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Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS Programa de Pós-Graduação em História Comparada – PPGHC Celso Branco Noel Rosa e Chico Buarque comparados: A construção da tradição na canção popular brasileira. Dissertação de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Victor Andrade de Melo Rio de Janeiro 2008

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Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS

Programa de Pós-Graduação em História Comparada – PPGHC

Celso Branco

Noel Rosa e Chico Buarque comparados: A construção da tradição na canção popular brasileira.

Dissertação de Mestrado

Orientador: Prof. Dr. Victor Andrade de Melo

Rio de Janeiro

2008

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Celso Branco

Noel Rosa e Chico Buarque comparados: A construção da tradição na canção popular brasileira.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Comparada do Instituto

de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em História Comparada.

Orientador: Prof. Dr. Victor Andrade de Melo

Rio de Janeiro

2008

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Celso Branco

Noel Rosa e Chico Buarque comparados: A construção da tradição na canção popular brasileira. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em História Comparada.

Aprovada em 28 de fevereiro de 2008, por:

________________________________________________ (Orientador)

(Prof. Dr. Victor Andrade de Melo / UFRJ)

___________________________________________________

(Prof. Dr. Marcos Napolitano / USP)

___________________________________________________

(Prof. Dr. Marcos Luiz Bretas da Fonseca / UFRJ)

___________________________________________________

(Profa. Dra. Sabrina Evangelista Medeiros / UFRJ)

___________________________________________________

(Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva – UFRJ)

Rio de Janeiro

2008

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Dedicatória

Aos meus pais, Geraldo e Olímpia, com

todo o amor do meu coração.

E também ao meu saudoso maestro e

irmão Marcos Leite.

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Agradecimentos

Agradeço a todos que de forma direta ou indireta ajudaram nesta empreitada:

Victor Andrade de Melo, Marcos Napolitano, Maria Clara Wasserman, Marcos Bretas,

Sabrina Medeiros, Edinha Diniz, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Marco Aurélio

Hamellin, Marcos Leite, Victor Gabriel, Abel Rocha, Augusto Boal, Grupo Garganta

Profunda, Nestor de Hollanda Cavalcante, Festival de Música de Londrina.

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RESUMO

BRANCO, Celso. Noel Rosa e Chico Buarque comparados: a construção da tradição na

canção popular brasileira. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em História

Comparada). Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008

Esta pesquisa de mestrado tem por objetivo discutir características comuns das obras

de dois autores de inegável popularidade, Noel Rosa (1910-1937) e Chico Buarque de

Hollanda (1944), para analisá-las, através do método comparativo, como integrantes

“inequívocas” de uma mesma “linha de tradição”. Expõe-se aqui a trajetória dessas

características compartilhadas pelos compositores, e como se tornaram parte de uma mesma

“linguagem tradicional” da música urbana brasileira. A escolha dos autores se relaciona ao

destaque que obtiveram durante as duas mais importantes fases de “fixação” da canção

brasileira moderna: os anos 1930 e os anos 1960⁄70, como mainstream – corrente musical

principal – da música popular brasileira.

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ABSTRACT

BRANCO, Celso. Noel Rosa e Chico Buarque comparados: a construção da tradição na

canção popular brasileira. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em História

Comparada). Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008

This research aims to discuss common features of the works of two authors of

undeniable popularity, Noel Rosa (1910-1937) and Chico Buarque de Hollanda (1944), to

analyze them through the comparative method, as members "unequivocal” of the same "line

of tradition." It’s about the trajectory of those characteristics shared by composers, and

became part of the same "traditional language" of the Brazilian urban music. The choice made

here, of authors is related to the prominence they obtained during the two most important

stages of stablishment of modern Brazilian song: the years 1930 and the years 1960/70, as

mainstream of Brazilian popular music.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO – Música Popular e Tradição. p. 9

1 – Música e História – o debate metodológico. p. 11

2 – A invenção das tradições. p. 22

3 – A música como fonte para a História. p. 27

4 – A História Comparada. p. 30

CAPÍTULO 1 – Noel Rosa e Chico Buarque: tradição e modernidade. p. 33

1.1 – Noel: construtor da tradição. p. 34

1.2 – De Noel até Chico: a tese da decadência. p. 52

1.3 – Chico: engajado na tradição. p. 56

1.4 – Noel e Chico: laços e heranças. p. 76

CAPÍTULO 2 – Noel Rosa e Chico Buarque: críticos brasilianistas. p. 84

2.1 - Defensores da brasilidade. p. 84

2.2 - A filosofia do samba nas regras da arte . p. 114

2.3 – Críticos das elites e defensores dos marginalizados. p. 120

2.4 - A escola da malandragem. p. 138

2.5 – O sentimentalismo à brasileira. p. 166

CONCLUSÕES p. 178

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS p. 183

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INTRODUÇÃO - Música Popular e Tradição

“A História é um carro alegre Cheio de um povo contente

Que atropela indiferente Todo aquele que a negue”.

(Versos de “Canción por la unidad Latinoamericana”, Pablo Milanés,

versão de Chico Buarque, 1978)

A música popular brasileira tem sido investigada em diversas instâncias acadêmicas,

na maior parte das vezes em estudos oriundos dos departamentos de Letras ou de Ciências da

Comunicação 1. A partir da década de 1980, começa também a ser inserida em trabalhos que

investigam os sentidos da cultura de massa, produzidos junto aos departamentos de

Antropologia e de História 2.

Este estudo histórico aborda a canção popular brasileira buscando discutir a sua

“tradição”, o seu modus operandi próprio e os valores culturais estabelecidos. Exploraremos a

tradição em seus discursos diversos e por vezes até mesmo contraditórios, reconhecendo que

ela não corresponde a um projeto definido por um único agente ou instituição específica, mas

sim por inúmeras tentativas de construção de uma imagem auto-representativa da cultura

brasileira.

O objetivo desta pesquisa é analisar, através das obras de Noel de Medeiros Rosa e

Chico Buarque de Hollanda, algumas das características permanentes ou mais presentes que

traduzem o conceito de pertencimento à tradição musical brasileira (e aceito por especialistas

como tal), buscando discutir de que maneira elas se solidificaram durante o século XX, ao

ponto de serem representadas como “realmente tradicionais” na produção musical e no ideário

cultural brasileiro. Para isto, iremos evidenciar nas obras destes compositores as semelhanças

(pontos reiterativos), nos olhares sobre a sociedade brasileira, e a atuação de ambos na

construção de um ideário nacional que poderemos chamar de “comum”. Vamos realçar os

principais elementos construtivos da tradição que eles criaram ou reforçaram. Entre estes,

1 Ver, por exemplo: SANT´ANNA, Affonso Romano de: Música popular e moderna poesia brasileira.

Petrópolis: Vozes, 1986; e Muniz Sodré: Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Codecri, 1979.

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investigaremos as tentativas dos autores de representar a “brasilidade” (identidade cultural

brasileira) e a que intenções estas representações poderiam servir, buscando identificar

continuidades, bem como especificidades de cada época e de cada compositor.

Enfrentaremos a questão das mensagens divulgadas pela música popular e de sua

cooptação ou interação com a “massa insabida de ouvintes-consumidores” 3. O contexto

sócio-cultural (urbano), o cenário geral das produções musicais dos dois períodos estudados,

serão também comparados, ao mesmo tempo em que se discutirá uma definição do espaço

poético e musical eternizado por estes compositores dentro da idéia de tradição.

A escolha dos autores se relaciona com o destaque que obtiveram durante as duas mais

importantes fases de “fixação” da canção brasileira moderna: os anos 1930 (Época de Ouro) e

os anos 1960⁄70 (Era dos Festivais da Canção e da solidificação da sigla MPB). Suas obras,

como veremos, são constantemente referendadas como integrantes do maistream – corrente

musical principal – da música popular brasileira. Através da análise destas fases, podemos

arrolar a percepção de que Noel Rosa é um dos construtores da tradição (ou das bases

estéticas e simbólicas da tradição musical brasileira) e Chico Buarque um reforçador ou

comentador da mesma, reiterando o universo criado em parte por Noel e desenvolvendo os

seus significados.

Definir a participação de Noel Rosa e Chico Buarque na construção da tradição

cultural brasileira significa identificar também um determinado “procedimento consagrado”

na criação da música popular, compartilhado por estes e outros autores. Ou seja, este estudo

vem explicitar também, para além dos conceitos e personagens comuns e temas “canônicos”

explorados por eles, as práticas metodológicas usuais da cultura musical brasileira, tais como:

a articulação entre a palavra e a melodia, as soluções musicais, os recursos sonoros

consagrados, os gêneros privilegiados e, enfim, uma série de elementos que traduziram o

universo comum e popular. Procuraremos explicitar o espaço específico da expressão moral,

política e sentimental do povo brasileiro, que foi se confirmando em torno de signos próprios

2 Ver, por exemplo: Roberto da Matta. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema

brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979; e Alberto Moby (Alberto Ribeiro da Silva): Sinal fechado: A música popular brasileira sob censura. Rio de Janeiro: Obra aberta, 1994.

3 Esta expressão do historiador Orlando de Barros fornece uma idéia clara da dificuldade de definição dos interlocutores aqui apresentados. (BARROS, Orlando de. Custódio Mesquita: um compositor romântico no tempo de Vargas (1930-45). Rio de Janeiro: Funarte/ EdUERJ, 2001. p. 17.)

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ao longo do século XX, dando vazão a representação sobre uma “índole autenticamente

brasileira”, apesar de ser basicamente urbana e carioca.

1 - Música e História – o debate metodológico sobre a música popular.

Antes de entrarmos no cerne da dissertação aqui apresentada, a relação entre as obras

de Noel Rosa e Chico Buarque e destas com a “tradição popular brasileira”, precisamos

definir os objetos centrais desse estudo e nos ater em alguns pontos que fundamentarão nossas

discussões e ponderações. Questões iniciais: Que patrimônio cultural é este: o popular

brasileiro? Como os historiadores que se utilizam da música popular brasileira como fonte

abordam e definem a “música popular”, bem como a construção das tradições referentes a

ela?

Comecemos com as questões: Qual é a relevância da utilização do conceito de

“música popular” quando nos referirmos à manifestações musicais distintas, em períodos

diversos, e uma vez que reconhecemos trajetórias de significados também diferentes? Como

pode um só conceito (música popular) abarcar gêneros musicais tão diversos como (no caso

brasileiro) lundu, frevo, polca, maxixe, modinha, chorinho, samba, marcha, etc.? Estes

problemas já fizeram historiadores renomados desistirem da utilização destas fontes.

Roger Chartier, por exemplo, refuta a noção de “cultura popular”, afirmando que não

há como definir seus limites precisos, e chamando a atenção para as múltiplas formas de

divisões na sociedade, além da divisão letrado/popular:

A história sociocultural aceitou durante muito tempo (pelo menos em França) uma definição redutora do social, confundido exclusivamente com a hierarquia das fortunas e das condições, esquecendo que outras diferenças, fundadas nas pertenças sexuais, territoriais ou religiosas eram plenamente sociais e susceptíveis de explicar, tanto ou melhor do que a oposição entre dominantes e dominados, a pluralidade das práticas culturais 4.

Também é conhecida a objeção de Adorno à utilização da canção e da cultura de massa

como expressões “autênticas” da sociedade. Os motivos que desqualificam a fonte: seu caráter

mercantil, sua falta de valores estéticos, sua redundância, seu caráter imobilista e alienante, já

4 CHARTIER, Roger. Textos, impressos e leituras. In: A história Culturas: entre práticas e representações. p.

136.

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que “normalizador dos discursos dominantes” e da “sedação dos sentidos.”5 Walter

Benjamim, da mesma escola de Adorno, também desqualifica a autenticidade da cultura de

massa, evidenciando seu significado político. Porém, por outro lado, reconhece não ser a

massa totalmente amorfa ou passiva 6.

Já Umberto Eco relativiza estas críticas ao contrapor os argumentos daqueles que

criticam a cultura de massa (como Adorno e Benjamim – os “apocalípticos”) com os

argumentos daqueles que a defendem (os “integrados”) 7. Para, por fim, reconhecer a canção

como um campo ideológico por excelência 8.

Buscando respostas às questões colocadas, vamos neste capítulo apresentar as

principais formas de abordagens do conceito de “música popular” em autores que produziram

importantes estudos sobre esta manifestação cultural no Brasil e na América Latina: Arnaldo

Contier, José Miguel Wisnik, Santuza Cambraia Naves, Nestor Garcia Canclini, Hermano

Vianna e Marcos Napolitano.

Segundo Arnaldo Contier, notável historiador da identidade nacional brasileira

imiscuída na música popular, os primeiros impulsos para uma produção historiográfica que

qualificasse a música popular no Brasil, alimentaram-se de idéias modernistas presentes nas

obras de Mário de Andrade e Renato Almeida, ao longo dos anos 1920 e 30, e cresceram com

o debate sobre o problema da brasilidade, da identidade nacional e dos procedimentos pelos

quais deveria ser pesquisada e incorporada a "fala do povo" (e do folclore) aos projetos

ligados aos modernismos 9. Uma parte significativa desses projetos, depois de devidamente

filtrados, chegaram até mesmo a fazer parte dos planos do primeiro governo Vargas. 10 Para

5 ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música e a regressão da audição”. In: Os pensadores, v. XLVIII. São

Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 173-182. 6 BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. In: Os Pensadores, v. XLVIII.

São Paulo: Abril Cultural, 1975, p. 12. 7 ECO, Umberto: Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1979. Capítulo “A Canção de consumo”. p.

43. 8 ECO, Op. cit. p. 295-314. 9 CONTIER, Arnaldo. "Música no Brasil: história e interdisciplinaridade. Algumas interpretações (1926-1980)".

História em Debate. Atas do XVI Simpósio Nacional de História, ANPUH, Rio de Janeiro, 1991,ANPUH/CNPQ, pp.151-189. As idéias de Mário de Andrade sobre a identidade brasileira, referidas por Contier, estão em: ANDRADE, M. Ensaio sobre música brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1962. Quanto à Renato Almeida, suas considerações sobre o tema estão em: ALMEIDA, Renato. “O samba carioca”. In. MARIZA, Lira 1ª exposição de folclóre no Brasil. (Achegas para a exposição do Folclóre no Brasil.). Rio de Janeiro, 1953. pág. 61.

10 Uma boa descrição de como certos ideais modernistas foram absorvidos pelo governo Vargas se encontra em: CAVALCANTI, Lauro. Preocupações do Belo. Rio de Janeiro: Taurus, 1995.

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Contier, é neste período de exagerados nacionalismos, em escala planetária, que irão se definir

os primeiros parâmetros da música popular - "certas formas e constâncias brasileiras", notadas

no lundu, na modinha e na utilização generalizada da sincope, por exemplo, e que estavam

devidamente captados a um paradigma ao qual já não se encaixavam certas “invencionices”

modernistas de última hora ou seja, que procurava definir uma “tradição”.

Contier se referia a José Miguel Wisnik, que analisou as concepções de “música

popular” criadas por dois grandes representantes do “nacionalismo musical modernista”:

Villa-Lobos e Mário de Andrade. Para Wisnik, o nacionalismo de Villa-Lobos se desenvolveu

a partir da “música popular urbana” de seresteiros, chorões e sambistas 11. Mário de Andrade,

por outro lado, foi o criador ou teórico do mais notório projeto de música nacional, que dava o

papel centralizador da cultura ao músico, e conciliava o país “na horizontalidade do território

e na verticalidade das classes”. José Miguel Wisnik defende que aos modernistas não

interessava a “cultura popular urbana”, e preferiam as “fontes da cultura popular rural”, ainda

que estilizadas, para a criação de uma arte “genuinamente” nacional. Para o nacionalismo

musical dos modernistas das décadas de 1920 e 1930, como demonstra o autor, o povo era

idealizado e identificado como ingênuo, rústico e até mesmo “puro”, contrastando

enormemente com a realidade das sociedades urbanas, que se reconheciam nas festas e

manifestações coletivas que iam do carnaval ás greves.

O projeto nacionalista destes intelectuais, portanto, não incluía a música popular

(ligada ao meio urbano), por ser diversificada e inconstante demais, ou seja, fugidia à idéia de

construção de uma “tradição”. A “verdadeira” fonte da originalidade da nação estaria na

“música popular rural”.

Aqui temos, portanto, a descrição de uma tentativa de construção da tradição nos anos

20/30. Pois partindo de ”cima” de artistas e intelectuais (até certo ponto engajados em

projetos modernizadores do Estado) negava a realidade de “baixo”, o contingente urbano

advindo da industrialização. Wisnik reconhece, no entanto, um trânsito de informações entre

“biombos culturais” diferentes. Esta expressão havia sido utilizada por Muniz Sodré para

definir os limites territoriais das manifestações musicais na casa das tias baianas: “na sala da

frente aconteciam as polcas e lundus; na parte dos fundos, o samba de partido alto; e no

11 WISNIK, José Miguel. Getúlio da Paixão Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo). In: Squeff, Enio e Wisnik,

José Miguel. O nacional e o popular na cultura brasileira. p.136

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terreiro dos fundos: a batucada identificada com o candomblé” 12. Wisnik afirma que

informações transpassavam estes limites, e também o limite das casas e dos salões de

concertos e terreiros de candomblé 13. Os códigos musicais circulavam entre os diferentes

grupos sociais que freqüentavam estes espaços. Mas serviam sobretudo à expressão dos

grupos dominados política e economicamente. A resistência à dominação, segundo Wisnik,

encontrava nas manifestações religiosas e na música popular (voltada para um mercado mais

imediato), seus espaços de expressão por excelência, enquanto os modernistas buscavam o

apoio do Estado para implementarem um projeto “racional” que excluía a diversificação das

músicas “comerciais” das rádios e discos 14.

Santuza Cambraia Naves também refletiu sobre a relação entre os intelectuais do

movimento modernista e os músicos populares, porém sob uma ótica distinta de José Miguel

Wisnik. Ela afirma que os modernistas, na tentativa de encontrarem uma originalidade

cultural para a nação, ainda que considerassem a música erudita como a verdadeira arte,

valorizaram o que era considerado inferior pelos ideólogos da civilização, ou seja, a cultura

popular 15. A autora afirma que os modernistas incorporaram a sua maneira o popular, os

“sons populares”, apesar de inferiores ao erudito, desde que não tivessem sido transformados

pelo rádio ou pelo mercado de discos:

(...) se os músicos populares se mantêm espontâneos, não corrompidos pelo processo de modernização e condizentes com um estágio cultural primitivo, são canibalizados pelos compositores modernistas. Mas se perdem a ingenuidade original, deixando-se contaminar pelos meios de comunicação de massa, tornam-se alvo de crítica por parte dos mesmos 16.

Para Santuza, não houve diálogo ou interlocução entre os artistas populares e os

eruditos, mas apenas “uma prática de escuta antropofágica” por parte dos modernistas em

relação às músicas executadas nos “redutos boêmios” do Rio de Janeiro 17. Para a autora, os

modernistas, absorveram a “música popular”, mas, os músicos populares mantiveram a sua

prática, sem ouvirem os modernistas. Ao empreender uma análise comparativa entre a estética

dos modernistas e a dos músicos populares, ela constata que enquanto os músicos modernistas

12 SODRÉ, Muniz. Apud. Wisnik, J. Getúlio da Paixão Cearense. In: Enio Squeff e José Miguel Wisnik. O

Nacional e o popular na cultura brasileira. p.154 13 WISNIK. Op. cit. p. 133. 14 Ibid. p. 152. 15 NAVES, Santuza Cambraia. O Violão Azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1998. p.

45. 16 Ibid., p. 50 17 Ibid., p. 24.

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buscavam a formação de uma cultura homogênea e totalizadora, com uma linguagem que

prezava pelo sublime, os músicos populares compunham “ao sabor das contingências”,

buscando tanto a tradição quanto aos elementos ligados à modernidade em suas composições.

Os exemplos citados pela autora: Noel Rosa e Lamartine Babo, ecléticos quanto aos gêneros

musicais e aos intérpretes que escolhiam 18, e os sambistas da Cidade Nova (como Donga e

Sinhô) cujo “estilo de vida pequeno-burguês” produzia uma linguagem musical distinta da

linguagem dos sambistas do Estácio, esta ligada ao dia-a-dia das favelas 19.

A autora conclui que todos estes compositores alimentavam as diferentes linguagens

que formavam a “música popular”, sem negar o repertório associado à produção musical rural

ou ainda a linguagens “mais antigas”. Por este motivo ela afirma que “é difícil adotar

critérios rígidos para analisar a música popular do período modernista, mas isto não a

impede de utilizar a noção de “música popular” como um único rótulo para linguagens

variadas. “Músicos populares” formariam uma categoria permanente na produção musical do

século XX, abarcando os sambistas da década de 1920 a 1940, bem como os integrantes da

Bossa Nova e também os tropicalistas 20. A autora, portanto, não se preocupou em delimitar o

conceito “música popular”, já que “inclui manifestações de diferentes linguagens e relativas à

grupos sociais e contextos diversificados” 21.

Contrapondo estas obras, percebemos que enquanto José Miguel Wisnik enfatiza a

atuação dos músicos populares na afirmação da sua música, através do mercado fonográfico,

em confronto com os projetos modernistas que não comportavam a diversidade destas

composições, Santuza Cambraia Naves afirma que eram os modernistas que assimilavam as

“composições populares”, ao passo que os “músicos populares” apenas exibiam suas

manifestações musicais. Contudo, ambas as conclusões contribuem para pensar a música

popular como uma prática isolada ou específica de certos grupos populares, o que representa o

risco de se levar em conta uma “música popular original, pura e autêntica”, oposta a uma

“música de massas”, ou ainda de se incorporar à hierarquia criada pelos modernistas.

18 Ibid., p. 109-116 (Noel Rosa) e p. 116-121 (Lamartine Babo). 19 Ibid., p. 91 20 Ibid., p. 221-223. 21 Ibid., p. 223.

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Encontramos uma abordagem que transpassa a oposição entre intelectuais e populares

em Néstor Garcia Canclini. Este estudioso argentino afirma que nos setores populares sempre

coexistiram modernidade e tradição 22. Para ele, o fenômeno da “hibridação” cultural é a

marca mais evidente das relações culturais na América Latina, problematizando assim a

percepção simplificada na oposição entre atores / receptores. Ele reconhece a crise teórica

atual na investigação do popular, mas reafirma que o conceito continua sendo útil e revelador:

Os fenômenos culturais folk ou tradicionais são hoje o produto multideterminado de agentes populares e hegemônicos, rurais e urbanos, locais, nacionais e transnacionais. Por extensão, é possível pensar que o popular é constituído por processos híbridos e complexos, usando como signos de identificação elementos procedentes de diversas classes e nações 23.

Esta percepção de Canclini nos permite inferir que aquilo que passou a ser identificado

como “música popular” é resultado da atuação dos músicos populares, como também dos

demais atores sociais que se relacionaram com esta “música popular”, como foi o caso dos

modernistas. Sob esta ótica não é possível considerar, como propôs Santuza Cambraia Naves,

a assimilação de uma música popular espontânea, pura e autêntica, nem a dicotomia aparente

entre esta e a “música de massas”. Mas sim, um processo permanente de produção cultural

derivada de diferentes atores sociais. Canclini afirma que não necessariamente os setores

populares buscaram a preservação de tradições ou se relacionaram com projetos de

modernização das sociedades 24. Ele ilustra com situações onde a condição de “músico popular”

permitia conquistas econômicas (como a participação no mercado fonográfico) e reconhecimento

pela classe musical e pelo público (muitas vezes músicos eruditos e membros da elite econômica).

Para Néstor Canclini, o popular não é monopólio dos setores populares, mas uma “dramatização

dinâmica de experiências coletivas”. É, enfim uma “invenção”, uma forma de relacionar os fatos

passados para legitimar o presente 25.

É sob uma ótica semelhante que encontramos em Hermano Vianna, outra importante

reflexão sobre a relação entre os “músicos populares” e os “modernistas”. Ele acrescenta que

o processo de transformação do samba, até então ritmo combatido, em um elemento central da

identidade do país corresponde a um processo tão intrigante quanto misterioso. O “mistério do

samba” teria relação com o mistério da mestiçagem, que de forma análoga era considerada

22 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. 3ª ed. São

Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. p. 69. 23 Ibid., p. 220-221. 24 Ibid., p. 236. 25 Ibid., p. 219-220.

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fator de depauperação cultural e passou a ser reconhecida como elemento de originalidade da

nação.

Ao descrever um notável encontro entre o historiador Sérgio Buarque de Holanda, o

antropólogo Gilberto Freire, os maestros Villa-Lobos e Luciano Gallet, os “músicos

populares” Pixinguinha, Patrício Teixeira e Donga, e também o promotor e jornalista Prudente

de Morais Neto, em 1926, em um café do bairro carioca do Catete 26, o autor sugere que a

transformação do samba em símbolo da identidade nacional não foi repentina, mas resultante

de vários contatos, entre diferentes grupos sociais. Estes, “deliberadamente”, ou quase,

buscavam inventar a “cultura popular” e a “identidade” brasileiras, e também a construção de

uma tradição e da idéia de uma autenticidade. A valorização da mestiçagem está presente nas

obras de todos eles, notadamente na de Gilberto Freire, conferindo o elemento de unidade

nacional. Para este, havia, em 1926, "dois Brasis" antagônicos: "um Brasil oficial, postiço e

ridículo" que "tapa" o outro Brasil, “este real, a ser valorizado junto com o preto” 27. E nos

informa ainda: "Há no Rio um movimento de valorização do negro". Porém, o motivo que

levou à esse movimento, seria para Freyre, bastante abstrato - como observa Vianna: uma

"tendência para a sinceridade", que "está fazendo o brasileiro ser sincero num ponto de

reconhecer-se penetrado da influência negra" 28.

Ao mesmo tempo, décadas de 1920/30, vários símbolos da mestiçagem começam a ser

eleitos e exaltados dentro da chamada “cultura popular”: a feijoada, a batucada, a “delicada”

sensibilidade brasileira 29. Para Gilberto Freyre, o processo de construção da nossa identidade já

estava a atropelar os ideáis eugênicos de “purificação” da raça e o sonho de “branqueamento” de

alguns eméritos brasileiros. A “sinceridade”, que afirma Freyre, estava no fato do Brasil começar

a assumir o que ele era. E é evidente que, no movimento de valorização do negro e na conquista

dessa sinceridade, a música popular seria um elemento fundamental. Gilberto Freyre evidencia a

26 VIANNA, Hermano. O mistério do samba. p.19 27 "Acerca da valorização do preto", in: Diário de Pernambuco -19/09/1926. Apud: VIANA, Hermano, O Mistério

do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ UFRJ,1995. 5ª ed. 2004, p.27. 28 FREYRE, Gilberto. Tempo de Aprendiz. São Paulo/ Brasília: Ibrasa/INL, 1979, p.329. Apud: VIANA,

Hermano. Op. cit. p. 27 e 28. 29 Na edição de 1940 de Fontes da Cultura Brasileira, de Bezerra de Freitas, lemos no capítulo “Aspectos

espirituais do Brasil” (p. 73): “A delicada sensibilidade brasileira, fonte de agudo lirismo, fundo de todo o período romântico e da literatura sertanista infiltrou-se nos menores característicos da nossa existência, o que levou ainda aquele escritor (Robert Garric) a afirmar que a nossa atmosfera política é de liberdade e humanidade. Os aspectos mais interessantes desse excesso de sensibilidade vamos encontrar no catolicismo, (...)”. p. 75. (FREITAS, Bezerra de. Fontes da Cultura Brasileira. Porto Alegre: Ed. da Livraria do Globo, 1940.)

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importância do elemento musical adotando um estilo de manifesto : "pela valorização das

cantigas negras, das danças negras, misturadas a restos de fados; e que são talvez a melhor coisa

do Brasil" 30.

A partir destas afirmações de Gilberto Freyre, Hermano Vianna dedica-se a investigar essa

transformação bastante curiosa, quase inexplicável, ou seja, o mistério do samba, a transformação

do mesmo, antes perseguido pelas autoridades, em elemento central da definição da identidade

nacional. Tratou-se portanto de uma outra revolução (cultural), paralela à revolução política (de

1930), no qual não só o elemento negro mas também a sua arte, e até mesmo a favela onde ele

mora, se verão paulatinamente valorizados dentro de um “novo” ideário de nacionalidade. Esta

“constatação” já havia sido relatada por antropólogos como Peter Fry , em artigo de 1982:

O samba, outro legítimo símbolo da cultura brasileira era, no começo, produzido e consumido nos 'morros' do Rio de Janeiro e reprimido com violência pela polícia e forçado à se esconder no candomblé, então considerado ligeiramente mais suportável. Com o tempo, entretanto, a importância crescente do carnaval provocou a transformação de repressão em apoio manifesto 31.

Ainda resta a pergunta: porque foram escolhidos elementos característicos do grupo

dominado para a representação da identidade nacional? Para Peter Fry, "a conversão de símbolos

étnicos em símbolos nacionais não apenas oculta uma situação de dominação racial, mas torna

muito mais difícil a tarefa de denunciá-la" 32. Assim a aceitação destes elementos teriam a função

de “ocultar” o preconceito atrás de uma apenas “aparente” aceitação. Roberto da Matta nos

apresenta outra resposta: “Não haveria mais a necessidade de segregar o mestiço, o mulato, o

índio e o negro, porque as hierarquias asseguravam a superioridade do branco como grupo

dominante” 33.

Ou seja, a sociedade “branca” não se via mais ameaçada pela “mestiça” e por isso haveria

mais tolerância. De qualquer forma, notamos nestes autores a preocupação em explicar a

intermediação e o sincretismo. Vianna nos dá uma resposta mais completa: "A transformação do

samba em música nacional não foi um acontecimento repentino, indo da repressão à louvação em

menos de uma década, mas sim o coroamento de uma tradição secular de contatos entre vários

grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileiras” 34.

30 FREYRE,G. Apud: VIANNA, Hermano. Op. cit. p. 28. 31 FRY, Peter "Feijoada e soul food". In: Para Inglês Ver. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. pp. 47 – 58. 32 FRY, Peter. Op.cit., 1982 pp. 52-53. Apud Vianna, H. Op. cit. p.31. 33 DAMATTA, Roberto.. "Disgressão: a fábula das três raças, ou o problema do racismo à brasileira". In Relativizando:

uma introdução à antropologia social. Petrópolis, Vozes, 1981. p. 75. 34 VIANNA, H. Op. cit. p.34.

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É importante ressaltar que Hermano Vianna reconhece que a identidade popular

brasileira não é propriedade ou invenção de um único grupo social:

O samba não é apenas a criação de grupos de negros pobres moradores dos morros do Rio de Janeiro, mas que outros grupos, de outras classes e outras raças e outras nações, participaram desse processo, pelo menos como ‘ativos’ espectadores e incentivadores das performances musicais 35.

Vianna se opõe á Santuza Naves quando afirma que os músicos considerados

populares tinham participação ativa no contato com os intelectuais modernistas e com os

músicos eruditos. Nestes encontros não teria havido um controle centralizado, ou uma

operação coordenada para fazer do samba, o ritmo nacional, mas sim uma espécie de

cooperação oportunista para projetos pessoais:

Os vários grupos usavam uns aos outros para atingir objetivos diversos: este podia estar interessado na construção da nacionalidade brasileira; aquele em sua sobrevivência profissional no mundo da música; aquele outro em fazer arte moderna. Em vários momentos era possível estabelecer pactos entre os vários interesses. Pactos nunca eternos. Pactos sempre renegociáveis 36.

Para Vianna, a cultura popular da década de 1920 é resultado da atuação de indivíduos

definidos como “mediadores culturais” que realizaram o diálogo entre “mundos” distintos, o

“mundo” da elite intelectual e o “mundo” dos “músicos populares”. O encontro estudado por

Hermano Vianna teria sido apenas um entre vários encontros de mediadores culturais. Estes

sujeitos se caracterizariam por uma “individualidade singular” que o autor reconheceu em

determinados artistas, intelectuais e personalidades do Rio de Janeiro; pessoas que

desenvolveram a capacidade de trocar informações entre realidades contrastantes. O exemplo

máximo de “espaço de mediação cultural” estaria representado no próprio carnaval, realizado

por grupos sociais com experiências diversificadas 37, ao passo que o samba tomou o rótulo de

“música genuinamente brasileira” em diferentes grupos sociais. A idéia de mediação de

Vianna, só possui o inconveniente de pressupor a existência de culturas diferentes, com

fronteiras permeadas por indivíduos que ocupavam posições estratégicas. Permanece a

questão da definição das fronteiras que separam as culturas específicas de cada grupo social.

35 VIANNA. Op. cit. p.35 36 VIANNA. Op. cit. p.152 37 VIANNA. Op. cit. p.42

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O historiador Marcos Napolitano foge deste impasse considerando outros fatores

estruturais como a inserção da indústria fonográfica 38, mas reconhece uma identificação entre

a cultura e classe social. Em sintonia com Canclini, este historiador se opõe a uma definição

de música brasileira pura ou original:

A música brasileira é, em parte, o produto desta apropriação e desse encontro de classes e grupos socioculturais heterogêneos. Não houve, na verdade, a apropriação de um material ‘puro e autêntico’ como querem alguns críticos (Tinhorão, 1981), na medida em que as classes populares, sobretudo os ‘negros pobres’ do Rio de Janeiro e mestiços do Nordeste, já tinham a sua leitura do mundo branco e da cultura hegemônica 39.

Por outro lado, Napolitano concorda com o papel predominante dos setores populares

na produção cultural, apesar das apropriações diversas, e explora uma “trajetória da tradição”,

para explicitar a somatória de representações contida na idéia de “identidade nacional”.

Para dar nome as coisas, poderíamos dizer que há uma linha formativa da nossa tradição musical popular, sempre questionada de tempos em tempos, mas que acabou por ser fundamental para a nossa auto-imagem musical e para afirmação da música popular brasileira como fenômeno cultural amplo e complexo 40.

Para este historiador paulista “a MPB defini-se mais como uma instituição

sociocultural, depositária de uma tradição e de um conjunto de cânones estéticos e valores

ideológicos.” Instituição que, como diz o autor, apesar da crise dos anos 1980 que a colocou

em segundo plano no mercado musical, é, em sua opinião, “ainda forte o suficiente para se

impor como medida de valor e símbolo de uma época em que a música popular foi um dos

centros do projeto moderno brasileiro” 41.

A cada transformação dos valores estéticos, culturais e ideológicos dos momentos

históricos encontramos correspondentes mudanças na forma de se avaliar a música popular. A

partir desta constatação, Marcos Napolitano elaborou uma periodização, que segue em parte

as cronologias bem conhecidas de pesquisadores apaixonados pela manutenção da tradição

em seus “moldes originais” como José Ramos Tinhorão 42 e Ary Vasconcelos 43. Estes

classificaram a história da música popular brasileira de maneira didática em diferentes fases,

38 NAPOLITANO, Marcos. História e Música – história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica,

2002. p. 9. 39 Ibid, p.48. 40 NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo:

Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. 41 Ibid., p.6-7. 42 TINHORÃO, Jose Ramos. Pequena História da Música Popular. São Paulo: Ática, 1978. 43 VASCONCELOS, Ary. Panorama da Música Brasileira. São Paulo, Livraria Martins, 1964.

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que repetem percepções de auge e decadência: fase de formação (1902 – 1929), época de ouro

(1930 – 1945) época moderna (1945 – 1958) e época contemporânea (1958 em diante).

Classificação reforçada também por Vasco Mariz 44, Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano 45 (estes últimos acrescentariam uma segunda época de ouro entre os anos 1966 – 1972). Em

todas estas periodizações, a proposta metodológica é comum: sugerir os anos 30 como a

época que corresponde a melhor fase da música popular brasileira. Napolitano escolhe datas

próximas a estas, também motivadas por transformações da música popular e da tradição que

carrega:

a) Os anos 20/30, quando o samba se torna um “gênero nacional”; Houve aqui a primeira

transformação de valores, decorrente da gradativa aceitação da música popular pelos

setores médios, provocando um deslocamento do “lugar social” da música popular.

Ocorre aqui a nacionalização do samba, bem como as primeiras tentativas de

“higienização” através de projetos modernizadores.

b) Final dos anos 1940 e anos 1950, com a afirmação dos elementos nacionais, mas

muito suscetível também ás influências estrangeiras. Nesta fase tomam forma os

conceitos de “velha guarda” e “época de ouro” e todo o “o edifício da tradição” 46.

c) Os anos 1959/1968, com do conceito de “musica popular brasileira”, com a

incorporação de novos elementos estéticos e técnicas interpretativas; uma segunda

fase de grande criatividade que inclui a Bossa Nova, a música do CPC da Une, a

música feita para o teatro revolucionário e a televisão com os programas de música

brasileira e os Festivais da Canção, que por sua vez incluíam a Tropicália. Em 1966,

com o fenômeno da Jovem Guarda, reinicia-se a discussão sobre a preservação da

tradição e a formulação da idéia de “linha evolutiva”.

d) Os anos 1972 a 1979, “período pouco estudado, porém fundamental para a

reorganização dos termos do diálogo musical presente-passado” 47, se referindo a

incorporação de tradições que estavam fora do “nacional-popular” (como por

44 MARIZ, Vasco. Vida musical. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. O livro reúne artigos publicados

pelo musicólogo Vasco Mariz no suplemento Cultura do jornal O Estado de São Paulo, entre 1984 e1991. 45 MELLO, Zuza Homem e SEVERIANO, Jairo. A Canção do tempo. Rio de janeiro: Editora 34, 1998, onde se

pode ler: “A música popular brasileira tem sua primeira grande fase no período 1929/1945. É a chamada Época de Ouro, em que se profissionaliza, vive uma de suas etapas mais férteis e estabelece padrões que vigorarão pelo resto do século”. p. 85.

46 NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. Op. cit. p. 65.

47 NAPOLITANO, M. História e Música. p. 49.

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exemplo, o pop) e a consolidação de um conceito mais amplo da sigla M.P.B. dentro

do complexo cultural.

Para Marcos Napolitano, a “música popular” pode não ser reconhecida como

manifestação pura de uma classe, porém não deixa de estar relacionada às classes populares e

a uma gradativa aceitação pelos setores médios. “A música popular”, constata o autor, “se

firmou no gosto das novas camadas urbanas seja nos extratos médios da população, seja nas

classes trabalhadoras, que cresciam vertiginosamente com a nova expansão industrial na

virada do século XIX para o século XX” 48.

São estes parâmetros definidos por Marcos Napolitano, que iremos utilizar para

processar as informações aventadas nesta pesquisa, isto é, pressupondo a “construção” de um

ideário tomado como símbolo da identidade cultural brasileira e representado pela chamada

“música popular”; e admitindo que os agentes desta construção tiveram interesses e motivos

diversos em suas contribuições, o que não impediu no entanto que estas se somassem,

reiterando o mesmo universo até apresentar um conjunto de elementos tidos como

“tradicionais”.

A cultura popular não é a cultura de uma classe. Ela não está concentrada em objetos

de funcionalidades evidentes, mas no âmbito do discurso, e num posicionamento cultural de

indivíduos perante a sociedade. Como expressão de uma “luta pela hegemonia”, ela não pode

ser desprezada pelos historiadores. Contudo é necessário o cuidado de identificar quem está

chamando determinada manifestação de popular, e qual é a intenção por trás desta nomeação.

Deve-se questionar de onde falam os agentes sobre cujos discursos nos debruçamos.

2 – A invenção das Tradições

A segunda necessidade de definição se refere ao conceito tradição. A manutenção ou

não de tradições culturais tem sido motivo de reações extremadas tanto de conservadores

quanto de revolucionários ao longo da história da humanidade. Mas o que é que elas

48 Ibid., p.16.

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realmente representam? E porque se faz tanto estardalhaço quando as tradições parecem

ameaçadas?

Segundo o historiador que mais se debruçou sobre esse tema, o renomado egípcio de

alma britânica, Eric Hobsbawm, as tradições culturais de cada povo cumprem papéis

importantíssimos na formação das identidades nacionais, definindo os aspectos mais

característicos e de preferência únicos de cada nação. Desta forma, reunido sob a égide de um

conjunto de tradições, um povo reforça seus laços de coesão e identidade, o que se torna

extremamente útil aos ideais nacionalistas de qualquer país. Não é a toa que grande parte das

tradições culturais se estabeleceram ao mesmo tempo em que os nacionalismos se tornavam

mais extremados, o que se verificou nos países ocidentais a partir de meados do século XIX.

Hobsbawn afirma que as tradições européias surgiram com freqüência excepcional no

período que vai de 1870 a 1890 e continuaram a surgir pelo menos até 1914, como reflexo das

profundas e rápidas transformações sociais do século XIX 49. No Brasil, as principais

tradições culturais foram se solidificando no imaginário nacional a partir da década de 1930,

quando, a exemplo do que ocorrera na Europa, grupos sociais e contextos inteiramente novos

exigiam novos instrumentos que assegurassem a identidade e a coesão social, e que

estruturassem as novas relações sociais.

Inventar uma tradição representa, portanto, definir “um conjunto de práticas reguladas

por regras aceitas, de natureza ritual ou simbólica, que visam inculcar certos valores e

normas de comportamento através da repetição – uma continuidade com um passado

histórico apropriado” 50. Eric Hobsbawn apontou que as “novas tradições” apresentam

“depósitos bem supridos de elementos rituais e simbólicos oriundos da religião, da pompa

principesca, da maçonaria e do folclore” 51. Elementos que são rapidamente mobilizados em

momentos realmente revolucionários, como por exemplo, na passagem do Ancient Regime

para uma sociedade que se utilizaria do sufrágio universal na escolha de seus líderes. As

novas tradições sedimentaram o imaginário próprio de cada uma das nações, apresentando um

denso conteúdo moral, ético, estético, cívico e patriótico. No processo de sedimentação das

práticas tradicionais, canções folclóricas, campeonatos esportivos e festas religiosas “são

49 HOBSBAWN, Eric e TERENCE, Ranger (orgs). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

p. 271. 50 HOBSBAWN, Eric e TERENCE, Ranger . Op. Cit. p. 10.

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modificadas e institucionalizadas para servir a novos propósitos nacionais” 52. Sendo assim,

as tradições inventadas são especialmente notáveis para a história moderna e contemporânea,

porque estão ligadas à inovação histórica que foi a construção da idéia de nação e seus

fenômenos associados: o nacionalismo, o Estado-Nacional, os símbolos nacionais, as

interpretações históricas, e daí por diante. Todos esses elementos baseiam-se em atitudes

deliberadas por agentes históricos e são totalmente inovadores. Estes agiriam com o intuito de

reforçar a coesão social através de uma “identidade cultural” forjada com a tradição, além de

legitimar as instituições ou relações de autoridade e, por fim ainda, inculcar os valores morais

e padrões de comportamento que passam a ser relacionados com uma nação ou povo

específico.

Da mesma maneira, a tradição cultural brasileira irá apresentar, seguindo os critérios

utilizados por Hobsbawm, uma trajetória definida por elementos essencialmente nacionais,

com o propósito de construir uma identidade brasileira, na repetição constante de seus

principais elementos ou na sua lenta modificação. Esses elementos são detectados nas obras

de diversos autores e artistas (historiadores, biógrafos, cronistas, ensaístas, jornalistas,

pintores, compositores etc.) em temas e motes que reaparecem desenvolvidos ou reforçados 53. Nesse contexto de formação das tradições, os compositores e interpretes, com seus

talentos, vão utilizar deliberadamente a canção popular como um dos mais importantes

veículos de conformação e identificação da nossa nação, da brasilidade, e estarão assim

também bastante implicados com o sentimento nacionalista que cresceu no Brasil, sobretudo a

partir dos anos 1930 54.

51 HOBSBAWN, Eric e TERENCE, Ranger . Op. Cit. pp. 9 e 10. 52 HOBSBAWN, Eric e TERENCE, Ranger . Op. Cit. p. 22. 53 É inegável a importância dos anos 1930 para a formação da identidade cultural brasileira. Em escala mundial

acontecia o mesmo em diferentes regiões, num período de perigosos radicalismos nacionalistas, fomentados, sobretudo pela desilusão com o capitalismo liberal e com a democracia, após a crise econômica mundial de 1929. Só para exemplificar esta afirmação: é nos anos 1930 que veremos surgir no Brasil grandes obras literárias que irão revolucionar o pensamento brasileiro sobre si mesmo. Basta lembrar de O País do Carnaval, de Jorge Amado (1931), de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire (1933), de Evolução Política do Brasil de Caio Prado Júnior (1933), de Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade (1934) ou de Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda (1936), entre muitas publicações. Nestas obras, as avaliações sobre a história e as potencialidades do Brasil eram bem mais positivas do que aquela velha visão do Jeca-Tatu de Monteiro Lobato (personagem de crônicas publicadas no jornal O Estado de São Paulo e reunidas em Velha Praga e Urupês, de 1914), de um Brasil doente e atrasado, que se envergonhava de si mesmo – visão muito comum até o final dos anos 1920.

54 Muitos pesquisadores já produziram importantes trabalhos investigativos sobre este tema no Brasil, dos quais podemos citar para um quadro remissivo incluindo os que já foram citados: Arnaldo Contier (Música e Ideologia no Brasil, 1985; Brasil Novo: música, nação e modernidade, 1986; Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto,1998), Marcos Napolitano (A síncope das idéias: A questão da tradição na música popular brasileira, 2007; “A invenção da Música Popular Brasileira: um campo de

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Já na década de 1920 surgia o debate sobre quais eram as canções ou as práticas

musicais que expressavam a brasilidade – conceito idealizado por agentes diversos como

vimos. Para estes, os gêneros musicais populares deveriam, de forma contrária à música

erudita, entendida como universal, ter suas raízes fincadas em tradições nacionais. Mas estas

eram definidas de forma arbitrária por cada especialista, e propostas eram elaboradas sem que

um consenso sobre o que era eminentemente brasileiro se distinguisse da usina sonora

nacional que ia da polca ao samba. Porém a diversidade que parecia um grande problema para

a “unidade cultural” vai aos poucos contribuindo para a construção de um painel onde as

composições foram se encaixando através das temáticas, dos estilos, gêneros, intérpretes, etc.

As gravações em disco (registrando as composições brasileiras desde 1902) ajudaram

na busca das delimitações dos gêneros e dos universos que aqui se desenvolviam, e o samba e

o seu “mundo” tornaram-se os mais facilmente identificáveis. Com seu ritmo binário, frases

melódicas simples, em geral de oito compassos, refrões fáceis, letras “brejeiras” de

expressões, situações e personagens tipicamente cariocas, e acompanhamento do indefectível

violão e também do pandeiro, cavaquinho e muitas vezes do piano e do bandolim (estes

comuns nas gravações até os anos 1930), o samba logo seria alçado a ritmo brasileiro por

excelência. Suas ligações com o carnaval, “a festa maior” que vinha ganhando dimensões

também cada vez maiores, contribuíram em grande parte para a sua identificação rápida como

um símbolo nacional.

O Samba, por sua vez, proporcionou o surgimento de “intelectuais” populares que

notabilizaram a Capital Federal, distinguindo-a da maioria das cidades brasileiras ainda muito

marcadas pela aristocracia rural ou pela “aristocracia de negócios”, como a da indústria

nascente de São Paulo, responsável por certa “disciplinarização” da vida popular 55. O Rio de

Janeiro despontava com a sua modernização urbana e com sua forte cultura marcada pela

reflexão para a história social”, 1998; ”Do sarau ao comício: inovação musical no Brasil” - 1959⁄1963, 1999; “Tropicalismo: as relíquias do Brasil em debate”,1998; “A Música Popular Brasileira nos anos 60: apontamentos para um balanço historiográfico”, 1998); José Miguel Winisk (Getúlio da Paixão Cearense: Villa-Lobos e o Estado Novo, 1982); Hermano Vianna (O Mistério do Samba, 1995), Jorge Caldeira (Voz macia: o samba como padrão de música popular brasileira: 1917⁄1939, 1989; Noel Rosa: de costas para o mar, 1984) e Carlos Sandroni (Mário contra Macunaíma, 1988; O Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), 2001); entre outros. A discussão sobre a tradição na música popular de outros países e o seu relacionamento com os respectivos nacionalismos pode ser encontrada em obras de T. Adorno (“Moda sem tempo: sobre o jazz”, 1968; “Sobre a música popular”, 1994; “Idéias para a sociologia da música”, 1968); o já bastante citado Eric Hobsbawm (A Invenção das Tradições, 1997; The Jazz Scene, 1993) e Nestor Garcia Canclini, (Culturas Híbridas, 1997) Na bibliografia relacionada ao final deste trabalho se encontram as referências completas sobre essas obras.

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desenvoltura e musicalidade de mulatos e negros, na maioria pobres, que sem terem de se

submeter ao domínio de coronéis ou patrões da moderna fábrica podiam se dar ao luxo de

“criar”. Lembra a pesquisadora Maria Alice Rezende de Carvalho que a criatividade, aliás,

não era só luxo, mas também necessidade para uma grande parte deste contingente que

ocupava moradias precárias nos morros do Centro da cidade e tinha ocupação temporária.

Suas vidas seriam ainda marcadas pela improvisação e por um “compositório de referências

originárias dos portugueses pobres da região portuária, dos negros bantos, majoritários no

Rio (cristianizados) e dos negros sudaneses, adquiridos na Bahia para as lavouras de café

ainda no império” 56.

Por tudo isto, o Rio, na década de 1920, já se firmava inequivocamente como o centro

da construção da tradição popular brasileira e cidade de grande ebulição do espaço público,

festivo e artístico: numerosas festas religiosas com quermesses, festas cívicas, terreiros com

batucadas, cordões carnavalescos, teatros de revista, circos, coretos, desfiles de escolas de

samba, aulas de piano e violão, e as muitas lojas de música, como O Cavaquinho de Ouro, da

rua da Alfândega, onde Noel Rosa, procurava aprender violão com João Pernambuco 57. Neste

cenário privilegiado, estas atividades foram exercidas por segmentos de todas as classes, que

construíram juntas um ideário de brasilidade.

Para finalizarmos, cabe ainda salientar que estamos seguindo a ponderação de

Hermano Vianna, para quem, na pesquisa sobre as origens das nossas tradições culturais, não

cabem as descobertas das "verdadeiras raízes" antes escondidas, ou "tapadas" pela repressão

ideológica, mas sim o desvendamento do processo de invenção e valorização da autenticidade

sambista; a invenção da “nossa tradição" ou da "fabricação da autenticidade brasileira”, para usar

expressões sustentadas, respectivamente por Eric Hobsbawn e Richard Peterson 58.

55 Confira: CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. 56 CARVALHO, Maria Alice Rezende de. “O Samba, a opinião e outras bossas... na construção republicana do

Brasil.”. In: Decantando a República, v.1 : inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira / Berenice Cavalcante, Heloísa Maria Murgel Starling, José Eisenberg, organizadores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. pp. 40/41.

57 MÁXIMO, João; DIDIER, Carlos. Noel Rosa, uma biografia. Brasília: Editora UnB, 1990. p. 65. 58 HOBSBAWN, Eric. Op. cit. e também em: Nações e nacionalismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. E

PETERSON, Richard. 1992. "La fabrication de L'authenticité: Ia country music". Actes de La Recherche, n° 93, junho de 1992, p.3-19

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3 – A Música como fonte para a História

Umberto Eco reconhece na canção um campo ideológico inquestionável 59, ainda que

não seja captada muito além da “banalidade sentimental”, ou do “conformismo apaziguador”.

Já José Miguel Wisnik enxerga múltiplas mensagens numa “teia de recados” que traduz a vida

urbana e industrial. Mas a verdade é que ainda é um desafio para o historiador apresentar a

canção popular como um importante objeto de interpretação da realidade. As causas desta

dificuldade são assim diagnosticadas por Maria Alice Rezende de Carvalho: são decorrentes

ou da complexidade de manuseio das ferramentas para exploração do objeto (que “escapam

ao curioso”) ou do “gosto do pesquisador” que acaba por cegá-lo sobre os sentidos que

emergem da canção 60. Sendo assim, é necessário que sejam expostas, se não algumas das

principais premissas de que lançamos mão, ao menos alguns princípios ou postulados básicos

que vieram a nortear a pesquisa e a balizar os resultados. Partimos, portanto, da concordância

com estes argumentos (tomados de empréstimo à autora citada), que corroboram a hipótese de

ser a música popular uma forma de narrativa sobre a “moderna tradição brasileira”:

1. A música popular é capaz de expor o país ao conhecimento de si e, ao fazê-lo ampliar

o círculo de “intérpretes do Brasil”.

2. É um eficiente mecanismo de formação de consenso e de ampliação da esfera pública

até o limite de um indivíduo.

3. É um veículo de trocas que corta transversalmente a Cidade e integra públicos

diversos.

4. Fornece temas e vocabulário com o qual o debate sobre a realidade brasileira se torna

possível.

5. Produz referências comuns, em um mundo marcado por particularismos 61.

Com base nestas constatações podemos deduzir também que, para além das belas

melodias e poemas, as composições musicais deixaram registradas, de forma especial, os

59 ECO, Umberto: Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1979 (no ensaio “A canção de consumo”,

onde analisa a obra Le canzone della cattiva conscienza). p. 295 – 314. 60 CARVALHO, Maria Alice Rezende de Carvalho. “O Samba, a opinião e outras bossas... na construção

republicana do Brasil”. In:Decantando a República, v.1 : inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira / Berenice Cavalcante, Heloísa Maria Murgel Starling, José Eisenberg (orgs). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

61 CARVALHO, M. A. R. de, op. cit., p.39.

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sentimentos ou impressões da nossa sociedade resultantes dos mais variados acontecimentos

históricos.

Compositores populares brasileiros de todas as diversas tendências contribuíram

para a formação de um imenso painel histórico-musical; um quadro composto por um quebra-

cabeça onde os acontecimentos históricos aparecem registrados dentro de uma “ótica

popular”, ou seja, que traz versões populares sobre os fatos; e onde cada peça se encaixa

numa seqüência temporal de percepções dos fatos, confirmando muitas vezes uma visão

ideológica de conjunto. A cada revisão do conteúdo histórico de cada uma das nossas canções,

nos saltam aos olhos registros sobre o universo moral e ético do contexto de suas produções:

julgamentos, normas, ilusões, desejos, medos, traumas, enfim, um conjunto harmônico de

mentalidades predominantes no contexto de cada produção. Como Marcos Napolitano define

sucintamente: “a música popular é uma espécie de repertório de memória coletiva” 62.

