castro, viveiros & cunha, emanuela da. vingança e temporalidade- os tupinambas

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texto sobre memória e temporalidade entre os tupinambas. Desenvolvido pelos antropologos Emanuela carneiro da cunha e viveiros de castro.

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  • Manuela Carneiro da CunhaEduardo Viveiros de Castro

    Vingana e temporalidade: os TupinambaIn: Journal de la Socit des Amricanistes. Tome 71, 1985. pp. 191-208.

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    Carneiro da Cunha Manuela, Viveiros de Castro Eduardo. Vingana e temporalidade: os Tupinamba. In: Journal de la Socitdes Amricanistes. Tome 71, 1985. pp. 191-208.

    doi : 10.3406/jsa.1985.2262

    http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/jsa_0037-9174_1985_num_71_1_2262

  • AbstractRevenge and time : the Tupinamba. At the heart of Tupinamba society, there is revenge, say theauthors. Cannibalism is part of a logic of absolute revenge, where anthropophagie consumption is butthe association of all to the process of revenge. Revenge can be exerted beyond the historical disparition of cannibalism per se, because it is more fundamental than the latter. It is indeed the guarantee ofsocial memory, articulating the dead of the past to the dead of the future through the living. The authorsthen sketchily compare this society geared onto temporality with the G and Tukano (Vaups) societies,and end up by a reflection on the place of historicity in this society.

    ResumenLos autores afirman que en el corazn de la sociedad tupinamba del siglo XVI se encuentra lavenganza. El canibalismo es un aspecto de la lgica de la venganza absoluta en la que el consumoantropfago es la asociacin de todos los procesos de venganza. sta puede ejercerse an despusde la desaparicin histrica del canibalismo propiamente dicho pues la venganza es ms fundamentalque el canibalismo. La venganza es en realidad la garantia de la memoria social articulando losmuertos del pasado con los muertos del futuro por intermedio de los vivos. Los autores esbozan unacomparacin entre la sociedad tupinamba, centrada sobre la temporalidad, y las sociedades g ytukano de Vaups y terminan coa una reflexion general sobre el lugar de la historicidad en la sociedadtupinamba.

    RsumVengeance et temporalit : les Tupinamba. Au cur de la socit tupinamba du XVIe, disent lesauteurs, il y a la vengeance. Le cannibalisme relve d'une logique de la vengeance absolue, o laconsommation anthropophage n'est que l'association de tous au processus vindicatoire. La vengeancepeut continuer s'exercer, au-del de la disparition historique du cannibalisme proprement dit, parcequ'elle est plus fondamentale que celui-ci. Elle est en fait la garantie de la mmoire sociale, articulantles morts passs aux morts futurs par l'intermdiaire des vivants. Les auteurs esquissent unecomparaison de cette socit axe sur la temporalit avec les socits g et tukano du Vaups, etconcluent par une rflexion gnrale sur la place de l'historicit dans cette socit.

  • VINGANA E TEMPORALIDADE : OS TUPINAMBA *

    Manuela L. CARNEIRO DA CUNHA **

    et

    Eduardo B. VIVEIROS DE CASTRO ***

    A vingana, ainda alm dos umbrais da eterni- dade, se por um lado nuo prova bons dotes de corao, descobre que estes povos, ou antes, seus antepassados, tinham idias superiores as do ins- tinto brutal dos gozos puramente positivos do prsente .

    (Varnhagen)

    Los autores afirman que en el corazn de la sociedad tupinamba del siglo xvi se encuentra la venganza. El canibalismo es un aspecto de la logica de la venganza absoluta en la que el consumo antropfago es la asociacin de todos los procesos de venganza. Esta puede ejercerse aun despus de la desaparicin histrica del canibalismo propiamente dicho pues la venganza es ms fundamental que el canibalismo. La venganza es en reali- dad la garantia de la memoria social articulando los muertos del pasado con los muertos del futuro por intermedio de los vivos. Los autores esbozan una comparacin entre la sociedad tupinamba, centrada sobre la temporalidad, y las sociedades g y tukano de Vaups y terminan coa una reflexion general sobre el lugar de la historicidad en la sociedad tupinamba.

    Revenge and time : the Tupinamba.

    At the heart of Tupinamba society, there is revenge, say the authors. Cannibalism is part of a logic of absolute revenge, where anthropophagie consumption is but the association of all to the process of revenge. Revenge can be exerted beyond the historical dispa-

    * Este trabalho foi apresentado no simpsio Etnohistoria del Amazonas , no 45 Congreso Internacional de Americanistas (Bogota, 1-7 de julho de 1985). Ele parte de um ensaio bastante mais extenso, em preparao, sobre a guerra e canibalismo Tupi-Guarani, onde se incorporam materiais Tupi-Guarani contemporneos, e onde so tratados em detalhe aspectos aqui brevemente mencionados, ou mesmo omitidos, como o estatuto dos prisioneiros de guerra, a conexo guerra escatologia e a articulao entre os autores surgiu a partir da necessidade de desenvolvermos e con- solidarmos observaes feitas por um de nos entre um grupo Tupi-Guarani contemporneo, os Ara- wet, cuja cosmologia apresenta um parentesco direto com os fatos Tupinamba (Castro 1984).

    ** Departamento de Antropologia, Universidade de Suo Paulo *** (et) P.P.G.A.S, Museu Nacionl, Universidade federal do Rio de Janeiro

  • 192 SOCIT DES AMRICANISTES

    rition of cannibalism per se, because it is more fundamental than the latter. It is indeed the guarantee of social memory, articulating the dead of the past to the dead of the future through the living. The authors then sketchily compare this society geared onto temporality with the G and Tukano (Vaups) societies, and end up by a reflection on the place of historicity in this society.

    Vengeance et temporalit : les Tupinamba.

    Au cur de la socit tupinamba du xvie, disent les auteurs, il y a la vengeance. Le cannibalisme relve d'une logique de la vengeance absolue, o la consommation anthropophage n'est que l'association de tous au processus vindicatoire. La vengeance peut continuer s'exercer, au-del de la disparition historique du cannibalisme proprement dit, parce qu'elle est plus fondamentale que celui-ci. Elle est en fait la garantie de la mmoire sociale, articulant les morts passs aux morts futurs par l'intermdiaire des vivants. Les auteurs esquissent une comparaison de cette socit axe sur la temporalit avec les socits g et tukano du Vaups, et concluent par une rflexion gnrale sur la place de l'historicit dans cette socit.

    I

    Dceis, os Tupinamba ' convertiam-se f dos jesutas. Dceis, decerto, mas inconstantes, queixavam-se os padres : lo que yo tengo por maior obstculo para la gente de todas estas naciones es su propria condicion, que ninguna cosa sienten mucho, ni prdida spiritual ni temporal suia, de ninguna cosa tienen sen- timento mui sensible, ni que les dure ; y ansi sus contriciones, sus deseos de seren buenos, todo es tan remisso, que no se puede hombre certificar de l (Pe. Luis da Gr a Pe. Incio de Loyola. Piratininga, 8 de junho de 1556, CPJB II : 294). Uma mesma inconstncia no os incitava a resistir converso, mas tampouco a perseverar : com hum anzol que Ihes de, os converterei a todos, e com outro os tornarei a desconverter ... (Dilogo da Converso do Gentio, CPJB II : 320).

