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Page 1: CAVALARIA, IGREJA E SOCIEDADE NA IDADE MÉDIA DO … · CAVALARIA, IGREJA E SOCIEDADE NA IDADE MÉDIA DO SÉCULO XIII Neila Matias de Souza* Resumo: A cavalaria medieval tornou-se

CAVALARIA, IGREJA E SOCIEDADE NA IDADE MÉDIA DO SÉCULO XIII

Neila Matias de Souza*

Resumo: A cavalaria medieval tornou-se uma ordem de grande prestígio social, mas também passou por uma fase de remodelação pela sociedade cristã, pois ela estava no séc. XIII cada vez mais afastada dos valores considerados pela Igreja como formadores de um bom cristão. Nesse sentido, trabalhamos com o modelo de cavaleiro cristão elaborado por Ramon Llull – filósofo catalão – como um modelo de cavaleiro ideal. Llull escreve, então, O Livro da Ordem de Cavalaria, um manual didático-pedagógico que tinha a função de ensinar àqueles que desejassem se tornar bons cavaleiros. Uma outra fonte que utilizamos é A Demanda do Santo Graal, que compõe o conjunto das novelas de cavalaria que têm como tema o rei Artur e seus cavaleiros. Nesse documento há um cavaleiro que seria considerado o cavaleiro ideal: Galaaz, que pode ser associado ao cavaleiro idealizado por Ramon Llull. No início de sua formação, a cavalaria era constituída apenas por um grupo de guerreiros que portavam armas e eram chamados de miles. Mas com o passar do tempo e o desenvolvimento da sociedade feudal, esse grupo de guerreiros passou a fazer parte de um setor privilegiado da sociedade chegando a fundir-se com o estamento da nobreza. Percebendo toda a sua trajetória de formação e entendendo que a cavalaria tornara-se algo perigoso no sentido de que causava muitas disputas, guerras e provocava o terror principalmente nos desfavorecidos, ou seja, os camponeses, a Igreja intervém através de um discurso de vinculação religiosa fazendo com que o ritual de entrada na cavalaria se transformasse num verdadeiro sacramento. Desse modo, os cavaleiros antes da cerimônia de sagração deveriam seguir alguns rituais cristãos, como por exemplo: a confissão, o jejum, a adoração a Deus. Diante disso, iremos discutir como a cavalaria em seu início era marcadamente imbuída de características pagãs e como veio a incorporar através do discurso clerical os valores cristãos. Palavras-chave: Cavalaria, Igreja, Galaaz

ABSTRACT: The medieval calvary became an order of great social prestige, but also went through a phase of remodeling the Christian society, because she was in the

century XIII increasingly rejected the values considered by the Church as former of a

good Christian. In this sense, work with the model of Christian knight prepared by

Ramon Llull - Catalan philosopher - as a model of ideal knight. Another source we use is A Demanda do Santo Graal, in this document there is a knight who would be considered the ideal knight: Galaaz, that can be associated with the knight idealized by Ramon Llull. In view of, we discuss how the cavalry in its beginning was markedly imbued with pagan characteristics and how he came to incorporate speech by clerical Christian values. KEYWORDS: Cavalry, Church, Galaaz.

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A Idade Média, época que nutriu imensa paixão pela totalidade, segundo Le Goff,

não poderia deixar de nos legar uma de suas imagens mais recorrentes que persiste na

memória de todos aqueles que têm o mínimo de curiosidade sobre esse período. Esta

imagem é a dos cavaleiros.

Esses homens compunham um grupo social identificado como bellatores, ou seja,

aqueles que portavam armas e por isso detinham o poder militar. A sociedade medieval

era ainda composta por mais dois grupos: oratores e laboratores. Os primeiros tinham

uma função considerada superior numa sociedade como aquela extremamente religiosa,

o seu poder dizia respeito ao sagrado. Era o clero que controlava o poder de mediação

sacramental, era ele que intermediava a relação entre o terreno e o divino, o homem e

Deus, o clero tinha a capacidade de conseguir o auxílio divino. Os laboratores

constituíam aqueles responsáveis pelo trabalho, por alimentar as demais funções.

Faziam parte desse grupo não só os camponeses, os servos, mas também os diversos

componentes urbanos, ou seja, era uma “terceira função”, um resto, que acolhia

diferentes grupos.