Portanto, partimos da definição que a canção, como afirma Orlando de Barros, é “a

forma privilegiada do dizer popular, vedada que estava quase sempre às oportunidades

institucionais de expressão” 63. É preciso ressaltar também, como nos lembra este historiador,

que a “música do povo” muitas vezes estava sendo criada também por gente originária da

“elite”, mas que não perdia de vista em suas composições aquele universo criado pelo samba

de origem mais humilde - para explicitar esta situação com um exemplo: Custódio Mesquita.

É importante evidenciar que, ao mesmo tempo em que a música popular procurou

traduzir as sensações decorrentes dos fatos, ela mesma passou a produzir novos fatos e

sensações, realimentando as suas estruturas de reprodução. A música popular passou a ter

enorme influência na formação da opinião pública especificamente “brasileira”, por exemplo,

com a ampliação das transmissões radiofônicas, já no início dos anos 1930. Ora ressaltando a

intenção da paráfrase, como encontraríamos numa ode ou exaltação qualquer, ora ressoando

na crítica (muitas vezes aliada ao humor da paródia), ou ainda com matizes de intenções

diversas, a música, capaz de confirmar ou provocar uma emoção coletiva, pode facilmente

revelar o relacionamento íntimo com seu contexto histórico. Referindo-se comumente a um

fato, fenômeno ou personagem importante ou à percepção de uma época sobre si mesma,

62 NAPOLITANO, Marcos. A síncope da idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo:

Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. (Coleção História do Povo Brasileiro). p. 5.

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encontramos na produção musical o que para os historiadores significa o registro de uma

opinião pública, datada e em geral auto-justificada. Ora, essa opinião “coletiva” parece ser

uma das grandes contribuições da música popular brasileira à História, pois é o registro da

percepção dos fatos pela ótica das camadas populares, distinta, portanto das interpretações dos

intelectuais, e que contém sua “sabedoria” numa linguagem própria. Uma “sabedoria de vida”

ou de vivências, uma espécie de “antologia da experiência brasileira”, por trás das estruturas

da linguagem verbal e da linguagem musical. Na nossa música, como nas demais músicas e

outras artes identificadas com um projeto de nação, encontramos uma expressão franca e rica

de autenticidade, ou no caso, de brasilidade, um consciente e um inconsciente coletivo, que

informam e nutrem o estudo da História.

O historiador Marcos Napolitano, que produziu um excelente compêndio em nossa

língua sobre a utilização da música popular pela História (História & Música – História

cultural da música popular, 2002), nos dá mais detalhes sobre a importância dessa fonte:

A música, sobretudo a chamada ‘música popular’, ocupa no Brasil um lugar privilegiado na história sociocultural, lugar de mediações, fusões, encontros de diversas etnias, classes e regiões que formam o nosso grande mosaico nacional. Além disso, a música tem sido, ao menos em boa parte do século XX, a tradutora dos nossos dilemas nacionais e veículo de nossas utopias sociais. Para completar, ela conseguiu, ao menos nos últimos quarenta anos, atingir um grau de reconhecimento cultural que encontra poucos paralelos no mundo ocidental 64.

Assim, através dos artistas populares e suas canções podemos entrar em contato com o

“clima social” produzido pelos fatos, ou seja, com todo o moralismo popular transitório, num

conjunto de valores nascidos aqui, após terem sido mesclados pelos diversos povos que

formaram a sociedade brasileira. As músicas populares são, portanto, fontes muito especiais

para a História, pois através delas entramos em contato com o universo popular e seu conjunto

de valores, crenças, ideais e preconceitos. A favor da utilização dessas fontes, ainda contamos

com a profusão criativa e com o consumo generalizado da música do Brasil pelo seu

território, que graças à difusão exponencial do rádio e mais tarde da TV, iria definir e

confirmar o conteúdo moral, ético, estético e simbólico que se tornou o núcleo da nossa

identidade cultural de brasileiros.

63 BARROS, Orlando de. Custódio Mesquita: um compositor romântico no tempo de Vargas (1930-45). Rio de

Janeiro:Funarte: EdUERJ, 2001. p. 21. 64 NAPOLITANO, Marcos. História e Música – história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica,

2002. p.7.

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4 – A História Comparada

Para entrar efetivamente na “atmosfera” dos fatos proporcionada pela música popular

e nela descobrir novos elementos para a história da nossa sociedade utilizaremos o método

comparativo na amplitude da definição de Ciro Flamarion Cardoso (1976): “Explicar as

semelhanças e diferenças que apresentam duas séries de natureza análoga, tomadas de meios

sociais distintos” 65, e por este meio compreender as principais causas e os mecanismos de

construção do fenômeno da tradição na música popular brasileira. Nosso objetivo aqui é então

o mesmo apontado pelo renomado historiador brasileiro, qual seja o de colaborar para a

pesquisa das influências ou da filiação entre sociedades e para o estudo das semelhanças e

diferenças existentes na evolução das mesmas.

Ainda sobre este método, Heinz-Gerhard Haupt, no livro Passados Recompostos -

campos e canteiros da História (1995), nos informa que apesar de termos apenas dois setores

da História com tradições comparatistas declaradas: a demografia histórica e a história

econômica, o método comparativo recentemente vem sendo aplicado à inúmeros temas

historiográficos: “grandes indústrias, alfabetização, iconografia, homeopatia, professores

universitários, ensino agrícola, engenheiros de minas, mineiros, livros, vida urbana” 66. A

essa lista acrescentam-se ainda os novos elementos trazidos pelo método para a analise de

novos e velhos temas, explicitados por Alzira Alves de Abreu (1995), como a “história das

‘atitudes coletivas’: diante da morte (P. Aries, M. Vovelle), diante do medo (J. Delumeau),

diante da vida (j. Gélis), a história dos gestos (J. C. Schmit), das cores (m. Pastoureau), dos

nomes (L. Perouas, J.Dupâquier) ou dos estados afetivos (A. Corbin)” 67. Todos estes são

temas que constituem grandes linhas de debates da história no presente e que cada vez mais se

utilizam do método comparativo, pois em todos os exemplos encontramos a descrição de uma

linha evolutiva, e, portanto de uma visão mais ampliada do fenômeno. Acrescentamos aqui a

música popular, propondo para este caso, o que Haupt chama de uma “interpretação das

65 CARDOSO, C. F.; PÉREZ BRIGNOLI, H. O Método Comparativo na História. In: Os métodos da História.

Trad. J. Maia. 3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 409. 66 HAUPT, H.G. “O lento surgimento de uma História Comparada”. In: BOUTIER, J., JULIA, D. (org).

Passados Recompostos - campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / Editora FGV, 1998. p. 206 e 208.

67 ABREU, A. A. “Historiografia: uma revisão”. In: Estudos Históricos, vol.8, n.16. Rio de Janeiro: Cpdoc/FGV, 1995. p.307-8

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evoluções” 68, uma busca das estruturas mais gerais, e que foram muitas vezes definidas como

integrantes de uma “tradição” cultural determinada.

Ao compararmos as obras de dois conhecidos compositores, cada qual representante

de um período diferente, mas igualmente “áureo” na produção musical brasileira, podemos

perceber certos elementos que correspondem às continuidades históricas, que por sua vez

podem se tornar explicativas da nossa sociedade, possibilitando uma interpretação de sua

evolução. Apesar de manifestarmos a necessidade do rigor científico e apreciarmos os dados

empíricos, devemos salientar que não se propõe aqui, por outro lado, a construção de “leis

gerais”, nem a explicação de origens ou essências dos fenômenos enfocados - seguindo os

sábios conselhos das pesquisadoras e professoras do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

(IFCS) da UFRJ, Neyde Theml e Regina Bustamante 69, mas sim, de percebermos algumas

das “formas” permanentes ou constantes que vieram a definir a brasilidade e a integrar a

noção de tradição cultural popular 70.

Apesar de vários autores defenderem e aplicarem o método comparativo, os exemplos

práticos nos revelam que até agora, porém, não há uma metodologia definida para todos os

casos, pois para isso ainda é necessário, segundo alguns deles, mais tempo de prática da

pesquisa empírica e um conhecimento mais ampliado sobre línguas e linguagens, que

permitam melhores comparações. Ainda assim, aplicamos aqui um processo comparativo que

se mostrou eficiente e adequado aos objetivos almejados.

Cabe ressaltar por fim que, em termos historiográficos nos estudos sobre a música

popular, vamos encontrar em muitos casos os chamados "detratores" da atividade, que a

classificam, em períodos históricos determinados, como “ópio”, ou elemento alienante através

do qual a classe dominante pôde manipular as massas, na sublimação da miséria cotidiana no

sucesso passageiro de uma música ou de um intérprete (assim como de um time de futebol -

outro elemento de grande capacidade representativa da brasilidade), em catárticas festas

coletivas. Os admiradores, por outro lado, vêem a música, com um papel muito mais

68 HAUPT, H.G. Op.cit. p. 211. 69 THEML, N. e BUSTAMANTE, R. M da C, Editorial: História Comparada: olhares plurais. PHOÏNIX 10, Rio

de Janeiro: IFCS/UFRJ, 2004. ps. 9-30 70 Segundo as pesquisadoras Neyde Theml, e Regina M. da C. Bustamante, no artigo citado acima, a abordagem

comparativa no modelo mais indicado aos pesquisadores, criado pelos historiadores Paul Vernant e Marcel Detienne, “não visa a construção de leis gerais, nem origens ou essências dos fenômenos, mas sim as

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significativo como fonte de identidade de um grupo, além de escada para a mobilidade social

e agente poderoso para uma integração nacional, como na construção da brasilidade. Ora, os

dois papéis coexistem: embora esta arte, tão brasileira, tenha sido usada pelas elites para

impor a sua ideologia, não podemos esquecer que a música, assim como o esporte, também

representou espaços de manifestações de resistência e crítica a essa direção, como atestam os

estudos de Norbert Elias e Eric Dunning 71, que conferem às modalidades de lazer (como a

música popular e o futebol) momentos de fluxo e refluxo que representam a capacidade

organizativa da nossa sociedade e da crítica constante que ela faz sobre si mesma.

formas moventes e múltiplas representadas pela sociedade – o estranhamento, pluralização, censo comum, habitus”. p. 23.

71 ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric. Deporte y Ocio en el Proceso de la Civilizacion. México: Fondo de Cultura Económica, 1992.

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CAPÍTULO 1 – Noel Rosa e Chico Buarque: tradição e modernidade.

Em 1970, o grupo Mutantes aprofundava o tom crítico, revolucionário e até mesmo

herético em relação ao que já era considerado um dos seus maiores e inquestionáveis

patrimônios culturais brasileiros: a própria música popular. A sua releitura de “Chão de

estrelas” 72, por exemplo, composta nos anos 1930 e tornada um clássico da música popular,

era tão propositalmente debochada, que toda a tradição musical via-se arrastada ao ridículo.

Com o arranjo musical de Rogério Duprat, que optava pela contramão da exaltação da

tradição musical, com alterações rítmicas bruscas e utilização de efeitos sonoros diversos, e a

interpretação do vocalista Arnaldo Baptista, cheia de apelos melodramáticos, que a todo o

momento caia na desafinação, a canção se transformava no bode expiatório dos que queriam

apontar ou denunciar a “fadiga da tradição” através do sarcasmo 73. Na gravação, quando o

cantor emite os ontológicos versos, “Mas a Lua furando o nosso zinco/ Salpicava de estrelas

nosso chão / Tu pisavas nos astros distraída / Sem saber que a ventura desta vida / É a

cabrocha, o luar e o violão”, ouvimos concomitante ao primeiro verso sons de tiros, depois,

cacos de vidro sendo pisados, e após os últimos versos, frases soltas que realizam uma

verdadeira desconstrução da obra: “É a cabrocha escorregando no sabão / É os gato miando

no porão”. A heresia se completa neste momento final da música, quando de forma contrária

ao culto às “raízes”, macula-se alguns dos símbolos mais marcantes da tradição musical

brasileira: a cabrocha, a seresta, o violão. Ainda que a intenção desta regravação dos Mutantes

não fosse propriamente de destruir um patrimônio cultural construído em décadas de

excelentes composições, e sim de impedir um “engessamento” da MPB dentro de padrões de

teor nacionalista, como afirma Adalberto Paranhos 74, as reações diversas se somaram às

discussões então muito em voga e que levavam, via de regra, a julgamentos de uma

inequívoca decadência da música popular brasileira.

72 “Chão de estrelas”, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa, Silvio Caldas. 78 rpm Odeon, 1937. Relançada em

duas coletâneas com diversos intérpretes: CD Velha Guarda. EMI, 1998; caixa de CDs História da Odeon: as primeiras músicas do século XX. CD n.2 (1927 – 1942). EMI, 2003.

73 “Chão de estrelas”, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa. Mutantes. LP A divina comédia ou ando meio desligado. Polydor, 1970 (relançamento: CD homônimo. Polydor, s/d). Uma análise detalhada desta interpretação e sua definição como “sarcástica” está em PARANHOS. Adalberto. “A música popular e a dança dos sentidos: distintas faces do mesmo”. In: ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia (Programa de Pós-graduação em História), n. 9, 2004. pp. 26-27.

74 PARANHOS. Adalberto. Op. cit. p. 27.

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Outro exemplo próximo de “desconstrução” já havia sido gravado no LP “Tropicália

ou Panis et Circensis“ de 1968 75, que também contou com a participação dos Mutantes,

quando Caetano Veloso, na música “Coração Materno” de Vicente Celestino, fez uma

interpretação propositalmente inexpressiva ou “dessacralizadora” como classificou Marcos

Napolitano 76. Estes são apenas alguns exemplos dos questionamentos, provocações ou

críticas em meio à diversidade de rumos com que a canção brasileira se deparava naquele

momento, indo desde o sertanejo até a tropicália, passando pelos formatos consagrados pelos

Festivais da Canção, pela canção romântica da Jovem Guarda e pelo rock nacional, que vinha

se definindo através de grupos como os próprios Mutantes.

Neste momento, é de se ressaltar, para os propósitos deste estudo, que quando

jornalistas e críticos musicais deste período buscaram quase que desesperadamente por

“continuadores” da “legítima” tradição entre os jovens compositores, para defendê-la das

“deturpações” modernizadoras, o nome de Chico Buarque de Hollanda foi sempre o mais

citado e para confirmar a sua filiação á tradição, a comparação de sua obra (então ainda

apenas no início da sua profusão criativa) com a produção musical de Noel de Medeiros Rosa

tornou-se um dos mais eloqüentes argumentos de afirmação do patrimônio musical, que

estava assim de alguma forma “a salvo do vandalismo”. Enredavam-se aí os elos da tradição.

1.1 – Noel: construtor da tradição.

Não há como falar em tradição na música popular brasileira sem tocar na figura de

Noel: “Qualquer pessoa que se dê ao trabalho de analisar a evolução da música popular

brasileira verá que ela dá um salto quando surge Noel Rosa. Verá que, a partir de Noel,

nasce uma nova música popular, nasce um novo samba” 77. Em conformidade com este

julgamento de Sérgio Cabral, podemos afirmar o reconhecimento de Noel Rosa como um dos

principais pilares da tradição do moderno samba carioca que se impõe como hegemônico na

década de 1930. Essa percepção é de fato unânime entre os pesquisadores da música popular.

Hermano Vianna afirmou que Noel Rosa “não apenas caiu no gosto popular, ele também

75 LP Tropicália ou Panis et Circensis. Philips, 1968. Considerado o álbum mais importante da história da MPB,

tem sido alvo de muitas análises de historiadores e musicólogos. Entre eles, destaca-se: NAPOLITANO, Marcos. A síncope da idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. (Coleção História do Povo Brasileiro). pp. 134 – 137.

76 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 135

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ajudou a definir este gosto” 78, e Marcos Napolitano foi além: “Noel não caiu no gosto das

massas. Inventou-o” 79. Mas o que ele trazia realmente de novo?

Nas letras isso nos parece evidente. E este aspecto será aqui bastante explorado.

Fiquemos por ora com este exemplo: Em uma análise sobre 43 canções brasileiras, que têm

como tema o próprio país, José Murilo de Carvalho notou que Noel foi praticamente o

primeiro a explorar de maneira crítica o assunto:

De modo geral, os compositores das três primeiras décadas do século não tematizaram o Brasil em suas canções. A única exceção talvez seja Eduardo das Neves (...), com “A conquista do ar”, de 1902, homenagem exaltada a Santos-Dumont (...). A falta de Brasil é quase completa entre os compositores de origem social mais popular, quase todos ausentes da lista (...) (das 43 canções). Não há ninguém do grupo da Tia Ciata, nem da Mangueira, nem da turma do Estácio. Nada de Donga, Sinhô, Cartola, Carlos Cachaça, Pixinguinha 80.

Mas, e quanto ao aspecto musical? No que Noel era um inovador? Para responder a

esta pergunta é preciso antes dizer que Noel não foi o único a propor mudanças. No início da

década de 1930 o samba sofreu as alterações do padrão rítmico operados pela “turma do

Estácio” (Bairro do Estácio de Sá, Rio de Janeiro - Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide,

Brancura e outros), onde, com uma presença bem maior da percussão, se mudava o ritmo

binário “amaxixado” da geração de Pixinguinha, para um ritmo binário simples com o tempo

forte bem marcado pelo surdo, enquanto o tamborim e a cuíca (instrumentos até então não

utilizados nas gravações de samba) acentuavam alguns dos tempos fracos (síncopes) criando

um maior contraponto rítmico. A melodia também se tornou mais sincopada permitindo uma

gama maior de possibilidades fraseológicas 81. Estas mudanças facilitavam muito o passo

cadenciado dos foliões que, “no mesmo ritmo” conferiam mais unidade e vigor aos desfiles

das escolas de samba. Noel somara estas mudanças á sua genialidade criativa que o

notabilizaram muito rapidamente.

77 CABRAL, Sérgio. “O eterno jovem”. In: Songbook Noel Rosa. Produzido por Almir Chediak. Petrópolis: Ed.

Vozes, 1991. vol. 1, p. 8. 78 VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Op. cit. p. 122. 79 NAPOLITANO, Marcos. A síncope da Idéias: A questão da tradição na música popular brasileira. Op. cit. p.

25. 80 CARVALHO, José Murilo de. “O Brasil de Noel a Gabriel”. In: Decantando a República, v.2: Inventário

histórico e político da canção moderna brasileira / Berenice Cavalcante, Heloísa Maria Murgel Starling, José Eisenberg (orgs). Volume 2: Retrato em Branco e preto da nação brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

81 Trata-se do chamado paradigma do Estácio, termo criado e bastante explanado por Carlos Sandroni em Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar / Ed. UFRJ, 2001. p. 32.

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Vamos nos deter um pouco sobre a historia da formação destes paradigmas. A música

popular obteve a sua primeira “aceitação oficial”, em 1914, e não sem muita controvérsia. Foi

notável a repercussão, na ocasião, do escândalo provocado pelo “Corta Jaca”, de Chiquinha

Gonzaga, quando a esposa do presidente da República, Nair de Teffé, num baile em pleno

Palácio do Catete, tocou no violão (instrumento ainda maldito) o referido maxixe, gênero

execrado por grande parte da elite intelectual de então, entre os quais Rui Barbosa. O

escândalo era ver e ouvir a primeira dama cantando: “Ai, ai! Que bom cortar a jaca/ Ai! Sim!

Meu bem ataca/ Sem descansar”. Rui Barbosa, que muitas vezes se manifestou refratário à

música popular, produziria em referência ao escândalo uma série de discursos que

denunciavam a invasão do Catete pelo “gosto” popular.

Porém, com pouco mais de dez anos depois do episódio, boa parte da elite carioca já

não tinha pudores em prestigiar o maxixe e o samba dos negros e mulatos, como Pixinguinha,

Donga e os demais integrantes do grupo Oito Batutas, na sala de espera do cinema Palais, ou

como o Sinhô, o “rei do samba”, em outros ambientes igualmente chics da Capital. Foi uma

transformação drástica que se operou em pouco menos de uma década, com o consumo de

música popular se generalizando pelas diversas camadas sociais do Rio de Janeiro. Estes

compositores, símbolos da primeira geração de sambistas, fizeram sucesso trazendo muito do

que se fazia nas casas das tias baianas, no bairro Cidade Nova, junto ao Centro do Rio de

Janeiro. Os sucessos como “Gosto que me enrosco” e “Jura”, ambos de Sinhô, foram aos

poucos abrindo terreno para a penetração dos ritmos populares em todas as classes, e

solidificando um primeiro modelo para o samba, ainda bastante aparentado ao maxixe. Muitos

pesquisadores confirmam no período que vai de 1917 a 1930, a formação de um primeiro

paradigma para o “samba popular”. Paradigma, porém que não durou muito. No início dos

anos 1930, esta “tradição”, tão evidente na década anterior não foi mais seguida nem por Noel

Rosa, nem pela grande maioria dos novos sambistas. Isto se explica pelo sucesso de um

recente estilo de samba que nasceu nos bairros populares, principalmente no Bairro do

Estácio, próximo ao meretrício do Mangue, foi se espalhando pelos morros próximos, como

Mangueira e Salgueiro, e atingiu os bairros mais distantes da Zona Norte, como Penha, Méier,

Madureira etc., com enorme rapidez. A grande referência deste novo estilo será Ismael Silva,

que considerava a mudança rítmica mais adequada à cadência nos desfiles dos blocos e

escolas de samba, como já dissemos. Contudo, estas mudanças não foram tranquilamente

aceitas pelos conservadores e apreciadores do primeiro estilo, compositores e jornalistas, que

as tomaram como sinais da “decadência” iminente. E já no ano de 1930 encontraremos

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críticas ferozes ao novo estilo (do Estácio): Luciano Gallet (compositor, regente, folclorista e

diretor da revista musical Weco), descontente com os rumos da música popular brasileira,

promoveu neste ano uma campanha de “salvamento” da mesma, que culminou com a

fundação da Associação Brasileira de Música 82. Mas a campanha estava já destinada ao

fracasso, e, ao contrário do que queriam os editores da Weco, este mesmo ano (1930) será

tomado mais tarde como o marco inicial de uma “época de ouro” da nossa música popular.

Podemos perceber por este exemplo, o quanto a idéia da formação de uma tradição musical

brasileira irá se transformar e paradoxalmente ter relações constantes com a idéia de

decadência, ao mesmo tempo em que se formaliza um patrimônio musical único, embora com

características sempre maleáveis e muitas vezes transitórias entre nós.

De qualquer forma, aqueles mesmos “sinais de decadência” iriam marcar

definitivamente a batida do samba moderno, formando uma nova escola de sambistas e

compositores, neste início da década de 1930. E é a este novo paradigma que estará relacionada

a produção de Noel Rosa.

“Na Pavuna”, de Homero Dornelas e Almirante, foi o primeiro samba gravado com

acompanhamento de surdos e tamborins, a percussão do Estácio, no final de 1929. Devido ao

grande sucesso obtido com esta gravação, o grupo do qual Noel fazia parte, O Bando dos

Tangarás, passou a abandonar a música de sotaque nordestino ou sertanejo, que fazia até

então, e partir para o samba urbano. O samba “Na Pavuna” trazia o acompanhamento inédito,

porém sua estrutura estava ainda relacionada aos sambas dos anos 1920. Se compararmos “Na

Pavuna” com o samba de Noel “Eu vou pra Vila”, de dois anos depois, notaremos que a

percussão está toda lá, mas há no samba de Noel, os elementos a mais que marcariam em

definitivo o novo formato: a instrumentação, o andamento e acento rítmico do Estácio. Esta

composição, aliás, tornou-se emblemática para a relação entre Noel e as favelas; relação que

podemos definir como a de um mediador cultural, como descreve Santuza Naves:

Noel Rosa, ao que consta, teria sido um dos primeiros músicos desse segmento branco e de classe média a subir os morros, como os da Mangueira e do Estácio, e conviver com os sambistas desses redutos. “Para me livrar do mal”, samba que Noel fez em parceria com Ismael Silva em 1932, é representativo desse tipo de

82 Um estudo aprofundado sobre a campanha da revista Weco se encontra em: ANDRADE, Nívea Maria da

Silva, Significados da música popular: A revista Weco, revista de vida e cultura musical (1928-1931). Dissertação de Mestrado (PUC-Rio). Rio de Janeiro, Agosto de 2003; mimeo.

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encontro. O compositor do Estácio teria apresentado a Noel a primeira parte do samba, que Noel concluiria “em tom menor e num andamento mais cadenciado 83.

É preciso lembrar, no entanto que Noel não fora o pioneiro a gravar o novo estilo:

Francisco Alves, segundo Sérgio Cabral, já havia, em 1928, gravado dois sambas do Estácio

que anunciavam a “nova era” 84.

Para Noel, não havia dúvidas de que o verdadeiro samba era o samba do Estácio. João

Máximo e Carlos Didier nos descrevem com uma frase curta de Noel (de 1933) este

pensamento: “Isto é samba ou aquela coisa que a Carmem Miranda canta?” 85, se referindo

aos sambas de Sinhô e outros compositores da década de 1920, bastante gravados por

Carmem Miranda. O fato é que enquanto seus contemporâneos continuavam a repetir

fórmulas consagradas pelas gravadoras, Noel se voltava para o ritmo do Estácio. Para Maria

Alice Rezende de Carvalho havia razões para esta inclinação: o fato de ser um estilo

executado por músicos de formação mais precária, porém mais criativos e livres das regras da

música de salão, e as letras serem narrativas diretas e simples sobre o cotidiano pobre das

favelas e cortiços. Para a historiadora Noel dava início “a um movimento de dimensões até

então inéditas no âmbito da música popular” 86, por mobilizar esferas da vida social antes

intocáveis pela música popular. A mais sentida mudança foi, no entanto, do repertório de

gêneros musicais. O antigo predomínio das emboladas, desafios, toadas, e maxixes foi

simplesmente substituído pelos ritmos cariocas. A tradição fundada também por Noel é aquela

que marca a apropriação do samba pelo morro e seus habitantes – gente sem raiz e sem

formação musical – por isso Maria Alice afirma que a tradição carioca “imprimia uma

sinalização radicalmente democrática” 87 e inédita, rompendo com o que havia de

aristocrático no samba e ao mesmo tempo afirmando a cultura da mestiçagem: “Na década de

1930, então, o samba urbano seria alçado ao sucesso, como a mais “tradicional” expressão

da nossa música nacional. Tradição inventada (...)” 88.

83 NAVES, S. C. O violão azul. Op. cit. p. 103. 84 CABRAL, Sérgio. A MPB na era do rádio. São Paulo: Moderna, 1996. p.22 85 Noel Rosa apud MAXIMO, J. & DIDIER, C. Noel Rosa. Uma biografia. Op. cit. p. 233. A frase, confirmada

por Aracy de Almeida aos autores, está no livro de Jacy Pacheco, Noel Rosa e sua época (Rio de Janeiro: G.A. Penna, 1955, página 95), e foi confirmada por Aracy de Almeida aos autores.

86 CARVALHO, M. A. R. de. “O samba, a opinião e outras bossas... na construção republicana do Brasil. Op. cit. p. 46.

87 Idem. p. 47. 88 Ibidem, p. 47.

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Em concordância com esta pesquisadora sobre a filiação estética de Noel Rosa, José

Adriano Fenerick acrescenta:

Noel vestiu rigorosamente o samba do Estácio e desconsiderou o resto. Em seus sambas ocorrem várias saudações a quase todos os recantos do samba no Rio de Janeiro, quase todos ligados às recentes escolas de samba nos moldes do Estácio: Mangueira, Salgueiro, Osvaldo Cruz, Madureira etc. No entanto Noel nunca se referiu à Cidade Nova, local de onde saíram os sambistas da geração de Donga e Pixinguinha, como sendo um reduto de bambas. (...) Noel, ao cantar a sua Vila Isabel (...) deixa a entender que não é apenas no morro que o samba é feito, pois nos bairros suburbanos ele também tem o seu valor. No entanto, o que Noel faz é uma constante associação, por meio de suas músicas, do samba com o morro 89.

Fica marcada então a divisão sobre a origem mítica do samba, já nos anos de Noel,

entre aqueles que defendiam a morro como local do seu nascimento, como Orestes Barbosa

(que via aí o samba “puro”) e aqueles que passam a afirmar o papel criativo da cidade: o

bairro do Estácio de Sá (que não é um morro, apesar da proximidade do morro de São Carlos)

e a Vila Isabel de Noel, que também não tinha morros, apesar da proximidade com a

Mangueira. É interessante notar como Noel foge do embate e resolve a questão anulando a

importância da origem no samba, em “Feitio de Oração”, gravado em 1933 por Francisco

Alves e Castro Barbosa:

O samba na realidade Não vem do morro nem lá da cidade E quem suportar uma paixão Sentirá que o samba então Nasce no coração 90.

Para ele, era óbvia a inutilidade desta briga. Até porque o preconceito em relação aos

sambistas ainda era muito grande, e o que menos interessava aos sambistas eram disputas

internas. José Adriano Fenerick nos lembra ainda que o samba e os sambistas eram muito mal

vistos pelas “famílias de bem”, que temiam a proximidade de seus filhos a estes elementos

perigosos, e pelos intelectuais que continuavam publicando artigos acusadores da decadência

cultural e até moral causada pelo samba 91. Grande parte dessa rejeição se devia sem dúvida

ao preconceito em relação à cor predominante dos sambistas, portanto a aceitação do samba

como elemento cultural do povo brasileiro dependia da aceitação e incorporação da

mestiçagem, ainda muito rechaçada. O samba poderia até ser aceito em parte por estes

89 FENERICK, José Adriano. Nem do morro nem da cidade: a transformação do samba e a indústria cultural

(1920-1945). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2005. (tese de doutorado). p. 228-229. 90 “Feitio de Oração”, de Noel Rosa e Vadico (compositores). Francisco Alves e Castro Barbosa. In: Noel Rosa.

Pela primeira vez. Op.cit. 91 FENERICK, J. A. Nem do morro nem da cidade. Op. cit. p. 70.

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círculos, mas antes necessitava ser “higienizado” pelos padrões civilizatórios dos brancos, e é

justamente cumprindo esta necessidade que vemos o surgimento dos compositores brancos do

estilo negro do Estácio, tais como Noel, Custódio Mesquita, Ari Barroso, Lamartine Babo,

entre outros.

Noel Rosa é um dos primeiros a realizar as mudanças necessárias para tornar o novo

modelo de samba aceitável, e mais do que isso, capaz de tornar-se o ritmo nacional por

excelência, representando o Brasil ou a “contribuição brasileira à civilização”. Este modelo

subentendia a identificação com a cidade do Rio de Janeiro e a presença da batucada (com

surdos e tamborins), o que significou o descarte quase completo da produção dos sambistas da

geração anterior. Este verdadeiro projeto de que participou muito ativamente Noel, teve

também a rápida adesão de outros compositores que, de forma intencional ou não, acabaram

por “civilizar” a música popular sem perder as características originais (ou autênticas),

inclusive do antes reticente Orestes Barbosa, com composições que afirmavam o caráter

mestiço (e por isso nacional) do samba, como por exemplo na música “Verde e amarelo”, de

1932, que dizia:

O samba não é preto O samba não é branco O samba é brasileiro É verde e amarelo 92.

Mas tornar o samba aceitável pela sociedade está bem distante de torná-lo um símbolo

nacional. É então aqui que entra a atuação do Estado. Vejamos como se deu esta intervenção.

É fácil perceber que a mudança do paradigma do samba estava acompanhada também de

amplas mudanças no cenário musical. Em particular na rádio, cujo avanço representou um

aumento significativo do mercado de trabalho para os músicos, e do número de ouvintes. Este

incremento deve-se sem dúvida à ação do governo de Getúlio que, interessado em utilizar o

rádio como o grande veículo da integração nacional, e na música popular carioca como um

dos principais fatores de aglutinação, tomou ações constantes de incentivos à ampliação da

difusão do rádio e da música popular.

Bem antes da implantação do Estado Novo, as grandes festas comunitárias vinham

ganhando cada vez mais o interesse do primeiro governo Vargas, e também mais organização

92 “Verde e amarelo”, de Orestes Barbosa e J. Thomaz. In: CD Orestes Barbosa. O poeta nas vozes de Francisco

Alves e Sílvio Caldas. Curitiba: Revivendo, s/d.

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e pompa. Getúlio sempre reconheceu a propensão ou gosto da nossa população por estas

festas e, portanto, o poder de identificação social que carregavam. As festas aos poucos foram

se revestindo de uma “autoridade” e passavam a ser entendidas pelas “autoridades” como uma

boa possibilidade de contato “corporal” entre o Estado e o Povo, numa nova dinâmica de

ordem e disciplina. No decorrer da década, medidas mais efetivas foram criadas visando o

controle sobre desordens ou tumultos, sobretudo no carnaval 93.

Ao se avaliar a relação que o governo Vargas manteve com a construção da tradição na

canção popular brasileira encontramos algumas datas bastante significativas: Em 1932 é

realizada pela primeira vez a organização dos desfiles de carnaval na forma de competição

oficial e, no mesmo ano, o governo autoriza a veiculação de anúncios nas rádios, dando

surgimento aos patrocínios e jingles. No ano seguinte, o carnaval é oficializado pelo prefeito

do Distrito Federal, Pedro Ernesto. E em 1934, é criada a tradição do Rei Momo, com sua

eleição dirigida por agremiações sob tutela governamental, com o objetivo de fortalecer a

presença do Estado na festa - tanto que chegavam a lhe entregar, no sábado que antecedia o

carnaval, as chaves da cidade 94. A partir de 1935, as escolas são “orientadas” a colaborar com

a propaganda patriótica, iniciando-se aí outra tradição, a dos enredos ufanistas. Para garantir

essa propaganda, os desfiles passaram a ser subvencionados pelo governo, que determina

também que os mesmos fossem realizados na Praça Onze, um ponto já bastante tradicional de

encontro dos sambistas. Só participariam do desfile, no entanto, as escolas regularmente

filiadas à UGES, União Geral das Escolas de Samba. Em 1936, um decreto, impõe às escolas

de samba a obrigatoriedade de seus enredos apresentarem um caráter “didático, patriótico e

histórico”, sobrecarregando de nacionalismo a festa popular.

Em 1936, apesar de muito atacado por intelectuais e analistas eruditos que insistiam na

idéia de decadência, o samba já era entendido como artigo de exportação e de “orgulho

nacional”, não só pelo nosso povo, mas também pelo governo. A 30 de janeiro de 1936, com

locução em alemão, foi produzido no Morro da Mangueira, um programa especial de “A Hora

do Brasil”, transmitido diretamente para a Alemanha, com sua parte musical composta

exclusivamente por sambas que, cantados por Cartola e pelo Coro da Estação Primeira de

Mangueira, serviram para um projeto de aproximação entre o Brasil de Getúlio e a Alemanha

93 CAPELATO, Maria H. “Propaganda política e controle dos meios de comunicação”. In: PANDOLFI, Dulce C.

(org.). Repensando o Estado Novo. Rio De Janeiro: Editora FGV, 1999.

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nazista. Ainda que seja incompreensível que Brasil ensaiasse uma aproximação com uma

nação que pregava a pureza de raça como a Alemanha nazista, usando a música popular

mestiça, houve quem concluísse que o samba estava a servir inocentemente aos interesses do

Estado. Tanto que não tardariam a surgir reações diversas, embora quase sempre muito

tímidas contra essa manipulação no universo do samba. Tentativas de resistência ao controle

do Estado sobre o samba e sobre o carnaval, estão perceptíveis em muitos sambas

“inconformados”, como por exemplo, o de Herivelto Martins e Darci de Oliveira, “Se o

Morro Não Descer”, que no carnaval de 1936, criticava a falta de liberdade das escolas.

Em 1936 também se dá o início de uma interessante disputa entre a UGES (União

Geral das Escolas de Samba, organizada pelo Estado) e a “Associação Carnavalesca Cordão

das Laranjeiras” (representando os sambistas) pela alteração de um novo elemento da tradição

no carnaval. Tratava-se da figura do Rei Momo, criado dois anos antes e que foi questionada e

combatida com a criação, pelo Cordão das Laranjeiras, de uma nova eleição para o

“verdadeiro representante do samba”, que seria chamado de “Cidadão Momo”. Os sambistas

desejavam manter uma relação verdadeira com os representantes da sua arte e assim

resolveram que deveria ter um “Cidadão” (eleito) e não um “Rei” para esse papel. E o iriam

buscar entre os elementos de destaque na liderança das escolas e não nas figuras tidas como

patéticas e nomeadas pelas autoridades. Acabou sendo eleito naquele ano, uma personalidade

inegável do mundo do samba, Paulo da Portela, um dos criadores da escola de samba Portela

e personagem constante de muitas histórias sobre o mundo do samba. Tudo em nome de uma

“tradição de liberdade” que se desejava afirmar. No ano seguinte (1937), comprando essa

briga, a UGES criou o concurso do “Cidadão Samba”, como uma forma de se opor ao

“Cidadão Momo”, onde, coincidência ou não, o mesmo Paulo da Portela acabou sendo

também eleito, o que muito colaborou para não se desenvolver ainda mais aquela rinha. A

partir de 1937, o “Cidadão Samba” eleito, confirmando a seu poder “conferido pelo povo”,

passaria a “promulgar decretos” (nos moldes dos utilizados pelo governo). Quando foi eleito

Alfredo Costa em 1939, o “Generalíssimo Sambista” instituía o “Estado da Alegria

Permanente”, num documento onde constava inclusive um “revogam-se as predisposições em

contrário”, demonstrando com essa troça o clima político opressor da época e a reação

debochada do universo do samba.

94 TUPY, Dulce. Carnavais de Guerra: O Nacionalismo no Samba. Rio de Janeiro: ASB Artes Gráficas, 1985.

p.83.

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No ano de 1937, ano da morte de Noel Rosa, o desfile das escolas já estava

consagrado como a grande manifestação genuinamente brasileira, e como tal não poderia mais

admitir elementos estrangeiros, por isso, pela primeira vez na história dos desfiles, uma

escola, a Vizinha Faladeira, foi desclassificada por apresentar enredo com assunto

internacional. Seu tema era “Branca de Neve e os Sete Anões” – que brincava com os

personagens do primeiro desenho de longa metragem, criado por Walt Disney, e que fizera

tanto sucesso no Brasil (como no mundo) no início daquele mesmo ano. Definia já contornos

bem claros a nossa nova tradição musical popular. Em 1938, um incidente demonstra a

importância que já tinham os desfiles para a cidade: Apesar do temporal que assolava a cidade

do Rio de Janeiro, as 35 escolas de samba desfilaram. Não houve, porém, julgamento, pelo

fato de apenas um julgador comparecer, fato que gerou indignação e protestos entre as escolas

e também na imprensa. A tradição “nacionalista” do carnaval não aceitava mais a sua

interrupção.

Apesar de tantas mudanças conjunturais, não podemos creditar a fixação musical do

paradigma do Estácio 95 somente a elas. Nem mesmo às mudanças que estão diretamente

ligadas ao meio musical, tais como a implementação das rádios comerciais e o

desenvolvimento do mercado de discos. Para o historiador José Adriano Fenerick, não foi o

rádio a mola propulsora da música popular, sobretudo do samba, mas exatamente o contrário 96. Fenerick cita uma pesquisa de Nicolau Sevcenko para provar que depois do sucesso

marcante do grupo pernambucano Turunas da Mauricéia, do famoso Patativa do Norte

(Augusto Calheiros), em 1928 e 1929 no Rio de Janeiro, as rádios passaram a exigir que

“músicas brasileiras típicas” ocupassem espaços cada vez maiores em suas programações:

Não foi o rádio que lançou a música popular, mas o contrário. As coisas estando nesse pé, deu-se o lançamento de Carmem Miranda pela gravadora Victor, sob expressas recomendações de seu diretor artístico, Rogério Guimarães: “a senhorita somente cantará música brasileira. Sei que tem cantado alguns tangos, mas a Victor quer lançar músicas brasileiras típicas. Não revelará também a sua origem portuguesa, para não prejudicar a imagem brasileira dos discos 97.

95 O termo cunhado por Carlos Sandroni em sua tese de doutorado (SANDRONI, C. Feitiço decente.

Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Op. cit., 2001), é bastante aceito e utilizado por vários especialistas das histórias do samba, como Sérgio Cabral e Jairo Severiano, entre outros.

96 FENERICK, José Adriano. Nem do morro nem da cidade: a transformação do samba e a indústria cultural (1920-1945). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2005. (tese de doutorado)

97 SEVCENKO, Nicolau. “A Capital irradiante: técnica, ritmos e ritos no Rio” in: História da vida privada no Brasil. Vol. III. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p 592-593.

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O Rádio e o Samba juntos fizeram, no início dos anos 1930, um casamento perfeito,

seja porque com as emissoras os sambistas rapidamente se tornavam conhecidos, seja porque

com o samba, a rádio passou a ser um negócio de fato rentável. A geração de Noel estava

assumindo o rádio como lugar da divulgação de suas obras. Coisa que a geração anterior não

pode fazer porque o veículo ainda estava muito pouco disseminado e bastante elitizado, e

porque contava com pouca atenção de empresários e autoridades. O apoio do governo

revolucionário, dando prioridade à divulgação da cultura nacional foi determinante para a

velocidade das mudanças e para a solidificação de toda uma tradição em poucos anos.

Em A Canção no Tempo, Jairo Severiano traz, uma mostra precisa da relação entre a

música nacional e o rádio. A sua pesquisa mostra que entre 1931 e 1940, o samba foi o gênero

mais gravado, atingindo a cifra de 32,45% do repertório apresentado (2176 sambas em 6706

composições). E que sambas e marchas somaram o percentual de 50,71% do repertório

gravado nesta década 98. Estes dados atestam um deslocamento da preferência musical dos

brasileiros, antes voltada à música erudita, ao jazz, ao tango e ao foxtrote. Surgia enfim o

predomínio de uma “cultura nacional”.

Não podemos deixar de mencionar também algumas outras mudanças estruturais

trazidas pela complexidade cada vez maior do mundo urbano brasileiro. O desenvolvimento

comercial, a chegada de levas de migrantes, a proliferação das favelas e as reformas urbanas,

entre os muitos fenômenos ligados à modernização na cidade do Rio de Janeiro, colocaram

em evidência o novo mundo popular: os novos personagens do mundo urbano e industrial,

que sem a garantia de participação no mercado de trabalho mantinham uma “autenticidade”

de expressão com um toque de rebeldia. Este movimento autêntico ia, no entanto, na

contramão do crescente controle do Estado sobre a sociedade, que agindo com cautela e

habilidade conseguiu cooptá-lo em apoio ao regime de Vargas. Ainda assim, é possível

reconhecer no movimento que massificou o samba, principalmente nos primeiros anos da

década – onde um dos principais nomes é o de Noel – um formato autônomo de organização

da cidade, com uma postura francamente crítica e debochada.

Santuza Naves explicita esse deboche lembrando que em Noel ele nunca seria

escancarado: “Esse tipo de sensibilidade irreverente (de Noel) encontra a sua forma musical

98 SEVERIANO, Jairo; MELO, Zuza H. A Canção no Tempo. Vol. I (1901-1957). São Paulo: Editora 34, 1997.

p.85-89.

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numa estética contida, avessa ao excesso estilístico, que exige arranjos mais simples, com o

concurso de poucos instrumentos, e na maneira intimista de interpretar as canções” 99. Para

Santuza Naves, Noel Rosa ganha destaque entre os compositores seus contemporâneos por

causa também da combinação entre sofisticação musical e poética, com o vocabulário popular

e expressões e modo de falar dos subúrbios cariocas. Noel realmente conciliava com maestria

o refinamento poético do mundo letrado com a sensibilidade desenvolvida no mundo da

prostituição e da malandragem. E nisso ele foi realmente notável. O procedimento favorito: a

paródia em referência a fragmentos do cotidiano urbano. Sendo assim não podemos dizer que

ele seguia apenas o paradigma do Estácio, mas também a sua própria sensibilidade e

facilidade criativa.

Em termos estritamente musicais podemos afirmar que as contribuições

revolucionárias de Noel vão muito além da repetição do que se fazia no Estácio: Noel fazia

uso muito constante, por exemplo, das dissonâncias e de acordes diminutos, numa época em

que não era nada comum na música popular brasileira esse uso. Esta prática associada às

inversões de baixos (quando ao invés das tônicas, as notas mais graves reproduzem outras

notas do acorde, como por exemplo, as terças, quintas ou sétimas), colocavam no passado o

uso restrito de acordes perfeitos e projetavam o compositor no futuro, com suas harmonias

complexas e certas modulações de tom que se tornaram comuns 50 anos depois, no período

pós-bossa nova. Estas características e mais, a fusão das culturas musicais negra e branca,

deram à obra de Noel o papel de linguagem musical brasileira por excelência, mestiça e

autêntica, sofisticada e popular, e inegavelmente muito original.

É Marcos Napolitano quem resume o papel do poeta da Vila dentro do patrimônio

amplo da música popular brasileira: “Noel herda uma tradição, mas protagoniza uma ruptura,

pois sua obra é um dos pontos de construção e continuidade do ‘paradigma do Estácio’ que,

como sabemos, é herança e ruptura a um só tempo com a música urbana anterior” 100. Estes

sambistas “intelectualizados”, ainda para Napolitano, manifestavam dois tipos de

preocupação: primeiro com a influência estrangeira na cultura brasileira, sobretudo depois de

1932, quando o cinema falado se consolidou, e segundo com a “associação imediata e

99 Naves, Santuza Cambraia. “A canção popular entre a biblioteca e a rua”. In: Decantando a República. Vol. 1.

2004. Op.cit. p. 83. 100 Marcos Napolitano em depoimento ao autor. Agosto de 2007.

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preconceituosa entre samba e malandragem, preocupados com a ampliação e o circuito de

audiência do samba” 101.

A propaganda da mestiçagem, as escolas de samba, o paradigma do Estácio, a

popularização da rádio, as produções de musicais no cinema e a mediação de compositores

brancos da classe média entre o morro e o asfalto, compõem juntos um fenômeno maior, que

trata da construção da identidade cultural e da urgência de uma modernização que incluía e se

adaptava á ideologia capitalista de industrialização. A construção desta identidade

representava a afirmação do Brasil perante o mundo como nação. E assim, a partir do final

dos anos 1930, as características “próprias” dos brasileiros se tornaram definitivas e

emblemáticas.

Para isso, foi fundamental também, não podemos esquecer, a atuação das diretrizes do

Estado Novo sobre a nossa identidade cultural, na qual o carnaval e o samba, juntamente com

o futebol, cedo formaram uma espécie de cerne ou núcleo central, extremamente duradouro.

Para a “festa maior” do carnaval, as intenções didáticas e ufanistas dos enredos mantiveram-

se presentes nos sambas até o final da ditadura militar de 1964, ou seja, até pelo menos, 1985,

e ainda são comuns até hoje, repetindo a exaustão muitas das nossas “qualidades brasílicas”.

A própria organização do carnaval e das escolas (em alas, comissão de frente etc.) ainda hoje

segue moldes estabelecidos na época. Os desfiles nunca mais puderam ser dissociados da

estrutura governamental e a utilização de temas históricos nos enredos manteve-se como uma

imposição, ainda que não oficial – o que obrigou os compositores a produzirem sambas cada

vez mais longos e complexos, e com elementos culturais e lingüísticos novos. Isto acabou

fazendo com que tais canções se afastassem gradualmente do antigo gosto popular para

ocupar um espaço curto e alternado a cada ano na fugaz mídia do entretenimento e do

turismo. Mas esta outra drástica transformação não ocorreu antes de ficar como que

cicatrizada na pele dos brasileiros a sua própria tradição musical popular, que ao seu modo

traduzia a brasilidade.

Porém, a preocupação com a manutenção da tradição cultural fez ser permanente o

sentimento de decadência deste patrimônio. A tese da decadência, que ressurgiu no período da

II Guerra, assumirá feições vigorosas após uma verdadeira invasão de músicas estrangeiras na

programação das rádios brasileiras, especialmente a partir do início da década de 1950. Neste

101 NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias. Op. cit. p. 25.

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período, a música popular foi tema constante e controverso na imprensa brasileira, e desta

vez, a idéia de decadência iria se tornar corrente e hegemônica na historiografia da música

popular. Nesta época, marcada pelo crescimento da indústria fonográfica, o samba tradicional

parecia não mais ocupar o lugar central, e dividia as paradas de sucesso do país com rumbas,

tangos, xá-xa-xás, boleros, fox-trots e jazz trazido pelas Big Bands, entre outros ritmos mais

exóticos, que tomavam conta das rádios. É nesse leque de produções estrangeiras ou “de

influências estranhas” que muitos viram uma inequívoca decadência da arte musical nacional.

Mas, poderíamos perguntar, esse sentimento correspondia à realidade?

Ainda que o envelhecimento ou morte de alguns dos ícones dos anos 30 e 40, como o

próprio Noel ou Francisco Alves e Carmem Miranda, fizessem crer que a música popular

estava mesmo sem futuro, em meados dos anos 1950 muitos outros artistas de inegável

qualidade faziam a sua aparição: Dolores Duran, Antônio Maria, Adoniran Barbosa, Jacob do

Bandolim, Ângela Maria, Demônios da Garoa, Os Cariocas, e Tom Jobim são apenas alguns

exemplos; a produção voltada para a festa do Carnaval, para citar outros, teve em

composições de Haroldo Lobo, Braguinha, Nássara, Wilson Batista e Zé da Zilda, entre tantos

(Lamartine Babo é o grande exemplo de sucesso de vendas), altíssima qualidade neste

período; o frevo também obteve destaque, através de Severino Araújo e o baião se consagrava

na voz de Luiz Gonzaga entre outros artistas nordestinos; Cartola foi redescoberto por Sérgio

Porto e retornou à vida artística; a turma da Velha Guarda, comandada por Pixinguinha,

voltou a gravar e fazer shows; e havia lugar ainda para novas manifestações musicais como o

bigorrilho, cultivado por Jorge Veiga, para não falar da rica variedade de sambas: samba de

roda, samba de breque, samba-canção e samba-enredo; A atuação de Almirante nos programas

de rádio continuava com grande sucesso, divulgando todo esse rico universo e elegendo os

”ícones eternos” da nossa música (o principal do período foi Noel Rosa) que serviriam para

identificar a nossa “verdadeira” brasilidade contra os estrangeirismos “deturpadores” do

samba. Assim, o cenário musical era muito variado e criativo – o que derroca totalmente a

impressão de decadência - sendo ainda o samba o gênero mais no período.

Ainda assim, por sobre essa profusão artística pairou pesada, a nuvem dos julgamentos

pessimistas que novamente condenavam à música brasileira à decadência. E apesar de todos

os memoráveis acontecimentos ligados à música popular desta década, as opiniões insistentes

sobre a decadência do samba acabaram consagrando os anos 50, como um período de crise.

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Noel, que foi reconhecido em vida como genial compositor e figura de talento da

boemia do samba, já estava praticamente esquecido no final dos anos 1940. Mas no início da

década seguinte, o processo de construção da “genialidade” que marca sua figura histórica,

como categoria de reconhecimento social e estético, terá grande impulso, com os programas

radiofônicos de Almirante e com a exaltação criada pela Revista de Música Popular.

Almirante 102 fazia grande sucesso como radialista da rádio Tupi por este tempo. Com

uma série radiofônica especial dedicada a Noel Rosa, a partir de 1951, onde narrava histórias

“pitorescas” da vida de Noel, entremeadas com gravações antigas e canções realizadas ao

vivo no estúdio, o radialista e cantor Almirante, seu ex-parceiro no grupo O Bando de

Tangarás, dava início a uma verdadeira apologia à figura do compositor. O radialista não se

abstinha em adjetivar Noel com os superlativos mais usuais à época e também de ligá-lo à

tradição, como neste trecho onde faz comentários sobre a marchinha “As Pastorinhas”: “Pela

incomparável beleza de sua melodia... Pelo assunto profundamente brasileiro e tradicional de

seus versos” 103.

Mais tarde, esses programas foram relançados como uma série de artigos, publicados

na Revista da Semana com o título de Vida de Noel Rosa contada por Almirante, em

publicações semanais (de 18 out. 1952 a 3 jan. 1953). Artigos que seriam ainda reunidos em

um dos livros que se tornaram “clássicos” da historiografia musical brasileira: No Tempo de

Noel Rosa 104, que acabou servindo de alicerce para a construção do mito. Este projeto de

Almirante foi retocado ainda em 1953, com a nova série radiofônica, também para a rádio

Tupi, Recordações de Noel Rosa. Nestes programas, assim como na biografia escrita por

Almirante, solidificava-se dentro da tradição a obra de Noel, cuja popularidade seria

confirmada ainda em 1953, com o álbum de três discos de 78 rpm de Araci de Almeida

homenageando Noel Rosa (com capa de Di Cavalcanti), que bateu todos os recordes de

vendagem e consagrou definitivamente o compositor e a intérprete. Mas seria necessário

ainda o aval de outros especialistas para o reconhecimento total. Este viria com a Revista de

Música Popular.

102 Almirante (Henrique Foreis Domingues) foi rebatizado por Cézar Ladeira de "a maior patente do rádio". 103 No Tempo de Noel Rosa (de 5 de junho de 1951). Programa radiofônico produzido e narrado por Almirante, e

comercializado pela Collector's Studios Ltda. (www.collectors.com.br), Fita nº 5 (AER081). Esta série é de grande importância histórica para a música popular brasileira. São 11 fitas magnéticas (K7) com todos os programas que Almirante apresentou na Rádio Tupi em 1951 contando a vida de Noel Rosa e ilustrados com mais de 100 músicas interpretadas pelos mais conhecidos astros da emissora.

104 ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1963.

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A Revista da Música Popular, que circulou no Rio de Janeiro, entre agosto de 1954 a

setembro de 1956, com exatamente 14 edições, representou naquele momento uma tentativa

consciente e bastante séria de resgate, ou reinvenção da tradição, ao esboçar um projeto de

restauração da música brasileira dos anos 1930 105. Essa publicação teve enorme importância

na formulação e nos debates sobre os contornos da tradição naquele período. Maria Clara

Wasserman, a primeira historiadora a explorar a Revista da Música Popular como fonte para a

história da construção das nossas tradições culturais afirma:

O pensamento disseminado pela Revista gerou ações culturais e correntes historiográficas ligadas à idéia de raiz na música brasileira. O samba dos anos 30, reverenciado pelo periódico como “época de ouro” da música ganhou outro sentido na interpretação dos “folcloristas urbanos”. A chamada batida tradicional do samba constituiu-se como representação da verdade histórica em oposição às formas ou ritmos estrangeiros que seriam anti-nacionais. Portanto, pensar o samba como “autêntico ou puro”, embora ameaçado pela modernidade e pelo tipo de popularização do consumo musical dos anos 50, foi a base da proposta da Revista da Música Popular 106.

