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Julho, 2013 Tese de Doutoramento em História, Especialidade em História Contemporânea CATÓLICOS E POLÍTICA NA CRISE DO LIBERALISMO: O PERCURSO DE ANTÓNIO LINO NETO (1873-1934) João Miguel Furtado Ferreira d’Almeida

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Julho, 2013

Tese de Doutoramento em Histria,

Especialidade em Histria Contempornea

CATLICOS E POLTICA NA CRISE DO LIBERALISMO:

O PERCURSO DE ANTNIO LINO NETO (1873-1934)

Joo Miguel Furtado Ferreira dAlmeida

Julho, 2013

Tese de Doutoramento em Histria,

Especialidade em Histria Contempornea

CATLICOS E POLTICA NA CRISE DO LIBERALISMO:

O PERCURSO DE ANTNIO LINO NETO (1873-1934)

Joo Miguel Furtado Ferreira dAlmeida

Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessrios obteno do grau de

Doutor em Histria, especialidade em Histria Contempornea, realizada sob a

orientao cientfica do Professor Doutor Fernando Jos Mendes Rosas

Apoio financeiro da FCT e do FSE no mbito do III Quadro Comunitrio de Apoio

AGRADECIMENTOS

Esta tese devedora da troca de ideias, das crticas e do apoio de muitas pessoas a quem desejo expressar o meu reconhecimento.

Comeo por agradecer ao meu orientador, Prof. Doutor Fernando Rosas, a sua disponibilidade e comentrios crticos.

O Centro de Estudos de Histria Religiosa da Universidade Catlica Portuguesa foi para mim um importante espao de reflexo sobre o papel do religioso na Histria portuguesa contempornea. O Prof. Doutor Antnio Matos Ferreira incentivou-me na investigao histrica e muito devo s pistas e prtica de reflexo que encontrei junto dele e do Prof. Doutor Paulo Fontes. Em trabalhos de investigao relacionados com a temtica da minha tese de doutoramento beneficiei do trabalho de outros investigadores: Mestre Srgio Ribeiro Pinto, Mestre Rita Mendona Leite e Mestre Marco Silva. Um agradecimento especial devido ao Dr. Jos Antnio Rocha pelo apoio logstico que prestou realizao destes trabalhos.

A Histria do catolicismo portugus s faz sentido como uma vertente da Histria da sociedade portuguesa. O meu trabalho de investigao foi enriquecido pelas sugestes e reflexes de diversos investigadores ligados ao Instituto de Histria Contempornea. Agradeo ao Prof. Doutor Ernesto Castro Leal, Doutora Maria Alice Samara, Mestre Ana Catarina Pinto e Doutora Ana Paula Pires. Doutora Rita Almeida de Carvalho agradeo a disponibilidade e a amizade.

Ao Prof. Doutor Lus Salgado de Matos uma palavra de agradecimento pelas sugestes para identificar e aproveitar como fonte o material iconogrfico.

Uma tese de doutoramento em Histria no possvel sem a consulta de fontes. Muito devo a arquivistas. Quero expressar o meu agradecimento ao Dr. Lus Lima, o organizador meticuloso do Arquivo Antnio Lino Neto; ao meste Jorge Revez, que comigo empreendeu uma primeira abordagem ao esplio do professor Antnio Lino Neto; Dra. Margarida Srvulo Correia, que me disponibilizou a correspondncia entre o padre Neves Correia e Antnio Lino Neto, ainda antes de ser publicada; ao Dr. Ricardo Aniceto e Dra. Teresa Ponces do Arquivo Histrico do Patriarcado de Lisboa. Agradeo tambm a Albano Martins, do INE, os esclarecimentos sobre o papel de Antnio Lino Neto nos servios de estatstica em Portugal.

Para compreender a personalidade de Antnio Lino Neto foi para mim importante o testemunho de sua filha, Maria Matilde de Mendona Lino Neto Sampaio Maia, a quem devo uma palavra de agradecimento sincero pela sua enorme disponibilidade. Agradeo a D. Manuel Clemente o interesse por este estudo e os contactos que me proporcionou.

Diversas pessoas me apoiaram para levar at ao fim este projecto, cujas dificuldades no resultaram s dos problemas de consulta de fontes, interpretao e escrita. Agradeo a Agostinho Ferreira dAlmeida, Maria Lenia Ferreira dAlmeida, Maria Cristina Clmaco, Jos Leito e Maria de Lurdes de Albuquerque. A apresentao do texto final da tese devedora do contributo luminoso da Prof. Doutora Filipa Afonso.

Ana Teresa Clmaco Leito devo mais do que podem as palavras. Nomeio aqui o interesse, os comentrios crticos, as implacveis revises de texto. Ao nosso filho, Rodrigo Miguel, tambm muito devo, apesar de ele no o saber e precisamente por no o saber.

CATLICOS E POLTICA NA CRISE DO LIBERALISMO: O PERCURSO DE ANTNIO LINO NETO (1873-1934)

Joo Miguel Furtado Ferreira dAlmeida

Palavras-chave: Antnio Lino Neto, Centro Catlico Portugus, Igreja Catlica, catolicismo poltico, Estado portugus. Resumo: A presente tese analisa o pensamento e aco de um dirigente catlico, Antnio Lino Neto (1873-1961), no contexto das relaes entre o Estado portugus e a Igreja Catlica na crise do liberalismo iniciada na ltima dcada do sc. XIX e que conhece um desfecho com a instaurao do Estado Novo na dcada de 1930. A interveno pblica de Antnio Lino Neto contextualizada nas fases polticas que o Estado portugus atravessa ao longo da crise do liberalismo: monarquia constitucional, I Repblica, ditadura militar e Estado Novo. As dinmicas polticas catlicas em Portugal so abordadas tendo em considerao a evoluo poltica nacional, as relaes Igreja Catlica/Estado e as mudanas de orientao dos pontificados de Leo XIII, Pio X, Bento XV e Pio XI. Antnio Lino Neto foi um homem institucional: professor catedrtico de economia poltica desde 1908 e presidente do Centro Catlico Portugus de 1919 a 1934. No perodo da Repblica do ps Grande Guerra foi um protagonista do catolicismo poltico que procurou secundarizar a questo do regime, distinguindo entre a obedincia aos poderes constitudos e a crtica legislao injusta. Foi perdendo relevncia no contexto da emergncia de um poder autocrtico que, em regime formal de separao entre Estado e Igreja, reconhecia o valor social do catolicismo e se entendia directamente com uma hierarquia catlica cujo poder sobre a organizao eclesistica foi reforado ao longo do perodo em anlise. Keywords: Antnio Lino Neto, Centro Catlico Portugus, Catholic Church, political Catholicism, Portuguese State Abstract: This thesis analyses the thought and action of a catholic leader, Antnio Lino Neto (1873-1961), within the context of the relationships between the Portuguese State and the Catholic Church, during the crisis of liberalism, which started in the last decade of the 19th century, and ended with the establishment of the New State in the 1930s. The public intervention of Antnio Lino Neto is framed within the political periods that the Portuguese State went through, throughout the crisis of liberalism: constitutional monarchy, First Republic, military dictatorship, and the New State. The Catholic political dynamics in Portugal are issued, taking into account the national political evolution, the relations between the Catholic Church and the State, as well as the changes of direction occurring at the pontificates of Leo XIII, Pius X, Benedict XV, and Pius XI. Antnio Lino Neto was an institutional man, full professor of political economics since 1908, and president of the Centro Catlico Portugus, from 1919 to 1934. In the period of the post-world war Republic, he held a leading role in the political Catholicism, which endeavoured to put in second place the question of the regime, by distinguishing the obedience towards the ruling powers from the criticism of unjust legislation. Gradually, Antnio Lino Neto lost his relevance within the context of the emergence of

an autocratic power that, under formal separation between State and Church, recognized the social value of Catholicism, and that got along with a Catholic hierarchy whose power over the ecclesiastical organization was strengthened during the period under consideration.

ndice

Introduo .................................................................................................................................... 1

Histria e biografia ................................................................................................................... 2

Os conceitos de catolicismo poltico e crise do liberalismo ..................................................... 8

Da monarquia constitucional Repblica .............................................................................. 12

A ditadura militar .................................................................................................................... 14

O movimento catlico na crise do liberalismo ........................................................................ 15

Antnio Lino Neto originalidade e representatividade de um percurso .............................. 24

Bibliografia e fontes sobre Antnio Lino Neto ........................................................................ 25

I A construo de uma imagem pblica e a formao de uma personalidade .................. 29

1.1. O perfil pblico de um cidado e militante catlico ........................................................ 29

2.1.1. Baluarte da f ou catolaico? ...................................................................................... 31

1.2. O tempo e as circunstncias da formao de Antnio Lino Neto .................................. 45

1.2.1. Fragilidades e crise do liberalismo oligrquico em Portugal ........................................ 45

1.2.2. O movimento catlico portugus face ao liberalismo da monarquia constitucional ..... 52

1.3. O nascimento de Antnio Lino Neto em Mao .............................................................. 63

1.4. A famlia .............................................................................................................................. 67

1.5. A formao .......................................................................................................................... 68

1.5.1. O seminrio de Portalegre e os exames liceais .............................................................. 68

1.5.2.Os estudos universitrios em Coimbra ........................................................................... 69

1.5.2.1. Ambiente intelectual e sociabilidades culturais na Universidade .......................... 76

II Incio da vida activa numa cidade de provncia .............................................................. 83

2.1. De Coimbra a Portalegre ................................................................................................... 83

3.1.1. Encontro em Portalegre com Antnio Sardinha ............................................................ 86

2.2. Um discpulo de Frederico Laranjo? ................................................................................ 87

2.3. Os primeiros passos de um publicista: contra a decadncia portuguesa, regenerar a Igreja Catlica e a nao .......................................................................................................... 90

2.4. Um poltico do Partido Progressista em tempos de crise do rotativismo .................... 108

III A vida na capital de uma monarquia em xeque ........................................................... 117

3.1. Sucesso profissional e inactividade poltico-partidria ................................................. 117

3.2. O professor de economia poltica .................................................................................... 121

3.2.1. A Questo Agrria e os Estudos de renascena nacional ........................................ 122

3.3. As polmicas acerca da interveno poltica dos catlicos e a dinmica democrata-crist ......................................................................................................................................... 141

3.3.1. Um catlico activo nas Obras do Congresso ............................................................... 145

IV Na Repblica Velha - da incerteza aco ............................................................... 155

