causos do seu zé

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Causos do anti-herói que também foi herói ou diversas lendas de um homem comum. Viver é, de fato, um realismo mágico.

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Fotografia da capa: Seu Zé dialogando com o notebook.

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©Lecy Pereira Sousa

obre Seu Zé, o homem, pouco se sabe. Sua própria Carteira de Identidade lhe atribui uma idade incerta. Portanto, quando ele nasceu, não se sabe.

Onde ele nasceu também não se sabe ao certo. Terá sido em Almenara – MG ou Vitória da Conquista na Bahia? Ele afirma que foi na Bahia, embora tenha nascido numa época em que registro civil era privilégio no Brasil. O que sei sobre José Pereira Sousa foi por ouvir dizer o que a mim foi contado por ele mesmo. Naturalmente, quem nos conta suas próprias histórias costuma conduzi-las através do seu filtro moral, ético e social. Inclino-me a pensar que o homem é de fato e de ficção, o melhor ator de si mesmo. Acresço que precisei desconsiderar a ligação sanguínea, na minha condição de filho do Seu Zé, para escrevinhar esses textos. Quando convivemos a maior parte de nossas vidas ao lado de outras pessoas, seja por vínculos familiares ou que tais, nossos cérebros estabelecem um padrão de previsibilidade de forma que passamos a considerar tudo que o outro faz "exageradamente" comum e a vermos maiores seus erros e manias. Grande erro. Não sabemos o quanto de mágico ou inexplicável havemos de encontrar em alguém que está além dos parâmetros deficientes de julgamento que possuímos. A forma de filtrar o mundo do próximo é tão única e exclusiva quanto a nossa e nem sempre considera convencionalismos e pragmatismos sociais. É claro que o nível de ignorância presente em cada um de nós colabora com os preconceitos. Mas o próximo sempre nos surpreende com ou sem preconceitos. Se algumas pessoas afirmam que fazem chover, Seu Zé faz parar tempestades sem saber da existência da Fundação Cobra Coral. Se, ainda, outras pessoas encontram seus anjos em países distantes,

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Seu Zé encontrou o seu durante um duelo de morte (no qual ninguém morreu) com outros homens, num vilarejo, em Minas Gerais. Segundo Seu Zé tal anjo era um jovem belíssimo bem como a literatura exotérica costuma descrever o arcanjo Gabriel. Nos relatos do Seu Zé também descobri que ficar invisível não é privilégio do Dom Juan apresentado por Carlos Castaneda. Afora isso, "Causos do Seu Zé", relatos que beiram as raias do folclórico (no melhor sentido) foram ouvidos por mim e começaram a ganhar forma há dez ou quinze anos. Afinal, para que ter certeza absoluta? Várias das histórias contadas não ganharam “corpo” escrito. Ficaram na memória das várias pessoas que as ouviram e as interpretaram como bem puderam. Aparentemente esses são relatos comuns como há milhares de outros pelo Brasil afora e neles enxergamos todos os defeitos humanos. Não há nada de extraordinário. Penso até que alguns deles são recortes de histórias contadas pelos mais antigos. O escriba é quem terá feito um esforço sobremaneira para conservar a oralidade "exageradamente" comum. Não se trata de uma biografia. Para essa tarefa seria necessária uma faculdade incomum.

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vida no campo, mais que nas grandes cidades, é

recheada de momentos inusitados, hilários e perigosos.

Seu Zé que o diga.

Um pequeno exemplo foi o acontecido na fazenda "Capão das

Corujas".

Era um tal de bandear bois todos os dias que só se vendo. As

dificuldades surgiam com alguns touros do tipo marruá. Tratava-se

do bovino mais pirracento e nervoso de que se tinha notícia.

A peãozada conduzia o gado da fazenda "Capão das Corujas" para a

fazenda "Girassol". As reses seguiam o caminho, obedientemente. A

coisa empacou, mesmo, quando certo marruá cismou de não ir.

Pronto. Os boiadeiros, montados em seus cavalos, começaram a

enervar o bicho que se pôs de costas e virou a cabeça monstruosa

para observar seus achacadores.

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Gente, quando alguém ousava se aproximar, o marruá partia de lá

numa velocidade alucinante e besta de quem ficasse na frente. Os

caubóis sempre davam um jeitinho de escapar. O bicho corria de um

lado a outro e sempre fazia aquela pose desafiadora: virava o

traseiro para todos e olhava para trás, mandando "entrar" nele

quem fosse variado das ideias.

Numa dessas pirraçadas quem pirou foi seu Zé. Ele puxou as rédeas

do cavalo, dando a entender que rumaria ao touro. O marruá

desconfiou da manobra e veio de lá feito uma bala enfiando a testa

sob a barriga do cavalo.

O equino escapou a mingau, porque sua barriga se agasalhou entre

os chifres do marruá que jogou boiadeiro e cavalo para o alto.

Tudo aconteceu muito depressa. Seu Zé disse que o cavalo ficou

balançando as patas no ar como se o chão jamais chegasse. O

marruá correu para um lado e ficou aguardando novidades.

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Quando conseguiu se aprumar, seu Zé muniu-se de um facão e, com

espírito de super-herói, apeou do cavalo para gritar:

- Vamos dar um jeito naquele bicho, agora!

A peãozada balançou a cabeça e teve quem perguntasse a seu Zé se

ele tinha bebido cachaça. O que todos fizeram foi deixar o touro

para lá. Daí seu Zé sossegou o facho.

De outra feita, estava um tal de Tião Garrincha e... Seu Zé caçando

pássaros perto de um mangueirão. Com pouco, eles ouviram um

mugido taurino e um barulho de casco raspando o gramado. Vinda

de outra direção ecoou uma resposta idêntica. Os dois não tiveram

dúvidas: estavam entre uma rincha de marruás.

Tião garrincha, mais afoito, convidou seu Zé a desafiar os animais e

foi logo arremessando uma pedra num marruá que á estava bufando

de raiva mais adiante.

Virgem Maria! O bicho veio de lá zunindo e os dois caçadores

correram como nunca haviam feito na vida. Seu Zé se esquivou de

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um lado e caiu rolando numa ribanceira, indo parar dentro de um

lago. Quanto ao Tião Garrincha, passou a ser perseguido pelos dois

marruás. Sua salvação foi o galho de uma árvore frondosa que

estava no seu caminho. Ele saltou, pendurou-se e ficou ali por um

bom tempo, numa situação que seria cômica se não fosse trágica. O

touro ficou movendo a cabeça tentando acertar os chifres nas

nádegas do Tião que se desviava como podia.

A certa altura, o marruá deixou a bunda do Tião para lá e foi

continuar o ajuste de contas com a outra fera.

Seu Zé veio cambaleando e encharcado e o Tião Garrincha pulou no

chão. Mais uma vez eles ouviram os bichos mugindo

assustadoramente.

Tião teve o descaramento de chamar seu Zé para, novamente, ver

aonde os bichos iam brigar. Seu Zé olhou bem para a cara do

caboclo e disse:

- Vamos embora, caladinhos.

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e outra vez, seu Zé falou da pendenga entre Valdomiro e

Januário. Êita dois caboclos difíceis!

Começou o Valdomiro provocando Januário. Sim, porque Januário

tinha o que, hoje, chamamos de açougue e vendia carne bovina para

todos no arraial. Pois, bem, o danado do Valdomiro comprou na mão

do Januário a prazo.

Vencida a data combinada, Januário passou a cobrar do Valdomiro

que, na sua pilantragem, ia dizendo que pagaria no dia seguinte.

Chegava o outro dia e nada.

Caramba, até se fosse um quilinho de carne, Januário aguentaria o

tombo. Aconteceu que o sujeito comprou um quarto de boi e, ainda

por cima, deu um baita churrasco chamando a rua inteira para se

regalar. Foi coisa de um descarado.

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Para inteirar o terno, Valdomiro disse ao seu credor que não lhe

pagaria coisa nenhuma e estava decidido.

Aquilo mexeu com os nervos do Januário para valer. O moço se

armou de uma pistola de dois canos, montou em seu cavalo baio e

foi à casa de Valdomiro disposto a resolver tudo. Aquela carne não

ficaria de graça.

Como se fosse uma premonição, naquela manhã, Valdomiro foi

prosar com um vizinho seu, bem mais adiante.

Quando Januário bateu à porta da casa do seu devedor, quem veio

lhe atender foi a esposa deste – a Rosária.