O projeto exposto pela Revista da Música Popular compreendia uma grande estrutura:

um panteão de compositores e intérpretes eleito pelo periódico e pelo público leitor, um papel

de responsabilidade definido para a indústria cultural, parâmetros para juízos de valor, a

elaboração de conceitos generalizantes para a história da nossa música popular, como “velha

guarda”, “samba de raiz” e “época de ouro”, a preocupação com a classificação dos gêneros

musicais e um nacionalismo herdado em parte dos folcloristas da música urbana (Mário de

Andrade e Renato Almeida) e em parte dos jornalistas especializados na história da música

popular (Lúcio Rangel e Ary Vasconcelos). E contou com a colaboração de muitos artigos

assinados por eminentes artistas e personalidades (Sérgio Porto, Fernando Lobo, Rubem

Braga, Paulo Mendes Campos, Nestor de Holanda, Orestes Barbosa, Almirante, Jota Efegê,

Haroldo Barbosa, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira e Ary Barroso, entre muitos outros),

gerando assim, uma verdadeira escola a dominar os julgamentos posteriores sobre a nossa

música. É justamente essa “academia” que vai alçar Noel Rosa a um patamar de figura mítica

do mundo do samba.

A Revista da Música Popular, em absolutamente todos os seus números dedicou ao

menos um artigo sobre o ídolo, considerado por muitos dos seus autores como o principal

105 A Revista da Música Popular teve a direção de Lúcio Rangel e Pérsio de Moraes. 106 WASSERMAN, Clara. “Abre a Cortina do Passado - A Revista da Música Popular e o pensamento folclorista

(Rio de Janeiro: 1954 – 1956)”. Dissertação de mestrado, UFPR, Curitiba, 2002. p. 134.

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compositor brasileiro, no que diz respeito á genialidade, e digno representante da autêntica

tradição brasileira. Noel chegou a ser classificado por Rubem Braga, como símbolo da

brasilidade:

Os seus sambas de amor mais tristes têm na letra ou na música alguma coisa que evita o patético pegajoso do tango (...). Noel está precisando de um assunto sério. Um dia alguém o compreenderá e o fará – porque aquele homenzinho sem queixo e de olhos de criança muitas vezes exprimiu, na ingênua malícia tão saborosa de sua linguagem, mais de dois terços do Rio de Janeiro 107.

Jota Efegê, um folclorista que escreveu muito sobre a música popular brasileira,

escreveu também um artigo sobre Noel na Revista, classificando-o como o “cantor mais

expressivo da música popular carioca”. E arriscou uma explicação “racional” como

justificativa:

Noel era compositor porque era capaz de decompor e dizer a razão dos elementos que punha em suas composições. Não era um desses “com jeito para a coisa”, que às vezes são felizes em suas produções (...) Noel Rosa deve ser lembrado como compositor, compositor da verdadeira acepção do vocábulo 108.

A Revista da Música Popular acabou colaborando bastante para que o compositor da

Vila se tornasse o primeiro ícone da nossa música a ser literalmente cultuado: estátuas serão

inauguradas em sua homenagem; o seu túmulo sofrerá uma reforma; e nos cartuns do

caricaturista e também compositor Nássara, a Araci de Almeida aparecerá sempre chorando e

com uma vela acesa nas mãos, diante de um retrato de Noel. A partir daí, a genialidade de

Noel Rosa vem novamente à tona, produzindo uma série de artigos, regravações e até mesmo

contestações, contra o que alguns já consideravam certo exagero de culto, como foi o caso dos

artigos publicados na mesma Revista pelo polêmico Ary Barroso, outro ícone inconteste,

porém ainda vivo e não tão cultuado quanto Noel. Em 1955, surgiria a primeira biografia de

Noel, Noel Rosa e sua época, composta por Jacy Pacheco, primo do compositor, que três anos

mais tarde lançaria um segundo volume dedicado a ele, O Cantor da Vila, que antecederam o

clássico livro de Almirante, lançado apenas em 1963 109.

107 BRAGA, Rubem. “Noel Rosa; poeta e cronista”. Revista da Música Popular, n.º 1, Pág. 11. “dois terços do

Rio de Janeiro” faz parte de um verso da música Quem dá Mais, de Noel Rosa, 1930 108 Revista da Música Popular, nº. 3, pág. 14. 109 PACHECO, Jacy. Noel Rosa e sua época. Rio de Janeiro: G.A. Penna, 1955. PACHECO, Jacy. O cantor da

Vila. Rio de Janeiro: Edições Minerva, 1958. Jacy Pacheco escreveu ainda A Vida e os amores de Noel Rosa, em formato de Cordel. Rio de Janeiro, s/d., e o artigo “Noel, o poeta do outro mundo”, na Revista de Música Popular, Rio de Janeiro, nº 12, abril de 1956.

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Contudo, após as insistentes homenagens da Revista de Música Popular e as sempre

lembradas regravações de suas músicas por intérpretes consagrados na metade dos anos 1950,

como Aracy de Almeida, a memória de Noel caminharia novamente para o limbo. E não seria

requisitada durante o período da Bossa Nova, quando outros compositores da década de 1930,

como Dorival Caymmi e o próprio Ari Barroso seriam mais lembrados e regravados.

Noel só faria novamente muito sucesso no final da década de 1960, com as

interpretações também antológicas de Maria Bethânia. De lá para cá, o reconhecimento à sua

genialidade não parou de produzir mais obras artísticas: Em 1968, Gilberto Santeiro lança o

curta-metragem Cordiais Saudações, exaltando o grande bamba; em 1977, estréia a peça

teatral, dirigida por Plínio Marcos, O poeta da Vila e seus amores; em 1981, Domingos de

Oliveira, encena a peça Rosa (mais uma homenagem a Noel) e o cineasta Rogério Sganzerla

filma o curta Noel por Noel; em 1982, a escola de samba Unidos de Vila Isabel, apresenta o

samba-enredo "Noel Rosa e os poetas da Vila nas batalhas do Boulevard", de J. Albertino; em

1990 é lançado o livro Noel Rosa - uma biografia, de autoria de João Máximo e Carlos

Didier, em comemoração aos 80 anos de seu nascimento, que se tornou um grande sucesso

editorial; neste mesmo ano (1990), Rogério Sganzerla explora mais uma vez o ídolo e faz o

documentário Isto é Noel, e Ricardo Van Steen produz o curta Com que roupa. No ano 2000,

ocorre uma edição realmente histórica da obra de Noel: Omar Jubran lança uma caixa com 14

cds, com todas as gravações originais de composições de Noel remasterizadas, incluindo

músicas que não haviam sido editadas comercialmente e até algumas transmissões

radiofônicas, além de composições inéditas. São 229 faixas que passaram a divulgar o

universo das obras de Noel mais do que em qualquer outro momento 110. E em 2007, estréia

ainda o primeiro longa-metragem sobre o compositor, Noel - Poeta da Vila, baseado na

biografia de João Máximo e Carlos Didier e dirigido por Ricardo Van Steen, nas salas de

cinema em todo o Brasil. Tudo isso, fora os vários livros focalizando a vida e obra de Noel

Rosa que foram lançados nas últimas décadas 111.

110 Omar Jubran, professor de biologia e colecionador da música brasileira, fez essa coletânea após mais de dez

anos reunindo as primeiras gravações das composições, remasterizando cuidadosamente as faixas e alocando em apoios institucionais os recursos financeiros.

111 Além das obras sobre Noel já citadas, podemos ainda acrescentar: • CALDEIRA, Jorge. Noel Rosa: de costas para o mar. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Coleção Encanto Radical; v.2) • CARVALHO, Castellar de; e ARAUJO, Antonio Martins de. Noel Rosa: Língua e Estilo, Rio de Janeiro: Thex Ed.: Biblioteca da Universidade Estácio de Sá, 1999. • DOMENICO, Guca. O Jovem Noel Rosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Alexandria, 2003. • VASCONCELLOS, Eduardo Alcântara. Noel Rosa para ler e ouvir. São Paulo: Annablume, 2004.

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Em apenas sete anos de produção artística (1929 – 1937), “Noel Rosa deixou uma

obra que o consagrou como um dos maiores nomes da música popular brasileira de todos os

tempos”, na opinião de Sérgio Cabral, que acrescenta:

Noel (...) virou nome de rua, nome de escola e nome de túnel, mereceu vários livros (...), shows e peças teatrais, enredo de escola de samba, foi tema de várias músicas e nunca foi esquecido, transformando-se numa espécie de símbolo não só do samba e de Vila Isabel, mas do próprio Rio de Janeiro 112.

1.2 – De Noel até Chico: a tese da decadência.

A tese da decadência tão apregoada pela Revista de Música Popular nos anos 1950, não

conseguia ver, como já afirmamos, que a música brasileira se mantinha em plena atividade e

divulgação, e que, aliás, era cada vez mais expandida a todo o território nacional e internacional. Além

disso, não era verdade que o samba “tradicional” estava sendo substituído, pois ele ainda estava

bastante presente com temas que caracterizavam o ambiente urbano carioca, como o cotidiano do

trabalho e da velha malandragem, cujo maior representante musical naquele momento era Moreira da

Silva, o Kid Morengueira. Talvez, outras transformações notáveis na capital do país, fossem mais

diretamente responsáveis pela sensação de decadência do que os famigerados estrangeirismos. Alcir

Lenharo nos conta que os lugares da boêmia e do meio artístico carioca nos anos 30 e 40 sofreram

uma trajetória descendente: em 1942 foram fechados prostíbulos e desapropriados prédios “velhos e

insalubres”, e em 1946, o presidente Eurico Gaspar Dutra fechou os cassinos e proibiu o jogo no

Brasil 113. Essas, entre outras interferências na aparência da cidade, como a alteração do bairro da Lapa

e o desmonte do morro de Santo Antônio, entre outros, modificaram os redutos da malandragem,

característica dos anos 30, provocando na população em geral, uma sensação de decadência do próprio

mundo do samba.

O medo de perdermos a cultura aqui construída fez se radicalizarem os discursos a favor de se

preservar a tradição a qualquer custo, especialmente contra os estrangeirismos, a ponto de, em alguns

casos, se formalizarem em leis. A primeira página do jornal O Globo, de 2 de março de 1957, trazia a

manchete: “Ao Teatro Municipal caberá defender o prestígio e a tradição do carnaval carioca”. A

matéria explicava que a Polícia, além de impor a proibição do uso de fantasias que atentassem contra a

moral, como calções de banho, maiôs e biquínis, assim como fantasias que imitassem hábitos

religiosos ou uniformes das forças armadas, queria impedir também que se deturpasse a tradição

112 CABRAL, Sérgio. “O Eterno Jovem”. In: Noel Rosa: Songbook. Vol. 3. Rio de Janeiro: Lumiar, 1991.

(produzido por Almir Chediak). p. 15.

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musical, ameaçada por um novo modismo: “A partir das 12 horas de hoje até as 6 h do dia 6

estarão em pleno vigor as instruções baixadas pela Polícia para o carnaval. O tal discutido

rock’n’roll foi posto fora da lei nos bailes carnavalescos. As orquestras estão proibidas de

executar esse gênero musical” 114.

Porém, na década de 1950, a canção popular brasileira não poderia mesmo ficar imune

aos estilos e novidades que vinham de fora, e esses elementos, mais cedo ou mais tarde, iriam

impor um processo de modernização inevitável.

A reação à modernidade irá se agravar ainda mais com a presença bastante

perturbadora da Bossa Nova, a partir de 1958, com sua opção de renovação estética.

Perturbadora, porque, ao mesmo tempo em que representava uma enorme guinada

modernista, também reivindicava o seu lugar na tradição do samba, acabando por botar muita

lenha no debate e torná-lo ainda mais complexo. Um exemplo das conseqüências se verifica

no I Congresso Nacional do Samba, de 1962, organizado pela Companhia de Defesa do

Folclore Brasileiro, cuja realização tinha a intenção direta de “preservar as características do

samba sem tirar-lhe as perspectivas de modernidade e progresso”. Na introdução do

documento, redigido pelo folclorista Edison Carneiro para esse congresso, lê-se: “Tivemos em

mente assegurar ao samba o direito de continuar como expressão legítima do sentimento de

nossa gente” 115.

Apesar de todo esse esforço em manter a “pureza” dos ritmos brasileiros, com os

especialistas torcendo o nariz para a Bossa Nova, esta se tornaria uma febre nacional e até

mesmo mundial (a “Beautiful Bossa Nova”, título de um LP lançado nos EUA). Resultado:

muitos bons brasileiros não gostaram dessa nossa nova cara. O folclorista Brasílio Itiberê, em

prefácio para um livro de Lúcio Rangel dá uma demonstração do desagrado que esta

provocou entre os mais “puristas”:

Ela (a música popular) foi ferida de morte na sua parte orgânica mais preciosa, atingida no cerne, na medula - isto é - no ritmo. Desaparece o ímpeto dinamogênico do sincopado e, privada de sua vivacidade rítmica, a melodia popular se amolentou, tornou-se invertebrada, perdendo caracteres raciais específicos (...) Há, entretanto,

113 LENHARO, Alcir. Cantores do rádio: A trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio artístico do seu

tempo. Campinas, Editora da Unicamp, 1995. p. 55. 114 O Globo, 2 de março de 1957, manchete e matéria de capa. 115 Edson Carneiro, Carta do samba. Palácio Ernesto, 1962. Apud: WASSERMAN, Clara. “Abre a Cortina do

Passado - A Revista da Música Popular e o pensamento folclorista. (Rio de Janeiro: 1954 – 1956)”. Dissertação de mestrado, UFPR, Curitiba, 2002. p. 76.

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um fato que me consola: é pensar que o folclore é coisa eterna e imperecível. A prova está na vitalidade criadora de alguns remanescentes da velha guarda, a exemplo desse bravo Pixinguinha 116.

Itiberê fazia grande confusão entre a tradição do folclore e a tradição do samba

popular urbano, tornando-os sinônimos. A tradição na qual se insere a obra de Noel, que

depois será preservada em linhas gerais por compositores como Chico Buarque, não tinha

nada a ver com “folclorismo”. Nem mesmo Pixinguinha ou o que se fazia na Casa da Tia

Ciata mantinha esta relação tão direta com o folclore. Trata-se de uma forma de acentuar a

importância do patrimônio “perdido”, dando-lhe responsabilidades que não lhe cabem. “É um

debate enviesado”, confirma Marcos Napolitano, “no qual intelectuais folcloristas

construíam valores ancorados mais numa “escuta ideológica”, como diria Arnaldo Contier 117, do que num exame musicológico ou estético mais profundo da obra dos artistas citados” 118.

As palavras de Itiberê representavam mais uma tentativa de recolocar a tradição

alinhada com um determinado projeto de origem, numa posição completamente livre de

“exagerados modernismos”. Postura que terá em José Ramos Tinhorão, um representante das

convicções mais radicalmente conservadoras. Este crítico, que ocupa um lugar destacado na

historiografia da música brasileira, não só pela importância da sua grande produção

bibliográfica 119, como também pela sua verve polemista, ganhou notoriedade (e também

opositores) ao se guiar pela idéia de que a Bossa Nova representava o momento máximo da

ruptura com as origens, logo, com a autenticidade, construindo verdadeiros manifestos contra

a hegemonia que a Bossa Nova parecia exercer no início da década de 1960. Hegemonia que

se consolidará em torno dos programas de televisão, e não mais do rádio – outra importante

ruptura. Interessante notar que isso se deu justamente em um momento em que a Bossa Nova

buscava nova inspiração na Bahia, com Baden Powell e seus afro-sambas, e no "morro"

(como ocorreu com Carlos Lyra, Nara Leão e Vinicius de Moraes) ou até em Orlando Silva e

nos sambistas antigos (como podemos notar nos álbuns de João Gilberto), ou seja, exatamente

116 ITIBERÊ, Brasílio. In: RANGEL, Lúcio. Sambistas e chorões. Aspectos e figuras da MPB. São Paulo:

Francisco Alves, 1962. p. 8. 117 CONTIER, Arnaldo. Brasil novo. Música nação e modernidade: os anos 20 e 30. Tese de livre docência.

FFLCH-USP, 1988. 118 Marcos Napolitano em depoimento ao autor. Rio de Janeiro, abril de 2007. 119 Entre os livros propriamente historiográficos de José Ramos Tinhorão destacam-se: Samba: um tema em

debate. Rio de Janeiro: Saga, 1966; O samba agora vai: a farsa da música brasileira no exterior. Rio de Janeiro: JCM Editores, 1969. Pequena História da Música Popular. São Paulo: Ática, 1978; Música Popular: do gramofone ao rádio e TV. São Paulo: Ática, 1981.

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quando a Bossa Nova requisitava e confirmava a tradição. De qualquer maneira, a bossa-nova

iria produzir uma real redefinção da tradição permitindo que o canto tivesse a chamada “voz

pequena” de João Gilberto (semelhante a de Noel) e que as letras fossem mais intimistas e

descompromissadas, como em “Desafinado” (Tom Jobim e Newton Mendonça, 1958) e “O

Barquinho” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, que em 1960 teve três gravações

simultâneas: de Maysa, Peri Ribeiro e Paulinho Nogueira, e tornou-se uma das músicas mais

conhecidas e representativas da bossa nova, com várias gravações também no exterior).

Quanto à decadência didaticamente propalada, vejamos essa importante reflexão de Maria

Clara Wasserman:

Nos anos 60, com a ruptura e o deslocamento do lugar social da canção, catalisado pela bossa nova, a relação com a música dos anos 30 e com o passado musical como um todo, transformou-se. O ideal de pureza e tradição que Lúcio Rangel e outros folcloristas tanto perseguiram, deslocou-se para uma perspectiva de modernização musical e cultural do país como um todo. Ainda assim, em plena década de 60, o pensamento “folclorista” construído nos anos 50, ainda será influente, incorporado em parte pela esquerda nacionalista e reforçado sobretudo após o golpe de 1964, como demonstram os espetáculos “Opinião” e “Rosas de Ouro”. (...). Neste projeto, síntese das utopias da época, tradição e modernidade, elite e povo, lazer e consciência social deveriam estar harmonizados num só idioma político e cultural, a começar pelo campo da música popular. Então, o samba da “época de ouro” deixou de ser objeto inerte de um culto à tradição e passou a ser visto como a base musical e ideológica para a formação da moderna música popular brasileira, que passaria a ser designada pelas suas consagradas iniciais maiúsculas: MPB 120.

O que estava sendo considerado pelos críticos como deturpação era na verdade uma

reformulação bastante criativa e convincente. Tanto, que a Bossa Nova é até hoje, em sentido

contrário à condenação que sofreu neste período, um produto de exportação que ainda leva a

marca da brasilidade para todo o mundo. Como o paradigma estava mudando novamente,

Noel estava momentaneamente esquecido, como vimos - ainda que tivesse sido ele, Noel,

quem havia “inventado” ou proposto a chamada “voz pequena” de João Gilberto, mais de 20

anos antes deste.

120 WASSERMAN, Maria Clara. Abre a cortina do passado. Op.cit. p. 137.

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1.3 – Chico: engajado na tradição

“O herdeiro da tradição de Noel Rosa”, bradou um vereador paulista que da tribuna

da Câmara passava o título de cidadão paulistano para Chico Buarque, em 1967 121. Essa

aclamação nos chama a atenção pelo seu significado em relação ao reconhecimento de uma

mesma “qualidade” musical e a permanência de elementos tradicionais. Perguntamos-nos

então, o que faria um vereador paulista considerar uma das mais notáveis qualidades artísticas

de Chico Buarque, a sua semelhança musical com Noel?

Toda a década de 1960, tida hoje em dia como um segundo período de grande

importância para a nossa música (após os anos 1930) em termos de qualidade e criatividade

das produções, assistiu a permanência da crítica que apontava a decadência, muito visível na

rejeição, por parte de uma mesma intelectualidade, à Jovem-Guarda, ao movimento

tropicalista e depois à música brega, que iria inundar as gravadoras, tvs e rádios nos anos

1970. No livro de Nelson Motta, Noites Tropicais: solos, improvisos e memórias musicais,

lançado no ano 2000 122, encontramos a confirmação dos preconceitos e juízos de valor

enraizados na década de 1960 pela idéia constante e já antiga de decadência, em particular a

contraposição entre a música popular “alienada” e a música popular “culta”. Essa dualidade,

segundo Nelson Motta, já estava bem representada desde meados dos anos 60, através de dois

programas de TV: o programa Jovem Guarda (comandado por Wanderléia, Erasmo e Roberto

Carlos) e o programa O Fino da Bossa (apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues). O

primeiro representava o público “manipulável” e jovem (sem tradições) e o segundo o público

“politizado” e consciente das tradições – rixa entre artistas e programas que foi, segundo o

autor, estimulada pela TV Record, interessada em se ver sintonizada com os interesses da

indústria fonográfica.

Contudo, não houve crítica que condenaria a qualidade das canções que disputaram os,

hoje antológicos, Festivais da Canção. Graças principalmente a eles, os anos 1960 ficarão

marcados como um novo período de ouro da música popular, com novos artistas que

121 Nova História da Música Popular Brasileira – Chico Buarque. Fascículos Abril Cultural (acompanha um

LP). São Paulo: Abril Cultural, 2ª edição, 1976. p. 2. 122 MOTTA, Nelson. Noites Tropicais: Solos, Improvisos e Memórias Musicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

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mexeriam bastante com os rumos da velha tradição. Entre os principais, Chico Buarque de

Hollanda.

A TV Excelsior inaugura o extrato dessa nova “era de ouro” com dois festivais: um em

abril de 1965, que teve a vitória de “Arrastão” (Edu Lobo e Vinícius de Moraes, interpretada

por Elis Regina), e outro em junho de 1966, que teve a canção “Porta-estandarte” (de Geraldo

Vandré e Fernando Lona, defendida por Tuca e Airto Moreira) como vencedora. Mas nesse

festival a referência ainda parecia ser a Bossa Nova e o Afro-samba de Baden Powell. As

composições tomam um rumo inesperado a partir do 2º Festival da Canção, agora na TV

Record também realizado em 1966, quando a referência para as composições passou a ser os

festivais anteriores e as músicas passaram a se aproveitar mais do caráter espetacular e

catártico do evento. Venceram, empatadas, “A Banda”, do novato Chico Buarque (que

naquele ano lançou o seu primeiro LP), e “Disparada” de Geraldo Vandré em parceria com

Théo de Barros. Ambas muito ligadas a vários aspectos da tradição.

Esse festival (1966), mais do que um simples marco, representou uma verdadeira

explosão. A música iria se tornar naquele momento uma válvula de escape, cuja pressão

estava sendo produzida pelo clima político que não admitia mais músicas ingênuas e

intimistas. A bossa nova, que durante tanto tempo havia sido sinônimo de modernidade e

sofisticação era agora atropelada pela onda de canções que apresentavam uma densidade

lírica, harmônica e melódica inédita, para não falar do engajamento político de algumas.

Colaborou muito para a repercussão de toda aquela explosão, cabe aqui assinalar, o

barateamento e a sofisticação da nova tecnologia televisiva e fonográfica que finalmente

começava a ser adquirida pela crescente classe média. A vertiginosa ascensão da televisão

nesta década foi equivalente à expansão radiofônica da década de trinta, e como naquela

época, agora aparecia também uma geração de compositores talentosíssimos, que ficariam

conhecidos quase que instantaneamente. A gravação em 33 rotações que permitiu o

surgimento do Long Play (LP) também havia impulsionado o mercado. E, de fato, a safra era

farta e a produção pra lá de notória. No LP do festival de 1966, nem todos os intérpretes

puderam estar presentes, por motivos de contrato com gravadoras. Assim, Jair Rodrigues,

Nara Leão, Roberto Carlos e Elza Soares tiveram de dar lugar a Chico Buarque, Geraldo

Vandré, Paulinho da Viola, Marília Medalha e Maysa! Estava assim escalado um novo time

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para a música popular. O evento tornou-se centro de muitas atenções. Lembra o crítico Zuza

Homem de Mello, engenheiro de som na época do evento de 1966:

Para quem estava no meio, ficou evidente que havia uma grande florada na música brasileira. Não é no festival que a gente começa a perceber isso, muitos daqueles músicos já apresentavam programas na televisão. Aquela final foi um acontecimento nacional, parecia uma final de Copa do Mundo. Lembro de pessoas que me procuravam para conseguir uma entrada, quem conseguia era considerado um sortudo 123.

Zuza Homem de Melo nos lembra aqui que os programas de TV que antecederam os

festivais (como o Fino da Bossa e a Jovem Guarda, que já comentamos) foram fundamentais

para aquela explosão, pois haviam sido laboratórios da nova experiência. Não havia consenso

e nem uma idéia clara sobre o que estava a mudar, mas era certo que a “velha” tradição iria

ser reavaliada de cima a baixo em todas as suas manifestações.

Por tudo isso e também pelo clima político crescentemente opressor, uma expectativa

enorme foi armada para o festival do ano seguinte. O festival de 1967, também na TV Record,

causou verdadeiro furor nacional e premiou algumas das canções que estão presentes hoje em

muitos livros escolares: “Ponteio” (Edu Lobo e Capinam), “Domingo no Parque” (Gilberto

Gil), “Roda Viva” (Chico Buarque) e “Alegria, Alegria” (Caetano Veloso). “Ponteio”, numa

melodia contagiante, remetia a uma série de imagens cheias de brasilidade, para falar de um

violeiro que não quer se calar: “jogaram a viola no mundo, mas fui lá no fundo buscar”;

“Domingo no Parque”, era como uma crônica de Nelson Rodrigues, também muito brasileira:

”Olha a faca!”, com ritmo e melodia igualmente acelerados e contagiantes. “Roda Viva”, um

samba que fazia o seu protesto contra a opressão e a redução do homem a uma engrenagem ou

máquina (tema herdado da época de Noel); e “Alegria, Alegria”, que com suas inovações

melódicas e fundamental apoio do ousado arranjo de Rogério Duprat, com orquestra e

guitarras elétricas, causava impacto, sobretudo pela inovação da forma e pelo conteúdo da

letra, em busca do prazer individual libertário (“sem lenço, sem documento, nada nos bolsos

ou nas mãos, eu quero seguir vivendo”). “Alegria Alegria” despontava ainda pela

modernidade, por uma linguagem que poderíamos hoje chamar de globalizada e que ao

mesmo tempo evocava uma raiz brasileira modernista, próxima à Tarsila do Amaral e Oswald

de Andrade, pela realidade fragmentada que apresentavam. Todas essas músicas, que

123 Depoimento de Zuza Homem de Mello dado à Revista dos Bancários, publicação do Sindicato dos Bancários

do Rio de Janeiro, edição nº. 110 de maio de 2006. Disponível no endereço eletrônico: http://www.spbancarios.com.br/rdbmateria.asp?c=541.

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apresentavam letras bastante elaboradas, se ligavam ainda a um movimento de escala

planetária da “nova juventude”, que teve seu ápice nas manifestações estudantis de 1968, no

Rio, São Paulo, São Francisco, Paris e muitas outras grandes cidades do mundo, e nos

movimentos e shows hippies, que apregoavam a liberdade em quase todos os sentidos e

padronizavam novas linguagens e costumes, como por exemplo o uso da calça jeans. O

Festival assumiu ar de grande expressão da contribuição brasileira para um movimento que

queria mudar o mundo. E novamente erguemos nossas cabeças e nos orgulhamos do nosso

mérito artístico! Havia mesmo sentido na idéia de uma “nova era de ouro”, principalmente

porque a bagagem estética da primeira era de ouro estava toda ali, relida, revalorizada.

Com essa percepção concorda Marcos Napolitano, para quem “novos horizontes, para

além da ‘folclorização’ da poesia em música popular estavam sendo avidamente

perseguidos”. É ele quem nos informa que, ainda em 1967, José Carlos Capinam, autor da

letra de “Ponteio”, “numa posição interessante acerca da tensão “impasse”/ “evolução”,

reconhecia que a música precisava ter ‘raiz’”, mas fazia uma ressalva:

Tradição e folclore são termos que precisam ser esclarecidos. O folclore que não corresponde às novas formas de vida precisa ser abandonado, principalmente se não servir à elaboração de formas contemporâneas. Há no folclore e no tradicional um grande material gasto, sem vida, viciado, que não corresponde aos novos hábitos, preocupações e aspirações nacionais de um mundo como o nosso, subdesenvolvido, mas com uma tarefa imediata - inclusive revolucionária - que é desenvolver-se 124.

Muita coisa estava para ser transformada, porém resistiria nestes transformadores, que

reconheciam o material já “viciado” da tradição, a idéia de não abrir mão, em suas obras, de

uma “raiz” identificável na brasilidade, ou seja, que expressasse com os códigos já

estabelecidos pela tradição, os novos anseios da nação. Assim, ali se engendrava o

amadurecimento da música popular que parecia que iria abandonar o riso inconseqüente do

humor brasileiro, das marchinhas e chanchadas e até da Bossa Nova, para se impor a uma

atitude de compromisso e responsabilidade de “conscientização”, que ia muito além da visão

política esquerdista. Tratava-se de uma conscientização da cultura do homem brasileiro, da

sua arte, que falava do seu trabalho (muito cantado por Gilberto Gil), de suas possibilidades

de liberdade e da força da expressão coletiva, na catarse de uma explosão que extravasou o

auditório do festival e contagiou novamente todo o país.

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O resultado geral do III Festival de Música Popular Brasileira da Record, de 1967

superou todas as expectativas. Os que queriam acreditar numa ruptura mais profunda na

“linha evolutiva” elegeram as obras de Gil e Caetano (“Domingo no Parque” e “Alegria,

Alegria”) como os novos paradigmas de inovação na música brasileira. Os que se

identificavam, por outro lado, como uma linha mais mantenedora da tradição e que cumpria

ao mesmo tempo com os anseios políticos do momento elegeram Chico e Capinam. De

qualquer jeito, como disse Napolitano: “a linha evolutiva deixava de ser uma percepção e se

materializava em obras concretas” 125:

O Festival de MPB de 1967 foi um dos momentos cruciais na formulação do gosto

da música popular e representou, historicamente, o início do processo final de

institucionalização da MPB, consolidado em 1968 126.

Notava-se tanta diferença nos novos caminhos “evolutivos” da nossa música popular,

que ela agora passava a se chamar “MPB”, como que para marcar a ruptura que os festivais

estavam impondo. Porém, se todos estavam de acordo com a necessidade das mudanças, nem

todos as enxergavam no conjunto das músicas ali apresentadas. Augusto de Campos, por

exemplo, citado por Napolitano, escreve num jornal que “o passo a frente (na linha evolutiva)

teria sido dado por Caetano e Gil”, e nem tanto pela “Banda” e “Disparara” que “passariam

e deixariam tudo no seu lugar”. Numa longa comparação entre “Alegria, Alegria” e

“Desafinado”, grande representante da já antiga bossa nova, o poeta faz, de roldão, uma

avaliação não muito positiva para “A Banda”:

Furando a maré redundante de ‘violas’ e ‘marias’ a letra de Alegria traz o imprevisto da realidade urbana, múltipla e fragmentária, captada isomorficamente, através de uma linguagem nova, também fragmentada (...), descreve o caminho inverso de ‘A Banda’: Das duas marchas esta mergulha no passado, na busca evocativa das purezas das bandinhas e dos coretos da infância. ‘Alegria’ ao

124 Depoimento de José Carlos Capinam para o Jornal do Brasil, 22/10/1067. Apud: NAPOLITANO, Marcos.

“Seguindo a Canção”: engajamento político e Indústria Cultural na MPB (1959- 1969). São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2001. p.208.

125 Marcos Napolitano acrescenta: “Mas é importante ter uma perspectiva histórica destas rupturas. Conforme podemos perceber nas citações acima, os critérios de apreciação e julgamento estavam confusos, redefinindo-se com grande velocidade”. NAPOLITANO, Marcos. “O tropicalismo no contexto dos festivais”. Texto originalmente apresentado no Seminário "Tropicalismo 30 anos: a explosão e seus estilhaços", Depto. Teoria Literária, Universidade de Brasília, outubro de 1997.

126 NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a Canção”: engajamento político e Indústria Cultural na MPB (1959- 1969). São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2001. ps. 209-210.

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contrário, se encharca de presente, se envolve diretamente no dia-a-dia da comunicação moderna, urbana, do Brasil e do mundo 127.

Vemos aí o reinício do debate sobre o paradigma de criação “nacional popular”, e

sobre o conceito vigente de MPB entre os defensores da “linha evolutiva”, na qual o

tropicalismo que havia deixado sua síntese no “álbum-manifesto” lançado em agosto de 1968,

Panis et Circensis, representaria a última vanguarda musical significativa.

Novas opções estéticas trazidas pelo tropicalismo, o engajamento político cada vez

mais explícito e o novo tratamento poético refinado pareciam ter se tornado os novos

elementos a comporem uma “nova” tradição. O público se inflamava com a nova capacidade

de se sentir representado por aquelas novas concepções de modernidade, a ponto de não

tolerar qualquer canção concorrente que não trouxesse muito evidente as possibilidades dessa

identificação. Neste mesmo festival (1967), o público simplesmente se negou a ouvir o

compositor Sérgio Ricardo, que não conseguiu cantar “Beto Bom de Bola” na final do

concurso, sob as vaias e os protestos da platéia, talvez porque se parecia muito com o estilo já

considerado retrô da bossa nova. O compositor e bom cantor Sérgio Ricardo reagiu e gritou:

“Vocês são uns animais!”, e para completar, quebrou o violão no banco e o arremessou à

platéia. Sua atitude foi a de devolver a agressão ao público, que se mostrou intolerante com os

deslizes de tonalidade e os problemas com o equipamento de som no início da música, e que

já havia, na verdade, escolhido de antemão os seus preferidos. Exigia-se uma outra roupa para

a tradição e aquele samba de letra intrincada e harmonias previsíveis não mais correspondia a

ela. Não para aquele palco e o que ele estava a representar. Mas a tradição em si, apesar de

tudo, não estava sendo negada, ao contrário, estava muito presente até mesmo nas obras mais

esteticamente “revolucionárias”, com nova dose de autenticidade, e preservando algumas das

mesmas “brasilidades”: “Ponteio!”, “êh! José”, “Roda mundo”, “Viva a banda-da-da!“,

porém com mais inventividade e ousadia.

Se 1967 havia sido um ano explosivo em vários sentidos, 1968 quase seria

hecatômbico, a ponto de os militares investirem pesado contra a onda de transformações e de

manifestações contundentes, com o Ato Institucional nº. 5 (AI-5) no final do ano. No III

Festival Internacional da Canção (FIC), organizado pela TV Globo (1968), o clima era de

127 CAMPOS, A. “A explosão de Alegria Alegria” IN: O balanço da Bossa e outras bossas, São Paulo:

Perspectiva, 1993 (1° ed. 1968), p.153 (Publicado originalmente n’OESP, 25/11/1967). Apud: NAPOLITANO, Op. cit. p.215.

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muito nervosismo e agitação – tanto que a determinado momento o auditório foi ocupado por

tropas do exército aumentando muito a tensão. “Proibido Proibir”, de Caetano Veloso, foi

desconsiderada pela platéia e impedida na sua realização pelas vaias constantes, o que

provocou no compositor e intérprete uma reação já ensaiada: um poema recitado aos berros

como um contra-protesto, pois ele “adivinhara” que aquela sua música iria extrapolar o que o

público realmente queria. O júri escolheu “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, muito

mais de acordo com a tradição da brasilidade, deixando “Pra não Dizer que não Falei das

Flores” (ou “Caminhando”), de Geraldo Vandré, a preferida do público, em segundo lugar. O

clima de tensão chegou então ao auge quando o apelo político se fez mais urgente e o público

que lotava o Maracanãzinho vaiou compulsivamente o resultado, considerando a música de

Vandré mais apropriada (e politizada) para o momento. A solução conciliatória partiria de

Chico Buarque ao propor ao júri o empate entre as músicas e a divisão do primeiro lugar.

Prontamente aceita a sugestão, sua atitude certamente evitou manifestações que poderiam

degenerar em violência.

Antes de analisarmos o papel desempenhado por Chico Buarque em toda esta

efervescência e seu engajamento na tradição, cabe antes uma descrição do rápido

desaparecimento destes palcos tão ricos, que foram os Festivais da Canção. Depois de 1967,

a politização dos próximos festivais tornara-se mais do que evidente e inevitável - ao que o

governo reagiu com a repressão do AI-5 no final de 1968. A partir daí, os Festivais foram

rapidamente deixando de representar o palco preferencial do nascimento da nova tradição.

Herdaríamos daí um sentimento de “gestação interrompida” que muito colaborou também

para a nova onda dos que apostavam na teoria da constante decadência.

A TV Record realizou os seus festivais, também em 1968 (“São, São Paulo, Meu

Amor”, de Tom Zé, foi a música vencedora) e em 1969 (“Sinal Fechado”, de Paulinho da

Viola), porém, muito cerceados pela censura, os festivais estavam já condenados a não mais

contribuírem de maneira incisiva para a formação de novas roupagens da idéia de tradição.

Um exemplo: Em 1970, “BR-3”, música de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, interpretada por

Tony Tornado e Trio Ternura apresentava uma bela melodia, que não permitia entender muito

bem que a letra falava apenas de morte e desesperança, mas que contou com o carisma black-

power do cantor para levar o primeiro prêmio. Neste festival, a tradição parecia

propositalmente deslocada, deixada de lado, em protesto contra a repressão.

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Além dos famosos exílios de alguns protagonistas, colaborou para o esvaziamento dos

festivais, um golpe mortal desferido pelos próprios compositores: Em 1971, vários artistas,

entre os quais, Chico Buarque, Edu Lobo, Paulinho da Viola e Tom Jobim, inscreveram

composições no 6º Festival Internacional da Canção (FIC), organizado pela TV Globo, mas as

retiraram na última hora para protestar contra a censura. A música inscrita por Chico, “Que

Horas São?”, nem existia. O festival foi quase um total fiasco. A TV Globo iria se ressentir do

golpe e se desestimularia em organizar novos festivais. A cantora Evinha foi a vencedora com

“Kyrie”, de Paulinho Soares e Marcelo Silva, em grande parte por causa da sua voz limpa e

suave. A tradição estava em outra parte, nos discos lançados por estes e outros muitos

intérpretes que não se deixaram abater pela perda do principal palco da MPB. Apesar de

algumas boas composições, os festivais pareciam derrotados pela ausência das estrelas e pelo

sufoco da liberdade - logo essa característica tão propagandeada como parte fundamental da

nossa identidade. A Globo manteve os FICs até 1972, quando a vencedora foi “Fio

Maravilha”, de Jorge Ben (hoje, Jorge Benjor), defendida por Maria Alcina, mas já era tarde

para a continuidade da segunda época de ouro.

Desta forma, sem a presença física de alguns dos principais talentos, se estabelece na

música popular, no início da década de 1970, o “reino do Brega”, vindo a reforçar

sobremaneira, mesmo sem nenhuma intenção, o sentimento de decadência entre os

especialistas 128. Preconceitos a parte, a verdade é que, em termos musicais, o que se constata

é que ao final da década de 1970, a música popular brasileira, estava totalmente dirigida pelos

meios de comunicação de massa. Entravamos definitivamente nos ditames da indústria

cultural, caracterizada pelo consumo de sucessos efêmeros que tinham como refrão frases

ontológicas do dito mau gosto: “ passei a noite procurando tu” (1970) 129, “eu vô batê pá tu

batê pá tu” (1974) 130, “ele tá de olho é na butique dela” (1975) 131 ou “se te agarro com outro

te mato, te mando algumas flores e depois escapo” (1976) 132; época também em que se nasce

128 Para os pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, em A Canção no Tempo, o VII FIC (realizado

em 1972) foi o último do ciclo dos festivais, encerrando assim uma fase auspiciosa da MPB, uma “última época de ouro”. O ano de 1973, com o lançamento do grupo Secos e Molhados, corresponderia, segundo eles ao último “suspiro” de grande criatividade e qualidade estética desse período. SEVERIANO, Jairo, e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo - 85 anos de músicas brasileiras - 1901/1985, São Paulo: Editora 34, 1997/98, 2 vol.

129 “Procurando Tu”, de Antonio Barros e J. Luna, gravado pelo Trio Nordestino, 1970. 130 “Vou Batê Pá Tú”, de Arnaud Rodrigues e Orlandivo, Baiano e os Novos Caetanos, 1974. 131 “Severina Xique-xique”,de Genival Lacerda, com o próprio, 1975. 132 “Se Te Agarro com Outro Te Mat”o, versão de Jean Pierre do sucesso espanhol, “Si te agarro con outro te

mato”, de Cacho Castaña, com Sidney Magal, 1976.

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a disco music (As Frenéticas, Lady Zu, Harmony Cats, entre outros, a partir de 1977) e o rock

nacional (Rita Lee, The Fevers, Renato e Seus Blue Caps, etc). Isso tudo em meio a uma

centena de cantores e compositores das mais variadas tendências estéticas: Fábio Jr., Ângela

Ro Ro, Zizi Possi, Djavan, Genival Lacerda, Elba Ramalho, Chitãozinho e Xororó, Waldick

Soriano, Simone, Fagner, etc. Entra-se, assim, em um período ao mesmo tempo muito

diversificado e crítico para a MPB, sigla com a qual se pretendeu então abarcar quase todo

esse universo. A tradição se fragmentava e se perdia de seus trilhos originais. Mas não

desaparecia.

Ainda que a produção musical estivesse longe de ser totalmente inaproveitável, a

impressão que ficou da década de 70, sobretudo a partir da segunda metade, foi de

desencanto, bem expresso no desabafo de Belchior, literalmente gritado por Elis Regina:

“minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e

vivemos, ainda somos os mesmos e vivemos, como nossos pais” 133. Nesse momento, a classe

musical se dividia, no imaginário de boa parte da intelectualidade e da classe média em geral,

entre os artistas que se somariam ao antigo panteão da década de 30 e que ocupavam o espaço

nobre das rádios FM, representando a sobrevivência de antigos padrões (entre os quais, Chico

Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia,

Djavan, Fagner etc.), e aqueles que seriam esquecidos, pois ocupando meios eminentemente

populares, como a rádio AM, se ligavam à necessidade de alegria mais imediata – a mesma

inconseqüente alegria do carnaval - necessidade que naquele momento era entendida como

uma faceta da coisa brega: de qualidade duvidosa.

Vejamos um caso curioso da relação entre esses dois mundos: Em 1973, o compositor

Caetano Veloso, após ter sido literalmente rechaçado com “Proibido Proibir” no Festival de

1968 e muito pouco compreendido no programa da TV Globo, Tropicália, do mesmo ano,

invertera as expectativas, e agora, já no auge de sua carreira tornava-se um autêntico guru

daquela geração. Porém, na qualidade de mestre que agora lhe emprestavam, esperava-se

também dele a condenação ao brega. Porém, quando o compositor de “Qualquer Coisa”

chamou ao palco do show Phono 73 134, o seu convidado, o cantor Odair José (tido como

133 “Como nossos pais”, Belchior (compositor). LP Falso Brilhante, Elis Regina. Phonogram, 1976. 134 Phono 73 foi um festival realizado no Palácio de Convenções do Anhembi de São Paulo, entre 11 e 13 de

maio de 1973, com todo o elenco da Phonogram, hoje Universal. A multinacional tinha quase todos os grandes nomes da dita MPB e resolveu reuni-los em um grande evento de marketing com a presença de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, entre outros.

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notório compositor brega) para participar da sua apresentação, teve novamente que ouvir uma

sonora vaia ensurdecendo o teatro, fruto da intolerância do público presente, que execrava o

que parecia ser a antítese do próprio Caetano. Porém, sob um gesto de comando do guru, o

público ficou em silêncio para ouvir, nas vozes de ambos, a canção “Pare de Tomar da Pílula”,

do compositor e intérprete constrangido. As vaias do início viraram aplausos quando Caetano

enfatizou um verso da música: "Não me importa o que os outros vão pensar". No final, a

platéia aplaudiu de pé: Quando sancionada ou “relida” por uma autoridade a qualidade do que

antes era brega passa a ser imediatamente reconhecida. Isto nos mostra quão tênue sempre foi

a linha divisória entre o que merece ou não ser cultuado nesse tipo de julgamento. Ao terminar

a execução daquela música que pareceu mais interessante na voz do compositor baiano, este

proferiu seu próprio julgamento que ia de encontro ao preconceito evidenciado, invertendo

totalmente a sua polaridade: “Nada mais Z do que um público classe A” 135, desta vez foi a

platéia que ficou constrangida.

Já Chico Buarque, com fama de bom moço desde o início da sua carreira, conseguiu

reconhecimento crítico imediato, como atesta seu depoimento para o MIS, aos 22 anos de

idade, adquirindo o caráter de “unanimidade nacional” precocemente outorgado pela crítica.

Ao lado desse reconhecimento, o compositor também será muito lembrado como aquele que

mais manteve intactas as linhas gerais da tradição criada por Noel.

Além da genialidade, o papel que Chico Buarque desempenhou nos anos 1960/70,

para a corrente crítica e para a opinião pública mais nacionalista e ainda herdeira de valores

culturais ligados ao nacional-popular, ameaçados pela internacionalização pop, foi o de ter

preservado um patrimônio ameaçado, e estava agradecida por isto, parte importante da

sociedade nacional - daí a homenagem na Câmara Municipal de São Paulo ao insigne

compositor. Mais uma vez, é Marcos Napolitano, quem lança luzes sobre este

reconhecimento:

A recepção da obra de Chico, pela sua forma e qualidade intrínsecas, possibilitou a superação momentânea dos dilemas colocados na cena musical brasileira dos anos 60 pela modernização bossanovista e pelo pop (num primeiro momento, representado pela Jovem Guarda e depois, num grau mais sofisticado, pelo Tropicalismo). Enfatizo que este processo foi independente das vontades e dos projetos autorais do próprio Chico, bastante aberto à Bossa Nova. Trata-se mais

135 ARAÚJO, Paulo César. Eu não sou cachorro não. Música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro:

Record, 2002. p. 204.

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de uma construção da imprensa e da crítica nacionalista, ancorada no reconhecimento popular da sua obra 136.

Os interesses da construção da imprensa e da crítica especializada em relação à

manutenção da tradição em Chico Buarque explicam em parte a ligação imediata e muitas

vezes pouco aprofundada entre Noel (que não era referência central para a Bossa Nova) e

Chico. Dois marcos do samba urbano, de épocas distintas, que pareciam colocar a tradição em

um mesmo lugar, ou num lugar único de autenticidade, que sem negar aspectos da

modernidade, sobretudo de ordem temática, davam o sentido de unidade necessária para a

formulação de um sentimento popular nacionalista, ancorado na história da sua construção. A

propaganda da decadência iminente (que foi constante na história da música popular

brasileira), ajuda a entender a excitação em torno da obra de Chico: o problema para os

nacionalistas não era apenas a decadência da cena musical nos anos 1960/ 1970, mas também

o “desvio” da tradição nacional-popular. Enquanto uma infinidade de novos sambistas

alterava algumas estruturas básicas do samba (o que levou Paulinho da Viola a pedir: “não me

altere o samba tanto assim” 137), velhos bambas atestavam em seus depoimentos a

continuidade da tradição através de Chico Buarque, como fez Ismael Silva: “Chico é samba.

É nosso samba (...) Cada um tem seu estilo, mas o que Chico faz não deixa de ser samba, e

por isso é bem aceito” 138.

As ligações de Chico Buarque com o passado (musical, literário e onírico) se tornaram

evidentes também para lingüistas, literatos e musicólogos especialistas em música popular

brasileira. Charles Perrone, por exemplo, depois de discorrer sobre a importância equivalente

de Chico e de Caetano junto ao público brasileiro dos anos 1970/ 80, marca a diferença do

significado de suas obras com a constatação de que Chico “representa o passado e o presente,

enquanto Caetano, o presente e o futuro” 139. O próprio Caetano, segundo Perrone e seus

colegas co-autores deste artigo, reconhece este dado, caracterizando o colega desta maneira:

“Chico anda para a frente arrastando a tradição” 140. Tradição que pode ser entendida, como

o fazem estes autores, como ligada a um sentimento de filiação não só a uma estética, mas

também a uma ética mais antiga que atual:

136 Marcos Napolitano, em depoimento prestado ao autor em julho de 2007. 137 Verso de “Argumento”, Paulinho da Viola. LP Paulinho de Viola (Amor a natureza), EMI, 1975. 138 Depoimento de Ismael Silva. In: Nova História da Música Popular Brasileira – Chico Buarque. Fascículos

Abril Cultural (acompanha um LP). São Paulo: Abril Cultural, 2ª edição, 1976. p.1 139 PERRONE, Charles. & GINWAY, M. Elizabeth. & TARTARI, Ataíde. “Chico sob a ótica internacional”. In:

FERNANDES, Rinaldo (org). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond/ Fundação Biblioteca Nacional, 2004. pp. 211 – 227. p. 219.

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Os impulsos fundamentais do fazer musical de Chico poderiam ser compreendidos como afetivos e éticos; ele foi a consciência de uma geração. Caetano e seu colega Gil provocam, essencialmente, a consciência da mutabilidade material, do papel ritual do som, da necessidade da arte 141.

A preservação das linhas gerais da tradição, enquanto patrimônio estético da arte

popular eminentemente brasileira, já justificaria por si só o interesse sobre Chico Buarque,

porém, como revelou Marcelo Ridenti, o engajamento da produção buarquiana à tradição ia

além da preocupação com a manutenção da brasilidade do ponto de vista estético, para

apresentar-se também “romântica e revolucionária”, em harmonia, portanto, com o clima

agitado dos anos 1960 142. Partindo das reflexões de Raymond Williams sobre as "estruturas

de sentimento" 143, Ridenti nos oferece “uma possibilidade de aproximação teórica para

tratar, especialmente no que se refere às artes, do tema do surgimento de um imaginário

crítico nos meios artísticos e intelectuais brasileiros na década de 1960” 144. O autor explica

este termo repetindo o que disse sobre ele Maria Elisa Cevasco:

O termo foi cunhado por Williams para descrever como nossas práticas sociais e hábitos mentais se coordenam com as formas de produção e de organização socioeconômica que as estruturam em termos do sentido que consignamos à experiência do vivido. (...) trata-se de descrever a presença de elementos comuns a várias obras de arte do mesmo período histórico que não podem ser descritos apenas formalmente, ou parafraseados como afirmativas sobre o mundo: a estrutura de sentimento é a articulação de uma resposta a mudanças determinadas na organização social 145.

Para os artistas, nem sempre há a percepção de que suas obras fazem parte de uma

estrutura de sentimento específica, sendo necessária a passagem do tempo para consolidá-la.

Nas palavras de Williams: “(...) quando essa estrutura de sentimento tiver sido absorvida, são

as conexões, as correspondências, e até mesmo as semelhanças de época, que mais saltam à

vista. O que era então uma estrutura vivida, é agora uma estrutura registrada, que pode ser

examinada, identificada e até generalizada” 146.

140 Caetano Veloso apud: PERRONE, C. op. cit. p. 219. 141 PERRONE, C. et alii. “Chico sob a ótica internacional”op.cit, 2004. p. 220. 142 RIDENTI, Marcelo. “Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960”, in: Tempo Social, revista de sociologia da

USP, v. 17, n. 1. Junho, 2005. pp. 81-110. 143 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 144 RIDENTI, M. op. cit. p. 81. 145 CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001, pp. 97 e 153. Apud

RIDENTI, op. cit. p. 83. 146 WILLIAMS, Raymond. Drama from Ibsen to Brecht. Londres: The Hogarth Press, 1987. pp. 18-19. Apud

RIDENTI, op. cit. p. 83.

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A hipótese colocada por Ridenti desde o seu livro Em busca do povo brasileiro, de

2000 147, é a de que o florescimento cultural e político dos anos de 1960 e início dos de 1970

na sociedade brasileira pode ser caracterizado como correspondente à estrutura de sentimento

romântico-revolucionário, ali nascente, que exprimiu a vontade de transformação, a

necessidade de mudar a História (como propunha Che Guevara), para construir a nova

comunidade, o “homem novo”.

Na visão de Ridenti, Chico Buarque, assim como outros compositores engajados na

proposta revolucionária, estaria propondo um modelo para esse homem novo, buscado

paradoxalmente, no passado, na idealização de um autêntico homem do povo, com raízes

rurais, do "interior do Brasil", ou raízes urbanas dos subúrbios, supostamente não

contaminados ainda pela modernidade urbana capitalista. Semelhante aproximação é

verificável também nas canções de compositores latino-americanos do mesmo período, como

Victor Jara e Violeta Parra, por exemplo. A identidade nacional (e política) do povo fugia

desta forma a submissão ao fetichismo da mercadoria que perpetuava a desigualdade. Nesta

idealização, segundo Ridenti, buscava-se ao mesmo tempo recuperar as raízes populares

nacionais e romper com o subdesenvolvimento,

De fato, a formulação dessa estrutura nos ajuda aqui a compreender as ligações com

projetos políticos que transformaram a defesa da tradição em foco de resistência ás injustiças

do capitalismo. Estaria aí também a adjetivação “romântica” para a estrutura de sentimento da

brasilidade revolucionária, advinda do "romantismo", tal como formulado por Löwy e Sayre

(1995) 148. Para estes autores, o romantismo não representaria apenas a corrente artística

nascida na Europa no século XVIII, mas, além disso, uma visão de mundo mais ampla, "uma

resposta a essa transformação mais lenta e profunda - de ordem econômica e social - que é o

advento do capitalismo", e que, segundo eles, se desenvolve em todas as partes do mundo até

nossos dias. Nesse caso, comentam os autores, "a lembrança do passado serve como arma

para lutar pelo futuro" 149. Esta reflexão nos dá um sentido político claro para a existência e a

luta pela sobrevivência da nossa conhecida tradição. Não se trata apenas, a questão da

147 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de

Janeiro: Record, 2000. 148 LÖWY, Michel & SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade.

