cebs no acre: a missÃo, sair do templo · arquivo da província catequistas franciscanas. porto...

5
CEBs NO ACRE: A MISSÃO, SAIR DO TEMPLO As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) começaram em 1970 e foram possíveis pela tradição missionária da Prelazia: além de chamar o povo para a igreja, procurava-se o povo para andar com ele. Era a atitude do Bom Pastor, da qual as CEBs se orgulhavam, com a autoria de quase uma dúzia de músicas diferentes. A Prelazia nasceu missionária com os Servos de Maria: os Bispos, como Dom Próspero Bernardi ou Dom Júlio Matioli, passavam meses nos seringais nas famosas desobrigas; religiosos como frei Paolino se identificaram com os índios e seringueiros; outros como frei Heitor visitando, junto com as irmãs “casa por casa, colocação por colocação”; assim como inúmeras visitas pastorais de Dom Moacyr. A Igreja do Acre começou por essa prática de pastoral missionária que podia ser realizada de formas diferentes a cada época, porque existia a escolha fundamental: sair do templo e ganhar as ruas e os rios. As CEBs, em seguida, substituíram as desobrigas pelas viagens missionárias, pois a finalidade não seria mais só visitar, mas fundar outras novas CEBs. Surgiram, assim, as CEBs nos rios e nas estradas (Pastoral das Estradas e dos Rios, assessorada pela CPT). Nas casas dos bairros de periferia (Pastoral da periferia, assessorada pelo CDDH), para a Igreja caminhar com o povo, dialogar e colaborar com todos os homens de boa vontade e compartilhar alegrias e esperanças, tristezas e angústias. As CEBs começaram a construir o Reino de Deus não, porém, entre as quatro paredes da sacristia, mas sim lá onde o povo trabalhava e lutava, sofria e se alegrava, vivia na fadiga de uma vida sempre incerta. “É gratificante a alegria e simplicidade das pessoas e de uma Igreja que não tem as quatro paredes para se reunir, mas uma Igreja viva, animada, sofredora e com todo o espaço aberto à sombra das mangueiras, ou outras árvores para celebrar o Deus da Vida. Uma Igreja livre de esquemas e estruturas burocráticas que mais escravizam do que ajudam as pessoas a desenvolver a consciência e o espírito cristão”. 1 A evangelização saia do templo para anunciar Jesus nas estradas, nos rios, nos varadouros, nas casas e nos ambientes de trabalho. Já em 1970, os leigos de Rio Branco, como sinal profético do que iria acontecer depois, foram chamados por Dom Giocondo para uma reunião 1 Irmã Zulmira Antônia Riquetti. Trabalho CRB. Pág. 3. Arquivo da Província Catequistas Franciscanas. Porto Velho. Visita de Dom Bruno, Bispo de Lucca.

Upload: votruc

Post on 30-Aug-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: CEBs NO ACRE: A MISSÃO, SAIR DO TEMPLO · Arquivo da Província Catequistas Franciscanas. Porto Velho ... conversão de bispo, padres e leigos, para viver e servir dentro do

CEBs NO ACRE: A MISSÃO, SAIR DO TEMPLO

As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) começaram em 1970 e foram

possíveis pela tradição missionária da Prelazia: além de chamar o povo para a

igreja, procurava-se o povo para andar com ele. Era a atitude do Bom Pastor, da

qual as CEBs se orgulhavam, com a autoria de quase uma dúzia de músicas

diferentes.

A Prelazia nasceu missionária com os Servos de Maria: os Bispos, como

Dom Próspero Bernardi ou Dom Júlio Matioli, passavam meses nos seringais

nas famosas desobrigas; religiosos como frei Paolino se identificaram com os

índios e seringueiros; outros como frei Heitor visitando, junto com as irmãs

“casa por casa, colocação por colocação”; assim como inúmeras visitas pastorais

de Dom Moacyr.

A Igreja do Acre começou por essa prática de pastoral missionária que

podia ser realizada de formas diferentes a cada época, porque existia a escolha

fundamental: sair do templo e ganhar as ruas e os rios.