- Bom dia, dona – começou Januário. – Eu vim falar com o

Valdomiro.

- Ele saiu, tem tempo e não sei a hora que volta – falou Rosária

querendo encerrar a conversa.

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Um pouco frustrado, Januário tirou sua pistola da cintura com um

movimento tão brusco que a arma se abriu e as balas caíram ao

chão.

- Olha, dona – disse ele – quando o Valdomiro chegar, diga-lhe que

essas balas são para ele engolir.

Passado um instante, olhando bem para Rosária, Januário tornou:

- A senhora pode fazer o favor de pegar essas balas para mim?

- Mas assunta – gritou Rosária – some daqui, senão eu chamo é a

polícia para você, seu desaforado. Some daqui, senão eu boto a

boca no mundo.

- Parece que a senhora não gostou muito de mim. Mesmo assim,

meus pêsames antecipados. Não se esqueça do recado.

Januário apanhou as balas, encaixou-as na pistola, saiu, montou no

cavalo e foi batendo em retirada, lentamente, como se não quisesse

ir embora.

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A meio caminho, eis que Januário, por acaso, avistou um camarada

vindo em sua direção com um bacamarte na mão. Sorte ou azar, era

o Valdomiro.

Já bem próximos Januário gritou:

- Mas, rapaz, é tu mesmo que estou procurando. Sabe de uma

coisa, Valdomiro, eu vou te matar.

Sem perder tempo, Valdomiro aprumou o bacamarte em seu cavalo

e puxou o gatilho. BUMMM!

Ele perdeu o tiro. Foi inacreditável.

Descendo do cavalo, Januário falou:

-Ah, homem, tu não sabe atirar. Agora é minha vez de te mostrar.

Januário pegou a pistola e CLIC, CLIC. Quem diz que saiu algum tiro?

A arma amuou, feito um asno. Com os olhos arregalados, o

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açougueiro voou sobre Valdomiro que se desviou, enquanto o outro

estatelou de barriga no chão.

Refeito, Januário passou a mão na cintura procurando uma faca, mas

cadê? A miserável devia ter ficado sob o pó do chão. Enfezado, ele

avançou sem arma mesmo.

Então aconteceu a peleja entre Januário e Valdomiro. Os dois

ferveram na porrada. A vizinhança, apenas, assistiu ao ajuste de

contas. Eles rolaram no chão, morderam-se tal e quais dois cães de

raça, deram cabeçadas, pesadas, beliscadas e enfiadas de dedos nos

olhos. Bateram-se à exaustão.

Quando não mais se aguentavam de tanta surra, Januário e

Valdomiro saíram cambaleando e cada um foi para o lado oposto da

mesma estrada.

Algumas testemunhas disseram que, dias depois, devedor e

cobrador, envergonhados, mudaram-se daquele arraial.

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Para Valdomiro, aquele foi o quarto de boi mais doloroso de que se

tem notícia.

Agora, dinheiro, que é bom, nada.

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ulália e Mariana, irmãs de Chico Gorgulho, haviam

alertado seu Zé sobre como aquele homem era perigoso.

De vez em quando, em época de festa, um trem qualquer baixava

naquele moço e não havia quem o tolerasse. Era um tal dele

espiritar, subir no teto da casa e ficar desafiando qualquer um que

estivesse embaixo.

Pois, então, este é um relato de um dia em que o Chico estava

arretado. Na festa do compadre Abílio, o Chico tinha uma faca na

mão e estava disposto a ferir qualquer pessoa. Juntaram homens e

mulheres para tomar sua faca, mas não aparecia um filho de Deus

que conseguisse desarmá-lo.

Seu Zé, que tocava sua sanfona em paz, teve que parar e usar sua

experiência para tirar a faca do Chico.

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Eulália e Mariana começaram a tremer de medo, pois conheciam

muito bem o irmão. Qualquer desafio para cima dele acabava

sempre em sangue. Só doido mexia com o Chico.

O encapetado achou uma audácia ser desarmado por um sanfoneiro.

Quando Seu Zé tomou a faca do Chico e a jogou bem longe, não

esperava a reação deste. Chico Gorgulho rumou no chão e esticou

de barriga para cima. Aquele era um sinal de que o tempo ia fechar.

Suas irmãs alertaram Seu Zé para não responder nada, caso ele

perguntasse se topava a parada.

Estirado no chão e de olhos fechados, o Chico perguntou:

- Você topa a parada, Zé Pereira?

- Que parada você tem aí para mim? – retrucou Seu Zé.

Ao ouvirem isso, as irmãs do Chico quase desmaiaram de tanto

medo.

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Quando todos esperavam o pior, Chico Gorgulho disse:

- Eu não quero conversa com você, não. – E ferrou no sono, bem no

meio da sala.

Aquilo foi um assombro para todos.

Seu Zé pediu que levassem o Chico para um dos quartos da casa e a

festa varou a noite.

Dizem que depois deste fato, nunca mais Chico gorgulho subiu no

teto da casa de ninguém.

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o norte de Minas Gerais, entre Almenara, Pedra Azul,

Jequitinhonha e São Miguel há um comércio por nome

Sacode. Foi lá que sucedeu o "pega-pra-capar" relatado a

seguir.

A propósito, era de "pega-pra-capar" que parecia viver os cidadãos

sacodenses. O dia em que o pau não quebrava lá, as pessoas não

conseguiam dormir em paz. Uma anarquiazinha sempre se fazia

necessária.

Pois bem, o sol estava pelando o couro de um grupo de rapazes que

tinham começado uma briga no meio da rua. A diferença entre eles

era resolvida no braço.

Martinho, irmão de um dos envolvidos na desordem, irritado com

aquela safadeza, cismou de ir a casa apanhar uma espingarda para

dar um jeito naquilo. Seu Zé, que assistia a tudo, encostado no

murinho de um casebre, bem que tentou dissuadi-lo da ideia, mas foi

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inútil. O rapaz voltou rápido fazendo mira e atirando encima dos

brigões. O incrível era que seus disparos não derrubavam ninguém.

Animado com os pipocos, um dos arruaceiros puxou o facão e o

deitou na cabeça do seu suposto adversário, arrancando-lhe parte do

couro cabeludo. Cambaleando e perdendo sangue, Aurélio sacou seu

revólver vinte e dois (até então oculto em sua cintura) e puxou o

gatilho sem olhar para onde.

O tiro do Aurélio teve endereço certo. Dona Corina, que lavava roupa

em seu quintal a uns trezentos metros dali, foi alvejada no momento

em que estendia as roupas no varal. Mulher robusta e resistente,

Dona Corina sentiu o impacto do tiro, mas pôs a mão sobre o peito e

teve forças para ir andando até o local da briga.

A coisa continuava feia. Sangue pingava, neguinho gritava, poeira

subia.

Dona Corina chegou gritando mais alto, dizendo que tinha sido

atingida. Gritou, poderosamente, e caiu para não mais levantar. A

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lavadeira bonachona que cuidava da sua roupa, alegremente, pagou

o pato.

Ao verem aquela mulher tombada ali e percebendo a gravidade da

situação, os rapazes decidiram soverter no mundo, inclusive o

Martinho. Apenas Seu Zé ficou em seu lugar.

Assim que o fato correu de boca em boca, apareceu o cunhado e

Geraldo, filho de Dona Corina, homem temido pelas redondezas por

sua fama de bravo.

Como testemunha ocular, Seu Zé detalhou o ocorrido a eles e o

cunhado de Dona Corina lhe pediu que fizesse os culpados voltarem

ao local do crime, num passe de mágica. O moço estava disposto a

pagar até cem contos de Réis pela volta dos baderneiros. Seu Zé

desconversou dizendo que o tio daqueles rapazes estava com eles e

podia fazer uma ponte para que todos sumissem sem deixar rastro.

Daí o Geraldo se irritou com seu Zé achando que ele tinha parte

naquela bagunça toda e passou a alimentar uma vontadezinha de

lhe matar.

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Um baianinho malandro que ouvira toda a conversa afirmou ser

capaz de fazer os caras voltarem no mesmo dia. Os parentes da

Corina acreditaram e lhe confiaram o dinheiro.

O sujeito foi para a porta do cemitério sacodense e, lá ficou andando

de um lado para outro, como um agente montando guarda nas

imediações do castelo da rainha da Inglaterra.