    Uma nica obstinao nessa indiferena, nessa plasticidade social dos Tupinamba : a vingana. Contra a morte cerimonial do cativo de guerra e o caniba- lismo aliaram-se os jesutas e os governadores grais do Brasil. Quanto guerra propriamente dita, mantida por motivos estratgicos pelos religiosos e pela administrao colonial, estimulada por ser fonte de escravos pelos moradores, mudava de forma essencial. Sujeita ao governador, no sria mais a mesma guerra. Os inimigos deveriam, ordenava governador Duarte da Costa, ser mortos no campo de batalha como soem fazer todas as outras naes , e quando aprisionados, no se os dvia matar e comer, mas escraviz-los e vend- los (Ir. Antonio Blzquez a Pe. Incio de Loyola, Bahia, 10 de junho de 1557, CPJB II : 382). Inverso radical da guerra india, que no procurava matar seno apresar inimigos, inimigos que serviam tanto quanto eram servidos (j que eram alimentados plo grupo e pouco deviam a seu captor) e que s com muita relutncia eram vendidos aos Portugueses. Os Carij s-Guaranis da Misso dos Patos chegavam a preferir vender seus parentes em escravido a cder seus cati- vos (Relao de Jernimo Rodrigues in HCJB II : 39, e Relao in HCJB VI :

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    513 n. 12). Indigno de verdadeiros guerreiros era se libertarem prisioneiros a troco de resgate (A. Thevet 1978 (1556) : 135).

    Com muita relutncia e fortemente coagidos, os Tupinamb foram renun- ciando antropofagia. Mas o canibalismo foi abandonado com relativa facili- dade se comparado morte em terreiro. Maior horror e maior empenho dos jesuitas e governador em abolir canibalismo 2 ? Na verdade, se matar e corner os contrrios era um processo nico, e se no se tinham vingados com os matar seno com os corner (Blzquez a Loyola, 1557, CPJB II : 383), comer parecia vicrio em relao ao matar. Havia formas crescentemente perfei- tas de realizar a vingana. A vingana por excelncia era a morte cerimonial no terreiro, elaborada sequncia descrita com certo deleite macabro por Thevet, por Lvy, por Cardim, em que um prisioneiro, aps ter vivido alguns meses ou at alguns anos entre seus captores, era abatido em praa publica. Decorado de plumas e pintado, travava com seu matador, tambm paramentado, dilogos cheios de arrogncia sobre os quais tornaremos a falar. Preso por grossas cordas amar- radas cintura, deveria idealmente ser morto com uma nica pancada da ibira- pema, a espada de' madeira que lhe dvia esfacelar crnio, enquanto ele cairia, face contra a terra. Seu executor retirar-se-ia para um prolongado e rigo- roso resguardo, durante quai se lhe fariam escarificaes comemorativas e tomaria um novo nome. Muitos convivas vindos de diyersas aldeias aliadas par- tilhavam da carne do morto, do triste , como lhe chama Cardim. Duas regras presidiam a refeio canibal : nada do morto dvia ser perdido ; todos, parentes, amigos, aliados, homens, mulheres, crianas, com a exceo nica e forte do matador, deviam participar do festim. As visceras eram cozidas e desti- nadas as crianas, a carne era assada (ou moqueada para ser consumida em novas restas ou por convivas ausentes). Se fose escassa a carne para tanta gente, podia-se fazer um caldo de um p ou de uma mo. Em morrendo este preso, logo as velhas despedaam e lhe tiram as tripas e forura, que mal lavadas cozem para corner, e reparte-se a carne por todas as casas e pelos hspedes que vieram a esta matana, e del comem logo assada e cozida e guardam alguma, muita assada e mirrada, a que chamam moqum, metida em novelos de fio de algodo e posta nos canios ao fumo, pera depois renovarem seu dio e fazerem outras restas, e do caldo fazem grandes alguidares de migase papas de farinha de carim, para suprir na falta de carne, e poder chegar a todos (Fr. Vicente do Salvador 1982 : 87).

    Essa era a forma plena da morte em terreiro, na quai matador ganhava nomes na cabea de seus contrrios , contrrios que podiam ser mulheres e crianas aprisionadas ou mesmo os filhos de prisioneiros havidos com mulheres que se lhes dava, filhos portanto de mes locais e de pais inimigos. Mas havia tambm formas abreviadas deste complexo ritual. Para ganhar nomes , bas- tava tambm matar os inimigos no campo de batalha desde que se lhes que- brasse devidamente a cabea ou mesmo, prtica muito corrente, desenterrar mortos inimigos e lhes esfacelar crnio. Podia-se tambm ganhar nomes nas cabeas das onas, sacrificadas com todas as honras no terreiro, mas no comi- das. Podia-se faz-lo nas cabeas de mulheres cativas que, poupadas por se terem casado com homens do grupo, morriam de sua morte natural. A estas, depois de mortas, quebrava-se crnio. Ou ento, iam-se desenterrar os inimi-

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    gos vendidos como escravos aos moradores, e que serviam assim duplamente : em vida aos portugues, na morte aos Tupis.

    Como se v, a quebra dos crnios era perseguida com muito maior afinco que a antropofagia. No se dizia a um desafeto : vou-te corner , mas que bro-te a cabea , no sentido, diz Lry, il y a une faon de parler de ce pays- l que les Franais avaient dj dans la bouche : alors que les soldats et ceux qui se querellent chez nous se disent maintenant l'un l'autre : Je te crverai , on dit celui auquel on en veut : Je te casserai la tte. (Lry, 1957/1578/ : 314). Os catecumenos das aldeias jesuiticas podiam assim resignar- se a no comerem seus cativos, mas dificilmente deixariam de mat-los segundo os modos prescritos. Quando, em 1554, os indios de S. Paulo de Piratininga atacaram um outro grupo e tomaram prisioneiros, os padres louvaram-se que os tivessem mortos e sepultados maneira crist (Anchieta a Loyola, S. Paulo de Piratininga, de setembro de 1554, CPJB II : 109). Verdade , indigna- se Anchieta sete anos mais tarde, que ainda fazem grandes restas na matana de seus inimigos, eles e seus filhos, etiam os que sabiam 1er e escrever, bebendo grandes vinhos, como antes costumavam e, se no os comem, do-nos a corner a outros seus parentes, que de diver sas outras partes vm e so convocados para as restas (Anchieta a Pe. Diogo Laines, So Vicente, 30 de julho de 1561, in Cartas d. Viotti : 173) 3.

    Na verdade, trata-se de entender que constitui, de forma essencial, a vin- gana. A antropofagia, como vimos, torna-a complta, e voltaremos a coment- la. inimigo morto pea fundamental, e t-lo aprisionado em luta a melhor forma de obter, mas no a nica. Necessrio, este morto no ainda sufi- ciente : posto que este gentio pelo campo mate inimigo as estocadas, ou com to poderosos golpes que o parta pelo meio, como o no matou corn quebrar a cabea, logo ho que morto no morto, nem o matador pode jactar-se de Ihe haver dado a morte, nem poder tomar nome nem riscar-se (A. F. Brando 1943 (1618) : 286) ; no tm por valor o matar se no que- bram as cabeas, ainda que seja dos mortos pelos outros... (Frei Vicente do Salvador 1982 : 85). tomo da vingana, dois inimigos, um deles morto, outro que Ihe esfacelou crnio.