Petrópolis: Vozes, 1995. pp. 33-36. Apud: RIDENTI, op. cit. p.90. 149 LÖWY, Michel & SAYRE, Robert. Op. cit. p. 44

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tradição, de uma resistência cultural, mas também de uma arma de conscientização, logo

adotada pela esquerda brasileira e muito adequada no combate à ditadura militar.

Há que se observar, contudo, ainda dentro das reflexões de Ridenti, que a estrutura de

sentimento da brasilidade revolucionária havia nascido antes do combate à ditadura, forjada

no período democrático entre 1946 e 1964, especialmente nos governos de Juscelino e João

Goulart, quando diversos artistas e intelectuais acreditavam fazer parte de uma revolução

brasileira em andamento: A arquitetura de Brasília por Oscar Niemeyer (que por acaso era

comunista); filmes como “O grande momento”, dirigido por Roberto Santos em 1957; o filme

“Cinco vezes favela”, dirigido por jovens cineastas, entre eles Carlos Diegues, Leon Hirzman

e Joaquim Pedro de Andrade em 1961; “Assalto ao trem pagador”, de Roberto Faria, em

1962; “O pagador de promessas”, de Anselmo Duarte em 1962, baseado na peça homônima

de Dias Gomes, e premiado em Cannes em 1963; os filmes rodados em 1963 e exibidos já

depois do golpe: “Vidas secas”, de Nelson Pereira dos Santos, “Deus e o Diabo na terra do

sol”, de Glauber Rocha e “Os fuzis”, de Ruy Guerra (trilogia clássica do Cinema Novo); e

ainda outros, como “A hora e a vez de Augusto Matraga”, dirigido em 1965 por Roberto

Santos, com base no conto de Guimarães Rosa; as peças de Gianfrancesco Guarnieri, Augusto

Boal, Francisco de Assis, Oduvaldo Vianna Filho (o Vianinha) e Dias Gomes; as canções de

Carlos Lyra e Sérgio Ricardo e todo o movimento cultural dos Centros Populares de Cultura

(CPCs) da União Nacional dos Estudantes; ou ainda a edição dos três livros da coleção Violão

de rua, cujo poeta mais destacado foi Ferreira Gullar 150. São todos exemplos expressivos da

estrutura de sentimento romântica e revolucionária, citados por Ridenti e na qual não fica

difícil situar também algumas das canções de Edu Lobo, Geraldo Vandré, cuja carga política

já foi aqui observada e também Chico Buarque.

É claro que a decepção ou a quebra de expectativa que veio com o golpe de 1964 (que

aconteceu sem resistência) foi avassaladora para os arautos da revolução. Em depoimento de

1999, Chico Buarque se lembra: “Aquele Brasil foi cortado evidentemente em 64. Além da

tortura, de todos os horrores de que eu poderia falar, houve um emburrecimento do país. A

perspectiva do país foi dissipada pelo golpe” 151.

150 FELIX, Moacyr (org.). Violão de rua: poemas para a liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vols. I

e II, 1962. E FELIX, Moacyr (org). Violão de rua: poemas para a liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vol. III, 1963.

151 BUARQUE, Chico. Entrevista a Marcos Augusto Gonçalves e Fernando de Barros e Silva. Folha de São Paulo, Caderno 4, 18 de março de 1999. p. 8.

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Desta forma fica inevitável para nós a associação entre as propostas revolucionárias

desta arte engajada e a manutenção da brasilidade carregada pela tradição. O tema invariável

das obras citadas é a evocação da liberdade no sentido da utopia romântica do povo-nação.

Revelam, estes artistas, a solidariedade para com os desvalidos e denunciam as condições de

vida subumanas nas grandes cidades e principalmente no campo. Os retirantes nordestinos são

especialmente enfocados. A questão do latifúndio e da reforma agrária também é recorrente,

assim como a conclamação à revolução, em comunhão com as lutas dos povos da América

Latina e do Terceiro Mundo. Tratava-se da possibilidade, enfim, de se construir naquele

momento o "país do futuro", alicerçado nas tradições do passado.

Podemos aventar, ao estabelecer as ligações entre Noel e Chico, que a utopia da

brasilidade revolucionária de Chico buscava suas raízes na ideologia das representações da

mestiçagem na constituição da brasilidade de Noel (ideologia que era muito cara também a

várias personalidades da década de 1930, como Gilberto Freyre). Os intelectuais e artistas

engajados na estrutura revolucionária entendiam que na década de 1960, o Brasil não havia

ainda alcançado a integração entre as raças, nem a felicidade do povo projetadas na estrutura

de identidade cultural dos anos 1930, impedido como estava pela existência do latifúndio e

pela força do imperialismo e do capitalismo. Por isso, cabia a eles reconduzir o projeto

original retomando a tradição, para direcioná-la a um futuro utópico.

Fica possível, sob esta estrutura de sentimento romântico/ revolucionário, entender a

comoção gerada pelas canções engajadas nos Festivais da Canção e também perceber o

quanto os compositores da Jovem Guarda e mais tarde da música brega nada tinham a ver

com a estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária 152. O mesmo não pode ser dito,

no entanto, de todos os representantes da bossa nova: além dos já citados Carlos Lyra e Sérgio

Ricardo, Nara Leão, Tom Jobim e Vinícius de Moraes (dos versos de 1963: "quando derem

vez ao morro toda cidade vai cantar" 153), também se encaixaram, em algum momento de

152 Marcos Napolitano nos lembra que a Jovem Guarda bem que tentou ocupar a cena dos festivais com supostas

tentativas de canções engajadas, como a participação de Roberto Carlos cantando “Maria, carnaval e cinzas”, sobre uma mulher favelada que gostava de samba, ou ainda Ronnie Von com “Minha gente” e Erasmo Carlos com “Capoeirada” – com temas que pareciam correr atrás da tradição. NAPOLITANO, M. “A canção engajada nos anos 60”. In: DUARTE, Paulo Sérgio & NAVES, Santuza Cambraia, Do Samba-canção à Tropicália. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ FAPERJ, 2003. p.131.

153 “O morro não tem vez”, samba composto por Tom Jobim e Vinicius de Moraes. LP Antônio Carlos Jobim, the composer plays. Verve / Elenco, 1963. Produzido por Creed Taylor e Aloysio de Oliveira. Gravado nos dias 9 e 10 de maio de 1963, em Nova York. Remasterizado para o formato CD em 1985 pela mesma gravadora.

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suas trajetórias, à estrutura de sentimento romântico e revolucionário. Já o tropicalismo, na

avaliação de Marcelo Ridenti, teria sido talvez o derradeiro constituinte da estrutura de

sentimento da brasilidade revolucionária ao mesmo tempo em que anunciava seu esgotamento

e sua superação, por isso com um projeto dúbio: entrar em sintonia com a produção musical

internacional e revalorizar as tradições populares do "Brasil profundo e diverso", estas

esquecidas ou até negadas pela canção engajada. Ou seja, o tropicalismo fornecia uma outra

versão para a brasilidade nacional-popular que negava a solução política da esquerda e

recuperava o que esta considerava representante arcaico do passado colonial ou da alienação.

De qualquer maneira, depois da derrota representada pelo AI-5, em 1968, e pela

década de 1970 a dentro, a busca romântica da identidade nacional do brasileiro permaneceria

com outras características desse romantismo que foi deixando de ser revolucionário, mas que

conservava de outras formas a defesa da brasilidade. No final da década de 1980, a sociedade

havia se modernizado e urbanizado ainda mais, o nacionalismo terceiro-mundista já não

existia e as propostas socialistas estavam desacreditadas. Já não cabia nas obras artísticas, a

brasilidade ligada á revolução, sendo substituída, para Ridenti, por outra estrutura igualmente

marcante:

(...) pela estrutura de sentimento da individualidade pós-moderna, já esboçada naqueles mesmos anos de 1960, e caracterizada pela valorização exacerbada do "eu", pela crença no fim das visões de mundo totalizantes, dado o caráter completamente fragmentado e ilógico da realidade, pela sobreposição eclética de estilos e referências artísticas e culturais de todos os tempos, pela valorização dos meios de comunicação de massa e do mercado, pela inviabilidade de qualquer utopia 154.

Talvez pelo romantismo das propostas sociais da década de 1960, o papel de Chico

Buarque permaneceu no período posterior com uma dimensão superlativa em relação ao

projeto de preservação da tradição. Além da filiação ao projeto revolucionário, como coloca

Ridenti, podemos acrescentar ainda que Chico teve papel importante nas mudanças do

mercado musical causadas pelos festivais. Para Marcos Napolitano, Chico é responsável,

juntamente com Elis Regina, por uma reorganização do mercado musical, na formação

também de um novo público que passa a consumir a música popular brasileira, sob a nova

sigla “MPB”. Napolitano postula que estes dois artistas, consagrados pela televisão,

trouxeram para a MPB o público que havia passado pela bossa nova sem aderir totalmente a

154 RIDENTI, M. Op. cit. p. 98.

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ela, “o público do rádio, do bolerão, do samba-canção e das marchas” 155. O vozeirão de Elis

e sua “performance exagerada”, juntamente com o culto à melodia (característica comum

também à Chico) serviram para o maestro Júlio Medalha, ainda em 1968, avaliar que estas

eram características ultrapassadas, que representavam a anti-modernidade 156. Napolitano

enxerga nesta crítica, em contrapartida com o sucesso obtido por Elis, a formação do novo

público, que não estava comprometido apenas com a modernidade, no que ela tinha ou não de

revolucionária, mas desejava também a tradição. Ao considerar que Chico trazia de volta o

Noel, e Elis recuperava a maneira de cantar da época de ouro, o público afirmava este

compromisso com o passado, pulando, praticamente, a bossa nova e negando o estrangeirismo

e o “excessivamente” moderno. Se a bossa nova, que foi símbolo de modernidade, ainda

representava na maioria das suas canções, o mundo da classe média-alta, o novo samba de

Chico, velho no estilo e na linguagem, mas bastante sintonizado com questões do presente,

atraía integrantes dos mais variados extratos sociais e reunificava a nação através da idéia do

povo brasileiro “em defesa de sua arte”.

Engajado na reforma política ou simplesmente saudoso do “tempo da delicadeza” 157,

e em defesa do que “é nosso”, Chico manteve várias das preocupações estilísticas e temáticas

de Noel (assunto a que nos dedicaremos no próximo capítulo). Chico foi o comentarista da

tradição que, ao reafirmá-la, acrescentando elementos próprios, de forma engajada como

entende Ridenti ou simplesmente patriótica e saudosistamente, conseguiu modernizá-la a

ponto de continuar representante do universo cotidiano do samba e do sentimentalismo

brasileiro, e mantê-la ainda nas “regras da arte”, ou seja, com elementos identificáveis da

tradição do samba e da canção brasileira. Estas características, aliadas à genialidade também

muito salientada pelos admiradores, fizeram rapidamente de Chico um grande ícone da

cultura popular.

Homenagens e lançamentos comemorativos não tardaram a alcançar Chico Buarque,

em escala bastante semelhante a Noel Rosa e continuam até hoje a reverenciá-lo. Citemos

alguns exemplos: A escola de samba Mangueira fez de Chico, o tema para o seu desfile de

155 NAPOLITANO, Marcos. “A canção engajada nos anos 60”. In: DUARTE, Paulo Sérgio & NAVES, Santuza

Cambraia, Do Samba-canção à Tropicália. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ FAPERJ, 2003. p.132. 156 MEDAGLIA, Júlio. “Balanço da Bossa Nova”. (IN: CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras

bossas. 1968 - 5ª ed., São Paulo: Perspectiva, 1993). Apud: NAPOLITANO, M. “A canção engajada nos anos 60”. Op. cit. p. 133. Este ensaio de Júlio Madaglia foi originalmente publicado em 1966 no “Suplemento literário” d’O Estado de São Paulo”, em númeró especialmente dedicado à música popular.

157 Verso de: “Todo o sentimento” de Cristóvão Bastos e Chico Buarque, LP Francisco. RCA/Ariola, 1987

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1998, com o qual, aliás, foi campeã daquele ano. O Songbook reunindo 222 de suas

composições, divididas em quatro volumes, foi lançado em 1999, produzido por Almir

Chediak e pela editora Lumiar do Rio de Janeiro, com o acompanhamento de oito CDs que

contaram com a participação de mais de 100 artistas da MPB, tornando-o assim o maior

songbook já realizado no Brasil. Dezenas de estudiosos dedicaram muitas páginas de análise

sobre a obra de Chico Buarque, desde o final dos anos 1960 até hoje 158. Uma série de DVDs

lançados recentemente 159 e uma infinidade de shows temáticos dedicados á obra de Chico, de

vários artistas, completam esta lista que traduz a importância da produção deste que é um dos

mais reconhecidos compositores brasileiros de todos os tempos.

Noel, Chico e muitos outros artistas de várias épocas distintas dessa nossa história

ganharam, desde os anos 70 até hoje, inúmeras biografias, reedições de suas obras,

regravações, shows temáticos, estudos acadêmicos, séries televisivas, reportagens e

homenagens das mais diversas. Isto atesta que categoricamente não podemos concordar com a

morte da tradição que eles representam, apesar de vermos superada a estrutura sentimental

revolucionária dos anos 1960.

158 Uma lista completa de obras dedicadas a Chico Buarque ficaria sempre incompleta, dada a multiplicidade e o

número constantemente acrescido de produções, no entanto, listamos aqui algumas das mais importantes análises sobre a obra de Chico Buarque: • CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque, Análise Poético-musical. Rio de Janeiro: Editora CODECRI, 1982. • CÉSAR, Ligia Vieira. Poesia e Política nas Canções de Bob Dylan e Chico Buarque. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1993. • DINIZ, Júlio. “A voz e seu dono – poética e metapoética na canção de Chico Buarque de Hollanda”. In. FERNANDES, Rinaldo de (Org.). Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond / Biblioteca Nacional, 2004, pp. 259-271. • FERNANDES, Rinaldo. Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2004 (Esta publicação apresenta dezenas de depoimentos de artistas e personalidades, além de ensaios acadêmicos sobre Chico). • FONTES, Maria Helena Sansão. Sem Fantasia - Masculino e Feminino em Chico Buarque. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 2003. • MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho Mágico - Poesia e Política em Chico Buarque. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. • MENESES, Adélia Bezerra de. Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. 3ª ed. ampliada 2002.• NEPOMUCENO, Eric, “Anotações sobre o escritor e o leitor Chico Buarque de Hollanda” [sobre o processo criativo de Chico]. In: Revista CULT. São Paulo: Editora 17, 69. p. 64-65, 2003. • PERRONE, Charles A. Letras e Letras da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Elo ed., 1988 • SILVA, Anazildo Vasconcelos da. A poética de Chico Buarque: a expressão subjetiva como fundamento da significação. Rio de Janeiro: Editora Sophos, 1974. • SILVA, Fernando de Barros. Chico Buarque, na Coleção Folha Explica. São Paulo: Publifolha, 2004. • TABORDA, Felipe (org.). A Imagem do Som de Chico Buarque: 80 composições de Chico Buarque interpretadas por 80 artistas contemporâneos. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1999. • URICH, Silvia e ECHEPARE, Roberto. Chico Buarque. Argentina: Gray Edciones, 1985. • VELOSO, Caetano. “Chico”. In: Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p.230-235. • WERNECK, Humberto e JOBIM, Tom. Chico Buarque - Letra e música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, 2 vol.• ZAPPA, Regina. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos. 5ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ Prefeitura, 2000 (coleção Perfis do Rio, 26).

159 DVDs de Chico Buarque: Chico e as cidades, 1998; Chico ou o país da delicadeza perdida, 2003; e a série produzida pela EMI Music Brasil Ltda:

• Box Chico Vol. 1: Meu Caro Amigo; À Flor Da Pele; Vai Passar (3 DVDs); • Box Chico Vol. 2: Anos Dourados; Estação Derradeira; Bastidores (3 DVDs); • Box Chico Vol. 3: Canções de Amor, Futebol e Literatura (3 DVDs); • Box Chico Vol. 4: Cinema, Roda Viva e Saltimbancos (3 DVDs).

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Devemos ainda acrescentar, continuando o debate sobre a decadência da música popular

no Brasil, que as novas produções musicais, de qualidade reconhecida ou não, não retiraram

das prateleiras, das estantes e dos palcos, as músicas populares de todas as épocas e estilos,

que continuam a “fazer a cabeça” de gerações e gerações de novos ouvintes. Graças também a

verdadeira “resistência cultural”, na transmissão de discos de pais para filhos, estes acabam

conhecendo e acompanhando o repertório imenso de boa qualidade, que pode não mais

freqüentar a maioria das rádios, mas está cotidianamente presente nas casas de espetáculo, nos

bares e lares brasileiros. Isso nos leva a conclusão de que, se a tradição não tem garantias de

permanência nas composições de hoje, pelo menos está sendo preservada com luxo nas

estantes.

Afirmamos que a tradição continua aí. Seus mais notáveis continuadores ou repetidores

mais fiéis, no entanto, nem sempre estão entre os mais vendidos. A razão deste fenômeno

ainda precisa de análises mais detalhadas e compreendidas em todas as suas complexas

implicações, uma vez que fatores mais distantes da produção musical, como o perfil exigido

pelas gravadoras, os interesses comerciais ou ideológicos, os patrocínios, o jabá (reprodução

de músicas mediante pagamento) e o jogo com a mídia, adquirem maior peso na determinação

dos sucessos. Concordamos enfim com Néstor García Canclini, para quem a indústria cultural

tornou-se determinante, pois é ela quem tem hoje o maior poder de decidir os sucessos, e se

interessa mais pelo “popular” do que pela tradição:

O que é o povo para o gerente de um canal de televisão ou para um pesquisador de mercado? (...) Para a mídia, o popular não é o resultado de tradições, nem da personalidade coletiva, tampouco se define por seu caráter manual, artesanal, oral, em suma, pré-moderno. (...) A noção de popular construída pelos meios de comunicação, e em boa parte aceita pelos estudos nesse campo, segue a lógica do mercado. “Popular” é o que vende maciçamente, o que agrada a multidões. (...)

Para o mercado e para a mídia o popular não interessa como tradição que perdura. Ao contrário, uma lei da obsolescência incessante nos acostumou a que o popular, precisamente por ser o lugar do êxito, seja também o da fugacidade e do esquecimento. (...)

(...) O popular não consiste no que o povo é ou tem, mas no que é acessível para ele, no que gosta, no que merece sua adesão ou usa com freqüência. Com isso é produzida uma distorção simetricamente oposta à folclórica: o popular é dado de fora ao povo 160.

160 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 1997. 3ª ed. 2000. ps. 259, 260 e 261.

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São muitas as reflexões que podemos desenvolver partindo das afirmações deste

estudioso argentino. Ousemos algumas: A partir da diferenciação proposta por Canclini entre

o “popular” e a “tradição”, muito útil para nossa reflexão, aventamos que seria preciso tentar

o resgate de uma história da relação desses conceitos. A indústria cultural e a sua interferência

na determinação dos “sucessos” nacionais também têm sua história, ainda pouco revelada.

Nela, podemos supor que o jogo entre a tradição e o consumo massivo de suas representações

teve altos e baixos de acordo com muitas variantes, das quais o mercado fonográfico sempre

foi importante, mas talvez nem sempre primordial. Canclini nos sugere uma saída para

analisar a continuidade da tradição: a noção do “popular” é construída pela mídia e muitas

vezes confundida com aquilo que o povo “realmente” admira e consome – confusão presente

inclusive, segundo ele, em trabalhos de estudiosos. Outro ponto: se é verdade que “para a

mídia o popular não interessa como tradição que perdura”, é verdade também, por outro

lado, que a tradição também sempre vendeu, e nunca foi totalmente desprezada pela mídia. A

fugacidade e o esquecimento atendem a indústria consumista, mas atendem também á

necessidade de representação de uma realidade bem mais acelerada e dinâmica – o ritmo da

globalização, de relações de curto prazo em universos cada vez maiores. Neste sentido, estas

características algo indesejadas estariam dando conta de uma nova necessidade da nossa

sociedade, e, por sua vez, podem se tornar tradicionais. Estaríamos novamente diante de outra

mudança nas estruturas da nossa tradição e da noção de brasilidade, e não apenas diante do

poder perverso da mídia. E, por fim, não é difícil perceber que Canclini tem razão quando

afirma que “o popular é dado de fora ao povo”, mas precisamos não esquecer que há mais

dialética nesta relação do que cabe nesta expressão: afinal existem muitas variantes não

totalmente esclarecidas, que, para além dos investimentos milionários e da boa divulgação,

influem decisivamente na eleição de “grandes sucessos” da nossa música popular, como por

exemplo, os modismos, as influências estrangeiras, oportunismos temáticos, criação de um

público consumidor específico, etc.

Para finalizar este debate lembramos ainda que os novos movimentos musicais das

últimas décadas estão a ampliar e não a restringir o espaço criativo. O rock, por exemplo, é

hoje um importante dispositivo de reflexão sobre temas do presente, e ao mesmo tempo pode

ser visto como um canal para a coletivização, como possibilidade de superação da solidão e

do isolamento a que o sistema social e o individualismo crescente produzem. O fenômeno do

funk nos morros e subúrbios cariocas, para além de um sentimento crítico nacionalista mais

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estéril, que vê aí unicamente a decadência do samba, pode estar servindo à reconstituição de

novos e importantes territórios existenciais, espaços alternativos de grande valor dentro de um

universo exíguo de possibilidades de lazer e de expressividade para emoções coletivas.

Devemos evitar confundir o que a Mídia nos apresenta como representantes da nossa

cultura com aquilo que o nosso povo realmente produz e consome. Não julguemos pela

péssima qualidade de alguns dos produtos anunciados por essa mídia da música – aliás, esta

sim decadente graças à produção pirata e ao formato eletrônico do mp3 – toda a produção rica

e diversificada da música popular que podemos encontrar a qualquer hora em quase todos os

cantos do nosso país. A qualidade estará, via de regra, muito presente, desde que nos

esforcemos para lançar a vista um pouco além daquilo que os meios mais imediatos nos

oferecem, e que vejamos com um pouco mais de profundidade a arte que realmente tem

potencial para ficar marcada na história.

Como todo processo de construção nacional, a invenção da brasilidade definiu como

puro ou autêntico aquilo que foi produto de uma longa negociação, envolvendo grupos sociais

e interesses muito diversos. Para a brasilidade ainda hoje presente, o samba do morro é considerado

o ritrno mais puro, não contaminado por influências alienígenas, e que precisa ser preservado. Toda

essa história sobre a construção da tradição, e da busca dos seus significados, nos serviu aqui para

comprovar a existência de uma trajetória evolutiva e permanente nas suas diversas representações,

e ao mesmo tempo localizar nos períodos indicados como as “melhores fases” da canção popular,

os autores Noel Rosa e Chico Buarque, cujas obras serão relacionadas e analisadas nos próximos

capítulos.

1.4 - Noel e Chico: laços e heranças.

As ligações estéticas entre a produção musical popular brasileira dos anos 1930 e a

produção dos anos 1960 já foram exploradas em obras de muitos especialistas. Hemano Vianna,

por exemplo, cita Antônio Cândido em seu artigo "A Revolução de 1930 e a Cultura", para fazer

uma espécie de resumo da história da transformação do samba de ritmo maldito à música nacional

nos anos 1960:

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(...) na música popular ocorreu um processo (...) de "generalização" e "normalização, só que a partir das esferas populares, rumo às camadas médias e superiores. Nos anos 30 e 40, por exemplo, o samba e a marcha, antes praticamente confinados aos morros e subúrbios do Rio, conquistaram o País e todas as classes, tornando-se um pão-nosso quotidiano de consumo cultural. Enquanto nos anos 20 um mestre supremo como Sinhô era de atuação restrita, a partir de 1930 ganharam escala nacional nomes como Noel Rosa, Ismael Silva, Almirante, Lamartine Babo, João da Bahiana, Nássara, João de Barro e muitos outros. Eles foram o grande estímulo para o triunfo avassalador da música popular nos anos 60, inclusive de sua interpenetração com a poesia erudita, numa quebra de barreiras que é dos fatos mais importantes da nossa cultura contemporânea e começou a se definir nos anos 30, com o interesse pelas coisas brasileiras que sucedeu ao movimento revolucionário 161.

É de fato inegável a influência de Noel em composições de muitos dos continuadores

das linhas mais gerais da tradição, ligada ao universo popular urbano brasileiro. Entre eles, o

nome de Chico Buarque é lembrado com freqüência. Vejamos alguns depoimentos:

Disse dele a cantora Maria Bethânia: nenhum compositor urbano que se leve a sério escapa das influencias de Noel. Suas músicas continuam. Com maior ou menor humor, com maior ou menor esperança, Chico Buarque e Aldir Blanc, fundamen-talmente, levam adiante a obra de Noel Rosa, junto com João Nogueira, Jards Macalé, Paulinho da Viola, e até mesmo compositores de rock, como Cazuza. Os amores impossíveis as musas, o bar, os malandros, a crítica e a observação do cotidiano com eles permanecem, após retratados por Noel, compositor totalmente imerso em seu mundo de criação. (Mauro Dias) 162. Noel, apesar de ter uma boa cultura, buscava inspiração de suas letras no cotidiano e o cotidiano de Noel era e é também o meu, o nosso, muita boêmia, o botequim, o bate-papo nas ruas e em tudo isso eu tenho uma grande influência dele. (João Nogueira) 163. A importância de Noel está provada na influência que teve em grandes compositores como Chico Buarque, João Nogueira, Paulo César Pinheiro e outros. Cantores como Gal Costa, Bethânia, Maria Creuza estão regravando suas músicas. (César Costa Filho) 164.

Os meninos de minha idade tinham três referências de grandeza: o presidente Getúlio Vargas, Deus e Noel Rosa. (Aldir Blanc) 165.

Os motivos de se ter perpetuado essa herança foi alvo de especulação de alguns

especialistas, que em geral não tomaram muito cuidado em camuflar o inevitável juízo de

161 “A Revolução de 1930 e a cultura”.In: Educação pela Noite e Outros Ensaios (pp. 181-98). São Paulo: Ática,

1989, p.198. Trecho comentado por Hermano Vianna: op. cit. p.29. 162 DIAS, Mauro. Jornal O Globo de 26/4/87 (Domingo), Segundo Caderno, p.4. Mauro Dias é crítico musical. 163 João Nogueira, em depoimento a jornalista Lena Brasil para o jornal Última Hora, 1/5/1977, Caderno

cultura. p.7 164 César Costa Filho em depoimento a jornalista Lena Brasil, para o jornal Última Hora, 1/5/1977 (domingo).

Caderno cultura, p.7. Acervo Almirante, Museu da Imagem e do Som (MIS), Rio de Janeiro. Cantor e compositor, César Costa Filho foi um dos fundadores do Movimento Artístico Universitário (MAU), ao lado de Ivan Lins, Gonzaguinha e outros.

165 Aldir Blanc, em depoimento a Hugo Sukman e João Máximo, publicado no jornal O Globo de 24/2/96 (Sábado), Segundo Caderno, p.10. Acervo Almirante, Museu da Imagem e do Som (MIS), Rio de Janeiro.

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valor em suas análises. Nelas, Chico Buarque também aparece com freqüência, relacionado

com Noel de diversas maneiras:

A que deve Noel Rosa sua perenidade? Impossível dizer. O fato de ter sido um letrista inovador, quase revolucionário, substituindo o parnasianismo dos nossos velhos seresteiros por uma poesia nova, simples, coloquial, fundamentada nas coisas do dia-a-dia, poderia ser uma explicação. Poderia não incorresse ela num velho erro: o de atribuir apenas às letras a importância de Noel Rosa. Outros admiráveis letristas brasileiros – Chico Buarque, por exemplo – têm carregado o mesmo peso. A força de seus versos é tanta que ouvidos desatentos mal prestam atenção na excelência de sua música. E Chico, como Noel, é no mínimo excepcional compositor. (...) Estaria na identificação com as coisas do povo a exploração? Noel Rosa cantou o malandro, a mulher da noite, o mendigo, a operária da fábrica, o guarda noturno, o homossexual, o bandido, o lúnpen, numa época em que nada disso como se diz, dava samba. Entendendo sua cidade, e por extensão o Brasil de tanga onde vivera seus 26 anos, quatro meses e 24 dias, teria se enraizado de tal forma na alma do povo que não morreria nunca. Mas, tendo sido o primeiro e não o único, porque só ele, dos poetas de rua, ficou? Há um caminho mais curto e simples pra explicar a perenidade de Noel Rosa, não a explicar (...) (João Máximo) 166.

Para muitas pessoas comuns e fãs da tradição musical popular brasileira, e até mesmo

entre compositores e cantores, Chico representa até mesmo uma reencarnação da genialidade

de Noel:

As pessoas falam que o Chico Buarque é o segundo Noel. (João Nogueira) 167. Hoje, tem um cara que me lembra muito Noel, não só pelo lado poético e musical mas pelo aspecto familiar: o Chico Buarque. É tudo igualzinho. Eles têm muito a ver um com o outro e eu tenho a impressão de que o Chico ouviu muito Noel Rosa. (Martinho da Vila) 168. Tem uma música, chamada Cordiais Saudações (do Noel), que hoje, quando eu escuto Meu Caro Amigo, do Chico, uma me lembra muito a outra. (João de Barro, “Braguinha”) 169. Para quem admite a hipótese de reencarnação, esta outra seria bastante provável: Chico Buarque é Noel Rosa redivivo. Há quem a isso objete, entretanto. (...) Com Chico Buarque, há de fato muita coisa em comum. (Muniz Sodré) 170.

Como a heroína de Três Apitos (Noel), Chico tem sua mulher fisicamente inalcançável cantada em As Vitrines. (Mauro Dias) 171.

166 MÁXIMO, João. “A Inexplicável permanência do jovem sambista”. In: O Globo, 17/2/1997. Segundo

Caderno, p.1. 167 João Nogueira, em depoimento a jornalista Lena Brasil para o jornal Última Hora, 1/5/1977 (domingo).

Caderno cultura, p.7. Acervo Almirante - Museu da Imagem e do Som (MIS), Rio de Janeiro. 168 Martinho da Vila, em depoimento a jornalista Lena Brasil. Op. Cit. 169 João de Barro, (Braguinha) em depoimento a jornalista Lena Brasil. Op. Cit. 170 SODRÉ, Muniz. “A lira independente”. In: ROSA, Noel. Noel Rosa: songbook. Vol. 3, (produzido por Almir

Chediak) . Rio de Janeiro: Lumiar, 1991. ps. 10-11. 171 DIAS, Mauro. Jornal O Globo de 26/4/87 (Domingo), Segundo Caderno, p.4.

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Há também, por outro lado, entre nossos grandes compositores, alguns dos quais da

mesma geração de Chico, que não assumem nenhuma herança direta de Noel considerando-a

inclusive rara. Mas ainda entre esses casos, encontramos quem veja alguma ligação entre Noel

e Chico.

Acho que chega a idade em que a gente tem que recuperar o que se perdeu. A obra de Noel, tirando alguma coisa do Chico Buarque e do Paulinho da Viola, passou incólume pela minha geração. (Ivan Lins) 172.

De qualquer forma, ver a obra de Chico como uma “reencarnação” da obra de Noel é

claro, é um completo exagero, e servia apenas para exaltar a tradição que muitos queriam ver

preservada com urgência. Noel era uma importante fonte de brasilidade, e, como diz Muniz

Sodré, identificável em composições de um sem número de autores espalhados pelo Brasil:

Noel Rosa é contemporâneo, moderno, atual. Seria difícil revê-lo por 'reencarnação', porque ele é absolutamente singular. Mas nessa linha hipotética, (...) Noel está em Chico, Caetano, Gil, João Nogueira, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Cartola e tantos outros poetas do povo e da Nação. Noel Rosa é raiz e fonte de brasilidade 173.

Mostrou-se bastante conveniente para os defensores da idéia da “linha evolutiva da

MPB” que Chico bebesse ou até brotasse desta mesma fonte. Mas o que o próprio Chico

Buarque tem a dizer da influência que recebeu de Noel Rosa? Em uma entrevista para a rádio

Eldorado, de São Paulo, concedida a Geraldo Leite, Chico cita o poeta da Vila na lista dos

compositores que o influenciaram, mas não esclarece os detalhes sobre a herança assumida:

Chico Buarque: Noel Rosa, sem dúvida, Ismael, Wilson Batista, Geraldo Pereira. Em outra linha: Custódio Mesquita, Ari Barroso e outros que estou me esquecendo agora. (...)

Rádio Eldorado (Geraldo Leite): Conheço, por exemplo, muitos críticos que sempre te alinharam mais ao lado do Noel e nem sei se de tua parte ou da parte do próprio Ismael Silva muita gente te... você mesmo indicava o Ismael como uma das maiores influências. Tinha alguma?

Chico Buarque: Não, o que havia era uma (riso), uma tentativa até de dizer: olha também do Ismael, porque eu fiquei muito marcado como uma espécie de um novo Noel, até porque havia algumas coisas. Havia até citações. Eu citava Noel no samba A Rita. Eu fiz algumas canções à maneira de Noel. Claro que Noel me marcou muito. Mas eu queria dizer: também tem o Ismael. Eu gosto tanto de Ismael quanto de Noel. Mas eu não posso negar que Noel, pra mim, representou uma influência mais forte até do que o Ismael. Mas eu queria fazer justiça: Ismael estava aí vivo e

172 Ivan Lins, em depoimento à Hugo Sukman, para o jornal O Globo, 17/2/1997. Segundo Caderno, p.1. 173 SODRÉ, Muniz. “A lira independente”. Op. cit., 1991, pp. 10-11.

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esquecido. Ismael eu conheci muito, era um grande personagem. Noel era uma lenda pra mim 174.

Sérgio Buarque de Holanda emitiu a sua opinião de historiador sobre a questão da

comparação de Noel com o próprio filho:

Não acredito que Noel exerça influência sobre Chico. A maior semelhança entre os dois é a temática: urbana. Caymmi, Ataulfo e Ismael marcaram mais que Noel. Chico também não é um compositor de classe média, como afirmam por aí. Não há dúvida, Noel e Chico também se assemelham um pouco, porque ambos enfocam temas urbanos. Nada mais. Aliás, há no Brasil uma mania de Noel! Qualquer compositor que surge é imediatamente comparado com o grande criador carioca. Creio que há um pouco de exagero em tudo isso. (Sérgio Buarque de Holanda) 175.

Ainda que não confirmada por historiadores como Sérgio Buarque ou por outros

especialistas da canção popular, uma ligação, digamos, ideológica entre Noel e Chico,

exagerada ou não, se solidificou dentro de certo senso comum, e ainda mais quando alguns

intérpretes resolveram ressaltá-la em seus shows e discos. A “personalíssima” Isaura Garcia

foi a primeira grande intérprete a ressaltar a ligação entre os compositores, em 1970, quando

gravou pela Continental, um LP com o título Chico Buarque de Hollanda e Noel Rosa na voz

de Isaura Garcia. Trinta anos depois, foram lançados no mercado dois trabalhos discográficos

com o mesmo tema: O grupo vocal Garganta Profunda lançou o cd Chico e Noel em revista,

2000, (Rioarte/ Prefeitura do Rio de Janeiro), comemorando 15 anos de existência do grupo, e

o cantor Zé Renato (ex-Boca Livre) lançou o cd Filosofia, pela Universal Music, ambos

relacionando as obras de Chico Buarque e Noel Rosa. Em shows de música popular, comuns

em bares e casas noturnas, também é comum os intérpretes fazerem algumas associações

entre obras desses autores. Temos então uma ligação inequívoca, ao menos no imaginário

urbano brasileiro, entre os dois grandes compositores. Mas qual seriam de fato essas

semelhanças?

Grandes cronistas urbanos, Noel Rosa e Chico Buarque estão bem próximos um do

outro no imaginário da canção popular brasileira, e não foi por acaso que Chico foi escolhido

para interpretar o papel de Noel no filme O Mandarim, de Julio Bressane (1995). As

174 Chico Buarque em entrevista a Geraldo Leite, para o programa Certas Palavras, da Rádio Eldorado em

27/9/1987. Disponível no endereço eletrônico: http://chicobuarque.uol.com.br/texto/entrevistas/entre_eldorado_27_09_89.htm

175 Sérgio Buarque de Holanda em texto sobre seu filho Chico, escrito originalmente para o nº. 1 da revista Pais e Filhos, (setembro de 1968), republicado na Folha de S.Paulo de 19 de outubro de 1991 (sábado), com o título: O Historiador Escreve Sobre Seu Filho Chico Buarque. Disponível na íntegra no endereço eletrônico: http://almanaque.folha.uol.com.br/sergiobuarque1.htm.

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coincidências fazem constatar muito mais do que apenas a inspiração que Noel legou ao

Chico. Revelam universos populares urbanos, fixados também nas obras de inúmeros outros

autores que compartilham e repetem os conceitos presentes nestes dois grandes compositores,

mas que entre eles se mostram particularmente semelhantes. Percebemos, por exemplo, que

Chico e Noel colaboraram sobremaneira para a permanência de um espaço moral na música

bastante distinto do moralismo presente nas regras de convívio social, um lugar mais ousado e

livre, ou mais tolerante e compreensivo, que não é tão comum nas relações cotidianas. É

como se a música suprisse, nesse caso, a necessidade de uma realidade mais afetiva,

harmoniosa e interessada. Daí a exaltação à orgia, aos malandros, prostitutas, enjeitados, e a

todos os que representam certos extremos do nosso mosaico social sobrecarregado de emoção

e pobreza.

A brasilidade dos dois autores, que se expressa de inúmeras formas, também apresenta

uma série de pontos comuns. Entre elas, a linguagem das ruas, a língua “brasileira”, carregada

de gírias, que é apresentada, contudo, sem perder a profundidade poética da reflexão.

Linguagem de indivíduos que muitas vezes estão à margem da “sociedade”, que conhecem a

sua falsa moral “por dentro” ou “por baixo” e que exprimem sua realidade na forma de

comunicação que se lhes permitem: a música, onde se mostram sensíveis e conscientes. Para

eles, por exemplo, o samba sempre será um espaço de catarse, onde o trabalhador “explorado”

tem o seu refúgio. Os autores em questão reclamam a nossa autenticidade e a sua

preservação, a nossa moral permissiva, solidária e alegre – “as coisas nossas” – o conjunto de

aspectos discutidos e analisados nos capítulos anteriores sobre o rótulo de “brasilidades”,

entre as quais se destaca uma imagem menos séria e mais libertária do que as autoridades, os

bons costumes e as leis gostariam de impor.

Como vimos, nos anos 1960\70, houve a predominância de uma estética contestatória por

parte dos artistas engajados, que os impeliu ao que havia de novo em termos de composição. Chico

Buarque porém, considerado por muitos como símbolo de resistência cultural, não optou

totalmente pela incorporação das novidades idearias e sonoras, trazidas, sobretudo, pelo

tropicalismo. Antes, manteve o que podemos chamar de uma fidelidade à linguagem sambística

carioca, fundindo o velho estilo dos anos 1930/ 40 com a então já consagrada bossa-nova,

mantendo a contestação e produzindo verdadeiros paralelos com a estética de Noel. É o maestro

Tom Jobim, em entrevista a Almir Chediak (incluída no Songbook do Noel), quem nos

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confirma outros paralelos, como os estritamente musicais, entre eles, ampliando para os

elementos harmônicos as semelhanças dos temas e de suas formas de tratamento:

Tom Jobim – (...) Noel é um cara formidável, um cara que marcou a minha vida, determinou minha paixão pela música brasileira. Quando vejo você tocando (p/ Almir Chediak), com essas inversões, me lembro do Noel e do Chico. Almir Chediak – O Chico talvez seja o compositor que mais se aproxima de Noel. Tom Jobim – Pelo estilo. Um cara que fala das coisas que existem mesmo. Ele fala do botequim, da Maria, da cachaça, do povo. Uma coisa muito brasileira, muito autêntica. Com que roupa?, por exemplo: essas inversões no violão, a sétima no baixo, depois a terça no baixo, sétima no baixo, resolvendo pra terça no baixo ... e vai por aí. Um negócio muito bom 176.

Tom ressalta que o uso de dissonâncias, como na utilização das sétimas (intervalo de

sete tons), de inversões de baixos (que tocam as sétimas e terças, quando o mais comum seria

o uso das notas tônicas como base para os acordes) e de acordes diminutos (com terças e

quintas menores), não eram absolutamente comuns na música popular que se fazia até os anos

1930, o que coloca Noel como um inovador também dentro dos rigores musicais da época,

que não experimentava ainda harmonias diferentes e certas modulações de tons, praticados

por ele. Mais tarde esses recursos técnicos se tornariam “clichês”, como lembra Tom Jobim

nesta mesma entrevista (p.16), reforçados em sambas de legítimos “continuadores” da

tradição como Chico Buarque.

Chico e Noel cantaram paixões e personagens comuns ou incomuns de maneira a

emocionar pela “verdade” da narração. Mantiveram um olhar crítico em relação ao meio

social e político brasileiro e utilizaram formas poéticas especiais, como o uso de expressões

populares, rimas surpreendentes e bem humoradas, antíteses e metáforas presentes na

literatura de salões, mas adaptadas por eles para o povo. Através deles, os ouvintes poderiam

perceber melhor o contorno social do brasileiro e se identificar com seus personagens ou

reconhecê-los nas ruas. Entre eles há também a semelhança do jogo de palavras e do

significado duplo das frases. A alegria, a irreverência e o “jeitinho brasileiro” são alguns

outros temas privilegiados por ambos em semelhantes estilos de composição e idéias, que os

identifica com a classe média urbana e os tornam ricas fontes de pesquisa da nossa cultura

popular.

176 “Entrevista com Tom Jobim”. In: Noel Rosa: Songbook. Vol. 3. Rio de Janeiro: Lumiar, 1991. (produzido por

Almir Chediak). p. 14.

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Revistos vários aspectos da tradição musical brasileira, a metodologia que seguiremos

agora fará a associação das composições de forma comparativa, como já foi dito,

evidenciando os pontos coincidentes nas produções dos dois compositores analisados.

Veremos em detalhes estas semelhanças, em busca da definição do universo musical dos

compositores e da importância de suas obras para a construção cultural da própria sociedade

brasileira, permitindo uma visão do significado e da razão do alcance extraordinário que elas

tiveram e têm entre nós.

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CAPÍTULO 2 – Noel e Chico: críticos brasilianistas.

2.1 - Defensores da brasilidade.

Viemos até agora desenvolvendo considerações que muitas vezes aliaram os

compositores estudados à idéia de brasilidade, contida na estética musical e nas temáticas

utilizadas - o que nos permitiu enxergar ligações destes com elementos mais óbvios, como o

próprio samba ou o carnaval. A partir daqui, veremos em detalhes, como se estabeleceram em

suas obras estas relações.

Em primeiro lugar é preciso ressaltar que as filiações de Noel Rosa e de Chico

Buarque ao assunto da brasilidade não podem ser entendidas como compromissos tácitos com

os elementos da modernidade, onde os autores (especialmente Noel) retratavam um Brasil

novo, desligado do “ultrapassado” universo ruralista do passado. A análise que destaca os

elementos comuns à música urbana popular e ao movimento artístico e intelectual modernista,

como vemos em Affonso Romano de Sant’Anna, Carlos Sandroni e Hermano Vianna carece

dos elementos que representam o Brasil arcaico, que de formas distintas adaptava-se à

modernidade e ainda evocava saudosismos bucólicos e líricos típicos da herança européia.

Muitas vezes nos pareceu até mesmo paradoxal a relação entre tradição e modernidade

em ambos os compositores. Por exemplo: no plano estritamente instrumental, Noel Rosa,

como afirmamos, apostava na modernidade de um ritmo mais afinado com o processo de

urbanização (o paradigma do Estácio, de Carlos Sandroni 177), contudo, quando se tratava de

exaltar através das letras os elementos “verdadeiramente” nacionais, muitas vezes, era no

velho mundo rural do passado que ele ia buscá-los. Tendência dúbia, aliás, que irá ser

perpetuada pela “tradição”. Vamos encontrar um exemplo desta aparente contradição na

composição de Noel Rosa que buscava justamente definir o que eram “coisas nossas”.

O samba “São coisas nossas” foi composto como um comentário a uma avaliação feita

pelo cinema nacional, sobre quais eram os principais elementos culturais brasileiros. Escrito

em 1932, sob a inspiração do filme falado (novidade na época) “Coisas Nossas” – primeiro

177 SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de

Janeiro: Jorge Zahar / Editora UFRJ, 2001.

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filme falado feito no Brasil 178, que apresentava uma versão para estrangeiros sobre a cultura

popular brasileira. A letra deste samba traz elementos que oscilam entre os representantes de

uma tradição arcaica rural e os da modernidade inevitável, e ainda com uma clara tendência

ao lamento pelas perdas provocadas pelo desenvolvimento urbano:

Queria ser pandeiro Pra sentir o dia inteiro A tua mão na minha pele a batucar Saudade do violão e da palhoça Coisa nossa, coisa nossa. O samba, a prontidão e outras bossas São nossas coisas... São coisas nossas! (...) (São coisas Nossas, Noel Rosa, 1932)

A saudade do autor é a saudade do sertão e da palhoça, que a crescente urbanidade

afasta cada vez mais. Mas estão presentes também neste rol de coisas nossas, as modernidades

da cidade, que começam com o samba (patrimônio recentemente incorporado), a prontidão

(que vem de “pronto”, gíria carioca equivalente à “sem dinheiro” - condição da maioria dos

brasileiros e muito visível na nova conformação urbana das favelas), e vai para uma série de

personagens da cidade que quase sempre estão ligados a essa condição:

Baleiro, jornaleiro Motorneiro, condutor e passageiro Prestamista e vigarista E o bonde que parece uma carroça Coisa nossa, coisa nossa. Menina que namora Na esquina e no portão Rapaz casado com dez filhos, sem tostão Se o pai descobre o truque dá uma coça Coisa nossa, muito nossa! (São coisas nossas, Noel Rosa, 1932)

Bonde e carroça: modernidade e tradição se equivalem na letra do samba. O antigo

namoro no portão, da menina inocente e recatada, é transgredido pelo namorado que é casado

e sem tostão! Noel revela que são coisas nossas também o subterfúgio e o mundo das

aparências cultivado pela sociedade urbana, que ainda sonhava em ser européia e relutava em

aceitar não só a mestiçagem, como também a nova moral da cidade. O uso da enumeração,

178 O filme “Coisas Nossas” foi produzido pelo americano Wallace Downey e estreou no cine Eldorado do Rio

de Janeiro em 30 de novembro de 1931. Utilizava o sistema Vitafone, onde o som gravado num disco comum de 78 rpm era sincronizado ao movimento das imagens projetadas. No elenco, entre outros figuravam Procópio Ferreira, Baptista Júnior, Jararaca & Ratinho, Paraguaçu e Napoleão Tavares e sua orquestra. Até hoje não se conhece nenhuma cópia sobrevivente.

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recurso também utilizado por literatos como Oswald de Andrade 179, baleiro, jornaleiro etc.,

aproxima a letra de uma linguagem telegráfica, fotográfica ou até cinematográfica. Porém,

apesar dessa semelhança com a linguagem modernista, a relação de Noel com a modernidade

não se mostra fácil de definir. Como vemos em Três apitos, composição de 1933:

Quando o apito Da fábrica de tecidos Vem ferir os meus ouvidos Eu me lembro de você (...) Você que atende ao apito De uma chaminé de barro Por que não atende ao grito tão aflito Da buzina do meu carro? Sou do sereno Poeta muito soturno (...). (Três Apitos, Noel Rosa, 1933)

Se a modernidade representada pela fábrica atrapalha o seu namoro, a modernidade do

automóvel (ícone privilegiado no universo masculino) é o seu orgulho e argumento para atrair

a namorada. A dinâmica do mundo urbano moderno era sem dúvida a do mundo das

composições de Noel, e nele se encaixava muito bem a sua criatividade ousada. A

modernidade se mostrava muito complexa em seus vetores valorativos, e são estes conflitos

mais evidentes em seus sambas, do que sua suposta adesão à estética modernista.

Noel se declara poeta e boêmio, fixando um “personagem brasileiro” muito comum

aos sambas. Personagem em tudo oposto ao burguês, mas que tampouco está do lado do

proletariado clássico. O “herói brasileiro” das canções de Noel estará muito menos ligado ao

trabalhador, do que ao vagabundo, ou o bon vivant, poeta e cantor, galante e namorador;

vivendo no mundo do prazer: o prazer do amor, da bebida e da canção. A relação do

compositor com a modernidade é, portanto, tumultuada também, porque o samba escolhe uma

terceira opção para o dualismo da luta de classes.

O compromisso com a modernidade é muito evidente, no entanto, quando se trata de

definir um cenário para os sambas. Trata-se do cenário urbano que a partir daí pertencerá à

tradição, criada em parte por Noel e reforçada depois por Chico Buarque:

179 Um exemplo de enumeração na modernista poesia de Oswald de Andrade: “(..) A campanhia telefona/

Cretones/ O cinema dos negócios/ Planos de comprar um forde/ o piano fox-trota/ janela/ Bondes”. Do poema Postes da Light (Bengaló), contido no livro de poesias Pau Brasil, publicado em Paris (ed. Au Sans Pareil) em 1925. IN: ANDADRE, Oswald de. Oswald de Andrade / seleção de textos, notas, estudos biográficos, histórico e crítico por Jorge Schwartz. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural (série Literatura Comentada), 1988.

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Eu faço samba e amor até mais tarde E tenho muito sono de manhã Escuto a correria da cidade, que arde E apressa o dia de amanhã De madrugada a gente ainda se ama E a fábrica começa a buzinar O trânsito contorna a nossa cama, reclama Do nosso eterno espreguiçar. (...) (Samba e amor, Chico Buarque, 1969)

Este cenário é em essência, o mesmo de Noel, apenas visto de outro ângulo por Chico

Buarque. A diferença é que nesta canção, o eu lírico já tem a namorada, mas os símbolos da

modernidade na cidade, do lado de fora do ninho de amor, continuam a atrapalhar a paz do

casal: a mesma buzina da fábrica que aparece em Noel, e o trânsito barulhento da cidade ainda

mais tumultuada. O personagem brasileiro continua o mesmo. Chico escreveria ainda outras

referências a esta buzina (ou sirene) da fábrica como uma inimiga do amor, como na canção

“Primeiro de Maio” (1977), um dia em que os trabalhadores não precisam se preocupar com

ela:

Hoje a cidade está parada E ele apressa a caminhada Pra acordar a namorada (...) Quando a sirene não apita Ela acorda mais bonita Sua pele é sua chita, seu fustão E, bem ou mal, é seu veludo É o tafetá que Deus lhe deu (Primeiro de Maio, Milton Nascimento e Chico Buarque, 1977)

A operária da fábrica de tecidos, neste dia em que não responde ao apito que a

escraviza, acorda até “mais bonita”, podendo cuidar de si do mesmo modo que faz na fábrica

com os panos. O cenário e os personagens são também os mesmos.

No próximo segmento da canção “Samba e amor”, em apenas uma estrofe, vemos

resumido o núcleo central da brasilidade cantada nas demais composições dos dois autores:

No colo da bem-vinda companheira No corpo do bendito violão Eu faço samba e amor a noite inteira Não tenho a quem prestar satisfação. (...) (Samba e amor, Chico Buarque, 1969)

“Samba e amor” é tudo o que o poeta boêmio pode desejar, representados aqui pelos

corpos da bem-vinda companheira e do bendito violão. Isto tudo usufruído por quem foge do

trabalho e não tem a quem prestar satisfação. Este é o herói brasileiro por excelência na

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canção popular brasileira, exaltado pelos compositores aqui analisados, amante inveterado do

samba (e do carnaval), das mulheres, da vida boêmia. Um brasileiro que representa os sonhos

dos brasileiros, distante do seu real cotidiano de trabalhador. Depois de fazermos a ressalva de

que a “companheira” que aparece em Chico Buarque, será a “mulata” ou a “morena” para

Noel Rosa, podemos afirmar que nesta canção estão os mesmos “patrimônios culturais”

brasileiros relacionados por Noel. Vejamos, para corroborar esta afirmação, a significativa

composição de Noel sobre o tema, com o título de Quem dá mais (ou Leilão do Brasil), que

traz no selo do disco a descrição “samba humorístico”:

Quem dá mais? Por uma mulata que é diplomada Em matéria de samba e de batucada Com as qualidades de moça formosa Fiteira e vaidosa, e muito mentirosa Cinco mil réis, duzentos mil réis, um conto de réis! Ninguém dá mais de um conto de réis? O Vasco paga o lote na batata E em vez de barata Oferece ao Russinho uma mulata (...). (Quem dá Mais?, Noel Rosa , 1930)

Como sendo obrigado a vender seus “maiores” patrimônios, o compositor ironiza a

situação financeira caótica do país. O primeiro "tesouro" brasileiro a ser oferecido é a mulata.

Suas qualidades e defeitos (que não são vistos como tais) são anunciados em um leilão.

Diplomada em matéria de samba e de batucada, ela personifica várias características do “povo

brasileiro” e o seu “preço” (uma referência à escravidão que também marcou o país) pode

variar conforme a capacidade financeira do comprador (50 mil, 200 mil ou 1 conto), quase

como se fosse uma prostituta: fiteira, vaidosa e muito mentirosa. Quanto a este último

detalhe, é preciso comentar que em suas letras, Noel teria uma relação constante e ambígua

com as mentiras das mulheres 180. O Vasco (o futebol já despontando como outra das novas

brasilidades) acaba arrematando o lote (da mulata), para doá-lo ao seu jogador Russinho,

bastante popular no Rio de Janeiro à época, e que havia sido premiado com uma barata (um

automóvel esportivo da época) da Chrysler. Noel faz a troca da barata (importada) pela mulata

(nacional), o que para ele “é negócio”.

Na segunda estrofe, o leiloeiro oferece o segundo “tesouro” da brasilidade:

180 Noel Rosa muitas vezes se queixará desta prática, mas ás vezes confessará seu fascínio por este recurso, para

ele tão sedutoramente feminino, como no samba Mentir (Mentira Necessária) de 1932, quando afirma: “A mulher que não mente não tem valor”, samba gravado por Mário Reis. 78 rpm, Odeon, 1933.

