a hipoacutetese de ver esses espaccedilos de exclusatildeo social marcados pela

precariedade das mais variadas ordens como espaccedilos de forte letalidade homicida

na cidade Essa ldquocoincidecircnciardquo resulta de uma configuraccedilatildeo social que ao mesmo

tempo em que produz exclui os segmentos pobres da populaccedilatildeo forccedilando-os a

residirem nas periferias e os ldquoentregandordquo agrave proacutepria sorte deixando-os ldquoao leacuteurdquo

Como se natildeo bastasse esses grupos e indiviacuteduos ainda satildeo responsabilizados (por

conservadores) como os uacutenicos responsaacuteveis por tudo o que ocorre em seus

cotidianos Natildeo por acaso algumas explicaccedilotildees dos segmentos tradicionais das

classes meacutedias da imprensa ou mesmo da poliacutecia atribuem aos crimes ocorridos

nessas localidades o caraacuteter de ldquoqueima de arquivordquo ldquoresistecircncia agrave poliacuteciardquo

ldquoenvolvimento com coisas erradasrdquo usuaacuterio de drogas etc

No fundo essas explicaccedilotildees partem da ideia generalizante de que a violecircncia

homicida seria uma ldquonormalidaderdquo no espaccedilo da periferia pobre da cidade O mesmo

certamente natildeo se produz quando os crimes de homiciacutedio ocorrem nos bairros

considerados nobres eou quando atingem algum dos seus membros Assim o que

se constata nas periferias da cidade no tocante aacute violecircncia homicida eacute utilizado como

justificativas E nesse cenaacuterio as regularidades de categorias sociais de viacutetimas e

agressores satildeo vistas como confirmaccedilatildeoreforccedilo das explicaccedilotildees conservadoras

23

Por vezes a presenccedila policial em determinadas localidades se resume ldquoa caccedilar suspeitosrdquo de terem cometido algum crime

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na

contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de

1998

ARENDT Hannah Sobre a Violecircncia Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2001

BAUMAM Zygmunt Medo Liacutequido Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2008

BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999

CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours

Paris Hachette 1981

CLASTRES Pierre Arqueologia da violecircncia Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003

ELIAS Nobert O Processo Civilizador Uma Histoacuteria dos Costumes Vol I Rio de

Janeiro Jorge Zahar Editor 1994

FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983

GIRARD Reneacute A violecircncia e o Sagrado 3ordf Ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2008

HERITIER Franccediloise Les fondements de la violence Analyse anthropologique In

TOUATI Aramand (Org) Violences De la Reacuteflexion agrave lacuteIntervention Paris Cultures

em Mouvements 2004

MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto

Alegre Sulina 2001

MARTUCCELLI Danilo Reflexotildees sobre a violecircncia na condiccedilatildeo moderna Tempo

Social Rev Sociol USP Satildeo Paulo 11 (1) 157- 175 maio de 1999

MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183

NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em

Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE

2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)

SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle

Muller Saulxures Editions Circeacute 1995

WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia

Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo

Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo

Paulo Instituto Sangari 2010

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da

Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo

Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da

SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

Page 18: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 180

Conclusatildeo

Certamente a anaacutelise da dinacircmica dos homiciacutedios em Campina Grande requer

um esforccedilo para uma ldquocompreensatildeo profundardquo do conjunto de variaacuteveis que

contribuem em maior ou menor grau para tal quadro de violecircncia no municiacutepio

paraibano E nessa tentativa de explicaccedilatildeo as transformaccedilotildees ocorridas nas uacuteltimas

deacutecadas no paiacutes com seus impactos positivos e negativos e sua consequente

influecircncia no campo das disputas entre grupos e indiviacuteduos na cidade em tela

precisam ser consideradas Eacute nessa direccedilatildeo que hoje se fala em um processo de

interiorizaccedilatildeo da violecircncia no Brasil Esse tema por si soacute renderia muitos trabalhos

acadecircmicos

O aquecimento da economia na regiatildeo Nordeste acima da meacutedia nacional

nesses uacuteltimos anos trouxe um forte investimento e transformaccedilotildees urbanas na

cidade de Campina Grande onde o processo de verticalizaccedilatildeo imobiliaacuteria ganhou

novo impulso e o comeacutercio tem vivido bons momentos Evidentemente esse cenaacuterio

de oportunidades traz consigo a expansatildeo de novas circunstacircncias inclusive o

