celso furtado análise 1964

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  • 8/16/2019 Celso Furtado Análise 1964

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    CELSO FURTADO E O GOLPE DE 1964: ENTRE A “FANTASIA DESFEITA”

    E A CRÍTICA POLÍTICA DO EXÍLIOGustavo Louis Henrique Pinto1

    RESUMOO projeto desenvolvimentista de Celso Furtado tinha como ponto de chegada a tarefa derealizar mudanças políticas que pudessem conduzir mudanças sociais e econômicas, demaneira que a competição e o aprofundamento do capitalismo industrial e financeiro pudessem fornecer novas bases para transformações institucionais. O momentohistórico do projeto desenvolvimentista antes do Golpe Civil-Militar de 1964 foi posteriormente intitulado por Furtado como a fantasia desfeita , já que o regimeimpactou sobre as construções políticas de umaintelligentsia e, claro, sobre o destino dasociedade. O objeto de análise deste artigo se refere à interpretação de Furtado sobre oGolpe de 1964 a partir de três perspectivas:a. a leitura das tensões sociais e o problemademocrático contido nas obras A pré-revolução brasileira (1962) e a Dialética dodesenvolvimento (1964);b. a conexão estabelecida por Furtado entre as reformas de base, a manutenção da velha estrutura agrária e o momento pré Golpe;c. a identificaçãodos obstáculos políticos ao desenvolvimento no período do exílio. A hipótese desteartigo é que Furtado se deparou com a questão de como construir a modernidade na periferia de matriz colonial, e o espaço da política foi central nesta tarefa, principalmente com o peso dado à democracia na realização do desenvolvimentismo,como meio estratégico e fim em Furtado, de base social-democrática. Retomar o pensamento de Furtado a partir da ciência política possibilita um debate abrangente deum autor que possui um peso significativo para a interpretação do Golpe Civil-Militarde 1964.PALAVRAS-CHAVE: Golpe de 1964. Celso Furtado. Intelectuais. Nacional-desenvolvimentismo. Democracia.

    O nacional-desenvolvimentismo brasileiro, entre a década de 1950 até 1964, foimarcado por diversos projetos políticos em disputa, além de interpretações ligadas avariadas filiações teóricas. Celso Furtado foi, entre os políticos e intelectuais deste período, um dos principais formuladores de um projeto de desenvolvimento. O Golpe

    de 1964 interrompeu a continuidade de uma ação política para Celso Furtado, no qual seconsumou com o exílio do intelectual. No exílio podemos identificar uma nova fase doautor, que legou uma interpretação autônoma dos motivos que sufocaram as alternativasde reformas estruturais idealizadas pelo projeto furtadiano. Desejamos apontar nestetrabalho o deslocamento da interpretação de Furtado, entre as experiências daSUDENE, do Plano Trienal e das reformas de base até 1964, em contraste com suainterpretação no exílio.

    1 Mestre e doutorando em Ciência Política pela UFSCar, membro do Grupo de Pesquisa “Ideias,intelectuais e instituições – trajetórias da democracia e do desenvolvimento” (UFSCar). E-mail:[email protected] .

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]

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    Celso Furtado (1920-2004), economista de formação, principal pensador brasileiro do estruturalismo cepalino, ingressou na Comissão Econômica Para aAmérica Latina - CEPAL no período inicial da instituição (1949), e foi simultaneamente

    um teórico do desenvolvimento assim como um policy makers (ministro de Estado,idealizador da SUDENE e idealizador do Plano de Metas). Furtado permaneceu naCEPAL entre 1949 e 1958, porém a literatura sobre o pensamento furtadiano avalia acontinuidade de diálogo com a agenda de debate cepalina até 1964, o que constituiriauma primeira fase do pensamento do autor (MALLORQUÍN 2005; VIEIRA 2007).

