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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES ESCOLA DE BELAS ARTES DESIRÉE BASTOS DE ALMEIDA CENA PARA UM FIGURINO RIO DE JANEIRO 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES

ESCOLA DE BELAS ARTES

DESIRÉE BASTOS DE ALMEIDA

CENA PARA UM FIGURINO

RIO DE JANEIRO

2010

Livros Grátis

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Milhares de livros grátis para download.

2

DESIRÉE BASTOS DE ALMEIDA

CENA PARA UM FIGURINO

Orientadora: Profª. Drª. Angela Leite Lopes.

Co-orientador: Prof. Dr. Samuel Sampaio Abrantes.

RIO DE JANEIRO

2010

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Linha de pesquisa: Poéticas Interdisciplinares.

3

DESIRÉE BASTOS DE ALMEIDA

CENA PARA UM FIGURINO

Orientador: Profª. Drª. Angela Leite Lopes.

Co-Orientador: Prof. Dr. Samuel Sampaio Abrantes.

Aprovado em:_________________________________________

Banca examinadora:

Profª. Drª. Simone Michelin. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ.

Profª. Drª. Ana Achcar. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/

UNIRIO.

RIO DE JANEIRO

2010

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Linha de

pesquisa Poéticas Interdisciplinares.

4

Dedico este trabalho ao tempo que passei ―fazendo

arte‖ com as minhas avós Cecília, Vanda e Maria.

A Helena por ter aberto os caminhos da arte na minha

vida.

À minha super mãe pelo amor, incentivo e torcida.

A Tobias, meu grande amor e companheiro de vida.

5

Agradecimentos

À minha orientadora Angela Leite Lopes, por ter me proporcionado a

oportunidade de experimentar possibilidades não imaginadas por mim. Ao meu co-orinetador Samuel Sampaio Abrantes, grande mestre,

incentivador e amigo de muitas idas. Aos professores que enriqueceram minha jornada no decorrer desses

dois anos: Angela Leite Lopes, Samuel Sampaio Abrantes, Carlos Murad, Celso Guimarães, Carlos Azambuja, Amaury Fernandes, Rogério Medeiros, Lídia Kosovski, Ricardo Kosovski e José Dias.

À minha mais nova amiga e irmã, Suzana Nascimento, por sua

disponibilidade incondicional, intensidade, talento e companheirismo. Ao amigo e diretor Thierry Trémouroux, pela ótima parceria. Aos ex-alunos Carlos A. Campos pela ajuda e presença nos momentos

certos, e Eloy Machado pelas lindas fotografias. Aos colegas Tiago, Leandro, Almir, Rosane, Clarice, Taís, Fernanda,

Leonel, Marcelo, Leonardo, Mano, em especial Lara pela rica convivência.

6

Se somos feitos da matéria dos sonhos como diz

Shakespeare nós temos futuro. Podemos não ser

narrados, podemos não ser contados, podemos não ser

armazenados. Mas justamente por isso, porque somos

feitos da matéria dos sonhos é que nós temos fôlego para

experimentar, errar, acertar e principalmente recomeçar.

(Fernanda Montenegro)

7

Resumo

ALMEIDA, Desirée Bastos de. Cena para um Figurino, 2010, 91 pp.

Dissertação (mestrado em Teoria e experimentações da Arte: Poéticas

Interdisciplinares). – Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

Nesta dissertação pretende-se descrever, estruturar e analisar as

possibilidades de se construir uma cena a partir unicamente do figurino. A

visualidade da cena é baseada nos trabalhos sobre espacialidade e figurinos

de Oskar Schlemmer na Escola da Bauhaus, e nos objetos encontrados e nas

embalagens de Tadeusz Kantor. Por meio de dois experimentos práticos, que

seguem em caminhos distintos, são abordadas questões como métodos de

construção, técnicas, materialidade e a possibilidade de autonomia do figurino.

Palavras- Chave: cena, figurino, colagem, espaço, embalagem, Tadeusz

Kantor, Oskar Schlemmer, autonomia, objeto.

8

Abstract

This dissertation aims to describe, organize and analyze the possibilities

of building a scene from only the costumes. The scene´s visuality is based on

Oskar Schlemmer’s work on spatiality and costumes at Bauhaus School, and

found objects and emballage of Tadeusz Kantor. Through two experiments,

which follow different paths, are dealt with issues such as construction methods,

techniques, materiality and the possibility of costume´s autonomy.

Keywords: scene, costume, emballage, space, Oskar Schlemmer,

Tadeusz Kantor, autonomy, object.

9

Índice de imagens

1. Figurinos e máscaras de Pablo Picasso para o balé Parade, 1917. In: http://susannassketchbook.typepad.com/.a/6a00d83451f59869e201156f8f367d970b-

500wi Pág.20.

2. Esquema de Oskar Schlemmer para a transformação do espaço a partir do corpo humano. In:(WERNECK 1999, 54) Pág.21.

3. Esquema desenvolvido por Oskar Schlemmer para redesenhar o corpo humano de uma maneira plástica. In: http://oquememove.files.wordpress.com/2007/09/oscar-sch-gif.gif Pág. 22.

4. Figurinos criados por Oskar Schlemmer para o Triadisches Ballet. In: http://1.bp.blogspot.com/KDCTffK0Jg/SXS1n0yDoHI/AAAAAAAAAa8/oOY2QutGjyM/s40

0/251879630_d4eaf6d566.jpg Pág. 24.

5. Figurinos da peça O Jogo, fotos: Alexandre Lima. Pág. 29.

6. Primeira etapa da construção do figurino: atores observando as roupas no chão. (arquivo pessoal) Pág. 36.

7. Etapas de escolha das roupas: vesti-las, escrever um texto e juntar tudo

em uma trouxa. (Atriz:) (arquivo pessoal). Pág. 37.

8. Roupas que estavam na trouxa da atriz: que fazia o papel de Lena quando esta fugia do palácio. (arquivo pessoal) Pág. 38.

9. Transformação das peças de roupas selecionadas pela atriz em seu

figurino de Lena. (arquivo pesoal) Pág. 39.

10. Resultado final da colagem das roupas. (arquivo pessoal) Pág. 39.

11. Resultado de todos os figurinos de Leonce e Lena. (arquivo pessoal) Pág. 42.

12. Embalagens de Tadeusz Kantor. Coleção Cricoteka. In:

http://www.cricoteka.pl/en Pág. 45. 13. Alguns objetos catalogados para entrarem na construção do figurino.

(arquivo pessoal) Pág. 50.

14. Formatação do figurino e primeira prova com a Suzana. (arquivo pessoal)

Pág.55.

15. Fotografia ―carnaval de 1938‖ comprada na Rua da Glória. Autor desconhecido. Pág. 59.

16. Convite para a apresentação de Cena para um figurino1. (arquivo

pessoal) Pág. 60.

10

17. Suzana no início da apresentação. (arquivo pessoal) Pág. 61.

18. Parangolés de Hélio Oiticica. Da esquerda para direita:

Parangolés 1 e 3 In: http://revistatpm.uol.com.br/_lib/common/imgCrop.php%3Fparams%3Dparangoles-2.jpg

Parangolé 2 In: http://paulanadal.files.wordpress.com/2009/10/parangole.jpg

Pág. 67.

19. Estudo feito a partir da sobreposição da embalagem de Tadeusz Kantor

sobre o estudo espacial da ―Dança dos bastões‖ de Oskar Schlemmer. (arquivo pessoal) Pág. 69.

20. Segundo estudo montado a partir do diagrama espacial de Oskar

Schlemmer sob uma das embalagens de Tadeusz Kantor. (arquivo pessoal) Pág. 70.

21. Roupas utilizadas na construção de Cena para um figurino2.(arquivo

pessoal) Pág. 72.

22. Roupas após tingimento. (arquivo pessoal) Pág. 73.

23. Saia jeans aberta com seus buracos e tubos. (arquivo pessoal) Pág. 75.

24. Aspecto final do figurino de Cena para um figurino2. (arquivo pessoal) Pág. 78.

25. Máscaras sensoriais de Lygia Clark, 1967.In: http://multissenso.blogspot.com/2009/11/lygia-clark-mascaras-sensoriais.html

(consultado dia 21/01/2010) Pág.79.

26. ―Experimentando‖ Cena para um figurino2. (arquivo pessoal) Pág.80.

27. Suzana imersa no figurino de Cena para um figurino2. (foto: Eloy

Machado) Pág. 85.

11

Sumário

Introdução..............................................................................................13

1 Cena e visualidade..................................................................................17

1.1 O teatro, lugar onde se vê................................................................17

1.1.1 Artes plásticas na cena.....................................................................18

1.1.2 Dança como experiência pictórica....................................................18

1.1.3 Oskar Schlemmer e a cena na Bauhaus..........................................20

1.2 Meus figurinos.....................................................................................25

2 Os primeiros passos..................................................................................27

2.1 O jogo..................................................................................................27

2.2 Brincadeiras de vestir: armários e gavetas..........................................30

2.3 Colagem..............................................................................................32

2.4 Leonce e Lena.....................................................................................34

2.4.1 Da execução.....................................................................................37

2.4.2 Da memória......................................................................................40

2.5 Embalagem..........................................................................................42

3 Cena para um figurino1..............................................................................47

3.1 Antes de tudo.......................................................................................47

3.1.1 O figurino e os objetos......................................................................48

3.1.2 Meus objetos....................................................................................49

3.2 Antes....................................................................................................52

3.2.1 A imagem do figurino........................................................................54

3.2.2 A prova de roupa e os encontros......................................................55

3.2.3 A primeira vez e os ensaios..............................................................56

3.3 Durante................................................................................................60

3.4 Depois..................................................................................................62

3.4.1 A fala como dispositivo autônomo....................................................63

3.4.2 Cena muda.......................................................................................64

3.5 Passagem............................................................................................64

4 Cena para um figurino2..............................................................................66

4.1 Reaproximações..................................................................................66

4.1.1 A renovação da embalagem.............................................................67

4.1.2 Bauhaus, espaço revisitado..............................................................68

12

4.1.3 Referências cruzadas.......................................................................69

4.2 Figurino2..............................................................................................70

4.2.1 Os materiais e a execução...............................................................72

4.2.2 A provocação dos buracos de Valère Novarina...............................74

4.2.3 Os buracos da roupa........................................................................75

4.3 Plagiando Lygia Clark: O dentro é o fora.............................................77

4.4 Apresentação: Preparativos e ―ensaio‖...............................................81

4.4.1 O interior: Suzana.............................................................................82

4.4.2 O exterior: A apresentação...............................................................83

Conclusão.............................................................................................86

Referências Bibliográficas.....................................................................89

13

Introdução

A flor está sempre na semente. (BACHELARD, 1993, p. 42)

Este projeto nasce de uma inquietação: como um objeto plástico tão

rico em significados como o figurino pode habitar a sombra da ribalta?

Com tantas teorias que privilegiam o texto, o autor e a visão do diretor,

o figurino, muitas vezes é relegado a uma função servil, pouco autônoma. No

universo da representação, o figurino tem um papel peculiar, por ser o

elemento que, mais que vestir a personagem ou executar uma função

meramente decorativa, traduz a mesma de forma mais imediata para o público.

Este trabalho, todavia, delineia a trajetória de uma busca pessoal e

artística por realizar o figurino sob outro ângulo que não o de traduzir uma

personagem de um texto pré-estabelecido. Ainda que o figurino seja

comumente pensado como um elemento que traduz personagens visualmente,

pode também, quando isolado de um sistema cênico, gerar cena a partir de

seus próprios códigos. Dessa forma, é possível desenvolvê-lo de modo que

tenha um espectro escultórico, ou seja, que sua forma, cor, materiais e

aparência sejam autônomos para que a partir deles uma cena possa ser criada.

Minhas referências pessoais e o contato com as artes plásticas foram

fundamentais para alicerçar meus métodos de construção do figurino e de

refletir sobre as possibilidades apontadas por ele. O desejo de desconstruir a

representação levou-me a desenvolver caminhos próprios de soluções visuais

até então desconhecidos por mim. Iniciei uma pesquisa sobre a colagem e o

objeto achado e como ambos afetam o figurino e a leitura do espectador.

Em 2005, pude iniciar essa inserção da colagem no meu processo

14

criativo na peça intitulada O jogo1. Ao criar os figurinos dessa montagem, revivi

minhas brincadeiras infantis de ressignificar as roupas que encontrava nos

armários dos meus pais. Esta foi provavelmente minha primeira relação com a

arte, ainda bastante presa aos objetos que, de certa forma, me proporcionavam

uma segurança para moldar minhas inquietações artísticas. Hoje, longe dessa

proteção, pude revisitar essa passagem e reconstituir os caminhos trilhados

outrora e torná-los o Leitmotiv do meu trabalho como figurinista. Aqueles

objetos e roupas tornaram-se mágicos para mim, meu fetiche, e hoje, pela

reestruturação de seus símbolos, transformo seu sentido inicial em algo novo.

O espetáculo Leonce e Lena2 (2008), me possibilitou trabalhar a

colagem com um caráter menos intuitivo que na experiência anterior. Pude

construir os corpos das personagens unicamente através da colagem de

roupas. Trabalhei os figurinos desta montagem focando principalmente a

construção plástica dos mesmos. Arrisquei minhas primeiras tentativas de

transformar aqueles figurinos em imagens autônomas, valorizando seus

símbolos e sua própria escrita.

Foi na colagem cubista e nas descobertas dadaístas que encontrei um

meio de introduzir no figurino a artificialidade necessária para descolá-lo de sua

função servil de representar para conferir-lhe autonomia na cena, oferecendo

ao espectador mais possibilidades de leitura com o intuito de tornar a cena uma

experiência de deleite visual, ao invés de buscar a representação da realidade.

No mestrado, pude desenvolver melhor as experiências artísticas

1 Peça teatral escrita pela venezuelana Mariela Romero, dirigida por João Fonseca, com

Rafaela Amado e Iracema Starling. Estreou no dia 26 de agosto de 2005, no Sesc Copacabana, sala Multiuso. 2 Peça teatral escrita por George Büchner, dirigida por Thierry Trémouroux, Estreou dia 03 de

abril, no teatro Gláucio Gil, Rio de Janeiro.

15

vividas anteriormente e transformá-las na base dos meus procedimentos. Logo,

minha pesquisa não se deteve mais somente nas cores, texturas, estava

principalmente no objeto.

Em Cena para um Figurino13 (2009) inspirei-me profundamente nas

experiências dadaístas de ressignificação de objetos, assim como nos

experimentos acerca dos objetos achados de Tadeusz Kantor4. Durante esse

processo, pude realizar largamente minhas idéias sobre a criação de uma cena

a partir do figurino. Não havia texto, nem diretor, apenas um figurino repleto de

objetos que, ao ser vestido por um ator, se transformaria em suporte para que

uma cena fosse criada. Aqui o figurino recebe outra abordagem, de autônomo e

não servil. O figurino é uma experiência estética em si. ―Em suma, quando se

torna autônoma, uma arte assume um novo ponto de partida‖ (BACHELARD,

1993, p. 16).

Dando segmento às minhas idéias de autonomia, em Cena para um

figurino2 (2009) trabalhei o figurino mais integrado ao espaço. Reencontrei a

espacialidade de Oskar Schlemmer5 e as embalagens de Tadeusz Kantor. Este

figurino não era mais uma reunião de objetos concretos, e sim um aglomerado

de materiais, entradas e saídas para o corpo se inscrever no espaço. O figurino

apresentava-se como uma escultura maleável. A cena era puramente plástica,

nascida da imersão do corpo no figurino e deste no espaço.