4.1. A revoluo de Outubro a Repblica Velha de 1910-1914 ....................................... 155

4.2. Reservas de um catlico face Repblica e de um cidado face aos partidos polticos ................................................................................................................................................... 181

4.3. O concurso para professor catedrtico na Escola Politcnica e a projeco pblica de Antnio Lino Neto ................................................................................................................... 186

4.4. O advogado de causas cvicas .......................................................................................... 199

4.5. Paulo Agostinho e a recomposio do movimento catlico na I Repblica ............ 204

4.6. A Repblica e os catlicos numa Europa em guerra .................................................... 221

4.6.1. Os primeiros passos da Unio Catlica e do Centro Catlico ..................................... 231

4.6.2. A interveno na Grande Guerra: catolicismo e nacionalismo. .................................. 234

V Um catlico na Repblica Nova de Sidnio Pais ........................................................... 239

5.1. O Presidente-Rei e um novo lugar na Repblica para a Igreja Catlica ................ 239

5.2. Um municipalista eleito vereador de Lisboa .................................................................. 248

5.3. A entrada de Antnio Lino Neto para a cmara dos deputados .................................. 253

VI O Presidente do Centro Catlico Portugus na Repblica do ps Grande Guerra.. 259

6.1. Agonia da Repblica no ps Grande Guerra e crise do sistema liberal ...................... 259

6.2. Os dirigentes centristas e as respostas ideolgicas crise do liberalismo ................... 266

6.2.1. Antnio Lino Neto perante a crise do liberalismo ...................................................... 266

6.2.2. A nova gerao do CADC e os intelectuais catlicos em ruptura com a cultura liberal ............................................................................................................................................... 269

6.3. A reorganizao do Centro Catlico Portugus (1919-1922) sob a presidncia de Antnio Lino Neto ................................................................................................................... 272

6.3.1. Antnio Lino Neto no Congresso do CCP de 1921 .................................................... 291

6.3.2. O CCP procura enraizar-se na sociedade portuguesa .................................................. 295

6.3.3. A participao nas eleies legislativas de 1921 ......................................................... 299

6.3.3.1. Salazar como deputado centrista .......................................................................... 307

6.3.4 A sistematizao do programa do CCP ........................................................................ 312

6.3.5. O regresso de Lino Neto ao parlamento nas eleies de 1922 .................................... 314

6.3.6. O projecto Lino Neto e a reviso da Lei da Separao ........................................... 318

6.3.7. O II Congresso Nacional do CCP e a interveno de Antnio Lino Neto .................. 334

6.4. O lder da minoria catlica num processo de polarizao poltica e o smbolo de um ralliement contestado pelos catlicos monrquicos manuelistas (1922-1925) .................... 346

6.4.1. A intensificao do conflito entre centristas e monrquicos manuelistas e a aproximao ao CCP dos integralistas lusitanos ................................................................... 346

6.4.2. A hierarquia catlica face s tenses entre catlicos: mediaes e esclarecimento de posies ................................................................................................................................. 351

6.4.3. Os sintomas novos e velhos do PRP face Igreja Catlica e ao CCP .................... 354

6.4.4. O nncio Locatelli entre o reconhecimento republicano e o fogo dos monrquicos manuelistas ............................................................................................................................ 357

6.4.5. A separao de campos entre Antnio Lino Neto e Nemo ou o conflito entre duas estratgias poltico-religiosas de catlicos ............................................................................ 359

6.4.6. A interveno parlamentar de Antnio Lino Neto em defesa da Igreja Catlica e da moral ..................................................................................................................................... 363

6.4.7. A interveno parlamentar de Antnio Lino Neto em nome da ptria e das competncias ..................................................................................................................... 370

6.4.8 Antnio Lino Neto e Nemo face problemtica da descrena e da converso: o caso Guerra Junqueiro ................................................................................................................... 379

6.5. O Presidente do Centro Catlico Portugus e a queda da I Repblica (1925-1926) .. 381

6.5.1. O CCP nas ltimas eleies da I Repblica e perante a recomposio partidria ....... 381

6.5.2. Um advogado da Igreja Catlica no parlamento ..................................................... 383

6.5.2.1. Negociaes e impasse em torno do reconhecimento da personalidade jurdica da Igreja Catlica. .................................................................................................................. 385

6.5.3. A interveno de um parlamentar em nome de um governo de competncias ....... 390

VII Um catlico na transio da ditadura militar para o Estado Novo (1926-1934) ..... 393

7.1. O derrube da I Repblica e a evoluo da ditadura militar ..................................... 393

7.1.1. Antnio Lino Neto como porta-voz de expectativas e reservas dos catlicos face ditadura militar. ..................................................................................................................... 398

7.1.2. Colaborao tcnica dos centristas com a ditadura militar e reorganizao do movimento catlico ............................................................................................................... 405

7.1.3. A colaborao poltica do Centro Catlico Portugus com a ditadura e o papel de Antnio Lino Neto ................................................................................................................ 412

7.1.3.1.Mudanas na Igreja Catlica: o acordo sobre o Padroado do Oriente e a eleio de Cerejeira como cardeal patriarca ....................................................................................... 424

7.2. A agonia do Centro Catlico Portugus (1930-1934) .................................................... 425

7.2.1. A criao da Unio Nacional e o debate em torno do sentido e destino do CCP ........ 425

7.2.2. O papel doutrinrio de Antnio Lino Neto e os desafios da secularizao e do comunismo ............................................................................................................................ 436

7.2.2.1. O projecto de cristianizao do CCP face s outras confisses religiosas ........... 436

7.2.2.2. Otten e as questes de doutrina poltica ........................................................... 437

7.2.3. A demisso de Antnio Lino Neto de presidente do CCP .......................................... 439

Concluses ................................................................................................................................ 451

Fontes e Bibliografia ............................................................................................................... 461

Anexos ...................................................................................................................................... 481

Anexo n.1 Soneto sobre a figura pblica de Antnio Lino Neto ............................. 481

Anexo n.2 Caricaturas de Antnio Lino Neto .......................................................... 483

Lista de siglas e abreviaturas

AALN Arquivo Professor Antnio Lino Neto

ACAP Associao Central da Agricultura Portuguesa

AHPL Arquivo Histrico do Patriarcado de Lisboa

ASC/ENC Arquivo Srvulo Correia/ Esplio Neves Correia

ASV Arquivo Secreto do Vaticano

AUC Arquivo da Universidade de Coimbra

CADC Centro Acadmico da Democracia Crist

CEHR Centro de Estudos de Histria Religiosa

CCARC Comisso Central para a Assistncia Religiosa em Campanha

CCO Crculo Catlico de Operrios

CCP Centro Catlico Portugus

CEP Corpo Expedicionrio Portugus

CGT Confederao Geral do Trabalho

CSE Conselho Superior de Estatstica

FCSH Faculdade de Cincias Sociais e Humanas

FNR Federao Nacional Republicana

JCL Juventude Catlica de Lisboa

PNR Partido Nacional Republicano

PPI Partido Popular Italiano

PRL Partido Republicano Liberal

PRP Partido Republicano Portugus

PSP Partido Socialista Portugus

UCP Universidade Catlica Portuguesa

UIE Unio dos Interesses Econmicos

UON Unio Operria Nacional

UN Unio Nacional

ULR Unio Liberal Republicana

1

Introduo

A presente tese tem como objecto a vida pblica de Antnio Lino Neto (1873-

1961) na dupla qualidade de dirigente catlico e poltico, desde o final da monarquia

constitucional a 1934, ano em que se demite de Presidente do Centro Catlico

Portugus (CCP) e o regime do Estado Novo se consolida. Antnio Lino Neto foi uma

personalidade at anos recentes pouco estudada e conhecida pela historiografia, apesar

dos lugares que ocupou em vida: professor catedrtico de economia poltica desde 1908;

deputado, vice-presidente e presidente da cmara dos deputados no tempo de Sidnio

Pais; presidente do Centro Catlico Portugus de 1919 a 1934; director do semanrio A

Unio, peridico oficial do CCP, de 1920 a 1934; advogado. Alm de ter ocupado

lugares de relevo, Antnio Lino Neto era conhecido e lido pela opinio pblica ilustrada

da I Repblica, sendo frequentemente referido em pequenas notcias ou entrevistado nas

primeiras pginas de jornais, no s catlicos, como o Novidades, mas tambm de A

Capital, O Sculo, o Dirio de Lisboa, entre outros.

A primeira questo que nos colocmos e que condicionou a escolha do nosso

objecto foi: por qu este esquecimento, por vezes atenuado por uma memria

fragmentada, em parte distorcida? A nossa hiptese de pesquisa foi que este

esquecimento se deveu ao facto do percurso de Antnio Lino Neto no se encaixar

facilmente em nenhuma das memrias polticas construdas aps a instaurao do

Estado Novo: nem na memria do salazarismo que recalcava as tentativas de

reconciliao entre a I Repblica e a Igreja Catlica no perodo da nova Repblica do

ps Grande Guerra, ou o facto de alguns catlicos pretenderem conservar uma

organizao poltica autnoma, recusando a dissoluo poltica na Unio Nacional; nem

na memria do republicanismo apostado em derrubar a ditadura, pois Antnio Lino

Neto no ocupou cargos polticos no Estado Novo, nem enveredou pela oposio

poltica. A dificuldade em construir um discurso acerca do trajecto poltico e religioso

de Antnio Lino Neto, no impediu gestos de estima e considerao por essa

personalidade num e noutro campo. Como exemplo, citem-se o carto de agradecimento

de Marcello Caetano pelo envio do seu livro sobre economia poltica, em 1935, ou a

presena de Mrio Soares no seu funeral, em 1961.

A construo poltica de esquecimentos, talvez mais do que a construo de

memrias, evidencia que a ordem poltica e social resulta de um processo no linear, em

que a par de continuidades encontramos descontinuidades, a par de coerncias,

2

mudanas estratgicas e recomposio de alianas, ou seja, sublinha o carcter

contingente da aco humana e a necessidade que os agentes histricos tm de lhe dar

um sentido.