A cavalaria não foi desde os seus primórdios identificada como um grupo fechado

em si próprio, com ideologia e cultura singular. Seu surgimento deveu-se a uma série de

fatores que culminaram na sua estruturação.

Na chamada Alta Idade Média, quando havia intensas influências e contatos entre

os europeus e os povos ditos “bárbaros” que ainda chegavam à Europa, a cavalaria

possuía uma importância fundamental não só em relação ao poder militar que ela

representava, mas também em relação aos valores guerreiros que ela transmitia: aspecto

sagrado associado ao cavalo, o culto da espada, valorização da coragem, veneração da

força física, indiferença perante a dor, menosprezo da morte, destreza militar. Somado a

isso, havia os valores oriundos dos povos “bárbaros”, principalmente aqueles ligados ao

poder do rei-chefe da tribo, a sua devoção pessoal. Com a comutação desses valores e

de um contexto histórico político-social, surge então a cavalaria.

Ela, de fato, possui elos estreitos com a vassalagem que se instaura,

certamente, desde antes do desaparecimento do Império Romano no

Ocidente; mas, também com o declínio da autoridade dos reis, depois dos

condes, decorrente da desintegração do Império Carolíngio, com a

formação das castelanias que marcam o início da chamada época feudal;

com as tentativas da Igreja de inculcar nesses guerreiros uma ética ou , ao

menos, regras de conduta que limitassem a violência e seus efeitos sobre as

populações desarmadas; (...). Ora, a maioria desses elementos quase não

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aparece antes do ano 1000. Não é, portanto, sábio falar de cavalaria antes

dessa data. (FLORI, 2005, p.12).

É assim, portanto, que, por volta do ano 1000, forma-se, no seio daquela

sociedade, uma nova classe social, com uma nítida característica que a distingue: ela é

uma classe que cavalga, a classe dos cavaleiros.

Agora, no que diz respeito aos cavaleiros, nota-se uma outra diferenciação social.

Enquanto antes havia os livres e os não-livres, a nova divisão isola aqueles que portam

armas (os milites) daqueles que são desprovidos delas (os inermes). Desse modo há um

crescente prestígio desse combatente a cavalo e um distanciamento socioeconômico e

sociojurídico separando armados e desarmados.

A palavra “cavaleiro” utilizada no início do século XII para designar o guerreiro,

não denota de nenhuma forma um nível de elevação social, antes somente caracteriza o

serviço armado. No entanto, ao longo do século XII, ela adquire cada vez mais

conotações honoríficas, culturais e ideológicas. É com essa coloração que a cavalaria

será designada, em finais do século XII, passando a ser uma instituição, uma ordem.

A investidura, originalmente, não tinha nenhuma conotação social, religiosa ou

cerimonial, na maioria das vezes, era apenas uma entrega de armas que poderia

acontecer até mesmo às vésperas de uma batalha. Ela tinha assim um sentido muito

mais utilitário. Desse modo, aquela bofetada ou tapa que era dado no aspirante à

cavalaria, nas famosas cerimônias de investidura, não está presente desde as suas

origens. “De fato, o tapa não é, como veremos, um elemento essencial da investidura,

menos ainda um elemento primitivo ou mesmo muito antigo dessa cerimônia. Quase

não temos traço disso antes da segunda metade do século XII.” (FLORI, 2005, p.24).

O adubamento é um cerimonial de enorme importância na vida de um futuro

guerreiro, pois trata-se de um rito de passagem, no qual, terminada a infância, o homem

feito será admitido na sociedade dos adultos, tornando-se cavaleiro. Os ritos de

investidura consagram essa cerimônia na qual um homem toma posse de si mesmo.

(DUBY, 1987, p. 100). Ser armado cavaleiro talvez fosse considerado o evento

principal na vida de um homem.

Essas armas que o cavaleiro recebia – a espada, escudo, lança, elmo, esporas – na

cerimônia de investidura também possuíam um simbolismo, que servia para fortalecer o

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dever e a missão de um cavaleiro. Carregando essas armas, o guerreiro carregava

também a força cristã necessária para o combate. Pois, “cada arma, cada veste, cada

gesto, transforma-se em símbolos de virtude e de requisitos cristãos. A espada será o

gládio do espírito, o elmo será a fé e assim por diante.” (CARDINI, 1984, p. 66).