aumento da circulaccedilatildeo e consumo de bens liacutecitos e iliacutecitos tais como cdacutes carros

motos casas apartamentos bebidas roupas sapatos tecircnis reloacutegios viagens drogas

arma etc E paralelamente gera-se o aumento das disputas em torno dos possiacuteveis

benefiacutecios dessa expansatildeo de oportunidades Disputas essas que se datildeo das mais

variadas formas a partir de configuraccedilotildees sociais jaacute presentes e que passam a ser

potencializadas de novos conflitos e de novas formas e alternativas para a resoluccedilatildeo

desses Juntem-se a isso as difiacuteceis condiccedilotildees e a sempre lenta atitude do Estado

paraibano incluindo-se aiacute os seus policiamentos militar e civil em dar conta das

demandas que aparecem particularmente quando envolvem indiviacuteduos e grupos

com reduzido poder de influecircncia e mobilizaccedilatildeo poliacutetica

No cenaacuterio social da cidade desta urbe a ocorrecircncia de homiciacutedios natildeo se

constitui como obras do acaso frutos de eventualidades nas quais indiviacuteduos e

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 182

dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na

contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de

1998

ARENDT Hannah Sobre a Violecircncia Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2001

BAUMAM Zygmunt Medo Liacutequido Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2008

BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999

CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours

Paris Hachette 1981

CLASTRES Pierre Arqueologia da violecircncia Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003

ELIAS Nobert O Processo Civilizador Uma Histoacuteria dos Costumes Vol I Rio de

Janeiro Jorge Zahar Editor 1994

FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983

GIRARD Reneacute A violecircncia e o Sagrado 3ordf Ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2008

HERITIER Franccediloise Les fondements de la violence Analyse anthropologique In

TOUATI Aramand (Org) Violences De la Reacuteflexion agrave lacuteIntervention Paris Cultures

em Mouvements 2004

MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto

Alegre Sulina 2001

MARTUCCELLI Danilo Reflexotildees sobre a violecircncia na condiccedilatildeo moderna Tempo

Social Rev Sociol USP Satildeo Paulo 11 (1) 157- 175 maio de 1999

MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183

NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em

Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE

2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)

SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle

Muller Saulxures Editions Circeacute 1995

WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia

Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo

Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo

Paulo Instituto Sangari 2010

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da

Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo

Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da

SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

Email vanderlansilvauolcombr

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Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 181

grupos entram em conflito resultando em morte Em muitos dos casos analisados na

pesquisa percebemos elementos que indicavam o homiciacutedio como uma das etapas

de processos conflituosos entre indiviacuteduos eou grupos Assim o homiciacutedio natildeo se

colocava como um ldquoestranho no ninhordquo como uma eventualidade ou um pavoroso

acidente Antes ele se anunciava como uma possibilidade real em meio a processos

conflituosos que se estendiam por meses Como se diz no ldquomundo do crimerdquo a

chapa esquentou por muito tempo

Com efeito no caso analisado nesta pesquisa eacute possiacutevel se falar em um

padratildeo de produccedilatildeo de homiciacutedios a partir das regularidades de tipos e

caracteriacutesticas das viacutetimas e possivelmente de seus autores

Apontar tais regularidades natildeo implica negar a existecircncia de crimes ocasionais

e em circunstacircncia adversas agravequelas aqui indicadas Todavia como vimos nos dados

acima elencados essa ldquoregularidaderdquo nas praacuteticas homicidas eacute produzida a partir da

vitimizaccedilatildeo de indiviacuteduos que pertencem em sua grande maioria a grupos sociais

pobres e marginalizados Eles satildeo negros moradores da periferia com baixo niacutevel de

escolaridade e formaccedilatildeo profissional incipiente ou exercendo funccedilotildees de trabalho

que natildeo exigem nenhuma formaccedilatildeo profissional Satildeo homens jovens solteiros e

foram atingidos por arma de fogo na grande maioria dos casos

A face das viacutetimas de homiciacutedios na cidade de Campina Grande durante os

anos de 2009 e 2010 tecircm caracteriacutesticas comuns a tantos outros indiviacuteduos que se

encontram na margem da exclusatildeo social na cidade Em outras palavras ldquovivos e

mortosrdquo pertencem (iam) ao mesmo cenaacuterio e vivem (iam) em meio a desafios

comuns Eacute desnecessaacuterio afirmar que as evidecircncias atuais mostram que o perfil das

viacutetimas de homiciacutedio natildeo sofreu modificaccedilotildees nos anos que sucederam a realizaccedilatildeo

da pesquisa cujo presente texto procurar detalhar

Nesse cenaacuterio os homiciacutedios parecem atualizar a seu modo um processo

contiacutenuo de exclusatildeo social de indiviacuteduos e grupos socialmente relegados agrave margem