O discurso historiogrfico, ao tentar superar as memrias e as lacunas com que

se confronta, no pode no entanto cair na ingenuidade positivista de opor somente

factos objectivos aos outros discursos. Quem ensaia a escrita da Histria deve estar

ciente de que o seu objecto tambm construdo, com uma outra inteno, a da

compreenso do passado, e outros mtodos. Como adverte um editorial dos Annales,

Un article ou un livre dhistoire nest pas une reproduction rduite du rel, mais

lexpression dune structure qui en dissout lopacit en fonction dhypothses initiales

et des rgles exprimentales, pralables. Construction rvisable, donc, partir de

principes dintelligibilits ou de mthodes nouvelles. Mais construction dtermine

puisque les propositions qui la constituent doivent la fois ne pas entrer en

contradiction avec les donnes disponibles et rpondre des principes de cohrence

interne1.

Histria e biografia

A relao entre Histria e biografia nem sempre foi pacfica no sculo XX e

alguns dos historiadores e das escolas historiogrficas mais empenhadas em afirmar o

carcter cientfico da sua disciplina, como a dos Annales, contriburam para colocar o

gnero biogrfico nas margens da Histria, ao privilegiarem o estudo do colectivo em

relao ao individual, a anlise quantitativa em relao qualitativa, o ensaio em

relao narrativa. Obras como a biografia de Lutero por Lucien Febvre foram

excepes no tempo em que foram publicadas. As palavras que o autor escreveu no

prefcio primeira edio de Martinho Lutero. Um Destino continuam vlidas num

tempo em que o gnero biogrfico entrou na moda editorial: Desenhar a curva de um

destino que foi simples mas trgico; descobrir com preciso os vrios pontos

verdadeiramente importantes por onde ela passou; mostrar como, sob presso de

algumas circunstncias, o mpeto inicial devia enfraquecer e inflectir o trao primitivo;

colocar assim, a respeito de um homem de uma vitalidade singular, o problema das

1 Annales. conomies, Socits, Civilizations, n.6, Novembre-Dcembre 1989, p. 1321.

3

relaes do indivduo e da sociedade, da iniciativa pessoal e da necessidade social, que

, talvez, o problema capital da histria: tal foi o nosso propsito2.

O silncio acadmico em relao ao gnero biogrfico quebrado na dcada de

1980, na qual no so apenas publicados vrios ttulos biogrficos importantes escritos

por acadmicos3, como tambm artigos que visam reabilitar ou levantar objeces

biografia. Marc Ferro publicou em 1989 um artigo intitulado La biographie, cette

handicape de lhistoire. Nesse artigo identifica as fragilidades e o valor do gnero

biogrfico: Aux yeux de linstitution comme aux yeux de linstitution scientifique, la

biographie est deux fois vulnrable: elle dvoile le rapport de la vie prive et de

lhomme public, et le diagnostic quelle donne demeure alatoire. Or, la biographie

rpond une demande sociale; le sens commun attend de lhistoire quelle rende

intelligible le systme politique et social dans lequel nous vivons; et les citoyens savent

bien, dexprience, que les individus, en tant que tels, exercent un rle quil est

ncessaire dapprcier4. Acerca da atitude do bigrafo em relao ao biografado, Ferro

sublinha que esta no dever ser de advogado nem de juiz, mas de historiador5.

Apesar da consagrao acadmica do gnero biogrfico ainda no ser bvia no

final da dcada de 1980, Pierre Bourdieu critica a nova tendncia logo em 1986 e a

iluso biogrfica que ela implica, vendo-a como uma ameaa para as cincias sociais:

Lhistoire de vie est une de ces notions du sens commun qui sont entres en

contrebande dans lunivers savant6. A sua crtica incide sobre a pretenso de contar

uma histria de vida partindo do pressuposto de que esta constitui um todo coerente e

direccionado. Uma iluso que se manifesta no recurso a expresses como j, desde

ento, desde muito jovem, as quais indicam um senso comum construdo sobre um

trajecto biogrfico. Ou ento a adeso ao conceito sartriano de projecto original.

Tanto num caso como noutro a biografia seria capaz de identificar o incio de um

projecto e o seu fim coincidente com o do biografado, a razo de ser de uma vida. Em

ambos os casos a biografia estaria ao servio de um exerccio ideolgico que consistiria

2 Lucien Febvre, Martinho Lutero. Um Destino, Lisboa, Livraria Bertrand, 1976, p. 9-19. 3 Para um panorama das diversas facetas do gnero biogrfico, com particular incidncia no mundo editorial francs, ler Franois Dosse, Le Pari Biographique. crire une vie, Paris, ditions la Dcouverte, 2005. 4 Marc Ferro, La biografie, cette hadicape de lhistoire. Retracer la vie dun individu nintresse gure les historiens. Du hros comme mal-aim in Magazine Littraire, n. 264 (Avril 1989), p. 86. 5 Marc Ferro, La biografie..., p. 86. 6 Pierre Bourdieu, LIllusion biographique in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 62-63, Juin 1986, p. 69.

4

em dar coerncia a certos acontecimentos significativos, seleccionados segundo uma

determinada inteno7.

Uma primeira questo que a crtica de Bourdieu nos coloca saber se ela,

visando as biografias individuais, no atinge a prpria legitimidade de uma narrativa

historiogrfica, qualquer que seja o seu objecto. Como sublinha Jacques Rancire, a

narrativa histrica precisa de protagonistas, sejam estes individuais ou colectivos,

sociais ou geogrficos: () les matriaux se sont rien sans larchitecture. ()

lhistoire nest, en dernire instance, susceptible que dune seule architecture, toujours

la mme: il est arriv une srie dvnements tel ou tel sujet. On peu choisir dautres

sujets: la royaut au lieu des rois, les classes sociales, la Mditerrane ou lAtlantique

plutt que les gnraux et les capitaines. A falta de coerncia e de totalidade que

Bourdieu descortina na histria de um indivduo8, no pode tambm afectar a histria de

um partido, de uma igreja, de um regime?

O ensaio de Bourdieu no conclui por uma negao peremptria da possibilidade

do empreendimento biogrfico, mas esboa as condies da sua viabilidade, em termos

que, em nossa opinio, tambm seriam aplicveis a sujeitos colectivos: on ne peut

comprendre une trajectoire () qu condition davoir pralablement construit les tats

successifs du champ dans lequel elle sest droule, donc lensemble des relations

objectives qui ont uni l agent considr () lensemble des autres agents engags

dans le mme champ et affronts au mme espace des possibles9.

Em Portugal, a biografia histrica conquista o campo acadmico nos anos de

1990 e tem um significativo impacto editorial junto do grande pblico na primeira

dcada do sculo XXI. Em reaco ao que considera um fenmeno de moda, Antnio

Manuel Hespanha critica no tanto o gnero biogrfico, mas duas ideias que orientam

alguns dos seus praticantes: a recusa de esquemas interpretativos fortes, daqueles

usados pelos cientistas sociais dos vrios matizes, substituindo-os por uma interpretao

evidente (pelo menos, de senso comum) (). A outra ideia-chave do nvel

biografismo a de que so os homens concretos e no os desenvolvimentos annimos

7 Pierre Bourdieu, LIllusion biographique, p. 69. 8 Jacques Rancire, Les noms de lHistoire. Essai de potique du savoir, Paris, ditions du Seuil, 1992, p.9. 9 Pierre Bourdieu, LIllusion biographique, p. 72. Na mesma pgina Bourdieu distingue entre o agente, que a manifestao do indivduo num campo, e a personalidade individualit biologique socialement institue par la nomination et porteuse de proprits et de pouvoirs qui lui assurent (en certain cas), une surface sociale, cest--dire la capacit dexister comme agent en diffrents champs (sublinhado no original).

5

(das estruturas/ tambm mentais) que modelam a histria. Mas, como no so muitos

os homens que esto em condies de modelarem a histria pelo menos, a histria de

um pas -, quem acaba por interessar a esta corrente historiogrfica so os grandes

homens, nomeadamente os grandes polticos10.

Estas crticas no o conduzem a uma defesa do exerccio exclusivo do ensaio

histrico, mas sugesto de uma prtica biogrfica que regresse hiptese mais

tradicional de investigar a vida dos outros homens, traando os tais grandes frescos

sociais ou mentais que, necessariamente, havero de ser informados por algum

modelo interpretativo geral -, donde resultem os grandes cenrios (econmicos,

culturais, institucionais, jurdicos) em que os homens pequenos e grandes se

movem11.

A construo biogrfica pode ser usada em Histria de diferentes modos, que

diversos autores tipificaram. Giovanni Levi descreve quatro usos possveis e o alcance

respectivo 12 . A prosopografia e biografia modal no focam as caractersticas

individuais, mas os comportamentos mais frequentes. Neste uso, a biografia um meio

de ilustrar o comportamento mais frequente de um grupo. Outra abordagem a da

biografia e contexto, que respeita a especificidade biogrfica, mas recorre

caracterizao do ambiente social para explicar um destino singular. A biografia dos

casos limites esclarece tambm os contextos, mas a partir das suas margens, sendo

paradigmtica a apresentao do caso Pierre Rivire por Michel Foucault. A articulao

da biografia com a hermenutica sublinha o carcter interpretativo do exerccio

biogrfico: Cest lacte interprtatif lui-mme que devient significatif, cest--dire le

processus de transformation au texte, dattribution dun sens un acte biographique qui

pouvait en recevoir une infinit dautres13.

Nesta tipologia de usos biogrficos proposta por G. Lvi, o tipo predominante no

nosso trabalho ser o da biografia e contexto, ou seja, o que relaciona um percurso

individual com uma forte dimenso pblica com o contexto social, econmico, poltico

e cultural em que se realiza. No entanto, esta tese tambm devedora de outros usos da

biografia histrica enunciados por G. Lvi. No pretendemos escrever uma

10 A.M. Hespanha, Categorias. Uma reflexo sobre a prtica de classificar in Anlise Social, 168 (2003), p. 838. 11 A.M. Hespanha, Categorias..., p. 839. 12 Giovanni Levi, Les usages de la biographie in Annales. conomies, Socits, Civilizations, 44 anne n. 6, Novembre-Dcembre 1989, p. 1325-1334. 13 Giovanni Levi, Les usages de la biographie, p. 1332.

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prosopografia de intelectuais e dirigentes catlicos, mas assinalaremos os lugares em

que o trajecto de Antnio Lino Neto se cruza com outros membros da elite catlica de

vrias geraes. Por exemplo, a nada invulgar passagem pelo seminrio ou pelo curso

de Direito de Coimbra, a participao em congressos ou em associaes catlicas.