    Furtado, em sua interpretação, partiu do “método histórico-estrutural” paracompreender a elaboração do subdesenvolvimento, o que significa identificar nas linhas

    históricas do capitalismo global um “processo histórico autônomo” na periferia, possibilitando evidenciar as estruturas heterogêneas características dosubdesenvolvimento e propor estrategicamente um prognóstico de acordo com aformação particular do capitalismo periférico (BIELSCHOWSKY 2001). A teoria dosubdesenvolvimento furtadiana elaborou a construção histórica de um modelo teórico primário-exportador de expansão da economia na periferia (FURTADO 1954, 2009[1959]). O ponto chave da interpretação histórica furtadiana é a ideia detransição do

    modelo de “vocação agrária” para o processo de industrialização. O capitalismoindustrial foi resultado da diferenciação estrutural decorrente da economia cafeeira(FURTADO 2009 [1959]). Portanto, a noção detransição para a industrialização,segundo Sachs (2001), das três primeiras décadas do século XX, de um passado queaponta para um futuro, desencadeou o nacional-desenvolvimentismo das décadas de1940 e 1950. A aposta na industrialização como chave para a modernidade em razão doseu impacto técnico e de inovação, que transborda para outras estruturas econômicas,

    apontam a presença do pensamento de G. List em Furtado. A transição para a indústriacomo unidade-chave do sistema econômico produziu, segundo análise de Furtado, umaheterogeneidade estrutural, um setor moderno urbano-industrial em desequilíbrio comsetores arcaicos de base agrária, formando estruturas dualistas através de sistemaseconômicos cujo estágio de desenvolvimento é diferenciado.

    O dualismo estrutural da década de 1950 foi a marca dosobstáculos aodesenvolvimento (FURTADO 1958, 1962). Desequilíbrios regionais como falta deintegração nacional no Brasil eram resultados de setores em que a modernização nãotransformou. Um desenvolvimento urbano-industrial concentrado possibilitou umaintensa migração interna e uma baixa diferenciação nas estruturas agrárias. As

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    mudanças que Furtado apontou (FURTADO 1959, 1964) estão radicadas no campo dasações políticas demonstradas em seu projeto. O projeto de planejamento regionalfocalizado na SUDENE demonstrou as bases furtadianas de racionalização das

    operações do Estado na centralização e coordenação das transformações do Nordeste(CARDOSO 2009). O projeto desenvolvimentista para o Nordeste foi um espaço propício para o aprofundamento da tese furtadiana de que a democracia deveria sercondição para qualquer processo de modernização via planejamento, e será ademocracia – e em especial o campo da política – o eixo de suas análises sobre o Golpede 1964.

    Furtado foi ativo na consolidação de uma posição que aponta a fratura do Golpe

    de 1964 como parte do esgotamento das forças do nacional-desenvolvimentismo. Ahipótese apontada por Furtado (1962, 1964) é que o processo de industrialização geroudeterminadas modificações na estrutura social, deslocando em parte o centro degravidade do processo eleitoral. Porém as instituições políticas não corresponderam àstransformações da estrutura social, as instituições não acompanharam odesenvolvimento econômico. O problema estava na incapacidade do Governo emrealizar uma real política de desenvolvimento frente a um legislativo conservador,

    “retrógrado”, latifundiário. No primeiro texto político apósa saída para o exílio, em19652, Furtado constatou como o mais profundo conflito interno no Brasil a disputaentre as velhas estruturas no Congresso e a pressão de massas no Executivo. No Brasilnão se formou uma “ideología industrialista capaz de proyectarse significativamente enel plano político” (FURTADO, 1965, p. 379). Cardoso (1979)3 chama de “aliançadesenvolvimentista” esta ideia de que o setor moderno (industrial) pudesse impor umahegemonia política sobre os demais grupos sociais e, assim, controlar o Estado. Seria

    como se as classes sociais ligadas ao setor moderno, para Cardoso (1979), tivessem uma“vocação de domínio”, a “missão histórica” do projeto “burguês” de desenvolvimentonacional, projeto que no caso brasileiro acabou por realizar uma saída autoritária. Estaleitura da hegemonia das classes industriais foi um elemento recorrente, conforme

    2 Trata-se da conferência proferida por Furtado em Londres, “Political Obstacles to the EconomicDevelopment of Brazil”, traduzido no Brasil como “Obstáculos políticos ao crescimento econômico”,

    Revista Civilização Brasileira , vol. I, n. I, 1965.3 CARDOSO, F.H. “Hegemonia burguesa e independência econômica: raízes estruturais da crise política brasileira”, Brasil: tempos modernos , 1979. Edição que Furtado dirige em 1967 para a revista francesa Les Temps modernes , a pedido do Sartre, e tem o texto do Furtado “Do Estado oligárquico ao Estadomilitar”.