3 Este foi o primeiro experimento prático para testar e afirmar a possibilidade de se construir

uma cena simplesmente a partir do figurino como suporte da ação.

4 Tadeusz Kantor, (1915-1990) artista polonês, pintor, cenógrafo, encenador, criador de happenings e performances. Em 1942 fundou o Teatro Clandestino e em 1955 funda sua companhia de teatro CRICOT2 que fica sob sua direção até sua morte em 1990.

5 Oskar Schlemmer, (1888-1943) Artista Plástico alemão, professor da escola da Bauhaus e

coordenador e fundador do teatro na Bauhaus.

16

Algum tempo se passou, e hoje posso constatar como a angústia do

processo criativo me colocou frente a limitações; e a perda do medo de errar

renovou minha trajetória artística.

17

1. Cena e visualidade

1.1 O teatro, lugar de onde se vê

Seria o Teatro um lugar onde se deveria mimetizar a realidade? Ou o Teatro

seria um puro deleite visual: o teatro pelo teatro?

Segundo Jean Jacques Roubine, em seu livro Introdução às grandes teorias

do teatro, a passagem do século XX proporcionou à cena uma mudança de

experiência: pela primeira vez, desde o classicismo, a representação

encontrava-se desligada da obrigação mimética e da sujeição a um modelo

inspirado no real. Essa afirmação de uma autonomia da imagem cênica em

relação à realidade e à verdade permitiu ao teatro repensar integralmente sua

concepção e sua prática.

Uma cena reteatralizada, para ser vista e fruída, reencontra na própria

origem da palavra teatro – lugar de onde se vê6 – seu ponto de partida. Dentro

dessa definição, o verbo ver vai além do seu sentido comum de visualizar algo,

pois compreende uma experiência intensa, envolvente, meditativa, inquiridora,

a fim de descobrir o significado mais profundo: uma cuidadosa e deliberada

visão que interpreta seu objeto.

Com o declínio do realismo no teatro, abriu-se um espaço para novas

intervenções estéticas na cena. Os simbolistas, por exemplo, introduziram

novos dados na problemática da visualidade cênica, rejeitando o mimetismo

rigoroso dos naturalistas. Chegou-se assim a um entendimento mais flexível,

mais leve da concepção cênica.

6 O próprio termo em grego Théatron (θέατρον) estabelece o lugar físico do espectador,

"lugar de onde se vê" e onde, simultaneamente, acontece o drama como seu complemento visto, real e imaginário. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Teatro (consultado em 05/01/2010)

18

1.1.1 Artes plásticas na cena.

Uma contribuição para a visualidade cênica foi a introdução dos pintores

para fazer cenários e figurinos. Se pensarmos em pintores podemos chegar à

conclusão de que houve um retrocesso na criação da cena, mas os cenários

pintados dos simbolistas em nada pareciam com os cenários de telões

realistas; muito menos seus figurinos eram o que se poderiam chamar de

roupas cotidianas. A colaboração desses artistas plásticos trouxe uma explosão

de cores, sentidos e texturas que nunca antes haviam subido à cena. Eles

procediam, ao criar cenários e figurinos, assim como ao pintar suas telas:

deixando-se divagar livremente, legitimando o emprego das formas e das cores

não mais pelos critérios da semelhança.

A participação dos pintores na confecção de cenários e figurinos deu um

novo fôlego ao teatro e permitiu uma reformulação da cena, do seu ponto de

vista plástico. São inúmeros os casos de artistas plásticos que participaram

como cenógrafos e/ou figurinistas na cena teatral, introduzindo suas idéias

estéticas e abrindo os caminhos para que o teatro encontrasse a sua própria

realidade.

O teatro dos anos vinte do século XX foi palco de muitas experiências empreendidas por pintores. Basta lembrar L. Schreyer, W. Kandinsky, O. Schlemmer, entre outros. Não se pode deixar de perguntar se tais experiências decorrem da aplicação, no teatro, de procedimentos pictóricos ou se, ao contrário, elas se afirmam na sua especificidade teatral (KANTOR, 2008 p. XXXI).

1.1.2 Dança como experiência pictórica

A dança foi um dos primeiros movimentos a convidar artistas plásticos

para realizar cenografia e figurino. Por se tratar de uma linguagem basicamente

visual, serviu muito bem para explorações artísticas de criações mais livres e

19

menos preocupadas em obedecer a um padrão estético realista. Os trabalhos

obtidos nessa área demonstravam como artistas plásticos usaram estratégias

técnicas de desenho para traduzir idéias de espetáculos em espetáculos

impactantes. Em suas criações, articulavam a luz e a sombra, imaginavam

formas de apresentação de personagens, manipulavam seus corpos no espaço

e, com isso, transformaram a cena em um quadro tridimensional vivo.

Sem dúvida um dos grandes responsáveis pelo intercâmbio artístico nos

palcos foi Sergei Diaghilev, grande organizador, diretor dos Ballets Russes. A

ele se deve o impulso dado ao balé no inicio do século XX. Inconformado com

as regras dos teatros imperiais, decidiu reunir os melhores bailarinos, mestres,

coreógrafos, músicos, pintores e cenógrafos russos e formou uma companhia

sem igual para mostrar ao mundo a arte russa na sua totalidade. Durante vinte

anos, ajudado por alguns mecenas, maravilhou o mundo inteiro e revelou

talentosos dançarinos, músicos, libretistas e cenógrafos. Diaghilev foi o

responsável por convidar artistas como Natalia Goncharova, para O galo de

ouro (1914); Pablo Picasso, para executar o balé Parade (1917); Fortunato

Depero, para O Canto do Rouxinol (1920) e Fernand Léger, para A criação do

mundo (1923).

Os artistas plásticos do Ballets Russes de Diaghilev, embora criassem

cenografias e figurinos em função do espetáculo que se apresentaria, tinham

suas criações vistas e apreciadas como obras de arte autônomas de mesmo

valor ou até mais excitantes que muitas de suas obras postas em galerias.

Pablo Picasso, por exemplo, usou seus experimentos construtivistas da

colagem para criar os figurinos do balé Parade, o que resultou em grandes

vestes feitas de papelão e outros materiais sólidos que ―engoliam‖ os

20

bailarinos, apenas permitindo que eles se movimentassem parcialmente.

Sem dúvida, as criações de Picasso no palco – como as de vários outros

artistas plásticos – codirigiam as cenas em que eram introduzidas. Seu trabalho

não era o de simplesmente servir à cena e sim o de criar cena. A autonomia

desses trabalhos está na força e na singularidade das propostas estéticas de

quem as criou. Outras produções poderiam utilizar-se desses cenários e

figurinos, renovando seus sentidos, pois tais criações permitiam que outras

histórias fossem contadas a partir delas.

1.1.3 Oskar Schlemmer e a cena na Bauhaus.

Dentre todas as experiências plásticas na cena, vale destacar o trabalho

desenvolvido por Oskar Schlemmer na escola da Bauhaus.

O teatro era fundamental para o ensino na escola, pois proporcionava

um modo de unificar várias formas de arte de uma maneira íntima e expressiva.

1. Figurinos e máscaras de Pablo Picasso para o balé Parade, 1917.

21

Os alunos podiam praticar design e fazer experiências com arquitetura,

figurinos e máscaras.

O artista plástico e professor responsável pelo teatro, Oskar Schlemmer,

se utilizou das oficinas da Bauhaus para concretizar seu projeto da cena

plástica, iniciando pesquisas puramente ligadas à visualidade cênica.

Para isso, Schlemmer centrava suas pesquisas na concretude do corpo

humano. Ele não partia de um contexto, e sim da relação teatral do corpo com

o espaço. O corpo no teatro da Bauhaus tinha como forma a geometria, e a

criação de fluxos espaciais desse corpo geométrico consistia no próprio

espetáculo. Assim a cena era fruto do movimento, das formas, cores e da

tensão.

Schlemmer coloca o homem no cerne de toda a criação artística: o

organismo humano no centro do espaço cúbico do palco. Ele trabalha com a

idéia de que o homem e o espaço se completam e se modificam. Com um

estudo em que coloca linhas partindo do corpo humano rebatendo no espaço,

ele exemplifica as tensões criadas a partir do movimento.

A cena na Bauhaus era arte em movimento. Era a geometria dos 2. Esquema de Oskar Schlemmer para a transformação do espaço a partir do corpo humano.

22

exercícios do corpo humano transformado em corpo geométrico. Essa busca

pela forma ideal da estrutura corpórea residia no anseio de construir um

homem metafísico que transcendesse o corpo humano orgânico.

Traçando um paralelo com os figurinos no teatro oriental — teatro

balinês, Ópera de Pequim7 ou o Nô japonês —, o figurino tem uma importância

devastadora. Por ser uma alegoria8 autônoma e independente de quem a

veste, sua imagem já é decodificada automaticamente por quem a vê. No

teatro Nô o ator tem que adaptar seu corpo natural a um corpo e uma máscara

de uma personagem concreta. Seu corpo é suprimido pela veste para dar lugar

a um ser emblemático.

Entram marionetes vivas cujo centro está oco. No coração do homem, ninguém: a emoção é o movimento... Ele entra ali, dança, leva uma queda, não indivíduos, mas sujeitos acidentados. Verbos caem. Como no nô: não há mais personagens, mas roupas habitadas (NOVARINA, 2009 p. 28).

7 ―O traje teatral chinês, entretanto, tem outra importante tarefa a cumprir – a de formar a cena.

(BRUSAK, 1978 p. 347) 8 Uso o termo alegoria para designar o simbolismo a partir de elementos concretos que abrangem o conjunto de toda uma narrativa ou, neste caso, do figurino no teatro oriental.

3. Esquema desenvolvido por Oskar Schlemmer para redesenhar o corpo humano de uma maneira plástica.

23

Schlemmer também se influenciou pelas idéias preconizadas por Heirich

von Kleist, autor do livro Sobre o teatro de marionetes. Por meio de uma fábula,

Kleist levanta a idéia de que o dançarino não poderia competir com a

marionete, pois esta move-se de uma forma perfeita por seguir movimentos

regulares que são propiciados pelo seu organismo mecânico, enquanto o

dançarino estaria sujeito às intempéries humanas.

A idéia de Schlemmer é então criar um corpo artificial com a eficácia dos

figurinos orientais e que, ao mesmo tempo, limite o corpo do dançarino a ponto

de ―impor‖ seus movimentos. Tudo isso é possível pela indumentária. Figurinos

e máscaras funcionam como um suporte para reinventar a realidade orgânica

humana, dilatando sua existência orgânica ou mecânica.

Para Schlemmer, o figurino tem que fazer desaparecer o corpo dos

dançarinos. Seus figurinos buscavam extrair novas possibilidades perceptivas

do corpo do ator-dançarino, ao ponto de transformarem seres humanos em

seres geométricos, abstratos: uma profusão de cores e formas.

Zeichen unserer Zeit ist die Abstraktion, die einerseirs wirkt als Loslösung der Teile von einem bestehenden Gazen, um diese für sich ab absurdum zu führen oder aber zu ihrem Höchstmaβ zu steigern, die sich andererseits auswirkt in Verllgemeinerung und Zusammenfassung, um in groβem Umriβ ein neues Ganzes zu bilde

9

(SCHLEMMER, MOHOLY-NAGY, & MOLNAR, 1964, p. 7).

9 Tradução livre: ―A abstração é um indicador de nossos tempos, ela atua como um

descolamento das partes de um todo existente a fim de conduzir a absurdos ou para aumentar ao máximo o impacto. Em outras palavras: generalização e síntese a fim de delinear um todo novo‖.

24

Schlemmer concebeu o Triadisches Ballet, que na verdade nada tinha de

balé, mas de uma antidança, um rito autêntico construtivista, em que não

importava mais o corpo humano, seu movimento e sua expressão, e sim

aquela figura inventada. No Triadishes Ballet, o figurino tem um papel

determinante, pois sua função não é de instalar uma personagem, mas de

produzir uma figura, manifestar o ser espacial do corpo. É o que Schlemmer

chama de figurino plástico-espacial. Seus figurinos, quando habitados, colocam

o homem nos comandos centrais, tal como um ―maquinista perfeito‖ que

regeria o espetáculo feérico para os olhos.

Os figurinos schlemmerianos são, portanto, os agentes transformadores

do espaço. Eles criam a tensão, as cores e as formas em um jogo onde o

drama e a ação consistem na mutação contínua do espaço. Com esses

experimentos, Oskar Schlemmer descolou o figurino de sua função servil para

transformá-lo em objeto artístico autônomo.

4. Figurinos criados por Oskar Schlemmer para o Triadisches Ballet.

25

1.2 Meus figurinos

As roupas são a carapaça que envolve nossos corpos frágeis. O vestir é

construir uma imagem.

Ao fazer um figurino, além do texto, várias histórias permeiam o meu

imaginário, para que outras possibilidades de leitura sejam criadas. A

construção está sempre caminhando entre os terrenos subjetivos e objetivos, e

a técnica delineia os contornos desse novo ser.

Oskar Schlemmer usa a racionalização das formas e dos materiais, a fim

de criar seu homem metafísico. Muito de Schlemmer ecoa na construção de

meus figurinos e me faz refletir sobre outros caminhos: recriar o homem a partir

de suas próprias criações - os objetos.

O ponto de contato com Schlemmer está na temática do homem

artificial, munido de um casulo multifacetado em forma de veste. O ser que

busco, porém, distingue-se do homem que ele buscava – a forma perfeita,

transcendental, constituída de formas geométricas e puras.

Schlemmer buscava na geometria e na abstração uma forma de

ultrapassar a figura humana, ele acreditava que essa construção simbólica teria

como condição o homem em seu aspecto mais puro. Sobre sua criação do

homem ele dizia:

O elemento puramente humano como um ideal autêntico, tendo-se com isso a oportunidade de se conceberem melhor e imediatamente todas as diferenças de constituição de temperamento e de espírito, que se mostram em infinitas nuances através da transformação desta configuração (Schlemmer apud WICK, 1989 p. 347).

A abstração do corpo humano transformado em corpo geométrico fazia-

nos sublimar a condição corpórea orgânica do homem.

Para mim, abstrato significa simplesmente estilo, e estilo significa como é sabido, a forma derradeira, a perfeição mais possível. O caminho até isso passa pela superação do naturalismo... em busca

26

de uma precisão cada vez maior da idéia. O estilo é o objetivo máximo da arte (Goethe apud WICK, 1989 p. 376).

Neste âmbito, trabalho o figurino agregando o que há de subjetivo e

humano nas formas objetivas, na concretude de tudo que o próprio homem cria

e transforma em retrato dele mesmo. Transformo objetos em vestes, em

estruturas para o corpo orgânico habitar. Meus figurinos contêm a

imprevisibilidade do não planejamento das formas.

27

2. Os primeiros passos.

2.1 O Jogo

A indumentária manipula símbolos e signos essencialmente gráficos e especificamente artísticos. Nos refazemos a cada novo espetáculo, recriamos o mundo da cena a partir do redimensionamento de nossos arquétipos, mitos e crenças (ABRANTES, 2001 p. 89).

O Jogo foi a primeira experiência artística radical da minha vida.

A peça aborda a relação de poder, exercitada constantemente por meio

de ―jogos‖, entre duas garotas chamadas Ana. Elas passam o tempo todo

trancadas dentro de um quarto, alternando papéis num contínuo jogo de poder

em que, em todo momento, há uma alternância de papéis entre opressor e

oprimido.