Antnio Lino Neto no certamente um caso limite no sentido acima caracterizado,

mas discutvel que o historiador deva prestar mais ateno aos limites de um desvio

norma do que aos limites no cumprimento zeloso da norma. A personalidade aqui

biografada era considerada por alguns dos seus coevos um leigo catlico extremamente

fiel a Roma. Essa atitude no ter consequncias no seu trajecto pblico? Por fim, no

cremos que o bigrafo possa evitar a hermenutica, ou seja, atribuir um sentido a actos

do biografado que permanecem por explicar, um sentido no arbitrrio, mas que possa

ser justificado com uma interpretao argumentada da documentao em anlise.

Ao privilegiarmos a relao entre a biografia e o contexto social e poltico,

temos a conscincia de que no estamos a desbravar terreno, mas a continuar uma srie

de estudos que tm sido escritos sobre o perodo em causa nos ltimos anos em

Portugal. Foram particularmente inspiradoras para ns, as biografias, que tiveram a

forma inicial de teses acadmicas, de Jos Miguel Sardica sobre o Duque de vila14 e

de Paulo Jorge Fernandes sobre Mariano de Carvalho15 , as quais incidem sobre o

perodo da Regenerao; o ensaio biogrfico de Antnio Matos Ferreira de reflexo

sobre o sentido da interveno de Abndio da Silva16, um catlico militante perante a

crise nacional na transio da monarquia constitucional para a I Repblica; a biografia

de Antnio Reis sobre Raul Proena17 e a de Lus Farinha sobre Cunha Leal18, dois

biografados que, atravessando diversos perodos histricos, marcaram a I Repblica. As

biografias de Ana Isabel Sardinha Desvignes19 sobre Antnio Sardinha e de Fernando

Martins sobre Pedro Teotnio Pereira20 servem de contraponto s duas anteriores, ao

14 Jos Miguel Sardica, Duque de vila e Bolama: Biografia, Lisboa, Dom Quixote, 2004. 15 Paulo Jorge Fernandes, O Poder Oculto Mariano Cirilo de Carvalho. O Poder oculto do liberalismo progressista (1876-1892), Lisboa, Texto Editores, 2010. 16 Antnio Matos Ferreira, Um Catlico Militante diante da crise nacional: Manuel Isaas Abndio da Silva (1874-1914), Lisboa, Centro de Estudos de Histria Religiosa/Universidade Catlica Portuguesa, 2007. 17 Antnio Reis, Ral Proena: biografia de um intelectual poltico republicano, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2003. 18 Lus Farinha, Cunha Leal, Deputado e Ministro da Repblica Um Notvel Rebelde, Lisboa, Texto Editores, 2009. 1919 Ana Isabel Sardinha Desvignes, Antnio Sardinha (1887-1925). Um Intelectual no Sculo, Lisboa, Imprensa de Cincias Sociais, 2006. 20 Fernando Martins, Pedro Theotnio Pereira: uma Biografia (1902-1972), vora, [Tese policopiada de doutoramento em Histria na Universidade de vora], 2004.

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traarem o perfil de homens que nas ideias e na aco combateram os valores

republicanos.

O carcter hbrido do modo biogrfico de fazer Histria assumido por Rmy

Handourtzel: En tout tat de cause, lhistorien biographique parat condamn faire

naviguer sa barque entre la conjoncture et la structure, entre la micro et la macro

Histoire, sans doute pour le plus grand bnfice de sa recherche. () Alors, dernire

interrogation: biographie, prosopographie et tude de milieu ne sont-elles pas

inextricablement mles?21

Michel Vovelle, um historiador que publicou trabalho reconhecido no campo da

Histria das mentalidades usando mtodos quantitativos, escreveu duas biografias, a de

Joseph Sec, um burgus de Aix do sculo XVIII, e de Thodore Desorgues, poeta

revolucionrio (1763-1808). Reflectindo sobre a sua experincia como bigrafo,

escreveu: Lhistorien sans doute, crit pour se faire plaisir: et singulirement peut-tre

dans le cadre de la biographie, cette rencontre avec un homme, dans le pass. Mais je ne

crois pas que le mouvement que nous venons dvoquer soit de lordre de la mode ou de

la complaisance. Le retour au qualitatif, par le biais de ltude de cas, rpond un

mouvement dialectique dans le champ de lhistoire des mentalits. Pour moi, beaucoup

plus quun dsaveu des approches srielles quantifies il en est le complment,

permettant cette analyse en profondeur, qui prfre aux hros de premier plan de

lhistoire traditionnelle ces tmoignages sur la normalit dune poque quapporte une

confession drobe ainsi chez Menetra, le matre vitrier parisien -, ou les apports plus

ambigus mais plus riches encore peut-tre du tmoignage la limite, dun personnage

en situation de rupture 22 . Acrescentamos que nem sempre a classificao de

determinadas personalidades histricas como normais ou de ruptura dicotmica,

havendo casos em que a ruptura s percepcionada como tal quando realizada por um

homem ou mulher com um percurso normal. Em relao a Antnio Lino Neto a imagem

da sua vida surge marcada por um momento de ruptura: a demisso da Presidncia do

Centro Catlico Portugus, numa longa vida pautada pela moderao, a

responsabilidade, o compromisso.

21 Rmy Handourtzel, Sur les trajectoires individuelles dans la vie politique in Problmes et methodes de la biographie, Actes du Colloque, Sorbonne 3-4 Mai 1985, Sources travaux historiques, Paris, Maio, 1985, p. 91. 22 Michel Vovelle, De la biographie ltude de cas, in Sources Travaux Historiques, ns 3-4, Problemes & Methodes de la Biographie, Actes du Colloque Sorbonne 3-4 Mai 1985, 1985, p. 197.

8

Quando o biografado deixa uma obra escrita, s questes acima enunciadas

acrescem as relaes entre vida e obra. Michel Trebitsch observa que estas no so

lineares: aps o paradigma clssico que explicava o autor pela obra e o paradigma

romntico, em parte ainda vigente, que explica a obra pelo autor, a biografia moderna

visa descortinar as relaes entre vida e obra, que podem ser contraditrias23.

Os conceitos de catolicismo poltico e crise do liberalismo

Nesta tese recorremos ao mtodo biogrfico com a inteno de contribuirmos

para a Histria de Portugal desde o final da monarquia constitucional ao incio do

Estado Novo, nomeadamente para melhor compreender a relao entre o catolicismo

poltico e a crise do liberalismo que marca este perodo. O entendimento do percurso de

Antnio Lino Neto como cidado e catlico militante exige esclarecer o conceito de

catolicismo poltico, que d sentido militncia catlica do biografado, e o de crise do

liberalismo, que tematiza o conjunto de problemas polticos, econmicos, culturais e

sociais com que os cidados portugueses se confrontam desde a ltima dcada de

oitocentos e de modo cada vez mais agudo aps a Grande Guerra.

Esta tese prope a narrativa de uma vida pblica que nos permite saber mais do

que foi a sociedade, a poltica, a prtica religiosa em Portugal desde o final da

monarquia constitucional ao incio do Estado Novo. Partilhamos o ponto de vista de

Antnio Reis de que nenhuma histria narrativa pode prescindir do momento

conceptualizante se quiser escapar maldio positivista.

O historiador positivista tendia a ser, afinal de contas, o jornalista especializado

na reportagem do passado, no s por privilegiar o acontecimento como criador da

mudana, mas tambm por descurar ou subalternizar a atitude conceptualizante24.

Um primeiro conceito a elucidar o do lugar do catolicismo poltico face mais

abrangente questo dos catlicos e poltica que consta do ttulo da nossa tese.

Adoptamos como nossa a definio de Martin Conway, Political Catholicism does not

mean Catholics who were active in politics but political action which was Catholic in

23 Michel Trebitsch, Post-scriptum au colloque: les folies de Byron in Sources Travaux Historiques, ns 3-4, Problmes & Mthodes de la Biographie, Actes du Colloque Sorbonne 3-4 Mai 1985, 1985, p.205-206. 24 Antnio Reis, O Jornalista e o Historiador. Aproximaes e Diferenas in Penlope. Fazer e Desfazer Histria, n. 12 (1993), p. 140.

9

inspiration25. Ou seja, o catolicismo poltico no esgota a relao entre catlicos e

poltica, havendo catlicos que participam em partidos que no justificam a sua

interveno poltica pela sua pertena confessional. Um indivduo pode, em diferentes

contextos, traduzir de modo diferente a relao entre a sua f religiosa e uma

interveno poltica. Apesar da continuidade em muitas ideias e fidelidades, este o

caso de Antnio Lino Neto que, durante a monarquia constitucional, intervm como

cidado no Partido Progressista, interveno que procura conciliar com a militncia

catlica, mas que o diferencia face tentativa do Partido Nacionalista de tentar

monopolizar a representao poltica dos catlicos. Enquanto presidente do Centro

Catlico Portugus, de 1919 a 1934, Antnio Lino Neto ser um dos protagonistas do

catolicismo poltico portugus procurando fazer a poltica da Igreja Catlica, embora na

nova Repblica do ps Grande Guerra acentue que esta poltica compatvel com um

governo de competncias que sirva a poltica da nao.

O conceito de crise do liberalismo empregue como fio condutor entre diversos

regimes polticos, como problemtica que condiciona as circunstncias da vida de um

homem e se reflecte na obra polifacetada que ele escreve. Ser necessrio portanto

comear por definir este conceito e os perodos aos quais ele se aplica.

A aplicao do conceito de crise do liberalismo Histria de Portugal de finais

do sculo XIX e incios do sculo XX foi primeiro desenvolvida por Manuel Villaverde

Cabral em Portugal na Alvorada do Sculo XX26, livro publicado em 1979, e retomada,

em 1993, em The demise of liberalism & the rise of authoritarism in Portugal, 1880-

1930 27 . A tese fundamental de Villaverde Cabral que a crise do Estado liberal

portugus, nomeadamente dos seus mecanismos de representao, de arbitragem e de

legitimao 28 no resultam do carcter atrasado e tradicional da sociedade e da

economia portuguesa, sendo, pelo contrrio, uma consequncia da recente

modernizao e desenvolvimento do pas. Portugal de finais do sculo XIX no pode

ser pensado como um pas subdesenvolvido mas, usando um conceito de Alexander

Gerschenkron, um industrial latecomer, cujos problemas resultam de desvantagens

estruturais comparativas que vo desde a falta de recursos naturais escassez de capital 25 Martin Conway, Introduction, Tom Buchanan, Martin Conway (ed.), Political Catholicism in Europe, 1918-1965, Oxford & New York, Oxford University Press, 1996, p. 2. 26 Manuel Villaverde Cabral, Portugal na Alvorada do Sculo XX. Foras Sociais, Poder Poltico e Crescimento Econmico de 1890 a 1914, Lisboa, A Regra do Jogo, 1979. 27 Manuel Villaverde Cabral, The demise of liberalism & the rise of authoritarism in Portugal, 1880-1930, London, Kings College, 1993. 28 Manuel Villaverde Cabral, Portugal Alvorada, p. 453.