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    Cardoso (1979), no pensamento político e econômico latino-americano, do qual “talvez”Furtado esteja próximo.

    Campello de Souza, em Estados e partidos políticos no Brasil (1983), ao

    construir sua hipótese sobre a crise institucional do sistema partidário brasileiro sedefronta diretamente com a tese furtadiana. A tese furtadiana de um Executivo urbano-reformista e um Congresso agrário-conservador, para Campello de Souza, não estariam provados, pois não seria possível caracterizar votos urbanos e votos rurais em nívelnacional. Não interessa o debate em si da Campello de Souza (que identificava umrealinhamento eleitoral de acordo com as mudanças conjunturais), mas sim oreconhecimento da tese de Furtado, sobre a ineficácia do sistema político em incorporar

    reformas sociais, e isso se deu para Furtado, em grande medida, pela estrutura agrária e pela falta de hegemonia do projeto de desenvolvimento dos grupos industriais.

    A dualidade estruturalA interpretação do subdesenvolvimento correspondente ao campo teórico

    cepalino, produzida entre as décadas de 1950 e 1960, impactou sobre as análises políticas das transformações institucionais (e sociais) dos países periféricos. Significouuma abordagem heterodoxa dos diferentes graus de desenvolvimento capitalista na periferia, com foco nas formas de modernização que conheceram as ex-colônias latino-americanas frente seus respectivos contextos históricos4. A industrialização ressoousobre as “velhas estruturas de origem colonial” e possibilitou que a condição desubdesenvolvimento fosse observada pelos diferentes graus em que conviveram processos de industrialização com estruturas agrárias de base primário-exportadora. Osubdesenvolvimento foi mais significativo do que o simples apontamento do atrasohistórico a superar e, assim, produziu um cenário propício para a teoria do dualismoestrutural. O diagnóstico do subdesenvolvimento avaliou a capacidade de interação,superação, ou mesmo de supressão entre as estruturas agrário-exportadoras de um país eas estruturas que tiveram “surtos de industrialização”.

    No caso brasileiro, o dualismo estrutural foi uma tese cara a ciências sociais, produzindo alta pulverização nas pesquisas das décadas de 1970 e 1980 (Oliveira 1983;Cepêda 1998). O dualismo cumpriu um papel central no argumento furtadiano do GolpeMilitar de 1964, e que confere a necessária explicação para compor os obstáculos ao

    4 Para uma análise detida do pensamento cepalino, principalmente com olhar sobre a política, verBielschowsky 2004; Cepêda 2013.

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    desenvolvimento que o regime militar produziu – obstáculos em um sentidomultifuncional, político, econômico e social. A diferenciação estrutural que aindustrialização proporcionou foi localizada na região Sul, então o desenvolvimento

    produziu o seu próprio desequilíbrio: a modernização não tocou a região Nordeste,mantendo-se essencialmente rural.

    O Nordeste enquanto questão nacional (Camargo 1981), com o crescimento populacional mais expressivo do país, sofria as maiores desigualdades sociais, e frenteao sistema econômico nacional, as duas regiões representavam uma relação dedesequilíbrio. A industrialização de base urbana possuía o “privilégio” da técnica e dasrelações dinâmicas, cujo sistema possibilitava inversões na forma de investimentos e

    salários, resultados do efeito multiplicador da indústria, que detinha sua própria formade expansão (cf. Furtado 2009 [1959]). O Nordeste na década de 1950 representava umaimensidão rural de latifúndios primário-exportadores com economias de subsistênciaque conviviam em relação de dependência dos centros monocultores. A baixatecnologia, os níveis de pobreza e a dificuldade em se criar uma economia de alimentos para o mercado interno produziu uma onda imensa de imigração para a região Sul.Desde Perspectivas da economia brasileira (1958 [1957]) Furtado apontava que o

    desequilíbrio regional entre uma região com modernização urbano-industrial e o Nordeste, de base rural, constituía o maior entrave ao desenvolvimento econômico esocial brasileiro. Este dualismo estrutural impossibilitava uma integração nacionaldestes sistemas econômicos regionais.