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(...) Quem dá mais...? Por um violão que toca em falsete Que só não tem braço, fundo e cavalete Pertenceu a dom Pedro, morou no palácio Foi posto no prego por José Bonifácio Vinte mil réis, vinte e um e quinhentos, cinqüenta mil réis! Quem dá mais? De cinqüenta mil réis? Quem arremata o lote é um judeu (Quem garante sou eu) Pra vendê-lo pelo dobro no museu (...) (Quem dá Mais?, Noel Rosa , 1930)

A origem das dívidas externas brasileiras, as mesmas que levavam ao leilão do

patrimônio nacional, e a situação de pobreza do país que havia obrigado o patriarca ao gesto

desesperado, são os motes para o humor deste trecho. O violão hipotético, apesar de inútil tem

seu valor “histórico”, que interessa apenas ao museu, como se este fosse um depositório de

inutilidades históricas. Com essa crítica é que se reveste o personagem do judeu, que longe de

representar um sentimento anti-semita do autor, como pode sugerir hoje em dia a primeira

audição, aludia ao vendedor ambulante apelidado à época de prestamista ou simplesmente de

“judeu“. Chamavam de judeu até mesmo aos turcos que faziam este tipo de comércio 181. Era

comum à população de baixa e média renda manter dívida com este tipo de comerciante,

sempre renovada na encomenda de novas mercadorias, de forma que a esperteza do judeu é

que é o alvo da crítica de Noel e não sua característica racial 182.

O terceiro “tesouro” nacional a ser leiloado era o samba, mas não o samba genérico, o

ritmo transformado em patrimônio, e sim aquele mesmo samba que estava sendo cantado,

feito num padrão diferente do da turma do Estácio, padrão mais próximo ao samba do

Salgueiro, feito sem introdução e sem segunda parte, com um simples estribilho – formato

adequado para os inúmeros improvisos que os sambistas de lá faziam:

Quem dá mais? Por um samba feito nas regras da arte, Sem introdução e sem segunda parte, Só tem estribilho, nasceu no Salgueiro E exprime dois terços do Rio de Janeiro Quem dá mais? Quem é que dá mais de um conto de réis? Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três! Quanto é que vai ganhar o leiloeiro

181 MÁXIMO, J; DIDIER, C. Opus cit. p. 167. 182 Noel Rosa falaria ainda, no ano seguinte, sobre o costume de “empenhar-se” em dívidas com estes “judeus”,

no samba Cordiais saudações: "A vida lá em casa está horrível/ Ando empenhado nas mãos de um judeu". Cordiais Saudações, Noel Rosa, “samba epistolar”. Noel Rosa e Bando de Tangarás. 78 rpm. Parlophon, 1931.

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Que também é brasileiro E em três lotes vendeu o Brasil inteiro? Quem dá mais... ? (Quem dá mais?, Noel Rosa, 1930)

Apesar das deficiências, semelhantes ás do violão pertencente a Pedro I, este samba

havia sido gerado “nas regras da arte” – frase que deu ensejo a inúmeras reflexões (muitas

acadêmicas) sobre o samba do período – e, além disso, poderia exprimir “dois terços do Rio

de Janeiro” (outro verso bastante comentado pelos especialistas e apreciadores de Noel) e que

atestava assim o valor e a autenticidade, ou antes a brasilidade, deste samba “capenga”, como

o próprio país, mas verdadeiro, alegre, descompromissado, “autêntico” como o próprio

brasileiro . Todo o samba dizia que o Brasil vinha mantendo em situação precária os seus

grandes patrimônios: a mulata, o samba e o violão (que se tornara o instrumento musical mais

emblemático da brasilidade, juntamente com o pandeiro), e agora o país era obrigado a se

desfazer deles pelo preço que dessem. É relevante notar que a venda do artigo “samba”, na

última parte da canção, não produz a mesma ironia dos versos anteriores, porque enquanto a

mulata e o violão (que só existia na metáfora) eram de fato artigos invendáveis, este (o

samba), que deveria acompanhá-los nesta categoria, não o era, uma vez que vender as

composições fazia parte do cotidiano dos sambistas da sua época. Vender o samba

representava vender o talento, coisa também invendável, no entanto, pela necessidade do

sambista, este era livremente comercializado por outros “brasileiros”, que se aproveitavam do

talento alheio. Está aí outra brasilidade evidenciada: ao dizer que o leiloeiro é também

brasileiro, o poeta denuncia a corrupção e a falta de patriotismo tão comuns ao povo do

Brasil.

Os três lotes: a mulata mentirosa, o violão que não é mais um violão, e o samba

incompleto, mas ainda competente, apresentam qualidades e defeitos tipicamente brasileiros,

falseados, disfarçados e colocados à venda em um leilão, onde se tentaria exagerar a respeito

da qualidade dos produtos para que se obtivesse o melhor preço possível. No discurso de

venda, porém, nossas riquezas já estavam comicamente depauperadas. A ironia ácida se dilui

no cômico absurdo da situação e tudo se torna lógico dentro de um non-sense geral, pleno de

significados críticos. Para Noel, nesses três lotes estava o “Brasil inteiro”, vendido por um

brasileiro, que surpreende por sua falta de amor ás brasilidades. Notemos que os símbolos da

brasilidade estão todos ligados à modernidade, mas não descartam suas heranças históricas: a

escravidão e a musicalidade de negros e brancos.

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Chico Buarque também usará de um pregão para anunciar outros bens culturais

brasileiros, que, como aqueles de Noel, pareciam em vias de extinção:

Estou vendendo um realejo Quem vai levar? Quem vai levar? Já vendi tanta alegria Vendi sonhos a varejo Ninguém mais quer hoje em dia Acreditar no realejo (...) Quando eu punha na calçada Sua valsa encantadora Vinha moça apaixonada Vinha moça casadoura Hoje em dia já não vejo Serventia em seu cantar Então eu vendo o realejo Quem vai levar ? (...) (Realejo, Chico Buarque, 1967)

Aqui, os elementos da brasilidade ameaçada são todos provenientes de um Brasil

arcaico, anterior à modernização urbana, do tempo do realejo e das previsões futurológicas

que ele fazia (“alegria / sonhos”), do tempo da valsa e da inocência das moças casadoiras. E

quem os vende aqui não é um interesseiro qualquer (um brasileiro sem coração, como em

Noel), mas o próprio artista, que vê com tristeza a modernização substituindo o encanto de um

passado cultural romântico. Tradição aqui tem uma raiz mais profunda, que estava ameaçada

pelo comércio do que não se deveria vender: aquilo que “é nosso”. É a mesma preocupação

do samba de Noel. Chico ainda repetirá essa mesma ameaça sobre o “patrimônio brasileiro”

tempos depois em “Bancarrota blues”, de 1985:

Uma fazenda / Com casarão Imensa varanda Dá gerimum / Dá muito mamão Pé de Jacarandá Eu posso vender Quanto você dá? (...) (Bancarrota Blues, Edu Lobo e Chico Buarque, 1985)

Aqui, as riquezas da terra em que “se plantando tudo dá” (o mundo rural arcaico

brasileiro) estão todas se desfazendo a qualquer preço, sendo desperdiçada pelos próprios

brasileiros, como vemos acontecer com os casarões (sedes das fazendas de café), as

varandas, o jacarandá. Este sentimento de perda da brasilidade arcaica rural, que ás vezes

se torna também urbana, será repetido algumas vezes por Chico Buarque, quase sempre

com profunda tristeza, como na canção “Gente Humilde”:

Tem certos dias

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Em que eu penso em minha gente E sinto assim Todo o meu peito se apertar (...) Igual a como Quando eu passo no subúrbio Eu muito bem Vindo de trem de algum lugar (...) São casas simples Com cadeiras na calçada E na fachada Escrito em cima que é um lar Pela varanda Flores tristes e baldias Como a alegria Que não tem onde encostar E aí me dá uma tristeza No meu peito Feito um despeito De eu não ter como lutar E eu que não creio Peço a Deus por minha gente É gente humilde Que vontade de chorar (Gente humilde, Garoto, Vinícius de Moraes e Chico Buarque, 1969)

Cadeiras na calçada, varandas, vida simples do subúrbio, cada vez mais transformado

pela violência e pelo trânsito, estes são os sinônimos da brasilidade quase já perdida nesta

canção, feita em parceria com outro “poeta das brasilidades”, Vinícius de Moraes, e com o

músico Garoto. Os lares antes abertos e emocionantes pela humildade e personalidade das

fachadas, serão compulsoriamente agredidos no choque com a modernidade industrial dos

anos 1960 e daí a sensação de perda gradual desta realidade que era tão “nossa”. Nesta letra,

sentimos que o brasileiro não é mais o vagabundo idealizado, mas o trabalhador humilde que

crê em Deus e vive sem grandes pretensões, e por quem, ainda, é quase impossível se fazer

alguma coisa, restando ao cantor o despeito de “não ter como lutar”. Vemos aqui um traço

evidente da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária proposta por Marcelo

Ridenti e já explanada no capítulo anterior, e que envolve a identificação dos artistas

“engajados” com o "homem simples". A vida humilde que carrega em si não apenas uma

inerente simpatia, mas até mesmo uma beatitude coroada pelo sofrimento. O mesmo contexto

aparece em “A Banda”:

(...) A minha gente sofrida Despediu-se da dor Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor

(...) A moça triste que vivia calada sorriu

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A rosa triste que vivia fechada se abriu E a meninada toda se assanhou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor (...) Minha cidade toda se enfeitou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor Mas para meu desencanto O que era doce acabou Tudo tomou seu lugar Depois que a banda passou (...) (A Banda, Chico Buarque, 1966)

A Banda, outro patrimônio tão esquecido quanto o realejo, a carroça ou a palhoça, tem,

como estes, um encanto próprio, capaz de transformar as mais profundas tristezas e até de

conter por um instante o moto-contínuo da modernidade, paralisando todas as atividades da

cidade. Mas, assim como o realejo e o antigo coreto, a banda não encontra mais o seu lugar

nas grandes cidades, e sim talvez somente nas cidades do interior onde parte da brasilidade

“mais autêntica” sobrevivia supostamente com mais dignidade. No final, a mesma gente

sofrida volta para a sua dor diária. E a banda? Quando voltará? Estávamos perdendo mais que

um patrimônio: um verdadeiro lenitivo para a vida moderna, representando um instante de

sonho, e um sonho coletivo.

Em “Samba da boa vontade”, composto em parceria com João de Barro, em 1931,

Noel Rosa faz um resumo da sua visão sobre o Brasil. Contemporânea dos acontecimentos

tumultuados da Revolução de 1930, a música é uma resposta ao pedido do Governo

Provisório para que a população mantivesse o otimismo (perante as dificuldades que

encarava), e que apontava as mazelas do país em época de crise internacional, sem nunca

perder o bom humor e a sutileza da ironia:

- Campanha da Boa Vontade! (falado) Viver alegre hoje é preciso Conserva sempre o teu sorriso Mesmo que a vida esteja feia E que vivas na pinimba Passando a pirão de areia Gastei o teu dinheiro Mas não tive compaixão Porque tenho a certeza Que ele volta à tua mão Se ele acaso não voltar Eu te pago com um sorriso E o recibo hás de passar (...) (...) Comparo meu Brasil

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A uma criança perdulária que anda sem vintém Mas tem a mãe que é milionária E que jurou, batendo o pé Que iremos à Europa. Num aterro de café. (Samba da Boa Vontade, Noel Rosa e João de Barros, 1931)

João Máximo e Carlos Didier na biografia que fizeram de Noel, afirmam que nesta

música, o compositor deixava claro o que pensava do capitalismo: “os ricos podem gastar seu

dinheiro à vontade, pois ele sempre acaba voltando às suas mãos” 183. Isto nos informa que a

estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária, que Ridenti localizou nos anos 1960,

tem suas ligações muito claras com a formulação da identidade cultural brasileira já á época

de Noel, como nestes exemplos, com a denúncia da desigualdade social e da malversação de

nossas riquezas. Aqui, o café (outro símbolo da brasilidade) jogado ao mar, em quantidade

que tornaria possível um aterro que levasse á Europa, servia de prova da irresponsabilidade de

uma nação-criança esbanjadora e inconseqüente: o produto do país da monocultura e da

pobreza generalizada jogado ao mar em estranhas políticas econômicas, em meio a sorrisos

inexplicáveis de Getúlio Vargas. Realidade ainda mais inexplicável quanto se observa a

imensa riqueza natural do país (“tem a mãe que é milionária”).

Esta denúncia é reiterada uma vez mais na canção de Chico Buarque que equivale à

despedida de outras das nossas riquezas, em meio às alterações culturais: Bye-Bye Brasil:

(...)Tomei a costeira em Belém do Pará Puseram uma usina no mar Talvez fique ruim pra pescar, meu amor... (Bye-bye Brasil, Roberto Menescal e Chico Buarque, 1979) No Tocantins O Chefe dos Parintintins Vidrou na minha calça Lee Eu vi uns patins pra você Eu vi um Brasil na tevê Peguei uma doença em Belém Agora já tá tudo bem, Mas a ligação tá no fim Tem um japonês trás de mim Aquela aquarela mudou (...) No Tabariz O som é que nem os Bee Gees (...) Eu tenho saudades da nossa canção Saudades de roça e sertão (...) (Bye-bye Brasil, Roberto Menescal e Chico Buarque, 1979)

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Fica evidente nesta canção que o Brasil “autêntico” idealizado por Ary Barroso

(“Aquarela do Brasil”, 1939), por David Nasser e Alcir Pires Vermelho (“Canta, Brasil”, de

1941) ou por Silas de Oliveira (“Aquarela brasileira”, 1964) ficou no passado: “Aquela

aquarela mudou...”, diz Chico Buarque. Não se poderia mais cantar as velhas belezas naturais

ou humanas do país, ou de tomá-lo através de categorias ingênuas como “povo”, “raça”,

“brejeirice” ou “malemolência”, com na velha versão ufanista. A calça Lee, os patins, o

japonês, todos estes elementos exógenos da “Aquarela do Brasil”, mudaram de vez o cenário

nacional. E aqui voltamos ao início deste capítulo, quando Noel também anunciava suas

saudades de roça e sertão. A saudade – forma de sentimentalismo tipicamente português –

será, por si, um tema constante na música popular brasileira e parte intrínseca da tradição

tupiniquim: saudade de um amor antigo, de um tempo perdido, de um Brasil “autêntico” mas

ameaçado; de um Brasil idealizado na música como seria a própria favela ou o subúrbio,

transformada muitas vezes em “lugar de gente simples, trabalhadora e honrada”. A crítica e a

denúncia, assim como em Noel, comandam a mensagem musical desta música de Chico.

Para Adélia Bezerra de Menezes, ao tempo de resistência política, os temas

predominantes na obra de Chico Buarque, nas duas primeiras décadas da sua produção, eram:

a nostalgia, a utopia e a crítica social. Estes temas foram, sem dúvida, muito marcantes

durante o período do regime militar, mas não podemos deixar de lembrar que também foram

comuns nos anos 1930. Afinal, para o Brasil, os dois períodos são considerados especialmente

conturbados, revolucionários, e por isso mesmo com a presença crescente de forças

repressoras. Para a pesquisadora, estas características revelariam uma recusa da realidade

imposta no presente de Chico Buarque, configurando uma luta de resistência 184. Para nós,

revelam ainda uma parte importante da brasilidade: a sensação também perene de

incapacidade do povo brasileiro de realizar no “presente” (fosse nos anos 1930 ou nos anos

1960), as transformações necessárias para a felicidade e harmonia da Nação. Nostalgia, utopia

e crítica social dão forma a uma reação a esta impossibilidade, e são particularmente visíveis

nos momentos de tensão social e política, como as que caracterizam estes anos. Daí serem

estes elementos comuns nas obras de compositores mais sensibilizados com as questões que

envolvem a qualidade de vida e a liberdade de expressão do povo brasileiro. A reação dos

compositores não pode deixar de ser entendida como uma forma contundente de manifestação

183 MÁXIMO, J & DIDIER, C. Noel Rosa, uma biografia. Op. cit, 1990. p. 170. 184 MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho Mágico: poesia e política em Chico Buarque. 2ª ed. São Paulo:

Ateliê Editorial, 2000 (Prêmio Jabuti de Ensaio – 1982).

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de patriotismo, de onde concluímos que Noel e Chico são grandes exemplos de patriotas, ou

apaixonados “brasilianistas”.

Vimos que, por possuir enorme capacidade de eloqüência, a poesia destes

compositores é, sem dúvida alguma, o que mais chama atenção dos historiadores e analistas

literários, assim como dos jornalistas, críticos e até mesmo dos fãs. Porém, para verificarmos

outras formas de brasilidade, não podemos esquecer de atentar também para os aspectos

melódicos e harmônicos das composições - elementos essencialmente nacionais, que também

foram alterados e reforçados pelos nossos dois compositores, como nos lembra Sérgio Cabral:

Noel Rosa, como Chico Buarque de Hollanda e Caetano Veloso, chama a nossa atenção, primeiramente, pela letra. Ele, Chico e Caetano são poetas que encontraram na música popular o campo ideal não só para fazer poesia, mas também para mudar as antigas regras. (...) Ao revolucionarem a letras, acabaram revolucionando a música. É só avaliar a obra de Noel, Chico e Caetano, no início das suas carreiras, para comprovar que não são apenas as suas letras que são novas; a música também é. É a letra carregando a música para novos horizontes. O mesmo poderia ser dito em relação a compositores como Cole Porter ou Antônio Carlos Jobim e Newton Mendonça. Mas estes são essencialmente músicos, ao passo que Noel, Chico e Caetano são essencialmente poetas 185.

Em “Com que roupa”, primeiro grande sucesso de Noel Rosa, temos, não só um

exemplo do que afirma Sérgio Cabral, mas também uma mostra de como a brasilidade pode

estar sendo discutida ou inferida através de elementos exclusivamente musicais (harmônicos,

rítmicos e melódicos), ou em elaboradas formas de metalinguagem. João Máximo e Carlos

Didier nos contam, por exemplo, que a melodia que originalmente acompanhava os primeiros

versos do samba de Noel, teve que se submeter às alterações do maestro e arranjador Homero

Dornellas para torná-la publicável. Isto foi necessário porque a música apresentava a mesma

seqüência de notas da primeira estrofe do Hino Nacional Brasileiro, composto por Francisco

Manuel da Silva, que Noel já havia parodiado na adolescência e que tinha o hábito de tocar ao

violão 186. Seria possível perceber aqui mais uma ligação entre o personagem que não tem

roupa para ir ao samba e o país depauperado em que ele vive. A sutileza, no entanto, dificulta

muito a compreensão desta crítica, até porque as alterações colocadas pelo Maestro Dornelas,

com o consentimento de Noel, lançam longe a possibilidade desta associação pelo ouvinte.

185 CABRAL, Sérgio. “O eterno jovem”. In: Songbook Noel Rosa. Vol 1. Produzido por Almir Chediak.

Petrópolis: Ed Vozes/ Lumiar, 1991. p. 8 e 10. 186 MÁXIMO, J & DIDIER, C. Op. cit. 1990, pp. 120-121.

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Porém, podemos imaginar o impacto que teria o grande sucesso “Com que roupa”, em 1930,

se na melodia inicial fosse facilmente reconhecível o Hino Nacional.

No que se refere à brasilidade, mais importante porém, do que perceber as críticas

sutis que alusões como esta podem inferir, é atentar para o fato de que a melodia deste e de

outros sambas trazem também um registro melódico que se aproxima da linguagem falada, no

caso, a maneira de falar do brasileiro, ou melhor, do carioca. Ou seja, a linha melódica – a

seqüência de notas que formam a frase melódica - apresenta alterações na escala musical

(notas graves e agudas) que são correspondentes à forma falada, como uma repetição, dentro

da escala musical, da entonação típica do “falar á brasileira”. Este tipo de construção

melódica, onde a letra “se casa” com a melodia seguindo a forma da voz falada, foi

classificada por Luís Tatit, como a primeira das mais evidentes formas de “persuasão”

utilizada pelos compositores para obter a assimilação de suas músicas pelo público

consumidor. Está aí, mais um elemento importante da tradição. A esta forma, ele deu o nome

de Persuasão Figurativista, que foi utilizada não só por Noel, mas por muitos compositores,

entre os quais, também Chico Buarque.

Cabe aqui uma pequena explanação sobre as descobertas e afirmações de Luís Tatit

que em seus livros A canção e O cancionista 187, trouxeram novos e valiosos parâmetros para

a discussão sobre os elementos formais da canção. É reconhecido o valor intrínseco que se dá

á construção melódica e á construção poética. Tatit, porém, atentou para um elemento muito

importante, mas pouco notado ou comentado. Trata-se da forma de união destes dois

elementos, que significa uma arte a parte. Para o músico e musicólogo, que utiliza a semiótica

como a base teórica auxiliar principal, o êxito de comunicação entre o destinador (ou locutor -

compositor) e o destinatário (ouvinte) depende fundamentalmente da adequação e da

compatibilidade entre a linha melódica e a letra. Deste “casamento” depende toda a “eficácia

da canção”, que tem como um dos seus ingredientes principais, segundo a análise de Tatit, os

“processos de persuasão”. Como eficácia, entendemos o sucesso da comunicação traduzida

pelo desejo do consumidor de ouvir uma determinada canção, e por processos de persuasão,

as formas de adequação entre a melodia e a letra, que são basicamente três: Persuasão

figurativa, persuasão passional e persuasão decantatória. Formas que são paralelas em

termos de produções individuais, que podem apresentar-se mescladas em muitas composições

187 TATIT, Luiz. A Canção: eficácia e encanto. São Paulo: Atual, 1986; e TATIT, Luiz. O cancionista:

composição de canções no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1996.

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e que são presentes em todas as fases da produção musical popular brasileira. Se, por

exemplo, ouvirmos “Garota de Ipanema” 188, poderemos perceber a “coincidência” ou

compatibilidade entre o texto, que descreve o balanço do andar da “garota” e a melodia que

reitera este balanço, reforçando a mesma regularidade dos passos. Esta compatibilidade nos

persuade, nos “encanta”, e somos levados a querer ouvir cada vez mais e a reconhecer que a

canção nos agrada. Esta adequação justifica, segundo os parâmetros apresentados, a eficácia

da canção 189. Por hora, continuemos comentando o formato dos sambas de Noel e de Chico.

Dissemos que uma das formas mais notórias de adequação entre os elementos

constitutivos na música de Noel Rosa, é aquela que Tatit chamou de persuasão figurativa,

onde “a melodia reproduz as inflexões entoativas e os sintomas gerais da fala” 190. Nestes

casos, estamos diante de composições que comunicam não apenas a mensagem da letra, mas

também muito da conformação da fala, muito do som ou do jeito brasileiro de falar. Isto é

mais facilmente percebido nas composições que simulam um interlocutor para o eu poético,

ou seja, que simulam um diálogo. Veremos os exemplos, adaptando a representação gráfica

criada também por Luís Tatit, onde a letra da canção é colocada em diferentes espaços

horizontais equivalentes às alturas musicais da melodia. No gráfico assim obtido, cada linha

representa o espaço musical de um ou meio tom dentro da tonalidade da canção - a primeira

linha de cima representando a nota mais aguda da melodia cantada e a última linha abaixo, a

nota mais grave. Neste tipo de representação, estaremos desprezando as diferenças causadas

pelos acidentes musicais (sustenidos, bequadros e bemóis) em prol da simplificação visual na

compreensão de uma linha melódica gráfica simétrica com a da canção, mas que não tem o

compromisso de ser-lhe absolutamente equivalente 191:

188 “Garota de Ipanema”, Tom Jobim e Vinícius de Moraes. 189 Arranjos e gravações trabalhadas podem intensificar a “eficácia da canção”, contudo, os elementos principais,

melodia/harmonia, letra e a adequação entre estes, são, na opinião de Luiz Tatit, os elementos essenciais identificáveis em qualquer canção e que tornam possível a persuasão do ouvinte.

190 TATIT, Luiz. A Canção. Op. cit. p.31. 191 A forma gráfica aqui apresentada é uma adaptação do formato criado por Luiz Tatit para dispensar o uso de

partituras e explicitar os desenhos melódicos. A diferença básica é que Tatit dá a cada linha o valor preciso de meio tom, ao passo que aqui, cada linha (ou cada espaço horizontal) representa às vezes meio tom e outras vezes um tom inteiro, correspondendo à tonalidade colocada pela música. Com esta simplificação, um número menor de espaços (ou linhas) é utilizado, permitindo assim uma identificação mais clara das “linhas melódicas”, dos “temas” que se repetem, dos pontos de tensão (frases ascendentes ou que se dirigem para os tons agudos) e dos pontos de repouso (frases descendentes ou que se dirigem para os tons graves). Os acidentes musicais (sustenidos, bemóis e bequadros) são aqui desprezados em prol deste reconhecimento facilitado. É importante notar como a letra apresenta a preocupação de acompanhar a melodia no que se refere a esse campo de tensões, para que haja coerência entre as informações associadas. Sem esta coerência não ocorreria a persuasão figurativa e o ouvinte não seria “cooptado”. As alturas relativas em que as letras foram colocadas nestes gráficos seguiram sempre as notas musicais das partituras publicadas nos songbooks

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A Rita, Chico Buarque, 1965 :

e- me é -la o de -vou -riso dela com que Rita meu -ri- A le- sor- -so Meu -to sor- No as- Levou jun- -sunto

pei- Levou -tra- tra- pra- Que -reito Arrancou- seu -to, -po, -to pa- di- -me -to E re- seu seu do -pel! tem mais

Vemos no desenho criado pela letra relacionada com as alturas musicais, uma forma

correspondente com a forma natural da fala, num tom de conversa coloquial, onde alguém

lamenta a perda de um grande amor. Para maior verificação desta relação basta fazer a

experiência de dizer o texto procurando entonações equivalentes às do gráfico. Nota-se, por

exemplo, como as frases conclusivas equivalem sempre a frases em escalas descentes, como

em “No sorriso dela meu assunto” ou “E tem mais”. Quando o personagem enumera os

pertences levados pela Rita (novamente o uso da enumeração), o compositor repete a mesma

nota aguda nas sílabas tônicas de cada elemento “seu retrato/ seu trapo/ seu prato”, (tra – tra

– pra) e numa nota abaixo as sílabas seguintes (to – po – to) criando um jogo onomatopaico

que correspondente também a uma provável interpretação falada, que repete o tom agudo em

cada elemento e que no caso, se transforma quase num trava-língua. Notemos que as palavras

escolhidas parecem partir-se, rasgarem-se, como se poderia fazer com retratos, trapos e

pratos, no momento de separação ou briga de um casal, com sílabas que se assemelham ao

som de coisas quebradas. E o que dizer da naturalidade da melodia em “Que papel!”, onde a

produzidos por Almir Chediak: Songbook Noel Rosa, 3 volumes. Rio de Janeiro: Lumiar, 1991; e Songbook Chico Buarque, 4 volumes. Rio de Janeiro: Lumiar, 1999.

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última nota (a terça menor do acorde), rompendo com a seqüência anterior, corresponde a

uma suspensão melódica perfeita para o sentido exclamativo?

Na seqüência da mesma música: “Uma imagem de são Francisco/ E um bom disco de

Noel”, Chico une, numa mesma frase, o seu próprio nome ao de Noel (ainda que não o tivesse

propositalmente) para resumir o que a Rita havia levado de mais valor: dois patrimônios

inegáveis da tradição cultural brasileira: a devoção a São Francisco (a religiosidade do povo)

e o bom samba de Noel:

A Rita, Chico Buarque, 1965 (continuação):

-cis- E um bom dis- de No- São Fran- -co -co -magem de -tou -mor Rita nos- Uma i- A ma- -so a- -el

-tão não não Mas causou per- Nem Por- ti- -gança heran- tos- -que -nha De -ça um vin- dei- Não levou -xou anos O da- Levou pla- po- -ganos Os meus vinte -das os -nos -bres meu cora- -nos meus Meus en- -ção e

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E além de Me deixou tudo vi- mudo -o-

Um -lão

Para a segunda letra, a partir de “A Rita matou nosso amor...” notamos que a melodia

volta ao início, mas para depois ter um novo desfecho com frases cada vez mais agudas que

acompanham o crescimento da emoção do personagem - atingindo o clímax de sua revolta, e

também do tom musical, na palavra “anos”, da frase: “Os meus vinte anos do meu coração” -

justamente a sua perda mais significativa, a da ilusão da juventude ao acreditar na eternidade

do amor, uma ilusão que lhe custou “anos”. Daí o tom mais lancinante da palavra. No final a

herança deixada por Rita é ainda mais triste: “deixou mudo o violão”. A tristeza calou o que o

compositor tinha de mais autenticamente seu (brasileiro). Mas esta, é uma afirmação que o

próprio samba desmente, mostrando a sua capacidade plena de expressar a desilusão. E, se na

sua desilusão, o poeta estava arrasado e querendo ficar mudo, ao contrário, pululava a

eloqüência do seu violão. Vemos, a propósito, como as rimas se beneficiam das repetições

melódicas, tais como ocorre na rima “Francisco” / “disco”. O intervalo musical das sílabas

cis-co e da palavra disco é exatamente o mesmo reforçando a musicalidade própria da rima.

Neste tipo de composição (persuasão figurativa), a ação é sempre presentificada, isto

é, a letra simula uma ação no presente, como no suposto ou implícito diálogo entre o amante

de Rita e o ouvinte do samba fazendo o papel de interlocutor. Esta foi e continua sendo uma

marca característica do samba carioca, o uso da persuasão figurativa, formalizada ou

constituída nos anos 1930, onde as canções simulam a linguagem coloquial, com as elevações

e descendências de tons típicas do discurso lingüístico oral. Figurativizar significa, no uso que

fez Tatit para caracterizar esta forma de persuasão, simular através da presentificação uma

comunicação ou uma ação do dia-a-dia. Vejamos este formato nestes trechos de sambas de

Noel:

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“Espera mais um ano”, Noel Rosa, 1932:

-zer posso Um Vou fa- mais a- ver -pera -no ver o posso Que eu que Vou Não Es- -to teu -ver nes- re- -te -men- Pois não re- -ri- -sol- mo- a- o -que- -chei -mento (...)

“Seja Breve!”, Noel Rosa, 1933:

-ver- Seja Seja -treve -sa -cê mole Breve! breve! -bi porque vo- se a- -gar sua con- -ce- per- Não A prolon-

Seja Não a- -tro- vou o Breve! -do o tem- -mole! -cabo perden- con- -brar vo- deve a- -cê -não que Se- -le E co- -po me

Notemos que a simulação de diálogo ganha realidade com a presentificação da ação,

com os verbos no imperativo: “Espera”, “Seja breve!”, “Não amole!”, e com a repetição

melódica da entonação da fala, que faz com que imaginemos que há um interlocutor presente.

No primeiro exemplo, “Espera mais um ano”, Noel faz referência aos jargões que os

funcionários das repartições públicas, foram obrigados a criar depois das ordens do Governo

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Provisório de Getúlio para jamais dizer “não” ao contribuinte. Frases tais como: “Por

gentileza, cavalheiro, traga-me uma estampilha e um retratinho três por quatro que eu vou

ver o que posso fazer pelo senhor” 192 passaram a ser sistematicamente utilizadas e portanto,

não poderiam ser ignoradas por um crítico debochado como Noel, que aproveitará este tema

também na marcha “Gosto, mas não é muito” (com Ismael Silva e Francisco Alves, 1931):

“Fica firme, não estrilha/ Traz o retrato e a estampilha/ Que eu vou ver/ O que posso fazer

por você”.

Notemos, através do gráfico, como a linguagem da confusa burocracia da época

aparece neste samba registrada também na melodia, que reforça a entonação da mesma: “Vou

ver o que posso fazer”, terminando numa nota aguda, repete a entonação de um funcionário já

sem paciência, que responde mais incisivamente à insistência de quem o procura. A mesma

sensação de presentificação fica evidente no efeito criado pela repetição melódica da frase em

“Seja breve!”. Esta música apresenta uma pequena extensão de notas na melodia – menos de

uma oitava – o que aproxima ainda mais a melodia do tom coloquial da fala. A situação

relatada parece estar sendo vivida no exato momento em que a canção se realiza: “Não

percebi porque você se atreve/ a prolongar sua conversa mole”.

Exemplos da utilização de recursos semelhantes, na aplicação da persuasão figurativa,

encontraremos de forma abundante em Chico Buarque:

“Acorda, amor”, Chico Buarque, 1974:

-corda amor, Eu ti- -gora So- -ve um -nhei fora Ba- A- pe- que -ten- -tão -sade- ti- -do por- -lo a- -nha gente no lá

192 Sérgio Cabral, nota para “Espera mais um ano”, in: Songbook Noel Rosa, volume 2, produzido por Almir

Chediak. Rio de Janeiro: Lumiar, 1991. p. 47.

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O uso do verbo no imperativo (“Acorda”), dos dêiticos 193 espaciais (“lá fora”, “no

portão”) e da linha melódica bastante aproximada à entonação da fala, no mesmo provável

ritmo e interpretação de um ator para este texto, presentificam o discurso, da mesma maneira

que nas canções de Noel Rosa. Dêiticos (espaciais, temporais, vocativos, demonstrativos e de

gestualidade, além dos verbos no imperativo, já exemplificados 194), estas partículas que

ajudam a vivenciar “no presente” a história cantada, são utilizadas muito comumente por

nossos compositores, como nestes trechos, onde aparecem sublinhados: “Conversa de

botequim”, de Noel Rosa e Vadico (1935): “Fecha a porta da direita com muito cuidado/ (..)/

Vá perguntar ao seu freguês do lado”; “Cordiais saudações”, de Noel Rosa, 1931: “Estimo

que este mal traçado samba”; “Já não posso mais” de Noel Rosa e Almirante, 1931: “Adeus,

mulher fingida/ Eu já vou-me embora”; “Um chorinho”, de Chico Buarque, 1967: “Vem,

morena/ Não me despreza mais, não”; Até pensei”, de Chico Buarque, 1968: “Lá todo balão

caia”; “Feijoada completa”, de Chico Buarque, 1977: “Mulher/ Não vá se afobar/ Não tem

que pôr a mesa, nem dá lugar”. “Vai trabalhar vagabundo” de Chico Buarque, 1975: “Vai

trabalhar, vagabundo/ Vai trabalhar, criatura”; “Meu caro amigo”, de Francis Hime e Chico

Buarque: “Aqui na terra tão jogando futebol”, e etc.

É claro, que o uso de refrões interrompe a naturalidade deste recurso, que se vê

obrigada adaptar-se à repetição de uma “conclusão geral”, que de forma absolutamente

diferente do poema literário, se apresenta não no final, mas ao longo da história da canção.

Uma vez que a cada estrofe teremos sempre uma mesma melodia repetida (conhecidas como

“segundas partes” da música), à letra cabe a dinâmica necessária para a manutenção do fio

condutor da narrativa e do interesse do ouvinte, e por isso nestas partes ela nunca se repete. As

chamadas segundas partes correspondem, portanto, ao discurso em si, na sua dinâmica de

apresentação e relato dentro do tema da canção, justamente a parte mais eloqüente e

informativa, e apresentam a dificuldade de delimitar em seus poucos versos (a cada reinício

melódico) um discurso completo: com começo, meio e fim, ou com apresentação,

argumentação e conclusão parcial, que ainda devem estar ligadas à afirmativa expressa pelo

refrão (conclusão final). A dificuldade para o letrista nos parece ainda maior quando notamos

193 “Dêiticos são todos os elementos lingüísticos que servem para caracterizar uma situação de locução. Estes

elementos como que mostram o lugar e o momento da ação. Presentificam a cena, dando-nos a impressão de sua ocorrência naquele exato momento. Os dêiticos e as entonações se atraem mutuamente. Um não aparece sem o outro” (TATIT, Luis. A Canção, op. cit. p. 39).

194 Estas são as modalidades de dêiticos que presentificam a ação nas canções populares, segundo o estudo de TATIT, Luiz. Op. cit.

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que as estrofes contêm, na mesma melodia que se repete, uma intencionalidade expressiva

igualmente repetida. A genialidade está em encontrar versos rimados que se encaixem nesta

intenção já preparada ou moldada pela melodia e ao mesmo tempo na história que a canção

relata. Tomemos por exemplo ”É bom parar”, de Noel Rosa:

(REFRÃO ou Primeira parte:) Por que bebes tanto assim, rapaz? Chega, já é demais! Se é por causa de mulher, é bom parar Porque nenhuma delas sabe amar (Segundas Partes:) 1 - Se tu hoje estás sofrendo

É porque Deus assim quer E quanto mais vais bebendo Mais lembras dessa mulher. Não crês conforme suponho, Nestes versos da canção: “Mais cresce a mulher no sonho, (Oi...) Na taça e no coração” 195

2 - Sei que tens em tua vida

Um enorme sofrimento Mas não penses que a bebida Seja um medicamento. De ti não terei mais pena É bom parar por aí Quem não bebe te condena, oi...

Quem bebe zomba de ti (É bom parar, Noel Rosa e Rubens Soares, 1936)

O refrão corresponde, neste caso, aos quatro primeiros versos, nos quais a referência à

entonação da fala é bastante perceptível. Ele nos comunica a idéia central da música, que é

também conclusão da história que ainda vai ser contada. Este parece ser (estranhamente) a

junção de dois refrões. O primeiro: “Porque bebes tanto assim, rapaz/ Chega já é demais” e o

segundo formado pelas duas outras frases cantadas duas vezes: “Se é por causa de mulher/ é

bom parar/ Porque nenhuma delas sabe amar”. Cada parte deste anômalo refrão duplo tem

um final próprio e poderia aparecer em duas músicas distintas. Unidas desta forma, Noel

simula perfeitamente, na letra e na entonação musical, o discurso presentificado de alguém

que tenta consolar um bêbado que sofre por amor. Cada frase tem sua própria métrica, assunto

e conclusão. Entre elas, o espaço temporal e a súbita mudança de tom da melodia,

recomeçando mais aguda, reforçam a presentificação da cena adaptando-se perfeitamente à

situação, onde o conselheiro permite um instante de reflexão antes de proferir seu segundo

conselho.

195 Versos da valsa-canção “A mulher que ficou na taça” de Orestes Barbosa e Francisco Alves, 1934.

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Depois do refrão, as duas estrofes seguintes repetem a mesma estrutura melódica,

exigindo que as letras tenham similaridade expressiva. Os quatro primeiros versos de cada

estrofe têm obrigatoriamente, portanto, que conter a explanação de uma idéia, pelo caráter

conclusivo da melodia nos versos: “quanto mais vais bebendo/ mais lembras dessa mulher”

(1ª estrofe) e “Mas não penses que a bebida/ Seja um bom medicamento” (2ª estrofe). Os

versos seguintes exigem mais habilidade, pois correspondem ao trecho onde a melodia vai

para a nota mais aguda, revelando com isso um ponto de tensão, que corresponde aos versos:

“Não crês conforme suponho/ Nestes versos da canção:” (1ª estrofe) e “De ti não terei mais

pena/ É bom parar por aí...” (2ª estrofe). Os dois trechos exigem continuidade no discurso

verbal da mesma forma que a melodia exige a frase melódica conclusiva que distende a tensão

criada por ela, e teremos portanto, na primeira estrofe, os versos: “Mais cresce a mulher no

sonho, oi.../ Na taça e no coração.”; e na segunda, o aforismo: “Quem não bebe te condena,

oi.../ Quem bebe zomba de ti.”, ambas, conclusões parciais que se encaixam no refrão – a

intenção geral sugerida pela música.

Muitas vezes, o discurso se impõe de tal maneira no formato melódico que os

compositores chegam a evitar o uso de refrões, para naturalizá-lo ao máximo. Isso representa

uma dificuldade a mais para o intérprete e também para a memorização dos ouvintes,

distanciando-os, portanto, de certa facilidade na receptividade, mas não chega a impedir o

surgimento de melodias igualmente inesquecíveis. ”Três apitos” de Noel (1933), já aqui

apresentada, é uma delas. Não tem estribilho nem refrão, o que torna o discurso mais linear,

como percebe Jorge Caldeira:

O intérprete [da canção “Três Apitos”] tem que se guiar pelo sentido da letra; se cantar alguma estrofe fora de ordem (o que é possível quando não há refrão), ela perde totalmente o sentido. [...] Noel fazia músicas como quem fala 196.

Além de definir mais claramente do que qualquer compositor anterior o uso da

persuasão figurativa, a criatividade aliada à modernidade em Noel, produziu formatos

melódicos simplesmente inéditos na música popular brasileira. Como é o caso do uso do

isomorfismo das canções: “Gago Apaixonado”, onde a melodia se submete totalmente à

196 CALDEIRA, Jorge. Noel Rosa: de costas para o mar. São Paulo: Brasiliense, 1982 (3ª edição). p. 60.

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dificuldade de fala do personagem, e “Cordiais Saudações”, onde a letra e a melodia repetem

a entonação da leitura de uma carta 197:

- Correio! Cordiais Saudações! Estimo/ Que este mal traçado samba Em estilo rude na intimidade Vá te encontrar gozando saúde Na mais completa felicidade (Junto dos teus, confio em Deus) Em vão te procurei Notícias tuas não encontrei Eu hoje saudades Daqueles dez mil réis que eu te emprestei Beijinhos no cachorrinho, Muitos abraços no passarinho Um chute na empregada Porque já se acabou o meu carinho A vida cá em casa está horrível Ando empenhado nas mãos de um judeu O meu coração vive amargurado Pois minha sogra ainda não morreu (Tomou veneno e quem pagou fui eu) Sem mais, para acabar Um grande abraço queria aceitar De alguém que está com fome Atrás de algum convite pra jantar. Espero que notes bem Estou agora sem um vintém Podendo, manda-me algum... Rio, 7 de setembro de 31! (Responde que eu pago o selo) (Cordiais saudações, Noel Rosa, 1931)

Vemos também nos versos desta verdadeira crônica de época, mais uma vez a

apropriação de um símbolo pátrio numa forma que subverte seu significado, à semelhança dos

modernistas. Neste “samba epistolar” (segundo o selo do disco 198), depois de pedir a

devolução de um empréstimo, do qual está necessitado, o autor da carta conclui: “podendo,

manda-me algum.../Rio, 7 de setembro de 31”, datando a correspondência com o aniversário

da independência do Brasil, o mesmo país de “Quem dá mais?”, que “já nasceu endividado”.

197 “Gago Apaixonado”, Noel Rosa, 1930. Samba gravado por Noel Rosa em 1931, pela gravadora Columbia.

“Cordiais Saudações”, Noel Rosa, 1931. “Samba epistolar”, gravado pelo autor e a Orquestra Copacabana. Parlophon, 1931.

198 “Cordiais saudações” – samba epistolar, Noel Rosa, gravação de Noel Rosa e Bando dos Tangarás. Parlophon, 1931.

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Uma mensagem mandada por Chico Buarque numa fita K7 ao amigo Augusto Boal,

exilado na França, produziu um samba muito semelhante na utilização do mesmo

isomorfismo do “samba epistolar” de Noel:

Meu caro amigo me perdoe, por favor Se eu não lhe faço uma visita Mas como agora apareceu um portador Mando notícias nessa fita (...) Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever Mas o correio andou arisco Se me permitem vou tentar lhe remeter Notícias frescas neste disco Aqui na terra, tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock’ n’ roll Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui ta preta. A Marieta manda um beijo para os seus Um beijo na família, na Cecília e nas crianças O Francis aproveita pra também mandar lembranças A todo pessoal Adeus (Meu caro amigo, Francis Hime e Chico Buarque, 1976)

Chico Buarque, nesta canção, novamente luta contra a censura e a repressão violenta

(“a coisa aqui tá preta”) presente no país durante a ditadura militar. Mas, notemos que frases

como “Um beijo na família, na Cecília e nas crianças” ou “O Francis aproveita pra também

mandar lembranças”, também são típicas de mensagem epistolares ou telefônicas e nisto esta

composição se aproxima bastante da de Noel, vista no exemplo anterior.

Jorge Caldeira observa que Noel se aproxima das propostas do movimento modernista,

também quando se trata da valorização da “língua brasileira”, como o povo a pronuncia 199. E

Antônio Pedro Tota comenta um exemplo:

Noel Rosa, ao contrário dos compositores do seu tempo, pôs-se logo à vontade, no que diz respeito à língua, no samba de estréia Com que roupa? [1930], usando como mote, no título, um coloquialismo então em voga, a par de uma sintaxe e de um léxico bem brasileiras, ou melhor, cariocas, utilizando, enfim, o português do Brasil em sua modalidade mais viva e representativa (...) 200.

Mas, é preciso frisar que esta aproximação, ou filiação, à “língua do povo” não exclui

as influências exteriores ao universo popular, no caso, trazidas pela “boa educação” dos

199 Jorge Caldeira nos dá este exemplo tirado de Manuel Bandeira: “A vida não me chegava pelos jornais e pelo

livros/ vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo”. Op. cit. p.60.

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colégios de classe média alta e bancos de universidades freqüentados pelos autores. Noel

Rosa e Chico Buarque buscaram com esmero a realização de uma poesia “autenticamente”

brasileira numa junção do coloquialismo e da linguagem lírica herdada dos poetas da língua

portuguesa. Há até mesmo referências a versos consagrados do universo literário erudito

brasileiro em suas composições, como em “Sabiá”, a canção de Chico Buarque e Tom Jobim,

que faz referência ao célebre poema de Gonçalves Dias 201:

Sei que ainda vou voltar Para o meu lugar Foi lá e é ainda lá Que eu hei de ouvir cantar Uma sabiá (...) Vou deitar a sombra de uma palmeira Que já não há Colher a flor Que já não dá (...) (Sabiá, Tom Jobim e Chico Buarque, 1968)

Apesar de serem os autores focados muito comentados por reproduzirem a linguagem

das ruas, o discurso lingüístico de Noel, como o de Chico, não representa apenas o discurso

coloquial popular, mas oscila, como vimos neste último exemplo, entre a norma coloquial e a

norma literária ou “urbana culta”, numa formulação cuidadosa. Os exemplos a seguir

demonstram como se dá na obra dos compositores que estamos analisando, essa inter-relação

da cultura letrada branca com o universo popular mestiço, e como assim se estabelece a

relação de equilíbrio necessária para obter a representação mais completa possível do ideário

da sociedade urbana. Em seus sambas, os provérbios e expressões populares (grifados nos

exemplos abaixo) ficam revestidos de figuras de linguagem elaboradas, com sentidos e rimas

surpreendentes:

Teus impropérios retribuo com brandura Pois água mole

200 TOTA, Antonio Pedro. “Cultura, política e modernidade em Noel Rosa”. In: São Paulo em Perspectiva,

vol.15 nº.3, ISSN 0102-8839. São Paulo: Fundação SEADE (Revista eletrônica) Julho/ Setembro, 2001. http://www.scielo.br/scielo.php. Acesso 25/10/2007.

201 Trata-se de uma referência à “Canção do exílio”: “Minha terra tem palmeiras/ Onde canta o sabiá/ As aves que aqui gorjeiam,/ Não gorgeiam como lá/ (...)”. A "Canção do Exílio" de Gonçalves Dias obteve grande empatia na sociedade brasileira desde a primeira publicação no Brasil, em 1846, com o livro Primeiros cantos (Coleção "Nossos clássicos". São Paulo: Agir, 1969). Dois de seus versos estão citados no Hino Nacional Brasileiro ("Nossos bosques têm mais vida/ Nossa vida, mais amores."), e ganhou citações, paródias e recriações, principalmente dos poetas modernistas como Oswald de Andrade (“Canto de Regresso à Pátria”), Carlos Drummond de Andrade (“Europa, França e Bahia” e “Nova Canção do Exílio”) e Mário Quintana (“Uma Canção”), e também de outros compositores populares além de Chico Buarque, como Taiguara (“Terra de Palmeiras” - produzido em 1975, em Londres, em um disco que foi proibido no Brasil), onde dizia “Sonhada terra das palmeiras/ Onde andará teu sabiá?/ Terá ferido alguma asa?/ Terá parado de cantar?/(..)/ Ah! Minha amada amordaçada/ de amor forçado a se calar” (disponível no endereço eletrônico: http://www.imyra-tayra-ipy-taiguara.com/id4.html).

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Na pedra dura tanto bate até que fura (...) Espero Ainda ver-te entre lágrimas bem mal Meu bem, escuta: A araruta tem seu dia de mingau! (Araruta, Noel Rosa e Orestes Barbosa, 1932) Até amanhã, se Deus quiser Se não chover/ Eu volto pra te ver/ Oh! mulher (...) Não vou por gosto/ O destino é quem quer Adeus é pra quem deixa a vida É sempre na certa que eu jogo Três palavras vou gritar por despedida Até amanhã, até já, até logo... (Até Amanhã, Noel Rosa, 1932) (...) Deus sabe o que faz O chiquê é feio pra quem pode ter Quanto mais para quem não tem nada de seu Ai de quem não sabe se reconhecer Nunca vi um gênio igual ao teu. (Deus sabe o que faz, Noel Rosa, Ismael Silva e Francisco Alves, 1933) A sua vida nem você escreve E além disso você tem mão leve Eu só desejo é ver você nas grades Para dizer baixinho sem fazer alarde: “Deus lhe guarde! Vá com Deus!” (Seja Breve!, Noel Rosa, 1933) Mas só acha quem procura/ E agora para ter certeza Vais provar toda a dureza/ Desta madeira de lei. (Vou te ripar, Noel Rosa, 1930) Por que você me nega A esmola de um olhar? O Sol nasceu pra todos Também quero aproveitar (O Sol nasceu pra todos, Noel Rosa e Lamartine Babo, 1933) Por me deixar respirar Por me deixar existir Deus lhe pague (Deus lhe pague, Chico Buarque, 1971) Mulher/ Não vá se afobar Não tem que pôr a mesa, nem dá lugar Bota a mesa no chão e o chão ta posto E prepare as lingüiças pro tira-gosto (Feijoada completa, Chico Buarque, 1977) Aqui na terra, tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock’ rol Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta (Meu caro amigo, Francis Hime e Chico Buarque, 1976)

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Além do refinado equilíbrio de que estamos falando na linguagem dos sambas, entre a

fala coloquial e os recursos poéticos literários, os autores demonstram ainda a preocupação de

preservar ou reiterar a brasilidade dos versos. Brasilidade absolutamente idealizada por eles.

No caso de Noel, encontramos a rejeição aos estrangeirismos que penetravam a sociedade

carioca principalmente através do cinema, como na composição de 1933, “Não tem tradução”,

onde também música e letra se integram perfeitamente:

O cinema falado/ É o grande culpado/ Da transformação/ Dessa gente que sente Que um barracão/ Prende mais que um xadrez Lá no morro, se eu fizer uma falseta A Risoleta/ Desiste logo do francês e do inglês A gíria que o nosso morro criou/ Bem cedo a cidade aceitou e usou/ Mais tarde o malandro deixou de sambar/ Dando pinote E só querendo dançar o fox-trot Essa gente hoje em dia/ Que tem a mania/ Da exibição/ Não se lembra que o samba/ Não tem tradução/ No idioma francês/ Tudo aquilo que o malandro pronuncia/ Com voz macia É brasileiro, já passou de português Amor, lá no morro, é amor pra chuchu As rimas do samba não são “I love you” E esse negócio de “alô”, “alô, boy”/ “Alô, Johnny” Só pode ser conversa de telefone. (Não tem tradução (Cinema falado), Noel Rosa, 1933)

A contundência com que se combate a influência do cinema estrangeiro não aparece

justificada apenas nos estrangeirismos adotados na cidade. Estes, menos perigosos, porque na

hora em que “a gíria que o nosso morro criou” (e que “cedo a cidade aceitou”) se faz a única

linguagem realmente adequada (“se houver uma falseta”), ela sabe se impor: “A Risoleta/

Desiste logo do francês e do inglês”. As acusações, no entanto, vão além. O próprio malandro

(esse personagem tão brasileiro e ao qual dedicaremos um capítulo mais a frente), graças ao

cinema americano, vinha mudando seus hábitos, deixando “de sambar/ Dando pinote/ E só

querendo dançar o fox-trot”! Depois de dizer que copiar o cinema é coisa de gente exibida,

Noel lembra que a nossa linguagem popular é única (“não tem tradução no idioma francês”) e

finalmente, na frase que se tornou célebre, afirma que, além de tudo ela é “nossa“: “Tudo

aquilo que o malandro pronuncia/ com voz macia/ é brasileiro, já passou de português”. Um

discurso cheio de valores nacionalistas, mas não do nacionalismo oficial, e sim de um

patriotismo “bairrista” que nascia no morro e contaminava a cidade, e que era entendido pelo

compositor como “brasileiro de fato e de direito”.

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Mas o cinema influía ainda mais fortemente na aparência do vestuário e nos hábitos, e

este era o raio de influência amplo que parece ter preocupado Noel. Vamos ver outra crítica

semelhante no seu samba-choro “Tarzan, o filho do alfaiate”, onde o alvo são os jovens das

boas famílias, que querendo imitar o musculoso Tarzan do cinema, muitas vezes recorriam

aos alfaiates para rechear de algodão as ombreiras dos paletós...

Quem foi que disse que eu era forte? Nunca pratiquei esporte/ Nem conheço futebol O meu parceiro sempre foi o travesseiro E eu passo o ano inteiro sem ver um raio de Sol A minha força bruta reside/ Em um clássico cabide Já cansado de sofrer Minha armadura é de casimira dura Que me dá musculatura Mas que pesa e faz doer. (...) Um argentino disse/ Me vendo em Copacabana “No hay fuerza sobre-humana que detenga este Tarzan!”. (Tarzan, o filho do alfaiate, Noel Rosa e Vadico, 1936)

Critica semelhante aos veículos de comunicação de massa, como deturpadores da

cultura brasileira, fez Chico Buarque em relação à televisão:

O homem da rua Fica só por teimosia Não encontra companhia Mas pra casa não vai não Em casa a roda Já mudou, que a moda muda A roda é triste, a roda é muda Em volta lá da televisão (...) O homem da rua Com seu tamborim calado Já pode esperar sentado Sua escola não vem não A sua gente Está aprendendo humildemente Um batuque diferente Que vem lá da televisão (...) Os namorados Já dispensam seu namoro Quem quer riso, quem quer choro Não faz mais esforço não E a própria vida Ainda vai sentar sentida Vendo a vida mais vivida Que vem lá da televisão O homem da rua Por ser nego conformado Deixa a lua ali de lado

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E vai ligar os seus botões No céu a lua Encabulada e já minguando Numa nuvem se ocultando Vai de volta pros sertões. (A televisão, Chico Buarque, 1967)

Segundo a canção, a televisão estava a substituir perigosamente o diálogo familiar, o

samba das ruas e até mesmo o amor entre os casais, mudando antigos hábitos brasileiros. A

televisão, na qual, de forma contraditória com esta música, Chico Buarque faria a sua

projeção nacional, reforçava a “intenção alienante das elites no poder” e por isso deveria ser

denunciada e combatida. Até a velha Lua, antes tão exaltada e cantada pelos poetas, agora se

sentia ameaçada pela televisão e se recolhia encabulada, indo juntar-se às demais brasilidades

tão desprezadas e esquecidas, como os sertões. A queixa não está mais focada nos

estrangeirismos, como em Noel, mas sim na mudança de hábitos que tornavam calados as

famílias, o samba e o casal de namorados. Os estrangeirismos trazidos pelo cinema, por outro

lado, já de certa forma incorporados pela sociedade urbana, na obra de Chico não são vistos

por este como fatores de deturpação do “idioma nacional”, mas sim como elementos

complementares que passam a servir a uma linguagem apropriada sobretudo para o amor.