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e de mo-de-obra qualificada, uma forte competio de produtos estrangeiros quer no

mercado interno quer internacional, e um poderoso sector importador-exportador com

muita influncia no sistema poltico29.

Uma consequncia desta assero que a crise do liberalismo portugus no

possui um carcter especificamente nacional, mas uma dimenso internacional, com

afinidades com o que se passa em Espanha ou Itlia.

Na ltima dcada do sculo XIX dois acontecimentos - o Ultimatum de Janeiro

de 1890 e a bancarrota de Maio de 1891 - expem e aceleram duas faces da crise do

liberalismo: a ideolgica e a econmico-financeira. As respostas dupla crise o

proteccionismo econmico e o nacionalismo abriro caminho para o colapso do

liberalismo entendido nos aspectos econmicos, polticos e culturais e para a

afirmao de um Estado autoritrio, anti-liberal.

O modelo econmico aps a crise de 1890 assentar na proteco alfandegria,

na depreciao da moeda e na substituio de importaes, permitindo um crescimento

da indstria de cerca de 2,5 por cento ao ano, desde os anos de 1870 at ao incio da

Grande Guerra30, crescimento insuficiente para recuperar o atraso econmico portugus.

O proteccionismo cerealfero agravar as condies de vida do povo e dos trabalhadores

que se concentram na indstria, nos transportes e nos servios urbanos. A organizao

de movimentos reivindicativos pressionar as classes dirigentes e acentuar as clivagens

entre a burguesia de diferentes sectores econmicos31.

Para Villaverde Cabral a questo agrria tem em Portugal, como em Espanha

e Itlia, uma particular relevncia. A questo agrria no apenas material mas tambm

simblica e permite a articulao entre proteccionismo econmico e autoritarismo

poltico32.

O Ultimatum d uma nova projeco crise poltica do liberalismo e ao

nacionalismo como soluo. O discurso nacionalista afecta quer as posies

republicanas quer os partidos polticos constitucionais. Segundo o investigador que

estamos a seguir, Oliveira Martins ser um dos codificadores de um nacionalismo de

tendncias autoritrias. Em Portugal Contemporneo, de 1881, o liberalismo j fora

29 Manuel Villaverde Cabral, The demise of liberalism, p. 6. 30 Manuel Villaverde Cabral, The demise of liberalism, p. 13. 31 Manuel Villaverde Cabral, Portugal na Alvorada do Sculo XX, p. 453-454. 32 Manuel Villaverde Cabral The demise of liberalism, p. 11.

11

identificado como uma das causas da decadncia nacional. O fortalecimento do poder

real e a representao corporativa so identificados com as solues para a crise

poltica e nacional. A obra de Oliveira Martins ser uma fonte de inspirao para as

elites polticas do incio dos sculo XX, quer as republicanas quer as catlicas, estas

ltimas procurando conciliar o corporativismo martiniano com as perspectivas do

corporativismo catlico abertas pela Rerum Novarum de 1891.

Uma condio educacional condicionar a evoluo e o desfecho da crise do

liberalismo em Portugal: a elevada iliteracia, mesmo para os padres da Europa do Sul.

Um total de 75 por cento da populao era analfabeta33. Villaverde Cabral conclui: By

the mid-1920s the fate of liberalism was thus sealed for all economic, social and

intellectual purposes. Out of the politically undecided military dictatorship which

lasted up to the early 30s, the Estado Novo emerged eventually as a stable political form

of the overall authoritarian alternative to the liberal State34.

Fernando Rosas retoma o conceito de crise do liberalismo, sublinhando as razes

sociais e econmicas da sua expresso poltica. O republicanismo cresce com a

contradio entre os excludos do sistema poltico monrquico camadas intermdias

da populao urbana, pequena burguesia dos servios, profisses liberais, dos pequenos

e mdios negcios, operrios e a oligarquia liberal, contradio que a I Repblica s

resolver parcialmente. A crise de 1890 aproveitada como uma oportunidade de

afirmao poltica da burguesia industrial e dos agrrios do Sul. Apesar da desconfiana

de sectores agrrios em relao industrializao, os senhores do po e do vinho

convergem com os industriais em reclamarem um Estado com mais autoridade e que a

use para proteger os seus interesses, protegendo os mercados interno e colonial da

concorrncia externa, contendo as reivindicaes dos trabalhadores 35 . nas

contradies sociais e nos interesses econmicos da ltima dcada do sculo XIX que

reside a origem da superao () do liberalismo poltico e econmico, no pela sua

regenerao democratizante republicana ou outra mas pela rotura, pelo postulado de

um diferente tipo de poder poltico de cunho antiliberal e de raiz autoritria36.

33 Manuel Villaverde Cabral, The demise, p. 19. 34 Manuel Villaverde Cabral, The demise, p. 30-31. 35 Fernando Rosas, A Crise do Liberalismo e as Origens do Autoritarismo Moderno e do Estado Novo em Portugal in Penlope. Fazer e Desfazer Histria, n. 2 (Fevereiro 1989), p. 100-101. 36 Fernando Rosas, A Crise, p. 102.

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A crise do liberalismo portugus marcada por duas caractersticas que vo

definir o regime autoritrio que lhe pe fim: uma crise prolongada, durante a qual se

vo tecendo equilbrios e compromissos entre diversas tendncias ideolgicas anti-

liberais37.

Antnio Jos Telo insere a crise da monarquia constitucional e da I Repblica

numa crise poltica de longa durao, de 84 anos, cronologicamente balizada pela perda

da capacidade da monarquia em manter a paz interna e as condies para um

desenvolvimento sustentado38, em 1890, e a ruptura com o Estado Novo que assinala o

incio de uma repblica democrtica, em 1974. Nas suas palavras, a crise de 1890 a

1926 uma manifestao das dificuldades da Europa do Sul, em geral, e de Portugal,

em particular, de assegurar a transio serena entre as democracias liberais e elitistas,

que marcam o sculo XIX na Europa, para as democracias de massas, que so a regra no

sculo XX39.

A crise do Estado liberal portugus intensifica-se no incio da dcada de 1890,

quando Antnio Lino Neto comea a estudar Direito na Universidade de Coimbra, e

conhece um desfecho com a instituio do Estado Novo que alguns autores datam de

1934. Ano em que o nosso biografado se demite de Presidente do Centro Catlico

Portugus e a Unio Nacional realiza o seu primeiro Congresso Nacional.

Da monarquia constitucional Repblica

O sentido da interveno pblica de Antnio Lino Neto, como catlico e

cidado, entre o final do sculo XIX e o advento do Estado Novo condicionado e at

certo ponto moldado por contextos polticos e eclesiais que importante periodizar e

caracterizar para compreender o seu percurso.

O primeiro destes perodos a monarquia constitucional, termo empregue

mesmo por historiadores com perspectivas antagnicas40 para o regime em que nasce o

nosso biografado, em 1873, e que deposto com a revoluo republicana de 5 de

Outubro de 1910. Com a monarquia constitucional no s termina o reinado secular da

dinastia dos Braganas, mas tambm o Estado portugus deixa de ter uma religio

oficial, a da Igreja Catlica Romana.

37 Fernando Rosas, A Crise, p. 112. 38 Antnio Jos Telo, Primeira Repblica I. Do Sonho Realidade, Lisboa, Editorial Presena, 2010, p. 12. 39 Antnio Jos Telo, Primeira Repblica I, p. 14. 40 Ver Mendo Henriques e Fernando Rosas, 1910 a duas vozes, Lisboa, Bertrand Editora, 2010.

13

A I Repblica balizada cronologicamente pelo 5 de Outubro de 1910 e pelo 28

de Maio de 1926. Mas no consensual a sua diviso em subperodos e muito menos as

suas designaes, que transportam conotaes ideolgicas e implicam opes

metodolgicas. Nesta tese usaremos os termos de Repblica Velha para o perodo do

5 de Outubro de 1910 ao golpe de Sidnio Pais; Repblica Nova para identificar o

ensaio de novas solues institucionais por Sidnio Pais em 1917 e 1918; e nova

Repblica do ps Grande Guerra para a ltima fase da Repblica, desde o fim da

Grande Guerra ditadura militar. Optar por este termo para a ltima fase da Repblica,

em vez de nova Repblica velha 41 , ou Repblica fraca por contraposio

Repblica forte cada em combate no dezembrismo, pressupe no tomar a primeira

fase da Repblica como paradigma nico do republicanismo. Assim, no subscrevemos

a argumentao de A. H. de Oliveira Marques a favor da designao de Repblica

fraca para o perodo entre 1919 e 1926: na terceira [fase da Repblica], de 1919 a

1926 a Repblica fraca 42 -, aceitou compromisso atrs de compromisso,

abandonando, na prtica, os princpios revolucionrios de 1910 e renovando toda uma

poltica de hesitaes e incoerncias que caracterizara os finais da Monarquia. Vtima

sobretudo do conflito mundial, cujos efeitos comeou a sentir logo sem sorte, que os

acontecimentos internacionais impediram de se robustecer e cristalizar43.

Consideramos que a Repblica portuguesa aps a Grande Guerra no redutvel

a uma poltica de cedncias a foras adversrias, pelo contrrio, uma parte dos

republicanos (a Esquerda Republicana) busca novos compromissos com as classes

trabalhadoras, ensaiando solues social-democratas; os princpios revolucionrios de

1910 no s continuam a inspirar grupos laicistas, como so considerados insuficientes

face aos princpios revolucionrios de 1917 que o embrionrio movimento marxista-

leninista, margem do parlamento, adopta como seus; as ameaas Repblica no

provm s de um regresso de velhos impasses, mas do exemplo de ideologias e solues

de governo anti-liberais sobre uma parte significativa das elites portuguesas de direita.