    As causas do dualismo que se aprofundava no final da década de 1950 jácontinha um diagnóstico que acompanhou toda a elaboração sobre o Golpe de 1964: oatraso do Nordeste tinha por base a manutenção das classes dirigentes nordestinas, pois

    o poder político formava parte com o latifúndio e com a economia primário-exportadora. A baixa possibilidade de transformação das elites latifundiárias, o controle político destes grupos e as dificuldades de mobilidade social, produziram um cenáriocuja estratificação social apresentava uma alta desigualdade de renda e exclusão da luta política. Furtado em um artigo sobre a conjuntura do Brasil para o periódico francês LesTemps Modernes , em 1967, analisou a transição para o regime militar, e assim apontouas bases de sua crítica ao Golpe Militar. A tese de Furtado, conforme aponta Campellode Souza (1983), foi a existência de um Congresso agrário-exportador e um executivourbano-reformista, argumento do qual a literatura confrontou nas décadas posteriores.

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    O populismo como fenômeno da relação entre os governos e a massa, significou para Furtado (1979) a impossibilidade de consolidação de uma democracia formal. Asclasses dirigentes, no qual Furtado posicionou as oligarquias rurais e o poder da classe

    média (fixada na burocracia do Estado, nas forças armadas, nas universidades), tiveramduas preocupações no processo político: o esvaziamento do conteúdo ideológico nodiálogo com as massas, inibindo a formação de consciência de classe entre ostrabalhadores; e fixar o vínculo paternalista. A relação entre o fenômeno das massas e adimensão política que o tema das reformas suscitou na conjuntura do início da décadade 1960 forneceu elementos de pressão por modernização institucional através da política. Sobre os novos canais da política, Furtado afirmou:

    Foi o temor de que essa porta se ampliasse demasiadamente rápido que levouo pânico à classe dirigente, a qual apelou para as Forças Armadas a fim deque estas desempenhassem agora o papel de gerdame do status quo social,cuja preservação passava a exigir eliminação da democracia formal”(Furtado, 1979, p. 12).

    Há um diagnóstico presente na análise de Celso Furtado do final da década de1950 até 1964, sendo o Golpe Militar um ponto-chave sobre sua interpretação, e se tratada perspectiva dereformas estruturais. O conteúdo político do pensamento furtadiano(entre Perspectivas da economia brasileira (1958) até Dialética do desenvolvimento (1964)) se radicaliza: a análise inicial de natureza econômica com um diagnóstico deforte protagonismo estatal se torna um projeto político em tor no das “reformas de base”e das políticas de desenvolvimento da SUDENE.

    Em Perspectivas e Formação econômica do Brasil (2009), há um foco na política econômica em dois sentidos, de integração regional e uma constatação dosobstáculos da estrutura agrária e da agricultura frente o processo de desenvolvimentoindustrial. Esta é uma perspectiva do dualismo estrutural, mais próxima do campo

    econômico, que esteve presente nas análises da década de 1960, porém em A pré-revolução brasileira (1962) e Dialética do desenvolvimento (1964), e nos textos emtorno da SUDENE5, se aprofunda a dimensão dasreformas das estruturas sociais. Asmudanças sociais para o desenvolvimento adquire centralidade, torna-se condição dodesenvolvimento, e em dois momentos políticos de atuação de Furtado se podeconstatar a configuração desta tese, nos embates da SUDENE e no Plano Trienal, e se

    5 São estes os textos que apontamos:Operação Nordeste (1959); “Política econômica e reformas de base”(Furtado, 1962b); e aqueles reunidos emO Nordeste e a saga da Sudene (1958-1964) (2009).

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    verifica as “reformas de base”. Esse deslocamento que desejo posicionar naapresentação dos textos de Furtado a seguir.

    Em Formação econômica do Brasil , no capítulo final (36), “Perspectiva dos

    próximos decênios”, contém uma constatação e um diagnóstico: a industrialização produziu a“transformação estrutural” mais importante da economia do século XX, como centro dinâmico no mercado interno, porém aprofundou as disparidades regionais.Furtado afirma:

    Assim como na primeira metade do século XX cresceu a consciência deinterdependência econômica – à medida que se articulavam as distintasregiões em torno do centro cafeeiro-industrial em rápida expansão – , nasegunda poderá aguçar-se o temor de que o crescimento intenso de umaregião é necessariamente a contrapartida da estagnação de outros.