As CEBs, em seguida, substituíram as desobrigas pelas viagens

missionárias, pois a finalidade não seria

mais só visitar, mas fundar outras novas

CEBs. Surgiram, assim, as CEBs nos rios

e nas estradas (Pastoral das Estradas e dos

Rios, assessorada pela CPT). Nas casas

dos bairros de periferia (Pastoral da

periferia, assessorada pelo CDDH), para a

Igreja caminhar com o povo, dialogar e

colaborar com todos os homens de boa

vontade e compartilhar alegrias e

esperanças, tristezas e angústias.

As CEBs começaram a construir o Reino de Deus não, porém, entre as

quatro paredes da sacristia, mas sim lá onde o povo trabalhava e lutava, sofria e

se alegrava, vivia na fadiga de uma vida sempre incerta. “É gratificante a

alegria e simplicidade das pessoas e de uma Igreja que não tem as quatro

paredes para se reunir, mas uma Igreja viva, animada, sofredora e com todo o

espaço aberto à sombra das mangueiras, ou outras árvores para celebrar o

Deus da Vida. Uma Igreja livre de esquemas e estruturas burocráticas que mais

escravizam do que ajudam as pessoas a desenvolver a consciência e o espírito

cristão”.1

A evangelização saia do templo para anunciar Jesus nas estradas, nos rios,

nos varadouros, nas casas e nos ambientes de trabalho.

Já em 1970, os leigos de Rio Branco, como sinal profético do que iria

acontecer depois, foram chamados por Dom Giocondo para uma reunião

1 Irmã Zulmira Antônia Riquetti. Trabalho CRB. Pág. 3. Arquivo da Província Catequistas Franciscanas. Porto

Velho.

Visita de Dom Bruno, Bispo de Lucca.

Page 2: CEBs NO ACRE: A MISSÃO, SAIR DO TEMPLO · Arquivo da Província Catequistas Franciscanas. Porto Velho ... conversão de bispo, padres e leigos, para viver e servir dentro do

especial: eram homens e mulheres que já se destacavam nas várias associações

como Legião de Maria, Apostolado da Oração, Vicentinos, Liga Católica. Foi o

início de um novo jeito de ser Igreja: “Vossa presença é vontade manifesta de

querer obedecer ao Espírito de Deus, no Acre também. Mais uma vez eu me

congratulo com aqueles monitores que começaram estes movimentos em

Quinari e na Experimental. Na qualidade de Bispo recebo neste momento de

encerramento do 1° encontro de Monitores o compromisso de vos tornardes

verdadeiros animadores de vossas comunidades e ao mesmo tempo quero vos

investir de poderes para realizar tão sublime missão e vos constituir

verdadeiros animadores e líderes das comunidades e dos grupos que vão se

formando. Seja a minha bênção de pastor e pai o penhor de minha gratidão

pelas tarefas que desempenhais e a força para que possais realizar com êxito

tão sublime, mas difícil missão!”.2

Os leigos tiveram a impressão de terem sido chamados a colaborar mais

fortemente com seus vigários, mas quando em 1972, Dom Moacyr assumiu a

Prelazia, começaram a entender melhor que a posição que os leigos deveriam ter

na Igreja era de uma verdadeira corresponsabilidade,

isto é, mais do que uma simples colaboração.

No Brasil quem ajudou nesta passagem da

submissão à colaboração do leigo com o padre, foi a

Ação Católica que engajou na Pastoral as várias

categorias de pessoas, como operários, agricultores,

universitários. No Acre foi providencial a presença das

Associações Católicas nas várias paróquias para

colaborar nas diferentes atividades.

Esse passo foi dado pelos leigos que

caminharam nas CEBs, recebendo o impulso dos

vários Documentos do Concilio Vaticano II e, em

seguida, de Medellin, Puebla e Santo Domingo.

Na Diocese a reflexão sobre a Igreja toda ministerial e o trabalho da

Equipe dos Ministérios, favoreceu a prática da corresponsabilidade dos leigos na

condução pastoral do caminho da Igreja. Os leigos começaram a agir como

corresponsáveis em força de seu batismo, mas na diversidade dos carismas e dos

ministérios próprios de cada um. De uma Igreja piramidal se passou a uma igreja

circular, isto é, de comunhão. Do coordenador da CEB se dizia: “Ele trabalha

em pé de igualdade com o padre”.