A proposta era fugir ao realismo como uma identidade visual do

espetáculo. Para o diretor, tratava-se de um universo que, apesar de perverso

e cru, era também extremamente lúdico e infantil, em que as

atrizes/personagens eram como duas crianças brincando de fazer teatro.

Claro que, paralelamente à ação do texto, elemento geralmente pronto e

acabado, existe uma ação cênica que o enriquece. Havia no escrito original

uma terceira pessoa, um velho, que nessa montagem era citada apenas no

final. O diretor preferiu deixá-lo como uma sombra que rondaria a encenação.

Lembro-me dos ensaios e das várias idéias que tive ao longo deles.

Cheguei a montar dois ou três projetos diferentes para o diretor João Fonseca.

Havia feito colagens de referências visuais e desenhos, tudo como manda o

figurino, ou pelo menos o que tinha aprendido que deveria ser um projeto de

figurino bem elaborado. A expectativa de uma resposta positiva era enorme,

pois estava estreando como figurinista profissional.

28

É normal que nem todas as propostas sejam aceitas pelo diretor.

Nenhuma, entretanto, foi aprovada naquele caso. Ficava tomada pela angústia

em todos os momentos nos quais meus projetos eram desaprovados. O olhar

do diretor denotava preocupação com o andamento do meu processo de

criação.

Em um momento extremo de desespero por não conseguir atender às

suas expectativas, decidi que deveria fazer algo mais concreto além de simples

croquis, pois pensava que talvez ele não estivesse conseguindo visualizar

meus desenhos de forma satisfatória. Decidi que levaria os figurinos prontos

para expor melhor minhas idéias.

Ao longo do processo de criação dos figurinos, recriei o imaginário

dessas personagens e dei-me conta de que tudo o que as ―Anas‖ faziam era

uma velha e conhecida brincadeira infantil.

A partir dessa constatação, visitei minha memória e deparei-me com

todas as vezes em que, brincando de teatro, abria as portas dos armários dos

meus pais e mergulhava profundamente naquele enorme espaço de segredos.

Gavetas e armários, aliás, sempre foram meus lugares preferidos para sonhar,

uma vez que poderia encontrar ali muito além do que procurava e reencontrar

meus devaneios materializados naqueles objetos.

Voltando ao Jogo: a cenografia da peça era literalmente um grande

guarda-roupa composto por quatro portas e um gaveteiro ao centro. Com as

portas abertas, o armário transformava-se em dois pequenos camarins, um

para cada Ana. Era como se as duas personagens estivessem trancadas nesse

quarto, por aquele já citado velho, e aproveitassem a sua ausência para

vasculhar seu armário e usar suas roupas para brincar de teatro.

29

Abri o armário do meu pequeno acervo e selecionei todas as roupas

masculinas que possuía. O manequim estava lá, estático, no centro do meu

ateliê à espera do que aconteceria com ele.

Comecei então a montar, ressignificar peças de roupas, abrir costuras,

rasgar, desmontar, montar novamente. Foi um momento eloquente, silencioso

e doloroso. Camisas e gravatas foram recombinadas, por meio de moulage10

nessa construção. Os figurinos tomaram formas que lembravam os trajes

femininos do período eclético do século XIX11.

A composição, apesar de sua forma feminina e sofisticada, resultou

bastante suja e desconstruída, sugerindo que as próprias personagens teriam

10

Técnica de modelagem de roupas feita sobre o corpo diretamente no tecido. 11 Silhueta de traje feminino do final do século XIX, com anca na parte posterior da saia e a cintura marcada com o uso de espartilhos.

5. Figurinos da peça O Jogo, fotos: Alexandre Lima.

30

improvisado estas roupas de brincar, contribuindo com o clima lúdico da

encenação12.

Ao fazer o figurino desse espetáculo, desejei apresentar as duas

meninas não só em função do que elas aparentavam, mas tornar evidente, pelo

uso das roupas masculinas, a presença da personagem não evidenciada nesta

montagem, mas de grande importância no contexto: o velho. Os objetos dessa

personagem comportam seu universo, eles abrem um mundo novo. O nosso

olhar não aprecia um objeto qualquer, ele olha um mundo, pois o objeto traz

consigo um universo cheio de memórias, um passado milenar, que faz com que

a existência da personagem não se limite apenas àquele momento fugaz da

encenação. Como diz Bachelard (2005, p. 196): ―A alma encontra no objeto o

ninho de uma imensidão.‖

2.2 Brincadeiras de vestir: armários e gavetas

―Essa infância desajeitada me preparava da pior maneira para a vida que vai seguir: pois para o homem — saibam disso ó crianças — a infância é uma péssima formação‖ (NOVARINA, 2007, p.40). ―Quando sonhava em sua solidão, a criança conhecia uma existência sem limites. Seu devaneio não era simplesmente um devaneio de fuga. Era um devaneio de alçar vôo‖ (BACHELARD, 2006, p. 94).

Foi na experiência da peça O Jogo que percebi como as minhas ―manias‖

de descobrir armários na infância foram importantes para o desenvolvimento do

meu potencial criador: brincadeiras de teatro, de inventar outras pessoas, de

criar roupas e apetrechos com aqueles achados maravilhosos, de ficar

trancada no quarto, de silenciar.

Bachelard afirma, em seu livro Poética do devaneio, que existe na alma

12

―... Os figurinos de Desirée Bastos são bem menos satisfatórios, canhestros...‖ Crítica de Bárbara Heliodora. Gosto quando ela classifica o figurino de canhestro (Feito às canhas, às avessas, desajeitadamente: e mal executado), pois a intenção era exatamente essa.

31

humana um núcleo da infância — imóvel, mas sempre viva; oculta para os

outros, disfarçada em história quando a contamos — que só se materializa em

instantes de iluminação, ou seja, nos instantes da experiência poética.

―Os armários e as gavetas estão fortemente ligados à idéia da intimidade.

Fechados são objetos, mas abertos reservam um mundo desconhecido. Eles

são órgãos de vida psicológica secreta‖ (BACHELARD, 1993, p. 94).

Os Brechós são hoje em dia os meus grandes armários em forma de

câmaras secretas, esconderijos e fundos falsos. Minhas visitas a estes lugares

compreendem um trabalho arqueológico que me impulsiona a encontrar algo

que nunca vi, ou talvez reencontrar algo esquecido em um canto. Nos Brechós,

silencio e me imagino transitando nas gavetas por entre as roupas perdidas.

Admiro os achados com um olhar transformador: idealizo-os com outras

formas, cores, texturas; penso se esses achados poderiam se geminar a outros

objetos. Foi lembrando as brincadeiras infantis que descobri o melhor

combustível para as engrenagens que movem o ato da criação. A criança não

tem medo de errar, ela é a inventividade de uma mente sem limites.

Em O Jogo, a colagem daquelas roupas masculinas transformadas em

femininas havia despertado as possibilidades do fazer artístico amadurecido

sob a regência dos registros da infância.

Bachelard diz que o sentimento criador do devaneio não volta à infância,

ele recria a imaginação infantil. Poder materializar aquilo que só existe nos

seus devaneios significa reinventá-lo. ―Toda a nossa infância está por ser

reimaginada. Ao reimaginá-la, temos a possibilidade de reencontrá-la na

própria vida dos nossos devaneios de criança solitária‖ (BACHELARD, 2006, p.

94). Muitas das lembranças da infância não existem nitidamente em nossa

32

memória, muito do que sabemos sobre quem fomos é nos contado por outrem.

―A memória-imaginação nos faz viver situações não fatuais, num

existencialismo do poético que se livra dos acidentes‖ (BACHELARD, 2006, p.

114).

2.3 Colagem

A colagem, segundo o dicionário Aurélio, é um substantivo feminino

derivado da palavra francesa collage que designa nas artes plásticas uma

composição elaborada a partir da utilização de matérias de texturas variadas,

ou não, superpostas ou colocadas lado a lado, na criação de um motivo ou

imagem. Com a técnica da colagem é possível aplicar tecidos, papéis pintados,

recortes de jornal e outros materiais no suporte pictórico.

Esta técnica já era conhecida antes do século XX, mas era considerada

uma brincadeira de crianças. O cubismo foi o primeiro movimento artístico a

utilizar colagem. Com o intuito de explorar um novo conceito de imagem, os

cubistas – mais especificamente Picasso, Braque, Léger e Gris – encontraram

na colagem uma maneira de sintetizar formas, linhas e texturas, utilizando

imagens prontas retiradas de pedaços de jornal, papelão corrugado,

embalagens de cigarros ou quaisquer materiais que pudessem enquadrar-se

na representação tencionada. O uso de elementos de texturas diversas na

colagem estendeu-se, depois, ao domínio da escultura, vindo a influir em

criações do dadaísmo. Essas colagens tridimensionais foram nomeadas pelo

francês Jean Dubuffet em 1953 de assemblage13,

13http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_v

erbete=325 Consultado em: (20/01/2010).

33

A colagem transforma fragmentos de objetos em imagens únicas e

múltiplas. Ela mantém intactos os sentidos originais dos pedaços diversos e

mesmo assim tem a potencialidade de formar um todo novo. ―Deste modo, a

sua função é tanto a de representar (ser parte de uma imagem) como de

apresentar (serem eles próprios)‖. (JANSON, 1992, p. 683)

Neste âmbito, esta técnica possui uma auto-suficiência que está fora do

alcance de uma pintura. A colagem gera uma superfície autônoma, dotada de

inúmeros materiais distintos possibilitando um olhar duplo, por sua totalidade

ou por suas partes. ―A recombinação dos elementos evidentemente saturados

de sentidos produz a revitalização dos signos. A colagem é responsável pela

obtenção de novos impulsos criativos, aguçando a perspicácia daquele que

busca algo especial‖. (ABRANTES, 2001, p.42)

Considerando a importância e a direção das transformações na arte em

geral no século XX, a colagem pode ser classificada como uma das técnicas

mais significantes por transmutar tudo, recombinando elementos, recriando

objetos, oferecendo novos sentidos e formas ao que já perdeu seu valor

utilitário, mas que concentra em si potencial para renascer na arte.

Assim sendo, se analisarmos uma personagem poderíamos concluir que

ela é também uma colagem de inúmeras referências. Portanto, a colagem

torna-se uma ferramenta eficaz na criação de personagens, por tratar o todo

considerando os elementos que o compõem.

Voltando ao figurino, aproprio-me desta técnica para realizar minhas

criações de modo que não façam parte apenas de uma reconstituição de

época, e sim de uma construção plástica. Ao retrabalhar os objetos em forma

de figurinos, abro um leque infinito de possibilidades, com a intenção de gerar

34

projeções inconscientes do espectador e convidá-lo a trazer ao nível da

consciência uma história íntima e fantasmagórica.

2.4 Leonce e Lena

Em janeiro de 2008, fui convidada pela produtora da CAL14, Márcia

Quarti, para integrar a equipe de mais uma formatura da escola. Desta vez

trabalharia com o diretor Thierry Trémouroux. Não nos conhecíamos, mas logo

após esse trabalho formamos uma parceria de muitos outros espetáculos. O

texto, na ocasião, era Leonce e Lena15, de George Büchner.

Eu estava completamente eufórica para começar a praticar minhas mais

novas descobertas artísticas, apesar de apreensiva por não conhecer o

trabalho desse diretor. Em nossa primeira conversa ao telefone, já discorremos

sobre muitos conceitos que norteavam nossos trabalhos.

Na concepção de Thierry, não havia personagens definidos, e sim

pessoas que poderiam assumir, a qualquer momento, diferentes personagens.

Não haveria troca de roupa, por isso os figurinos deveriam ser extremamente

versáteis ao ponto de abarcarem várias personagens. A montagem me permitiu

continuar desenvolvendo minhas idéias, além de aplicar o conhecimento

apreendido, no que concerne à colagem, de uma forma menos intuitiva e fazer

desse procedimento a marca das minhas criações.

14

Casa das Artes de Laranjeiras, curso técnico para atores. 15

O texto de George Büchner, datado de 1836, historicamente pertence ao romantismo; todavia dele faz uma crítica, inaugurando alguns procedimentos que, retomados pelo expressionismo, o tornam um admirável precursor. A ação centra-se nos desencontros do casamento arranjado entre Leonce e Lena, príncipes de reinos diferentes, que fogem de casa diante da iminência de uma união não pretendida. Em suas fugas acabam se conhecendo e se apaixonando, como joguetes do destino. O pano de fundo dessa história é a crise pessoal de seus integrantes, dominados pelo tédio, e a crise do poder político, imutável e sem perspectiva de alteração. In:http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=espet culos_biografia&cd_verbete=169 (consultado dia 09/01/2010)

35

O trabalho do diretor Thierry Trémouroux, segundo meu ponto de vista,

procura aproximar ao máximo a personagem da realidade do ator. Essa prática

me possibilitou trabalhar a individualidade dos intérpretes, construindo seus

exteriores e seus próprios símbolos a partir do imaginário de cada um. Sob

essa perspectiva, propus levar até o elenco peças de roupas, previamente

selecionadas por mim no acervo da CAL, e instigar os atores a escolherem as

que mais os inspirassem em seus processos de criação das personagens.

Thierry forneceu como referência estética o trabalho do pintor austríaco

Egon Schiele. Suas pinturas retêm uma dramaticidade visceral e suas cores e

texturas têm um tom rebaixado e sujo. Sabendo que o acaso seria o curador

dessa etapa, assegurei-me, anteriormente, de que conseguiria atingir alguma

inspiração em Schiele, escolhendo propositalmente peças de roupas que

aludiam ao aspecto sujo, à cor e à textura de sua obra.

Na data escolhida, espalhei todas as mais de trezentas peças pelo chão

e pedi aos atores que caminhassem sobre elas para terem uma visão ―aérea‖

do todo, e assim facilitar a escolha dos elementos. Neste caso, os atores

cumpriram a função de ―filtro‖ na primeira fase da criação do meu trabalho. Os

figurinos foram criados com base na escolha final do elenco, com suas próprias

bagagens, suas próprias leituras.

36

Eram atos em sequência:

Andar sobre as roupas e observá – las;

Selecionar as peças que mais se ligam ao seu processo de criação da

personagem;

Vestir estas roupas como se estivesse montando o seu figurino;

Escrever um pequeno texto falando sobre as suas próprias idéias e de

suas personagens;

Fazer um pacote com as roupas selecionadas e o texto.

Ao final do ensaio, eram dezoito trouxas de roupas que foram levadas à

minha casa/ateliê para serem desfeitas, combinadas, refeitas. Eu tinha todas

as dúvidas em relação ao efeito final. Só sabia que, quando abrisse o primeiro

pacote e realizasse a primeira experiência, algum indício do resultado final

7. Primeira etapa da construção do figurino: atores observando as roupas no chão.

37

surgiria.

2.4.1 Da execuão.

―Suas vestimentas foram feitas dos materiais que cruzaram seus caminhos, são intensidades que lhes atravessaram‖ (MESQUITA, 2002, p. 126).

Começar é sempre difícil! Optei por trabalhar no silêncio do meu ateliê a

me associar a uma costureira. Precisava de tempo e quietude para observar as

roupas, seus materiais e seu talhe. É neste momento que agradeço às minhas

avós por terem me ensinado e incentivado, na minha meninice, a arte de fazer

roupas. É preciso um conhecimento técnico de modelagem muito apurado para

se enxergar além do visível.