Ou seja, a Repblica portuguesa enfrenta neste perodo problemas econmicos e sociais

semelhantes ao de outros pases que participaram no esforo de guerra e os

41 Designao vulgarizada por Damio Peres. Cfr. Damio Peres, Histria de Portugal. Suplemento, Porto, Portucalense Editora, 1954, p. 219-220. 42 Repblica forte e Repblica fraca so expresses de Afonso Costa. 43 Joel Serro e A.H. de Oliveira Marques (dir.), Nova Histria de Portugal, Vol. IX, A. H. de Oliveira Marques (coord.), Portugal da Monarquia para a Repblica, Lisboa, Editorial Presena, 1991, p. 700.

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intervenientes polticos reformulam ideologias com razes no sculo XIX, mas que

adoptaro projectos, smbolos, designaes que marcaro o sculo XX44.

A ditadura militar

Se o golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 assinala, de modo incontroverso, o

fim da I Repblica no constitui uma ruptura imediata com o regime deposto em

diversos aspectos, entre os quais as relaes entre Estado e Igreja Catlica. No processo

de instaurao de uma nova ordem, mais do que o 28 de Maio de 1926, golpe

organizado com vista destituio do Governo de Antnio Maria da Silva, marcante o

9 de Junho, data em que o Congresso da Repblica foi legalmente dissolvido. Marcelo

Caetano sublinhou que foi nessa data que a Constituio de 1911 deixou de vigorar de

facto, embora na ordem jurdica portuguesa s fosse revogada pela promulgao da

Constituio de 193345. Segundo Lus Bigotte Choro, este seria o segundo de uma

sequncia de quatro golpes de Estado instauradores da Ditadura Militar. No terceiro,

Mendes Cabeadas, representante da esperana de uma ditadura regeneradora da

Repblica, afastado do poder. No quarto, Carmona torna-se, a 9 de Julho, o chefe da

Ditadura Militar, afastando Gomes da Costa e com ele a hiptese de uma restaurao

monrquica46.

Com o 9 de Julho de 1926 consideramos, seguindo a proposta de periodizao

de Fernando Rosas47, que se encerra o primeiro ciclo da ditadura militar, o da sua

definio face a expectativas muito amplas e diversas, que tinham em comum o

afastamento do Partido Republicano Portugus (PRP) do poder. O processo de transio

da ditadura militar para o Estado Novo desenvolve-se em mais trs fases: o de 9 de

Julho de 1926 a Janeiro de 1930, ainda marcado pela hegemonia dos republicanos

conservadores; o de Janeiro de 1930 a Julho de 1932, em que Salazar ministro influente,

mas ainda no chefe de governo define de um ponto de vista doutrinrio o futuro

regime; o de Julho de 1932 a Dezembro de 1934, durante o qual Salazar, j chefe de

governo, lidera a institucionalizao do Estado Novo. no ltimo ano da fase final de

transio, 1934, que Antnio Lino Neto se demite de presidente do Centro Catlico

44 Fernando Rosas, A Repblica do ps-guerra in Fernando Rosas, Maria Fernanda Rollo, Histria da Primeira Repblica, Lisboa, Tinta-da-China, 2009, p. 409-410. 45 Marcelo Caetano, Manual de Cincia Poltica e Direito Constitucional, 5. Edio Revista e Ampliada, Lisboa, Coimbra Editora, 1967, p. 450. 46 Lus Bigotte Choro, A Crise da Repblica e a Ditadura Militar, Lisboa, Sextante Editora, 2010, p.215-216. 47 Para uma anlise mais desenvolvida dos conflitos internos e externos da ditadura militar ver Fernando Rosas, Salazar e o Poder. A Arte de Saber Durar, Lisboa,Tinta-da-China, 2001, p. 47-156.

15

Portugus, em Fevereiro. No cremos que se trate de uma coincidncia, mas de uma

pista que nos incentiva a procurar as ligaes entre a afirmao do novo regime e os

impasses do CCP, a vontade de interveno pblica como catlico e cidado de Antnio

Lino Neto e o ambiente social, poltico e religioso que lhe serve de justificao ou com

o qual se confronta.

O movimento catlico na crise do liberalismo

A Igreja Catlica mantm ao longo do sculo XIX uma relao tensa e por vezes

de conflito intenso com a sociedade e o Estado liberal que no perodo em anlise se

encontram em crise. Como constata Ren Rmond, durante a vigncia do liberalismo

oitocentista que se desenvolve o processo de dissociao da religio e da sociedade48.

Designamos este processo por secularizao, seguindo o autor citado e Fernando

Catroga, que define secularizao como uma paulatina distino entre o sculo e as

objectivaes dogmticas e institucionais do religioso como Igreja49. Preferimos usar

esta palavra no sentido enunciado50 a descristianizao, termo que pressupe um

perodo anterior mais cristianizado, dificilmente mensurvel e por vezes ilusrio porque

a uma maioria esmagadora de populao oficialmente catlica podia corresponder uma

fraca prtica ou conscincia religiosa 51 . O termo descristianizao no entanto

operativo para entender como que o meio catlico pensa a secularizao e procura

responder-lhe.

A secularizao um processo cujo desenvolvimento mais gradual ou abrupto,

pacfico ou conflituoso, varia nas diversas sociedades. Em todos os pases europeus,

como afirma Antnio Matos Ferreira, implica uma passagem da legitimao da

confessionalidade sociopoltica para uma sociedade onde a religio se encontra em

48 Ren Rmond, Religion et Socit en Europe. Essai sur la scularisation des socits europennes aux XIX et XX sicles (1789-1998), Paris, ditions du Seuil, 1998, p. 90. 49 Fernando Catroga, Entre Deuses e Csares. Secularizao, Laicidade e Religio Civil. Uma perspectiva histrica, Coimbra, Almedina, 2006, p. 21. 50 Anselmo Borges, no prefcio a Fernando Catroga, Entre Deuses e Csares, especifica seis sentidos para o termo secularizao: eclipse do sagrado, autonomia do profano, privatizao da religio, retrocesso das crenas e prticas religiosas, mundanizao das prprias Igrejas () transferncia de categorias teolgico-religiosas do universo da transcendncia para o mundo da imanncia histrico-poltica (Fernando Catroga, Entre Deuses e Csares, p. 8-9). 51 Ren Rmond em Religion, pp. 22-23, prefere o termo secularizao a descristianizao, laicizao e dstablissement.

16

concorrncia com outros princpios e com outras fontes de legitimao das prticas

individuais e sociais, e por conseguinte, de enquadramento sociocultural52.

Rn Rmond sumariza em trs etapas o processo de secularizao europeu

durante os sculos XIX e XX, a partir de uma situao aproximadamente comum a

todos os pases um Estado confessional que estabelece uma relao privilegiada com

uma Igreja. A primeira etapa a revogao das discriminaes confessionais,

permitindo um maior pluralismo religioso; a segunda o dsstablissement, ou seja, a

progressiva perda de identificao do Estado e da sociedade com uma religio, atravs,

por exemplo, do casamento civil e da secularizao dos cemitrios; a terceira a

separao e laicizao. Este ltimo termo descreve melhor do que o de secularizao a

poltica religiosa em Frana entre 1880 e 1905, que uma referncia da poltica

religiosa da I Repblica. A sua inspirao filosfica o positivismo de raiz iluminista

que encara o catolicismo como um obstculo modernidade. O resultado um

confronto de mundividncias: Deux systmes se dressent ainsi lun en face de lautre

qui sopposent terme terme: enseignement par voie dautorit contre esprit critique,

obissance inconditionnelle contre libert, soumission la loi du groupe contre la

volont individuelle, dogme contre raison, galit contre lgalit, tradition contre

progrs, conservation ou raction contre dmocratie53. Fernando Catroga delimita em

termos geogrficos, culturais e religiosos o campo da laicizao: esta desenvolveu-se

nos pases catlicos, isto , l onde a Igreja se elevou a instncia totalizadora, entrando

em concorrncia com o Estado, enquanto que a secularizao progrediu, mais

intensamente, nas reas protestantes, onde houve uma progressiva e simultnea

transformao da religio e das diferentes esferas da realidade social. Aqui, a luta contra

Roma impossibilitou que as Igrejas reformadas (em monoplio, ou em posio

maioritria) alcanassem um poder comparvel ao da Igreja Catlica nas sociedades em

que esta era a religio dominante54. Esta distino entre uma secularizao nos pases

de predominncia protestante e uma laicizao nos pases onde o catolicismo a

religio dominante concretiza uma hiptese de Catroga que subscrevemos: se toda a

52 Antnio Matos Ferreira, Secularizao in Carlos Moreira Azevedo (dir.), Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal, Vol. IV/P-V, Lisboa, Crculo de Leitores/Centro de Estudos de Histria Religiosa da Universidade Catlica Portuguesa, 2001, p. 196. 53 Ren Rmond, Religion, p. 194. 54 Fernando Catroga, Entre Deuses e Csares, p. 480.

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laicidade uma secularizao, nem toda a secularizao (ou foi) uma laicidade e,

sobretudo, um laicismo55.

Para Antnio Matos Ferreira, mais do que a ausncia do referencial religioso, a

laicidade corresponde a uma dinmica social onde a religio enquanto geradora de

valores e de sentido, se encontra em concorrncia com outras fontes de significao,

disputando a sua pertinncia social56.

O laicismo no pretende apenas um Estado neutro perante a religio, mas um

Estado que combata a sua influncia. A preferncia pelo adjectivo neutro em relao a

laico57 na Constituio da Repblica Portuguesa no preveniu derivas laicistas. Uma

interveno de Antnio Lino Neto na cmara dos deputados, a 1 de Agosto de 1923,

dar conta da ambiguidade do termo laico e seus derivados: Em Portugal, como l

fora, h duas espcies de laicismo, uma que deseja que o Estado seja um simples

patro das conscincias e a outra que procura apenas que cada um manifeste livremente

a sua religio e que o Estado no tenha uma religio oficial.

Quanto ao primeiro laicismo, a minoria catlica combate-o

intransigentemente, e quanto segunda espcie de laicismo a minoria catlica no

tem dvida em harmonizar-se com ele, mas em determinadas condies 58.