Visto que o tempo passou e nada dos rapazes retornarem, o

baianinho inventou que estava ouvindo um chamado forte no meio

da mata, foi saindo de fininho e "virou taca" mata adentro. Até hoje

não se tem notícia dos rapazes, nem do baianinho e muito menos

dos cem contos de Réis. O filho da Corina, indignado, cismou que Seu

Zé tinha culpa no cartório, a ponto de ficar olhando para ele com

rabo de olho. Disposto a tirar a diferença, Seu Zé decidiu que

precisava acabar com o Geraldo, antes que acontecesse o contrário.

No dia em que estava pronto para o crime, Seu Zé rumou para a

casa do camarada disposto a qualquer coisa. Ao ver seu Zé

apontando na rua, o Geraldo fechou as portas e as janelas da casa

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deixando claro seu receio de enfrentar aquele violeiro, sanfoneiro,

curador, casamenteiro, aparteador de briga e autodidata no

sapateado, o Fred Astaire da roça, batedor de facão nas horas de

folga. A situação ficou de tal maneira que a desavença não sucedeu.

Decorrido algum tempo, Seu Zé tomou conhecimento da desgraça

que vitimou o Geraldo. O referido montou numa mula doida e foi

viajar. O animal não aceitou arreio e pinoteou feito louco jogando o

Geraldo no chão para pisoteá-lo até a morte.

Para inteirar a história, no caminho de Sacode para Almenara,

morava um comerciante comum ao finado Geraldo e a seu Zé. Foi lá,

na casa do Ronildo que Seu Zé pediu para passar a noite e seguir

viagem pela manhãzinha, atitude bastante comum no interior

mineiro. Ele decidiu ir embora do Sacode, após aqueles

acontecimentos, no mínimo, intrigantes.

Quando se deitou na cama, de barriga pra cima, apagou a luz e

relaxou um pouco, eis que Seu Zé viu claramente, com uma riqueza

de detalhes só perceptível na vida real, o Geraldo com cara de bravo

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avançando para cima dele. Instintivamente, Seu Zé apanhou uma

faca que estava próxima de si e a cravou na aparição ou fosse lá o

que foi do Geraldo, que sumiu num piscar de olhos.

Então, Seu Zé pôde descansar e a coisa ficou por isso mesmo.

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orriam os anos dos mil Réis e as armas em voga eram a

histórica carabina, a garrucha e a lendária espingarda à

chumbo. No ar pairava, sempre, um cheirinho de pólvora.

Naqueles idos, para ser temido e considerado homem, um camarada

devia portar um trabuco qualquer sob o paletó de casimira. Para

completar, o sujeito devia ter um bom chapéu e um cavalo selado.

Então tínhamos montado o herói da roça, como no Velho Oeste de

Hollywood. O sucesso entre as mulheres era garantido.

Deixando de noves fora, havia um velho simpático chamado

Topolino, que conduzia, com relativo sucesso, a casa de baile "Rabo

de Saia", no centro de Nanuque em Minas Gerais. Nesse

empreendimento, ele era auxiliado por sua prendada esposa, a

Mariquinha.

A "Rabo de Saia" era a sensação do local, ponto de agito (e bota

agito nisso) de moradores e turistas. Viola, sanfona, Cinzano,

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Cortezano, homens e mulherada costumavam varar as madrugadas

no baile.

Certo dia, Seu Zé foi lá tocar viola.

Tudo estava dentro dos conformes, até que uma dama atrevida lhe

obrigou a deixar a viola com outro dedilhador para dançar com ela.

Eles foram rodando o salão e o "trem" estava era bom.

Enquanto isso o marido da atrevida estava vendo tudo e foi ficando

vermelho como um tomate maduro.

Quando o par ficou bem em frente à sua mesa, o Abelardo não

aguentou e disparou:

- Ó Mulher! Eu não disse que não te queria ver dançando com outro

homem?

- Eu danço com quem eu quiser – afrontou a Josefina.

- Olha que eu lhe desço a mão.

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A Josefina agarrou-se ainda mais a Seu Zé, que já tinha um plano em

mente. Caso o Abelardo desferisse um soco em sua própria esposa,

Seu Zé a jogaria em cima do safado e ferveria na briga com os dois.

- Pois, então, bate – gritou a Josefina para que todo o salão ouvisse.

– Pode bater. Bata numa mulher que eu quero ver. Bata se você

for homem.

Tremendo de raiva, O Abelardo cerrou o punho direito e ficou em

posição de ataque, indeciso, como se sofresse do mal de Parkinson.

Uma vez que o Abelardo empacou e todos olhavam para ele, Seu Zé

deu um "chega pra lá" na Josefina. Ele disse ao violeiro que iria a

casa tomar um banho e voltaria para continuar a animação. Seu Zé

saiu de mansinho.

Parece que na vida, inconscientemente, as pessoas são avisadas de

certas coisas e acabam tomando a decisão, aparentemente, mais

sensata.

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Enquanto seguia para casa, Seu Zé se lembrou de uma situação,

mais trágica, a qual ele presenciou.

Uma mulher tirou um forasteiro para dançar numa dessas festas da

vida. O camarada ficou envergonhado, porque o marido da dita cuja

estava lá também. Durante a dança ele ficou perguntando:

- E seu marido? E seu marido?

- Aquele borra botas? Já, já eu te mostro o que eu faço com ele.

A mulher soltou o seu par e, dona de um sorriso malicioso, foi ao

local onde estava seu marido, pegou sua mão direita, colocou-a

espalmada entre suas nádegas e liberou um sonoro peido. Ela

pensou que o gajo aceitaria aquilo passivamente. Pensou errado. Seu

marido achou tudo um desaforo desmedido, passou a mão na

garrucha e a despachou para outro mundo sem pestanejar. Ele

provou que até boi manso tem seu dia de ira.

Voltando às vacas frias, Seu Zé já tinha se banhado, vestido o

inseparável terno de casimira e dava uma ajeitada no cabelo.

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Quando punha a arma na cintura e fazia menção de sair, ele parou,

subitamente, e apurou os ouvidos.

Uma gritaria desenfreada irrompeu as redondezas. Era mulher

chorando, cadeiras e mesas quebrando, tiros, copos tinindo, um

desatino só.

Seu Zé abriu a porta da sala e notou que o rebuliço vinha da "Rabo

de Saia". Quando ele deu os primeiros passos em direção à casa do

baile, a mão protetora de seu amigo Anastácio lhe ajudou a desistir.

- Quer saber de uma coisa, Zezinho – falou Anastácio. – Não vá lá,

agora.

- Mas, moço – insistiu Seu Zé. – Minha viola novinha está no meio

daquela desavença. Como eu faço?

- Deixa a viola. Eu a garanto para você. Vá dormir sossegado.

Seu Zé não quis discutir com o amigo. Foi se deitar. Mesmo na cama,

ele ainda ouviu a gritaria por um bom tempo.

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Ao raiar o dia, não se aguentando de curiosidade, Seu Zé foi

examinar o ocorrido na madrugada.

Parecia cenário de Guerra de Canudos: corpos sendo carregados na

estopa pela polícia que sempre chega no fim da festa, pedaços de

couro cabeludo pelo chão afora, dedos, orelhas e sangue para tudo

quanto era canto. Um horror. Até o inofensivo Bento Lelé que estava

no baile, mas tinha alguns problemas mentais, enlouqueceu de vez e

foi levado para um manicômio em Belo Horizonte.

Dona Maria Creuza que passava o dia inteirinho vendo as coisas

acontecendo, através da janela do seu quarto, disse que quem

começou tudo foi a Josefina e o Abelardo. Quando a coisa engrossou,

os dois saíram na maior tranquilidade e soverteram. Daí ficou aquela

zona total de gente matando e morrendo sem um motivo que

justificasse.

Acabou que nunca mais teve um baile na "Rabo de Saia". O velho

Topolino quase morreu de enfarte na época da danação e resolveu

mudar de ramo.

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Seu Zé ficou sabendo que atualmente funciona uma igreja onde

antes reinava a lendária "Rabo de Saia".

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oite alta, sem lua e, para variar, Seu Zé seguia rumo a

uma festa montado em seu cavalo numa mata que era

puro breu. Quem indicava o caminho era o cavalo, com

seu instinto animal bem mais certeiro que o humano.

Num dado momento, Seu Zé apurou a vista o mais que pôde. Um

sujeito mal encarado surgiu naquela estrada, numa escuridão

danada. Uma assombração não daria tanto mole.

Não me pergunte como, mas Seu Zé conseguiu enxergar as feições

daquele homem.