As armas cavaleirescas adquiriam cada vez mais simbolismos cristãos porque a

cavalaria assume importância cada vez maior na sociedade do século XIII, despertando

assim o interesse da Igreja. Observamos, desse modo, uma forte tendência de

clericalização da investidura a partir do século XIII.

E talvez o revestir da armadura que, até então, fora uma cerimônia leiga

realizada no grupo de profissionais das armas que, deliberadamente,

tivessem decidido cooptar um novo companheiro, tenha começado a

comportar um reconhecimento religioso por parte de uma Igreja que já há

algum tempo (e disso nos certifica o pontifical romano-germânico de

Magúncia, no século X) costumava benzer as armas, à semelhança do que

fazia com os instrumentos de trabalho e de uso diário. (CARDINI, 1989, p. 60).

A cavalaria ganhava assim uma feição religiosa, mas ainda lhe faltava uma ética e

uma moral própria. Essa moral cavaleiresca não permitia entre outras coisas que o

cavaleiro fosse covarde atacando um outro que estivesse desarmado. A ética

cavaleiresca consistia, entre outras coisas, em socorrer donzelas em perigo e mulheres

que fossem violentadas por outros cavaleiros, respeito à palavra dada, zelo pela

reputação. Em suma, o cavaleiro deveria exercer perfeitamente o que incumbia sua

função: proteger os demais.

É desse modo que essa corporação assume um caráter honorífico, decorativo,

ético, cultural.

Ela se fecha no início do século XIII e se transforma em casta, que exige, para

a investidura de um jovem, a prova de que quatro de seus ancestrais ao menos

haviam sido eles próprios nobres e cavaleiros. (...). A nobre corporação dos

guerreiros de elite se transforma em confraria guerreira dos nobres de elite.

(FLORI, 2005, p. 40).

A partir disso, somente poderá ser cavaleiro quem fizer parte da nobreza, quem

compartilhava dos valores nobres. “Sonho e realidade misturam-se assim para formar

nos espíritos uma cavalaria que, mais que corporação ou confraria, torna-se uma

instituição, um modo de viver e de pensar, reflexo de uma civilização idealizada.”

(FLORI, 2006, p. 186).

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Dentro dessa cavalaria carregada de brilhos terrenos, factíveis e passageiros,

surgem modelos ideais, concebidos no sentido de atender a expectativa cristã de bom

comportamento e virtude. É entre esses modelos que encontramos a idealização de

Ramon Llull, filósofo catalão que nasceu em 1232 e entre sua vasta obra temos O Livro

da Ordem de Cavalaria.

Sua produção tem o objetivo claro de converter os infiéis. Llull tem uma

concepção de sociedade ideal que uniria uma vida heróica aos valores religiosos, mais

precisamente os cristãos. Sua obra “apologética e doutrinaria, tem conteúdo missional e

pretende ocupar espaço na formação dos novos pretendentes á Ordem da Cavalaria,

iluminando o caminho dos noviços com valores espirituais, morais e éticos” (COSTA,

2000, p. XXV). Assim o Livro da Ordem de Cavalaria tem um caráter didático,

representa uma espécie de ensinamento de como se tornar um bom cavaleiro e honrar a

ordem.

Através dos ideais da Igreja, Llull procurava associar o ideal cavaleiresco

mostrando as corretas normas de comportamento e fazendo a crítica aos maus

cavaleiros. Pelo exemplo do bom cavaleiro, a sociedade estaria estimulada a seguir seu

modelo de comportamento cristão e alcançar suas virtudes.

No século XIII surge na literatura um modelo de cavaleiro cristão que é

representado tanto pela obra acima citada como também pelo romance do ciclo

arturiano A Demanda do Santo Graal. Nesse romance de cavalaria, cuja narrativa gira

em torno da busca pelo Graal (espécie de cálice em que se tinha recolhido o sangue de

Cristo), o principal personagem é um jovem puro e cristão o “bom cavaleiro”, que

compõe a corte do Rei Artur e é a ele apresentado como o cavaleiro esperado: “Rei

Artur, eu te trago o cavaleiro desejado, aquele que vem da alta linhagem do rei Davi e

de José de Arimatéia pelo qual as maravilhas desta terra e das outras terão fim”.