Mesmo quando seus significados se revelam vagos ou imprecisos, como quem os repete “só

por gostar”, e apesar de não terem tradução (como Noel afirma em relação ao samba), sempre

“combinavam bem” com as confissões que “dublavam as paixões”, servindo perfeitamente na

representação da incerteza e da inconstância do amor:

Tantas palavras Que eu conhecia Só por ouvir falar, falar Tantas palavras Que ela gostava E repetia Só por gostar Não tinham tradução Mas combinavam bem Toda sessão ela virava uma atriz “Give me a kiss, darling”' “Play it again” Trocamos confissões, sons No cinema, dublando as paixões Movendo as bocas Com palavras ocas Ou fora de si Minha boca Sem que eu compreendesse Falou c'est fini C'est fini (...) (Tantas palavras, Dominguinhos e Chico Buarque, 1983)

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Para finalizarmos este capítulo, resta frisar ainda que a brasilidade representada pelas

canções de Noel Rosa e Chico Buarque, é aquela identificada com o cidadão das classes

média e baixa da cidade do Rio de Janeiro. Este manifestou-se como brasileiro, na produção

musical popular, muito antes das outras sociedades urbanas do país, inclusive da paulistana,

equivalente em muitos aspectos econômicos e sociais à do Rio de Janeiro. A este propósito,

José Ramos Tinhorão constata:

Foi preciso esperar ainda uma geração [após a de Noel Rosa] para que em São Paulo, à semelhança do Rio de Janeiro, as classes médias e baixas da cidade, compostas, não mais predominantemente por imigrantes, mas também por seus descendentes e por brasileiros de outras regiões que para lá migraram durante seu período de mais rápido crescimento – se sentissem, também, brasileiras, e pudessem expressá-lo por meio da música 202.

A música urbana carioca serviu de parâmetro ou matriz, influenciando em todos os

sentidos, inclusive na expressão da identidade cultural brasileira, a produção da música

popular urbana do restante do país. Todos os elementos aqui discutidos e identificados nas

canções de Noel Rosa e Chico Buarque, como representantes da brasilidade, podem também

ser encontrados em muitos outros compositores, porém, a semelhança da obra destes dois

cariocas torna possível a inserção de ambos dentro de um procedimento comum, que estamos

aqui a definir como parte da tradição da música popular brasileira. Concluímos por fim, que a

exaltação de seus elementos constitutivos fazem da brasilidade um importante ponto de

afirmação da identidade cultural do povo brasileiro, e neste quesito, estes autores deram

contribuição significativa às reflexões sobre os seus significados e à definição de seus

contornos.

2.2 - A filosofia do samba nas regras da arte.

Para os compositores aqui focados, Noel Rosa e Chico Buarque, a música popular, e

em especial, o samba, ocupam lugar privilegiado no dia-a-dia do brasileiro. O samba é, para

estes compositores, um meio de expressão genuinamente popular que apresenta a capacidade

de aliviar a pressão do mundo do trabalho e diminuir as conseqüências da injustiça social.

Não é difícil perceber um certo poder “curativo” da canção, sobre a sociedade, em letras como

da música “A Banda”, já aqui discutida, quando assistimos à paralisação da realidade triste,

rotineira e sem vida de uma cidade pequena, substituída por um instante de utopia. A alegria

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repentina trazida pela Banda tem muito em comum com o clima permissivo do samba e do

carnaval. Estes, muito presentes na obra de Chico Buarque, como afirmou Affonso Romano

de Sant’Anna:

É bem grande o número de composições de Chico Buarque que tratam de carnaval. Evidentemente, carnaval aqui não é apenas a festa brasileira. O tratamento que recebe é o mesmo do rito e do mito. Um tempo-espaço em que a comunidade liberta todas as suas repressões assumindo nas máscaras e nos disfarces a sua verdadeira identidade 203.

O carnaval aparece nas canções de Chico, sobretudo entre suas composições iniciais,

com esse poder imenso de alterar a realidade triste do dia-a-dia, dando a si mesmo e ao seu

principal componente, o samba, de fato, uma função ritualística e um espaço definido para a

superação das mazelas. Vejamos os exemplos:

No carnaval, esperança Que gente longe viva na lembrança Que gente triste possa entrar na dança Que gente grande saiba ser criança (Sonho de um carnaval , Chico Buarque, 1965 ) Com o samba eu não compro briga Do samba eu não abro mão (...) Traga-me um violão Antes que o amor acabe Hoje, nada Me cala este violão Eu faço uma batucada Eu faço uma evolução Quero ver a tristeza de parte Quero ver o samba ferver No corpo da porta-estandarte (Amanhã, ninguém sabe, Chico Buarque, 1966) Quem canta comigo Canta o meu refrão Meu melhor amigo É meu violão

(...) Eu nasci sem sorte Moro num barraco Mas meu santo é forte E o samba é meu fraco No meu samba eu digo O que é de coração (Meu refrão, Chico Buarque, 1965)

202 TINHORÃO, J.R. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 298. 203 SANT’ANNA, Affonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis: Vozes, 1977.

p. 102.

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Mais uma vez, o samba, com o imprescindível violão, é o redentor, a principal forma de

aliviar a dura realidade de um personagem sem sorte, que mora num barracão. O carnaval é o

espaço-tempo da liberdade, onde podem ser realizados os desejos reprimidos durante o restante no

ano. O compositor, no papel de brasileiro, “se guarda” o ano inteiro para quando o carnaval chegar:

Quem me vê sempre parado, distante Garante que eu não sei sambar Tou me guardando pra quando o carnaval chegar Eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando E não posso falar Tou me guardando pra quando o carnaval chegar Eu vejo as pernas de louça da moça que passa e não posso pegar Tou me guardando pra quando o carnaval chegar (...) E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando Que eu vou aturar Tou me guardando pra quando o carnaval chegar E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar Tou me guardando pra quando o carnaval chegar Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar Tou me guardando pra quando o carnaval chegar Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar Tou me guardando pra quando o carnaval chegar (Quando o carnaval chegar, Chico Buarque, 1972)

O carnaval (e o samba) promete satisfazer as várias carências dos brasileiros, em época de

repressão crescente: os seus desejos de alegria, de prazer sexual, de se sentir realizado, de revolta, e

até mesmo seu desejo de suprir a falta de sentido na própria existência, na desilusão com o caráter

humano. Estas músicas fazem parte de um tipo de arte que mexe com as "estruturas" mais

duramente estabelecidas pela sociedade urbana, questionando a ordem e as regras coletivizantes

para um mundo que parece caótico e opressivo.

Jorge Caldeira observa que, em Noel ocorre o mesmo, o samba parece adquirir

“extraordinários poderes” 204, como nestes exemplos: “Porque o samba mata a fome”

(“Coisas Nossas”, 1932); “Que faz dançar os galhos do arvoredo/ E faz a Lua nascer mais

cedo” (‘Feitiço da Vila”, com Vadico, 1934); “O mundo é um samba que eu danço/ sem nunca

sair do meu trilho” (“Até amanhã”, 1932). Vemos nestes exemplos o mesmo lugar mítico para

o samba, que está em Chico Buarque: o de redentor das mazelas urbanas.

De todas as composições de Noel que exaltam o samba, talvez os mais célebres versos,

que resumem bem a importância deste para o autor, vem da segunda estrofe de “Feitio de

Oração”, hoje um “clássico” da música popular brasileira:

204 CALDEIRA, Jorge. Noel Rosa: de costas para o mar. São Paulo: Brasiliense, 1982 (3ª edição). p. 54.

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Quem acha vive se perdendo Por isso agora eu vou me defendendo Da dor tão cruel dessa saudade Que por infelicidade meu pobre peito invade (...) Batuque é um privilégio Ninguém aprende samba no colégio Sambar é chorar de alegria É sorrir de nostalgia Dentro da melodia. (Feitio de Oração, Noel Rosa e Vadico, 1933)

Batuque, longe de ser coisa de gente pobre, se transforma em privilégio de poucos,

pois não se “aprende samba no colégio”. O samba é o território da felicidade, onde se há

choro, é de alegria, e se há saudade, esta se transforma em alegre melodia, capaz de inverter a

dor (“sorrir de nostalgia”). O poder de transformação da realidade faz do samba uma

“oração”, onde o compositor clama por um mundo mais alegre.

De forma semelhante, em Chico Buarque, samba e carnaval são capazes de anunciar

um novo amanhã, pleno de realizações, como em “Ole, Olá” - uma canção que consolou os

derrotados do golpe de 1964 pela perda da oportunidade de se fazer a revolução e também

pela possível extinção das origens tradicionais e populares da “MPB”, ameaçada que estava

pela indústria cultural:

Não chore ainda não Que eu tenho a impressão Que o samba vem aí O samba tão imenso Que eu às vezes penso Que o próprio tempo Vai parar para ouvir (...) Luar, espere um pouco Que é pro meu samba poder chegar Eu sei que o violão Está fraco, está rouco Mas a minha voz Não cansou de chamar Olê olê olê olá Tem samba de sobra Ninguém quer sambar Não há mais quem cante Nem há lugar mais lugar O sol chegou antes Do samba chegar (Olé, olá, Chico Buarque, 1965)

O final desta canção nos recorda Noel: “Sol, pelo amor de Deus/ Não venha agora/

que as morenas/ vão logo embora” (“Feitiço da Vila”, Noel e Vadico, 1934). Só que aqui, o

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samba é que chega atrasado, nasce no fim, quando chega o sol - impedido como a própria voz

do cantor, cerceado pela ditadura militar.

Na letra e música de Chico Buarque, em sua canção o eu lírico afirma-se, não pela mera expressão sentimentalista de uma alma individual, mas pela identificação com um espaço social, onde a existência se reorganiza pela poesia – o samba, para ele 205.

Com esta reflexão de Muniz Sodré, concluímos que o “poder extraordinário” do

samba foi preservado dentro da tradição, nas composições. Sem ele, o que sobra é a tristeza de

uma realidade crua, sem sonhos, sem alegria, sem esperança, sem o espaço social

proporcionado apenas por ele. E sendo desta forma tão precioso, é natural que os

compositores atentassem sempre para o seu valor:

Fiz um poema pra te dar Cheio de rimas que acabei de musicar Se por capricho Não quiseres aceitar Tenho que jogar no lixo Mais um samba popular Eu bem sei que condenas O estilo popular Sendo as notas sete apenas Mais eu não posso inventar. (...) Por motivos bem diversos Escrevi meu samba assim Fiz o coro após a os versos E a introdução eu fiz no fim. (Mais um samba popular, Noel Rosa e Arthur Costa, 1931) Você é um colosso Comeu sandwich Falando bem grosso Que samba é maxixe Eu disse: “Caramba! Não sou seu vassalo” Falou mal do samba, Pisou no meu calo! (Você é um colosso, Noel Rosa, 1934)

Chico Buarque, falando do samba e de sua preservação criou uma composição notável

em que o sentido da letra, que a princípio defende as modernizações, se inverte totalmente,

vindo a condená-las a partir da metade da música em diante, simplesmente deslocando um

verso e mantendo a melodia:

205 SODRÉ, Muniz. “A lira independente” In: Songbook Noel Rosa. Produzido por Almir Chediak. Petrópolis:

Ed. Vozes/ Lumiar, 1991. p.8.

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Eu hoje fiz um samba bem pra frente Dizendo realmente o que é que eu acho Eu acho que o meu samba é uma corrente E coerentemente assino embaixo Hoje é preciso refletir um pouco E ver que o samba está tomando jeito Só mesmo embriagado ou muito louco Pra contestar e pra botar defeito Precisa ser muito sincero e claro Pra confessar que andei sambando errado Talvez precise até tomar na cara Pra ver que o samba está bem melhorado Tem mas é que ser bem cara de tacho Não ver a multidão sambar contente Isso me deixa triste e cabisbaixo Por isso eu fiz um samba bem pra frente Dizendo realmente o que é que eu acho Eu acho que o meu samba é uma corrente E coerentemente assino embaixo Hoje é preciso refletir um pouco E ver que o samba está tomando jeito Só mesmo embriagado ou muito louco Pra contestar e pra botar defeito Precisa ser muito sincero e claro Pra confessar que andei sambando errado Talvez precise até tomar na cara Pra ver que o samba está bem melhorado Tem mas é que ser bem cara de tacho Não ver a multidão sambar contente Isso me deixa triste e cabisbaixo Por isso eu fiz um samba bem pra frente Dizendo realmente o que é que eu acho (Corrente (Este é um samba que vai pra frente), Chico Buarque, 1976)

O samba, para Chico Buarque, não podia nem devia seguir modismos e ignorar o

desejo da multidão. Para que o samba não se transformasse definitivamente em “um samba

que vai pra frente”, à semelhança do país da ditadura (no slogan: “Este é um país que vai pra

frente”), Chico demonstraria toda a sua habilidade na troca de sentido das frases sem, no

entanto, alterá-las. Da mesma forma, que ludibriava a censura, o compositor brincava com a

ironia de suas idéias, para chamar a atenção para a tradição: O samba não deve mudar!

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2.3 – Críticos das elites e defensores dos marginalizados.

A hipocrisia da sociedade, que dá muita importância ao mundo das aparências, foi alvo

constante de muitos compositores populares brasileiros, e é claro também de Noel Rosa:

Não creia nestas mentiras/ Que roubam nossa alegria Os invejosos se vingam/ Armados de hipocrisia. A mentira, infelizmente/ O mais forte amor destrói. Mas, se eu não tenho remorso/ O meu coração não dói. (...) (Qual foi o mal que eu te fiz?, Noel Rosa e Cartola, 1932) Quantas vezes nós sorrimos sem vontade Com o ódio a transbordar no coração Por um simples dever da sociedade No momento de uma apresentação (...) (Prazer em conhecê-lo, Noel Rosa e Custódio Mesquita, 1932)

A estas mentiras, que para o autor fazem parte da armação hipócrita da sociedade

como um todo, Noel muitas vezes somou ataques diretos à elite, sempre associada ao poder

político, como vemos neste contundente samba, gravado em plena ditadura varguista (1933):

Você tem palacete reluzente Tem jóias e criados à vontade Sem ter nenhuma herança ou parente Só anda de automóvel na cidade... E o povo já pergunta com maldade: Onde está a honestidade? Onde está a honestidade? O seu dinheiro nasce de repente E embora não se saiba se é verdade Você acha nas ruas diariamente Anéis, dinheiro e até felicidade... Vassoura dos salões da sociedade Que varre o que encontrar em sua frente Promove festivais de caridade Em nome de qualquer defunto ausente... (Onde está a honestidade?, Noel Rosa e Francisco Alves, 1933)

Riqueza e sorte inexplicáveis são os indícios da desonestidade dos ricos, que ficam

ainda mais ricos com seus “festivais de caridade”. O mesmo tema e a mesma forma irônica de

criticar as elites está bem presente também em Chico Buarque, como vemos neste samba

chamado “milagre brasileiro”, uma referência ao desenvolvimento econômico do período

militar que beneficiou apenas a mesma classe social:

Cadê o meu? Cadê o meu, ó meu? Dizem que você se defendeu

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É o milagre brasileiro Quanto mais trabalho Menos vejo dinheiro É o verdadeiro boom Tu tá no bem bom Mas eu vivo sem nenhum (Milagre brasileiro, Julinho da Adelaide, pseudônimo de Chico Buarque, 1975)

Sambas que apresentam este tipo de crítica aproximaram Noel Rosa e Chico Buarque

dos inúmeros desempregados que não tinham sorte alguma e que esperavam em vão por um

trabalho em épocas de crise. Porém, suas simpatias se dirigiram preferencialmente àqueles

que se encontravam em condições ainda mais precárias, os marginalizados. Um exemplo: Em

”O Orvalho vem Caindo” (1933), ironizando a associação entre o azul-anil da bandeira

nacional com o céu do Brasil, Noel se coloca no lugar de um morador de rua:

O orvalho vem caindo/ vai molhar o meu chapéu E também vão sumindo/ As estrelas lá do céu Tenho passado tão mal/ A minha cama é uma folha de jornal Meu cortinado é o vasto céu de anil e meu despertador é o guarda civil... (que o salário ainda não viu!) (E...) A minha terra dá banana e aipim Meu trabalho é achar quem descasque por mim... (Vivo triste mesmo assim!) (E...) (...) (O orvalho vem caindo, Noel Rosa e Kid Pepe, 1933)

A ironia da situação do mendicante que vive na terra do “se plantando tudo dá” (“A

minha terra dá banana e aipim”) aparece reforçada na “vagabundagem” do personagem:

“Meu trabalho é achar quem descasque por mim”. Na música de Noel, a preguiça não está

num personagem mítico como Macunaíma, com quem a identificação é simbólica e sutil, mas

num brasileiro típico que se vê nas ruas. E assim, com ironia, a desgraça social se transforma

em deboche e crítica maliciosa. Da mesma forma como nesta música, muitos outros

personagens rejeitados pela sociedade, ou que vivem a margem dela, mereceram de Noel

Rosa referências e homenagens, ora cômicas, ora trágicas, mas sempre simpáticas e

compreensivas:

E quando passo pela praça Quase como o chafariz Quando minha fome aperta Dou dentadas no nariz (Sem tostão, Noel Rosa, 1932) A cozinheira já não dorme Pois a patroa só mastiga

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(...) Quero comer não posso Quero comer não posso Eu tenho um troço que me aborrece: Já não janto nem almoço (Não me deixam comer, Noel Rosa 1932) O que eu tô vendo É que se eu não me defendo Vou acabar me comendo Pra poder me alimentar (Faz Três semana, paródia de Noel Rosa para Suçuarana, de Heckel Tavares e Luís Peixoto, s/d.) João Ninguém Que não é velho nem moço Come bastante no almoço Pra esquecer do jantar Num vão da escada Fez a sua moradia Sem pensar na gritaria Que vem do primeiro andar (...) João Ninguém Não tem ideal na vida Além de casa e comida Tem seus amores também E muita gente Que ostenta luxo e vaidade Não goza a felicidade Que goza João Ninguém (João Ninguém, Noel Rosa, 1935)

Mulata fuzarqueira da Gamboa Só anda com tipo à-toa Embarca em qualquer canoa (Mulata fuzarqueira, Noel Rosa, 1931) Maria Fumaça/ Fumava cachimbo Bebia cachaça Maria Fumaça/ Fazia arruaça Quebrava a vidraça (...) Maria Fumaça/ Só achava graça Na própria desgraça Dez vezes por dia/ A delegacia Mandava um soldado Prender a Maria/ Mas quando se via Na frente da praça Maria sumia/ Tal qual a fumaça (Maria Fumaça, Noel Rosa, 1936) Foi num cabaré da Lapa Que eu conheci você Fumando cigarro Entornando champanhe no seu soirée (...) No outro dia lá nos Arcos eu andava À procura da dama do cabaré. (Dama do Cabaré, Noel Rosa, 1936)

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Famintos, miseráveis, vagabundos, empregadas, dançarinas, prostitutas: Noel Rosa se

identifica com o baixo escalão da sociedade, a ponto de assumir realmente o papel do

marginalizado, de onde pode criticá-la sem medo, pela hipocrisia e pela desumanidade

aparente no convívio urbano. Vemos esse papel no auto-retrato da canção que o consagrou

como o “filósofo do samba”:

O mundo me condena /E ninguém tem pena Falando sempre mal do meu nome. Deixando de saber/ Se eu vou morrer de sede Ou se vou morrer de fome Mas a filosofia/ Hoje me auxilia A viver indiferente assim. Nesta prontidão sem fim/ Vou fingindo que sou rico Pra ninguém zombar de mim. Não me incomodo/ Que você me diga Que a sociedade é minha inimiga Pois cantando neste mundo/ Vivo escravo do meu samba, Muito embora vagabundo Quanto a você/ Da aristocracia Que tem dinheiro/ Mas não compra alegria Há de viver eternamente Sendo escrava dessa gente Que cultiva a hipocrisia. (Filosofia, Noel Rosa e André Filho, 1933)

Falando de si mesmo e de suas dificuldades financeiras, que o colocaram de fato

constantemente na marginalidade, Noel acusa mais uma vez a falta de solidariedade, a

indiferença, a maldade do “mundo das aparências”. E comentando um pensamento algo

marxista (“Que a sociedade é minha inimiga”) - que não deixa também de ser hipócrita (a

mesma pessoa que afirma esta frase é “da aristocracia”) -, ele se recusa a engajar-se em

qualquer ideologia, se dizendo “escravo”. Ou seja, ao invés de declarar-se partidário de um

ideal social libertário em luta contra a elite burguesa, como na visão política da esquerda,

Noel coloca o mundo especial do samba, com suas qualidades mágicas (como vimos no

capítulo anterior), como a alternativa clara para a busca da felicidade (“Vivo escravo do meu

samba/ Muito embora vagabundo”). Desta forma, se referindo ao mais primitivo modo de

produção, ele rejeita a idéia de evolução e progresso em direção ao socialismo, e invertendo

novamente os termos qualificativos, termina por acusar a “sociedade” de ser o seu próprio

algoz: escrava do dinheiro e de si mesma, ou melhor da própria hipocrisia. Filosofia de sobra

para um samba popular.

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Este samba (“Filosofia”, de 1933, gravado neste ano por Mário Reis e a orquestra de

Pixinguinha), que diz tanta coisa sobre o seu criador, foi regravado por Chico Buarque no LP

“Sinal Fechado”, de 1974, confirmando a herança “filosófica” acumulada por este, com a

mesma postura crítica do poeta da Vila.

A diferença é que em Chico, a crítica social pode ser mais diretamente associada à

crítica política. Muitas de suas composições foram usadas como propaganda ideológica de

resistência à ditadura do Regime Militar, dada a facilidade de se perceber nelas o engajamento

político. Para pesquisadores como Júlio César Valadão Diniz, Chico faz sua opção pelo

engajamento a partir de 1969, com a composição “Agora falando sério”, verdadeiro manifesto

de rompimento com a fase do bom moço e do lirismo saudosista de composições como “A

Banda”:

Agora falando sério Eu queria não cantar A cantiga bonita Que se acredita Que o mal espanta Dou um chute no lirismo Um pega no cachorro E um tiro no sabiá Dou um fora no violino Faço a mala e corro Pra não ver a banda passar (...) (Agora falando sério, Chico Buarque, 1969)

Esta música, onde o compositor anuncia querer dar um “tiro no sabiá” e correr “pra

não ver a banda passar”, presente no LP Chico Buarque Hollanda, nº. 4 (PolyGram, 1970),

torna claro esse seu rompimento com a produção da primeira fase, que seria para Diniz,

simbólica de “uma classe média que ainda acreditava em banquinhos, barquinhos e violões” 206. Porém, verificamos que é problemático afirmar tão categoricamente um rompimento com

uma fase ingênua. Podemos encontrar exemplos de composições “engajadas” também na

primeira fase, tais como “Tamandaré” (proibida pela Censura) e “Pedro Pedreiro”, ambas de

1965, ou “Roda Viva”, de 1967. De qualquer maneira, se há algo que Chico Buarque não

rompe, é com sua filiação à tradição. Dar um “chute no lirismo, um pega no cachorro e um

tiro no sabiá”, foram promessas nunca cumpridas, e que fizeram apenas o papel de desabafo,

logo após o AI 5. Ou poderíamos levar a sério o abandono do lirismo em composições

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posteriores? Contudo, sua postura de alinhamento à poética de resistência refletida nos

personagens marginalizados se tornará cada vez mais evidente, a ponto de Glauber Rocha

transforma-lo em um herói da democracia, em uma entrevista em 1974: “o nosso Errol Flynn” 207.

Marco mais significativo do que a canção “Agora falando sério”, para o tom enfático

do desabafo de Chico Buarque, veio antes desta composição, com a peça Roda Viva 208, de

1968. Nessa comédia musical, dirigida pelo então revolucionário diretor Zé Celso Martinez

Corrêa, um sambista popular (Benedito Silva) se vê transformado pelo empresário (manager)

Anjo da Guarda, em “Ben Silver”, com um novo visual pop e com o conseqüente rompimento

com os elementos autênticos do mundo do samba. Ao renegar assim a própria tradição, o

personagem pagará o desvirtuamento da sua arte com o fracasso total. Para tornar ainda mais

patética a derrota do artista frente à indústria cultural e a sua total cooptação pelos meios de

comunicação de massa, o autor faz o empresário insistir em uma nova mudança drástica: “Ben

Silver” se torna “Benedito Lampião, autêntico representante da legítima música brasileira”, e

capaz de competir com os novos astros nacionais do gênero canção de protesto, Geraldo

Vanderbeilt (Geraldo Vandré), Chico Pedreiro (o próprio Chico Buarque) e Maria Botânica

(Maria Bethânia). Porém, após uma excursão bem sucedida aos EUA (país interessado na

cultura alheia apenas como atração exótica, folclórica e efêmera) Benedito é rejeitado pelo

público brasileiro, que já não o reconhecia mais como o seu representante. Um artista que não

representa mais o seu povo se vê sem saída. No final do espetáculo, Benedito se suicida,

jogando-se na frente de um carro. O séqüito de fãs enlouquecidos comem sua carne e um

novo ídolo é erguido. A Roda Viva não parava. Zé Celso colaborou para a agressividade do

espetáculo com ações como a simulação de sexo com a imagem da Virgem Maria e fazendo

espirrar na platéia o sangue do fígado de boi que era devorado pelos atores, simulando a carne

do ex-astro. O texto, que havia sido liberado pela Censura com alguns poucos cortes dos

palavrões, acabou sendo enxertado com outros tantos no decorrer da temporada. Toda esta

postura revolucionária levou o CCC (Comando de Caça aos Comunistas, grupo paramilitar de

direita) a investir contra os atores que foram espancados, e contra os cenários, destruídos na

206 DINIZ, Júlio Cesar Valadão. “A voz e seu dono: poética e metapoética na canção de Chico Buarque de

Hollanda”. In: FERNANDES, Rinaldo (org). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond / Fundação Biblioteca Nacional, 2004. p. 261.

207 Apud: WERNECK, Humberto. “Gol de Letras”. In: HOLLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque, letra e música: incluindo Gol de Letras de Humberto Werneck e Carta ao Chico de Tom Jobim. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. p.138.

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temporada paulista (17 de julho de 1968, no Teatro Galpão), e a seqüestrarem dois atores em

Porto Alegre, abandonando-os depois num matagal distante 209. Estes acontecimentos

serviram para que a peça fosse proibida em todo o território nacional e impulsionaram a

promulgação do AI-5, em 13 de dezembro daquele mesmo ano, que deu início ao

recrudescimento das perseguições políticas, das torturas e dos assassinatos “oficiais” e

também da Censura. Chico se tornava ele próprio um dos personagens centrais do cenário

político revolucionário – ainda que sempre viesse a negar esse papel.

A peça “Roda Viva” iria remexer a imagem de bom moço, de boa família e bem

comportado, que se formou em torno de Chico, e surpreender a antiga unanimidade que havia

em torno de suas composições, bem mais do que a composição do ano seguinte “Agora

falando sério”, utilizada por Júlio César Valadão Diniz como marco de ruptura. Como

descreve Adélia B. de Meneses:

O público – ou melhor , parte dele, pois a unanimidade se desfizera – passa a responsabilizar o diretor [Zé Celso Martinez Correa] pelo radicalismo agressivo da peça, mas Chico Buarque a assume. Essa mudança de imagem se opera em vários níveis, em relação a públicos diferentes: diante daqueles que viam em Chico o tranqüilizante “bom moço” e que agora se sentem decepcionados; diante do público simpatizante do Tropicalismo e que, por motivos diferentes renega o autor de Carolina – Chico passa a ser acusado de intransigente defensor do estilo tradicional de compor 210.

Notamos nesse comentário, que o público mesmo chocado com a nova postura do “ex-

bom moço” continuará reconhecendo em Chico Buarque, um defensor da tradição.

O engajamento político é também percebido nos outros musicais escritos por Chico

Buarque nos anos 1970, Calabar, o elogio da traição (1973) 211, Gota d’água (1975) 212 e

Ópera do Malandro (1978) 213, em todos eles, cabe ressaltar, vemos muito da tradição criada

nos anos 1930.

208 As músicas da peça eram “Roda Viva” e “Sem fantasia”, e foram gravadas por Chico Buarque no LP Chico

Buarque de Hollanda vol. 3, RGE, 1968. 209 Acontecimentos descritos por Humberto Werneck, in: “Gol de letras”. Op. cit. pp. 81/82. 210 MENESES, Adélia B. de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Hucitec, 1982,

p. 25. 211 BUARQUE, Chico e GUERRA, Ruy. Calabar, o elogio da traição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1973. Peça proibida pela Censura no dia de sua estréia. 212 BUARQUE, Chico e PONTES, Paulo. Gota d’água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. 213 BUARQUE, Chico. Ópera do malandro: comédia musical. São Paulo: Cultura, 1978.

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Calabar, invertendo a versão da história oficial, mostra o personagem “traidor” de

Portugal (e por extensão, do Brasil) durante as invasões holandesas, como um verdadeiro

brasileiro, patriota que se revoltava contra o sistema injusto imposto pelos lusitanos.

Representava uma metáfora para o clima de perseguição e censura do regime militar: o traidor

do governo como herói da nação. Bárbara (a amante de Calabar) e Ana de Amsterdam (uma

prostituta) representam a voz angustiada dos excluídos. A mulher tão sufocada e submissa do

século XVII, cenário histórico da peça, une assim o encanto de sua suposta fragilidade com a

coragem das heroínas, unindo-se a voz das feministas e dos movimentos libertários que se

intensificaram na década de 1960. As personagens femininas fortes, a partir desta peça,

ganham um papel muito especial na obra de Chico, a ponto de serem lembradas por alguns

estudiosos como as mais marcantes das composições do autor 214.

Em Gota d’água, o tema da traição e da injustiça retorna para também dar voz aos

excluídos: Um “sambista” trai a sua classe social ao abandonar a mulher e os dois filhos para

se casar com a filha de um grande proprietário do conjunto residencial onde vivia. Joana, a

mulher traída, assim como na tragédia grega “Medéia” 215, que serviu de inspiração para a

peça, acaba envenenando os dois filhos e a si mesma, num ato extremo de vingança. Mais

uma vez, em seu clamor ouve-se a voz dos enjeitados e abandonados pelos poderosos. Para

enfatizar ainda mais a crítica que permeia a peça, os autores afirmam no prefácio da primeira

edição: “[...] o povo sumiu da cultura produzida no Brasil – dos jornais, dos filmes, das

peças, da TV, da literatura, etc. [...] O povo brasileiro deixou de ser o centro da cultura

brasileira” 216. Era uma crítica direta às gravadoras, à televisão e às demais formas de mídia

que estavam a “eliminar” o povo, a distorcer a tradição e a ignorar a voz dos oprimidos, em

alinhamento com a Censura.

Na “Ópera do Malandro”, a tradição nascida nos anos 1930 é toda reconstituída, desde

os cenários aos personagens, e também muito da porção essencialmente musical. Aqui, com

os mesmos retoques irônicos da peça que lhe serviu de inspiração, “A ópera dos três vinténs”,

214 Exemplos desta afirmação se encontram em: FONTES, Maria Helena Sansão. Sem Fantasia - Masculino e

Feminino em Chico Buarque. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, (coleção Temas e Reflexões), 2003; e MENESES, Adélia Bezerra de. Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. 3ª ed. Ampliada, 2002.

215 Medeia, de Eurípides, foi encenada pela primeira vez em 431 a. C. 216 BUARQUE, Chico e PONTES, Paulo. Gota d’água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. xvi.

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de Bertolt Brecht e Kurt Weill 217, Chico parece demonstrar como o país deixava de ser

corporativista e promotor do desenvolvimento nacional da indústria nos anos 1930/ 40 para

ser um Estado que promovia intensamente o investimento estrangeiro, institucionalizado

pelos militares nos anos 1960/ 70. Chama-nos a atenção no texto, o contraste entre o que

dizem os personagens e o que eles fazem a seguir. Chico coloca cuidadosamente estas

contradições, como a querer provocar no ouvinte a reflexão sobre a realidade política e a ética

individual, ao mesmo tempo em que evita a simples identificação imediata entre o

personagem e o público. Os personagens se mostram em flagrantes contradições quando

invariavelmente após a exposição de seus sentimentos sinceros, agem de forma inescrupulosa

e interesseira. Para além das metáforas políticas, era ao próprio cidadão brasileiro que se

dirigia a crítica, no comportamento dúbio, covarde, guiado pelo interesse e entregue às regras

do “jogo sujo”. No final da peça, num falso final feliz, a ironia ganha forma na citação de uma

série de produtos americanos que a partir dos anos 1940 iriam invadir o Brasil,

“americanizando” cada vez mais a cultura brasileira:

[...] Pra quem viveu/ só de café e banana Tem gilete, Kibon/ Lanchonete, Neon Petróleo/ Cinemascope, sapólio Ban-lon/ Shampoo, tevê Cigarros longos e finos/ Blindex fumê Já tem Napalm e Kolynos/ Tem cassete e ray-ban Camionete e sedan/ Que sonho Corcel, Brasília, plutônio Shazam/ Que orgia/ Que energia/ reina a paz no meu país Ai, meu Deus do céu/ Me sinto tão feliz. (Ópera, Chico Buarque, 1977/78)

Num segundo final, em uma cena que foge ao enredo da peça, aparece a figura do

“autêntico malandro carioca”, João Alegre, suposto autor da mesma, que na última canção

retoma á crítica social numa clara rejeição da glorificação do progresso, ironicamente

evidente na música anterior.

Chico Buarque inseriu-se na ebulição política e cultural do Brasil dos anos 1960/70, a

ponto de Gustavo Conde referir-se á um efeito censura: “À medida que se tornavam públicas

as ações da censura nas canções de Chico, uma expectativa para cada nova canção se

217 “A Ópera dos três vinténs”, de Bertolt Brecht, com composições de Kurt Weill, foi encenada pela primeira

vez na Alemanha em 1928.

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criava” 218. Porém, é preciso relembrar que Chico jamais aceitou qualquer rótulo, ou, como

afirma Regina Zappa, “não quis ser tachado de compositor romântico e lírico, nem cantor de

protesto” 219, pois a sua profusão criativa não poderia se limitar a conceitos provisórios.

É importante frisar mais uma vez que, apesar de ser um defensor dos oprimidos contra

os interesses do capitalismo, Chico (assim como Noel) irá compor de forma a agradar

indivíduos de todas as classes sociais, devido em grande parte a capacidade de suas obras de

representarem o mundo popular com requintes de erudição, ou como esclarece Charles

Perrone:

O apelo musical dele [de Chico Buarque] cruza linhas divisórias de classe porque

as canções são ao mesmo tempo “populares” em seus fundamentos e temas

musicais e “eruditas” por seu refinamento e tons líricos sofisticados. 220

Todas as canções apontadas como politicamente significativas de Chico conterão estes

dois elementos: “Pedro Pedreiro” e “Tamandaré” (1965); “Roda viva” e ”Quem te viu, quem

te vê” (1967); “Sabiá” (com Tom Jobim) e “Bom Tempo” (1968); “Rosa dos Ventos” e “Gente

humilde” (com Garoto e Vinícius de Moraes - 1969); “Apesar de você” e “Samba de Orly”,

(com Vinicius de Moraes e Toquinho (1970); “Construção”, “Cotidiano” e “Deus lhe pague”

(1971); “Bom conselho” e “Partido Alto” (1972); “Fado tropical”, “Vence na vida quem diz

sim”, “Cobra de vidro” (estas em parceria com Ruy Guerra), e “Cálice” (com Gilberto Gil,

1973); “Acorda, Amor” (com o pseudônimo Julinho de Adelaide, 1974); “Milagre brasileiro”

(também como Julinho de Adelaide) , “Gota d’água” e “Tanto mar”, (1975), “Angélica” (com

Miltinho, 1977), “Hino de Duran (Hino da Repressão)” (1979), “Vai passar” e “Pelas tabelas”,

(1984). É preciso lembrar, no entanto, que muitas destas canções permitem leituras distintas,

entre uma visão exclusivamente política e outras mais limitadas ao campo discursivo da

canção, onde os personagens podem representar “qualquer um” ou outras intenções (como em

”Quem te viu, quem te vê”, de 1967, ou até mesmo em “Apesar de você”, 1970). Isto nos

obriga a fazer ressalvas ao relativo engajamento “evidente” de algumas destas canções.

218 CONDE, Gustavo. “Do riso cancionista em Chico”. In: FERNANDES, Rinaldo (org). Chico Buarque do

Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond / Fundação Biblioteca Nacional, 2004. p. 245.

219 ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ Prefeitura do Rio de Janeiro, 1999 (Coleção Perfis do Rio), p.10.

220 PERRONE, Charles, GINWAY, M. Elizabeth & TARTARI, Ataíde. “Chico sob a ótica internacional”. In: FERNANDES, Rinaldo (org). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond/ Fundação Biblioteca Nacional, 2004.

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Deslocando o foco sobre o engajamento político contra a ditadura, que pressupõe a

defesa dos oprimidos, poderemos perceber também na obra de Chico Buarque que, assim

como na de Noel Rosa, o compositor se coloca de maneira geral como um defensor dos

marginalizados: prostitutas, meninos de rua, travestis, malandros, retirantes, humildes

trabalhadores, miseráveis e rejeitados em geral, que são descritos em versos elaborados e

condescendentes. Sobre o perfil destes personagens cantados por Chico Buarque, comenta

Adélia Bezerra de Menezes

Uma galeria imensa que engrossará a “romaria dos mutilados” de que se fala em “O que será?”, daqueles que foram mutilados física e socialmente: os infelizes, as meretrizes, os bandidos, os desvalidos – ao que vêm acrescentar as mulheres abandonadas, os pivetes, os operários, os pedreiros, o malandro. 221

Seguem aqui alguns exemplos, começando por um personagem muito parecido com o

João Ninguém de Noel Rosa (1935), o Zé Qualquer:

Zé Qualquer tava sem samba, sem dinheiro Sem Maria sequer Sem qualquer paradeiro Quando encontrou um samba Inútil e derradeiro Numa inútil e derradeira Velha nota de um cruzeiro (Tamandaré, Chico Buarque, 1965) Pedro pedreiro penseiro esperando o trem Manhã, parece, carece de esperar também Para o bem de quem tem bem De quem não tem vintém Pedro pedreiro fica assim pensando Assim pensando o tempo passa E a gente vai ficando pra trás Esperando, esperando, esperando (Pedro Pedreiro, Chico Buarque, 1965)

No sinal fechado Ele vende chiclete Capricha na flanela E se chama Pelé (...) Meio se maloca Agita numa boca Descola uma mutuca E um papel (...) Batalha na sarjeta E tem as pernas tortas (Pivete, Francis Hime e Chico Buarque,1978)

221 MENESES, Adélia Bezerra. Chico Buarque de Hollanda: literatura comparada. São Paulo: Abril Educação,

1980. p. 98.

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Amando noites afora Fazendo a cama sobre os jornais Um pouco jogados fora Um pouco sábios demais (Amando sobre os jornais, Chico Buarque, 1979) Chega no morro com o carregamento Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador (...) Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri E ele chega... Chega estampado, manchete, retrato Com venda nos olhos, legenda e as iniciais Eu não entendo essa gente, seu moço Fazendo alvoroço de mais (O meu guri Chico Buarque, 1981) Na rodoviária / Assumem formas mil Uns vendem fumo/ Tem uns que viram Jesus Muito sanfoneiro / Cego tocando blues Uns têm saudade/ E dançam maracatus Uns atiram pedra / Outros passeiam nus Mas há milhões desses seres Que se disfarçam tão bem Que ninguém pergunta De onde essa gente vem (...) São faxineiros/ Balançam nas construções São bilheteiras/ Baleiros e garçons (Brejo da Cruz, Chico Buarque, 1984)

Será verdade Que eu cheguei nessa cidade Pra primeira autoridade Resolver me escorraçar (A violeira, Tom Jobim e Chico Buarque, 1983) A Conceição incomodada Vai ouvir nossa oração Nos livrar da seca, da enxurrada e da estação ruim (A permuta dos santos , Edu Lobo e Chico Buarque, 1987-1988) E se definitivamente a sociedade só te tem desprezo e horror E mesmo nas galeras és nocivo, és um estorvo, és um tumor Que Deus te proteja És preso comum Na cela faltava esse um (Hino da repressão (Segundo turno), Chico Buarque, 1985)

Neste último exemplo, vemos claramente retratado o mesmo confronto que nos

sambas de Noel Rosa opõe a “sociedade” aos seus “anti-sociais”. Chico Buarque dedicará

também muitas de suas composições ao mundo da prostituição:

Sou perfeita porque Igualzinha a você Eu não presto Eu não presto

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Traiçoeira e vulgar Sou sem nome e sem lar Sou aquela Eu sou filha da rua Eu sou cria da sua Costela Sou bandida Sou solta na vida E sob medida Pros carinhos seus Meu amigo Se ajeite comigo E dê graças a Deus (Sob medida , Chico Buarque, 1979 )

Foi proclamada a república Neste bordel Eu vou virar artista Ficar famosa, falar inglês Autografar com as unhas Eu vou, nas costas do meu freguês Eu cobro meia entrada Da estudantada que não tem vez Aqui no meu teatro Grupo de quatro paga por três (...) Ao povo nossas carícias Ao povo nossas carências Ao povo nossas delícias E nossas doenças (Mambordel, Chico Buarque, 1975) Se acaso me quiseres Sou dessas mulheres Que só dizem sim (Folhetim, Chico Buarque, 1977-1978) Ai, se papai me pega agora Abrindo o último botão Será que ele me leva embora Ou não (...) Será que ele me trata à tapa E me sapeca um pescoção Ou abre um cabaré na Lapa E aí me contrata Como atração (Ai, se eles me pegam agora, Chico Buarque, 1977-1978 )

Quem me dera amarrar meu amor quase um mês Mas escuta o que dizem as pedras do cais Se eu deixasse juntar de uma vez meus amores num porto Transbordava a baía com todas as forças navais (A mulher de cada porto, Edu Lobo e Chico Buarque, 1985)

Se o cliente quer rumbeira, tem Com tempeiro da baiana Somos las muchachas de Copacabana (bis) (Las muchachas de Copacabana, Chico Buarque, 1985)

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Em “Ai, se papai me pega agora”, música integrante da “Ópera do malandro”, na peça

que tem o mesmo cenário histórico de Noel, Chico faz referência ao cabaré da Lapa, onde as

dançarinas, tal qual a Ceci de Noel (a “Dama do cabaré”, 1936), muitas vezes se prostituíam.

Em outras composições, Chico Buarque dá voz aos homossexuais, como o travesti Geni de “A

ópera do malandro”:

De tudo que é nego torto Do mangue e do cais do porto Ela já foi namorada O seu corpo é dos errantes Dos cegos, dos retirantes É de quem não tem mais nada (Geni e o zepelim, Chico Buarque, 1977-1978) Vamos ceder enfim à tentação Das nossas bocas cruas E mergulhar no poço escuro de nós duas Vamos viver agonizando uma paixão vadia Maravilhosa e transbordante, feito uma hemorragia (Bárbara, Chico Buarque e Ruy Guerra , 1972-1973 ) Amavam um amor proibido Pois hoje é sabido Todo mundo conta Uma andava tonta Grávida de lua E outra andava nua Ávida de mar E foram ficando marcadas Ouvindo risadas, sentindo arrepios (Mar e lua, Chico Buarque, 1980)

Personagens homossexuais também estão presentes em Noel Rosa, que inaugura, de

forma ousada para a época, este delicado tema na música popular:

As morenas do lugar Vivem a se lamentar Por saber que ele não quer Se apaixonar por mulher O mulato é de fato E sabe fazer frente A qualquer valente, Mas não quer saber de fita Nem com mulher bonita (Mulato Bamba (Mulato forte), Noel Rosa, 1931)

Um dos mais célebres temas de piadas, o rico e o pobre, é outro excelente mote para as

críticas sociais dos compositores. Na “Opereta do moribundo” (Edu Lobo e Chico Buarque,

música integrante da peça O corsário do rei, de 1985), Chico reproduz o discurso popular

referente á duas situações análogas, porém distantes: o “Funeral do rico” e o “Enterro de

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pobre”, usados como subtítulos de cada uma das metades da mesma canção. Ambos os

personagens levando para o túmulo suas preocupações mais comuns e fúteis, entre amigos

interesseiros:

I - Funeral de rico

Rico quando vai Desta vida, sempre vai de mau humor Ir deitado de casaca é um terror Abafado e morto de calor Aturar a marcha fúnebre

Só de imaginar Que os amigos vão deitar nos seus sofás Vão tomar os seus vermutes, os seus cristais E as suas mulheres principais Já na beira do seu túmulo

- Gente, quanta gente Que excelente funeral - Ficas bem de preto E o cabelo ao natural - Dizem que o eminente Triplicou seu capital - Vai sobrar para gente Que nem viu ele vivo - Tem até donativo Para as obras do hospital.

II - Enterro de pobre

Pobre quando vai Sempre dizem que ele vai pra uma melhor Vai olhando aquela gente ao seu redor Todos com poeira e com suor Ele achando a coisa ótima

Só de imaginar Que os amigos vão pagar o seu caixão O barbeiro, o aluguel do rabecão O vinho do padre, o sacristão E o sermão na igreja gótica - Gente, não tem gente Tem parente pobre só - Esse teu modelo Mais parece um dominó - Nem o indigente Quis herdar o seu paletó - Vai sobrar para a gente Que nem viu ele vivo - Tem até um passivo No caderno do Jacó

(Opereta do moribundo, Edu Lobo e Chico Buarque, 1985)

Os amigos do morto rico transformam o funeral em mais um encontro social e

esperam desfrutar de algum benefício deixado pelo defunto. Já aos amigos do morto pobre só

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sobram contas a pagar, com o enterro e as dívidas deixadas por ele. Em ambos os funerais, os

amigos possuem preocupações que ultrapassam as homenagens aos mortos e que revelam o

comportamento hipócrita que perpassa a sociedade brasileira como um todo, movida pelas

aparências e pelos interesses pessoais. Ao mesmo tempo, o humor ameniza esta crítica,

revelando mais as afetações dos ricos (“ir deitado de casaca é um terror/ Abafado e morto de

calor/ Aturar a marcha fúnebre” ou “ficas bem de preto/ e o cabelo ao natural”) e a

mesquinhez dos pobres (“Só de imaginar/ Que os amigos vão pagar o seu caixão” ou “Gente,

não tem gente/ Tem parente pobre só”). Podemos aventar muitos exemplos na obra de Chico

Buarque que, a semelhança desta canção, contém a mesma crítica à hipocrisia da sociedade

como vimos em Noel Rosa:

Ele faz o noivo correto E ela faz que quase desmaia Vão viver sob o mesmo teto Até que a casa caia Até que a casa caia (...) Ele é o funcionário completo E ela aprende a fazer suspiros Vão viver sob o mesmo teto Até trocarem tiros Até trocarem tiros Ele tem um caso secreto Ela diz que não sai dos trilhos Vão viver sob o mesmo teto Até casarem os filhos Até casarem os filhos (...) (O casamento dos pequeno burgueses, Chico Buarque, 1977-1978)

O samba de Noel, em geral menos sério ou mais debochado que o de Chico, disfarça a

crítica em auto-crítica, e o eu poético, que é quase sempre um típico brasileiro confessa

também ser um bom trapaceiro:

Eu hoje já não ando mais fagueiro Pois o dinheiro Não é fácil de ganhar Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro Não consigo ter nem pra gastar Eu já corri de vento em popa Mas agora com que roupa... Com que roupa, eu vou? (...) (Com que roupa?, Noel Rosa, 1930)

Essa cumplicidade entre o brasileiro e o “Brasil da trapaça” – mais um traço da

identidade cultural brasileira – surge muitas vezes nas letras de Noel, assim como nas letras

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de Chico, onde a trapaça pode assumir dimensões metafóricas diversas, chegando inclusive a

ser sinônimo de elegância:

Contigo aprendi A perder e achar graça Pagar e não dar importância Contigo a trapaça Por trás da trapaça É pura elegância (Trapaças, Chico Buarque, 1989)

Os personagens marginalizados das canções de Chico Buarque (o malandro, o menino

de rua, a prostituta, o nordestino, o homossexual, etc) são, na opinião de Adélia Bezerra de

Menezes, os personagens que apareceram, durante um período especialmente propício a

criticas sociais, com o propósito de satirizar as falhas da nossa sociedade 222. Chico fez,

segundo a pesquisadora, a redução da sociedade à arquétipos, acrescentando algumas

referências à fatos históricos ligados pelo contexto do regime militar, tais como a

desvalorização do cruzeiro (“Tamandaré”), a ditadura militar e suas formas de repressão

(“Cálice” de 1973; “Acorda Amor” de 1974), ou a Abertura política (“Vai passar”, 1984). A

mesma afirmação, guardadas as devidas referências históricas, se aplica muito bem aos

personagens de Noel, que também se utilizou de arquétipos e fez alusões a fatos históricos da

primeira ditadura, como o “Samba da Boa Vontade” (Noel Rosa e João de Barros, 1931), já

por nós analisado como uma crítica à política econômica do governo Vargas, ou os sambas

“O pulo da hora” (1931) e “Por causa da hora” (1931), que brincam com a confusão gerada

pela introdução do horário de verão.

Nota-se que enquanto Noel não vê problemas na fusão do eu lírico com o eu cantor, de

corpo presente, como nas canções “Palpite infeliz” (com Eduardo Souto, 1931) ou “O x do

problema” (1936), Chico representa mais uma voz interdita, às vezes irônica, às vezes trágica,

que evita essa fusão, aumentando a complexidade metafórica, para, entre outras razões,

driblar a censura. São os personagens que irão lhe emprestar a voz, num jogo onde a criatura

diz o que permite o criador, como se o que dizer não fosse uma escolha do compositor. Jogo

lúdico e alternado com a realidade que dá sentido pleno, por exemplo, à voz feminina ou às

vozes dos muitos personagens, e também aos temas que vão da Grécia antiga (“Mulheres de

222 MENEZES, Adélia Bezerra. Desenho Mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: HUCITEC,

1982. p. 94.

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Atenas”, com Augusto Boal, 1976) às páginas policiais dos jornais (“O Meu Guri”, 1981), e

ao uso muito delicado, por vezes com duplo sentido, de expressões e ditados populares.

Nos anos 1990, Chico Buarque mudaria o seu foco de abordagem do ponto de vista do

“intelectual politicamente engajado” para o contador de “histórias de angústia, incerteza e a

busca de uma identidade pessoal”, pelo menos essa é a conclusão apresentada por Charles

Perrone, para quem Chico teve que, neste momento, “reinventar a si mesmo, uma vez

removido o objeto de protesto” e realizar uma transição forçada pela circunstância:

Chico fez a transição entre se exprimir como a voz do povo a se exprimir como indivíduo sobre a sociedade e a natureza da realidade, enquanto as escolhas políticas, éticas e morais se tornavam cada vez mais complexas 223.

Contudo, podemos afirmar, por outro lado, que existem alguns elementos que

permaneceram em suas músicas, apesar da transição identificada por Perrone. Um exemplo é

a preocupação de representação da brasilidade, que prosseguirá nos trabalhos mais recentes de

Chico Buarque. Além dos possíveis exemplos que contém muito da brasilidade, como “Chão

de esmeraldas” (com Hermínio Bello de Carvaho, 1997) e “Carioca” (1998), lembramos a

capa de Paratodos 224 de 1993, que traz no centro uma foto de Chico aos dezessete anos

(feitas pela polícia) entre fotos de pessoas anônimas das mais variadas etnias, representando

claramente o conjunto brasileiro;

Uma relação parecida está na capa do CD As cidades 225, em que o rosto do artista é

transfigurado digitalmente de forma a assumir, em várias montagens, diferentes traços étnicos,

como se quisesse fundir sua imagem com a da a diversidade migratória do Brasil. No

conteúdo destas novas canções, uma voz voltada pra dentro muito mais do que pra fora, em

mensagens cada vez mais herméticas, mas ainda com muita brasilidade, como no “Xote da

navegação” (com Dominguinhos, 1998) e no samba “Injuriado” (1998), cuja melodia mantém

muito dos traços estilísticos de Noel Rosa.

223 PERRONE, Charles, GINWAY, M. Elizabeth & TARTARI, Ataíde. “Chico sob a ótica internacional”. In:

FERNANDES, Rinaldo (org). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond/ Fundação Biblioteca Nacional, 2004. p. 220.

224 LP e CD Paratodos, Chico Buarque. BMG Ariola, 1993. 225 CD As cidades, Chico Buarque. BMG, 1998.

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2.4 - A escola da malandragem.

Um dos temas ligados à brasilidade mais constantes na obra de Noel Rosa, assim

como na de Chico Buarque, é o da malandragem, já muito comum à época de Noel, como

afirma Jorge Caldeira:

“Quando Noel se tornou compositor profissional, um tema de larga tradição

dominava a música popular: a malandragem” 226.

Vamos então analisá-la. Vimos que nos anos 1930, muitos artistas e intelectuais, como

Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Villa Lobos, Pixinguinha e Noel Rosa, entre

muitos outros, colaboraram cada qual ao seu modo para uma definição dos nossos contornos

culturais nacionais. Nestes anos, formalizaram-se de fato alguns projetos de construção do

orgulho brasileiro - uma definição sócio-cultural da nação e dos nossos particularismos.