    A vida social posta a servio da produo deste par e deste ato elementar. Assim, ciclo de vida e o destino pstumo organizam-se ambos em torno da vingana. Um homem nasce como futuro vingador. A me besunta os seios de sangue do inimigo para que a criana prove. Mais tarde, ces barbares frottent le corps, les cuisses et les jambes de leurs enfants avec le sang de leurs ennemis /.../ afin de les inciter et acharner d'autant plus. (Lry, 1957 /1578/ : 315). Quando Ihe per fur arem o lbio sera para que se torne um guerreiro valente e prestigiado (Y. d'Evreux 1874 : 129) 4. Enfim, a quebra do crnio do primeiro inimigo Ihe permitira aceder condio plena de homem : primeira vingana, primeira renomeao, primeiro acesso a uma mulher frtil, a um verdadeiro casa- mento, primeira paternidade (F. Cardim 1980 : 144 ; Jcome Monteiro HCJB VIII : 409; Anchieta, Cartas, d. Viotti : 434). Todo filho era filho de um matador, e as mulheres recusavam-se a quem no houvesse matado.

    A vingana confere honra . O feito guerreiro a fonte do prestigio politico e permite por decorrncia a poligamia. Como diz Lry, invertendo causas e

  • VINGANA E TEMPORALIDADE 195

    efeitos, ceux qui en ont le plus grand nombre sont estims plus vaillants et plus hardis (Lry, 1957 /1558/ : 348.) : Cunhambebe teria treze mulheres, Amendua trinta e quatro (A. Thevet 1953 (1575) : 135-6). A poliginia era, na verdade, e nisso Lry no se engana, o sinal de ostentao do grande guerreiro : j'ai vu un homme qui avait huit femmes, dont il faisait ordinairement des contes sa louange. (op. cit. 348-9).

    guerreiro no acumula apenas mulheres : a cada morte que inflige, vai somando os nomes que toma e vai desenhando no prprio corpo um riscado que lhe estalha a pele. A renomeao tambm renome : /le Tabajara Rayry/ il avait acquis des nouveaux noms et renoms : si que plus glorieux que Scipion l'Africain, ni que Cesar Germanicus, il pouvait faire gloire de vingt-quatre noms comme d'autant de titres d'honneur et marques de vingt-quatre rencontres o il s'tait trouv et avait bien fait /.../ Ses noms taient accompagns de leurs loges et comme pigrammes crites, non sur le .papier, ni sur l'airain, ni sur l'corce d'un arbre, mais sur sa propre chair ; son visage, son ventre et ses deux cuisses toutes entires taient le marbre et le porphyre sur lesquels il avait fait graver sa vie avec des caractres et figures si nouvelles que vous eussiez pris le cuir de sa chair pour une cuirasse damasquine... (Claude Abbeville, 1963 /1614/ : 348-348 v.)

    Honrada tambm entre todas a morte em terreiro, sobretudo pelas mos de renomado guerreiro (p. ex. A. Thevet 1978 (1556) : 135), morte pela vingana e que anuncia vinganas. Ao vingador enfim so reservados honras e privilgios pstumos : ele quem saber encontrar, depois de morto, lugar delicioso das aimas, esse lugar a que as mulheres chegam quando chegam com tantas dificuldades. Quanto aos que nunca se vingaram, ficaro com Anhang (Y. d'Evreux 1864 : 127, 138 ; A. Thevet 1953 (1575) : 85) : Ils croient l'immortalit des mes. Ils tiennent aussi fermement que les mes de ceux qui ont vertueusement vcu, c'est--dire, selon eux, qui se sont bien vengs et ont beaucoup mang d'ennemis, s'en vont derrire les hautes montagnes o elles dansent dans de beaux jardins avec celles de leurs grand-pres /.../; au contraire celles des effmins et des gens de nant, qui n'ont pas tenu compte de dfendre la patrie, vont avec Aygnan (ainsi nomment-ils le Diable en leur langage) et ces mes sont, disent-ils, incessamment tourmentes par lui. (Lry, 1957 /1578/ : 328-9).

    principal Pindobuu estava doente, e Thevet lhe afirma que Tup lhe mandou a doena. Pindobuu roga ao francs que intercda por ele junto a Deus (esse Deus que os cristos chamam de Tup) e obtenha sua cura. Thevet lhe impe condies : recebido o batismo, que deixe de crer nos feiticeiros e profetas e que abandone vingana e antropofagia. Feito isso, assegura-lhe, no s ficar restabelecido mas, quando morrer, sua aima ira para o ceu, destino dos que no se vingam da injuria de seus inimigos . No havia, responde significativamente Pindobuu, obstculo as primeiras condies, a ultima porm era inexequvel : Et encore quand Toupan lui commanderait de ne le faire, il ne le saurait accorder : ou si par cas fortuit il l'accordait, il mriterait mourir de honte. (Thevet, 1953 /1575/ : 86.). Pindobuu e Thevet concordam quanto existncia de uma vida eterna, feita de infindveis alegrias. Mas Thevet inverte, e inverte intencionalmente, os requisitos par essa vida eterna. Esquecer a vingana avesso da condio tupinamb de acesso ao paraiso, esse parai so que

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    privilegia os vingadores. A religio do perdo ope a religio da vingana. A vingana assim a instituio excelncia da sociedade tupinamb. Casa- mento, chefia, xamanismo, profetismo at, tudo no s se articula mas como que se subsume na vingana. No nos parece, com efeito, que profetismo Tupi, contrariamente interpretao que lhe d Hlne Clastres (1975 : 58), negue radicalmente os principios da sociedade normal ou ponha em causa um eventual Estado nascente, as vsperas da chegada dos europeus. O discurso pro- ftico aboie trabalho, aboie regras de casamento (que j em si eram tenues), e s prserva na realidade, exacerba a vingana e o canibalismo 5. Mas longe de ser uma negao dos fundamentos da sociedade tupinamb, no teria- mos ao contrario aqui uma ateno exclusiva para aquilo que, nela, fundamental, a saber, a vingana ? Os profetas seriam assim no tanto revolucion- rios quanto fundamentalistas, contestatrios apenas na medida em que todo fundamentalista . Se, como percebe com extrema acuidade Hlne Clastres (1975 : 36 ss.), a religio Tupinamb se define no pelo seu ponto de partida, um demiurgo de pouca importncia, mas pelo seu ponto de chegada essa Terra sem Mal onde os homens so tambm deuses profetismo, intensificando a guerra, apenas se concentra no modo de acesso Terra sem Mal, a saber, a faanha guerreira.

    II

    esfacelamento dos crnios, para quai se mobiliza a sociedade Tupinamb, supe tambm, em presena, dois inimigos que preciso qualificar como tais. Qualificao nem sempe vidente na medida em que os aliados de ontem podem ser os inimigos de hoje. Os indios do Maranho ... de grands amis et allis qu'ils taient ds lors ils devinrent si grands ennemis et se divisrent tellement les uns des autres, que du depuis ils se sont toujours fait la guerre, s'entr'appellent les uns les autres du nom de Tobaiares /tabajara/ qui veut dire grands ennemis, ou pour mieux dire selon l'tymologie du mot, tu es mon ennemi et je suis le tien : et quoi qu'ils soient tous de mme nation et qu'ils se qualifient tous Topinamba, nanmoins le Diable les a tellement anims les uns contre les autres qu'ils en sont venus jusqu' s 'entremanger... (Claude d'Abbeville, 1963 (1614) : 261 v.)

