cautelas - por sao joao da cruz

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CAUTELAS Por São João da Cruz, Doctor Mysticus. que há mister trazer sempre diante de si o que quiser ser verdadeiro religioso e chegar em breve à perfeição. Dirigidas às Carmelitas descalças de Beas. Contra o Mundo 1. O religioso que quiser chegar em breve ao santo recolhimento, silêncio, desnudes espiritual e pobreza de espírito, onde se goza o pacífico refrigério do Espírito Santo e chega a unir-se a alma com Deus, - livrando-se dos impedimentos de toda criatura deste mundo, defendendo-se das astúcias e enganos do demônio, e desembaraçando-se de si mesma, - tem necessidade de exercitar os seguintes documentos. 2. Com ordinário cuidado e sem outro trabalho nem outro gênero de exercício, não faltando quanto é de sua parte às obrigações do seu estado, caminhará a grande perfeição mui ràpidamente, ganhando todas as virtudes por junto, e chegando à santa paz. 3. Para isto é preciso advertir, primeiramente, que todos os danos provêm à alma dos inimigos já citados, que são: mundo, demônio e carne. O mundo é inimigo menos custoso de vencer. O demônio é mais difícil de entender. A carne é mais tenaz de todos, e seus acometimentos persistem enquanto dura o homem velho. 4. Para vencer qualquer destes inimigos, é necessário vencer todos três. Enfraquecido um, enfraquecem-se os outros dois; e vencidos os três, não há mais guerra para a alma. 5. Para te livrares perfeitamente do prejuízo que te pode causar o mundo, hás de usar de três cautelas. Primeira Cautela

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Livro escrito pelo doctor mysticus às monjas carmelitas

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CAUTELASPor So Joo da Cruz, Doctor Mysticus.que h mister trazer sempre diante de si o que quiser ser verdadeiro religioso e chegar em breve perfeio. Dirigidas s Carmelitas descalas de Beas.Contra o Mundo1. O religioso que quiser chegar em breve ao santo recolhimento, silncio, desnudes espiritual e pobreza de esprito, onde se goza o pacfico refrigrio do Esprito Santo e chega a unir-se a alma com Deus, - livrando-se dos impedimentos de toda criatura deste mundo, defendendo-se das astcias e enganos do demnio, e desembaraando-se de si mesma, - tem necessidade de exercitar os seguintes documentos.2. Com ordinrio cuidado e sem outro trabalho nem outro gnero de exerccio, no faltando quanto de sua parte s obrigaes do seu estado, caminhar a grande perfeio mui rpidamente, ganhando todas as virtudes por junto, e chegando santa paz.3. Para isto preciso advertir, primeiramente, que todos os danos provm alma dos inimigos j citados, que so: mundo, demnio e carne. O mundo inimigo menos custoso de vencer. O demnio mais difcil de entender. A carne mais tenaz de todos, e seus acometimentos persistem enquanto dura o homem velho.4. Para vencer qualquer destes inimigos, necessrio vencer todos trs. Enfraquecido um, enfraquecem-se os outros dois; e vencidos os trs, no h mais guerra para a alma. 5. Para te livrares perfeitamente do prejuzo que te pode causar o mundo, hs de usar de trs cautelas. Primeira Cautela6. A primeira que acerca de todas as pessoas tenhas igual amor e igual olvido, quer sejam parentes, quer no o sejam, desprendendo o corao tanto de uns como de outros; e, de certo modo, mais ainda dos primeiros, por temor de que a carne e o sangue se avivem com o amor natural que entre parentes costuma existir; amor esse que, para a perfeio espiritual, convm ir sempre mortificando. Olha-os a todos como se fossem estranhos, e, desta maneira, melhor cumprirs tua obrigao para com eles do que pondo neles a afeio devida a Deus. No ames a uma pessoa mais que a outra, que errars; pois digno de maior amor aquele a quem Deus mais ama, e no sabes tu qual de Deus mais amado. Esquecendo, porm, igualmente a todos, segundo te convm para o santo recolhimento, livrar-te-s do erro de fazeres de mais ou de menos por eles. No penses a seu respeito coisa alguma, nem de bem nem de mal; foge deles quanto em boa conscincia te for possvel. E se isto no guardares, no