Projetos que se manifestavam na arte erudita e popular e que se encaixavam numa ou noutra

vertente das duas mais preponderantes. Havia, como atestamos nos críticos da música popular

do início desta década, uma corrente que desejava a nossa autenticidade nacional através de

uma ótica “estrutural” mais próxima da européia, preocupando-se em localizar aquilo que nos

faltava para sermos como as nações do Velho Continente. Esta corrente obedecia em “linhas

gerais” às regras civilizadoras da cultura ocidental cristã e capitalista, de metodologias

definidas e com prioridades estabelecidas na Europa. Parte desse pensamento brasileiro

buscava ainda uma “pureza” que tinha sinônimo de perfeição, e apontava para uma forma

unificadora, e às vezes até mesmo totalitária de nação. Um outro projeto, este de fato popular

e bem mais abrangente, afirmaria características nascidas aqui, bem como a nossa

miscigenação racial.

Surgia, portanto, um embate moral interno na nossa sociedade que, emergindo de um

prolongado convívio escravista, dispunha dos modelos franceses, americanos e alemães de

civilização, para a formação de um Brasil urbano, industrial, civilizado e "moderno". Neste

sentido, as regras sociais impostas a partir de Getúlio representavam um trilho por onde

seguiria a moderna civilização brasileira, definindo uma moral de "aparências" - uma lei geral

em um mundo em desordem. De fato, a partir da Revolução de 1930, Getúlio Vargas procurou

controlar a cultura e os meios de comunicação, como vimos em capítulo anterior, utilizando-

226 CALDEIRA, Jorge. Noel Rosa: de costas para o mar. São Paulo: Brasiliense, 1982 (3ª edição). p. 23.

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os como instrumentos de formação da sociedade, num projeto para disciplinar o cidadão

brasileiro, com o rádio e as festas populares ampliando a nossa “consciência cultural“.

Paralelamente, contudo, a música popular dava vazão, a outra moral bem mais

permissiva porque provinha de um grupo social marginalizado e porque não pretendia seguir

exatamente o moralismo europeu. Pureza da raça, unidade de credo e organização do povo em

associações não poderiam sustentar a “verdadeira” representação do brasileiro - esse modelo

jamais poderia ser aplicado em sua essência à brasilidade. Essa crítica está presente em

inúmeras composições contemporâneas que iriam defender o que era verdadeiramente

“nosso”, e que serviriam de "válvulas de escape" para as pressões ao mundo popular.

Para exemplificar este debate musical sobre as raízes negras do samba podemos citar a

atuação de Joubert de Carvalho, como um dos defensores do saneamento musical do Brasil.

Numa década de inequívoco domínio do samba como gênero musical (1930), Joubert de

Carvalho, médico e filho de fazendeiro rico, propôs uma alteração do eixo sobre o qual se

apoiava a música popular brasileira e, desalinhado com os adeptos da miscigenação, clamou

por uma valorização da raça branca. Em “Sai da Toca, Brasil!”, uma composição sua de 1938,

gravada por Carmem Miranda, chegou a afirmar que senzala, macumba e o bater o pé no

chão, eram elementos que pertenciam ao passado: “a dança agora é no salão”, dizia. Para ele,

era preciso elevar o Brasil ao foro de civilidade, trocando a favela, tão cantada nos sambas-

malandros pelo arranha-céu. E proclamava:

Brasil das avenidas Da praia de Copacabana e do asfalto A tua gente branca e forte Ninguém cantou ainda bem alto (...) Brasil, deixa a favela pois o arranha-céu é o que se recomenda (...) (Sai da toca, Brasil!, Joubert de Carvalho, 1938)

A contradição dessa letra com as condições populares se torna ainda mais gritante

quando reparamos que “Sai da Toca, Brasil!” é uma rumba! A resposta veio logo: Nelson

Petersen, integrante do Bando Carioca, compôs um samba, também gravado por Carmem

Miranda ainda neste mesmo ano, que contra-argumentava:

Quem condena a batucada Dessa gente bronzeada Não é brasileiro E nada mais bonito é

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Que um corpo de mulher A sambar no terreiro. (...) O samba nasceu num cruel barracão Foi educado sambando no chão Com a gente de cor (...) (Quem Condena a Batucada, Nelson Petersen, 1938)

Era totalmente impossível, no final da década de 1930, para quem quer que seja

decretar o fim do samba ou negar suas negras raízes. Esta era uma batalha perdida para os

nacionalistas que pretendiam “embranquecer” o povo. Um embate ainda maior se deu,

entretanto, e desde o início da década, em relação à malandragem, um terreno bem mais

suscetível às críticas.

Roberto da Matta definiu o malandro como “um ser deslocado das regras formais,

fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás definido por nós como totalmente avesso

ao trabalho e individualizado pelo modo de andar, falar e vestir-se” 227. E José Miguel Wisnik

completou:

A malandragem é uma negação da moral do trabalho e da conduta exemplar (efetuada através de uma farsa paródica em que o sujeito simula ironicamente ter todas as perfeitas condições para o exercício da cidadania). Acresce que essa negativa ética vem acompanhada de um elogio da orgia, da entrega ao prazer da dança, do sexo e da bebida 228.

Foi agindo como uma válvula de escape, que a ideologia da malandragem, em tudo

oposta à ideologia do trabalho, teve na música popular, o seu espaço de expressão por

excelência, dado que o músico e o malandro por vezes se identificavam nos espaços que

ocupavam e no tipo de vida que levavam. O malandro, herdeiro do bilontra, personagem

carioca “esperto e oportunista” do século XIX 229, que substitui a metodologia cartesiana pela

manha e pelo jeitinho, o trabalho pela expropriação e o isolamento por certo exibicionismo,

justifica seu comportamento na injustiça social que exclui o trabalhador nacional honesto.

Assim está expresso, por exemplo, em sambas como Lenço no Pescoço, de Wilson Batista:

“eu vejo quem trabalha andar no miserê”.

227 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro:

Rocco, 1997. p. 263. 228 WISNIK, José Miguel. “Algumas questões de música e política no Brasil”. In: BOSI, Alfredo (org.) Cultura

brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 1987. p. 119. 229 A peça de teatro de revista “O Bilontra”, de 1886, de Arthur Azevedo é o melhor exemplo da utilização deste

personagem nos palcos cariocas. A partir desta revista, o personagem transformou-se num dos melhores exemplos sobre a discussão da ideologia burguesa do trabalho em oposição à entrega às tentações do ganho fácil que a ociosidade e o jogo prometem. Um estudo muito interessante sobre o tema se encontra em: MENCARELLI, Fernando Antonio. Cena Aberta: A Absolvição de Um Bilontra e o Teatro de Revista de Arthur Azevedo. Campinas: Editora da Unicamp / Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999.

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O sonho do malandro é ganhar no jogo do bicho - uma contravenção que é uma das

portas de entrada para a “vida fácil”, e sua prática é viver de “subtrações” sobre algum

“otário”, além de “gerenciar” prostitutas. O malandro se opõe, portanto, ao esforço

disciplinador do governo em relação aos trabalhadores, que eram encaminhados para a rotina

da produção. E foram muitos os sambistas que, como Wilson Batista, defendiam a

malandragem, mostrando o “orgulho de ser vadio”.

Conforme afirma Cláudio Aguiar Almeida 230, Wilson estaria refletindo não só o

embate moral já descrito, mas também os anseios de uma massa de trabalhadores submetida a

imensas dificuldades. A malandragem pode ser associada a uma reação à aceleração do

processo de urbanização do Rio de Janeiro entre o final da década de 1920 e o início dos anos

30, quando as populações recém-chegadas do campo tinham que se adaptar às péssimas

condições de trabalho, baixos salários, jornadas exageradamente longas, inexistência de

períodos de descanso remunerado e a super-exploração da mão-de-obra, inclusive feminina e

infantil. As greves eram reprimidas com violência pelas autoridades, que encaravam o

problema como questão meramente policial. A resposta a essa opressão do mundo do trabalho,

surge, portanto, numa série bastante significativa de sambas que procuraram exaltar a figura

do malandro, um tipo que preferia antes dedicar-se a bicos, pequenos furtos, e exploração de

mulheres, do que entregar-se ao trabalho pesado, que só trazia benefícios aos patrões. Jorge

Caldeira complementa:

Em meio à dureza geral, (...) por que maltratar o corpo noite e dia a troco de um salário de fome, se era possível passar melhor vivendo da malandragem? Foi justamente na música popular que esta questão se colocou de maneira mais acabada. Na década de vinte, os negros e mulatos que primeiro tocaram o samba colocaram esta dúvida em forma de música, optando claramente pela malandragem. Criou-se na canção uma imagem invertida do trabalho, onde o operário ficava à sombra e o ócio era agente de realização 231.

João da Baiana, Caninha, Donga, Sinhô e Heitor de Prazeres foram alguns dos

compositores que, desde a década de 1920, vinham defendendo a malandragem, que

sobreviveria na música popular até a implantação do Estado Novo (1937-45), e depois dele,

nos sambas cantados por Jorge Veiga ("Estatutos da Gafieira”, de Billy Blanco, de 1954), ou

compostos por Geraldo Pereira (“Escurinho”, 1955), nos sambas de breque de Moreira da

230 ALMEIDA, Cláudio Aguiar. Cultura e sociedade no Brasil : 1940 -1968. São Paulo: Ed. Atual, 1996. 231 CALDEIRA, Jorge. Op, cit. p. 25.

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Silva (“Na subida do morro”, com Ribeiro da Cunha, 1958; “Bamba de Caxias”, também com

Ribeiro Cunha, 1970), ou ainda com João Nogueira (“Malandro 100”, com Luiz Grande,

1986) e Martinho da Vila (“Coração de malandro”, com Garcia do Salgueiro, 1987). Mas foi

na década de 1930, que a malandragem conheceu o seu maior prestígio. Cláudia Matos, em

seu livro: Acertei no Milhar: Malandragem e Samba no Tempo de Getúlio 232, discute a

grande dimensão social que assumiu a malandragem nos anos 1930 e o esforço do governo

Vargas em acabar com ela, através da imposição de uma censura. Essa pesquisadora nos relata

que as letras de samba, por esta época constituíram o principal, senão único “documento

verbal” que as classes populares do Rio de Janeiro produziram autônoma e espontaneamente,

representando a “voz” dos segmentos sociais habitualmente relegados ao silêncio – “coisa de

preto e de pobre”, ou seja, de grupos “avessos às regras da civilização e do trabalho”. Nesta

época, para muitas das nossas autoridades, a ato de tocar violão consistia num verdadeiro

atestado de vadiagem. Samba e malandragem, portanto, tinham, nos anos 30, uma missão de

representação desse universo marginalizado, e ligações evidentes entre si e com um tipo de

vida desregrada e livre, expressa na exaltação ao ócio, à orgia e à vida boêmia. Tudo a ver

com Noel Rosa, de acentuada vocação para a boemia, e que daria com muito prazer a sua

significativa contribuição para a continuidade e solidificação de mais essa tradição:

Sambista que se prezasse não tinha nada a ver com o batente, e a imagem do

malandro batuqueiro era feliz: o operário otário dava duro no batente, mas o terno branco acabava na mão do sambista. (...) A sabedoria e a malícia eram tidas como as únicas armas para ganhar a vida em meio à miséria geral – com a vantagem de que o corpo ficava resguardado para os prazeres do samba e do amor 233.

O Malandro Noel É bastante conhecida na historiografia da música popular brasileira, a polêmica

musical entre Wilson Batista e Noel Rosa, que algumas vezes foi interpretada como uma

divergência em relação à malandragem no samba popular. “Lenço no Pescoço”, de Wilson

Batista, gravado por Sílvio Caldas, nem fez muito sucesso, mas rebatida verso por verso no

samba de Noel, suscitaria as respostas e contra-respostas que levantaram a polêmica, esta sim

famosa. Wilson estaria defendendo a imagem do malandro, dito vadio ou que vive de

expedientes suspeitos; ao passo que Noel, fazendo uma crítica á malandragem estaria

232 MATOS, Cláudia . Acertei no Milhar: Malandragem e Samba no Tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1982. 233 CALDEIRA, Jorge. Noel Rosa: De Costas para o Mar. São Paulo: Brasiliense, 1982. pp. 23 e 25.

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defendendo o ponto de vista do trabalhador. Comparando essas composições parece mesmo, a

princípio, que faz sentido essa percepção:

Quadro comparativo 1: A malandragem em Wilson Batista e Noel Rosa:

Lenço no pescoço - Wilson Batista, 1933

Com meu chapéu de lado, tamanco arrastando Lenço no pescoço, navalha no bolso Eu passo gingando, provoco e desafio Eu tenho orgulho em ser tão vadio Sei que eles falam desse meu proceder Eu vejo quem trabalha andar no miserê Eu sou vadio porque tive inclinação Eu me lembro era criança Tirava samba-canção Comigo não Eu quero ver quem tem razão E eles tocam. E você canta E eu não dou. Ai!

Rapaz Folgado - Noel Rosa, 1933 Deixa de arrastar o teu tamanco Pois tamanco nunca foi sandália E tira do pescoço o lenço branco Compra sapato e gravata Joga fora esta navalha que te atrapalha Com chapéu do lado deste rata Da polícia quero que escapes Fazendo um samba-canção Já te dei papel e lápis Arranja um amor e um violão Malandro é palavra derrotista Que só serve pra tirar Todo o valor do sambista Proponho ao povo civilizado Não te chamar de malandro E sim de rapaz folgado

Porém, ao lançarmos um olhar mais vasto sobre a produção musical de Noel,

percebemos o quanto há de equívoco nesta interpretação literal da letra de Noel. Na visão

generalizada sobre a polêmica, como nos apresenta, por exemplo, Cláudio Aguiar Almeida 234, Noel se coloca contra a imagem do “rapaz folgado”, que depunha contra o sambista, ele

próprio associado ao malandro, refletindo assim a postura moralizadora propagandeada pelo

Estado. Noel estaria, portanto, defendendo a “classe”, ao tentar desassociá-la da

malandragem, que reforçava os preconceitos já existentes, e até mesmo a postura

governamental. Contudo, não era exatamente a malandragem que estava em questão nesta

música, mas o “malandro Wilson Batista”, que tempos antes havia vencido Noel numa disputa

por uma morena da Lapa, segundo nos descreve a biografia de Noel escrita por João Máximo

e Carlos Didier 235. Esse era, na verdade, o verdadeiro motivo da resposta condenatória de

Noel: apenas uma vingança pessoal. Se não, seria impossível explicar como um compositor

tão próximo aos encantos da malandragem, tenha se convertido no anti-malandro. Como

entender (repetindo a pergunta formulada por João Máximo e Carlos Didier) que aquele que

retratava a vida do malandro em tantos sambas, havia composto uma música contrária à

234 ALMEIDA, Cláudio Aguiar. Cultura e Sociedade no Brasil: 1940 – 1968. São Paulo: Atual, 1996. pp. 8 a 14

(“Malandros x Trabalhadores”). 235 MÁXIMO João & DIDIER Carlos. Noel Rosa - Uma biografia. Op. cit., 1990. p. 292.

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malandragem, dentro de um cabaré da Lapa “entre copos de cerveja e mulheres cansadas?” 236.

Noel não tinha nada contra a malandragem, muito pelo contrário, ainda que

pretendesse realmente desassociar as imagens do sambista e do malandro. “Rapaz Folgado”

põe em questão até mesmo uma “falta de malandragem” do alegado malandro Wilson Batista,

que ao tornar muito notória a sua condição de “malandro”, vestindo-se e andando de maneira

chamativa, acabaria atraindo sobre si os olhos da lei. Dentro dos códigos da “verdadeira”

malandragem, a arte da dissimulação era essencial. Não fazia parte da malandragem

“aparecer” demais. Disso Noel sabia muito bem, como fica evidente em “Escola de

Malandro”, de 1932:

A escola do malandro É fingir que sabe amar Sem elas perceberem Para não estrilar... Fingindo é que se leva vantagem Isso, sim, é que é malandragem (Quá, quá, quá, quá...) Oi, enquanto existir o samba Não quero mais trabalhar A comida vem do céu, Jesus Cristo manda dar! Tomo vinho, tomo leite, Tomo a grana da mulher, (...) (Escola de Malandro, Noel Rosa, Orlando Luiz Machado e Ismael Silva, 1932)

João Máximo e Carlos Didier, na biografia de Noel, confirmam muitas vezes a

proximidade deste com o mundo da malandragem:

Todos esses códigos próprios de vida [da malandragem] – somados ao fato de que por trás da cara feia de muito malandro se escondem boas almas, amigos leais, braços fortes dispostos a ajudar em hora de aperto – é que fascinam Noel. Terá muitos malandros entre os seus amigos mais chegados, fará o que puder por eles e por eles será socorrido inúmeras vezes. A julgar por um punhado de sambas que comporá sobre malandros e malandragem, mesmo não sendo exatamente este o seu mundo, conhece-o bem, compreende-o 237.

“Rapaz Folgado”, portanto, era apenas uma desforra pessoal, que Wilson não ia deixar

pra lá, dando prosseguimento a seqüência de sambas que de lado a lado não passavam de

provocações. Essa polêmica descambaria alguns anos (e sambas) depois para o lado

236 Cena descrita por João Máximo e Carlos Didier em Noel Rosa - Uma biografia. Op. cit., 1990. p. 292. 237 Noel Rosa - Uma biografia. Op. cit., 1990. p. 133.

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puramente pejorativo, tendo o “Frankenstein da Vila” (1935) de Wilson, se constituído no

ponto mais diretamente agressivo, mas que geraria também sambas muito bons e conhecidos,

como “Conversa Fiada” (1934) de Wilson e “Palpite Infeliz” (1934) de Noel, que deixariam

de fora o tema inicial da malandragem.

Pretendemos construir uma imagem mais completa da malandragem retratada por

Noel Rosa, entendendo o compositor muito mais como seu defensor do que como o anti-

malandro que a disputa musical com Wilson Batista pode nos fazer acreditar. A posição de

Noel Rosa nunca foi ditada pelo espírito da exaltação ao trabalho, como vimos nos capítulos

anteriores, mantendo antes e sempre uma postura crítica em relação a ele, muito mais próxima

da "paródia" ao cotidiano, do que da "paráfrase" constante no samba-exaltação 238. Ary

Barroso e Villa Lobos foram tomados por Afonso Romano de Sant’Anna como exemplos

máximos de compositores cujas obras corresponderam ao espírito da exaltação nacional, em

apoio à ideologia oficial, enquanto Noel, entre outros, navegaram em corrente contrária, na

contramão do “oficialmente correto e louvável”, agindo portanto, como um "verdadeiro

modernista". Afonso Romano percebeu que é fácil encontrar nas composições de Noel a

exaltação à malandragem. Vejamos essa letra que é, como “Rapaz Folgado”, do mesmo ano

de 1933:

Nunca mais esta mulher Me vê trabalhando ! Quem vive sambando Leva a vida para o lado que quer De fome não se morre Neste Rio de Janeiro Ser malandro é um capricho De rapaz solteiro. A mulher é um achado Que nos perde e nos atrasa. Não há malandro casado, Pois malandro não se casa Com a bossa que eu tiver, Orgulhoso eu vou gritando : Nunca mais essa mulher, Nunca mais essa mulher Me vê trabalhando ! Antes de descer ao fundo

238 É Afonso Romano de Sant’Anna, em seu livro Música Popular e Moderna poesia Brasileira (Petrópolis:

Vozes, 1978), no capítulo intitulado “As origens do samba, Noel Rosa e o Modernismo”, quem primeiro ressaltou o caráter parodístico do compositor aliando-o ao movimento modernista: “Noel Rosa está para o Modernismo assim como Ari Barroso está para a poesia ufanista da ditadura de Vargas”. (p.197). Assunto já comentado no primeiro capítulo.

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Perguntei ao escafandro Se o mar é mais profundo Que as idéias do malandro Vou, enquanto eu puder, Meu capricho sustentando. Nunca mais essa mulher, Nunca mais essa mulher Me vê trabalhando ! (Capricho de Rapaz Solteiro, Noel Rosa, 1933)

Aí está o malandro de Noel. Nesta letra, a vida parece ser mais fácil para quem souber

ser esperto; para quem conseguir permanecer livre, permanecer com o “capricho” de ser

malandro e não cair nas armadilhas da sociedade, como o trabalho e o casamento. Podemos

nos indagar, quando pensamos nas formas de receptividade que sambas deste tipo ganhavam,

quantos ouvintes espalhados pelo Rio de Janeiro e pelo Brasil, trabalhadores sofridos, não

invejariam esse malandro? Que mistérios e delícias essa vida livre poderia ensejar? Que

forças ocultas agiriam em relação à malandragem, a ponto de inferir-lhe tantos encantos?

Além da atratividade do ócio, das formosas mulheres e do samba, a malandragem dava certa

imunidade mágica às “armadilhas da vida”, sustentada não só por sua inerente esperteza, mas

também por sua proximidade com certos universos religiosos como o do Candomblé e da

Umbanda, onde o malandro se assume como uma “entidade” de nome Zé Pilintra, de chapéu e

terno brancos. Noel ressalta a resistência mágica do malandro nestes outros versos, escritos

para o mesmo samba, mas não aproveitados na gravação:

Muito mais que a canoa O malandro em terra joga. A canoa afunda à-toa, Ele vira e não se afoga. (Capricho de Rapaz Solteiro, Noel Rosa, 1933 - estrofe não utilizada na gravação)

É claro que Noel está do lado do malandro. E quem sabe não queria imitar-lhe também

a sua condição, de quem “leva a vida sambando pro lado que quer”, sem se tornar

“trabalhador” e evitando o casamento, ”pois malandro não se casa”? Com apenas dezenove

anos, Noel já demonstrava essa admiração no samba “Vingança de Malandro” (1930):

É vivendo que se aprende O malandro tudo entende Eu espero a minha vez (...) Ela hoje tem a nota Pra comprar minha derrota Seu amor vou aceitar Pois assim eu vou tomar Pouco a pouco o seu dinheiro E depois vou me pirar!.

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(Vingança de Malandro, Noel Rosa, 1930):

E temos que lembrar também, que Noel não só foi amigo, mas chegou a presentear os

notórios malandros Kid Pepe, Zé Pretinho e Germano Augusto, com quatro de seus sambas:

• “O Orvalho Vem Caindo” (Noel Rosa e Kid Pepe, gravado por Almirante e Os

Diabos do Céu em 1933 pela Victor/ RCA Camdem).

• “Tenho Raiva de Quem Sabe” (Noel Rosa, Zé Pretinho e Kid Pepe, gravado por

Mário Reis e Os Diabos do Céu em 1934, pela Victor/ RCA Camdem).

• “Se a Sorte Me Ajudar” (Noel Rosa e Germano Augusto Coelho, gravado por

Aurora Miranda, João Petra de Barros e Orquestra Odeon em 1934, pela Odeon).

• “Não Foi por Amor” (Noel Rosa, Zé Pretinho e Germano Augusto Coelho gravado

por Orlando Silva e Os Diabos do Céu em 1936 pela Victor/ RCA Camdem).

João Máximo e Carlos Didier relatam que Noel aceitou certos favores dos malandros

Germano Augusto Coelho e Kid Pepe (Giuseppe Gelsomino, ex-pugilista), ambos

compradores de samba. Este último, que foi parceiro de Noel em “O orvalho vem caindo”

chegou a fazer várias ameaças a Noel, perseguindo-o e exigindo-lhe parceria exclusiva 239.

Noel se viu obrigado a fugir de Kid Pepe e a pedir auxílio a Zé Pretinho para livrar-se do

malandro. Zé Pretinho (Manuel do Espírito Santo) começou sua amizade com Noel em 1934,

a partir de encontros casuais em botequins da Praça Tiradentes e chegou a ajudá-lo em uma

mudança para um sobrado alugado, onde Noel passou a viver temporariamente depois que se

casou. Afirmam os biógrafos, que Noel contou com Zé Pretinho para proteger-lhe também de

muitos outros malandros fortes que o compositor acabava provocando, instigado pela bebida.

À Zé Pretinho entregará o samba “Tenho raiva de quem sabe”, composto também a partir do

refrão criado pelo amigo. À Germano Augusto (que foi motorista de Francisco Alves), Noel

dará o samba “Se a sorte me ajudar”, refeito por Noel a partir de um tema de Germano. E a

estes dois malandros, presenteará ainda com “Não foi por amor”. Em nenhuma dessas três

composições o nome de Noel aparecerá como autor. Contam os autores da biografia de Noel,

que este dissera a Germano e a Zé Pretinho, que esta última composição era mesmo um

239 MAXIMO, J. & DIDIER, C. Op. Cit. p. 272 – 273. Estes autores declaram que neste samba “Noel entrou com

letra e música e Kid Pepe com os músculos” (p. 273).

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presente e que não queria participação alguma em crédito em disco ou partitura, e nem

pagamento de direitos autorais. Contudo, quando o samba foi gravado por Mário Reis, o disco

atribuía a autoria a Zé Pretinho e a Kid Pepe! Este último, responsável por apresentar a

música a Mário Reis, sentiu-se autorizado a excluir Germano e a incluir o seu nome, a revelia

de Zé Pretinho. Mas Noel, sem saber da tramóia de Kid Pepe, ficou zangado com Zé Pretinho,

a quem passou a culpar pela suposta traição. Evitando falar com Zé Pretinho e destratando-o

na frente dos amigos, Noel acabou sendo agredido por este, que com um bofetão o fez voar

pelo estúdio da Rádio Cruzeiro do Sul, onde o poeta da Vila se apresentava, e a amizade

acabou 240.

Apesar das divergências e até do medo de enfrentar os malandros, Noel chegou a

andar com outros dois malandros ainda mais violentos e até cruéis: Baiaco (Oswaldo

Vasquez) e Saturnino Gonçalves. Por tudo isso, João Máximo e Carlos Didier revelam

surpresa em relação à implicância de Noel com o samba “Lenço no pescoço” de Wilson

Batista. Tudo isto demonstra a interação tumultuada, mas também repleta de fascínio, de Noel

com o mundo da malandragem.

O samba “Voltaste”, de Noel (1934), se encaixa bem nesta relação tumultuada, seja

como alusão à perseguição perpetrada por Kid Pepe, seja como nova resposta ao malandro de

“Lenço no Pescoço” de Wilson Batista. Mas não enxergamos aí indícios de que Noel

repudiasse o mundo da malandragem. Afinal todo malandro também tem os seus desafetos:

Voltaste novamente pro subúrbio Vai haver muito distúrbio, Vai fechar o botequim Voltaste e o despeito te acompanha E te guia na campanha Que tu fazes contra mim. (...) Voltaste pra fabricar defunto, Para fornecer assunto Aos diários da manhã. Voltaste novamente sem dinheiro, Tapeando o açougueiro Que não tem golpe de vista (...) Voltaste demonstrando claramente Que o subúrbio é ambiente De completa liberdade. Voltaste, mas falhou o teu projeto,

240 MAXIMO, J. & DIDIER, C. Op. Cit. p. 292-295.

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Não te dou o meu afeto, Quando eu quero eu sou ruim. Voltaste confessando sem vaidade Que a tua liberdade é viver bem preso a mim. (Voltaste (pro subúrbio), Noel Rosa, 1934)

Também parece claro, por outro lado, que apesar de admirar a malandragem, Noel

jamais seria um malandro de verdade. Afinal, o compositor da Vila jamais viveu de

subterfúgios, espertezas e golpes, nem de longe tinha o porte físico necessário para a

malandragem, e nem sequer havia conseguido evitar a armadilha do casamento, quando foi

obrigado a ele em 1934, com Lindaura, quando parecia estar apaixonado mesmo era por Ceci,

a “dama do cabaré”. Como confirmam João Máximo e Carlos Didier, sobre Noel:

Não é propriamente um malandro, desses que exploram as mulheres e acreditam que só pancada as amacia. Seus sambas pregando esse tipo de malandragem não devem ser tomados ao pé da letra. São mais pose do que convicção, menos vontade de agir do que de cantar como malandro 241.

Noel, podemos assim aventar, na verdade se colocava na posição de observador de

dois mundos pelos quais de movia, como em “Esquina de Vida” (em parceria com Francisco

de Queiroz Mattoso, 1933): É na esquina da vida/ Que assisto à decida/ De quem subiu/ Faço

o confronto/ Entre o malandro pronto/ E o otário/ que nasceu pra milionário”.

Ainda assim, podemos afirmar que Noel é, sem dúvida, simpático a malandragem, a

ponto de lamentar as transformações que a modernidade estava a operar também nesse

mundo, como no samba “Não tem tradução” de 1933, no trecho aqui já referido: “Mais tarde

o malandro deixou de sambar/ dando pinote/ E só querendo dançar o fox-trot!”.

É importante ressaltar ainda que a música popular dedicaria através de muitos

compositores e durante um grande período da sua história um verdadeiro culto ao personagem

do malandro, que inspirado da vida real, tornava possível, ao menos no mundo da música, a

satisfação de alguns dos desejos reprimidos da população urbana. Façamos um parêntesis para

perceber esse fascínio neste samba de J. Cascata, de 1937, onde um “bom moço” abandona a

cidade para fazer parte da “turma da Mangueira”, “com suas pastoras formosas”:

(...) Nossos olhares cruzaram E eu, para te fazer a vontade Tirei fora o colarinho Passei a ser maladrinho

241 MAXIMO, J. & DIDIER, C. Op. Cit. p. 275.

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Nunca mais fui à cidade Pra gozar o teu carinho Na tranquilidade E hoje faço parte da turma No braço eu trago sempre o paletó Um lenço amarrado no pescoço Eu já me sinto outro moço Com meu chinelo charló E até faço valentia E tiro samba de harmonia (Meu Romance, J. Cascata, composta em 1937 e gravada em 1938)

Também a maneira de cantar, trazida pelas composições que exaltavam a

malandragem, debochada, sem referências ao bell canto, reforçada por ousadias melódicas

dos instrumentos acompanhantes (em especial dos metais) e pelo constante contraponto

rítmico, definiu todo um “clima” para a música desta época, influenciando outros tipos de

composições distintas, como as marchinhas de Lamartine Babo e as interpretações de Mário

Reis. Na verdade, a música contestadora dos anos 1930, carregada de malandragem terá uma

ação prolongada e bem significativa, sobretudo a partir de seu resgate nos anos 1960, quando

vários artistas (e em especial Chico Buarque) vão recuperar esse repertório, naquela altura já

um tanto esquecido, utilizando-o como paradigma para a nova postura questionadora que

surgia. É aí que a malandragem faz a sua reaparição, carregada no glamour saudosista.

O malandro Chico

As composições de Chico Buarque que fazem referências á malandragem podem ser

divididas em três fases distintas, que correspondem á releituras atualizadas sobre o tema:

Quadro histórico das composições que se referem à malandragem em Chico Buarque.

1ª fase (1965 – 1972) O malandro tradicional

Juca Fica Malandro quando morre Meu refrão Logo eu? Samba e Amor Mambembe Partido Alto

2ª fase (1977 – 1979) A nova malandragem ou a morte do velho malandro

Vai trabalhar vagabundo Homenagem ao Malandro O Malandro O Malandro nº. 2 Hino de Duran

3ª fase (1985) O retorno nostálgico da malandragem

A volta do malandro Hino da Repressão Desafio do malandro

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Na primeira fase, Chico Buarque resgata o velho malandro cantado por Noel. Numa

comparação detalhada entre as composições desta fase com as composições de Noel que

falam da malandragem, é possível perceber muitas semelhanças e continuidades:

Quadro comparativo 2: A malandragem em Noel Rosa e Chico Buarque

O Malandro de Noel Eu devo, não quero negar, Mas te pagarei quando puder, Se o jogo permitir, Se a polícia consentir E se Deus quiser... (...) Tu podes guardar o que eu te digo Contando com a gratidão E com o braço habilidoso De um malandro que é medroso, Mas que tem bom coração. (Malandro Medroso, Noel, 1930)

O malandro de Chico Diz que eu sou um subversivo Um elemento ativo (...) Diga que o meu samba é fraco E que eu não largo o taco Nem pra conversar com você (...) Diz que eu ganho até folgado Mas perco no dado E não lhe dou vintém Diz que é pra tomar cuidado Sou um desajustado E o que bem lhe agrada, meu bem. (Fica, Chico, 1965)

E às pessoas que eu detesto Diga sempre que eu não presto Que o meu lar é o botequim. (Último Desejo, Noel, 1936)

Diga ao primeiro que passa Que eu sou da cachaça Mais do que do amor. (Fica, Chico, 1965)

Quando eu me formei no samba Recebi uma medalha Eu vou pra Vila Pro samba do chapéu de palha A polícia em toda a zona Proibiu a batucada Eu vou pra Vila Onde a polícia é camarada. (Eu vou pra Vila, Noel, 1930)

Juca ficou desapontado Declarou ao delegado Não saber se amor é crime Ou se samba é pecado Em legítima defesa Batucou assim na mesa O delegado é bamba Na delegacia Mas nunca fez samba Nunca viu Maria. (Juca, Chico, 1965)

Vivo contente embora esteja na miséria Que se dane! Que se dane! Com esta crise eu levo a vida na pilhéria Que se dane! Que se dane! Não amola! Não amola! Não deixo o samba Porque o samba me consola (...) Fui processado por andar na vadiagem Que se dane! Que se dane! Mas me soltaram pelo meio da viagem Que se dane! Que se dane! (Que se Dane, Noel Rosa e Jota Machado , 1931) O meu destino Foi traçado no baralho Não fui feito pra trabalho Eu nasci pra batucar (Felicidade, Noel Rosa / René Bittencourt , 1931) Este mulato forte é do Salgueiro Passear no tintureiro* era o seu esporte

Eu nasci sem sorte Moro num barraco Mas meu santo é forte E o samba é meu fraco (Meu Refrão, Chico, 1965) Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia Deus me deu muitas saudades e muita preguiça Deus me deu pernas compridas e muita malícia Pra correr atrás de bola e fugir da polícia Um dia ainda sou notícia (...) Deus é um cara gozador, adora brincadeira Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo Inteiro Mas achou muito engraçado me botar cabreiro Na barriga da miséria, eu nasci batuqueiro Eu sou do Rio de Janeiro (Partido Alto, Chico, 1972) Inda garoto, deixei de ir à escola

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Já nasceu com sorte E desde pirralho Vive à custa do baralho Nunca viu trabalho (Mulato Bamba, Noel, 1931) (*tintureiro: na gíria da época, o carro da polícia, camburão)

Cassaram meu boletim Não sou ladrão, eu não sou bom de bola Nem posso ouvir clarim Um bom futuro é o que jamais me esperou Mas vou até o fim (Até o fim, Chico Buarque, 1978)

Eu nascendo pobre e feio Ia ser triste o meu fim, Mas crescendo a bossa veio, Deus teve pena de mim (Riso de Criança, Noel, 1934)

Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio Pele e osso simplesmente, quase sem recheio Mas se alguém me desafia e bota a mão no meio Dou pernada a três por quatro e nem me Despenteio Que eu já tô de saco cheio ! (Partido Alto, Chico, 1972)

Sou do sereno, Poeta muito soturno Vou virar guarda noturno E você sabe por quê (Três Apitos, Noel Rosa, 1933)

Não sei se preguiçoso ou se covarde Debaixo do meu cobertor de lã Eu faço samba e amor até mais tarde E tenho muito sono de manhã (Samba e Amor, Chico, 1969)

Você grita que eu não trabalho, Diz que eu sou um vagabundo. Não faça assim, meu bem ! Pois eu vivo ativo neste mundo A espera do trabalho E o trabalho não vem. Quando eu me sinto bem forte Vou procurar um baralho, Mas fico fraco e sem sorte (Cadê trabalho?, Noel e Canuto, 1931, samba jamais gravado)

Essa morena de mansinho me conquista Vai roubando gota a gota Esse meu sangue de sambista (...) A minha amada Diz que é pra eu deixar de férias Pra largar a batucada E pra pensar em coisas sérias E qualquer dia Ela ainda vem pedir, aposto Pra eu deixar a companhia Dos amigos que mais gosto (Logo Eu?, Chico, 1967)

Acordei com pesadelo, Quase que o chão escangalho Com dores no cotovelo Por sonhar com o trabalho! Trabalho é o meu inimigo, Já quis me fazer de tolo: Marcando encontro comigo, O trabalho deu o bolo. (Cadê trabalho?, Noel e Canuto, 1931, samba jamais gravado)

O refrão que eu faço É pra você saber Que eu não vou dar braço Pra ninguém torcer Deixa de feitiço Que eu não mudo não Pois eu sou sem compromisso Sem relógio e sem patrão (Meu Refrão, Chico, 1965)

(...) Entretanto ali bem perto Morria de um tiro certo Um valente muito sério Professor dos desacatos Que ensinava aos pacatos O rumo do cemitério (...) No século do progresso O revolver teve ingresso Pra acabar com a valentia. (Século do Progresso, Noel, 1934)

Cai no chão Um corpo maltrapilho Velho chorando Malandro do morro era seu filho (...) Menino quando morre vira anjo Mulher vira uma flor no céu Pinhos chorando Malandro quando morre Vira samba. (Malandro quando morre, Chico, 1965)

A tradição em torno da ideologia da malandragem, retratada por Noel, está toda

resgatada nos sambas do Chico – “puro Noel” – como diziam os críticos. Está aí um dos

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motivos para as principais comparações entre as obras de Noel e do Chico, sobretudo nesta

sua primeira fase produtiva sobre o tema. Em ambos, o malandro é o mesmo: devedor, viciado

em jogo (baralho, dados e bilhar) e na bebida (“eu sou da cachaça”, “meu lar é o botequim”),

pobre e feio, perseguido pela polícia, a quem ludibria com a esperteza, ainda que nem sempre

consiga evitar os “passeios no tintureiro” (carro de polícia para transporte de presos, o

camburão da época de Noel 242) e nem os eventuais depoimentos ao delegado.

Vemos nessa comparação que os compositores recriaram o mesmo malandro: que não

dá a mínima para as responsabilidades da vida conjugal (“Não amola! Não deixo o samba,

porque o samba me consola”, “deixa de feitiço, que eu não mudo não”); que é desbocado

(“Que se dane!”, “Que eu já estou de saco cheio!”); que vira as noites na orgia, dormindo pela

manhã; que nasceu batuqueiro, briguento e sem futuro (“desde piralho, vive a custa do

baralho”, “um bom futuro é o que jamais me esperou”); desajustado assumido, mas “de bom

coração” e amado pelas mulheres; sujeito que não pode nem sonhar com o trabalho

(“Trabalho é meu inimigo”, “Pois eu sou sem compromisso, sem relógio e sem patrão”); que

é sambista fiel, e que provavelmente irá morrer de maneira trágica, covardemente assassinado.

Mas, é preciso lembrar que, assim como Noel, Chico também nunca foi um malandro

de verdade, e como ele, apenas utilizou o universo da malandragem como veículo adequado

para expressar o desejo pela liberdade - a “liberdade a brasileira”, com os diversos sentidos já

aqui apresentados. Entre eles, o combate a ideologia do trabalho, que na visão dos autores

escraviza e disciplina de forma destrutiva a personalidade do trabalhador brasileiro.

Contudo, Chico Buarque de Hollanda iria aos poucos diminuindo suas referências ao

malandro tradicional até que em 1972 comporia o último samba (“Partido alto”) desta sua

primeira fase de homenagens à essa figura tão emblemática da canção popular 243. Fase em

que ainda procurava um retrato mais ou menos fiel do malandro tradicional. Porém, depois

deste samba, Chico Buarque percebeu que não cabia mais na realidade nacional o mesmo tipo

de referência ou exaltação à malandragem tradicional, que já corria o risco de se tornar

242 Noel Rosa - Uma biografia. Op. cit., 1990. pp. 220 e 226 – nota de rodapé nº 4. 243 Nos exemplos citados, todas as canções de Chico Buarque se situam neste período (1965 – 1972), com

exceção de um trecho da música Até o fim, de 1978, citada apenas para corroborar as muitas semelhanças entre a “velha” malandragem cantada por Noel e a malandragem de Chico nesta sua primeira leva de produções dedicada ao tema. O trecho em questão foi apresentado porque se encaixa perfeitamente dentro do espírito destas canções, apesar de pertencer a uma fase de reavaliação do personagem do malandro. As composições relativas às próximas fases contêm diferenças marcantes com a malandragem tradicional e serão analisadas a seguir.

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repetitiva e quase ingênua ou fora da realidade, pela total ausência do contexto original que

havia inspirado tantos sambistas e pela total inaplicabilidade da sua ideologia ao contexto

formalizado no Brasil. Após o seu exílio voluntário na Itália e o endurecimento cada vez

maior do Regime Militar (depois do Ato Institucional nº 5, de 1968), a censura e as

perseguições políticas levaram Chico Buarque a adotar um discurso mais contundente e

ligado às questões sociais e políticas mais atuais e urgentes. A malandragem, com todo o seu

glamour libertário, se viu repentinamente relegada ao passado. Já em “Partido Alto”, de 1972,

podemos notar um grau de rebeldia e agressividade bem maior do que nos sambas anteriores,

resultado do aumento do clima opressivo: “Deus é um cara gozador/ adora bricadeira (...)/

Na barriga da miséria / eu nasci batuqueiro”; “Que eu já tô de saco cheio”. O Brasil, a

semelhança do que ocorrera com o estabelecimento do Estado Novo (1937-45), vivia um

novo período de ditadura plena, com o cerceamento das liberdades e dos direitos humanos. E

da mesma forma, a malandragem que teve de desaparecer dos sambas na ditadura de Getúlio,

também agora iria recolher-se prudentemente ao lugar mítico dos antigos sambas, onde foi

provavelmente mais ativa do que na vida cotidiana real do Rio de Janeiro.

Veremos surgir neste início da década de 1970, a fase mais marcadamente política das

obras de Chico, que usará seu talento para combater a opressão da ditadura e lutar pela

liberdade de expressão, como já comentamos. O velho malandro, cada vez menos admirado,

passava a ser taxado apenas como um vagabundo e Chico Buarque irá lamentar essa

transformação no samba “Vai trabalhar vagabundo”, de 1975. É interessante lembrar que Noel

Rosa também havia composto um samba onde comenta a decadência da malandragem em

meio às tentativas de transformação do malandro num trabalhador, a exemplo do samba já

comentado, “Rapaz Folgado”, onde alertava: “Malandro é palavra derrotista/ Que só serve

pra tirar/ Todo o valor do sambista”. Trata-se de “Se a sorte me ajudar” (com Germano

Augusto, 1934), também já comentado. Vamos comparar esse samba de Noel com alguns

trechos da composição de Chico Buarque:

Quadro comparativo 3: O fim da malandragem em Noel Rosa e em Chico Buarque

Se a Sorte Me Ajudar, Noel Rosa, Germano Augusto Coelho, 1934.

Se a sorte me ajudar Eu vou te abandonar Vou mudar de profissão Porque a palavra malandragem Só nos trouxe desvantagem

Vai trabalhar vagabundo - Chico Buarque, 1975.

Vai trabalhar, vagabundo Vai trabalhar criatura Deus permite a todo mundo Uma loucura (...) Prepara o teu documento

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E você não vai dizer que não Quem faz seus versos E no morro faz visagem Leva sempre desvantagem Dorme sempre no distrito Entretanto quem é rico E faz samba na avenida Quando abusa da bebida Todo mundo acha bonito Antigamente, o folgado era cotado E era bem considerado Ia ao baile de casaca Hoje em dia por despeito Ele é sempre perseguido E é mal compreendido Pela própria parte fraca

Carimba o teu coração Não perde nem um momento Perde a razão Pode esquecer a mulata Pode esquecer o bilhar Pode apertar a gravata Vai te enforcar Vai te entregar Vai te estragar Vai trabalhar (...) Vai terminar moribundo Com um pouco de paciência No fim da fila do fundo Da previdência (...) A criançada chorando Tua mulher vai suar Pra botar outro malandro No teu lugar

Noel, neste seu samba em parceria com o malandro Germano Augusto, está

lamentando a imposição crescente para o fim da malandragem. A decadência do mito do

malandro, incompreendido, malvisto até mesmo pela “parte fraca”, isto é, pela população

pobre que agora o rejeita, parecia inevitável já naquele distante 1934. O malandro, que já

começava a ser vítima da ideologia do trabalho de Vargas, podia continuar a fazer os seus

versos, mas não devia mais fazer tanta “visagem” - gíria carioca para seus gestos exagerados

feitos com o intuito de impressionar. Como o próprio Noel já havia acentuado no seu samba

“Rapaz Folgado”, criado no ano anterior a este, era preciso manter a discrição, “ludibriando

toda a gente” e usando uma de suas principais armas, o fingimento, para não ser mais

perseguido. Noel continua a defender a malandragem, mas alerta ao velho malandro, aquele

da rasteira e da habilidade, com a ginga de corpo e terno branco, que seu tempo de visagem e

pequenos golpes já estavam com os dias contados. Sensação que Noel confirma no trecho

também já apresentado do seu samba “Século do Progresso”, composto neste mesmo ano de

1934: “no século do progresso/ o revolver teve ingresso/ pra acabar com a valentia”. Noel

também havia deixado claro, em “Se a sorte me ajudar”, que na sociedade da hipocrisia, o

mau comportamento era julgado de acordo com as posses do infrator: “Entretanto quem é

rico/ E faz samba na avenida/ Quando abusa da bebida / Todo mundo acha bonito”.

Já Chico Buarque, presenciando um clima ainda mais repressivo, em “Vai trabalhar

vagabundo”, não apontava nenhuma saída para a velha malandragem: “Pode esquecer a

mulata/ Pode esquecer o bilhar/ Pode apertar a gravata/ Vai te enforcar”. Aqui, o trabalho é

a forma de suicídio da malandragem. O pessimismo impera nessa composição, feita em ritmo

e melodia, contraditoriamente alegres, o que reforça a própria contradição do autor, que, no

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fundo, gostaria de continuar a defender a malandragem. Essa letra, que se utiliza da

contundência que o momento político exigia para condenar o malandro a perder a razão, a

tirar os documentos, e a aprender a paciência para terminar moribundo na fila do Instituto de

Previdência Social, faz despertar, por outro lado, o malandro calado que existe dentro de todo

o trabalhador. Relacionando o seu esforço diário á total falta de perspectiva em um futuro

melhor – numa repetição do conselho às avessas, da música “Bom Conselho”, de 1972: “está

provado, quem espera nunca alcança” - o trabalhador resignado se vê imediatamente

questionado pela música, pois quem vai trabalhar também vai “se enforcar, se entregar, se

estragar”. A defesa da malandragem nesta canção, da mesma forma que na música de Noel,

continua ainda de pé, apesar de toda a adversidade dos momentos históricos respectivos.

Ao voltar ao tema, na virada de 1977 para 78, com ”Homenagem ao Malandro” –

parte integrante da “Ópera do Malandro”, Chico não poderia deixar de constatar que aquela

velha malandragem realmente não existia mais. Ou melhor, que ela agora não vivia mais nos

morros onde tinha nascido e nem nos cabarés da Lapa que a haviam consagrado. O Malandro

estava mudado. Agora, nos escritórios, ocupando cargos públicos e as colunas sociais, com

um novo “aparato de malandro oficial”, “com contrato, com gravata e capital”, tinha uma

nova conjuntura, onde ele “nunca se dá mal”. A nova malandragem, oposta diametralmente à

antiga, aposentou a briga e a navalha (do malandro de “Lenço no pescoço”), e já não se coloca

mais contra o casamento e nem contra o trabalho! Ainda que, quanto a este, não se pode dizer

que haja exatamente adesão. Da malandragem original se manteria a exploração sobre “os

otários” e a esperteza de enganar os “honestos”, usando para isso, espertamente, a própria

estrutura do Estado, que permite a transformação deste malandro em “político”. Este seria o

malandro “profissional”, que com o respaldo oficial, comete delitos bem maiores do que os do

malandro original, mas que tem a anuência do poder e até mesmo da sociedade. A nova

malandragem não era mais para ser exaltada, e sim denunciada:

Eu fui fazer um samba em homenagem À nata da malandragem Que conheço de outros carnavais Eu fui à Lapa e perdi a viagem Que aquela tal malandragem Não existe mais Agora já não é normal O que dá de malandro regular, profissional Malandro com aparato de malandro oficial Malandro candidato a malandro federal Malandro com retrato na coluna social Malandro com contrato, com gravata e capital

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Que nunca se dá mal Mas o malandro pra valer Não espalha Aposentou a navalha Tem mulher e filho e tralha e tal Dizem as más línguas que ele até trabalha Mora lá longe e chacoalha Num trem da Central (Homenagem ao malandro, Chico Buarque, 1977-1978)

Na última estrofe, o compositor não se esquece, no entanto, do velho malandro (o

“malandro pra valer”), porém lamenta: ele agora já “não se espalha”, casou-se e para

sustentar a família precisa chacoalhar num trem da central. Foi exatamente esta imagem – a

do malandro carioca dentro deste trem – a escolhida para figurar na capa e no encarte do

álbum duplo com as canções da Ópera do Malandro, como num retrato derradeiro do que

havia sobrado da velha malandragem 244. O que essa música nos comunica é que o conceito de

malandragem havia se ampliado definitivamente, diferenciando dois tipos de malandros. O

bon vivant de Noel havia perdido o seu espaço, não freqüentava mais o botequim ou os

cabarés. Ele rendeu-se ao trabalho e dos velhos tempos mantinha somente o terno branco e

um certo ar de distinção. Já o ambiente para o novo malandro é palaciano e oficial, com

acordos por debaixo dos panos e troca de favores. O bom humor de Noel que cristalizou o

comportamento do malandro na tática do jeitinho e do “bom coração”, cede espaço agora para

um outro humor, bem mais sarcástico, como percebemos também em “Partido Alto”, de

Chico.

A mesma percepção, ou constatação de transformação do malandro, está registrada em

composições de outros dignos herdeiros de Noel, como João Bosco e Aldir Blanc, como

vemos na canção intitulada “Bandalhismo”, de 1980:

Meu coração tem botequins imundos Antros de ronda, vinte-e-um, purrinha Onde trêmulas mãos de vagabundos Batucam samba-enredo na caixinha Perdigoto, cascata, tosse, escarro Um choro soluçante que não pára Piada suja, bofetão na cara E essa vontade de soltar um barro...

Como os pobres otários da Central Já vomitei sem lenço e sonrisal O P.F. de rabada com agrião... Mais amarelo que arroz de forno

244 Esta produção gráfica tem a assinatura prestigiosa de Elifas Andreato e fotos de Alexandre Sardá.

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Voltei pro lar, e em plena dor-de-corno Quebrei o vídeo da televisão. (Bandalhismo, João Bosco, Aldir Blanc, 1980)

Neste cenário lamentável mora a certeza de que mudaram mesmo os tempos. No

botequim de Aldir Blanc e João Bosco não é mais possível perturbar o garçom ou os

freqüentadores com uma brincadeira, e muito menos pendurar a conta “num cabide ali em

frente” (como em “Conversa de Botequim”, Noel Rosa e Vadico, 1935). Aquele bom humor

das músicas de Noel foi substituído nesta letra, por um sentimento de opressão e revolta

contida, descontada no vídeo da televisão, que hipocritamente insiste em mostrar uma outra

realidade. A necessidade de uma linguagem agressiva transformou o botequim num lugar de

miséria moral e material, onde não existem mais os malandros, mas somente os “vagabundos”

que, com mãos trêmulas (sinal inequívoco da decadência física), insistem em batucar um

samba-enredo. O eu-lírico, freqüentador dos botecos, já não tem nada de esperteza e ginga e

se vê como mais um entre os “pobres otários da Central”. É quase a mesma imagem da

música de Chico Buarque, com uma dose extra de degradação e de revolta. Mas em Chico,

restava ainda algum lamento sincero pela perda de “antigos preceitos morais”, a referência ao

universo da malandragem como sinônimo de brasilidade, e a exaltação de um passado mais

romântico.

A malandragem estava então totalmente ultrapassada? Era o fim desta importante

tradição da música popular brasileira? Chico Buarque não iria se conformar com essa perda

total.

Para resgatar de fato alguma coisa da antiga malandragem foi preciso que Chico

Buarque também recriasse o ambiente original (e o seu glamour) escrevendo e compondo um

dos mais belos musicais da dramaturgia brasileira. Convenientemente, Chico teria o cuidado,

de localizar a sua história sobre a malandragem dentro do seu primeiro período de real

decadência, no início dos anos 1940, ou seja, no auge da repressão do Estado Novo, mantendo

assim o seu paralelo com o momento também de decadência em que estava sendo escrita a

sua peça. A famosa “Ópera do Malandro” (1978), já aqui comentada, foi baseada, como

explica o autor no prefácio da peça, na “Ópera dos Mendigos” (1728), de John Gay, e na

“Ópera dos Três Vinténs” (1928) de Bertolt Brecht e Kurt Weill, e teve a direção de Luiz

Antônio Martinez Correa. A peça resgatava o bom malandro, ao mesmo tempo em que

denunciava a extensão da malandragem para outras esferas, onde a sua atuação era bem mais

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pernóstica. A história se desenvolve em torno das relações entre os dois tipos de malandros,

que acabamos de apresentar, e que se tornam inimigos: Max Overseas, o “bom malandro”,

contrabandista (criminalidade que não afeta diretamente o povo, mas “apenas” os

comerciantes e o Estado) e que percebe que suas atividades estão em declínio; e o

comerciante Fernandes de Duran, o “mau malandro”, que juntamente com sua mulher, Vitória

Régia, “exploram uma cadeia de bordéis na Lapa, empregando centenas de mulheres” 245. Há

também o policial corrupto, o inspetor Chaves, que com a sua própria malandragem, controla

a moral e os bons costumes da cidade, mas aceita os presentes e subornos de Duran. O clima

de miséria moral e corrupção se assemelham aos tempos em que a peça foi escrita, mas se

resgata o bom humor, o código de honra da antiga malandragem e o seu olhar condescendente

para com os perseguidos ou oprimidos, como os miseráveis, os artistas, bandidos, travestis e

prostitutas.