- Quem vem lá, pode me ceder a garupa? – perguntou o andarilho

quando ouviu o barulho provocado pelas patas do cavalo de Seu

Zé.

- Negativo – respondeu Seu Zé. – No meu cavalo não tem garupada.

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Ao dizer isso, Seu Zé fitou bem aquela cara bigoduda, sobrancelhas

arqueadas, olhar feroz, chapéu de couro ocultando a testa, e puxou a

rédea do cavalo continuando sua viagem.

Muitas árvores depois, Seu Zé apeou no arraial onde a festa "pegava

fogo" e amarrou seu cavalo na manga. De imediato, ele se dirigiu a

uma barraquinha de bebidas, pediu uma dose de Cinzano e ficou ali

bebericando descontraidamente.

Correndo os olhos pelo local, eis que, não muito longe, Seu Zé

avistou o dito cujo da estrada. Sim, era ele perfeitinho. Como chegou

tão rápido, era mais um mistério.

Aquele homem foi direto à barraca de bebidas e, logo pediu, na

bronca, um copo de vinho. O atendente, com humildade, disse que

não tinha. Então, a fera pediu qualquer coisa, bebeu, jogou o copo no

chão, disse que não ia pagar por aquela porcaria, virou-se de costas

e foi saindo. Ele caminhou em direção à manga.

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Parece mentira, mas o cara reconheceu o cavalo de Seu Zé, em meio

aos outros e sua cabeça começou a tramar criminosamente. Se Seu

Zé estava ali, o encrenqueiro ia deixá-lo a pé para aprender como

era bom negar garupa a alguém do seu tipo. Ele cortaria as rédeas

do cavalo e o colocaria para correr. Uma maldade.

Assim que aquela peste levantou seu facão para completar o plano,

Seu Zé veio da barraquinha, alucinado, entrou de peito nele e

perguntou, encarando-lhe:

- Ora, ora. O que você pretende com esse facão, colega?

Os dois ficaram paralisados por uns trinta segundos trocando olhares

fulminantes, até que o bigodudo quebrou o silêncio:

- Não é nada, não. Eu só vou picar um fumo pra fazer um cigarrinho

– e enfiou a mão no bolso da calça tirando um pedaço de fumo de

rolo. Sem graça, mudou de rumo.

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Após aquela desculpa, esfarrapadíssima, daquele homem, Seu Zé

desgostou da festa, desamarrou o cavalo do suporte, montou em seu

lombo e ganhou a estrada.

Seu Zé atravessou o breu da mata, novamente.

Dessa vez não houve surpresas pelo caminho, senão uma rosnadinha

de onça pintada dali, uma chacoalhada de cauda de cobra cascavel

daqui e um lençol branquinho e esvoaçante dacolá.

Curiosamente, o cavalo começou a agitar suas orelhas e sua cabeça,

como se fosse um sinal de que algo fantástico surgiria bem diante

dele. Surgiu, mesmo.

Seu Zé garantiu que, da plena escuridão, apareceu uma espécie de

cidade mágica com luzes maravilhosas e tremeluzentes. Ele viu seres

que parecia gente, mas não era bem gente. Algo semelhante aos

cenários descritos nas "Mil e Uma Noites" e nos Contos de Grimm.

Seu cavalo começou a andar num passo lentíssimo. Até parecia que

uma energia sobrenatural havia tomado conta do ar.

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Foi impossível calcular o tempo que homem e quadrúpede levaram

para cruzar aquele paraíso virtual incrustado de luz.

De maneira quase imperceptível, o cavalo retomou sua marcha

habitual. Haviam saído daquele "sonho". Se Zé olhou para trás, na

esperança de enxergar aquelas luzes mais uma vez. Que nada!

Sumiram. Ele chegou a pensar em contar aquela experiência quando

chegasse em casa, mas desistiu. Quem acreditaria num homem que

tinha por testemunha um cavalo?

Ao reconhecer o caminho que o levaria à fazenda onde morava, Seu

Zé ouviu o galo cantando. Aquilo soou familiar aos seus ouvidos.

Logo, uma linda manhã, rural, nasceria.

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á para os extremos de Minas Gerais com Bahia, o Quelezinho

reclamou com Seu Zé:

- Mas Zezinho, homem, assunta, não sei o que é. Todas as vezes

que eu apronto uma festa aqui em casa vem um filho do diabo lá

dos quinto e desmancha. É só começar a música e o povo arrastar

os pés que a lambança toma conta. Não sei o que fazer para dar

uma festa de acordo.

Seu Zé ouviu a lamentação do Quelezinho e o acalmou, pedindo-lhe

que chamasse uma festa para aquela noite mesmo, só para ver o

que aconteceria.

Feito. O sanfoneiro deu o serviço, além do salão da casa do

Quelezinho ficar tomado pelo povaréu. Todos dançavam como se

estivessem num salão vienense do Século Dezoito. Uma maravilha.

L

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Pela madrugada, num canto do salão, insatisfeito com toda aquela

harmonia, o Artuzinho, um mineiro nervoso bufava bem pertinho do

Seu Zé:

Isso é um desaforo. Tudo está calmo demais. Tem que ter ao menos

uma *tumba aqui. Eu vou desmanchar esse negócio.

Seu Zé olhou para a fera, assim, meio de rabo de olho e disse:

- Escuta aqui, cara, quem chamou essa festa pro Quelezinho fui eu

e ninguém vai desmanchar nada, tá ouvindo?

O Artuzinho assuntou, reparou Seu Zé de cima até abaixo e falou:

- Tá certo. Você é gente nossa. Você é sangue bom.

Quando Seu Zé disfarçou um bocadinho, o caboclo partiu para o

meio do salão, deu um peteleco na orelha de um cidadão que

dançava em paz com sua parceira e o chamou de filho de uma égua.

Foi a conta. Os dois se atracaram e rolaram no chão.

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Nisso, um rapazote afoito disse que aquilo não ia ficar assim, desembainhou a faca e partiu para cima do Artuzinho para completar a danação. Agilmente, Seu Zé voou para cima do rapaz a tempo de interceptar

seu braço direito, quando este já baixava a fim de cravar a faca nas

costas do Artuzinho. O garoto girou o braço e direcionou a faca para

a barriga do Seu Zé que se desviou, para a surpresa geral,

emendando em seguida:

- Olha rapaz, agora eu vou te matar – puxou a "peixeira", socando-a

no peito daquele jovem.

Grande foi a decepção de Seu Zé quando descobriu que puxara a

faca com bainha e tudo e o moleque não estava sangrando.

Daí era tarde. Dois colegas do Quelezinho correram e seguraram os

braços de Seu Zé e pediram:

_ Ô Zezinho, não mate o cara, não.

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Antes, quando Seu Zé havia puxado a faca, o rapaz jogou a sua para

longe de si e, agora, gritava inocentemente:

- Eu tava desarmado e ele quis me matar! Eu tava desarmado e ele

quis me matar!

E Seu Zé:

- Mas isso não é o diera? Tu tá resmungando, ainda, sujeito? Vê se

te arranca daqui, senão te acabo.

Resultou que o rapaz, um fedelho de dezessete anos, saiu jurando

Seu Zé de morte, enquanto o sanfoneiro fingiu não ter visto nada. A

festa prosseguiu, sim, senhor e muito bem, até o sol raiar.

Há pouco tempo, num ponto de ônibus da Avenida Olegário Maciel

em Belo Horizonte, Seu Zé reconheceu o frangote valente com

clareza. O referido devia ter uns bons sessenta anos de idade.

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ara o cidadão urbano comum, as festas têm sempre um

motivo específico, dado a situação econômica das pessoas.

É um casamento, um aniversário, um batizado, um feriado

e por aí vai.

Parece ser diferente a situação dos ricos, muito ricos que, se

acordam de bom humor, podem dar uma festa naquele dia. Vale

citar também os sertanejos que, indiferentes ao bolso, se juntam em

casa um sanfoneiro e um violeiro, então é festa.

A introdução acima, um tanto parcial e, até certo ponto,

desnecessária, vem dar um colorido à história de Julinho, pai de

Liete, que promoveu uma festa em Vitória do Espírito Santo. O

motivo da festa, deus sabe qual. Quando aconteceu? Talvez num

inverno em que a capital do Brasil era o Rio de Janeiro e a de Minas

Gerais era Ouro Preto. Digamos que tudo aconteceu numa noite de

inverno.