(MEGALE, 1999, p.20).

A partir dessa valorização do cavaleiro ideal, como sendo o cavaleiro cristão,

pode-se perceber que as normas de cavalaria no século XIII já não estavam sendo

respeitadas e seguidas como antigamente, se é que foram de fato seguidas algum dia.

Assim, Llull tinha o desejo de que A Ordem de Cavalaria recuperasse seu antigo

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prestígio, de que a nobreza já tão envolvida em disputas internas, principalmente no que

diz respeito à primogenitura, se voltasse para os princípios cristãos.

A principal questão apontada por Ramon Llull é colocar a cavalaria a serviço da

fé cristã. Tanto que para isso o cavaleiro deveria ser possuidor das seguintes virtudes:

justiça, caridade, sabedoria, verdade, humildade, lealdade, honra.

O filósofo catalão, portanto, permeia sua obra das normas que deveriam ser

seguidas para o perfeito ordenamento da sociedade cristã e para que através de sua fiel

obediência, garantisse a salvação de suas almas.

Em consonância com esse modelo idealizado por Llull, temos a figura do

cavaleiro Galaaz, principal personagem da Demanda do Santo Graal. Essa novela de

cavalaria faz parte da chamada “Matéria da Bretanha” e compõe o ciclo de escritos

sobre o Rei Artur e seus cavaleiros. Essa literatura chegou a Portugal em finais do

século XIII.

O núcleo principal da novela que é a busca do Graal, é direcionado para todos os

cavaleiros que “juram” a demanda, embora apenas poucos cheguem a cumpri-la. É por

isso que, no decorrer da narrativa, serão distinguidos os “bons” dos “maus” cavaleiros.

Esses últimos sucumbem principalmente aos pecados da carne, enquanto os primeiros

conseguem resistir às tentações e manter-se fiéis ao seu propósito espiritual de encontrar

o Santo Vaso.

É assim que, nessa novela da Matéria da Bretanha, os feitos de cavalaria e os

enlaces amorosos foram profunda e inteiramente adaptados a uma intenção religiosa.

Portanto, o que há de importante não são as lutas cavaleirescas por si só, mas o quanto

elas significam na aproximação com Deus.

Galaaz é conhecido, como o “melhor cavaleiro do mundo”. Sua vinda tinha sido

profetizada há muito tempo, como vimos anteriormente. É ele, pois, que dará fim às

aventuras do Reino de Logres.

Quando a demanda do santo Graal começa, os cavaleiros juram que jamais nom

quedariam de andar, ataa que vissem atal mesa e tam saborosos manjares e atam

guisados, como eram aquêles que êles aquel dia comerom, se era cousa que lhes

outorgada fosse, por afam e por trabalho que sofrer podessem. (DSG, 1995, p.33, v.I,

grifos meus).

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A missão dos cavaleiros era árdua, eles próprios reconhecem que só poderiam

cumpri-la se a eles fosse outorgada e se pudesse agüentar todo o sofrimento advindo

dessa busca, assim como suportar o trabalho que ela exigia. Por isso, poucos

conseguirão. E uma das mais fortes razões para que tantos fracassassem é o pecado da

carne, que fora prevenido pelo ermitão:

Cavaleiros da Távola redonda, ouvide. Vós havedes jurada a

demanda do Santo Graal. E Naciam o ermitam vos envia dizer per

mim, que nhuũ cavaleiro desta demanda nom leve consigo dona nem

donzela, senam fará pecado mortal. E nom seja tal que i entre, se nam fôr bem menfestado, ca em tam alto serviço de deus como êste, nom deve entrar se nom fôr bem menfestado e bem comungado e limpo e purgado de tôdolos cajoões e de pecado mortal. (DSG, 1995, p.43, v. I).

E logo Naciam explica o porquê da condenação dos prazeres mundanos, aos quais

os cavaleiros estavam tão habituados:

Ca esta demanda nom é de taes obras, ante é demanda das puridades e das cousas ascondidas de Nosso Senhor, que fará veer conhocidamente ao bem-aventurado cavaleiro que el scolheu por seu sargente antre tôdolos cavaleiros terreaes, ao qual mostrará as grandes maravilhas do Santo Graal e lhe fará veer o que coraçom mortal nom poderia pensar nem língua de homem nom poderia dizer. (DSG, 1995, p.43, v.I).