sabers ser religioso, nem poders chegar ao santo recolhimento; no te livrars das imperfeies que tais coisas trazem consigo; e se a este respeito quiseres tomar alguma liberdade, ora num ponto, ora noutro, te enganar o demnio, ou tu a ti mesmo, com alguma aparncia de bem ou de mal. Em fazer o que est dito, h segurana; porque de outra maneira no te poders livrar das imperfeies e danos que a alma encontra no trato das criaturas.Segunda cautela7. A segunda cautela contra o mundo acerca dos bens temporais. Aqui mister, - para te livrares deveras dos danos deste gnero, e moderar a demasia do apetite aborrecer toda maneira de possuir. Nenhum cuidado ter nesta matria: nem da comida, nem do vestido, nem de outra coisa criada, nem do dia de amanh, empregando, este cuidado em outro objetivo mais alto, que buscar o reino de Deus, isto , em no faltar a Deus. O resto, como diz Sua Majestade, ser-nos- dado por acrscimo, pois no se h de esquecer de ti Aquele que dos animais tem cuidado. Com isto adquirirs silncio e paz nos sentidos. Terceira Cautela8. A terceira cautela muito necessria para que no convento te saibas guardar de todo dano acerca dos religiosos. Muitos, por no a terem, no somente perderam a paz e bem de sua alma, mas vieram e vm a dar ordinriamente em muitos males e pecados. E' a seguinte: guarda-te com todo o recato de empregar o pensamento, e ainda mais a palavra, no que se passa na Comunidade: no que h ou tenha havido com algum religioso em particular; no seu gnio, no seu trato, ou em outras coisas suas, por mais graves que sejam. Nem como pretexto de zelo ou de dar remdio, fales nisso a no ser a quem de direito convm diz-lo, h seu tempo; e jamais te escandalizes ou maravilhes de coisa que vejas ou ouas. Procura antes manter tua alma em completo olvido do que se passa.9. Porque se quiseres reparar seja l no que for, muitas coisas no te parecero boas mesmo que vivas entre anjos, por no entenderes tu a substncia delas. Para isto toma exemplo da mulher de Lot: porque se alterou na perdio dos Sodomitas e voltou a cabea para trs a olhar o que se passava, castigou-a Deus, transformando-a em esttua de sal (Gn 19, 26). Por a entenders como vontade de Deus que, ainda no caso de viveres entre demnios, de tal maneira hs de viver, que nem mesmo voltes a cabea, isto , o pensamento, a observar suas obras, antes as deixes totalmente. De tua parte procura trazer a alma pura e inteira em Deus, sem admitir alguma lembrana que te sirva de empecilho. E, para isso, tem por averiguado que nos conventos e comunidades nunca h de faltar algum tropeo, pois nunca faltam demnios que procurem derribar os santos; e Deus assim permite, para os provar e exercitar. E, segundo ficou dito, se no te recatares, como se no estiveras em casa, no poders ser verdadeiramente religioso, por mais que faas, nem chegars santa desnudes e recolhimento, nem te livrars dos danos que da resultam. Porque, no agindo deste modo, por melhor fim e zelo que tenhas, nisto ou naquilo te enganar o demnio: alis, j bem enganado ests, quando ds entrada em tua alma a tais distraes. Lembra-te do que diz o Apstolo S. Tiago: Se algum pensa que religioso e no refreia a sua lngua, a religio deste v (Tgo 1, 26). Isto se entende no menos da lngua interior que da exterior.CONTRA O DEMNIO De trs cautelas deve usar o que aspira perfeio, para se livrar do demnio, seu segundo inimigo. Para isto convm advertir que, entre as muitas indstrias de que usa o demnio para enganar os espirituais, a mais ordinria engan-los sob aparncia de bem, e no de mal: pois j sabe que o mal conhecido dificilmente achar entrada. E, porConseguinte sempre te hs de recear do que parece bom, mormente quando no intervm a obedincia. O modo de andar com segurana e acerto nisto seguir o conselho de quem o deves tomar.Primeira CautelaSeja, pois, a primeira cautela que, fora daquilo a que por preceito ests obrigado, jamais te movas a coisa alguma, por boa e cheia de caridade que parea, - quer seja para ti, quer para outro, de dentro ou fora de casa, - sem ordem da obedincia. Nisto ganhars mrito e segurana, escusando-te