    (FURTADO, 2009 [1959], p. 331) Na teoria de Furtado há uma formulação de que o desenvolvimento de uma

    determinada estrutura sempre ocasionará disparidades em outros setores que integrameste mesmoo sistema econômico – em Perspectivas confirma o argumento: “O própriodesenvolvimento cria desequilíbrios” (Furtado, 1958, p.17). A modernização nunca“toca” todo o sistema; a intensificação do desenvolvimento engendra desigualdades e,no caso brasileiro, produz uma concentração regional de renda que poderia resultar em

    maiores “tensões regionais”, fundamentais para a política econômica futura. Aindustrialização na região Sul estabeleceu as novas relações do dualismo estrutural,entre a indústria e a agricultura, que constituiriam também a expressão de um dualismode regiões, em profundo processo de distanciamento. As condições dosubdesenvolvimento se defrontavam/ajustavam diante de uma diferenciação estruturalde natureza moderna, a indústria. O Nordeste constituiu a“questão” problema (efundamental) do subdesenvolvimento brasileiro (em grau de industrialização), pela permanência de uma agricultura secular, com uma estrutura “arcaica” de produção (e de poder?) incapaz de responder as necessidades do desenvolvimento industrial (e darápida urbanização).

    “O sistema de monocultura é, por natureza, antagônico a todo processo deindustrialização” (Furtado, 2009 [1959], p. 333). Furtado identificava a monoculturacomo um “sistema ancilosado”, um sistema imobilizado, sem flexibilidade, em que suatransformação, rumo a uma maior integração ao processo de industrialização, poderiaresponder ao problema da “inelasticidade da oferta de alimentos”. A urbanização e suademanda pela oferta de alimentos em crescimento poderiam agravar as tensões sociais,contribuindo para o processo inflacionário (em momentos de escassez de alimentos

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    aumenta a especulação do comércio e a pressão sobre os salários), e dificultar umaintegração nacional. Uma maior integração econômica das regiões “(...) exigirá aruptura de formas arcaicas de aproveitamento de recursos em certas regiões” (Furtado,cit. , p. 335). Então concluímos que a utilização dos recursos potenciais (como as áreasde agricultura de subsistência e, principalmente, os latifúndios em áreas úmidas),necessitaria de mudanças substantivas na estrutura econômica – e que delineará a perspectivareformista nos anos subsequentes a publicação de FEB , quando Furtado eraum policy makers , ocupava uma função pública.

    Na análise de conjuntura do ano de 1957, nas palestras publicadas como Perspectivas da economia brasileira (1958), existe uma leitura do processo de

    desenvolvimento na mesma direção da conclusão de FEB . O objeto central dodiagnóstico (Furtado, 1958) está na política econômica de acumulação de capital viaindustrialização e nos elementos que engendram dificuldades ao desenvolvimento6.Estes entraves seriam os baixos níveis de poupança, a dificuldade da política dedesenvolvimento do Governo em direcionar os investimentos industriais, e aconcentração da renda. A programação de uma política fiscal era uma forma importantede defesa contra a concentração da renda e de criação de uma agricultura nova (Furtado,

    1958). A propriedade de terra está posicionada como um fator institucional daconcentração da renda, que afeta a distribuição da renda e a oferta de alimentos para a população (local, no caso do Nordeste). O elemento “novo” do diagnóstico apresentadoem Perspectivas , como Furtado aponta em A fantasia organizada (1997), é uma defesado enfoque e das políticas regionais, um caminho (um diagnóstico) trilhado com aOperação Nordeste.

    Apontamos que o projeto da SUDENE, que Furtado consolida a ideia da

    necessidade de transformar as estruturas econômicas arcaicas do Nordeste, para odesenvolvimento desta região, estará posteriormente fortalecido (radicalizado) no projeto furtadiano (em A pré-revolução e Dialética ) através do argumento político do protagonismo da ação do Estado frente àsreformas de base (como uma etapa para amodernização do Nordeste principalmente), e a consolidação da tese de Furtadoreferente aos obstáculos político-econômico que a estrutura agrária conferia ao

    6 A abordagem de Furtado neste período está diretamente conectada à interpretação cepalina, com o focono (a. ) problema da agricultura – inelasticidade de alimentos, e posteriormente Furtado externaria anecessidade de ruptura com a estrutura agrária, nos textos – , o que significa um problema de demanda,(b.) na integração dos desequilíbrios regionais, (c.) e no problema da capacidade para importar, o que premiava a região Sul de parte das divisas geradas pelo Nordeste através da agricultura de exportação,argumento central no documento “Uma política de desenvolvimento para o Nordeste (GTDN)” (1959).