    Essa qualificao pode ser imediata se se defrontarem dois homens direta- mente inimizados por uma morte : o pai que mata aquele que matou a seu filho. Mas esta no a regra. Ao contrario, os Tupinamb parecem se preocu- par em dilatar a identificao de vingadores at torn-la coextensiva a todos seus aliados. festim canibal que exige a participao de todos e envolve tcni- cas de conservao da carne para que aliados distantes possam prov-la tambm uma maneira de qualificar todos os devoradores, homens, mulheres, crian- as, como possveis vtimas da prxima matana. certamente a comensalidade antropofgica que dlimita as unidades blicas e que assim de uma erta maneira forma ou confirma as unidades sociais. A antropofagia que confirma nos dios aparece como um modo de produzir inimigos mutuos , tabajara, e portanto sinal de lealdade ultima : Et quand ils nous prsentaient man-

  • VINGANA E TEMPORALIDADE 197

    ger de cette chair humaine de leurs prisonniers, si nous en faisions refus (comme moi et beaucoup d'autres l'avons toujours fait /.../) il leur semble que nous ne sommes pas assez loyaux. (Lry, 1957 /1578/ : 319.)

    esse precisamente um dos aspectos do dilogo, no terreiro, que parece procder qualificao da vitima : N'es-tu pas de la nation nomme Margaias, qui nous est ennemie ? Et n'as-tu pas toi-mme tu et mang de nos parents et amis ? Lui plus assur que jamais rpond /.../ : Oui, je suis trs fort et j'en ai vraiment assomm et mang plusieurs. (Lry, 1957 /1578/ : 312).

    Mas h mais do que isto nestes dilogos. Em um primeiro momento, qualificou-se a matana iminente como uma vingana por mortes passadas. Segundo momento do dilogo, afirma-se que a vingana sera vingada : a morte prsente sera a razo de mortes futuras. A iniciativa passa ao prisioneiro que dclara : Meus parentes me vingaro . Depois disto abatido 6. Certeza ante- cipada de vingana que d o tom inconfundivel de desafio morte em terreiro e que combate, que podia durar um dia inteiro, da vitima com seus captores, por mais que parecesse um simulacro, j prenunciava. Mais parecia , escreve Anchieta da atitude da vitima, que ele estava para matar os outros que para ser morto (Cartas d. A. Peixoto : 224). que se entrev aqui uma erta cumplicidade, da quai voltaremos a falar, que permite vingana, fruto de vingana, gerar a vingana futura e que coloca assim em uma relao permanente de hostilidade os grupos envolvidos.

    H dois modos tupinamb de se agir diante de uma agresso. Pode-se can- cel-la atravs de uma retaliao imediata e pode-se ao contrario mant-la por mecanismos que cuidadosamente a perpetuem.

    Sabe-se que os vingativos Tupinamb estendiam esfacelamento a tudo o que os ferisse : Si une pine les pique, une pierre les blesse, ils la mettront de colre en cent mille pices, comme si la chose tait sensible... Davantage, ce que je dois dire pour la vrit, mais je ne le puis sans vergogne, pour se venger des poux et puces ils les prennent belles dents, chose plus brutale que raisonnable. (Thevet, 1983 : 90.) Quanto as flchas, eram, em pleno campo de batalha, arrancadas do corpo e quebradas furiosamente (J. de Lry 1957 (1578) : 306). Esta vingana imediata e conclusiva, aplicada aos no-humanos, reencontra-se, no outro extremo, quando se trata de agresso dentro de um grupo que no prtende se cindir. Uma mulher mata um rapaz que se inter- punha numa discusso. No dia seguinte, seu filho a enforca e enterra, deitando em cima del cadaver daquele a quem ela havia morto. E Anchieta, que relata o episdio, comenta : nenhum de todo povo lho impediu, nem lhe falou uma s palavra, porque assim soem vingar os semelhantes homicidios, porque no faam guerra os parentes do morto e se comam uns aos outros (Anchieta 1984 : 119 ; vide tambm J. Monteiro 1949 (1610) : 413).

    A este primeiro modo, que cancela a agresso, contrape-se aquele que, a partir del, perptua a vingana : opo que parece derivar, em larga medida, de consideraes estratgicas, mas que, uma vez tornda, caracteriza aos inimi- gos como permanentes e a vingana como interminvel. Esta vingana, ao contrario da outra, ficar para sempe inconclusa : Nous sommes vaillants (disent-ils), nous avons mang vos parents, aussi vous mangerons-nous... (Thevet, 1983 : 83.), Um dos principais lhe diz que no ele s o que morre, mas

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    que j tem mortos muitos de seus parentes, e que muitos mais ho de matar e corner (J. Monteiro 1949 (1610) : 411). Esta vingana no pode ser cancelada : como tal concebida enquanto dure, e a concluso das pazes no desmente 7. que Thevet percebe quando escreve (ao arrepio de certos fatos, mas intuindo essencial) : une chose trange est que ces Amriques ne font jamais entre eux aucune trve ni pacte. (Thevet, 1983 : 80).

    disperso minima da vingana, manifesta no cancelamento imediato da contenda, ope-se aqui uma disperso mxima, que a antropofagia se encarrega de realizar e que dsigna a todos como vtimas possveis das proximas matanas. Chegado momento, todos podero literalmente dizer : sim, eu comi muitos dos vossos . nesse sentido que, embora vicria primeira vista em relao ao matar, a antropofagia essencial para garantir esta forma permanente da vingana : sem ela, nuo se produz, no que chamamos acima o tomo da vingana, a qualificao de inimigo em escala suficiente para que a vingana possa continuar. canibalismo assim a condio de perpetuao do sistema : no diziam outra coisa os Tupinamb quando faziam dele o instrument da perpetuao dos dios , requentados, falta de novas vtimas, graas a ban- quetes com carnes de inimigos de conserva. Depois que comem a carne desses contrarios, ficam nos dios confirmados (Gandavo 1980 : 55).

    Se a vingana no tem fim, ela tambm sem comeo : ou melhor, seu ponto de partida puramente virtual. Sucesso de respostas, desenroladas a partir de um incio imaginrio, que insinua mito de origem do canibalismo. Uma me tinha um filho nico que havia sido morto na guerra. Seu matador capturado. A mulher lana-se sobre ele e morde-lhe a espdua. O prisioneiro escapa e conta aos seus que os inimigos haviam tentado devor-lo vivo : decidi- ram que assim fariam no futuro, comeriam os prisioneiros ; os inimigos ento decidiram da mesma forma (A. Pigafetta, 1800 : 18 apud A. Mtraux 1967 : 68). As explicaes aparentemente super fluas que iniciam o mito indicam que se esta em um sistema de vingana em andamento. ponto principal, no entanto, parece, ser o de que primeiro canibalismo real uma retaliao a um canibalismo imaginrio, e afirmado como tal. Ou seja, a antropofagia no tem pro- priamente um motor primeiro : de saida, ela uma retaliao 8.

    que , ento, a vingana tupinamb ? Os dilogos no terreiro, que del falam, so primeira vista, pobres. Nenhuma transcendncia se rvla atravs deles. J'ai mang ton pre /.../, j'ai assom et boucan tes frres ; /.../ j'ai en gnral tant mang d'hommes et de femmes, voire des enfants de vous autres Toiioupinambaoults pris en guerre, que je ne saurais en dire le nombre. Et au reste, ne doutez pas que pour venger ma mort, les Margaias de la nation d'o je suis n'en mangent encore plus tard autant qu'ils en pourront attraper. (Lry, 1957 /1578/ : 311.)