P

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Decerto que Seu Zé, sabe-se lá por que transitava por aquelas

bandas, foi chamado a dedilhar a viola naquela festa, coisa que ele

fazia com muito gosto. Juntou-se ele mais o sanfoneiro Tião

Queixada que fez a alegria da rapaziada e da moçada com as

modinhas da época.

Tudo corria maravilhosamente bem, a exemplo dos contos de fadas.

Até que, lá fora, um negro de pouca conversa e uma cara enfezada,

foi chegando amuado parecendo ter um rei na barriga. Sua atitude

dava a entender que todo mundo não valia nada para ele.

Farejando a presença de um estranho, o cãozinho da família se

empertigou vindo, justamente, latir feito um cão danado com o

homem metido a mau.

Para quê? O enfezado, sentindo-se abalado em seu orgulho de muito

macho, pegou o cachorro e o arremessou dentro da fogueira. O

coitado caiu todo chamuscado e ganindo.

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A covardia do forasteiro chamou a atenção de algumas pessoas e

também a do dono da casa, que passou a espiá-lo com mais

interesse para ver aonde ia o seu esculacho.

Muito bem, o cara continuou lá, sentado, como quem diz: "Vem

nimim quem tem coragem". Do fundo do quintal veio outro

cachorrinho – também da família – e desandou a latir,

instintivamente, sentido-se diante de um inimigo (é preciso usar de

empatia com os cães para entender essas coisas).

Não deu outra. O negro pegou o animal e VAP! Jogou-lhe no fogo

com muito prazer. O bicho saiu, desembestado, deixando um odor

de pelo queimado atrás de si.

Aquilo foi o bastante para Julinho. O sangue subiu à sua cabeça de

tal maneira que o deixou quase em transe. Assim, ele avançou até à

fogueira, enfiou as duas mãos nela e retirou um punhado de brasas.

Feito isso, rumou ao negro, que continuava sentado e tranquilo tal e

qual um Buda.

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O Julinho disse:

- É você que gosta de sapecar cachorro, não é? Então, tome isso –

e despejou as brasas no colo do negro.

O valentão se sacudiu, pulou de pé, arruinado, enquanto o Julinho ia

batendo em retirada. Um revólver 38 apareceu na mão do negro e

os convidados presentes no terreiro abriram uma roda em torno

dele. Demonstrando uma empáfia típica dos cínicos, ele zombava de

todos, perguntando quem ia ter coragem de entrar nele (no sentido

figurado). Já que todos ali eram bons, tinha de haver alguém bom o

bastante para lhe encarar.

Dentro dessa situação, tomada por um desespero aterrorizante,

Liete correu até o salão, buscando uma alternativa ao desafio do

pistoleiro. O sanfoneiro e o violeiro haviam parado o tom, diante

daquele fuzuê e perguntavam que diabos sucedia lá fora. Então,

Liete disse a Seu Zé que lá havia um homem que ia matar todo

mundo.

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- Ele vai matar coisa nenhuma – bradou Seu Zé, pulando porta

afora, abrindo a roda acovardada e ficando peito-a-peito com o

negro.

Seu Zé fixou bem os olhos no sujeito e perguntou se ele não achava

que era errado jogar cachorro dos outros na fogueira daquela

maneira. Ele disse que errado era quem jogava brasas nele que

estava sentado em paz. Aí , Seu Zé afirmou que de onde ele tinha

vindo, as pessoas costumavam bater em atrevidos queimadores de

cachorros com os próprios cachorros queimados. O negro disse que

eles podiam bater em alguém bom, mas em alguém mau, do modo

dele, assim, não, e bateu no peito se vangloriando, deixando as

pessoas da roda assustadas. Imediatamente, Seu Zé puxou a faca da

cintura e a rapou da barriga até o peito da figura. Em seguida, o

negro baixou a cabeça, ajoelhou-se no chão dizendo que era isso,

mesmo:

- Eu estou errado! Eu estou errado!

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Seu Zé o deixou para lá. Daí a pouco, só se via gente saindo em fila

e esticando para ir embora, admirados com a loucura de Seu Zé ao

peitar um homem disposto a matar qualquer um.

A festa acabou ali, mesmo. O negro montou em seu cavalo, pôs na

cabeça o chapéu, saiu de mansinho e desapareceu na escuridão fria.

O tempo em que permaneceu naquele comércio, por onde passava,

Seu Zé via grupinhos de pessoas murmurando e alguém apontando

o dedo para ele: o homem que enfrentou o moqueador de cachorros.

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ontam que nas Minas Gerais, num chapadão entre

Almenara e Pedra Azul, morou um certo Vitalino, homem

mal encarado e misterioso.

O assombramento em torno dele vinha das conversas que povoavam

a região. Todos os compadres e comadres daqueles boqueirões

viviam se perguntando como muitos viajantes e até parentes de

muitos deles vinham desaparecendo naquele trecho.

O fato é que Vitalino, um caboclo de passado negro, casado, pai de

duas filhas, garantia o bem estar da família com atitudes dignas de

calvário.

Pobres dos viajantes que deparavam com aquela casa atraente após

um dia inteiro de viagem cansativa sobre o lombo de um jumento ou

jegue ou cavalo.

Era à noite que o inesperado acontecia. O infeliz vinha cansado, meia

noite velha, os ouvidos abertinhos com o barulho de sapos, grilos,

corujas, vozes do além, lobos... Peraí, lobos? Ai, Jesus! Aí que o medo

acochava. A salvação vinha da luzinha do candeeiro visto através da

janela da casa do caboclo tinhoso.

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A vítima(é melhor não fazer rodeios), apeava da mula e gritava:

-Ô, de casa! Peço pousada até o raiar do dia. Fiz viagem puxada.

-Pois, então, se aprochegue – dizia o Vitalino lambendo os beiços.

Afinal, a pousada mais próxima devia ficar a uns “trocentos”

quilômetros de distância.

O danado do Vitalino gritava para a mulher aprontar o quartinho de

hóspedes porque a cobra ia fumar naquela, digamos, madrugada. Ele

prosava um pouco com o ingênuo, ficava sabendo das boas novas

das redondezas e daí, cordialmente, dizia que a cama estava pronta

e o viajante poderia descansar em paz.

Quando o infeliz pegava no sono, o ritual começava.

Vitalino corria no mato e abria uma vala do tamanho suficiente para

acomodar um capiau. Voltava, entrava em casa de mansinho,

invadia o quarto do hóspede que dormia a sono solto e, de posse de

um punhal velho e conhecedor de muitos corações, desferia um

golpe certeiro no peito do dito cujo. Rapidamente, arrastava o corpo

até a vala, cobria tudo bonitinho e voltava para casa. Nisso, todos os

objetos de valor do defunto já lhe pertenciam. Revólveres, cinturão,

chapéu de couro, botas, mula, contos de Réis, santinho, aliança de

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ouro, pedras preciosas e o que mais fosse alvo da cobiça alheia. Ao

raiar o dia, o sol levantava preguiçosamente e aí era outra história.

Assim, o tempo corria e o chapadão ia ganhando novos moradores a

sete palmos sob o chão.

Vitalino seguia bem de vida e fanfarrão, até que certa noite, passava

por ali, inocentemente, montado em seu cavalo, ninguém menos que

seu Zé.

Para variar, a escuridão era quem dava as cartas naquele horário e

os olhos de seu Zé pesavam mais que chumbo.

Tantos pedaços de chão, tantas trilhas, tantos caminhozinhos

abertos a facão, mas não, seu Zé tinha que cutucar a onça com vara

curta. Tanto fez que pediu estada ao Vitalino, julgando-lhe um

honesto e pacato sertanejo. Apeou do cavalo, entrou na casa e

danou a prosar com o caboclo.

Desta vez, a conversa rendeu e seu Zé tomou conhecimento do

caráter daquele moço. Era mesmo uma raça ruim.

Vitalino lhe contou que no passado (poderia ter sido na noite

anterior) muitos “cabras” teimosos tinham partido desta para melhor

com sua eficiente assessoria. Ele contava suas vantagens e exibia

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seu punhal velho e enferrujado para seu Zé que assuntava a tudo de

orelha em pé.

A certa altura da conversa, como era de praxe, o Vitalino indicou a

seu Zé o colchão da morte. O leito derradeiro de um violeiro,

aparteador de brigas, sanfoneiro e temente a Deus.

Porém, como enuncia o velho ditado: um dia é da caça e o outro... O

tiro saiu, mesmo, foi pela culatra.