Trabalhei individualmente, figurino por figurino; abria as trouxas de

roupas, catalogava todo o seu conteúdo, lia os textos sobre as personagens e

imaginava o que viria a seguir.

8. Exemplo do experimento com figurinos de Leonce e Lena com a formatação do figurino da atriz Thays Lyra.

38

Thierry havia solicitado a cada ator que escrevesse um depoimento

sobre o seu processo pessoal. Ao ler os textos, percebi que eles escreveram

sobre o que precisavam em cena, coisas práticas demais. Além de suprir a

necessidade de elementos cênicos para as personagens, era importante

clarear o sentimento que os tocava — a eles, atores — durante o processo.

Com as idéias do que seria feito, eu ia desmontando as roupas,

recompondo seus feitios e remodelando-as até atingir o resultado que

esperava. Ao trabalhar a construção do figurino de cada personagem, busquei

trazer à tona a sua memória pelo olhar do ator. A introdução da ―realidade

pronta‖ (os elementos da vida)16 acaba assim por combater conceitos como

homogeneidade e coerência, abrindo a possibilidade de se utilizar a realidade e

transformá-la em poesia, apenas pela reorganização e interpenetração dos

sentidos dos objetos. A chance de se abrir um mundo novo pela união de

imagens aparentemente banais, leva-nos a uma dimensão situada além do

16

Expressão dadaísta de ready-made, o objeto pré-fabricado, corpo estranho introduzido na realidade da ação cênica.

9. Roupas que estavam na trouxa da atriz: Thays Lyra que fazia o papel de Lena quando esta

fugia do palácio.

39

simples copiar, aquela do ser, integralmente. A técnica da colagem faz com

que todo o resultado deste trabalho seja irreprodutível, pois a matéria-prima

dessas indumentárias extinguiu-se para dar lugar a um novo ser.

10. Transformação das peças de roupas selecionadas pela atriz em seu figurino de Lena.

11. Resultado final da colagem das roupas. Figurino de Lena ao fugir do palácio e deixar para trás

sua vida de princesa. Seus bolsos foram feitos para ela carregar seus pertences na fuga, e o

tingimento em degrade na barra da saia simula a sujeira que a princesa acumulou no caminho.

40

2.4.2 Da memória

Quando criei a metodologia de construção dos figurinos do espetáculo

Leonce e Lena, considerei a possibilidade de um processo parecido com o qual

Thierry já vinha trabalhando junto ao elenco. Thierry utiliza a memória do ator

como ferramenta essencial para abrir a porta das emoções do perfeito encontro

com a personagem. A memória íntima – como diz Bachelard, a que fica lá no

fundo da gaveta, que nos faz interagir melhor com o mundo externo, que traz

referências únicas e pertencentes ao coletivo – é aquela que nos faz

compreender, nos faz mergulhar.

É interessante constatar que, sempre que possível, mergulhava em

minhas referências estéticas e chegava ao formato de uma silhueta datada

renascentista. É difícil se libertar de uma formação em indumentária, com toda

a carga de história do vestuário que temos que absorver. Sempre que começo

a trabalhar sozinha, caio na rede das minhas próprias referências.

Conectei à minha pesquisa o imaginário dos atores e pude observar

como eles experimentam suas personagens, os tipos de associação que fazem

entre cor, textura, forma e sua experiência pessoal de trabalho. Penso que a

identificação com cores, texturas, formas, movimentos das roupas, remeteu os

atores ao que existia latente de personagem neles. E quando eu interferia nas

roupas escolhidas por eles, eu estava simplesmente unindo e dando um

acabamento aos fragmentos dessas personagens. Creio que era uma possível

visão de fora do que se passava internamente com cada um. Esse tipo de

procedimento não convencional me proporcionou uma liberdade que foi além

do corpo do ator. Minha inquietação não era com efeitos como engordar,

41

emagrecer, alongar ou achatar as estruturas anatômicas dos intérpretes. O

corpo da personagem se deslocaria para o figurino.

Quando exercito a desmaterialização dos tecidos, das estruturas, para conquistar novas formas de expressão, subverto o que me parece velho na história do vestuário para criar novas experiências de vida, novas possibilidades de afirmação artística (ABRANTES, 2001,p.25).

Eu busquei a memória nos objetos encontrados. Todas essas roupas,

resgatadas no acervo da CAL, algumas em cantos esquecidos, puderam

emergir por meio da união de suas histórias particulares em forma de algo

novo, único e inusitado. Essas peças me fazem imaginar sobre quem as

construiu, quem as usou, quantas vezes, em que circunstâncias...

Sem mais devaneios sobre o passado, iniciei o trabalho de remodelar

formas e funções, visando a gerar novos impulsos criativos para o trabalho dos

atores. A memória e o acaso forneceram o cenário ideal para manipular e

reconstruir as personagens. Este trabalho permitiu uma relação íntima com o

imaginário dos atores, tornando o produto final muito mais orgânico em seus

corpos.

A realização dos figurinos em toda a sua extensão fluiu freneticamente

desde o primeiro encontro com Thierry, passando pela escolha das roupas no

acervo da CAL, o trabalho com Egon Schiele, a seleção das peças pelos atores

(que formavam paletas de cores e texturas extremamente harmônicas), até o

momento em que eu arriscava unir partes de roupas que muitas vezes não se

encaixavam em um lugar, mas que ficavam perfeitas em outros.

42

Como, durante o processo, a experiência pessoal dos atores formandos

foi profundamente considerada, estes terminaram de certa forma, por codirigir a

intenção e a construção do figurino. Mesmo contando com a pouca maturidade

em seus textos, obtive ainda um resultado interessante que formava uma

grande colcha de retalhos, unindo a experiência e a bagagem de todos os

envolvidos no processo.

2.4 Embalagem

O uso da realidade concreta — objetos encontrados17 —, o conceito do

corpo como embalagem, os bio-objetos18 cênicos, todos encontraram no teatro

a sua materialização com o polonês Tadeuz Kantor. Para ele, os fatores

17

Kantor fala dos objetos encontrados assim como fala dos objetos pobres, que seriam aqueles que já perderam sua utilidade na vida e que portanto estariam aptos a reviver na arte.

18 Termo usado por Tadeusz Kantor para designar a embalagem, pois ele a considerava parte

de um todo que era completado com a presença do corpo orgânico do ator. Seria uma união do objeto com o corpo.

12. Acima e abaixo: resultado de todos os figurinos de Leonce e Lena.

43

determinantes em sua relação com o figurino foram as descobertas dadaístas

da colagem, da assemblage, do objeto achado e o reconhecimento da ação do

acaso.

É notório que o papel da experiência pictórica de Kantor é decisivo em

seu teatro. Ele se fundamenta no ensaio de Witkiewicz, Sobre um novo tipo de

peça (1920), para propor um teatro baseado na pura forma, como sucedia em

alguns experimentos da pintura, relegando a um segundo plano a realidade

externa ou psicológica. ―A base pode ser realista ou fantástica, mas ambas

devem ser retrabalhadas para se obter uma síntese criativa de som, cenário,

movimento e diálogo, de modo a criar um todo cujo significado seria definido

apenas por sua construção interna puramente cênica‖(CARLSON 1997, 335).

Embora Kantor tenha, em relação a cada uma das vanguardas, discordâncias

particulares, jamais negou as influências do Construtivismo, do Surrealismo e

do Dadaísmo em seu trabalho. Ele próprio dizia que o dadaísmo fora seu ponto

de partida e que Marcel Duchamp era seu pai espiritual.

Os primeiros passos de Kantor para chegar às embalagens foram dados

com os happenings, que consistiam na exploração da realidade pura através

de ações reais, em lugares reais, com objetos reais, abandonando a prática de

imitar a realidade para vivenciá-la.

Kantor também questionou a representação do ator, pois considerava

que a busca da realidade fracassaria a partir do momento em que o ator

representasse. Para ele, porém, a questão ia além de apenas substituir o

homem por uma marionete, como enunciava Craig19, era preciso introduzir

realidade nele. Surgiu então a idéia de cobrir o ator com realidade pronta, ou

19

Em sua teoria da supermarionete, Craig afirma: a marionete deve retornar; o ator vivo deve desaparecer. O homem, criado pela natureza é uma interferência estranha na estrutura abstrata da obra de arte.

44

seja, estender seus procedimentos artísticos da colagem ao corpo do

intérprete. A técnica empregada recebeu o nome de Embalagem, que foi

comparada por Kantor, por sua sonoridade, à função da palavra colagem —

uma operação plástica. Kantor passa então a ―embalar‖ o ator, numa

assemblage vestível.

O ato de embalar constituia todo o cerimonial da Embalagem,

ultrapassando o objeto puro e simples. Kantor dizia que a própria ação do

empacotamento conservava uma paixão muito humana de guardar, de isolar,

assim como de um gosto pelo desconhecido e pelo mistério.

Sacos, pacotes, mochilas,...

[...] Debrucemo-nos sobre algumas fases desse rito: Para começar: a dobradura. O procedimento – antes complicado e que torna necessária uma verdadeira iniciação – assim como o efeito final inesperado, e sempre surpreendente, tudo isso tem um pouco de magia e um pouco do jogo de criança... Depois: o atamento em que o conhecimento dos nós roça quase tradições sacramentais. E ainda: a colagem. em que unção e atenção são igualmente indispensáveis... Essa acumulação de operações sucessivas, soma efeitos imprevisíveis[...] (KANTOR, 2008, pp. 47-48).

A embalagem trouxe o estranhamento necessário à cena

reteatralizada20, introduzindo corpos surrealistas estrangeiros que se inserem

no tecido do espaço real. Com a técnica da embalagem, torna-se possível

atenuar a distância que existe entre a figura do ator e o figurino. Eles se

20 Termo usado por Jean- Jacques Roubine em A linguagem da encenação teatral, (1998), para designar a redescoberta da teatralidade a partir do momento em que se abre mão do ilusionismo do teatro realista para se instaurar uma cena que, sem os vestígios da figuração e da verossimilhança, da coerência, possua a teatralidade para ser vista. O espaço cênico torna- se, portanto área de atuação.

45

encontram no mesmo patamar de existência, como seres transformados em

um ―todo-único‖.

O corpo humano torna-se então a alma dessa embalagem, composta

por uma recombinação incessante de elementos por meio da colagem. Tal

técnica, por sua vez, confere à embalagem um caráter de ser único.

Kantor descreve seu primeiro experimento com a embalagem:

A cena toda foi, portanto, ocupada por uma espécie de saco preto, enorme. Todos os atores se encontravam no seu interior, assim como certo número de figurantes. Através de diminutas aberturas eles passavam e só eram visíveis do exterior as cabeças e as mãos dos atores, assim como uma profusão de mãos de figurantes. As cabeças ora se afastavam umas das outras, ora se aproximavam. Quanto às mãos, elas se mexiam e ―viviam‖ suas vidas próprias e totalmente autônomas. [...] Em outra peça não se percebia mais, de modo algum, os atores. Eles permaneciam encerrados no saco. A capa de tal embalagem, às vezes ondulante, outras vezes esticada, transmitia, com uma força de sugestão enormemente aumentada, os conflitos que desenrolavam no interior, e sabia como apresentá-los até as nuances mais sutis (KANTOR, 2008, p. 49-50).

13. Embalagens de Tadeusz Kantor. Da esquerda para direita: Embalagem Humana, com a

colaboração de Maria Stangret, Nüremberg; ―Dans le petit manoir‖ ( Na pequena mansão),

1961. The Underaged , "Lovelies and Dowdies", 1973; Coleção Cricoteka.

46

Como ele mesmo diz, sua arte abandonou o lugar santo e seguro

reservado há séculos para a obra de arte, introduzindo nela a realidade pronta,

os elementos da vida. Kantor está longe de fazer uma mera reedição do gesto

dadaísta, o que, segundo suas próprias palavras, seria ―escandalosamente

anacrônico‖. Considera-se bastante diferente do Dada, pois sua ―blasfêmia‖

tem outros pressupostos. Em sua obra, o ready-made tem a função de

escancarar a realidade uma vez que o ―objeto encontrado‖ está repleto de

memória. É a própria materialização da memória. A embalagem, além de

possuir um caráter provocativo do objeto (como no caso dadaísta), é um

procedimento (o ato de embalar) e uma função (embalar).

47

3. Cena para um figurino121

3.1 Antes de tudo

Diferente das experiências já relatadas, feitas a partir de um texto, este

experimento consiste em instaurar um jogo, e não especificamente uma

personagem. O figurino seria uma criação puramente plástica, sem conceitos

atrelados a um texto prévio, que poderia servir como texto imagético e como

suporte para o corpo do ator/ dançarino/ performer. Até então, a idéia da cena

para um figurino parecia simples, mas, pensar em como estruturar este

experimento gerou alguns momentos de dúvidas e incertezas. Como ele seria?

Com o que se pareceria? Quem iria vesti-lo? Como seria apresentado?

A única informação concreta de que me dispunha era a de que tinha o

prazo de um mês para desenvolver e apresentar o trabalho. Para tanto, já

havia convidado três artistas para trabalharem esta cena: Marcelle Sampaio,

que além de bailarina é performer; Lara Seidler, que é bailarina; e Suzana

Nascimento, atriz e contadora de histórias. Eu tencionava experimentar o

mesmo figurino sob diferentes vieses artísticos e talvez encontrar

possibilidades renovadas a cada gesto produzido pelas convidadas.

Como não haveria tempo suficiente para construir o figurino e para que

cada uma passasse uma temporada de ensaio individual com ele, descartei a

possibilidade de uma cena com as três artistas. Decidi que uma só bastaria

para desenvolver a cena. Optei pela atriz, Suzana, por ela desenvolver também

um trabalho de contação de histórias muito interessante. A escolha por essa

21

Este foi o primeiro experimento prático para testar e afirmar a possibilidade de se construir

uma cena simplesmente a partir do figurino como suporte da ação.

48

artista baseou-se no fato de que eu faria um figurino a partir de colagens de

objetos, e talvez fosse ela a mais indicada para traduzir em cena os pequenos

conteúdos de memórias contidos neles.

A partir daí, Suzana se transformou em mais um objeto, fundamental

para a construção do figurino. Todos os seus atributos físicos e pessoais foram

considerados nesta concepção: o formato de seu corpo, sua voz, seu rosto,

sua pele serviram de inspiração para a composição desta veste. É como se

fosse escrever um texto para uma atriz específica.

3.1.1 O figurino e os objetos.

Para além dos fatores inequívocos que compõem um objeto plástico -

cor, textura, silhuetas, formas – que são perfeitamente legíveis aos olhos do

espectador, a introdução do objeto achado – assim como no teatro de Kantor –

admite a idéia de uma possessão criadora22. ―Cada objeto investido de espaço

íntimo transfroma-se nesse coexistencialismo, em centro e todo o espaço‖

(BACHELARD, 1993, p. 207).

Construir um figurino autônomo, sem o comprometimento com a

representação, induziu-me a apoiar minhas pesquisas nos atos dadaístas das

ressignificações. O projeto buscava um figurino criado a partir da concretude

dos objetos achados que, deslocados de suas funções utilitárias, renasceriam

em forma de veste.23

22 A possessão criadora do objeto está na sua potencialidade geradora de devaneios para além da matéria. 23

―Uma leitura simplesmente visual dessa imagem nova tornou-se impossível. Pela primeira vez na recepção da imagem aparece a necessidade do pensamento e da imaginação. Apenas sua presença ativa poderia organizar experiências puramente visuais. [...] O momento no qual os dadaístas reconheceram que esse local saudável do ato de criação (isto é, a imagem) estava muito carregado por práticas cada vez mais complicadas, uma vez que eles as ignoravam sem piedade e fizeram do próprio objeto uma obra de arte – apenas pela escolha e

49

Além disso, havia uma procura pela autonomia do figurino, a ponto de

este carregar em si todos os componentes necessários à criação de uma cena,

tornando supérfluos quaisquer elementos externos a ele. Patrice Pavis (2003,

p. 165, ) diz que o figurino é muitas vezes uma cenografia ambulante, um

cenário trazido à escala humana que se desloca com o ator. Um

cenáriofigurino24 que, por ser hipersignificante25, evolui no espaço vazio.