Foram dezenas de casos, acontecidos na vida do povo, que provocaram e

acompanharam o surgimento e o amadurecimento das CEBs, produzindo a

conversão de bispo, padres e leigos, para viver e servir dentro do mundo. Assim,

um dia estavam reunidos os padres com Dom Moacyr, no escritório dele, então

no térreo, ainda sem cerca ao redor da casa, quando chegou um grupo de

2 Boletim „Nós Irmãos”. Julho-Agosto/81. Pág. 13.

Formando comunidades na área rural.

Page 3: CEBs NO ACRE: A MISSÃO, SAIR DO TEMPLO · Arquivo da Província Catequistas Franciscanas. Porto Velho ... conversão de bispo, padres e leigos, para viver e servir dentro do

seringueiros, que pela janela reclamaram ao Bispo: “Os homens de quem o

senhor batizou as crianças nos jogaram fora de nossa terra e queimaram nossas

casas”.

Sempre foi costume nos treinamentos e encontros de formação dos

agentes de pastoral das CEBs, especialmente dos monitores, apresentar o estudo

sobre “Análise da Realidade” juntamente ao estudo bíblico e catequético.

Numa dessas formações, depois de estudar o texto da Carta de São Pedro,

os monitores da Paróquia de Plácido de Castro escreveram uma carta para os

que não tiveram a oportunidade de participar: “Fizemos uma reflexão sobre

nossas vidas em comunidade e percebemos que também sofremos as injustiças e

perseguições como os primeiros cristãos. Isso porque a sociedade que temos

não nos permite a felicidade. E ao mesmo tempo refletimos que a nossa

felicidade depende também de nós. No dia em que tomarmos consciência não

vamos mais votar em pessoas que só pensam em subir, em mudar de vida. Pelo

contrário, vamos lutar por um mundo melhor. Mesmo que exija sofrimentos. A

1ª Carta de São Pedro nos deixa claro que vale a pena sofrer para fazer o bem.

„Pois se é da vontade de Deus que vocês sofram, é melhor que seja por

praticarem o bem e não o mal‟. Quem sofre

praticando o bem está fazendo a vontade de

Deus. E o que mais queremos, a não ser

fazer a vontade daquele que deu a vida por

nós e o que nos dá a vida eterna? Por isso

pedimos a todos vocês: não desanimem

diante dos sofrimentos, das dificuldades e

das perseguições. Vale a pena lutar contra o

mal e essa luta não pode ser individual.

Temos que unir nossos pensamentos, nossas

forças, acreditar no poder de nossa união e assim de mãos dadas

comemoraremos a vitória”. 3

A orientação constante da Prelazia sempre foi a de equilibrar a formação

sobre os compromissos de culto, de anúncio, de sacramentos, de organização

interna das CEBs, com a formação sobre conhecimentos e compromissos para

com os problemas sociais, econômicos e políticos.

“Por essas matas à fora, pequeninos grupos comunitários que se reuniam

para ler e se confrontar com o Evangelho, para rezar e cantar juntos, criando

um clima de fraternidade e sensibilidade por justiça. Insistíamos muito em que a

prática da fé se dá fora da igreja: é sindicato, associação, escola,

organização...”.4 Enfim, a característica das CEBs sempre foi a interação entre

fé e vida, entre aceitação do Evangelho e a ação concreta nas diferentes

realidades sociais.

3 Livro de Tombo de Plácido de Castro. 1991-1993. Pág. 120v.

4 Dom Moacyr Grechi, entrevista em “Seringueiro, memória, história e identidade”. Vol. II. Pág. 538.

Comunidade do interior do rio Caeté.

Page 4: CEBs NO ACRE: A MISSÃO, SAIR DO TEMPLO · Arquivo da Província Catequistas Franciscanas. Porto Velho ... conversão de bispo, padres e leigos, para viver e servir dentro do

Os Grupos de Evangelização recebiam mensalmente durante anos,

material de reflexão para “a vista clarear” à luz do Evangelho, iluminando a

realidade social em que se vivia.