Se antes Galaaz já havia sido diferenciado dos outros cavaleiros, aqui sua

distinção torna-se mais evidente, pois ele é o que foi escolhido como “servente de

Deus” para conhecer o que jamais um mortal coração poderia imaginar. Ele vai se

afastando cada vez mais dos outros cavaleiros e adquirindo uma crescente áurea

espiritual e santa. Galaaz pertencia a uma cavalaria celestial, fundada em valores

espirituais e na penitência como purgação dos pecados.

Galaaz compreende uma cavalaria mística, aproximando-se cada vez mais de um

modelo cristocêntrico. Ele expulsa demônios: e o encantador, que havia perdudo seu

sem e seu poder na viinda do boõ cavaleiro, que era santa cousa e santo homem. (DSG,

1970, p.133, v.II). E ainda é capaz de salvar os filhos de Satã, interceder por eles junto a

Deus: - Ai! Galaaz, mui santo cavaleiro, roga por mim, ca ainda eu acharia mercee, se

tu quisesses rogar por mim. (DSG, 1970, p.135, v.II).

Galaaz também cura os doentes, como uma donzela que havia ficado louca e vivia

presa:

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Ai, Galaaz! Santa cousa e bem-aventurado corpo, limpa carne e comprida de santa graça, beenta seja a hora em que tu foste nado, e beento seja deus que te aqui dusse, ca te ta viinda me [veo] tam grã bem, que sôo livre do maau companheiro que havia, que longamente foi comigo. (DSG, 1970, p.149, v.II).

Uma outra doente é curada ao usar sua estamenha: E a donzela que vistira a

estamenha foi logo tam saã como se nunca houvesse mal. (DSG, 1970, p.159, v.II).

Mesmo sendo instrumento para os milagres divinos, Galaaz mantém-se humilde: não

deseja que se saiba das curas que realiza e deita-se em terra firme em vez dos bons

leitos que lhe eram oferecidos. E permanece humilde quando conhece o desprezo:

Muito falarom uũs e os outros de Galaaz, mas nom em as honra. E êle

sofreu todo mui bem, como aquel que era mais sofrido e mais

mesurado ca nem uũ cavaleiro que homem soubesse; (...) e sofre[u]-se aquela noite tom bem que nom respondeu a rem que lhi dissessem. (DSG, 1970, p.267, v.II, grifos meus).

Após um longo probatório caminho, percorrido por aventuras que foram

terminadas com êxito, os três eleitos – Galaaz, Persival e Boorz – chegam ao Graal.

Juntos eles formarão com mais nove cavaleiros os doze que compartilharão da

“postumeira festa” e serão “avondados” do manjar do Santo Graal.

Galaaz, após ser preenchido pelas maravilhas do Graal e depois de conhecer o que

estava tão distante de uma vida humana, seu espírito só deseja encontrar-se com Deus.

Ele é, então, levado por anjos ao céu, o que evidencia a santa vida que tinha construído

até ali.

O caminho de Galaaz foi percorrido com muita fé, esperança na piedade divina,

comunhão espiritual. Toda a sua trajetória foi direcionada para um conhecimento de si

mesmo que passava fundamentalmente por um caminho espiritual.

Porque era bom, virgem, misericordioso, humilde, temente a Deus, Galaaz é o

melhor exemplo de um modelo perfeito de cavaleiro cristão. Constitui-se, portanto,

como um ótimo modelo do programa civilizador da Igreja para o cavaleiro buscando

aproximá-lo cada vez mais dos valores cristãos. Ele representaria, assim, um exemplo

modelar para a sociedade.

Podemos perceber que o exemplo de Galaaz está em perfeita consonância com o

modelo de cavaleiro elaborado por Ramon Llull. Esse filósofo que procura ensinar aos

cavaleiros, através de um manual de comportamento, como se tornarem “bons

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cavaleiros”, constrói um ideal de cavalaria que serviria de exemplo para todo o grupo

guerreiro, assim como para a sociedade.