Das dezesseis canções especialmente compostas para a peça (às quais se soma um

pout-pouri com paródias de trechos de árias de óperas famosas), quatro se referem

diretamente á malandragem (“O Malandro”, “Hino de Duran”, “Homenagem ao Malandro”, e

“O Malandro nº. 2”), e duas atacam a ideologia burguesa do trabalho (“O casamento dos

pequenos burgueses” e “Se eu fosse o teu patrão”). Na primeira destas canções, se apresenta o

malandro tradicional e, em seguida, o modo como a malandragem havia se espalhado em

vários meios sociais até se tornar a prática de banqueiros e até de investidores estrangeiros,

para depois, invertendo o processo, demonstrar que o único que paga pelos delitos é o

malandro original, considerado culpado, mas na verdade, vítima de todas as armações:

O malandro/ Na dureza Senta à mesa/ Do café Bebe um gole/ De cachaça Acha graça/ E dá no pé O garçom/ No prejuízo Sem sorriso/ Sem freguês De passagem/ Pela caixa Dá uma baixa/ No português O galego/ Acha estranho Que o seu ganho/ Tá um horror Pega o lápis/ Soma os canos Passa os danos/ Pro distribuidor Mas o frete/ Vê que ao todo Há engodo/ Nos papéis E pra cima/ Do alambique

245 Encarte do álbum duplo: Ópera do Malandro, 1978, Polygram, produzido porr Sérgio de Carvalho.

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Dá um trambique/ De cem mil réis O usineiro/ Nessa luta Grita (ponte que partiu) Não é idiota/ Trunca a nota Lesa o Banco do Brasil Nosso banco/ Tá cotado 'Tá cotado No mercado/ Exterior Então taxa/ A cachaça A um preço/Assutador Mas os ianques/ Com seus tanques Têm bem mais o/ Que fazer E proíbem/ Os soldados Aliados/ De beber A cachaça/ Tá parada Rejeitada/ No barril O alambique/ Tem chilique Contra o Banco do Brasil O usineiro/ Faz barulho Com orgulho/ De produtor Mas a sua/ Raiva cega Descarrega/ No carregador Este chega/ Pro galego Nega arreglo/ Cobra mais A cachaça/ Tá de graça Mas o frete/ Como é que faz? O galego/ Tá apertado Pro seu lado/ Não tá bom Então deixa/ Congelada A mesada/ Do garçom O garçom vê/ Um malandro Sai gritando/ Pega ladrão E o malandro/ Autuado É julgado e condenado culpado Pela situação. (O malandro - Kurt Weill, Bertolt Brecht - versão livre de Chico Buarque , 1977 / 78)

Não se trata mais de exaltar a antiga malandragem, mas de denunciar a injustiça e a

perseguição aos mais fracos, bem como os interesses escusos que, ao percorrer todo o

espectro social, demonstrava em cada nível, um conceito e uma prática própria de

malandragem. O arranjo musical acrescenta a cada estrofe um grupo instrumental distinto e o

toque da caixa de fósforos vai aos poucos se transformando num acompanhamento orquestral,

o que reforça a idéia de que é o pequeno gesto do malandro no início (sair do bar sem pagar a

conta) que desencadeia todo o processo de malandragens cada vez maiores. Na última canção

da peça, “O Malandro nº 2”, a melodia é a mesma (de Kurt Weill), mas o arranjo realiza o

movimento contrário: começa com o tutti da orquestra e termina com a voz acompanhada pela

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caixinha de fósforo. Esse esvaziamento acaba reforçando também a sensação de solidão e

abandono do velho malandro, que é mostrado já morto “na sarjeta do país”, na sua forma

tradicional de morrer, assassinado: “é um presunto”, “foi encontrado mais furado/ que

Jesus”). A descrição de detalhes do seu corpo torturado também chama a atenção para essa

prática, bastante comum no Regime Militar, e torna mais contrastante a reação da sociedade

que assiste impassível à injustiça: “E quem passa/ Acha graça/ na desgraça/ do infeliz”.

O malandro/ Tá na greta Na sarjeta/ Do país E quem passa/ Acha graça Na desgraça/ Do infeliz O malandro/ Tá de coma Hematoma/ No nariz E rasgando/ Sua bunda Um funda/ Cicatriz O seu rosto/ Tem mais mosca Que a birosca/ Do Mané O malandro/ É um presunto De pé junto/ E com chulé O coitado/ Foi encontrado Mais furado/ Que Jesus E do estranho/ Abdômen Desse homem/ Jorra pus O seu peito/ Putrefeito Tá com jeito/ De pirão O seu sangue/ Forma lagos E os seus bagos/ Estão no chão O cadáver/ Do indigente É evidente/ Que morreu E no entanto/ Ele se move Como prova/ O Galileu / (O malandro nº. 2, Kurt Weill, Bertolt Brecht - versão livre de Chico Buarque ,1977/ 78)

É interessante notar que na última estrofe, Chico Buarque faz questão de nos dizer que

mesmo morto, o malandro, transformado em indigente, continuava a “burlar as leis”, e ao

invés de permanecer imóvel, como desejavam as autoridades, ele ainda se movia, seguindo

uma lei maior, da “natureza”, e que havia sido formulada por Galileu. Seria a mensagem de

que a antiga malandragem iria continuar atuando e surpreendendo, mesmo depois de

decretada oficialmente a sua morte? Um outro ponto notório é que, coincidência ou não,

“Galileu Galilei” é o título de uma outra peça de Bertold Brecht, bastante encenada no Brasil

nos anos 1970, e que representava uma forte propaganda contra a repressão e a censura de

idéias e expressões.

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Na Ópera do Malandro, para cumprir a tarefa de penalizar apenas o lado mais fraco, a

polícia deveria ser necessariamente corrupta e implacável nos seus métodos de crueldade,

como registra o Hino de Duran:

Se tu falas muitas palavras sutis E gostas de senhas, sussurros, ardis A lei tem ouvidos pra te delatar Nas pedras do teu próprio lar Se trazes no bolso a contravenção Muambas, baganas e nem um tostão A lei te vigia, bandido infeliz Com seus olhos de raio-x Se vives nas sombras, frequentas porões Se tramas assaltos ou revoluções A lei te procura amanhã de manhã Com seu faro de dobermann E se definitivamente a sociedade só te tem Desprezo e horror E mesmo nas galeras és nocivo És um estorvo, és um tumor A lei fecha o livro, te pregam na cruz E depois chamam os urubus

Se pensas que burlas as normas penais Insuflas, agitas e gritas demais A lei logo vai te abraçar, infrator Com seus braços de estivador Se pensas que pensas (...) (Hino de Duran (Hino da Repressão) , Chico Buarque, 1979) 246.

Este “hino da repressão” leva o nome do “mau” malandro Duran, que conta com a

força policial para garantir seus rendimentos, e é uma clara denúncia dos métodos usados pela

pratica repressiva do regime militar, com suas tecnologias de utilização de raios X e escutas

instaladas para as delações “nas pedras do seu próprio lar”. A canção também nos fala das

perseguições aos que “tramam assaltos e revoluções”, e também aos contraventores, viciados,

traficantes (muambas, baganas), aos miseráveis (e nem um tostão) e principalmente aos

subversivos, que através de senhas e “palavras sutis”, “insuflam, agitam e gritam demais”.

Sem perder o elo com o início dos anos 1940, também marcados pela censura e pela

repressão, a música fazia uma obvia referência à arbitrariedade das prisões que então se

realizavam, inclusive com o próprio compositor que teve de ir algumas vezes à delegacia para

responder pela “sutileza” de suas mensagens musicais. A malandragem representou um pólo

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ou uma postura de oposição à repressão em ambos os momentos históricos. Daí a

conveniência desta homenagem ao malandro, nos anos 1970.

Oito anos depois de escrever a “Ópera do Malandro”, Chico Buarque retomaria a

história e o tema para a realização de um filme homônimo, dirigido por Ruy Guerra (1985).

Para tanto, ele compõe uma série de novas canções, das quais duas resgatariam saudosamente

o malandro tradicional: “A volta do malandro” e “Desafio do malandro”. Estas composições

representam a última fase de dedicação do artista ao tema da malandragem e não poderia

deixar de conter o inevitável saudosismo. Na primeira canção, usada na abertura do filme, o

malandro volta desconfiado, pisando na ponta dos pés e andando “de viés”, para concluir que

“o malandro é o barão da ralé”:

Eis o malandro na praça outra vez Caminhando na ponta dos pés Como quem pisa nos corações Que rolaram nos cabarés Entre deusas e bofetões Entre dados e coronéis Entre parangolés e patrões O malandro anda assim de viés Deixa balançar a maré E a poeira assentar no chão Deixa a praça virar um salão Que o malandro é o barão da ralé (A volta do Malandro, Chico Buarque, 1985)

A segunda canção foi composta em forma de diálogo, onde dois malandros se

enfrentam numa disputa – situação também caracterizada por Noel Rosa, na música É preciso

discutir, composta em 1931. Cabe aqui mais um paralelo entre estas duas composições:

Quadro comparativo 4: A disputa dos malandros em Noel Rosa e em Chico Buarque

É preciso discutir, Noel Rosa, 1931 - Na introdução deste samba,

Quero avisar por um modo qualquer Que esta briga é por causa de uma mulher.

- E eu aviso também Que neste samba agora me meto Para cantar com Francisco Alves em dueto.

(Refrão) - É preciso discutir...

- Mas não quero discussão... - Da discussão sai a razão...

Desafio do Malandro, Chico Buarque, 1985 - Você tá pensando que é da alta sociedade

Ou vai montar exposição de souvenir de gringo Ou foi fazer a fé no bingo em chá de caridade Eu não sei não, eu não sei não... Só sei que você vem com five o'clock, very well, my friend A curriola leva um choque, nego não entende E deita e rola e sai comentando Que grande malandro é você!

- Você tá fazendo piada ou vai querer que eu chore

246 “Hino de Duran” só foi incluído na Ópera do Malandro, quando da sua versão para a temporada paulista de

1979, quando já se faziam sentir os “novos ares” da abertura política.

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- Mas às vezes sai pancada... - A questão é complicada...

- Quero ver a decisão...

- A mulher tem que ser minha... - A mulher não traz letreiro...

- Foi comigo que ela vinha... - Mas fui quem viu primeiro...

- Ela é minha porque vi... - Mas quem segurou fui eu...

- A conversa já meti... - A mulher não escolheu...

- (E podes crer que é... ) (refrão)

- Já perdi a paciência... - Eu por ela me arrisco...

- Sou capaz de violência... - Mas não vai quebrar o disco...

- Quanto tempo foi perdido... - Perdi tempo pra ganhar...

- Ganhar fama de atrevido... - Quem se atreve quer brigar...

(- E podes crer que é preciso...)

A sua estampa eu já conheço do museu do império Ou mausoléu de cemitério, ou feira de folclore Eu não sei não, eu não sei não... Só sei que você vem com reco-reco, berimbau, farofa Acurriola tem um treco, nego faz galhofa E deita e rola e sai comentando Que grande malandro é você...

- Você que era um sujeito tipo jovial Agora até mudou de nome...

- Você infelizmente continua igual Fala bonito e passa fome...

- Vai ver que ainda vai virar trabalhador. Que horror...

- Trabalho a minha nega e morro de calor... - Falta malandro se casar e ser avô...

- Você não sabe nem o que é o amor. Malandro infeliz... - Amor igual ao seu, malandro tem quarenta e não diz...

- Respeite uma mulher que é boa e me sustenta... - Ela já foi aposentada...

- Ela me alisa e me alimenta... - A bolsa dela está furada...

- E a sua mãe tá na rua.... (breque) - Se você nunca teve mãe, eu não posso falar da sua.

- Eu não vou sujar a navalha nem sair no tapa...

- É mais sutil sumir da Lapa... - Eu não jogo a toalha...

- Onde é que acaba essa batalha? - Em fundo de caçapa.

- Eu não sei não, eu não sei não...

(Os dois) - Só sei que você perde a compostura quando eu pego o taco / A curriola não segura, nego coça o saco / E deita e rola e sai comentando que grande malandro é você!

A semelhança entre estas músicas é notável, não só no tema, mas no formato musical

(samba dos anos 1930) e na linguagem. Ambas representam uma disputa entre dois

malandros: o samba de Noel, por uma mulher e o do Chico, pelo próprio status de malandro.

A possibilidade de haver violência entre eles é sempre contornada por uma verborragia

malandra que torna a discussão atraente para o ouvinte, surpreso com as provocações e

respostas. A proximidade do estilo de Noel com a estética do movimento modernista, fica

clara no uso da presentificação da discussão, ou seja, com a utilização quase cênica de um

diálogo, como no uso da metalinguagem (“...neste samba agora me meto / Para cantar com

Francisco Alves em dueto”, “Mas não vai quebrar o disco...”) e da “fala das ruas”, com

expressões populares e jargões comuns (“às vezes sai pancada...”, “Sou capaz de violência”,

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“Ganhar fama de atrevido”) 247. Recursos que estão presentes também na canção de Chico

Buarque.

No samba de Noel, a malandragem está na artimanha dos argumentos expostos na

disputa pela mulher, na linguagem e no uso do jeitinho para contornar as vias de fato (“Mas

não quero discussão...”, “Já perdi a paciência...”). Chico Buarque, por sua vez, resgata mais

uma vez a malandragem tradicional, repetindo as suas regras básicas: o malandro

“verdadeiro” não se casa, não trabalha, ludibria e nunca é pego. Mas, ao mesmo tempo, Chico

coloca nesta disputa os dois tipos de malandragem: a tradicional, que corresponde a estas

regras e já bastante decadente nos anos 1940 (a história contada na “Ópera do Malandro” se

passa em 1942); e a versão mais adaptada, e, portanto, com mais futuro naquele momento

(representada pelo herói da peça, o malandro Max Overseas). Para o primeiro malandro, o

segundo (mais moderno) perde a sua autenticidade, entre outros motivos, porque carrega nos

estrangeirismos: “five o'clock, very well, my friend”, também porque trabalha (ainda que numa

atividade ilegal) e principalmente porque é casado, ainda que seu casamento se assemelhe a

um “golpe do baú” (“respeite uma mulher que é boa e me sustenta.”). Enquanto que para o

segundo, o primeiro (mais tradicional) é peça de museu: “ou mausoléu de cemitério, ou feira

de folclore”, ou seja, já sem futuro por falta justamente de modernização. Para este,

modernizar-se seria adaptar-se às novas condições, o que iria garantir algum futuro para

malandragem, falando inglês e vivendo da contravenção. O malandro “moderno” pensa que é

da “alta sociedade” porque consegue manter-se com certa dignidade, enquanto que o

malandro tradicional “infelizmente continua igual / fala bonito e passa fome”, e ainda por

cima não conhece o amor, por isso não se casa: “Você não sabe nem o que é o amor /

Malandro infeliz...” A malandragem do tipo tradicional já estaria defasada e tão presa às

raízes originais que ainda mantinha elementos que nem eram cariocas: “reco-reco, berimbau,

farofa”, representando muito mais o passado (com elementos culturais da Bahia) do que o

presente modernizado. Chico faz ai a metáfora da discussão sobre a tradição e a modernidade,

que comentamos em capítulo anterior, esclarecendo a necessidade de adaptação do mundo da

malandragem, que não teria nunca deixado de existir, apesar das alterações a que se viu

obrigado pelas condições de cada época.

247 Esta proximidade entre as composições de Noel Rosa e o Movimento Modernista é bastante defendida por

Affonso Romano de Sant’Anna, no livro já comentado: Música Popular e Moderna Poesia Brasileira (Petrópolis: Vozes, 1978), no capítulo: “As origens do Samba, Noel Rosa e o Modernismo”, p. 183.

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Tanto na canção de Noel quanto na de Chico, nenhum dos dois malandros em disputa

saem vitoriosos e muito menos resolvem suas diferenças, mantendo outra característica do

mundo da malandragem: o impasse, o jogo agressivo de palavras, a rivalidade entre os que se

julgam representantes “verdadeiros” da malandragem, que sempre concorrerão por mulheres,

prestígio, áreas de atuação, e mais tarde pelos pontos de tráfico de drogas.

Mas a malandragem, hoje em dia (século XXI), não vem mais sendo cantada. Talvez

pelo aumento drástico da violência urbana que embrulhou totalmente o antigo glamour da

malandragem no pacote da violência gratuita. Chico Buarque, nunca mais dedicaria uma

música a esse mundo. Hugo Carvana, autor e diretor de dois filmes chamados “Vai Trabalhar

Vagabundo I e II”, declarou numa entrevista que não há mais ambiente, nem clima, para

repetir a dose de elogios à malandragem, porque os anos 1990 teriam acabado definitivamente

com a figura do malandro: “É que ele foi substituído pelo traficante, pelo bandido com AR-15,

que dita a lei na favela abandonada pelo Estado” 248. Essa é uma tradição que não existe

mais. Contudo, o malandro permanece como personagem mítico do mundo do samba e um

dos símbolos, ainda que atualmente morto, da brasilidade.

2.5 – O sentimentalismo à brasileira.

Nas letras da canção popular brasileira, de maneira geral, a mulher ocupa um espaço

muitas vezes marginalizado, como pária (na expressão de Maria Célia Paoli 249) à ordem

estabelecida pela cidade. É claro, que tal posição é resultado da visão predominante masculina do

diálogo musical, onde as mulheres aparecem como sedutoras e traiçoeiras. Isso, depois de uma

fase inicial das primeiras décadas do século XX, quando eram mais retratadas como musas

encantadoras. Tudo isto é exemplo de uma nova esfera da intimidade, que junto com a cidade,

estava a se delinear. Exigência do próprio modernismo que o Rio de Janeiro tentava esboçar, a

mulher mostrava-se mais “solta”, autônoma, como parte das transformações em curso.

Para a autora, nossos compositores populares comentaram inúmeros estados emocionais

da vida privada, íntima e amorosa, tornando-os públicos, e mais do que isso, criando valores

248 Citação presente em publicação eletrônica: “Cultura, Carnaval E Cinzas” de Nei Duclós. Texto datado de 27

de Outubro de 2005: no site http://www.consciencia.org/neiduclos/Article166.html. .

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referenciais para a expressividade emocional da sociedade brasileira. No que se refere à

intimidade, constata Maria Célia Paoli, as relações amorosas descritas pelos sambas populares

deixavam os padrões burgueses que sempre procuraram manter as mulheres escondidas e

incomunicáveis, para serem postas em discussão “em alto e bom som” 250. Na elaboração das

situações e impasses, desejos, medos e dores, todo um arcabouço moral da intimidade começa a

ser discutido e aceito por um grande número de brasileiros. Mais tarde este arcabouço sentimental

será referido também como uma das mais importantes brasilidades: “o sentimentalismo à

brasileira”.

Aos poucos as canções foram construindo um painel amoroso onde as mulheres, podemos

dizer, já ocupavam uma posição a priori na reflexão do compositor popular - posição cambiante

como a própria situação feminina perante a sociedade industrial. O papel mais comum reservado à

mulher nos sambas dos anos 1930 será o de transgressora ou infratora. Neste caso, ela aparece

descumprindo as leis da moralidade, da fidelidade e do amor, ou até mesmo da simples

cordialidade e respeito, como vemos nestes sambas de Noel:

Tu pedes mandando/ “Faça o favor” a tua boca nunca diz Tu cedes negando/ Com esses olhos que pra mim são dois fusis... (...) Mentindo/ A tua boca beija e mente sem sentir Desejas sorrindo/ Que o teu perdão, humildemente eu vá pedir... Não peço/ Espero/ Ainda ver-te entre lágrimas bem mal Meu bem, escuta:/ A araruta tem seu dia de mingau! (Araruta, Noel Rosa e Orestes Barbosa, 1932) Você foi o meu azar/ (Você foi o meu azar) Estragou a minha vida/ (Por ser falsa e convencida) Para me fazer chorar/ (Quis me deixar) Hoje volta arrependida (Por ser mal-sucedida) (Você foi o meu azar, Noel rosa e Arthur Costa, 1931) (...) Se tens prazer em me ver chorar Por favor me deixa em paz/ Isso não se faz (Isso não se faz, Noel Rosa, Ismael Silva e Francisco Alves, 1933) Meu bem, não me faças sofrer Tu queres ter liberdade demais Os homens, tu conquistas um por um Sem amar nenhum (Nunca, jamais, Noel Rosa, 1932) Tudo passou tão depressa Fiquei sem nada de meu E esquecendo a promessa

249 PAOLI, Maria Célia. “Os amores citadinos e a ordenação do mundo pária: as mulheres, as canções e seus

poetas”. In: Decantando a República. Vol 3. Op. cit., 2004. p.69. 250 Idem. p.70.

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Você me esqueceu E partiu/ Com o primeiro que apareceu Não querendo pobre como eu. (...) (Pra esquecer, Noel Rosa, 1933)

O compositor se mostra perdido e confuso diante da “nova” liberdade feminina (“Tu

queres liberdade demais”). As arbitrariedades e a quebra das regras por parte das mulheres trazem

sempre as piores conseqüências para a vida do homem, como vemos na continuidade desta última

canção, das citadas acima:

E hoje em dia/ Quando por mim você passa Bebo mais uma cachaça/ Com meu último tostão Pra esquecer a desgraça/ Tiro mais uma fumaça Do cigarro que eu filei/ De um amigo que outrora sustentei. (Pra esquecer, Noel Rosa, 1933) (...) O capricho da mulher/ Faz o homem padecer É veneno quando quer/ Que maltrata e faz morrer (Sei que vou perder, Noel Rosa e Nono e Alfredo Lopes Quintas, 1933)

É por ela, que o homem destrói a sua vida e sua dignidade. Ela é sempre a culpada por

seus caprichos e venenos - a mulher vilã ou inconseqüente, como a Eva do Paraíso, que mantém

ainda o pendor para o pecado. E por isso, estas músicas entendem com naturalidade o castigo que

lhe impõe o homem, ferido na honra e no bolso. Em tudo opostas às Emílias e Amélias, que

apareceriam mais tarde na música popular 251 como exemplos de mulheres que se sacrificam por

seus homens, as mulheres de Noel são exigentes, manhosas, gananciosas e cheias de artimanhas e

mentiras. Chico Buarque também canta a sua desilusão de maneira semelhante, conseqüências das

muitas mentiras e injustiças das mulheres, desde a suas primeiras composições sobre o tema,

como em “Madalena foi pro mar”, de 1965, onde a mulher abandona o lar e os filhos para voltar a

ser a "Madalena" bíblica. Vejamos também outros exemplos:

Madalena foi pro mar E eu fiquei a ver navios Quem com ela se encontrar Diga lá no alto mar Que é preciso voltar já Pra cuidar dos nossos filhos (...) (Madalena foi pro mar, Chico Buarque, 1965)

Tinha cá pra mim / Que agora sim Eu vivia enfim o grande amor Mentira Me atirei assim/ De trampolim Fui até o fim um amador

251 “Emília”, de Wilson Batista e Haroldo Lobo, gravada por Vassourinha. Rio de Janeiro: Colúmbia, 1942; e

“Ai que saudades da Amélia”, de Mário Lago e Ataufo Alves, gravado por Ataufo Alves. Rio de Janeiro: Sinter, 1955.

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Passava um verão/ A água e pão Dava o meu quinhão pro grande amor Mentira Eu botava a mão/ No fogo então Com meu coração de fiador Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito Exijo respeito, não sou mais um sonhador Chego a mudar de calçada Quando aparece uma flor E dou risada do grande amor Mentira (...) (Samba do grande amor, Chico Buarque, 1983) Pois é Fica o dito e o redito por não dito E é difícil dizer que foi bonito É inútil cantar o que perdi (...) Então Disfarçar minha dor eu não consigo Dizer: somos sempre bons amigos É muita mentira para mim Enfim Hoje na solidão ainda custo A entender como o amor foi tão injusto Pra quem só lhe foi dedicação (Pois é, Tom Jobim e Chico Buarque, 1968)

Para estas mulheres traidoras e inconseqüentes, os compositores muitas vezes reservarão

uma forma de vingança poética muito comum, que é imaginar a humilhação do seu

arrependimento ou o seu fracasso no outro amor.

Mesmo que você feche os ouvidos E as janelas do vestido Minha musa vai cair em tentação (...) (Choro bandido, Edu Lobo e Chico Buarque, 1985) Quando eu queria o teu amor Não davas atenção ao meu Pra mim tu não tens mais valor Agora quem não quer sou eu (...) (Quem não quer sou eu, Noel Rosa e Ismael Silva, 1933) Começaste me humilhando, Me fizeste de capacho, Mas agora estou mandando E tu já ficaste por baixo! (...) (Contraste, Noel Rosa, 1933)

Nas composições de Noel Rosa, muitas vezes a quebra das regras impostas pelo mundo

masculino justifica até mesmo a violência corporal:

Toma cuidado que eu te ripo/ Porque tu não é meu tipo (...) O Banzé eu sempre evito/ Pois não me fica bonito/ Exemplar uma mulher (...) Tanto tu disseste que escutei/ Que não achas a lei dura Mas só acha quem procura/ E agora para ter certeza

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Vais provar toda a dureza/ Desta madeira de lei. (Vou te ripar, Noel Rosa, 1930) Vai haver barulho no chatô/ Porque minha morena falsa me enganou Se eu ficar detido/ Por favor, vá me soltar Tenho o coração ferido/ Quero me desabafar (Vai haver barulho no chateaux, Noel Rosa e Walfrido Silva, 1933) Faz hoje um mês que fui naquele morro E a Juju pediu socorro Lá da ribanceira Toda machucada Saturada de pancada Que apanhou do seu mulato Por contar boato Meu coração bateu a toda pressa E eu fiz uma promessa Pra mulata não morrer... Pela padroeira Ela foi bem contemplada Levantou do chão curada Saiu sambando fagueira. (De qualquer maneira, Noel Rosa, 1933)

“Ripar” as mulheres, especialmente as mulatas dos morros, parecia mesmo lugar comum

nos sambas de Noel. Em todos os exemplos, a mulher dava motivos para a surra que levava e se

justificava a cena com certa naturalidade. No primeiro exemplo, porque andava “procurando” e

“quem procura, acha”; no segundo, por causa da sua falsidade; e no terceiro, “por contar boato”,

sendo que neste último caso, não é o eu lírico quem “corrige” a mulata, porque não é ele o traído

(o mulato), mas sim o amante, que sabe que ela “tem que pecar”, e age quase que “por natureza”,

dando sempre desculpas esfarrapadas. Notemos também nesta letra, que é a promessa que o

amante (o eu-lírico) faz a padroeira, que traz a cura milagrosa à mulata: Até junto a Santa, é o

homem quem tutela a mulher.

Em Noel Rosa, a raiva e o castigo a que os “homens“ têm direito sobre as “mulheres vis”

podem ainda ser substituídas pelo deboche, como vemos entre os sambas humorísticos de Noel.

Por exemplo, em “Julieta”, um fox-trot:

Julieta (...) Tens a volúpia da infidelidade E quem te paga as dívidas sou eu (...) Tu decretaste a morte aos madrigais E constróis um castelo de ideais No formato elegante de um chapéu (...) Nos teus anseios loucos, delirantes Em lugar de canções queres brilhantes Em lugar de Romeu, um coronel (Julieta, Noel Rosa e Erastótenes Frazão, 1931)

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O humor fica mais explícito quando se houve a letra encaixada à melodia elaborada como

uma típica canção romântica norte-americana com sotaque de parnasianismo brasileiro. O “elogio

óbvio” que sugere a linha melódica e a orquestração da primeira gravação (Castro Barbosa e

orquestra Odeon, agosto de 1933) choca com a intenção de escárnio da letra. Transparece também

a crítica às canções com letras parnasianas, com o exagero de sílabas e de palavras rebuscadas

(volúpia, madrigais, anseios), presentes em grandes sucessos da época, como “A Rosa”, de

Pixinguinha e Otávio de Souza.: “Tu és divina e graciosa/ Estátua majestosa/ do amor/ por Deus

esculturada” 252.

Mas, ao mesmo tempo, como bom representante das contradições do mundo moderno

urbano, Noel não esquece das regras do cavalheirismo, ainda bastante referidas e até cultuadas:

Na mulher não se dá nem com uma flor Seja feia, bonita, sincera ou fingida Rica ou pobre ou como for... Sem mulher, que seria dessa vida (...) Embora, haja o que houver, Eu me sinto sem razão batendo na mulher. A mulher é linda harmonia Que enche sempre a nossa melodia De alegria ou de tristeza, Que bate na mulher ofende a natureza. (Nem com uma flor, Noel Rosa e Francisco Alves, 1933)

Chico Buarque irá reproduzir ao seu modo todos estes estados da alma, em que o homem

é vítima ou felizardo, exige castigos ou recompensas, quer agredir ou defender, com o mesmo

universo do sentimentalismo à brasileira das canções de Noel Rosa. Contudo, ele acrescentaria à

este universo, a inutilidade da idéia de leis e regras para o amor conjugal:

O que não tem medida, nem nunca terá E nem dez mandamentos vão conciliar O que não tem governo, o que não tem juízo (O que será (À flor da pele), Chico Buarque, 1976)

No Brasil dos anos 1960/70, a mulher estava a romper com os ditames que a

conformavam dentro do parâmetro machista da mãe de família e esposa submissa. E a reação do

compositor seria reproduzir o atual “descontrole” sobre a nova mulher. Mas, os parâmetros

continuavam ali, como marcos capazes de atestar a distância que agora ela se colocava. Os

sentimentos do poeta tendem, a partir de então, a mostrarem-se mais conflituosos: de um lado

252 “A Rosa”, letra de Otávio de Souza para a melodia de Pixinguinha, gravada por Orlando Silva em 1937, pela

Columbia.

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estão colocados os antigos valores e de outro, os postulados mais democráticos das novas relações

amorosas, aumentando consideravelmente a complexidade desta representação.

É claro que nas canções de Chico o cenário em relação à violência com as mulheres não

estava revestida da “naturalidade” com que nos deparamos nos sambas de Noel. Mas, ele não

deixa de retratá-la, porém pelo ângulo oposto, uma vez que a voz feminina, secularmente abafada

pelo universo masculino, se encaixava perfeitamente na analogia com a “falta de liberdade” de

que se queixava toda a juventude nos anos 1960:

Sou Ana de vinte minutos Sou Ana da brasa dos brutos na coxa Que apaga charutos Sou Ana dos dentes rangendo E dos olhos enxutos Até amanhã, sou Ana Das marcas, das macas, das vacas, das pratas Sou Ana de Amsterdam (Ana de Amsterdam, Chico Buarque e Rui Guerra, 1972/73) Tira as mãos de mim Põe as mãos em mim E vê se a febre dele Guardada em mim Te contagia um pouco (Tira as mãos de mim, Chico Buarque e Rui Guerra, 1972/73) Vence na vida quem diz sim Se te dói o corpo Diz que sim Torcem mais um pouco Se te dão um soco Se te deixam louco Se te babam no cangote Mordem o decote Se te alisam com o chicote Olha bem pra mim Vence na vida quem diz sim (Vence na vida quem diz sim, Chico Buarque e Ruy Guerra, 1972/73)

Nestas três canções da peça Calabar, o poeta assume o papel feminino e assim travestido,

pode criticar o autoritarismo com forte ironia, indo além da defesa a que a “mulher”, nos anos

1970 tinha direito. O olhar feminino passou mesmo a ser uma das grandes marcas das

composições de Chico Buarque. Gilberto de Carvalho chega a afirmar que “o cantar no

feminino” é o traço poético mais importante de Chico Buarque, o mais evidente, o que mais salta

aos olhos: “poucos souberam traduzir tão bem no canto o sentimento feminino quanto ele” 253.

253 CARVALHO, Gilberto. Chico Buarque: análise poético-musical. 2ª ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, p. 29.

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Luciana Eleonora de Freitas observa que este recurso poético é característico das cantigas

de amigo medievais e que “aparece também, embora em menor proporção, em outros

compositores da Música Popular Brasileira, como Ari Barroso, Caetano Veloso e Gozaguinha

(“Camisa Amarela”, “Esse cara”, “Explode coração”)” 254. E temos que lembrar que Noel

também utilizou a voz feminina para expressar o universo dos seus sentimentos. Porém, nem

nestes casos, ele colocou a mulher no lugar de vítima:

Há muito tempo Minha amiga me avisava Que ela sempre conversava Com você no seu jardim E começou a nossa parceria Eu fui por ela e ela foi por mim. Você pensou que fomos enganadas Marcando encontro em horas alternadas Que nós fizemos a sua vontade (...) Quando você estava sem tostão Eu pedia bala! Nós aturamos Os seus modos irritantes Mas filamos bons jantares Nos melhores restaurantes Você não sai do nosso pensamento Você foi negócio e foi divertimento. (Amor de parceria, Noel Rosa, 1933, gravado por Aracy de Almeida em 1935)

Nasci no Estácio Eu fui educada na roda de bamba E fui diplomada na escola de samba Sou independente conforme se vê (...) E não acredito que haja muamba Que possa eu fazer gostar de você (O x do problema, Noel Rosa, 1936) Escutei a vizinha falar Que ele, só de pirraça Seguiu com o praça Ficando lá no xadrez Pela décima vez Ele está inocente Nem sabe o que fez. (Pela Décima vez, Noel Rosa, 1935)

Notamos pontos comuns entre os compositores aqui expostos, nos registros relativos das

mudanças do papel feminino na era industrial. Já vimos em “Três apitos”, como Noel colocou o

trabalho operário feminino como inimigo do relacionamento amoroso, mas o trabalho na fábrica

traria implicações bem mais profundas, nos anos 1930, como ele mesmo também registra em

“Você vai se quiser”:

254 CALADO, Luciana E. de Freitas. Chico Buarque: um moderno trovador. João Pessoa: Idéia, 2000. p. 58.

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Você vai se quiser... Você vai se quiser... Pois a mulher não se deve obrigar a trabalhar, Mas não vá dizer depois Que você não tem vestido Que o jantar não dá pra dois Todo cargo masculino Desde o grande ao pequenino Hoje em dia é pra mulher. E por causa dos palhaços Ela esquece que tem braços Nem cozinhar ela quer Os direitos são iguais Mas até nos tribunais A mulher faz o que quer Cada qual que cave o seu Pois o homem já nasceu Dando a costela à mulher

Seriam, para Noel, palhaços, os que davam cargos para as mulheres? Este parece ter sido

um pensamento comum à época: A mulher poderia assumir certos papeis masculinos, mas, já que

estava “invertendo as regras”, ela deveria esquecer o dinheiro e os presentinhos que ganhava do

seu homem (“Mas não vá dizer depois/ Que você não tem vestido/ Que o jantar não dá pra

dois”). E, se viesse a arrumar um emprego, não poderia esquecer de fazer as tarefas femininas do

lar, que lhe cabiam: “Nem cozinhar ela quer”. Para fazer frente aos “direitos iguais” reivindicados

pela mulher, Noel lembrará as injustiças que ela comete ao “fazer o que quer”, penalizando o

homem “desde sempre”, pois este “já nasceu dando a costela à mulher”.

Chico Buarque não insinuaria a mesma condenação de Noel Rosa ao “desejo” ou

necessidade da mulher de trabalhar fora de casa, até porque ao seu tempo já não era mais tão

comum o questionamento sobre a participação feminina no mercado de trabalho, ainda assim

expressaria as mesmas dores de cotovelo, derivada da sua “independência”. Apesar da condição

de pária e da condenação constante pelo comportamento imprevisto, a mulher pode, em suas

canções, tornar-se ainda uma obsessão para o pobre homem, vítima que é, no universo das

canções, de sua superioridade de encanto. A partir deste sentimento os autores passam a ter

inspirações poéticas notáveis, com o uso de figuras de linguagem e outros hábeis jogos de

palavras como em:

Amanhece e anoitece/ Sem parar o meu tormento Por saber que quem me esquece/ Não me sai do pensamento (Vejo Amanhecer, Noel Rosa e Francisco Alves, 1933)

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Julieta Tu não ouves meu grito de esperança Que afinal de tão fraco não alcança As alturas do teu arranha-céu. (...) (Julieta, Noel Rosa e Eratóstenes Frazão, 1931) Como? Se entornaste a nossa sorte pelo chão? Se na bagunça do tu coração Meu sangue errou de veia e se perdeu? Como? Se na desordem do armário embutido Meu paletó enlaça o teu vestido E o meu sapato ainda pisa no teu (...) (Eu te amo, Tom Jobim e Chico Buarque, 1980) Que a saudade é o revés de um parto A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu (Pedaço de mim, Chico Buarque , 1977-1978) Trocando em miúdos, pode guardar As sobras de tudo que chamam lar As sombras de tudo que fomos nós As marcas de amor nos nossos lençóis As nossas melhores lembranças (Trocando em miúdos, Francis Hime - Chico Buarque, 1978)

Ou mesmo, invertendo novamente os papéis através de suas vozes femininas, é a mulher

que expressa sua total submissão, que não obstante “o poeta deveras sente”:

Jurei não mais amar/ Pela décima vez Jurei não perdoar/ O que ele me fez O costume é a força/ Que fala mais forte Do que a natureza E nos faz/ Dar prova de fraqueza (...) (Pela Décima vez, Noel Rosa, 1935) E me arrastei e te arranhei E me agarrei nos teus cabelos No teu peito/ Teu pijama Nos teus pés / Ao pé da cama Sem carinho, sem coberta No tapete atrás da porta Reclamei baixinho (Atrás da porta, Francis Hime e Chico Buarque , 1972)

O fascínio dos compositores pode levar o objeto amado a ocupar uma posição totalmente

inatingível, de onde se mantém ignorante da paixão do poeta, e fazendo somente aumentar a sua

dor:

Olha Será que ela é moça

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Será que ela é triste Será que é o contrário Será que é pintura O rosto da atriz (...) E se eu pudesse entrar na sua vida (Beatriz, Edu Lobo e Chico Buarque, 1982) Abrindo salão Passas em exposição Passas sem ver teu vigia Catando a poesia Que entornas no chão (As vitrines, Chico Buarque, 1981) Deixe em paz meu coração Que ele é um pote até aqui de mágoa E qualquer desatenção, faça não Pode ser a gota d'água (Gota d'água, Chico Buarque, 1975

As canções de amor de Chico Buarque provam que, da mesma forma que as canções de

Noel Rosa, a canção popular continuou a escancarar os segredos mais íntimos, a perplexidade e a

reação às perdas e ganhos, comentando as mudanças morais e até mesmo arriscando conselhos,

como o uso do bom senso num universo onde as medidas serão sempre relativas. “Poetas

conselheiros” tornaram expressiva a esfera da vida íntima e ao mesmo tempo definiriam mais um

ponto fundamental entre as principais características da brasilidade na música popular, o

sentimentalismo à brasileira:

Por trás de um homem triste Há sempre uma mulher feliz E atrás dessa mulher Mil homens, sempre tão gentis Por isso, para o seu bem Ou tire ela da cabeça Ou mereça a moça que você tem (...) (Deixe a menina, Chico Buarque, 1980)

Desta forma, a discussão amorosa na canção acabou gerando uma “pedagogia” sobre a

vida íntima, que se espalhou pela sociedade através dos grandes sucessos discográficos, e da qual

Noel e Chico foram grandes colaboradores.

As canções criadas para retratarem o universo amoroso apresentam melodias mais livres

da entonação da fala como num discurso coloquial (típica da persuasão figurativa, como vimos) e

mais ligadas a um discurso reflexivo interior, sem tantos saltos de tons, onde as notas agudas

corresponderão à momentos de tensão na letra e as notas graves nos finais das frases a momentos

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de distensão ou conclusão da exposição de um sentimento. Assim, a canção de amor brasileira,

que se utiliza da Persuasão Passional – outra das mais comuns técnicas de persuasão usadas

pelos compositores para cooptarem os ouvintes, segundo os critérios de Luiz Tatit – estabeleceu

no país parâmetros gerais para os relacionamentos íntimos, com tensões específicas para classes

distintas de sentimentos. Formou-se assim um verdadeiro vocabulário sentimental expresso

exclusivamente pela linguagem musical. Esta constatação assume denotada importância quando

lembramos que nos países europeus, este papel coube não à música popular, mas sim a literatura,

ou como afirma Maria Célia Paoli:

Em uma palavra, parece-me, a canção popular urbana cumpriu o trabalho simbólico e imaginário de construir um referencial de interpretação da vida privada popular, coisa que, nas sociedades onde a modernidade se originou, foi tarefa da literatura moderna, no próprio momento em que se construíam os espaços públicos das grandes cidades 255.

Construindo um referencial para o sentimentalismo amoroso, os compositores populares

vieram dar conta da tarefa de interpretação da vida privada, fazendo o papel que coube a literatura

na Europa. Esta percepção só reforça nossa afirmação sobre a importância do conteúdo simbólico

da canção popular brasileira, sobretudo no que se refere às particularidades nacionais, no caso, o

erotismo e a vida conjugal do brasileiro. A situação marginalizada ou “paria” da mulher nas letras

da canção é evidente, porém representa não apenas o machismo de seus companheiros que

participam do mesmo estrato social, mas também as reflexões dos compositores sobre o amor e

sobre o lar na cidade moderna. Vemos que as mulheres em Noel, praticamente não sofrem, mas

fazem sofrer. Já em Chico, além desse retrato, veremos com mais constância a mulher rejeitada,

humilhada, que enfrenta as mesmas dificuldades dos homens na realização de seus sonhos

amorosos, mas que acumula sobre si os preconceitos e a prepotência do mundo masculino, o que

a coloca num lugar privilegiado das canções. A música popular explorou, desse ponto de vista, a

demarcação de códigos e limites internos de compromissos mútuos de dignidade e fidelidade,

reconhecidos publicamente, ainda que diversificados até as fronteiras morais da cidade.

É importante ressaltar que nesta pedagogia amorosa demonstrada na canção popular não

predomina nem a moral dos discursos vigentes, nem as transgressões de sua ordem, mas sim uma

coletânea de experiências e lições destas duas posições e de outras entre elas. Não há consenso,

por exemplo, se é preferível a paz e a concórdia no lar ou a vida entregue às paixões. O equilíbrio

255 PAOLI, Maria Célia. “Os amores citadinos e a ordenação do mundo pária: as mulheres, as canções e seus

poetas”. In: Decantando a República. Vol 3. Op. cit., 2004. p.74.

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amoroso vai sempre pender em cada caso para uma das variantes possíveis no universo urbano e

deve ser decidido de forma individual, porém tendo em vista a lista de conseqüências possíveis,

que são elaboradas e discutidas pela canção.

Conclusões

Noel Rosa e Chico Buarque de Hollanda estão entre os mais destacados ou citados

compositores das duas mais importantes fases de “fixação” da canção brasileira moderna: os

anos 1930 (Época de Ouro) e os anos 1960⁄80 (Era dos Festivais da Canção e da solidificação

da sigla MPB). Há certa unanimidade no julgamento de que suas obras se tornaram

paradigmas de qualidade e representatividade da tradição dentro da música popular brasileira.

O que se constatamos nesta analise da história da musica popular no Brasil é que Noel Rosa

tornou-se dos construtores da tradição (ou das bases estéticas e simbólicas da tradição musical

brasileira), ainda que não tenha intencionado este papel, enquanto Chico Buarque pode ser

compreendido como um comentador da tradição, reforçando o universo criado em parte por

Noel, desenvolvendo os seus significados e ao mesmo tempo evitando alterações e modismos

que ao seu tempo estavam a propor novos rumos para a música popular. Ambos utilizaram em

seus universos de representações, elementos comuns ou semelhantes, muitas vezes ligados à

idéia de brasilidade, em momentos cruciais da história da cultura musical brasileira.

Constatamos que “Tradição” é uma construção narrativa, um discurso sobre valores

nacionais, gerado a partir de debates sobre a brasilidade. Como todo processo de construção

nacional, a invenção da brasilidade definiu como puro ou autêntico aquilo que foi produto de

uma longa negociação, envolvendo grupos sociais e interesses muito diversos.

De maneira mais eficaz do que através de outras produções artísticas, a identidade

nacional se conformou principalmente através da música popular, graças aos programas de

rádio e de televisão, durante o século XX. Toda a profusão artística dos compositores

analisados colaborou bastante para a constituição da brasilidade entre uma imagem ufanista,

de riquezas infinitas e progresso industrial iminente, e outra imagem idealizada de sociedade,

de povo sofrido, mas alegre; explorado, mas extrovertido; ignorante, mas cordial; com hábitos

diversos, porém coeso frente ao “sentimento nacional”. Povo que dava o seu “jeitinho” pra

manter o bom humor, com uma tendência a comemorar a vida, e, portanto a valorizá-la, Todos

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esses idealismos foram proporcionados cotidianamente pelas músicas populares que definiam,

através da repetição dos conceitos, os caracteres eleitos brasileiros. A centralização dessa

identidade esteve sem dúvida sobre o Rio de Janeiro, cidade de onde partiam as principais

transmissões radiofônicas e televisivas e produções discográficas, teatrais e cinematográficas.

A brasilidade, portanto, terá muito de carioca.

Os fios da tradição que ligam os dois compositores aqui estudados podem ser

compreendidos em dois sentidos: a) como elo, socialmente construído entre eventos e

personagens do passado e o presente; b) como incorporação de elementos estéticos herdados

do passado na obra dos dois compositores. Em relação a este último aspecto, Noel herda uma

tradição, mas protagoniza uma ruptura, pois sua obra é um dos pontos de construção e

continuidade do “paradigma do Estácio” 256, que é herança e ruptura a um só tempo com a

música urbana anterior. Já Chico Buarque, especialmente num primeiro momento de sua

carreira, volta-se para a tradição já tomada como “cânone” (o samba carioca dos anos 1930),

devidamente filtrado pela “ruptura” da Bossa Nova. Ou seja, nos dois casos, temos um

balanço e uma combinação diferenciada entre “tradição” e “ruptura” e a escolha dos

elementos que deveriam definir o procedimento tradicional.

A tradição atendeu à necessidade de conformação das características básicas da

brasilidade, e neste sentido a sua construção e manutenção foi até certo ponto bastante

consciente tanto em Noel Rosa, como em Chico Buarque.

Chico Buarque, “engajado na tradição”, irá preservar, em suas canções, muito do

ideário “próprio dos brasileiros”, presente nas obras de Noel Rosa: a defesa da preservação da

cultura popular brasileira e do samba “autêntico”; a crítica às elites em defesa dos

marginalizados na sociedade urbana; a exaltação à malandragem; e o sentimentalismo e a

exposição do universo íntimo amoroso, dentro dos mesmos padrões. Ambos apresentam a

preferência por temas do cotidiano popular e assumem comumente a identidade do sambista

do subúrbio carioca, embora pertencentes a uma classe mais privilegiada em relação á este.

Ambos freqüentaram colégios conceituados e faculdades, começaram suas carreiras muito

jovens e logo se encantaram com a música que provinha dos morros e subúrbios. Também nos

aspectos técnicos de composição musical e lírica, os dois músicos e poetas se assemelham de

256 SANDRONI, Carlos, O feitiço decente. Op. cit. 1997.

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forma a asseverar procedimentos comuns, que se transformaram em “formas tradicionais” de

composição.

Ao analisarmos o universo e o procedimento comum aos autores, e principalmente o

ideário comum que preservam suas obras, aparece também algumas importantes diferenças,

como a constatada pelo historiador Marcos Napolitano em diálogo informal: “Em Noel, a

ironia se resolve pelo humor, e em Chico, pela melancolia (que, é conveniente lembrar, está

relacionada ao estatuto do saudosismo em meio à modernidade)” 257. Chico Buarque que teve

(e tem) muito mais tempo do que Noel Rosa para o amadurecimento artístico, acabou

desenvolvendo sua criatividade por caminhos nem sonhados por este, diversificando bastante

a sua obra. Ainda assim se nota a referência constante ao universo criativo e temático de Noel

Rosa e a preocupação em manter os padrões tradicionais de composição da música popular

brasileira.

Os interesses da construção da imprensa e da crítica especializada em relação à

manutenção da tradição, explicam em parte a ligação imediata e muitas vezes pouco

aprofundada entre Noel e Chico. Dois marcos do samba urbano, de épocas distintas, que

pareciam colocar a tradição em um mesmo lugar, ou num lugar único de autenticidade, que

sem negar aspectos da modernidade, sobretudo de ordem temática, davam o sentido de

unidade necessária para a formulação de um sentimento popular nacionalista, ancorada na

história da sua construção. Nesta idealização, buscava-se ao mesmo tempo recuperar as raízes

populares nacionais e romper com o subdesenvolvimento.

Esta reflexão nos dá um sentido político claro para a existência e a luta pela

sobrevivência da nossa conhecida tradição. Não se trata apenas, a questão da tradição, de uma

resistência cultural, mas também de uma arma de conscientização, logo adotada pela esquerda

brasileira e adequada inclusive no combate à ditadura militar, no caso das canções de Chico

Buarque.

Podemos aventar, para corroborar as ligações entre Noel e Chico, que a utopia da

brasilidade revolucionária de Chico buscava suas raízes na ideologia das representações da

mestiçagem, na constituição da brasilidade que se detecta em Noel. Os intelectuais e artistas

engajados na estrutura revolucionária entendiam que na década de 1960, o Brasil não havia

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ainda alcançado a integração entre as raças nem a felicidade do povo, projetadas na estrutura

de identidade cultural dos anos 1930, já que estava impedido pela existência do latifúndio e

pela força do imperialismo e do capitalismo. Por isso, cabia aos compositores engajados dos

anos 1960/70 reconduzirem o projeto original retomando a tradição, para direcioná-la a um

futuro utópico.

Marcos Napolitano acrescenta ainda a idéia de que Chico Buarque juntamente com

Elis Regina, são os responsáveis por uma reorganização do mercado musical, na formação

também de um novo público que passa a consumir a música popular brasileira, sob a nova

sigla “MPB”. Estes dois artistas, consagrados pela televisão, trouxeram para a MPB o público

que havia passado pela bossa nova sem aderir totalmente a ela; um novo público, que não

estava comprometido apenas com a modernidade, no que ela tinha ou não de revolucionária,

mas desejava também a volta das formas tradicionais de composição. Ao considerar que

Chico trazia de volta o Noel, e Elis recuperava a maneira de cantar da época de ouro, o

público afirmava este compromisso com o passado, “pulando”, praticamente, a bossa nova e

negando o estrangeirismo e o “excessivamente” moderno.

Se a bossa nova, que foi símbolo de modernidade, ainda representava na maioria das

suas canções, o mundo da classe média-alta, o novo samba de Chico, velho no estilo e na

linguagem, mas bastante sintonizado com questões do presente, atraía integrantes dos mais

variados extratos sociais e reunificava a nação através da idéia do povo brasileiro “em defesa

de sua arte”, já “tradicional”.

Assim, engajado na reforma política ou simplesmente saudoso “da época de ouro”,

Chico manteve várias das preocupações estilísticas e temáticas de Noel. As coincidências

fazem constatar muito mais do que apenas a inspiração que Noel legou ao Chico. Revelam

universos populares urbanos comuns, fixados também nas obras de inúmeros outros autores

que compartilham e repetem os conceitos presentes nestes dois grandes compositores, mas

que entre eles se mostram particularmente semelhantes. Percebemos, por exemplo, que Chico

e Noel colaboraram sobremaneira para a permanência de um espaço moral na música bastante

distinto do moralismo presente nas regras de convívio social, um lugar mais ousado e livre, ou

mais tolerante e compreensivo, que não é tão comum nas relações cotidianas. É como se a

música suprisse, nesse caso, a necessidade de uma realidade mais afetiva, harmoniosa e

257 Marcos Napolitano em depoimento ao autor, em 27 de fevereiro de 2007.

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interessada. Daí a exaltação à orgia, aos malandros, prostitutas, enjeitados, e a todos os que

representam certos extremos do nosso mosaico social sobrecarregado de emoção. Mas é

importante ressaltar também que a malandragem representou um pólo ou uma postura de

oposição à repressão em ambos os momentos históricos.

Noel Rosa e Chico Buarque buscaram também, e com esmero, a realização de uma

poesia “autenticamente” brasileira numa junção do coloquialismo e da linguagem lírica

herdada dos poetas da língua portuguesa, e, portanto, não é verdade que privilegiavam

somente a linguagem das ruas.

As canções de amor de Chico Buarque provam que, da mesma forma que as canções de

Noel Rosa, a música popular continuou a escancarar os segredos mais íntimos, a perplexidade e a

reação às perdas e ganhos, comentando as mudanças morais e até mesmo arriscando conselhos,

como o uso do bom senso num universo onde as medidas serão sempre relativas. “Poetas

conselheiros” tornaram expressiva a esfera da vida íntima e ao mesmo tempo definiriam mais um

ponto fundamental entre as principais características da brasilidade na música popular, o

sentimentalismo à brasileira. Desta forma, a discussão amorosa na canção acabou gerando uma

“pedagogia” sobre a vida íntima, que se espalhou pela sociedade através dos grandes sucessos

discográficos, e da qual Noel e Chico foram grandes colaboradores. Esta constatação assume

denotada importância quando lembramos que nos países europeus, este papel coube não à música

popular, mas sim à literatura.

Também certos aspectos técnicos, exclusivamente musicais, se tornaram comuns a esses

compositores, e inovações postas por Noel serão repetidas por Chico: como o uso de certas

dissonâncias, de inversões de baixos (que tocam as sétimas e terças, quando o mais comum

seria o uso das notas tônicas como base para os acordes) e de acordes diminutos (com terças e

quintas menores), e que mais tarde se tornariam “clichês”. Também o uso da persuasão

figurativa, que foi constituída nos anos 1930 - onde as canções simulam a linguagem

coloquial, com as elevações e descendências de tons típicas do discurso lingüístico oral - é

uma outra característica técnica de Noel reforçada por Chico Buarque.

Chico e Noel cantaram paixões e personagens comuns ou incomuns de maneira a

emocionar pela “verdade” da narração. Mantiveram um olhar crítico em relação ao meio

social e político brasileiro e utilizaram formas poéticas especiais, como o uso de expressões

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populares, rimas surpreendentes e bem humoradas, antíteses e metáforas presentes na

literatura de salões, mas adaptadas por eles para o povo. Através deles, os ouvintes poderiam

perceber melhor o contorno social do brasileiro e se identificar com seus personagens ou

reconhecê-los nas ruas. Entre eles há também a semelhança do jogo de palavras e do

significado duplo das frases. A alegria, a irreverência e o “jeitinho brasileiro” são outros

temas privilegiados por ambos em semelhantes estilos de composição, que os identifica com a

classe média urbana e os tornam ricas fontes de pesquisa da nossa cultura popular.

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