Idealizei um figurino que fosse ele próprio cenário, luz, figurino e

adereço. Ele deveria impor um duplo olhar, ao mesmo tempo existencial e

estrutural. Seu exterior convidaria o espectador a penetrar em um universo

sugerido pelos objetos contidos nele. O figurino assim como a marionete

estaria sempre no conflito entre o animado e o inanimado. Ele fala primeiro, ele

existe enquanto imagem plástica, enquanto invólucro. É a marionete à espera

do ator para que este lhe dê alma.

3.1.2 Meus objetos

De minhas práticas mais antigas, eu sei que, quanto mais um objeto é de ―condição inferior‖, mais probabilidade ele tem de revelar sua objetividade – e sua elevação a partir dessas regiões de desprezos e ridículos constitui na arte um ato de pura poesia. (KANTOR, 2008, p. 51) Ser poeta é dedicar-se às inutilezas. (Manuel de Barros)

Gostaria que esse figurino fosse proveniente dos objetos largados,

velhos, quebrados, faltando peças e partes, mas que carregam uma dose de

imaginação, por serem repletos de resquícios e lembranças. Imaginava

reencontrar a antiga vida daqueles objetos assim como a alma daquelas

o nome – esse momento foi uma verdadeira revolução. O ato de criação se transformou para outros domínios: os da decisão, da iniciativa, da invenção, na esfera mental. O objeto e a realidade reais e brutos fizeram irrupção na esfera dos valores estéticos, no terreno da ficção imagética, modificando completamente suas funções, ditando seus direitos e sua própria organização.‖ (KANTOR, 2008, pp. 102,103)

24 Grifo meu. 25

Termo usado por Patrice Pavis (2003, p. 165).

50

histórias. Objetos que me acompanharam desde a infância, alguns que adquiri

ao longo da vida, outros que apareceram simplesmente, mesmo em frangalhos,

assim que colocados lado a lado, participaram do renascimento de um objeto

novo, de uma forma nova, sem abrir mão da precariedade do tempo.

Reuni o acúmulo dos objetos largados em minhas gavetas, estantes,

caixas, meus armários, e cantos. Cataloguei-os um a um: chaves, buracos de

fechaduras, maçanetas, buracos metálicos, bolinhas de gude, câmera

fotográfica, mãos de manequim, cúpula de abajur, caixa de papelão florida,

papelão velho, papéis de rascunho.

Além dos objetos que encontrava no caminho, tive a necessidade de

buscar outros em brechós. Quis sair para ―farejar‖ por aí. Fui a um brechó ao

qual vou com certa freqüência, por gostar muito dos artefatos completamente

desinteressantes que encontro por lá. É com esse tipo de elemento que minha

imaginação trabalha. A partir daí, inicio o processo de recriar a existência do

14. Alguns objetos catalogados para entrarem na construção do figurino.

51

objeto, não só pela transmutação de sentidos – conseqüência de um

deslocamento - como também pela reconstrução de suas estruturas.

No brechó escolhido, todas as camisas masculinas tinham estampas

variadas em xadrez! Tive que comprar todas, pois via aquilo como um ―sinal‖.

[...] o acaso encontra lugares inesperados, e os objetos encontrados exemplificam todo o maravilhoso. A sua ocorrência acidental ou a maneira inesperada pela qual o surrealista se tornou cônscio deles investiu-os da mesma espécie de sentido mágico que tem sido atribuído ao fetiche. Na verdade, o objeto encontrado era muito semelhante a um fetiche (WILSON, 2004, p. 15).

Durante o processo de criação surgiu a idéia de aproveitar os objetos

contidos no figurino para também trabalhar o som e a luz. No que se refere ao

som, além de poder extrair efeitos sonoros com a manipulação de alguns

objetos, sentia falta de uma poesia de tempos de criança que dançava ao som

de uma música vinda de dentro de uma caixinha. Fui à SAARA26 e encontrei,

no fundo de uma loja de artigos orientais, alguns poucos exemplares ainda à

venda de caixinhas de música com mecanismo à corda. Comprei quatro delas.

Pensei em ter um único foco de luz. Tinha uma cúpula de abajur muito

velha em casa, cujo formato lembrava um chapéu. Pensei em colocá-la sobre a

cabeça e inserir um único ponto de luz no figurino. Seria uma luz que editaria a

visão do espectador.

Alguns dias depois, caminhando pela Rua da Glória, passando pelos

ambulantes que vendem literalmente objetos velhos, muitos já desprovidos de

suas funções originais, me deparei com um lençol esticado sobre o qual havia

muitas fotografias. Vi naquelas imagens as passagens da vida inteira de uma

pessoa, uma mulher. Encantei-me com aqueles instantes e imaginei-os no

chapéu, junto à luz. Comprei sete fotos.

26

SAARA: Sociedade dos Amigos e Adjacências da Rua da Alfândega. Centro comercial do centro do Rio de Janeiro.

52

Após ter iniciado a construção do figurino, senti a necessidade de uma

aba para o chapéu de luz. Cheguei aos pregadores de roupas que atuariam

como lugares de concentração das passagens da vida. Colocaria as fotos

pendentes nos pregadores, como quando as colocamos para secar logo que

saem da câmara de revelação.

Em seguida, o primeiro e último objeto: Suzana

3.2 Antes

Tomo consciência de que devo fazer algo com o objeto para que comece a existir algo que não tenha nenhum laço com sua função vital; sinto que um ritual é necessário, que seja absurdo do ponto de vista da vida e que possa atrair o objeto para a esfera da arte. (KANTOR, 2008, p. 50)

Começo a utilizar objetos para a construção do corpo artificial/ figurino.

Os objetos coletados são deslocados de suas funções vitais e recombinados

pelo método da colagem. Imaginei as possibilidades de ajuntamento das partes

em forma ―vestível‖. A dureza de seus materiais me impediu de costurá-las, de

tramar suas matérias e uní-las sem introduzir um suporte rígido. Produzi um

espartilho de papel mâché (como uma armadura) para alocar os objetos nele.

O primeiro objeto que situei foi a câmera fotográfica. Ela deveria ser

fixada na altura do peito, como quando é usada pendendo do pescoço.

Metaforicamente, sua lente possuiria a visão sensível aos fenômenos não

físicos. Na sequência, fui encontrando os espaços dos outros objetos na

armadura de papel até completar a parte de cima do figurino.

Estavam assim dispostos:

Um busto feminino de papel Kraft;

Uma lente entre os seios;

Acima da lente, a cânula do disparador da câmera;

53

Abaixo, uma corda pela qual pendia uma velha chave, amarrada à

manivela da câmera, que serviria para avançar as poses;

Dois mamilos - buracos de fechaduras ornamentados - de onde saíam

pinos que, quando retorcidos, executavam músicas diferentes;

Uma abertura abaixo do seio direito, que deixava aparente um

dispositivo chamado dímer, ligado à lâmpada da cabeça, com a função de

controlar a intensidade da luz emitida pelo chapéu;

costuras de barbante para fechar e ornar laterais e bordas;

zíper cor de laranja para fechar as costas;

zíperes de metal prateado para atar os ombros.

As camisas receberam um tingimento ocre para se mesclarem mais

harmoniosamente ao conjunto do figurino. Fiz com elas uma ―saia-polvo‖: juntei

seis camisas pelas casas de seus botões, arranquei as golas e franzi os

colarinhos até atingir o tamanho da cintura. Obtive uma saia com doze braços

nos quais coloquei duas mãos de manequim - uma preta e outra bege.

A cabeça era o acabamento do figurino. Moldei os cabelos com papéis

de rascunho que continham um texto antigo de uma minissérie em uma de

suas faces. O chapéu era apoiado em uma pequena caixa de papel florida,

sobre o centro da qual localizava-se o bocal da lâmpada. Sobre a lâmpada, a

composição da cúpula de abajur com aba de pregadores de roupas e as

fotografias pregadas em suas pontas completavam o chapéu.

Um grande fio ligava a lâmpada à tomada, passando pelo dímer,

encaixado no espartilho.

Busquei materializar um novo corpo, num procedimento que foi do

sentimento à regra, da intuição à construção, do subjetivo ao objetivo, com a

54

intenção de trabalhar o figurino como a própria imagem do homem, deslocado

para o mundo da arte.

A representação do homem será sempre a grande metáfora para o artista. Aqui, o homem de carne e osso com a mística de sua existência; lá, seu oposto na arte. As condições e as leis de sua existência física são diferentes das de sua existência artificial-artística. Em sua essência elas diferem de nosso organismo físico: pincel, lápis, giz, madeira, pedra (Schlemmer apud. WICK, 1989, p.363).

3.2.1 A imagem do figurino

A imagem que almejei em minha construção era a de uma espécie de

manequim, um ser à imagem e semelhança do homem, oco, de formas

artificiais e reaproveitadas, com a possibilidade de receber um centro de

órgãos humanos.

O objetivo era atingir, com esse novo corpo, a estranheza das formas

irregulares, disformes. Não formal, não linear, não regular, não geométrico;

sujo, destruído, disforme, irregular, assimétrico. Confiei na idéia de que a

assimetria confere expressividade27.

Os objetos me guiaram e, na minha previsibilidade, formatei o figurino

por caminhos conhecidos e mais seguros. Ressignifiquei os objetos visando às

idéias de cena que eles poderiam fornecer. Preocupei-me em realizar um

projeto bonito. A insegurança se instaurou quando terminei, pois contemplei um

resultado que considerava lindo, porém convencional. Caí na armadilha de

fazer algo bonito inspirado em uma forma conhecida. Persegui

incessantemente uma miragem.

27 Executei os bonecos da peça ―As Centenárias‖, sob a supervisão de Miguel Vellinho, diretor

da companhia de teatro de bonecos Pequod. Na ocasião, ele dizia ao escultor dos rostos dos bonecos para fazê-los de forma assimétrica, pois, segundo Vellinho, era a assimetria que daria expressividade aos bonecos.

55

3.2.2 A prova de roupa e os encontros

No primeiro encontro com Suzana, o corpo artificial se fundiu ao seu

corpo humano com perfeição. Vi que não havia feito um figurino que poderia

ser vestido por outras pessoas, pois foquei meu processo no corpo e nas

referências da ―alma‖ Suzana.

Em nossos encontros, discutíamos sobre as disposições dos objetos e

as possibilidades apontadas por eles. Não havia regras de como deveria ser a

cena. Procurei não limitá-la em relação a nenhum tipo de ação. Estávamos

igualmente perdidas por não sabermos como ―deveria‖ ou ―poderia‖ ser a cena.

Deixei-a divagar em suas próprias referências, histórias e em sua imaginação.

3.2.3 A primeira vez e os ensaios

Suzana levou o figurino para conviver com ele em sua casa. As

primeiras tentativas de cena com o figurino surgiram na realização de um

15. Da esquerda para direita: formatação do figurino e primeira prova com a Suzana.

56

exercício proposto em um grupo de treinamento que Suzana freqüenta – grupo

este que investiga a técnica dos viewpoints28. Os participantes tinham a tarefa

de criar uma composição que contivesse os seguintes elementos: um trecho de

um texto, aproximadamente cinco linhas; uma sequência de movimentos; um

terceiro elemento livre (nesse item, cada pessoa inseria o que quisesse para

complementar a composição) que, de alguma forma, remetesse ao tema Don

Juan – objeto de estudo na ocasião.

Suzana aproveitou o figurino cheio de objetos para montar seu exercício:

O que fazer?

Essa foi minha questão ao ver o figurino pela primeira vez. Quando levei-o

pronto para casa, decidi não fazer nada, pelo menos por enquanto.

Lembro-me do momento em que me sentei em frente a ele em minha sala para

um encontro mais concentrado, após a euforia do contato inicial, quando experimentei

a roupa pela primeira vez. Ficamos ali, parados, um em frente ao outro,

silenciosamente. Observei-o sem pretensões de criar qualquer coisa que lembrasse

uma cena. Apenas deixei que sua presença me afetasse, me remetesse naturalmente

a lugares que poderiam sugerir pistas para o início do trabalho. Muitas ramificações

surgiram desse momento, uma diversidade de caminhos foram apontados apenas por

essa troca silenciosa. Dúvida. Por onde seguir? Permiti a mim mesma continuar a

experiência sem ter que tomar decisões racionais imediatas.

Após esse momento, decidi estreitar o contato. Comecei a manipular os

elementos do figurino, experimentar diversas formas de evolução de cada pequeno

objeto, admitir o estranhamento causado pela dureza da cápsula/tronco que limitava

meus movimentos. Assumi que o simples deslocamento daqueles objetos de suas

funções originais já criavam uma outra camada de apreensão de significados.

Encontrei ainda outros planos quando comecei a brincar de usar os objetos de

novas maneiras, como quando tomei o disparador da máquina fotográfica e comecei a

―fumá-lo‖ como se fosse o bico de um narguile - pela simples associação formal. Decidi

adotar esses dois caminhos concomitantemente: aquele da interpretação do objeto

com seu significado original - apenas deslocado para uma outra trama de sentidos - e

este, em que a pura forma do objeto remete a outros, gerando novos significados. A

partir daí, as possibilidades se multiplicaram vertiginosamente. Abismo. Aquela

pergunta ―por onde seguir?‖ foi elevada a uma altíssima potência. Anotei todas as

imagens e os jogos que surgiam de minhas experimentações e fui arquivando-os, dia

após dia, acumulando memórias do processo.

Memória. Essa tornou-se a palavra-chave que norteou a criação ou, para além

disso, tornou-se o seu tema. Todas as imagens que surgiam, pela simples observação

do figurino ou pelas relações criadas com ele a partir da ação, de uma forma ou outra,

atrelavam-se a algum pedaço de memória. Isso porque o figurino em si, em minha

28

: Viewpoint é uma técnica de improvisação usada para fornecer um vocabulário para pensar e agir a partir de gestos e movimentos em relação ao espaço, ao tempo e ao outro. Esta técnica foi originada na dança nos anos 70, e transferida ao teatro pela diretora Anne Bogart.

In: http://en.wikipedia.org/wiki/Viewpoints (consultado em 12/01/2010)

57

acepção uma espécie de assemblage memorial, oferecia a mim uma série de

mecanismos disparadores de lembranças, como cordas de caixas de música brotando

dos seios, máquina fotográfica situada no lugar do coração, abajur/arquivo de fotos

giratório, luz que clareia ou apaga imagens do passado, se não me falha a memória...

Esse procedimento escolhido, do registro escrito, levou-me naturalmente a

engendrar um roteiro, não linear, não ocupado em contar uma única história. Meu

intento era criar um norte para a sequência de ações, mas que contivesse espaço para

o acaso. Um exemplo disso seria a leitura de fotos/cartas de tarô: trabalhei com as

fotos voltadas para o chão, colocadas ali aleatoriamente, e escolhidas ao acaso pelas

mãos de manequins. Minha ―leitura‖ estava condicionada a este trajeto desconhecido,

revelado no momento em que eu desvirava as fotos.