Seu Zé foi dormir, sim, mas o Vitalino, sem querer, agarrou no sono

também.

Quando rompeu a aurora, seu Zé assustou-se e levantou-se

rapidamente. A mesma coisa fez o Vitalino. O sobrevivente

perguntou quanto valia aquela acolhida e o algoz morrendo de raiva,

disse que não cobrava nada, era uma cortesia sua.

Então, seu Zé disse: “Até mais ver”, montou no cavalo e “picou a

mula”, escafedeu-se, soverteu por entre as árvores, sem olhar para

trás.

***

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Como seu Zé, o tempo corria a galope, O Vitalino continuava

enriquecendo e suas filhas estudavam e cresciam. Elas viraram

moças formadas.

Diz também o ditado: quem com ferro fere... Foi assim que Vitalino,

um beberrão incomparável, tendo conquistado vários inimigos por

causa do seu jeitão de todo poderoso, assinou sua sentença de

morte.

Aconteceu de ele ir curtir uma cachaça no arraial de seu costume.

Manuel, dono da vendinha, tinha-lhe como um excelente freguês de

fiado (o tipo que não paga nunca). Cobrar alguma coisa daquela peça

rara? Nem morto.

Vitalino, para lá de bêbado, invocou com três “cabras” que estavam

enfezados com ele há bastante tempo.

O negócio pegou fogo. Manuel escondeu-se atrás do balcão, Vitalino

sacou do facão e os três camaradas, desviando-se dos golpes,

cobriram ele de cacete. Bem que o danado resistiu, mas foi paulada

nas pernas, nas costelas, nos braços e na cabeça. Se foi justiça ou

não, o certo é que arregaçaram o Vitalino que tomou seu último

porre na Terra.

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Após esse episódio, não se ouvia mais falar de homens de bem que

sumiam sem deixar vestígios naquela região. Sobre aqueles que

morreram, os parentes começavam a se conformarem, achando que

eles tinham virado comida de onça ou tinham ido fazer vida nova

nalguma capital do Brasil. Quem haveria de saber?

Ocorre que nem tudo costuma ficar encoberto para sempre. As duas

filhas do Vitalino, herdeiras de tão sangrento espólio, tornaram-se

moças direitas e vistosas. Elas conheceram dois rapazes de boa

família em Almenara, começaram a namorar e os dois pares

acabaram se casando.

Seu Zé, por uma providencial coincidência, era muito amigo de um

do rapazes.

Numa tarde de sol lascando em Almenara, seu Zé prosava com seu

amigo acerca de amenidades quando o último saiu-se com essa:

- Seu Zé, o senhor não imagina o quanto meu sogro foi raça ruim. Eu

espero que a conversa fique sepultada entre nós, mas a Marilda,

minha esposa, contou-me tudinho sobre o sanguinolento Vitalino. Ela

me disse que ele era um assassino de mão cheia e, com a ajuda de

um velho punhal, matava todo coitado que se hospedava em sua

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casa no chapadão, roubava até dente de ouro que o morto tivesse e

enterrava o corpo no meio do mato. A minha sogra, coitada, sabia de

tudo, mas ficava caladinha e com medo de ter um fim parecido. Diz-

se que enquanto ele aprontava das suas, só dois hóspedes

conseguiram sair vivos.

- E como foi que eles conseguiram?-perguntou seu Zé.

-Bom, o primeiro, a minha sogra teve muita pena dele e, enquanto o

Vitalino cavava a sepultura, ela o acordou e pediu,

desesperadamente, que ele caísse no mato pelos fundos, sem fazer

perguntas.

-E o outro? – indagou seu Zé com os pelos eriçados.

- Bem, o outro teve sorte porque o Vitalino se cansou de esperar que

ele fosse dormir e quando foi, o tenebroso pegou no sono também.

Espero que o senhor não conte isso a ninguém...

Pode deixar – suspirou seu Zé.

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ssa uma daquelas histórias-contos-crônicas antológicas verbalizadas pelo lendário Seu Zé.

Particularmente o Seu Zé que eu conheço passa a léguas distantes do personagem que ouviu, vivenciou ou foi testemunha ocular de fatos de evidente realismo mágico. Penso que o escritor Gabriel Garcia Marquez ficaria de olhos arregalados e assuntando. Mas essa é outra história. Dizia-se que a certa altura da sua existência, o Indalécio decidiu não fazer mais absolutamente nada nessa vida tão cheia de oportunidades e opções para todos em qualquer lugar do mundo - e aqui eu incluo por conta própria o deserto do Saara. Aquele homem simplesmente se cansou de qualquer coisa e decidiu que passaria o resto da vida sem fazer mais nada, senão as necessidades básicas inevitáveis mesmo em Camp David nos EUA. A família pensou: e agora? Dia após dia ela seguia dando comida na boca do Indalécio temendo um falecimento prematuro. Alguns diziam que ele estava com o demônio (é bom conhecer melhor o significado dessa palavra) da preguiça, enquanto outros afirmavam que tudo não passava de safadeza premeditada. Uma boa sova de couro curtido o resgataria ao frescor da vida campestre. Qual nada. A cada dia a situação piorava. Cada vez menos pessoas estavam dispostas a servir ao Indalécio que fazia um excelente papel de pessoa inválida. Cansados de tanto fazer a vontade daquele caboclo e tendo pedido a ajuda de padres, bispos, pastores, pais de santo, benzedeiras, sem sucesso, a família decidiu tomar uma atitude bizarra e fora dos padrões sociais. Enterrariam o Indalécio vivo.

E

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O mais interessante foi que o caboclo sequer franziu a testa de preocupação. Ele recebeu a sentença da família com uma serenidade de fazer inveja a qualquer monge. Chegou o dia. Colocaram o corpo do Indalécio vivíssimo e sorridente numa rede amarrada pelas pontas num cabo de madeira conduzido por dois sertanejos que rezavam a Salve Rainha, O Pai Nosso e a Ave Maria. Numa derradeira tentativa de reverter aquela situação cinematográfica, alguns amigos de boemia do Indalécio pararam o cortejo e disseram que estavam dispostos a dar um alqueire de terra para ele morar, cultivar, colher e viver sossegado até a hora em que a morte o levasse por um motivo mais aceitável. Surpreso com tanta generosidade, Indalécio perguntou quem cuidaria de tudo e além de dar banho colocaria a comida prontinha na boca dele todos os dias. Estarrecidos com a condição imposta por Indalécio, os amigos disseram que a sobrevivência dependeria exclusivamente dele nesse sentido. Após uns poucos minutos de reflexão (isso o deixava ainda mais exausto), Indalécio suspirou e disse aos sertanejos: - Adiante. Podem tocar o enterro.

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ontinua Seu Zé com seu infindável arcabouço de histórias sobre a vida de um tempo que longe vai, antes da existência de muitas gerações.

Essa história quem lhe contou foi um fazendeiro idoso que costumava ir ao sítio do seu pai, principalmente, para almoçar e prosear até o sol se por num contexto em que livro, televisão, rádio e jornal eram “coisas” de uma imaginação fértil. Contou-lhe esse fazendeiro que outro fazendeiro idoso e muito rico vivia com um filho na flor da idade. Os outros filhos e sua esposa haviam falecido e ele optou por não se casar novamente. Bastante comum é os mais jovens viverem na boemia, principalmente se o pai é velho e rico. Aí é só gastar por conta e risco do pai, é claro. Quelezinho (curiosamente esse nome era bem comum em outros tempos), o filho jovem e cheio de vida andava do jeito que o diabo gosta: mulherada, festas regadas à cachaça, chegar em casa com o dia amanhecendo... e para completar ele vivia dizendo que todas as pessoas eram suas amigas. Aonde ele chegava era recebido com sorrisos, abraços, tapinhas nas costas, um fingimento que fazia gosto. Daí ele dizia pro pai que com tantos amigos como aqueles ele estaria sempre bem e ninguém jamais o deixaria na mão quando ele mais precisasse. Seu pai, um homem vivido, e coloca vivido nisso, não concordava com aquele ponto de vista típico de um jovem deslumbrado e iludido ao ponto de achar que a vida era só noitadas e “amigos” para ajudarem a queimar o dinheiro alheio. -Quelezinho, você tome tento. Se continuar nessa vida as pessoas vão te deixar no bagaço, sem um tostão e nem vão rir pra você depois. Vão te tratar pior que um animal.