    Quais so os temas ? Outras vinganas, outras devoraes, as que j se deram, as que se daro e entre as quais a morte iminente no seno a tran- sio, divida de velhas mortes e pretexto de mortes futuras. No cremos que se devam ir buscar outros temas, como fez Montaigne, como fez tambm Florestan Fernandes, atrs dos que so evocados explicitamente : a vingana tupinamb fala apenas, mas fala de forma essencial, do passado e do futuro. ela, e somente ela, que pe em conexo os que j viveram (e morreram) e os que

  • VINGANA E TEMPORALIDADE 199

    vivero, que explicita uma continuidade que no dada em nenhuma outra ins- tncia. A fluidez dessa sociedade que no conta, alm da vingana, com nenhuma instituio forte, nem linhagens propriamente ditas, nem grupos cerimo- niais, nem regras positivas de casamento, ressalta a singularidade da instituio da vingana. Como os Tupinamb so muito belicosos , registra va G. Soares de Souza, todos os seus fundamentos so como faro guerra aos seus contr- rios (1971 (1587) : 320). Singularidade essa que era realada pela aparente desproporo entre meios e fins : esses indios que percorriam, escreve Anchieta, at mais de 300 milhas quando iam guerra, contentavam-se com quatro ou cinco inimigos aprisionados, dando por finda a expedio. Sem cuidarem de mais nada, regressam para com grandes vozearias e restas e copiosissimos vin- hos, que fabricam com raizes, os comerem, de maneira que no perdem nem sequer a menor unha, e toda vida se gloriam daquela egrgia vitria. At os cativos julgam que lhes sucede coisa nobre e digna, deparando-se-lhes morte to gloriosa, como eles julgam, pois dizem que prprio de nimo tmido e impr- prio para a guerra morrer de maneira que tenham de suportar na sepultura o peso da terra, que julgam ser muito grande (Anchieta a Loyola, Piratininga, 1554, d. Viotti, 1984 : 73-74).

    que h nessa morte gloriosa ? Sua forma particular, esfacelamento do crnio, poderia sugerir uma liberao rpida da aima, que encontraria ime- diatamente caminho da Terra sem Mal : a quebra do crnio de Maira-Monan sria seu paradigma (F. Fernandes 1970 (1952) : 314). Estas associaes podiam estar prsentes, mas no so as que os relatos enfatizam. que ressaltam os cro- nistas que, na morte em terreiro, a vitima que se porta altura deixa de si memria : se valente e esforado , dir-lhe-ia matador, no mor ras como mesquinho, e procura deixar de ti memria (J. Monteiro 1949 (1610) : 412). Mas que memria essa ? Embora cronista possa falar no desejo de uma velha destinada ao sacrificio de deixar nome (Pe. Joo de Souza Ferreira 1894 : 130), no se trata, a nosso ver, de um nome pessoal. Decerto, o matador toma nome no crnio da vitima mas, afora Anchieta (1984 : 75) e Cabeza de Vaca para os Guaranis, ningum sugere que sej a nome do morto. Tudo indica, ao contrario, que no seja. Mtraux chega alias a sugerir que o novo nome do matador seja, inversamente, uma camuflagem destinada a eludir a vingana da aima da vitima (A. Mtraux 1967). Ainda que fosse seu nome que deixasse morto, sria necessrio prova que nome marcava uma identidade pessoal entre os Tupinamb. Na realidade, pensar nome que morto deixa como sua memria pessoal parece fazer violncia aos textos de que se dispe.

    Mas se no seu nome, sua memria pessoal, que deixa a vitima ? Os textos falam reiteradamente de trs temas que vm associados : memria, vingana e cauinagens. De fato quando esto mais bbados, renova-se a memria dos maies passados, e comeando a vangloriar-se deles logo ardem no desejo de matar inimigos e na fome de carne humana (Anchieta a Loyola, So Vicente, 1555, in Anchieta 1984 : 90). Numa dessas cauinagens, os Tupinamb se lem- braram de um grupo de Maracaj submetido vinte anos antes aos franceses e que viviam em paz na ilha Grande : Un jour en buvant et caouinant, ils s'encouragrent l'un l'autre et allgurent /.../ que c'taient des gens issus de

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    leurs ennemis mortels. Ils dlibrrent donc de tout saccager. /.../ ils en firent un tel carnage et une telle boucherie que c'tait une piti non pareille de les entendre crier. (Lry, 1957 /1578/ : 320. vide tambm J. Monteiro 1949 [1610] : 410). Gabriel Soares de Sousa, consciente da associao entre memria e vin- gana, expressa-a no entanto em termos Portugueses, mediterrneos : promete- lhes (o principal) vitria contra seus inimigos... de que ficar deles memria para os que aps eles vierem cantar em seus louvores (1971 (1587) : 320). a gloria, renome, a fama. Mas se a fama a mesma, mesma a gloria, dos que vncem e dos que so abatidos em terreiro ? Quai ento o contedo dessa memria ? Nada, aparentemente, alm da memria da vingana, produzida pela vingana e apontando para a vingana. Aqui tampouco, nenhuma transcendn- cia. Na verdade, a vitima passa a ser objeto de uma rememorao e de uma projeuo no futuro que nada parece ter de personalizado : rememorao e pros- peco das relaes devoradoras entre dois grupos inimigos, grupos que, na ausncia de mecanismos internos de constituio, parecem contar com os outros, seus contrrios, para uma continuidade que s os inimigos podem garantir. Donde a cumplicidade, partilhar da gloria, entre matadores et vitimas, que deixou perplexos os cronistas. A memria de cada grupo, o futuro de cada grupo, se d inimigos interpostos.

    Compreende-se assim que o tmulo honrado entre todos sej a estmago do inimigo. A vtima realiza-se plenamente enquanto ser social na medida em que atravs del se d a passagem e a unio entre que foi e que esta por vir. isso essa a morte gloriosa por excelncia, a morte social : as outras so mortes naturais. Esta ao contrario a morte que dar novo impulso espiral interminvel das vinganas. H aqui uma circulao perptua da memria entre grupos que se entre- vingam, circulao garantida pelo fato de que uma morte jamais quita morte anterior. No h crculo da vendetta, mas espiral ou pn- dulo.

    Voltando : que transmitido de uma gerao a outra pelos Tupinamb ? Nomes no ; posies cerimoniais no. Apenas a memria da vingana, isto , a vontade de se vingar, a identidade dos inimigos que devem ser guerreados, a memria dos mortos na guerra. Isto , que se herda uma promessa, um lugar virtual que s preenchido pela morte do inimigo. Herda-se uma memria. Nesse sentido, a memria no resgate de uma origem ou de uma identidade que tempo corroeu, mas ao contrario fabricao de uma identidade que se d no tempo, produzida pelo tempo, e que no aponta para o incio dos tempos mas para seu fim. H uma imortalidade prometida pelo canibalismo.