Fernando Catroga observou que como a laicidade se tinha de afirmar num

campo atravessado por intensos conflitos poltico-ideolgicos no sendo o menor a

oposio do clericalismo modernizao social e poltica -, este parto doloroso tornou

55 Fernando Catroga, Entre Deuses e Csares, p. 273. 56 Antnio Matos Ferreira, Laicidade in Carlos Moreira Azevedo (dir.), Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal, Vol. III/J-P, Lisboa, Crculo de Leitores/Centro de Estudos de Histria Religiosa da Universidade Catlica Portuguesa, 2001, p. 59. O termo laicidade objecto de diversas interpretaes. Fernando Catroga considera que o seu sentido nuclear se encontra expresso na Lei de 1905 que separou o Estado das Igrejas na III Repblica francesa: La Rpublique assure la libert de conscience. Elle garantit le libre exercice des cultes (art. 1.) e La Rpublique ne reconnat, ni salarie ni ne subventionne aucun culte (art. 2.) (Fernando Catroga, Entre Deuses e Csares, p. 341-342). 57 O termo laico pretende ser uma melhor definio de neutro. nesse sentido que empregue por Ferry na cmara francesa, em 1881, e esse sentido que reivindicado para o termo por deputados portugueses na Assembleia Constituinte da I Repblica (Dirio da Assembleia Constituinte, sesso n. 31, de 26 de Julho de 1911; Fernando Catroga, Entre Csares e Deuses, p. 300-301; Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal. Da Formao ao 5 de Outubro de 1910, 2. ed., Lisboa, Editorial Notcias, 2000, p. 252). 58 CEHR (org.), Antnio Lino Neto. Intervenes Parlamentares (1918-1926), Lisboa, Assembleia da Repblica/Texto Editores, 2009, p. 239. Consideramos que a caracterizao que Antnio Lino Neto faz do que designa por segunda espcie de laicismo coloca, no terreno da aco e debate poltico em 1923, a questo do que hoje pensamos como laicidade.

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dbeis as suas fronteiras com o laicismo, resposta totalizadora s pretenses, igualmente

globais, do clericalismo59.

A proclamao da Repblica em Portugal em 1910 queima as trs etapas

enumeradas por Ren Rmond 60 . Como escreveu Antnio Matos Ferreira, A

radicalizao do laicismo, com as influncias positivistas e republicanas, encaminharam

a sociedade para um processo de laicizao, onde se defendia o acantonamento do

religioso ao mbito do privado, ou de formas diversas, a substituio da religio

tradicional por uma religio cvica associada ao desempenho poltico do Estado61. O

liberalismo radicalizado da Repblica afronta um catolicismo que se romanizara no

sculo XIX, em especial durante os pontificados de Pio IX e Leo XIII. Os dois sumos

pontfices exercem o seu magistrio durante cinquenta e sete anos, de 1846 a 1903. A

imagem do Papa atinge uma projeco desconhecida antes do sculo XIX e favorece a

expanso do ultramontanismo no meio catlico.

O ultramontanismo uma eclesiologia baseada na autoridade do Papa, um

pensamento anti-liberal, um culto. Conquista uma parte das elites catlicas e possui uma

vertente popular que alimenta na Europa jornais catlicos de elevadas tiragens,

peregrinaes e oraes nos grandes santurios62. A postura de catlico militante de

Antnio Lino Neto, desde o incio centrada na fidelidade s orientaes pontifcias e

hierarquia catlica nacional ainda que conciliando este modo de ser catlico com uma

interveno cvico-poltica num partido do sistema rotativo da Monarquia

Constitucional, o Partido Progressista, evolui, em 1914, para uma auto-definio como

catlico ultramontano63. Apesar desta auto-definio no ser repetida no espao pblico

59 Fernando Catroga, Entre Deuses e Csares, p. 304. 60 Durante a monarquia constitucional portuguesa o ambiente de tolerncia face ao pluralismo religioso coexistia com a descriminao legal de pessoas de confisso no catlica ou sem qualquer religio. A Carta Constitucional de 1826 era ambgua: o artigo 6. definia a Religio Catlica Apostlica Romana como religio do Reino e o artigo 145. afirmava que Ningum pode ser perseguido por motivos de Religio, uma vez que respeite a do Estado e no ofenda a Moral Pblica. O primeiro cdigo penal portugus, de 1852, criminalizava as ofensas ao catolicismo e punia com a perda de direitos polticos a apostasia do catolicismo. O cdigo de 1886 reintegra estas disposies, embora atenue as penas. Em 1878, o estabelecimento do registo civil de nascimentos, casamentos e bitos integrou no sistema jurdico indivduos no catlicos (Rita Mendona Leite, Enquadramento jurdico das Igrejas durante a Monarquia Constitucional: o regalismo e o estatuto funcional da religio in Agncia Ecclesia. Semanrio de actualidade religiosa. Edio Especial. 5 de Outubro 2010. Centenrio da Repblica, 2010 p. 14-19). 61 Antnio Matos Ferreira, O Liberalismo no Cenrio Europeu e a sua Implantao em Portugal, Separata da Eborensia, Ano XVII (2004), 33, p. 59. 62 Ren Rmond, Religion, pp. 123-144. 63 Artigo de opinio de Antnio Lino Neto, escrito sob o pseudnimo de Paulo Agostinho, no jornal Liberdade, 17 de Julho de 1914, p. 4.

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nos anos em que presidente do Centro Catlico Portugus, consideramo-la mais

esclarecedora do sentido da sua interveno pblica entre 1914 e 1934 do que o termo

catolaico, com o qual pejorativamente designado por adversrios monrquicos

catlicos da aplicao a Portugal da poltica do ralliement, no mbito da disputa pela

hegemonia do movimento catlico organizado.

Para os monrquicos catlicos adversrios da orientao de ralliement do CCP,

s a restaurao monrquica permitiria defender consequentemente os direitos da Igreja

Catlica. Aps o Pacto de Paris, de 17 de Abril de 1922, pelo qual D. Miguel (II)

reconhece as pretenses ao trono de D. Manuel II, os monrquicos que designo por

manuelistas, mostram-se politicamente activos no combate orientao centrista de

obedincia ao poder constitudo. Devo esclarecer que, neste contexto, manuelista no

possu necessariamente uma conotao de liberal, apesar de D. Manuel II ser o ltimo

rei da monarquia liberal. A maioria dos manuelistas e os seus intelectuais mais

activos na dcada de 1920, no podem ser definidos como liberais, mas como

integralistas (caso de Alfredo Pimenta) ou conservadores apoiados por integralistas

(caso de Fernando de Sousa, Nemo). No mesmo perodo, a Junta Central do

Integralismo Lusitano auto-suspende-se e os seus elementos, sem renunciar doutrina

de restaurao monrquica, afastam-se da poltica activa. No defendem as pretenses

ao trono de D. Manuel II, preferindo centrar a sua actuao no terreno cultural e

ideolgico.

Para compreendermos as conjunturas religiosas, polticas e sociais em que

Antnio Lino Neto intervm como catlico e cidado, no nos podemos limitar a uma

periodizao das fases polticas da crise do liberalismo em Portugal, teremos de cruz-la

com a evoluo das grandes linhas orientadoras da aco para os catlicos, traadas nos

diferentes pontificados, orientaes que Antnio Lino Neto procura seguir e das quais,

enquanto presidente do Centro Catlico Portugus, porta-voz legitimado pela

hierarquia eclesistica.

O magistrio pontifcio durante o qual o nosso biografado se forma o de Leo

XIII, Papa de 1878 a 1903, que se distingue por colocar o talento diplomtico e o

desenvolvimento de uma teologia poltica ao servio das posies da Igreja Catlica,

vista como sociedade perfeita, e da sua doutrina. Como analisa Jacques Gadille, Leo

XIII um homem com uma postura intransigente face aos fundamentos revolucionrios

da autoridade, que nas suas primeiras encclicas de 1878 condena os igualitarismos

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absolutos e a teoria da origem do poder do Contrato Social de Rousseau64. tambm

durante o seu pontificado que, a par da afirmao das teses, so admitidos, em

hiptese, compromissos com os regimes polticos do sculo, cuja diversidade

relativizada. A frmula que se popularizar que os catlicos devem obedecer s

autoridades legitimamente constitudas ao mesmo tempo que se empenham na reviso

da legislao injusta. Uma perspectiva que menos favorvel formao de partidos

confessionais do que participao dos catlicos em obras sociais sob a orientao dos

bispos e unio das diversas tendncias conservadoras, eventualmente em aliana com

liberais moderados, para revogar a legislao anticlerical65.

Antnio Matos Ferreira observa que o ultramontanismo, paradoxalmente,

valoriza a liberdade no confronto com o liberalismo poltico. No a liberdade individual

e de conscincia, mas a liberdade da religio e da Igreja em relao ao Estado66. O

mesmo historiador sublinha o aparecimento, durante o pontificado leonino, de um

terceiro lugar, entre a aceitao e a recusa catlica do Estado liberal: o catolicismo

integral. Esta posio expressa na encclica Rerum Novarum, de 1891, encara a questo

social como uma crise moral cuja soluo reside na prtica catlica67. O programa do

catolicismo integral visa a unio dos catlicos no terreno social e no se legitima apenas

pelo princpio da verdade, mas tambm pelo da utilidade social68. No entanto, no

claro nem pacfico entre os catlicos que a essa unio no terreno social deve ou pode

corresponder uma participao poltica plural69.

O Partido Progressista, no qual Antnio Lino Neto se iniciar na poltica, com

o Partido Regenerador, um dos dois partidos rotativos integrantes do sistema poltico da

Regenerao, nome que constitui em si mesmo um programa alternativo s propostas

revolucionrias. Ambos os partidos aceitam o estatuto que a monarquia constitucional 64 Jean-Marie Mayeur (et alt.), Histoire du Christianisme des origines nous jours, Tome XI, Libralisme, Industrialisation, Expansion Europenne (1830-1914), [Paris], Descle, 1995, p. 474. 65 Jean-Marie Mayeur (et alt.), Histoire du Christianisme des origines nous jours, Tome XI, p. 475-476. 66 Antnio Matos Ferreira, A Igreja Catlica em confronto com o liberalismo, separata das Actas dos IX Cursos Internacionais de Vero de Cascais (8 a 13 de Julho de 2002), Cascais, Cmara Municipal de Cascais, 2003, Vol. 3, p. 27. 67 Antnio Matos Ferreira, Liberalismo in Carlos Moreira Azevedo (dir.), Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal, Vol. III/J-P, Crculo de Leitores/Centro de Estudos de Histria Religiosa da Universidade Catlica Portuguesa, 2001, p. 435. 68 Antnio Matos Ferreira, A Igreja Catlica, p. 32-34. 69 Cfr. Manuel Braga da Cruz, As Origens da Democracia Crist e o Salazarismo, Lisboa, Editorial Presena/Gabinete de Investigaes Sociais, 1980; Antnio Matos Ferreira, Um Catlico Militante diante da Crise Nacional; Amaro Carvalho da Silva, O Partido Nacionalista no Contexto do Nacionalismo Catlico (1901-1910). Subsdios para a Histria Contempornea Portuguesa, Lisboa, Edies Colibri, 1996.