A convivência com a roupa durante dias gerou uma intimidade que já

ultrapassara o momento do encontro estético, uma espécie de aprofundamento da

relação que acendeu muitas lembranças, muitas histórias, como se cada item do roteiro

abrisse uma porta para infinitas narrativas que talvez tenham afastado o resultado – se

é que era esperado um resultado - da sua intenção primeira: a potência do objeto

presente.

Muitas reflexões relevantes, no entanto, surgiram desse procedimento

escolhido, como: é possível inventar memórias? É possível editá-las, como fazemos

com as máquinas, quando apagamos o que não serve? O que não serve? Até que

ponto podemos contar a história de uma pessoa a partir de seus objetos?

Mesclei memórias bem recentes e dolorosas à ficção construída no processo,

num fluxo de penetrações mútuas que geravam um terceiro elemento, já sem limites

aparentes entre invenção e ocorrência; um misto de significantes e significados,

submetidos à luz oscilante de um velho abajur amassado.29

No dia da apresentação, fui ao treinamento de viewpoints para ver que

propostas surgiriam de sua interação com o figurino.

Fiquei feliz ao ver as primeiras cenas e por ter perdido a impressão de

estar fora do que procurava. Encantei-me com as pequenas descobertas

resultantes das manipulações feitas pela Suzana.

Ela encontrou momentos extremamente poéticos dos objetos em

questão: disparava a câmera fotográfica para congelar instantes, utilizando a

lâmpada da cabeça como flash; a lâmpada, por exemplo, assumiu várias

funções, era também sua respiração à medida que acendia e apagava.

Contemplando momentos como este, percebi que uma sala

completamente escura seria fundamental para realizar melhor essa idéia.

29

Texto escrito por Suzana Nascimento.

58

Precisaria também de uma lâmpada com uma potência alta para que houvesse

maior variação de luminosidade, proporcionada pelo uso do dímer.

As cordas das caixinhas de música sugeriam um autoflagelo quando

Suzana acionava-as, como se ela estivesse torcendo seus próprios mamilos.

Ao soltar a corda, uma música singela se instalava no ar, junto ao alívio –

inclusive para nós, platéia – do signo da dor, construído pela ação da atriz.

Suzana ainda usou um trecho do texto sobre o Barba Azul — segundo ela, um

mestre de Don Juan — que se relacionava com as fechaduras e chaves30 do

figurino. Ela também usou textos inventados a partir da descrição das

fotografias colocadas no chapéu. Lembro-me de, ao assistir, ter achado muito

mais interessante a possibilidade de se desenrolar um texto a partir da

descrição do próprio objeto do que agregar um texto estrangeiro a ele.

Nos dias seguintes a esta apresentação, a cena foi sendo construída

passo a passo, progressivamente, a partir de ações com o figurino, como

vestir, brincar com os mecanismos dos objetos, olhar, imaginar, lembrar... Eu

era tomada de incertezas cada vez que Suzana me questionava sobre um

caminho a seguir, porque tudo parecia possível.

Este figurino possuía todos os elementos (palavra, som, movimento, luz,

cor, forma) independentes uns dos outros. Se selecionássemos cada um deles

para explorar suas possibilidades, poderíamos desenvolver muitas cenas. Essa

extrema liberdade para criar dificultou ainda mais o andamento do trabalho,

pelo fato de não termos nenhuma certeza se estávamos ou não no caminho

―certo‖.

30

―Pouco tempo depois, o Barba Azul avisou que iria viajar por uns tempos; ele entregou todas as chaves da casa para sua esposa, incluindo a de um pequeno quarto que ele a havia proibido de entrar. Logo que ele se ausentou, a mulher começou a sofrer de grande curiosidade sobre o quarto proibido.‖ In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Barba_Azul (consultado em 14/01/2010)

59

Ao longo dos dias, Suzana sugeria, questionava, opinava sobre o

figurino. Gostaria, por exemplo, de ter os pés cobertos. Ela estranhava o fato

de estar completamente enclausurada pela roupa e ter os pés nus. Também

me solicitava mais elementos para poder criar com outros objetos, pois aqueles

contidos no figurino remetiam a outros universos e possibilidades.

Quando ela descrevia uma das fotografias, que continha uma inscrição

na parte de trás dizendo ―carnaval de 1938‖, ela gostaria que houvesse música.

Mas não aquela suave das caixinhas de música, e sim algo mais esfuziante,

que remetesse à alegria do carnaval. Ela propôs a utilização de guizos de

dança indiana que, amarrados nos pés, fariam a trilha sonora durante sua

dança. Naquele momento, achei melhor inventar um objeto para completar o

figurino e talvez ajudá-la na cena. Fiz sapatos com muitas chaves que

tamborilavam ao ritmo de suas passadas.

16. Fotografia ―carnaval de 1938‖ comprada na Rua da Glória. Autor

desconhecido.

60

3.3 Durante31

Mas, além disso, os objetos que desempenham em cena o papel de signo adquirem nisso determinados traços, qualidades e marcas que não possuem na vida real. As coisas, assim como o próprio ator, renascem no teatro diferentes [...] o objeto que o ator manipula pode receber novas funções que até então eram estranhas (BOGATYREV, 1977, p. 18).

O funcionamento do experimento acabou ligando-se a fatores externos,

como a necessidade de um lugar totalmente escuro com uma tomada. Fiz o

experimento na sala 706, no prédio da reitoria da Ilha do Fundão.

31

Vídeo 1 do DVD em anexo.

17. Convite para a apresentação de Cena para um figurino1.

61

Ao entrar na sala, as pessoas viam-se diante daquela figura, sentada no

chão com sua ―saia-polvo‖, de braços abertos diante de um jogo de cartas no

chão.

Ela começou como uma cartomante, utilizando as mãos artificiais do

figurino para ―ler‖ o futuro através dos fatos passados. Isso porque as cartas de

tarot eram as fotografias compradas na Rua da Glória. Chegamos à já referida

foto do ―carnaval de 1938‖. Suzana começou a dançar e festejar o carnaval.

Repentinamente, passei a ouvir: ―[...]a luz se apaga, a luz se apaga, a luz se

apaga [...]‖. Neste instante percebi que a luz realmente havia se apagado – o

que não estava previsto no roteiro – e que permanecia assim por muito tempo.

Entrei em desespero, pois tudo havia sido planejado para funcionar daquela

forma. Com a ausência da luz me senti diante do abismo. Tive medo de errar e

me submeter ao improviso e ao fracasso. Decidi interromper para resolver o

problema técnico (com tantas parafernálias no figurino deveria prever que

18. Suzana no início da apresentação.

62

estaria sujeita ao não funcionamento de algo). Em alguns minutos, constatei

que uma das ligações elétricas havia se rompido e prontamente consertei para

darmos prosseguimento. Durante o conserto da luz, Suzana continuou a cena,

descrevendo os procedimentos que estavam sendo realizados para consertar a

luz. Seguimos daí.

3.4 Depois

Tive a oportunidade de conversar com colegas, com minha orientadora

Angela Leite Lopes e com meu co-orientador Samuel Abrantes após a

apresentação. Através de seus comentários pude perceber a ―armadilha‖ em

que havia caído ao trabalhar tanto o figurino de uma maneira figurativa quanto

a cena em forma de roteiro

Segundo a sugestão dos professores, a experiência teria sido mais rica

se primasse pelo improviso: o figurino estaria ali, parado e aconteceria o

procedimento da ―embalagem‖ do ator, as primeiras impressões, as primeiras

descobertas. As surpresas e a poesia extraída nos momentos menos

esperados. Ele deveria ter sido feito para ser vestido por quem quisesse vesti-

lo, deveria ser aberto. A forma do figurino estava engessada nas convenções

formais do corpo humano, não havia possibilidade de explorar as entradas e

saídas, era pouco versátil apresentando uma única forma de vestir.

O mecanismo que deveria funcionar era o da descoberta, do improviso,

do aberto a possibilidades, da experiência e por que não do erro. Isso talvez

concretizasse de maneira mais satisfatória o meu desejo de tornar o figurino o

condutor da cena.

63

Outro elemento que influenciou bastante a experiência foi a palavra. Por

termos assumido a contação de histórias como parte integrante do figurino,

permitimos a indução da imaginação do espectador, abrindo caminho para um

possível desvio da atenção à concretude das imagens por meio da fala.

Falemos dela.

3.4.1 A fala como dispositivo autônomo

A fala é um signo móvel, autônomo, capaz de criar espaços, objetos. A

palavra pode ser proferida sem nenhum apetrecho e mesmo assim ser

entendida e abrir para nós um mundo ao nos colocar em contato com nossa

imaginação. O gesto aceita a ―fisicalidade‖ dos objetos; a palavra extrapola-a.

Acredito que os sons dos objetos fossem as falas que interessavam na cena.

A palavra chamou outros objetos, outras possibilidades, outros espaços

possíveis. Ela quebrou a materialidade do objeto encerrado naquela veste. Ela

redirecionou a imaginação do espectador para fora dali, como um desvio, uma

indução para vivenciarmos as histórias contadas, arriscando tornar coadjuvante

ornamental a concretude dos objetos. As palavras ultrapassaram a realidade

física da cena. ―As palavras sempre foram inimigas das coisas e há desde

sempre uma luta entre a fala e os ídolos‖ (NOVARINA, 2009, p. 15).

Falar constitui um acontecimento, é a partir das palavras pronunciadas

que a ação progride. Quando a fala se instaura, ela passa a fazer parte de um

universo representacional, ou seja, aquele que não é efetivamente. Os objetos

estavam ali para serem; as ações deveriam concretizar o ser.

Houve um momento, no entanto, que as palavras encaixaram-se

perfeitamente a este ―ser‖: quando Suzana associou o chapéu-luminária a uma

64

espécie de arquivo de imagens. Ela girava o chapéu e procurava pelas

imagens de sua memória, invocando-as pela fala. As palavras completaram a

idéia de o chapéu-luminária ser um arquivo vivo.32 Se o mesmo chapéu fosse

girado sem as palavras teríamos outra condição de recepção.

3.4.2 Cena muda

Ao cortar a palavra, descobri a potencialidade dos elementos contidos

no figurino. O ator servindo ao figurino. Suas imagens e seus mecanismos

guiavam as ações. Essas cenas foram compostas de ações encontradas ao

longo do processo de ensaios com a veste. Eram cenas bem curtas que

conseguimos conjugar em dois pequenos vídeos, postados no youtube.33

Tornou-se possível, após a supressão da fala, produzir cenas que só poderiam

existir com este figurino, pois contavam apenas com a manipulação de seus

objetos. A cena tornou-se o resultado inequívoco da relação ação/objeto.

―Reconhecendo o valor da imagem como vestígio da ação, ela fez emergir o

processo artístico vivo do quadro rígido da imagem‖ (KANTOR, 2008, p. 103).

3.5 Passagem

O texto de Tadeusz Kantor ( 2008, pp. 110-101) Evolução, exprime de

maneira exata a passagem de um território a outro do processo de construção

desta ―cena para um figurino‖. O primeiro experimento foi a busca utópica pelo

―bem sucedido‖; Cena para um figurino2, a busca concreta pelo risco.

A evolução do artista, tão importante para que ele possa manter sua vitalidade, não é um aperfeiçoamento da forma. O aperfeiçoamento tão apreciado e adorado pela opinião convencional torna-se com o

32

Essa foi a única cena com fala mantida nos vídeos que produzimos. 33

Assista no DVD em anexo:vídeos 2 e 3 ou no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=QNYvl2SY6ZY http://www.youtube.com/watch?v=xX_BoRrtF8g

65

tempo uma aparência de criação e um meio que conduz a aprovação, a aceitação, e para o próprio artista um abrigo, uma paz preguiçosa, mas também o prestígio. A evolução é uma adaptação constante do artista a sua época, até o final de suas forças intelectuais (ai de mim!). Se eu mesmo ou outra pessoa, vendo as coisas do exterior, não compreender a evolução da minha criação, por não perceber homogeneidade nela, posso alimentar a esperança de que esse desenvolvimento é vivo, porque uma das propriedades da vida é a de trazer surpresas constantemente e de ter um curso imprevisível. [...] A questão é que cada um tem uma homogeneidade diferente, que só aparece quando todos os fatos, ou sua maioria foram concluídos. Nesse momento podem ser fixadas as intenções e a direção. Nesse momento o que era vivo, o que era uma aventura e uma surpresa perde o charme e a força do imprevisto e adquire a importância das causas e dos efeitos. Evidentemente é pior se essas práticas duvidosas acontecem ao longo do processo de criação. Pessoalmente, minha própria evolução me aparece como uma viagem no tempo físico e interior. No qual a esperança é dada por meio de encontros completamente inesperados, provocações que antes eu não teria podido imaginar, pela estrada de alguma coisa inesperada, por confusões, retornos, buscas do caminho certo. E a esperança é sem dúvida o motor principal.

66

4. Cena para um figurino2

O não-saber não é uma ignorância, mas um ato difícil de superação do conhecimento. É a esse preço que uma obra é a cada instante essa espécie de começo puro que faz de sua criação um exercício de liberdade (JEAN LESCURE, apud. BACHELARD, 1993, p. 16).

Cena para um figurino2 caminha de maneira distinta, porém paralela ao

trabalho que desenvolvi na cena anterior.

Nos dois casos, o ator é o fator que desenha o espaço com o figurino, e

cria novos espaços a partir da ação. Este ator/bailarino/performer, portanto,

não deve se anular, ou simplesmente se adaptar à roupa; pelo contrário, meu

intento é que ele se aproxime e crie um diálogo com o figurino.

O figurino é o espaço para o corpo habitar. Aqui34, o corpo está de

passagem. Lá35 ele faz parte do figurino, contribuindo com seus predicados

àquele conjunto de signos. Aqui o figurino é abstrato; lá, figurativo.

4.1 Reaproximações

Cheguei à conclusão de que a obra de arte não pode hoje em dia ser encerrada hermeticamente em uma convenção estática de conduta. Em seguida, de maneira natural, a ―materialização da obra‖ exagerada e ostentadora me pareceu suspeita. Dessa forma efetuava-se o alargamento da noção da obra de arte – para além da imagem (KANTOR, 2008, p. 58).

Renovei o olhar acerca das provocações que me impulsionaram a

chegar até esse estágio do processo. Reaprendi as antigas referências.

Aprendi com a prática e somei esse aprendizado às minhas operações

artísticas, que estavam ali esperando para emergir.

34

Refiro-me à cena para um figurino2. 35

Refiro-me à cena para um figurino1.

67

4.1.1 A renovação da embalagem

Embalar, empacotar, enclausurar o corpo com a matéria descartada -

roupas que podem se entrelaçar, se fundir em um único ―pacote‖, um grande

pacote maleável de roupas velhas; selecionar, cortar, costurar, colar, moldar,

dobrar, transformar, ressignificar, restaurar, unir, vestir.

O figurino-embalagem, escultura oca.

Inanimado é apenas o que é. Habitado multiplica-se em esculturas vivas. São

esculturas cinéticas que revelam sua cor e sua forma através do movimento de

quem o veste. Como nos Parangolés de Hélio Oiticica – objetos maleáveis,

possíveis de serem vestidos, parecidos com uma capa ou manto,

confeccionados com uma ou mais camadas de material brilhantemente colorido

e que se revelavam a partir do movimento do corpo - o ―vestidor‖ vem colaborar

com sua fisicalidade. É um trabalho coletivo em que a veste tem um papel

fundamental. Seu papel não é vestir e sim servir como passagem para o corpo,

é direcionar os movimentos, através de tubos e aberturas; é vestir o espaço.