    A centralidade da vingana, Florestan Fernandes j a havia pro vado magis- tralmente (1970 (1952)). Mas, levado talvez por suas premissas tericas, acabou fazendo da guerra o instrument da religio, no no sentido que evocamos acima, mas no de um meio para a restaurao da integridade de uma sociedade ferida pela morte de seus membros. Para tanto, postulou um culto dos ances- trais que os relatos dos cronistas no sustentam e que Mtraux (1967 : 70), com acerto, contestou.

    A guerra de vingana tupinamb no nos parece ser instrumente de algo anterior a ela. Na verdade, sua ligao com a sociedade parece-nos antes ser uma relao fundante. Assim, em vez de nos perguntarmos o papel da vingana

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    na sociedade, sria necessrio procurar que uma sociedade fundada sobre a vingana. No se trata, como faz Pierre Clastres (1977), de pensar uma sociedade primeira que a guerra se encarregaria de manter indivisa. Trata-se ao contrario de perceber em que medida a vingana produz uma sociedade que no existe seno por ela.

    Cremos que preciso inverter os termos : no se trata para os Tupinamb de negar ou transcender a morte para recolocar uma continuidade vivos-mortos que garantisse a permanncia da sociedade : a vingana no uma re-ligao dos vivos com seus mortos ou uma recuperao de substncia. No se trata de haver vingana porque as pessoas morrem e precisam ser resgatadas do fluxo destruidor do tempo ; trata-se de morrer para haver vingana, e assim haver future Forma de pr a morte a servio da vida, no combate contra a morte. A vingana uma mnemotenica, mas mobilizada para a produo de um future A vingana a herana deixada pelos antepassados, e por isso abando- nar a vingana romper com o passado ; mas tambm e sobretudo no ter mais futuro : pressionado pelos franceses a vender em escravido seus prisionei- ros de guerra, um Tupinamb comenta : Je ne sais dornavant ce qui se passera : depuis que Pay Cola (entendez Villegagnon) est venu par-de, nous ne mangeons pas la moiti de nos ennemis. (Lry, 1957 /1578/ : 309.) A mem- ria aparece portanto no como um fim em si mesma lembrar os mortos mas como um meio, um motor, para novas vinganas.

    Assim, no resgate da memria dos mortos do grupo que esta em jogo, mas a persistncia de uma relao com os inimigos. Com isso, o inimigo torna- se guardio da memria do grupo ; e a memria do grupo (inserita nos nomes que se tomou, nas carnes tatuadas, nos cantos e discursos em que se recapitulam quantos se matou e se comeu) uma memria dos inimigos. Os inimigos passam a ser indispensveis para a continuidade do grupo, ou melhor, a sociedade tupinamb existe no e atravs do inimigo. Reencontra-se aqui a cumplicidade evo- cada acima.

    Resumindo : nexo da sociedade tupinamb a vingana. Mas a vingana no outra coisa seno um elo entre que foi e que sera, os mortos do passado e os mortos por vir ou, que d no mesmo, os vivos pretritos e os vivos futuros. Dizer que seu nexo a vingana portanto dizer da sociedade tupi- namb que ela existe na temporalidade, que ela se pensa a si mesma como cons- tituida no tempo e pelo tempo. Dependente do que lhe exterior, a sociedade tupinamb faz da morte em terreiro e com devorao a morte honrosa por exce- lncia : ela quem garante a memria. Memria que no , como vimos, a imortalidade pessoal que heroi grego alcana pela morte gloriosa, imortalidade constituida pela fama entre os homens (J. P. Vernant 1982 e 1983), mas memria cujo nico contedo a vingana de que a vitima o resultado mas tambm penhor. Enquanto resultado de vinganas anteriores, ela garante a existncia do grupo que dvora, enquanto penhor de novas vinganas, a do grupo a que pertence. Mas em ambos aspectos e para ambos os grupos, a vingana o fio que une passado e futuro e nesse sentido vingana, memria e tempo se confundem.

    Nada mais contrastante com essas sociedades Tupi que habitam tempo do que as sociedades de lingua Je, que se pensam, elas, sob a espcie da espaciali-

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    dade e da reiterauo. Os Timbira orientais, exemplo, parecem querer rebater e encerrar mundo passado, prsente, futuro, no espao circunscrito da aldeia. Nesse espao, tudo tem seu lugar, diriamos at, tudo lugar (M. C. da Cunha 1978 : 23, 35 ss.) e esse lugar imutvel exorciza tempo. Os nomes se transmi- tem, as metades se posicionam ontem como hoje, os segmentos residenciais per- manecem, ligados as mulheres. Quanto ao exterior, ele apropriado de vrios modos : conceito de estrangeiro tem seu lugar alocado na estrutura ceri- monial, j que nome dado a um dos grupos de praa (C. Nimuendaju 1946). Os chef es honorrios que representam outros grupos tnicos (vide G. Azanha 1984 : 44) so membros da propria aldeia, distinguidos para marcar (ao mesmo tempo que abrigar) os de fora : ou seja, o chefe honorrio dos Apinay na aldeia Krah sera um Krah, como o chefe honorrio krah no Rio de Janeiro sera um carioca. So inversos de embaixadores, na medida em que so externos aos grupos que representam. Mas so eles que fazem da aldeia o micro- cosmo que ela : introjetam na aldeia a totalidade do mundo exterior (M. . da Cunha 1973 : 24).

    Se para os Tupinamb, a vingana propriamente interminvel, as relaes com os inimigos, entre vrios grupos de lingua Je, so ao contrario pensadas como algo que clama por concluso. Entre Xikrin e Krah, exemplo, as his- trias sobre gente estranha (que pode ser tambm uma espcie estranha, mons- tro demonaco ou animal), organizam-se segundo um esquema simples que vai do encontro batalha, e da batalha ao encerramento da vingana, eventual- mente atravs de um massacre definitivo (ao quai os Tupinamb no parecem ter recorrido) (L. Vidal 1977 : 239, 241, 251, 253 ; H. Schultz 1954 : 155-6). Como nos Tupi, esse esquema clssico do mito de origem de uma cantiga ou de um ritul novo (E. V. de Castro 1984), mas diferentemente dos Tupi, cancelam-se as relaes com esses inimigos pela simples apropriao de seus cantos ou de seus rituals. Inconclusa por definio entre os Tupinamb, a vingana aqui prontamente cancelada. que queremos dizer com isto no que os grupos Je no tenham sido guerreiros, que sria negar a evidncia, sim que uma batalha sempe uma nova empresa, iniciada e terminada sem necessria referncia ao passado e ao futuro. Confirmao nos dios entre os Tupinamb, a guerra Je prev ao contrario uma quitao : Esta bem, esta pago j ! , a concluso de um mito krah (H. Schultz 1954 : 156).

    Confirmao indireta desses dois modos de pensar a existncia da sociedade materializada no tempo ou substanciada no espao seriam as Utopias caractersticas dessas sociedades. A forma crnica das Utopias je, corresponde entre os tupi-guaranis uma forma tpica : no se espra o advento da Terra sem Mal sob a forma, para nos familiar, do milnio , como um evento a ser esperado no tempo, tempo que , nestas sociedades, seu modo normal de produo ; preciso procurar a Terra sem Mal no espao, talvez a leste, talvez a oeste, e Tupis e Guaranis perambulam sua procura. Quanto aos messianismos je conhecidos (W. Crocker 1963, J. . Melatti 1977), assumen uma forma mile- narista consistente com sociedades que se apresentam espaciais : seu advento da ordem do evento. Em suma, as Utopias das sociedades tupi (que se pensam segundo modo temporal) seriam dadas no espao, as Utopias das sociedades je (que se pensam segundo modo espacial) seriam dadas no tempo.