Muitos satildeo enxotados horizontalmente conduzidos aos bairros perifeacutericos distantes

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dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na

contemporaneidade Tempo Social Rev Sociol USP S Paulo 10(1) 19-47 maio de

1998

ARENDT Hannah Sobre a Violecircncia Rio de Janeiro Relume Dumaraacute 2001

BAUMAM Zygmunt Medo Liacutequido Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2008

BOURDIEU Pierre A Dominaccedilatildeo Masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999

CHESNAIS Jeans-Claude Histoire de la violence en occident de 1800 agrave nos jours

Paris Hachette 1981

CLASTRES Pierre Arqueologia da violecircncia Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

CLASTRES Pierre A Sociedade contra o estado Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2003

ELIAS Nobert O Processo Civilizador Uma Histoacuteria dos Costumes Vol I Rio de

Janeiro Jorge Zahar Editor 1994

FREUND Julien Sociologie du Conflit Paris PUF 1983

GIRARD Reneacute A violecircncia e o Sagrado 3ordf Ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2008

HERITIER Franccediloise Les fondements de la violence Analyse anthropologique In

TOUATI Aramand (Org) Violences De la Reacuteflexion agrave lacuteIntervention Paris Cultures

em Mouvements 2004

MAFFESOLI Michel A violecircncia Totalitaacuteria Ensaio de antropologia poliacutetica Porto

Alegre Sulina 2001

MARTUCCELLI Danilo Reflexotildees sobre a violecircncia na condiccedilatildeo moderna Tempo

Social Rev Sociol USP Satildeo Paulo 11 (1) 157- 175 maio de 1999

MICHAUD Yves A Violecircncia Satildeo Paulo Editora Atica 2001

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NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em

Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE

2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)

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Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

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SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

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Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

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dos centros de poder e de ldquobenefiacuteciosrdquo Entre esses ldquoalgunsrdquo satildeo conduzidos agrave

marginalidade verticalizada para baixo da terra atingidos pela face mais cruel e final

da exclusatildeo a letalidade

Referecircncias

ADORNO Seacutergio Conflitualidade e violecircncia Reflexotildees sobre a anomia na

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NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em

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2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)

SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle

Muller Saulxures Editions Circeacute 1995

WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia

Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo

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WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo

Paulo Instituto Sangari 2010

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da

Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo

Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da

SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

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Page 21: cenários e personagens dos entreveros homicidas no brasil do

Ariuacutes Campina Grande v 20 n2 pp 163-183 juldez 2014 183

NOacuteBREGA Jr Joseacute Maria Pereira de Os homiciacutedios no Brasil no Nordeste e em

Pernambuco dinacircmica relaccedilotildees de causalidade e poliacuteticas puacuteblicas Recife UFPE

2010 271 folhas (Tese de Doutorado em Ciecircncia Poliacutetica)

SIMMEL George Le Conflit Preacuteface de Julien Freud Traduit de lrsquoallemand par Sibylle

Muller Saulxures Editions Circeacute 1995

WAISELFISZ Julio JacoboslMapa da Violecircncia 2012 Os Novos Padrotildees da Violecircncia

Homicida no Brasil Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFISZ J J Mapa da violecircncia 2013 Mortes matadas por arma de fogo Satildeo

Paulo Centro Brasileiro de Estudos latinoamericanosFlacso Brasil 2013

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2010 Anatomia dos homiciacutedios no Brasil Satildeo

Paulo Instituto Sangari 2010

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia 2011 Os jovens do Brasil Brasiacutelia Ministeacuterio da

Justiccedila Satildeo Paulo Instituto Sangari 2011

WAISELFSZ J J Mapa da Violecircncia dos Municiacutepios Brasileiros 2008 BrasiacuteliaSatildeo Paulo

Rede de Informaccedilatildeo Tecnoloacutegica Latino-Americana RITLA Ministeacuterio da

SauacutedeMinisteacuterio da JusticcedilaInstituto Sangari 2009

WEBER Max Ensaios de Sociologia 5ordf Ed Rio de Janeiro Editora Guanabara 1982

Autor

Vanderlan Silva

Dr em Ciecircncias Sociais

Professor da UFCG

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