19. Parangolés de Hélio Oiticica. Da esquerda para direita vestidos por: Luís

Fernando Guimarães, 1964; propositor desconhecido; e Caetano Veloso, 1968.

68

O corpo volta à estaca zero36, morre para renascer de uma forma

plástica. Ele corporifica a roupa.

Reduzir a zero na pratica quotidiana significa negação e destruição. Em arte, isto pode levar ao resultado inverso. Reduzir a zero, nivelar, nadificar fenômenos,acontecimentos, acidentes, é tirar-lhes o peso das práticas quotidianas, permitir desmudá-los em matéria cênica livre para tomar forma... (KANTOR, 2008, p. 67).

4.1.2 Bauhaus, espaço revisitado

O movimento no espaço.

Andar, erguer-se, cair, girar, sincronizar e dessincronizar.

Sem enredos, sem roteiros, sem previsibilidade.

Ações concretas fragmentadas.

A infinidade de maneiras de articular o espaço de um corpo no espaço

da cena.

O corpo (natural) segue tanto seus instintos como os do espaço; é a

alma do corpo geométrico.

O figurino é finalmente uma Kunstfigur37:

Uma profusão de cores.

A marionete animada/ inanimada, suspensa no espaço.

O espaço toca. O espaço torce. O espaço expande.

36 Referente ao manifesto O teatro do zero, escrito por Tadeusz Kantor. In. (KANTOR, 2008:57-

97) 37

Do alemão Kunstfigur é a união de duas palavras: die Kunst que significa arte e die Figur que significa figura, ou seja, uma figura de arte.

69

4.1.3 Referências Cruzadas

Trabalho aqui com as possibilidades de hibridização dos materiais de

Tadeusz Kantor e de Oskar Schlemmer. As imagens abaixo são estudos

que apontam as qualidades de seus trabalhos e alimentaram toda a

minha pesquisa - idéias, caminhos, matérias, constatações, referências.

Embalagem + espaço; Corpo geométrico + embalagem.

Caminho pelos espaços vazios que se transformam pela presença do

ator e de seu figurino. Estes criam constantemente novos espaços,

desenhando na massa invisível uma cenografia mutante e poética.

20. Estudo feito a partir da sobreposição da embalagem de Tadeusz Kantor sobre o estudo espacial

da ―Dança dos bastões‖ de Oskar Schlemmer.

70

4.2 Figurino2

Esta segunda veste vem trabalhar a cena como uma totalidade do

espaço e do corpo a partir do corpo artificial: o figurino. Ligo esse figurino ao

espaço por fios reais que tocam a sua superfície e rebatem no espaço concreto

da arquitetura, inspirada pela obra de Schlemmer, que estuda a transmutação

de espaço pelos movimentos do corpo, por meio de linhas imaginárias. O

corpo-figurino está ali, estático, pendendo no lugar do acontecimento – um

único figurino que se multiplica quando operado pelo corpo.

O processo de construção desse novo projeto aproxima-se daquele

descrito anteriormente (cena para um figurino1), ―colando‖ objetos (neste caso

roupas velhas), operando sobre as suas potencialidades plásticas, agregando

suas matérias com o propósito de construir uma figura autônoma.

O figurino é um, mas as pessoas que transitam nele são várias, pois

trata-se de um figurino expandido, que comporta diferentes corpos e

21. Segundo estudo montado a partir do diagrama espacial de Oskar Schlemmer sob uma das

embalagens de Tadeusz Kantor.

71

movimentos, e não de uma criação para um corpo específico; uma embalagem

real por excelência que abriga o corpo humano para fazê-lo renascer em

pedaços.

Cena para um figurino2 vem investigar as possibilidades plástico-

espacias da cena, tendo o figurino como suporte principal do corpo. Apesar de

suas semelhanças com os Parangolés de Oiticica, o figurino aqui tem outras

proposições. Não se trata exatamente de inserir o espectador no núcleo da

criação, como preconizava Hélio Oiticica – ―Você o espectador; Eu o artista; Foi

sensorialmente revertido por ele no fluxo conceitual: Vocêsetornaeu. Não pelo

simples fato de mudar o lugar do espectador, mas colocá-lo como sujeito de

sua própria experiência.‖ (BASBAUM, 2008, p. 111).

No trabalho de Oiticica, portanto, a idéia se inverte a partir do momento

em que o corpo é que é o suporte do Parangolé.

O figurino funciona como os mecanismos das marionetes de Heirich von

Kleist, pois fornece o centro de gravidade para o corpo, revelando espaços

inusitados a serem criados e explorados.

Informei-me acerca do mecanismo daquelas figuras, e de como era possível comandar cada um dos membros e seus pontos, sem ter nos dedos milhares de fios, quando se exigia o ritmo dos movimentos ou da dança. Ele respondeu que eu não devia imaginar como se cada membro, isoladamente, fosse articulado e conduzido pelo operador durante os diferentes momentos da dança. Cada movimento, segundo disse, tinha um centro de gravidade; era suficiente comandar este centro, no interior da figura; os membros, que não eram mais do que pêndulos, acompanhava por si mesmos qualquer intervenção de maneira mecânica. (KLEIST, 2005, p. 13)

Voltei à minha idéia de chamar um artista performático de cada área –

ator/bailarino/performer. Suzana, Lara, Marcelle. Ansiava por ver as diferentes

cenas criadas por elas em um mesmo figurino/espaço.

A cena seria uma surpresa surgida da improvisação. Não haveria ensaio

ou convivência anterior com a veste. Tudo aconteceria sob os olhos do

72

espectador. Cada experiência seria uma cena verdadeiramente espontânea,

irreprodutível e fugaz; um devir, como diria Kantor.

4.2.1 Os materiais e a execução

Utilizo-me da união de várias peças de roupas, de materiais, modelos,

texturas, cores e tempos diferentes38. Encontrei-as no meu acervo: uma saia de

comprimento mediano, em jeans bem escuro; outra saia longa, bege, com

renda na barra; quatro camisas brancas.

Na montagem da peça notei que a saia jeans que escolhi para compor

esse figurino tinha uma cintura tão estreita que seria melhor deslocá-la para um

lugar que permitisse a movimentação em seu interior. Notei que sua

38

Assim como a origem da idéia dos Parangolés: ―Hélio tirou de um mendigo estacionado perto do MAM (Museu de Arte Moderna-RJ) e seu envoltório de trapos, tralhas, sacos plásticos, latas, sua parafernália de bugigangas recolhidas da descarga da grande cidade. Dessublimação do canônico e elevação do detrito. Dessa capacidade de atração pelo alheio e abaixo das instituições museológicas desse observatório de um pária da família humana, o PARANGOLÉ parte e se transforma no ícone vorticista-corporal mais poderoso das artes contemporâneas.‖ (SALOMÃO, 1996, p. 30)

22. Roupas utilizadas na construção de cena para um figurino2.

73

circunferência tinha aproximadamente a medida de uma cabeça. Portanto

decidi deixá-la no topo da cabeça da ―embalagem‖. Vesti a saia como se fosse

um capuz. Achei interessante o formato que a roupa fazia quando caía sobre

meu corpo. Decidi conectá-la à outra saia pela bainha. Bainha com bainha e

muitos alfinetes; uma forma capsular com uma divisória central; azul que passa

bruscamente ao bege, com uma renda fazendo a separação entre os dois.

Como a saia azul ficava no topo, imaginei a possibilidade de sua tinta escorrer

pelo corpo da saia bege, dissolvendo sua divisória em uma mancha fluida

―azul-escorrida‖. Outras ordens de tingimento apareceram. As camisas ―branco-

amareladas‖ deveriam fazer uma composição de cores: ―cinza-sujo‖, ―amarelo-

morto‖, ―verde-bolor‖, ―laranja-acre‖.

23. Roupas após tingimento.

74

4.2.2 A provocação dos buracos de Valère Novarina.

―O interior não está no exterior. O interior não está no exterior de nada.

[...] O exterior não está no exterior de nada. Nada está no interior dele‖

(NOVARINA, 2009b, p. 147).

Sob esta provocação de Valère Novarina39 iniciou-se o meu primeiro

semestre de 2009. Na primeira página da peça Vocês que habitam o tempo

(2009b), um truncado labirinto de entradas e saídas; interior e exterior como

dois espaços divididos por um buraco – este buraco que não possui dentro

nem fora, ele é apenas a passagem.

Valère Novarina propõe uma brincadeira séria, um jogo de palavras das

quais o significado se esvai para formar novos sentidos. Palavras dinâmicas

que atravessam o espaço como raios escapam da compreensão, mas ressoam

em nossa mente. Longe de uma busca por um sentido lógico, seu jogo propõe

a perda do sentido para recriá-lo.

Durante o período de laboratório cenopoético40, uma enorme variedade

de tentativas de aproximação com o pequeno fragmento de texto de Novarina

proporcionou um encontro entre trabalhos e pensamentos completamente

distintos. As propostas de experimentação proporcionaram interação e troca

de experiências, entre todos os alunos e projetos envolvidos na disciplina.

Cada um propôs um olhar acerca dos buracos, do interior e do exterior.

Foi olhando através dos buracos que imaginei esta criatura.

39 Valère Novarina, escritor e dramaturgo franco-suíço. 40

Laboratório de cenopoética foi uma disciplina ministrada pela Professora Angela Leite Lopes que consistia em colocar em prática nossas idéias artísticas e refletir sobre o fazer.

75

4.2.3 Os buracos da roupa

Roupas tingidas e secas. Vamos aos buracos!

Eles deveriam servir como portas para o corpo do interior. Buracos para

entrar, sair, espiar, revelar partes, dar passagem ao corpo, deixá-lo respirar.

Antes de unir definitivamente todas as partes do figurino, imaginei os

buracos que poderiam surgir em sua superfície. Reaproveitei buracos pré-

existentes, abri novos... Buracos que se tornariam possibilidades para o corpo

transitar pelo interior e exterior da roupa.

A saia azul teria muitos buracos. Abri sua costura traseira, tirei o zíper.

Ela ficou como um semicírculo pousado no chão. Com um gabarito, desenhei

vários círculos em sua extensão. Abri os círculos e fiz bainha: os buracos

apareceram. Essas novas passagens inspiraram-me a criar tubos. As mangas

das camisas seriam esses novos membros. Apliquei-os entre os buracos.

24. Saia jeans aberta com seus buracos e tubos.

76

Coloquei uma abertura, velada por um tecido roxo translúcido no topo da

saia azul. Queria ver imagens como que pintadas de roxo aparecendo através

de sua trama.

Uni finalmente a saia azul à, então, saia ―bege-azul-escorrida‖.

Um grande zíper foi colocado na parte posterior das saias para

proporcionar uma entrada/saída mais fácil. Em seguida, fechei o topo da

cabeça para criar um ponto de apoio para o figurino na cabeça do ator, como

um chapéu. Utilizei para isso as sobras das camisas emboladas e costuradas

obstruindo aquela passagem.

A figura estava erguida. Apresentava uma estatura elevada, forma oval,

muitos buracos, braços multicoloridos, cabeça entupida e uma enorme cloaca;

um pequeno Frankenstein (refiro-me mesmo ao monstro criado por Dr. Victor

Frankenstein) derivado de outros objetos desmembrados e remodelados. Sua

imagem me parecia uma constante metamorfose entre a representação e a

abstração. ―Não é uma realidade que se possa pegar com as mãos. É mais

como um perfume‖ [...] ―O aroma está em todo lugar, mas não se sabe bem de

onde vem‖ (Picasso apud. STRICKLAND, 2002, p. 138).

Onde estavam aquelas roupas velhas? Elas haviam se desmaterializado

quase por completo, restando apenas resquícios do que foram. Em cena para

um figurino1, deixei os objetos quase intactos, suas imagens reforçavam o

potencial estático daquela veste. Sobre esta nova criação (cena para um

figurino2), a despeito de sua imagem impactante, percebi que a mesma só

libertaria sua real potencialidade com a manipulação, pois, à medida que

abstraí o objeto em si para ressaltar suas estruturas materiais e geométricas,

77

abri um caminho para a sua libertação. Portanto, a potencialidade desta veste,

latente em seu estado estático, extravasa através da ação.

Dentro desta acepção instalam-se os eixos centrais dos trabalhos de

Hélio Oiticica e Lygia Clark. Além de terem nutrido uma grande admiração

mútua41, ambos tinham como motor de seus trabalhos o conceito de "não-

objeto‖ que, segundo o crítico Ferreira Gullar, seria a ―superação de uma arte

de cunho geométrico-representacional para a proposição de experiências

artísticas vivenciadas centradas no corpo‖ (SPERLING, 2008, p. 117).

A estrutura aberta do objeto estava diretamente ligada às novas

possibilidades de se penetrar no núcleo da criação artística a partir da

participação do público. Ter o espectador como sujeito agente que transforma o

objeto segundo suas próprias experiências faz com que a realização da ―obra‖

seja múltipla, única e determinadora de tempo-espaço.

Segundo Clark (1997, p.152), ―a poesia se exprime diretamente no ato de

fazer. É como um ovo que só revela sua substância quando abrimos.‖

4.3 Plagiando Lygia Clark: ―O dentro é o fora‖

O interior e o exterior falam do espaço. O espaço envolve nossos corpos

como nossa pele e nossas roupas; ele se movimenta conosco numa constante

tensão do ir e vir, do entrar e sair como uma dança.

Depois de finalizar o figurino, fiz questão de ―experimentá-lo‖, vestindo-o.

A visão de dentro permitiu-me perceber integralmente o potencial das roupas

que havia cerrado ali. Inicialmente foram investidas mais tímidas de modo que

41

―Hélio era o lado de fora de uma luva, a ligação com o mundo exterior. Eu, a parte de dentro. Nós dois existimos a partir do momento em que há uma mão que calce a luva.‖ (CLARK,1997, p. 7)

78

eu apenas atravessava individualmente os buracos das roupas. Ao longo da

―experimentação‖ fui me movendo e transbordando partes do meu corpo pelos

orifícios desta grande morada. Era um casulo com inúmeros espaços de

entradas e saídas interligados.

O aspecto do figurino, que em muitos momentos me lembrava uma

burca42, também me remetia às máscaras sensoriais43 de Lygia Clark, porém

expandidas para o corpo inteiro. Segundo Clark, sua busca era, com suas

máscaras, desmaterializar a realidade externa de cada um, a partir do

redirecionamento dos sentidos do tato, audição, visão e olfato para fazer o

42 Veste usada em público por algumas mulheres muçulmanas da Ásia, a qual envolve o corpo, inclusive a cabeça, e tem, na altura dos olhos, uma abertura que permite à mulher ver sem ser vista. 43

―Lygia Clark, Máscaras Sensoriais, de 1967, feitas de tecido, as Máscaras Sensoriais cobriam toda a cabeça, eram de diferentes cores (verde, rosa, azul, púrpura, cereja, branco e preto) e davam aos participantes um aspecto monstruoso. Eles tinham ouvidos e olhos tapados – por dispositivos que variavam de máscara para máscara, alterando a audição e a visão – e uma espécie de bico, que abrigava diferentes substâncias, como ervas aromáticas, para o estímulo olfativo.‖ In: http://multissenso.blogspot.com/2009/11/lygia-clark-mascaras-sensoriais.html (consultado dia 21/01/2010)

24. Aspecto final do figurino de Cena para um figurino2.

79

homem encontrar o fantástico dentro de si. O participante poderia ser levado "a

um estado equivalente ao da droga", ao perder contato com a realidade

externa. A artista afirma, em seu Livro obra (1983),44 que "as máscaras

permitem habitar um espaço intermediário entre o real e a fantasia, entre o

exterior e o interior." 45

Volto à minha experiência com o novo figurino criado. Ainda em seu

interior, pude visualizar cores e luzes diferentes de acordo com cada buraco

que atravessava. Experimentei sensações dúbias de claustrofobia, liberdade,

claro, escuro, apertado, largo, quente, num ritmo constante de aceleração.