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-Que nada pai, o senhor não sabe como eu sou querido nessa cidade. Todo mundo aqui me ama e eu sempre estarei numa boa com amigos assim. - Em todos esses anos eu só tenho um amigo de verdade nessa cidade. Se você acredita tanto nisso eu proponho que faça um teste. - Que teste? O pai mandou sacrificar um cordeiro, derramou todo o sangue do animal numa roupa clara do filho, pediu que ele a vestisse e, por volta da meia noite saísse de porta em porta contando que havia matado um inimigo em legítima defesa e precisava de um lugar para se esconder até o crime ser esquecido. O jovem rapaz fez exatamente como seu pai lhe ordenou. Ele perambulou por quase toda a cidade e nem os amigos mais chegados quiseram saber do seu drama. “Sinto muito” foram as duas palavras que ele cansou de ouvir seguidas por “não posso fazer nada por você.” Fulo da vida Quelezinho bateu numa última porta. Um senhor de barba e cabelos brancos o atendeu. Ouvindo o que ouviu e sabendo ser aquele rapaz filho de quem era o homem pediu que ele entrasse e se acomodasse num dos quartos. O dono da casa passou a mão num bacamarte, sentou-se e amanheceu esperando alguém aparecer para algum tipo de ajuste de contas. Nada. Pela manhã Quelezinho voltou pra casa, contou tudo ao pai sem saber que quem o acolheu foi o amigo do seu pai. Dessa forma o jovem aprendeu a lição e viveu feliz para sempre? Negativo. No dia seguinte Quelezinho voltou para a vida de antes ainda com mais furor. Ele pagava cafezinhos, rodadas de cerveja, jantares, perdia com alegria no carteado. Era o amigo que qualquer um pediu a Deus.

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Vendo que seu filho caminhava a passos largos para o precipício, aquele velho pai chamou um carpinteiro e pediu que ele fizesse um trabalho curioso numa das traves de madeira que sustentava o telhado colonial do casarão. O carpinteiro trabalhou por vários dias e deixou a trave oca de maneira que o pai do Quelezinho pode enfiar ali dinheiro, joias em prata e ouro e pedras preciosas. O rapaz sequer desconfiou do que aconteceu. Percebendo que sua hora de morrer chegara o velho pai chamou o Quelezinho e lhe disse: - Filho, vi que de nada adiantou a lição que lhe dei e sei que é muito difícil um jovem levar a vida que você está levando e quando ficar sem nada não desejar suicidar-se. Faço-lhe um último pedido: se em algum momento você chegar a esse ponto peço-lhe que pendure a corda naquela trave. Será menos vergonhoso para você (nesse ponto eu me lembrei do código de honra do povo japonês). Ao dizer isso o velho pai deu o último suspiro e morreu. Não demorou muito e Quelezinho transformou sua casa num puteiro grátis. Gastar dinheiro era com ele mesmo. Com o passar do tempo tudo foi acontecendo como o velho pai previra. Quelezinho foi conhecendo a face sinistra da degradação. O dinheiro foi acabando e até as putas foram se afastando. Chegou a um ponto em que, numa noite de chuva intensa ele precisou se acomodar no chiqueiro de um sítio por não haver quem lhe desse abrigo dada sua decadência sem elegância. Diante daquela humilhação o, ainda, jovem pensou que uma pessoa da sua qualidade não podia viver daquele jeito. Decidiu suicidar-se. Partiu para o casarão, agora, o retrato do abandono. Entrou na sala, fechou a porta e decidiu acabar rapidamente com aquela história. Ele amarrou a corda na trave como seu velho pai havia sugerido, subiu numa mesa, passou o laço no pescoço, deu o nó, fechou os olhos e saltou... a trave partiu-se, ele caiu pensando estar em outro mundo, mas ouviu tinir no chão joias e pedras preciosas, além do dinheiro

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que ficou esparramado no chão. Cismado, Quelezinho abriu os olhos, juntou tudo e começou a refazer a vida. Após tal episódio aquele rapaz decidiu parar de bancar os “amigos” para sempre.

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envolvimento do homem com Deus e o diabo ganhou um caráter de almanaque a partir da Idade Média, época em que qualquer um era suspeito de ter pacto com o demônio até que

se provasse o contrário. Na Idade Moderna, conta Seu Zé, um freguês de nome Coriolano queria ficar rico de qualquer maneira e descobriu que se fosse esperar por Deus teria que aprender extensas lições de humildade. Ele acabou apelando para o caminho mais rápido. Marcou um encontro com Satanás e pediu que ele providenciasse um daqueles contratos que muitos haviam assinado ao longo da História a fim de obter regalias e fortuna. Exímio negociador, o demo repassou todas as cláusulas do contrato e salientou que findado o prazo ali estabelecido o beneficiário deveria comparecer à fazenda do cessionário com as próprias pernas para pagar a dívida entregando a própria alma. Coriolano topou na hora. Ele assinou alegremente o contrato e partiu para a vida que pediu ao diabo. Rapidamente o beneficiário conquistou o respeito, a admiração e o medo de muitas pessoas na região. Sua fazenda era a mais requintada provocando inveja até no Prefeito e no Juiz de Paz da cidade. As autoridades da cidade coçavam a cabeça sem saberem aonde aquele cidadão conseguiu tanto dinheiro. As festas oferecidas por Coriolano em sua fazenda eram as mais badaladas. Fotografias eram publicadas nas colunas sociais. Os banquetes eram de abalar Paris. O tempo foi passando e o beneficiário foi tomando gosto por aquele estilo de vida, embora as “más” línguas afirmassem que aquilo tudo era resultado de um pacto com o “coisa ruim”. Numa noite de lua cheia(nunca entendi porque a lua cheia está relacionada às coisas maléficas se ela é só um satélite natural) o Coriolano deu uma festa. Por volta das vinte e duas horas, as pessoas “altas” e risonhas, chegou uma correspondência para o dono da casa. Com um frio na barriga Coriolano abriu e leu:

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“Prezado amigo, a validade do nosso contrato está chegando ao fim. Se você quiser uma espécie de bônus terá que enviar alguém no seu lugar com uma resposta escrita. Atenciosamente, Satã.”

Rapidamente Coriolano mandou parar a música e perguntou: - Quem aqui quer Dez Mil Réis para levar essa carta, agora, até à fazenda do meu compadre? Um caboclo embriagado levantou a mão, pegou o dinheiro, a carta e marchou para a fazenda aonde ele chegou meia noite em ponto, bateu na porta, uma figura sinistra pediu que ele entrasse para nunca mais sair. O homem desapareceu sem deixar vestígios. Passou mais um tempo, outra festa noturna e uma nova carta chegou relembrando os termos anteriores. -Quem quer Vinte Mil Réis para levar essa carta, agora, lá na fazenda de um compadre meu? E mais uma “vítima” se ofereceu para desaparecer sem saber os motivos. Os convidados ficavam cada vez mais “cabreiros” com aqueles sumiços misteriosos. E chegou a época de mais uma festa com convidados que vinham até das cidades vizinhas. Coriolano se divertia com as mulheres-damas, gargalhava, tomava vinho de boa safra, além de ser bajulado por todos. O empregado trouxe mais um envelope, sem remetente, entregue na varanda do casarão. O nervosismo tomou conta do dono da festa. Aquelas cobranças estavam passando dos limites. -Quem quer Trinta Mil Réis para levar uma carta numa fazenda a duas horas daqui? Modesto, um vaqueiro experimentado e muito religioso decidiu aceitar aquele desafio. Desde o primeiro momento em que pôs os pés fora da fazenda do Coriolano, o vaqueiro foi rezando o “Ofício de Nossa Senhora”, em

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voz alta, pelo caminho. Tudo que se via eram incontáveis estrelas “estalando” no céu e tudo que se ouvia era a “ópera” dos animais noturnos e o vaqueiro rezando sem parar. Ao chegar à fazenda descrita por Coriolano, um frio subiu pela espinha dorsal do vaqueiro. Mesmo assim, ele bateu na porta. Em meio à penumbra uma figura sinistra abriu a porta pela metade e gritou: - JOGA ESSA CARTA AÍ E DESAPAREÇA DAQUI! NINGUÉM PODE ENTRAR NESSA CASA FALANDO NO NOME DESSA MULHER. EU DETESTO ESSA MULHER! SOME DAQUI! Modesto picou, literalmente, a mula, quer dizer, o cavalo sem olhar para trás. Horas depois, para a surpresa geral, o Modesto apareceu no salão de festas do Coriolano que ficou branquinho feito um algodão ao ver o vaqueiro ali, perfeitinho. Modesto chamou Coriolano a um canto e contou-lhe o que acontecera. - Escuta, eu lhe dou mais 10 Mil Réis para você ficar calado sobre esse meu segredo. Feito. Modesto foi embora “montado” na grana. Meio sem graça, Coriolano foi se esquivando do salão e, à francesa, entrou em seu quarto fechando a porta atrás de si. Pela manhã, ninguém deu notícias do célebre cidadão. O homem

desapareceu sem deixar um bilhete para contar a história.