  • VINGANA E TEMPORALIDADE 203

    contraste dos Tupinamb com certos grupos Je no quer ser uma tipolo- gia : tem nica funo ressaltar certas caracteristicas daquelas sociedades que vinhamos sugerindo, e tampouco quer esgotar os contrastes possiveis. Haveria que introduzir ai, por exemplo, o caso dos povos do Vaups-Negro. Nestes, a relao com tempo se d, literalmente, sob a forma da conjurao. O intento espresso no mito, no ritual xamanstico, nas cerimnias do Jurupari , a abolio do hiato temporal entre prsente e uma origem. Toda a cosmologia destes povos parece fundada numa luta contra a entropia, na afirmao de uma identidade, sempe posta em risco, com um passado a ser recuperado. A reitera- o, aqui, de outra ordem que para os J-Bororo : h uma aparncia de aceitao do tempo, mas que no passa de aparncia. Estas sociedades no se contentam com a afirmao de um lao metonimico ininterrupto ( moda linha- geira) com a ancestralidade, mas se reasseguram de sua propria identidade atra- vs de um curto-circuito que, a cada duas geraes, as transporta as origens elas mesmas concebidas (mas aqui trata-se de metafora) sob a espcie de uma alternncia geracional ciclica e de um afastamento face a um comeo espacio- temporal absoluto (C. Hugh- Jones 1979). A reiterao se faz aqui no elemento da temporalidade, ou melhor, a propria temporalidade que se torna retorno do Mesmo. Sociedades-iois, que no se desprendem de seu momento inicil. Nelas, sentido da memria se aproxima bem mais da aletheia grega : a mem- ria retorno, retrospeco, reproduo. J nos Tupi, a memria estar a servio de um destino, no de uma origem, de um futuro e no de um passado.

    III

    problema etnolgico grai que nos intressa de saber se a clssica representao da sociedade primitiva como sociedade fria , tipo onde se acham associados trs traos cruciais pequena abertura para exterior, trama social interna elaborada, rcusa de um devir histrico (como resume Lvi- Strauss 1973 : 375-6) se essa imagem, conquanto instigante e no-trivial, basta para dar conta dos modos de continuidade social sul-americanos. Em outras palavras, trata-se de saber se o esvaziamento ou neutralizao da dimenso temporal, em troca de um privilgio concedido espacialidade, de fato um invariante cosmo-sociologico forte na America indigena. Sinteses rcentes pareceriam militar em favor de tal interpretao. Elas sugerem, ademais, que esse esvaziamento da temporalidade vai de par com uma atitude de dene- gao (expulso, mascaramento) ou de domesticao (interiorizao) da dife- rena. A afinidade a aliana matrimonial e politica sria um referente central desse conceito de diferena ; e a excluso da temporalidade se manifestaria, de modo imediato, na escala temporal restrita em que se movem as sociedades do continente. Afinidade problematizada ou mascarada : descendncia neu- tralizada pela amnsia genealgica e por um tempo sem espessura : como se v, a questo de se determinarem os eixos e principios pelos quais se assegura a continuidade social passa a ser fundamental, para os numerosos povos da America indigena onde no vigoram nem as formaes politicas centralizadas, nem

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    os paradigmas africanos da unilinearidade corporada, nem as formas can- nicas da aliana matrimonial perptua e totalizante.

    Vimos que dificilmente os fatos Tupinamb se inserem ai : dificilmente podem ser postos em continuidade, introduzidos no grupo de transformaes que eventualmente conferiria uma inteligibilidade comum a formas sociais to diversas como os povos J-Bororo do Brasil Central, os grupos da bacia do Vaups-Negro, as sociedades do escudo da Guiana. Teriamos em nosso caso mesmo recalque do tempo, mesmo desconforto face diferena, e a mesma questo de fundo, diversamente solucionade : que fazer com os outros, e com tempo, que torna tudo outro 9 ? No nos parece que assim sej a.

    Se recusamos para os Tupinamb o qualificativo de sociedade fria , no nos inscrevemos entretanto entre aqueles que martelam o bvio e dizem que toda a sociedade esta na histria ; ou ainda que atribuem a um vis terico acoplado a uma miopia metodolgica (a limitao a estudos sincrnicos ) a representao de um tipo de sociedade fria, como recentemente R. Rosaldo (1980) a propsito do caso dos Ilongot, caadores de cabea filipinos. Pois no menos indubitvel que existem estruturas sociais e atitudes cosmolgicas, que recusam ativamente a dimenso da temporalidade e que se concebem como fora de qualquer Histria, e disto que Lvi-Strauss esta falando. que sugerimos que estas formas frias no s no esgotam campo das sociedades primiti- vas (termo vago, certo) como tampouco Ihes so exclusivas e.g. caso da India (L. Dumont 1966).

    Talvez recorte possa ser outro : se o funcionalismo encontrou seu terreno de predileo embora no seus limites nas sociedades de linhagens, e estruturalismo nas sociedades de tipo reiterativo, das quais o conjunto J- Bororo locus classicus, a histria foi reintroduzida, e no cremos que fortui- tamente, para dar conta de sociedades cognticas e no-reiterativas (vide ainda Rosaldo, 1980). Talvec, nesse sentido, a histria no sej a mais do que a forma de conscincia de si mesmas de tais sociedades.

    Queremos assim por em causa a associao que costumeiramente se faz entre sociedades primitivas e sociedades frias ou estagnantes . Por impotncia ou por opo, importante que essas sociedades so rcalcitrantes ao evento : nelas, acontecimento digerido sem que se converta em questo. Sociedades quentes ou histricas, nos termos de Lefort em que estamos agora discutindo (1978) seriam aquelas, ao contrario, em que acontecimento passa a ser ele- mento de um debate que se rfre ao passado para antecipar sobre o futuro. Se todas as sociedades tm portanto histria, na medida em que todas so fruto de transformaes, nem todas so histricas, o que quivale a dizer, note-se, que sociedades histricas so as que tm conscincia de sua histria e lhe conferem um papel central na sua auto-inteligibilidade : formulao no to diferente, afi- nal, da de Hegel, contra a quai Lefort se insurge.

    A guerra Tupinamb problema. E em ultima anlise, trata-se de saber se esta guerra um dispositivo de perseverao no prprio ser da sociedade em causa : se uma luta contra devir e a diferena, em prol de um Mesmo temporal e identitrio.