Aceleração esta que me deixou exausta.

44

Livro Obra: textos escritos pela própria artista, originalmente escrito em 1964, publicado em 1983 por Luciano Figueiredo e Ana Maria Araújo, numa edição limitada de 24 exemplares. 45

Lygia Clark, apud.In: http://multissenso.blogspot.com/2009/11/lygia-clark-mascaras sensoriais.html (consultado dia 21/01/2010)

25. Máscaras sensoriais de Lygia Clark, 1967.

80

As dificuldades que a veste impôs à movimentação muitas vezes me

impediam de continuar minha imersão pela roupa e, em outros momentos,

expandiam possibilidades de locomoção inimagináveis à primeira vista.

Fotografei para ver a figura de fora. Pela fotografia conseguia ver o todo das

figuras estranhas que se formavam a partir de minhas investidas pelos buracos

e tubos.

Minha condição de estar no interior permitia-me apenas ver fragmentos

do que seriam as imagens dessa roupa habitada. Tanto para quem veste

quanto para quem observa, portanto, esta experiência proporciona uma parte

de um todo. O exterior e o interior existem distintamente para quem veste e

para quem vê. Os sentidos se ampliam.

Sentido é, com efeito, uma curiosa palavra que se emprega, por sua vez, em dois sentidos opostos. Por um lado, designa os órgãos que presidem a apreensão imediata; por outro lado, chamamos sentido à significação, à idéia de uma coisa, àquilo que nela há de geral. Deste modo, o sentido refere-se, por um lado, ao aspecto imediatamente exterior da existência e, por outro lado à sua íntima essência. É tal a consideração refletida que em vez de separar as duas partes, as apresenta simultaneamente, quer dizer, recebe a intuição sensível de uma coisa e, ao mesmo tempo, apreende o sentido e o conceito dela (HEGEL, 2008, p. 191).

26. ―Experimentando‖ Cena para um figurino2.

81

4.4 Apresentação: preparativos e ―ensaio‖

Desta vez, não por escolha minha, mas por motivos de força maior,

contei apenas com Suzana para experimentar o figurino (o que possibilitou uma

evolução conjunta do trabalho). Uma hora antes do horário marcado para a

apresentação, já estávamos na sala 706.

O figurino, como já dito, continha linhas que o ancoravam no espaço,

assim como no esquema imaginário de Schlemmer. Decidi usar elásticos

visando a materializar essas linhas, pois via a necessidade de trabalhar com a

tensão que o elástico proporciona quando esticado. Em quinze minutos a

estrutura de elásticos que suportaria a roupa estava montada. Eram vinte fios

de elástico que pendiam do teto e ―beliscavam‖ o figurino com ganchos em

diversos pontos diferentes (Almejava ainda ter fios vindos do chão, mas a

estrutura da sala não permitiu tal operação.)

Quando pendurei a roupa nos elásticos constatei que eles estavam

curtos e puxando a roupa para cima. Mas, ao vesti-la vi que era extremamente

importante essa característica, pois o peso do corpo puxaria a roupa

inevitavelmente para baixo, criando uma tensão, um drama entre o figurino e o

corpo. Percebi também que não havia a necessidade de tapar o topo do

figurino, pois o elástico oferecia o suporte necessário para que o figurino não

caísse, dispensando assim o ponto de apoio da cabeça.

Quando ele estava pendurado ali, ―olhando‖ para mim, gostei muito de

contemplar aquela presença forte e ao mesmo tempo esquisita. Dava vontade

de entrar ali e simplesmente brincar.

As cadeiras da platéia foram dispostas em forma de arena para a

apresentação. A figura tridimensional foi instalada ao centro da arena, o que

82

possibilitaria criações de cena diferentes a partir de cada ponto de visão. A

despeito das formas individuais que serviram de base para o figurino, o que

importava agora era a massa em que ele se tornou e o fluxo que seria

originado em seu interior, nas suas entradas e saídas.

Suzana começou a experimentar o figurino. Foi um momento de extrema

diversão, tudo era novo. Surgiram imagens extremamente poderosas, vivas,

dinâmicas. Foi um rito de libertação do corpo naquelas passagens inventadas.

―Nesta via sem compromisso o ator deve oferecer seu ridículo, seu

despojamento, sua dignidade mesma, aparecer desarmado, fora da proteção

de máscaras falaciosas...‖ (KANTOR, 2008, p. 63)

4.4.1 O interior: Suzana

Como fazer?

Essa experiência, ao contrário da primeira, não me permitiu muitas divagações

ou construções prévias. Abismo. Mas, outro tipo de abismo, aquele em que temos que

nos jogar para só depois decidir muito rapidamente como iremos cair, chegar ao chão.

E foi este o único conceito que norteou a experiência: jogar-se.

Meu primeiro encontro com o figurino aconteceu uma hora antes de os

espectadores chegarem. Deixei qualquer conhecimento teatral do lado de fora da

cloaca daquele ―bicho‖ pendurado no meio da sala. Apenas invadi aquela estranha

intimidade para explorar suas passagens, seus buracos, sua malemolência, suas

permissões. Meu intento era somente aquele de brincar com os túneis e limites que a

roupa - roupa? - me oferecia. O que seria aquilo? Também não me ocupei em

responder a essa pergunta. Sem questões, apenas ações.

O corpo físico – meu, daquele ser e um terceiro, decorrente da junção entre

nós dois – conduziu o experimento. Algo de muito intuitivo, instintivo, dominou o

acontecimento, chegando a instantes de aproximações claras com o animalesco, talvez

também supressão da fala.

Cansaço; calor; suor; decisões físicas; exaustão – uma série de imagens, sons,

associações, tensões e tentativas perpassaram o lugar do estranho, do objeto não

identificado, mas gerador de expressões pujantes, presentes; sem questões para o

momento.46

46

Depoimento de Suzana Nascimento sobre sua experiência em Cena para um figurino2.

83

4.4.2 O exterior: a apresentação 47

A relação artista-propositor com o participante que veste o parangolé não é a relação frontal do espectador e do espetáculo, mas como que uma cumplicidade, um relação oblíqua e clandestina, de peixes do mesmo cardume (SALOMÃO, 1996, p. 27).

Antes de a performance acontecer, juntamente com Suzana já havia

refletido sobre a aproximação entre a imagem desse figurino e a obra de

Beckett, especialmente as peças: Dias felizes48 – no primeiro ato Winnie está

enterrada até a cintura; no segundo ato apresenta-se apenas com a cabeça

fora da terra –; e Eu não49 – peça escrita para uma boca. Imaginamos a boca

saindo pelos buracos e despejando o texto.

Os espectadores foram chegando pouco a pouco e às quatorze horas

começamos o jogo. Indescritível. Suzana fez uma interação com momentos

belíssimos e completamente diferentes do seu ―ensaio‖. Ela fez uma entrada

no figurino como se estivesse voltando ao útero materno, e uma saída, ao final

da apresentação, como que numa alusão quase direta a Macunaíma, em que

era expulsa pela mesma cloaca que lhe servira de entrada.

O comportamento do figurino, durante toda a performance, em muito

aproximava-se dos Parangolés de Hélio Oiticica, pois a idéia da criação do

objeto – no caso de Cena para um figurino2, uma cena – também passa pela

proposição vivencial do corpo. O figurino assim como o Parangolé, desdobra-

se no ―desvestimento‖ de um corpo anterior, humano, para a incorporação dos

códigos e das categorias do outro corpo, a veste. Suas formas não são firmes,

mas maleáveis, tensionadas, suspensas nos vãos do espaço, cujos

47

Ver vídeo cena para um figurino2. DVD em anexo. 48

Original: Happy Days/ 1960. 49

Original: ―Not I‖ / 1972. Assista em: http://www.youtube.com/watch?v=9eCKClkFQJk&feature=related

84

mecanismos e dinâmicas eles revelam, ainda que fugazmente nos desenhos

formados pela tensão de seus movimentos. Tanto o figurino quanto o

Parangolé constituem objetos fluidos capazes de, com o manuseio, abafar a

constituição primeira do objeto em nome de sua estrutura-ação no espaço.

Dentro dessa acepção, não importa quem veste: a performance nunca se

repetirá. A não-repetição vem do não-ensaio e da livre exploração dos espaços

internos da veste. O figurino movimenta-se em uma resposta ao corpo interno;

sua forma exterior é uma reação ao movimento do corpo interior. Ele está

nesse constante fluxo de restringir e de libertar os movimentos.

A experiência do corpo nos ensina a enraizar o espaço na existência.[...] A experiência revela sob o espaço objetivo, no qual finalmente o corpo toma lugar, na espacialidade primordial da qual a primeira é apenas o invólucro e que se confunde com o próprio ser do corpo. Ser corpo […] é estar atado a um certo mundo...nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço (MERLEAU-PONTY apud SPERLING, 2008, p. 123).

Um viés muito interessante pelo qual transita esse trabalho, portanto, é

também a abordagem do figurino como corpo. A CASA É O CORPO/ O

CORPO É A CASA (Lygia Clark,1969). ―O corpo como casa, de que fala Lygia

Clark, denota a qualidade do corpo, pelo gesto, de gerar sua espacialidade.‖

(SPERLING, 2008, p. 132). Trata-se de um abrigo poético onde o habitar é o

equivalente do comunicar. O habitar-comunicar torna-se ação criadora do

espaço da existência. E a rotação cinética do corpo dentro do figurino possui

esta qualidade.

85

A roupa vela e revela, é transbordada pelo corpo em imagens vivas. O

figurino, ao abrigar o corpo, induz o mesmo a se locomover dentro de um

espaço ao mesmo tempo mínimo e imenso.

Durante a apresentação, surgiram imagens dessa relação que

proporcionaram, em muitos instantes, sustos, risos, curiosidade, aflição. Foram

momentos espontâneos, vividos intensamente pela imersão do corpo na veste.

Essa experiência ratificou a importância de o ―vestidor‖ estar sempre

aberto às possibilidades do jogo, por estar no constante fluxo de agir e

encontrar o novo, de estruturar este novo em espacialidade. Os elásticos, por

sua vez, desenhavam o espaço como em uma dança. Seus desenhos eram

esculturas vivas, atravessadoras do espaço, enquanto o figurino tingia o recinto

com suas cores inventadas numa constante evolução, como uma obra aberta.50

50

Ver vídeo 5 em DVD anexo, ou no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=AZ0uU_K0U64

27. Suzana imersa no figurino de Cena para um figurino2.

86

Conclusão

A realização do impossível é a fascinação suprema da arte e seu segredo mais profundo. Mais do que um processo, ela é um ato da imaginação, uma decisão violenta, espontânea, quase desesperada, diante da possibilidade subitamente surgida, absurda, que escapa aos nossos sentidos. (KANTOR, 2008, p. 64)

Há dois anos estava diante de um grande desafio: desenvolver um

projeto que produzisse um resultado até então inédito para mim, fruto da

evolução do meu trabalho como figurinista, aliado ao suporte do trabalho de

artistas como Tadeusz Kantor e Oskar Schlemmer.

Os caminhos de Kantor e Schlemmer foram escolhidos não por simples

afinidade com seus pensamentos, mas também pelo desejo de reconstituir

seus conhecimentos na possível renovação no meu trabalho artístico.

Partindo da evolução dos meus experimentos anteriores e da conexão

destes com as experiências já depuradas de Schlemmer e Kantor, pude

embasar a intuição e revigorar a técnica da colagem na criação de meus

figurinos. A estrutura deste experimento como um todo trouxe a possibilidade

de colocar o figurino no centro da proposição da cena, esquivando-o de ser

apenas um objeto a mais no conjunto cênico para tornar-se o objeto essencial

da cena.

Referindo-me especificamente aos dois experimentos criados para

esta dissertação, Cena para um figurino1 e Cena para um figurino2, foi

constatado que os métodos de construção e os materiais empregados foram

cruciais no redimensionamento da função do figurino na cena, transformando-o

em obra acabada, porém suscetível a redefinições a partir do momento em que

o intérprete o vestia e nos diferentes olhares dos observantes que atuavam

87

sobre eles.

Cena para um figurino1 delineou a concretização da primeira busca

desse figurino autônomo, descolado de funcionalidade representativa,

sugerindo que a autonomia estaria na construção, nos objetos e nos

mecanismos inseridos naquela veste. Pude então, após a finalização deste

experimento, compreender que a autonomia do figurino está nele próprio, ou

seja, qualquer figurino é um elemento autônomo dentro da cena.

O transbordamento da veste de cena para um figurino1 está além da

função plástica, comum às roupas, e da função representativa comum aos

figurinos atrelados a um texto. Ele foi planejado para servir como mecanismo e

suporte para a criação de uma cena a partir do jogo estabelecido entre o ator e

a veste. A operação plástica da colagem atrelada aos objetos fez dessa veste

uma assemblage vestível, uma escultura oca capaz de ser ao mesmo tempo a

obra e o suporte de uma outra obra: a cena.

Apesar de cena para um figurino 1 possuir inúmeras possibilidades de

apresentação, o material empregado nesta veste oferecia uma resistência à

extrapolação da forma material, do corpo que a vestia e da relação deste

conjunto com o espaço. Ainda assim, feitos alguns ajustes após a primeira

apresentação, foram extraídas algumas cenas que só poderiam acontecer

mediante a existência deste figurino.

A resposta para a construção da cena partindo de um figurino estava,

com este primeiro experimento, parcialmente resolvida. Foi, entretanto,

constatada uma carência no que dizia respeito às provocações feitas pelos

trabalhos de Tadeusz Kantor e Oskar Schlemmer. Era necessário um

experimento mais dinâmico, que abarcasse de uma forma mais incisiva a

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transformação do espaço pela interação mais livre do corpo e da veste como

uma dança. Nesta etapa do processo foi verificado que este figurino, além de

ter uma aparência escultórica como uma obra acabada e ―fechada‖ em si,

também deveria possuir a disponibilidade do jogo, da transformação e do

acaso.

No patamar das descobertas e das necessidades do experimento Cena

para um figurino1 foi principiado o processo de Cena para um figurino2. Nesta

segunda iniciativa, o foco deixou de ser a autonomia do figurino enquanto

objeto plástico para transformá-lo em objeto das possibilidades de

transmutação, tanto do corpo do performer, quanto do espaço e da aparência

da veste. O ponto central deste experimento passou a ser a cena, enquanto no

experimento anterior havia sido a construção. Em cena para um figurino2 foi

atingido o ponto da mistura entre as idéias almejadas na origem deste projeto:

um figurino autônomo, mutante, suporte para o corpo se inscrever no espaço e

que possibilitaria cenas muito mais expandidas que o primeiro ensaio.

A cena aconteceu a partir do desejo de extravasar a complexidade de

um objeto tão interdisciplinar como o figurino permitindo que os limites das

artes plásticas, teatro e performance, fossem rompidos a fim de propiciar o

encontro destes em um único lugar com um mesmo fim.

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