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    desenvolvimentismo , já que esta estrutura reproduzia o dualismo estrutural e impedia amobilidade social dos estratos rurais.

    As contravenções da formulação e implementação da SUDENE e a luta política

    de Furtado enquanto Superintendente da instituição foram fatos fundamentais naformulação de uma “filosofia da ação” (Furtado, 1962). A pré-revolução brasileira (Furtado, 1962) é o esforço de Furtado para demonstrar que no considerado estágio dedesenvolvimento brasileiro, a sociedade civil – quanto aos seus “tomadores de decisão”em prol do desenvolvimento – , tinha que assegurar o controle dos centros políticos dedecisão, o que significava “(...) tomar consciência plena dos objetivos de nossa ação política em função do nosso próprio destino de povo e cultura” (Furtado, 1962, p. 19). A

    consciência em torno do desenvolvimento tinha que afastar a falsa alternativa entre aliberdade versus o desenvolvimento econômico rápido, já que a liberdade de umaminoria constituía para Furtado o sacrifício do bem-estar das “grandes maiorias”. Odesenvolvimento material das forças produtivas não se trata de uma realidade por si sósuficiente, pois no subdesenvolvimento está acompanhado por uma rigidez nas formasde organização político-sociais. A radicalização do pensamento furtadiano está emacelerar as transformações sociais e garantir uma sociedade aberta em pleno

    desenvolvimento (econômico, social, político, cultural), de maneira que afastasse uma possível saída revolucionária “marxista-leninista”, cujos objetivos sociais seriamatingidos por uma “ruptura cataclísmica”, ou através de processos de endurecimento político e contenção dos objetivos sociais através da força. A respeito das pressõessociais Furtado afirma:

    O problema fundamental que se apresenta é, portanto, desenvolver técnicasque permitam alcançar rápidas transformações sociais com os padrões deconvivência humana de uma sociedade aberta. Se não lograrmos esseobjetivo, a alternativa não será o imobilismo, pois as pressões sociais abrirão

    caminho, escapando a toda possibilidade de previsão e controle. (FURTADO,1962, p. 26)

    Tratava-se de elaborar objetivos para o desenvolvimento conduzido comverdadeiro “critério social”. As pressões podiam desencadear “golpes preventivos” ousoluções de emergência (daí o título do livro, “a pré-revolução”), então a solução seriaromper com o latente retrocesso do sistema político, e realizar a reforma agrária. A pré-revolução brasileira é o primeiro texto de Furtado com uma defesa explícita da“reforma agrária”, pensada como parte de uma política que subordinasse a reforma aodesenvolvimento econômico e social. O sistema político torna-se o centro dodiagnóstico de Furtado, e organiza-se na percepção de que uma política de

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    desenvolvimento em um país subdesenvolvido é de natureza qualitativa. As “reformasde base” eram a expressão de “desajustamentos estruturais” no plano político, umatomada de consciência. Furtado afirma sobre as “reformas de base”: “Trata-se,

    evidentemente, de reivindicações ou recomendações que traduzem uma tomada deconsciência de problemas estruturais, portanto de natureza essencialmente qualitativa”.(FURTADO, 1962, p. 39). O êxito logrado sobre os fins de uma política (econômica) dodesenvolvimento dependiam do grau de racionalidade política e dos valores nos meiosadotados. A SUDENE era a possibilidade de uma ação técnica com comando político,uma unidade entre a técnica e a dimensão social, já que o desenvolvimento significava para Furtado um esforço dacoletividade . “A luta pelo desenvolvimento é também uma

    luta pela racionalidade na política, pois somente superando as mitologias ideológicas se pode evitar o domínio do povo por demagogose aventureiros” (FURTADO, 1962, p.63). Esta “tomada de consciência” presente em 1962 constitui parte da“responsabilidade” sobre as forças históricas profundas das mudanças em processo narealidade, que poderiam entrar em choque caso a capacidade política (a “consciência”) para mudar não agisse sobre os problemas do subdesenvolvimento. Sobre as novasfunções de Estado, Furtado afirma:

    Havendo tomado consciência de nosso subdesenvolvimento e havendo definindocomo aspiração social máxima a melhoria das condições de vida do povo, – objetivosó alcançável através do desenvolvimento econômico, – fomos inapelavelmenteconduzidos a reformular as funções do Estado. Ao especialista em ciência políticacumpre prestar-nos, a este respeito, valiosa ajuda. Se admitimos que é objetivo precípuo da ação estatal promover padrões mais altos de bem-estar social, cabe-nosestabelecer em que condições e sob que forma compatível com outros ideais deconvivência social postulados poderá o Estado, em um país subdesenvolvido, alcançaraquele objetivo. (FURTADO, 1962, p. 73)

    Se as funções do Estado não estão vinculadas aos objetivos de umdesenvolvimento via planejamento, somado ao “anacronismo” do aparelho de

    administração pública, o Estado não poder ia constituir agente central de “luta pelodesenvolvimento”. É interessante o argumento apresentado por Furtado de que emsociedades de elevada diferenciação social como o Brasil, as relações sociaisdiretamente impactadas pelo Estado – os elementos da “convivência social” cf. Furtado – não podem estar subordinadas aos critérios do desenvolvimento econômico. Furtadoafirma a este respeito:

    Não se pode desconhecer que, em um país subdesenvolvido, os aspectoseconômicos do desenvolvimento social assumem grande emergência. Não é

    possível educar os homens sem antes lhe matar a fome. Contudo, relegar asegundo plano outros aspectos do problema social seria comprometer odesenvolvimento subsequente da cultura que deverá moldar o homem dofuturo. (FURTADO, 1962a, p. 91)

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    Os objetivos de uma política econômica para o desenvolvimento sempre

    estiveram presentes no pensamento cepalino, porém o impacto damudança social é

    mais do que uma incorporação de novos critérios, mas uma condição para odesenvolvimento. O campo de forças do projeto de desenvolvimento se fortalece naação política de resolução dos problemas sociais.

    Entre as conclusões de Furtado sobre a Ditadura Militar, no texto intitulado “OGolpe de 1964 e o Nordeste” (2004), está presente um síntese do que, talvez, signifiquea principal tese de Furtado sobre a passagem do período das “reformas de base” para oregime, que o autor trilhou desde o exílio:

    Quaisquer que tenham sido as intenções dos autores do golpe militar de 1964,seus efeitos mais perversos, de consequências que se prolongam até hoje, sãoclaros. O regime militar cometeu o crime de liquidar com a prática dedemocracia, condenando pelo menos duas gerações a desconhecerem, senãomenosprezarem, os instrumentos políticos que permitem o verdadeirodesenvolvimento das sociedades. Para os nordestinos em particular, seu danomais nefasto foi, sem lugar a dúvida, a interrupção do processo dereconstrução das anacrônicas estruturas agrárias e sociais de nosso país,numa região onde eram mais deletérios os efeitos do latifundismo e, paradoxalmente, mais profundo o movimento renovador em curso.(FURTADO, 2012 [2004], p. 215)

    Propor projetos como meios e estratégias para as políticas do Estado envolveu

    um conjunto de interesses dos atores sociais diante das diversas posições. O ímpeto derealizar projetos de desenvolvimento estava submerso em um contexto cuja viadeterminada por um projeto, como o furtadiano, acabava por selecionar fatores comofundamentais. Os elementos que condizem a uma via de desenvolvimento foramtratados enquanto interesses nacionais, mas na medida em que representavam interessessociais estratégicos. A questão está na orientação e no nível das mentalidades dosgrupos identificados no processo histórico, já que as ideias constituem forças sociais. As

    polarizações entre os grupos políticos e econômicos representaram conflitos quanto aodestino da economia e da sociedade nacional mediante os interesses estabelecidos, entãotambém representaram forças sociais, e estas forças eram evidentes no pós-64. Debateros frutos do progresso econômico e o que desejavam para o futuro do país foi o grandeimperativo motivador dos embates políticos até 1964. O pensamento furtadiano possuíacaracterísticas distintas, segundo Cepêda (1998), pois se preocupou em elaborar um projeto, em várias áreas, de dimensões integradoras das regiões, proposta em vários

    momentos da sua ação pública. Bielschowsky afirma que há elementos que dão unidadea um processo histórico de expansão de uma ideologia nacional-desenvolvimentista,

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    Referências Bibliográficas

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