de propriedade; e fugirs do demnio e de muitos danos que nem sabes, dos quais te pedir Deus conta a seu tempo. E se esta cautela no guardares no pouco e no muito, ou por mais que te parea acertar, no poders deixar de ser enganado pelo demnio - em pouco ou em muito. E ainda que no seja mais do que em no te regeres em tudo pela obedincia, j erras culposamente, porquanto mais quer Deus obedincia que sacrifcio (1 Rs 15, 22). As aes do religioso no so suas, seno da obedincia, e se dela as tirares, no dia das contas sero consideradas como perdidas.Segunda cautelaA segunda cautela que ao Prelado jamais olhes com menos reverncia que a Deus, seja o Prelado quem for, pois est em seu lugar. E adverte que o demnio, inimigo da humildade, mete muito aqui a mo. Em olhar ao Prelado do modo sobredito, h muito lucro e aproveitamento; e sem isto, grande perda e dano. E assim, com grande vigilncia, guarda-te de pr os olhos em seu gnio, em seus modos, em seus intuitos e em sua maneira de ser, porque te fars tanto mal que virs a trocar a obedincia de divina em humana, movendo-te ou deixando-te de mover somente pelos modos e aparncias visveis no Prelado, e no por Deus invisvel a quem nele serves. E ser tua obedincia v, ou tanto mais infrutuosa, quanto mais te aborreceres com o humor desagradvel do Prelado, ou te alegrares com seu bom e aprazvel humor. Asseguro-te que o demnio, com fazer reparar nesses modos, tem arruinado na perfeio a grande multido de religiosos, cujos atos de sujeio muito pouco valem na presena de Deus, por haverem eles posto os olhos nestas coisas acerca da obedincia. Se aqui no te fizeres violncia, a ponto de te ser indiferente seja Prelado este ou aquele - enquanto a teu particular sentimento toca, - absolutamente no poders ser espiritual nem guardar bem teus votos. Terceira CautelaA terceira cautela diretamente oposta ao demnio que de corao te procures sempre humilhar por palavra e por obra, folgando-te do bem dos outros como se fora teu prprio, e querendo que sejam preferidos a ti em todas as coisas, e isto verdadeiramente e de corao. Desta maneira vencers no bem o mal, expulsars para longe o demnio e conseguirs alegria de corao. E isto procura exercitar mais com os que menos te caem em graa. E fica sabendo que se assim no o exercitares, no chegars verdadeira caridade, nem fars progresso nela. E sempre s mais amigo de ser ensinado de todos, do que de querer ensinar ainda o menor de todos.Contra a CarneDe outras trs cautelas h de usar quem quiser vencer a si mesmo e prpria sensualidade, que seu terceiro inimigo.Primeira CautelaA primeira cautela entenderes que no vieste ao convento seno para que todos te lavrem e exercitem. Por conseguinte, para te livrares das imperfeies e perturbaes que se te podem oferecer acerca do gnio e trato dos religiosos, e tirar proveito de todo acontecimento, convm pensares que todos os membros da Comunidade so oficiais, encarregados de te exercitar, como na verdade o so: e uns te ho de polir com palavras, outros com obras, outros com pensamentos contra ti; e a tudo te hs de estar sujeito como a imagem o est ao que a lavra, e ao que a pinta e ao que a doura. E se isto no guardares no sabers vencer tua sensualidade e teus sentimentos imperfeitos; no sers capaz de viver bem no Convento com os religiosos, no alcanars a santa paz, nem te livrars de muitos tropeos e males.Segunda cautelaA segunda cautela: jamais deixes de fazer as obras por falta de gosto ou sabor que nelas achares, se so convenientes para o servio de Nosso Senhor; nem a faas s por sabor ou gosto que te derem, se no convm tanto como as que desagradam. A no ser assim, impossvel ser ganhares constncia e venceres tua fraqueza. Terceira CautelaSeja a terceira cautela que em todos os exerccios jamais h de pr o varo espiritual os olhos no saboroso para apegar-se a eles e s por isto os fazer; nem h de fugir o amargo; antes deve buscar de preferncia o trabalhoso e inspido. Com este modo de proceder se pe freio sensualidade; porque a no agir assim, no perders o amor-prprio nem ganhars virtudes, nem alcanars o Amor de Deus.