“Em Boca do Acre, a chuva não impede a Ressurreição. Mesmo com

chuva e alagação as cerimônias da Semana Santa saíram mais ou menos como

foi programada e com muita animação do povo. O Pe. João Carlos explicou

todos os sentidos das cerimônias e o povo gostou muito. A celebração da Vigília

Pascal tinha sido programada para as 21 horas, mas choveu muito e mesmo

assim houve boa participação, muitos fiéis se deslocaram de suas casas para

irem até a igreja comemorarem a Ressurreição do Senhor. No domingo de

manhã houve, em seguida, batizados das crianças dos seringais distantes, à

tarde houve missa na Terra Firme, participada pelo grupo e demais pessoas de

lá, irmãs e alguns monitores da cidade. O importante foi que apesar de tanta

chuva e a cidade toda alagada não impediu a participação do povo, embaixo da

água e em cima da água enfrentaram a situação com fé e coragem. Uns vinham

de canoa, outros a pé pelo meio da água e alguns até molhados, iam chegando

na igreja para rezar. E assim foi a nossa Páscoa. Água pra valer apesar do

sacrifício que muitas famílias fizeram

tendo que deixar suas próprias casas por

causa da alagação, mesmo assim o Cristo

Ressuscitou entre nós!”.5

Houve tentativas de criar escolas de

formação sócio-política, houve paróquias

que fizeram pesquisa nos próprios bairros

sobre os problemas mais graves que

afligiam o povo, como desemprego,

moradia, violência, educação.

Houve uma grande ajuda, dada

pelas Campanhas da Fraternidade, que qualificaram a formação dos agentes e os

membros das CEBs, e chegaram a constituir novas Pastorais, como a da criança,

carcerária, do menor, pastoral política, pastoral familiar, etc.

Pela encarnação na realidade, as CEBs levaram as paróquias a ser família

que vive e anda com o povo mais sofrido, guiando a Igreja não só ao anúncio

espiritual, íntimo e individual, mas a uma denúncia aberta e corajosa e a intervir

como fermento de transformação e renovação na vida da convivência humana.

Alguma liderança nos deixou seu depoimento da experiência vivida

nesses anos: “O ponto mais importante que eu achei foi a gente ler o Evangelho

e conhecer a Palavra de Deus. A união das famílias. É importante as famílias se

ajudarem, A gente amar o nosso próximo. Graças a Deus ainda consegui um

terreno, mas existem muitos negativos. Mas com todos os negativos, meu

caminho é esse. Não desisto nunca. Mas já encontrei muitas barreiras. O

5 Boletim “Nós Irmãos”. Diocese de Rio Branco. Abril, 1975. Pág. 3.

Dom Moacyr nas comunidades rurais de Plácido de Castro.

Page 5: CEBs NO ACRE: A MISSÃO, SAIR DO TEMPLO · Arquivo da Província Catequistas Franciscanas. Porto Velho ... conversão de bispo, padres e leigos, para viver e servir dentro do

Evangelho diz que não adianta gente diplomado dentro do Evangelho. Porque

os diplomados caem com muita facilidade. O Evangelho para mim é luz, é

salvação. Quem deixa o Evangelho é como fumaça num foguete perdido no

espaço. A gente é pobre e quer trabalhar no Grupo. A gente quer ajudar. A

gente debate o Evangelho, mas a gente sofre, porque a gente não pode ajudar o

povo que está pobre e passando necessidade. A gente não ajuda, porque eu

mesma vou para o Grupo com as tripas roncando de fome. O salário do

Jurandir é pouco e minhas filhas não encontram emprego. Posso morrer de

fome, mas não deixo o Evangelho!!!”. (Maria de São Pedro)

As CEBs ajudaram todas as paróquias, gigantes adormecidos, a se

acordarem e a cumprirem sua missão nas bases populares, que era a missão de

anunciar, organizar e promover a salvação integral. Integral, pois o objetivo

principal era salvar o homem todo: espírito, alma e corpo, valores espirituais e

valores sociais.

Comunidade Eclesial de Base no interior da Prelazia.