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atribui Igreja Catlica como religio de Estado e constituem os pilares de um sistema

poltico em crise na dcada de 1890, com os quais procura romper o Partido

Republicano Portugus e os novos partidos monrquicos da primeira dcada do sculo

XX.

Pio X exercer o magistrio pontifcio de 1903 a 1914 e, em relao I

Repblica portuguesa, tomar uma atitude de afrontamento. A escolha do seu nome

indica a vontade de continuar o magistrio de Pio IX, que condenara os erros do

liberalismo. Giuseppe Sarto chega a cardeal sem trabalhar na cria romana e a Papa sem

desempenhar funes diplomticas. um pastor70 que age de acordo com a palavra

de ordem de S. Paulo Instaurare omnia in Christo e que d continuidade a muitos veios

doutrinais de Leo XIII, mas no ao seu exemplo de negociao e compromisso. A

relao entre sociedade eclesistica e civil deve basear-se no reconhecimento mtuo,

com obrigaes de ambas as partes, e no num compromisso, que se torna objecto de

suspeio. Pio X condena, em 1907, na encclica Pascendi, posies sociais, polticas e

teolgicas muito diversas, que tm em comum procurarem legitimar o pensamento e

aco catlicos sem recorrer autoridade eclesistica ou verdade revelada e que

designa por modernistas. um Papa que marca a Igreja Catlica do sculo XX ao

conduzir uma reforma da administrao central romana que em muitos aspectos se

mantinha desde o Conclio de Trento. A mudana dos processos administrativos no

sentido de uma maior centralizao acompanhada por uma profunda reforma do

Direito cannico. O cardeal Pietro Gasparri, que ser o secretrio-geral do Vaticano

durante a maior parte do tempo em que Antnio Lino Neto presidir ao Centro Catlico

Portugus, foi uma pea fundamental nestas mudanas.

O movimento social catlico conhecer um novo impulso sob a direco de Pio

X que incentiva a participao de leigos catlicos em obras sociais, desde que

estritamente subordinados autoridade eclesistica. A aplicao deste princpio

actividade poltica projectada em 1906, quando so elaborados os estatutos de uma

Unio popular que prevem a criao de uma Unio eleitoral catlica. Era uma

alternativa via seguida por Romolo Murri da interveno poltica de democratas-

cristos autnomos, ou seja, desvinculados da autoridade eclesistica. um princpio

que ser em parte aplicado, num contexto poltico, social e religioso distinto, no Centro

70 Jean-Marie Mayeur (et alt.) Histoire du Christianisme des origines nous jours, Tome XI, pp. 481-485.

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Catlico Portugus. O pontificado de Pio X corresponde a um perodo de discrio

poltica de Antnio Lino Neto. A sua imagem pblica de um catlico activo formada

pela participao na Obra dos Congressos71 , criada em 1908 no III Congresso das

Agremiaes Populares Catlicas, e presidida por Francisco Jos de Sousa Gomes,

professor catedrtico da Universidade de Coimbra e director da primeira srie dos

Estudos Sociais, do Centro Acadmico de Democracia Crist (CADC).

no pontificado de Bento XV (1914-1922) que Antnio Lino Neto ensaia uma

interveno cvica e religiosa de maior visibilidade pblica. Em Maro de 1915 integra

a comisso de advogados encarregue de estudar os estatutos da Unio Catlica. De 1916

a 1918 fez parte da Comisso para a Assistncia Religiosa em Campanha. Durante a

Repblica Nova de Sidnio Pais foi deputado e presidente da cmara de deputatos, alm

de vereador da cmara municipal de Lisboa. Aceitou o convite para ser presidente do

Centro Catlico Portugus, em 1919, aps uma experincia como deputado centrista

durante a Repblica Nova de Sidnio Pais que o levou a ser vice-presidente e presidente

da cmara dos deputados. Se Leo XIII e Pio X so os Papas da formao religiosa de

Antnio Lino Neto, Bento XV a referncia decisiva da sua interveno cvico-poltica

como catlico no perodo em que o leigo com maiores responsabilidades pblicas.

Giacomo Delle Chiesa (1854-1922) estudou Direito na Universidade de Gnova, onde

se doutorou em 1875, e seguiu o curso da gregoriana em Roma. Trabalhou como

secretrio particular de Monsenhor Rampolla quando este foi nomeado nncio em

Madrid, em 1882, e continuou a colaborar com ele quando se tornou Secretrio de

Estado do Vaticano em 1887. Permaneceu nas mesmas funes quando Merry del Val

sucedeu a Rampolla, em 1907. No mesmo ano designado arcebispo de Bolonha.

Recebe a prpura cardinalcia em 1914, pouco antes de ser eleito Papa. um homem

com uma formao acadmica slida e experincia diplomtica, que conhece bem quer

a cria romana, quer a Pennsula Ibrica, e que se mostra empenhado em transformar o

ambiente de suspeita herdado do pontificado anterior num sentido favorvel ao debate

das questes em aberto.

A Grande Guerra a principal questo tica, de relaes internacionais e

pastoral com que Bento XV se confronta. As suas tomadas de posio demarcando-se 71 na qualidade de orador nos Congressos de 1909 e de 1910 que Marie-Christine Volovitch, na sua tese de doutoramento, caracteriza a participao de Antnio Lino Neto no movimento catlico (Marie-Christine Volovitch, Le Mouvement Catholique au Portugal la Fin de l aMonarchie Constitutionelle (1891-1913). (Des Dernires annes de la monarchie l implantation de la Rpublicque), Paris, [Policopiado], 1983).

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dos nacionalismos e apoiando as iniciativas de paz so mal compreendidas no seu

tempo. favorvel a uma interveno poltica dos catlicos de matiz democrata-cristo.

Em 1918 o secretrio de Estado do Vaticano, cardeal Gasparri, autoriza Don Sturzo a

fundar o Partido Popular Italiano (PPI). No ano seguinte o PPI criado em Itlia e o

Centro Catlico reestruturado em Portugal. Em 1922 criado o Partido Social Popular

em Espanha e, em 1924, o Partido Democrata Popular em Frana. No ps Grande

Guerra, partidos de referncia democrata-crist ou crist social participam na vida

poltica dos pases blticos, na Polnia, nos pases da Europa Central nascidos do

colapso do Imprio Austro-Hngaro. Ou seja, o Centro Catlico Portugus integra uma

vaga de catolicismo poltico72 na Europa do ps Grande Guerra animada por Bento XV,

o que no obsta a que tenha caractersticas especficas, como o seu carcter

assumidamente confessional, subordinado hierarquia eclesistica e o seu declarado

carcter no-partidrio. Caractersticas que integravam a cultura catlica europeia, mas

que estavam a mudar no perodo do ps-Guerra, como indica Martin Conway: it was

only after the First World War that political Catholicism reached its full fruition in most

countries of Europe, as the vestige of nineteenth-century Catholic hostility towards the

political process gave way efforts to articulate a distinctly Catholic form of politics73.

Apesar das circunstncias nacionais poderem servir de objeco prpria ideia de um

catolicismo poltico, o historiador citado enfatiza a existncia de traos comuns aos

diferentes catolicismos europeus no perodo de entre guerras74. Em primeiro, lugar, o

catolicismo poltico, opera dentro de fronteiras bem delimitadas: fronteiras nacionais,

apesar de alguns apelos cooperao internacional, e fronteiras entre crentes e no-

crentes. Uma definio vlida para o Centro Catlico Portugus, com a ressalva que a

primeira fronteira a do nacionalismo que permite relativizar a fronteira confessional.

Um segundo trao comum o facto dos partidos catlicos serem partidos de meio,

apoiando-se em associaes catlicas em vez de organizaes modernas de movimentos

polticos. A hierarquia eclesistica parte integrante deste meio, embora a tendncia

geral seja a de reconhecer a autonomia dos leigos. No caso portugus, a autonomia

menor do que em partidos em que o carcter no-confessional explicitamente

72 Jean-Marie Mayeur, Des Partis Politiques la Dmocratie Chrtienne, XIX-XX sicles, Paris, Armand Colin, 1980, p. 104-105. 73Martin Conway, Introduction in Tom Buchanan, Martin Conway (ed.), Political Catholicism in Europe, p. 2. 74 Martin Conway, Catholic Politics or Christian Democracy? The Evolution of Inter-War Political Catholicism in Wolfran Kaiser and Helmut Wohnout, (ed.), Political Catholicism in Europe 1918-1945, Vol.I, London and NY, Routledge, 2004, p. 237-241.

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declarado (PPI) ou em que h um reconhecimento implcito da distncia entre Igreja e

partido (quase todos os outros), mas a presidncia do CCP por Antnio Lino Neto

representa um reforo do protagonismo dos leigos na defesa dos interesses da Igreja

Catlica em Portugal. Por ltimo, um dos princpios do catolicismo poltico neste

perodo a afirmao do primado da unidade, excepo da Frana onde a fora de

diferentes tradies, especificidades regionais e correntes ideolgicas torna

incontornvel o pluralismo poltico.

Achille Ratti (1857-1939) sucedeu a Delle Chiesa como Pio XI (1922-1939),

definindo como misso da Igreja a reconquista crist da sociedade atravs da Aco

Catlica 75 e, por conseguinte, secundarizando o papel dos partidos polticos de

inspirao crist como mediadores entre a Igreja Catlica e os Estados. Esta orientao

ser, a prazo, um dos factores que ditar o fim do Centro Catlico Portugus. Mas os

seus efeitos no sero imediatos. Num cenrio de incerteza social e poltica, a Santa S

no quer prescindir de um meio de defesa. A execuo da diplomacia vaticana passa em

grande parte pelo secretrio de Estado, cardeal Gasparri, nomeado para o lugar por

Bento XV em 1914 e que nele se mantm at 1930, assegurando as continuidades

favorveis defesa dos interesses da Igreja Catlica.

Antnio Lino Neto originalidade e representatividade de um percurso

Esboados os contornos e as linhas de fora das periodizaes do contexto

poltico e catlico em que vive o nosso biografado o da crise do liberalismo em

Portugal desde a agonia da monarquia constitucional instaurao do Estado Novo -,

julgamos pertinente questionar de novo a relao entre a vida pblica de Antnio Lino

Neto e a socieda