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ssa primeira década do Século Vinte Um tem se firmado como a década da maxi-informação. No campo da filosofia sobressai a teoria da desconstrução de tudo. A obsessão é fazer alguém saber o que está “pegando” por mais irrelevante que isso seja.

Alguém já disse que se tudo é teatro, então nada é teatro. Tal comparativo pode ser aplicado ao fator comunicação: se tudo é informação nada é informação.

Há pouco eu soube pelos noticiários que um avião caiu numa escala Polônia-Rússia matando grande parte do primeiro escalão polonês de uma só vez, incluindo o ex-atual presidente e a ex-primeira dama desse país. Um acidente devastador. Nem os mais ardilosos terroristas da face da Terra lograriam tamanho sucesso. Só falta alguma facção em busca de publicidade mundial assumir a autoria da tragédia. A princípio sabe-se que o avião presidencial tinha mais de vinte anos de uso e enfrentou denso nevoeiro antes da queda.

Para quem enxerga conspiração em qualquer coisa essa foi só mais uma ação dos Illuminati, um grupo que vem dominando o mundo à revelia do resto da humanidade. Provavelmente vários videntes previram esse “acidente”, mas só depois o resto da humanidade tomará conhecimento. Justo a Polônia do Papa João Paulo II.

Fosse outra época uma frota de aviões poderia cair mais ao leste do mundo que nós, os latino-americanos saberíamos do ocorrido como uma espécie de lenda por ouvir dizer.

Seu Zé, ou o senhor meu pai, conta que quando o dirigível Zeppelin sobrevoou por Minas Gerais (eu realmente fiquei surpreso ao saber disso, pois jamais imaginei que o Zeppelin passaria por Minas Gerais), as pessoas que moravam na roça interpretaram aquela visão como o fim do mundo. Conta ele – e isso não é lenda, mas fato verídico não noticiado – que uma senhora que assava biscoitos num

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daqueles fornos artesanais pensando ser o Zeppelin uma espécie de vingança de Deus enfiou a cabeça no forno e morreu ali mesmo. Outro senhor pensando que o dia do Juízo Final chegara passou a mão no facão e saiu cortando toda a sua plantação de bananas antes da colheita. Outras pessoas perderam o juízo de vez, aliás, segundo Seu Zé o que mais se via era gente perdendo o juízo naqueles tempos. Qualquer semelhança com o tempo atual não é mera coincidência. Naturalmente quem estava dentro do dirigível sequer imaginou ou foi informado que uma grande tragédia aconteceu naquelas roças de Minas Gerais. Tudo que eles podiam ver do alto era uma mata exuberante, boizinhos, vaquinhas e cavalinhos pastando.

Tudo que fiquei sabendo pelos livros de História e em documentários em preto e branco exibidos na televisão foi que num belo dia, quer dizer triste dia o Zeppelin, que entrou definitivamente para a História, pegou fogo como palha matando várias pessoas que se preparavam para mais um passeio por paisagens deslumbrantes. Deve ter sido tudo armação dos Illuminati. Vai saber.

Sobre a passagem do famoso dirigível por Minas Gerais (se é que passou) fiquei sabendo do fato por ouvir dizer.

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Entre faca e facões

egundo a Wikipédia, a enciclopédia livre da Internet, o rio da Prata é o principal afluente do Rio Tijuco, na bacia do Paranaíba, Minas Gerais. Tem sua nascente formada pelos Rios

do Peixe e Piracanjuba, no município de Prata, e deságua no Tejuco próximo à sua foz com a represa de São Simão (Rio Paranaíba). Percorre seis municípios do triângulo mineiro: Prata, Campina Verde, Ituiutaba, Gurinhatã, Santa Vitória e Ipiaçu. Após essa sessão geográfica mineira passemos aos fatos. Que Seu Zé era festeiro, nós já sabemos. Que ele era convidado para tocar em festas também sabemos. O mais espantoso era a sua musicalidade de ouvido. Ele tocava instrumentos musicais como gaita, sanfona, viola e violão sem tomar conhecimento de qualquer uma das sete notas. Autodidata seria o adjetivo que melhor lhe caberia. Mas o tempo, ah, o tempo pode transformar uma pessoa radicalmente. Pois foi nessas circunstâncias que os fatos aconteceram. Estava Seu Zé a tocar viola tranquilamente, melhor dizendo, animadamente quando quatro homens disposto a atrapalharem a diversão surgiram na festa. Se bem que eles vinham marcando Seu Zé havia algum tempo devido a sua fama no local. Eles estavam em São José da Prata, cidade que mudou de nome, vindo a ser a famosa Sacode. Foi a conta de eles chegarem e Seu Zé parar de tocar, agradecer a todos e dizer que precisava se retirar. Para quê? Essa foi a desculpa que eles precisaram para iniciarem uma batalha. - Qual é baiano, tu tá de saída só por que chegamos? Que covardia é essa? Seu Zé passou a mão na parte de trás da cabeça e retrucou: -Será que eu ouvi alguém falar em covardia? Se bem que ele não estava armado. Quer dizer, ele tinha uma faca peixeira, enquanto seus adversários estavam munidos de facões meia espada. Tomado sabe-se lá por que tipo de coragem, Seu Zé puxou da sua faca e disse: - Se é o que querem, então, vamos!

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E saltaram para a escuridão noturna. O sujeito que lhe provocara na saída foi o primeiro a desferir seus golpes, enquanto os parceiros ficaram de lado observando. Seu Zé reagia defendendo-se com a faca virada sobre seu punho. O barulho metálico era acompanhado por faíscas de fogo que saiam provocadas pelo impacto das lâminas. O adversário de Seu Zé estava decidido a fatia-lo. E saltavam e subiam em pedras e se desviavam de golpes. Eles imprimiram um ritmo de ataque-defesa-ataque assombroso. Em alguns momentos eles pareciam levantados do chão tal a dinâmica do duelo. Numa fração de segundos, Seu Zé percebeu que sua faca teve a ponta decepada devido à fúria dos golpes recebidos. Enquanto aquele homem rodava o facão no alto, Seu Zé enfiou um pedaço de faca no pescoço dele e pensou: “Esse está morto”. Surpreso com aquele golpe, o homem do facão cessou os ataques, talvez achando que tinha mesmo sido ferido de morte. Nisso, dois dos quatro comparsas desistiram do combate achando que a morte tinha entrado em ação por aquelas bandas. Enquanto o primeiro homem dava uma trégua, o segundo partiu para cima de Seu Zé disposto a acabar de vez com aquela história. Só que dessa vez Seu Zé desferiu-lhe vários golpes de faca quebrada fazendo-lhe desistir dos ataques. Meio anestesiados, os dois caboclos foram se retirando daquele cenário tomado pelo silêncio da madrugada. Seu Zé encostou-se a uma pedra e esperou a manhã chegar. Ao raiar o dia, sentindo seu braço direito dormente de tanto sustentar golpes mortais, Seu Zé se dirigiu às margens do rio da Prata e ali arremessou sua faca quebrada nas águas. Diz a lenda que após aquele combate Seu Zé parou de usar qualquer arma de fogo ou ferro frio.

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O autor por si mesmo

Antes de ser um prazer, escrever é um perigo e um

risco que sempre gostei de correr.

Escrevendo vou praticando a terapia no divã do mundo

sem a famigerada obrigação da perfeição. Escrevo sem a

obrigação de competir.

A amizade que consegui estabelecer com as palavras

vem moldando a minha relação com o mundo ao meu

redor(família, amigos, colegas) e aquele mais distante.

Assuntar, assuntar e se expressar. A palavra é a

tecnologia mais musical que conheço. Uma música atraente

é uma história que aceitamos ouvir, seja sinfonia ou cacofonia.

Nada está pronto. Tudo está por fazer. Comece imaginando.

Contatos:

[email protected]

Telefone: (031) 85933081

Figura 1 Lecy e Jonas Pereira(filho)