    Ora, assim no . Quanto a isso da perseverao no prprio ser clbre mote spinozista evocado por Lvi-Strauss e ecoado por P. Clastres d-se

  • VINGANA E TEMPORALIDADE 205

    que a vingana tupinamb, longe de remeter quelas mquinas de suprimir tempo que povoam a fbrica social primitiva (mito e rito, totem e linhagem, classificao e origem), ao contrario uma mquina de tempo, movida a tempo e produtora de tempo, vindo a constituir a forma tupinamb integralmente nessa dimenso.

    por isso, por essa subordinao da espacialidade temporalidade na mor- fognese tupinamb, que a memria aparecer como meio e lugar por exce- lncia de efetuao do social. Ou mais que um meio-a memria social tupinamb, que nuo existe, a rigor, antes ou fora da memoria-vingana, como subs- tncia anteposta que se valesse do instrumento da guerra para se refletir e, assim, perseverar. A memria tupinamb memria da vingana : a vingana a forma e o contedo dessa memria. E assim, a perseverao da forma que se pe como instrumental para a vingana : a sociedade um meio para fins guerreiros. Por isso a noo de uma funo sociolgica da guerra , cara tanto Florestan Fernandes (1970) como Pierre Clastres (1977) parece-nos errar no essencial. A guerra tupinamb no se presta a uma reduo instrumen- talista, ela no funcional para a autonomia (o equilbrio, a reproduo ) da sociedade, autonomia essa que sria o telos da sociedade primitiva. E foi assim que Florestan precisou reduzir a guerra a pea de um inexis- tente culto de ancestrais, e que Clastres expulsou os Tupis do paraiso primitivo : essa guerra era excessiva dentro do universo morno das funes e da regulao social. Ambos os autores, portanto, invertem a relao meios/fins se tal relao tem algum sentido, em um caso onde guerra e sociedade so coextensi- vas.

    A guerra de vingana tupinamb uma tcnica da memria, mas uma tc- nica singular : processo de circulao perptua da memria entre os grupos ini- migos, ela se define, em vrios sentidos, como memria dos inimigos. E portanto no se inscreve entre as figuras da reminiscncia e da aletheia, no retorno a uma Origem, esforo de restaurao de um Ser contra os assaltos cor- rosivos de um Devir exterior. No da ordem de uma recuperao e de uma reproduo social, mas da ordem da criao e da produo : instituinte, no instituida ou reconstituinte. abertura para o alheio, o alhures e alm : para a morte como positividade necessria. , enfim, um modo de fabricao do future

    NOTAS

    1. Tupinamb, o etnnimo que maior fama alcanou, recobria uma quantidade de grupos locais no Amazonas, no Maranho, e na costa oriental do Brasil at o Rio de Janeiro. Ele sera usado aqui em sentido lato, abrangendo todos os grupos de lingua Tupi da costa, e em particular os Tupini- quins.

    2. Duarte da Costa havia feito da antropofagia crime passivel de morte, mas sua autoridade, escrevia Nbrega no era respeitada. Mem de S, seu sucessor, quem impe aos indios da Bahia, a partir de 1558, abandono do canibalismo (HCJB II : 39-41) e reserva para si o poder de autorizar guerras entre grupos indgenas (Nbrega, Bahia, 8 de maio de 1558, CPJB II : 450).

    3. Em inicio de 1555, renem-se muitas aldeias para a guerra. Piratininga, habitada por nefitos cristos, no chamada : s destes se no fez caso, como se j no fossem homens seno mulhe- res, por nos obedecerem a nos e quererem adotar os nossos costumes. Quando o soube o principal

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    desta aldeia (trata-se de Martim Affonso Tibiria, protetor dos jesutas e de Martim Affonso de Souza que lhe deu seu nome cristo), deu mostras de brilhar nele a admira vel graa de Deus... Contou-nos isso nosso principal sem lhe dar maior ateno... (Anchieta, Cartas d. Viotti : 91- 92). Se em Janeiro Anchieta se flicita da indiferena do principal a essa afronta, em maro j tem de amargar a inconstncia de Tibiria que, re retemando velho nome e sacudindo de Martim Affonso, se dispe a matar um prisioneiro moda gentilica diante dos prprios catecme- nos, e que para tanto enfrenta os padres a brados (Anchieta, Cartas d. Viotti : 101). E com vidente prazer que, em 1563, Tibiria, com a ibirapema numa mo e a bandeira crist na outra, parte a cabea de um contrario ao defender os padres de um ataque inimigo a Piratininga (Anchieta, ibidem : 191-192).

    4. Lry havia resgatado uma mulher e seu filho, prisioneiros dos Tupinamb. Manifesta sua inteno de levar menino para a Frana, mas a me responde qu'elle esprait que, devenu grand, il pourrait s'chapper et se retirer avec des Margaias pour se venger. Et Lry commente : Cette nation a la vengeance enracine au cur. (Lry, 1957 /1578/ : 309.)

    5. Que a preservao da guerra e da antropofagia no discurso proftico seja uma parfrase da negao da aliana, na medida em que se devoravam cunhados, como quer Hlne Clastres (1975 : 58 e n. 1), parece-nos um tanto abusive Decerto os Tupi eram gente muito complicada (H. Clastres 1972 : 82), mas a parfrase no deixa de ser excessiva : um canho para um tico-tico.

    6. Estes dilogos, descritos em termos semelhantes por vrios cronistas, seriam provavelmente estertipos rituais, e como tais devem ser entendidos. Veja-se Staden, que sabia do que estava falando : (Diz matador), Sim, aqui estou eu, quero matar-te, pois tua gente tambm matou e comeu muitos dos meus amigos . Responde-lhe prisioneiro : Quando estiver morto, terei mui- tos amigos que sabero vingar-me (H. Staden 1974 (1556) : 182. Ver tambm A. Thevet 1953 (1575) : 280 e F. Cardim (1980 : 99).

    7. O nico ritual de concluso de paz entre dois grupos inimigos relatado pelo Pe. Leonardo do Vale, em 1562. Os dois chefes inimigos chamam-se mutuamente de esposa, de brao, de dente, ... (CPJB III : 478). Pedao de mim , diramos. H ai a ideia de um corpo nico, consistente com a indiferenciao interna do corpo social tupinamb.

    8. A associao entre vingana perpetuada e devorao parece ser corroborada pelos relatos de morte de onas. A ona ocupa no sistema Tupinamb uma posio singular. Diz Jcome Monteiro que se pensava que houvesse sido gente em outros tempos (1949 (1610) : 418) e famosa a frase de Cunhambebe : eu sou uma ona . a ona podia, como um inimigo, ser morta em terreiro, com tornda de nome (Cardim 1980 : 26). Mas um trecho de Thevet (1953 (1575) : 156) conta como, depois de morta a ona presa na armadilha, trazida para terreiro e paramentada como um prisioneiro que ir ser comido . Enderea-se ento ona um discurso que in verso do dilogo do cativo. Pede-se-lhe que desculpe uma morte que no foi realmente intencional, que a esquea e a no queira vingar sobre os homens. Discurso do esquecimento que o avesso do discurso da vingana e que acompanha uma absteno significativa : a ona no devorada.

    9. Ver os trabalhos de Joanna Overing Kaplan (1981, 1984) e de Peter Rivire (1984), que procu- ram esboar generalizaes comparativas sobre as estruturas sociais e cosmolgicas sul-americanas, partindo de niveis estratgicos diferentes, mas de uma mesma perspectiva etnogrfica (Guiana : Pia- roa, Caribes), e lanando mo do mesmo universo comparativo : os J-Bororo e os Tukano, as sociedades mais bem estudadas da America tropical.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    InformationsAutres contributions des auteursManuela Carneiro da Cunha Eduardo Viveiros de Castro

    Cet article est cit par :Bruce Albert. La Fume du mtal, L'Homme, 1988, vol. 28, n 106, pp. 87-119.Journal de la Socit des Amricanistes, Vol. 82, No. 82 (1996), pp. 398-400

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    PlanIIIIII Referncias bibliogrficas