castro, eduardo viveiros de - o nativo relativo

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O ser humano, tal como o imaginamos, não existe.  Nelson Rodrigues As páginas a seguir foram adaptadas do arrazoado introdutório a um livro em preparação, onde desenvolvo análises etnográficas anteriormente esboçadas. A principal delas foi um artigo publicado em  Mana , “Os Pro- nomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio” (Viveiros de Castro 1996), cujos pressupostos metateóricos, digamos assim, são agora explici- tados. Embora o presente texto possa ser lido sem nenhuma familiarida- de prévia com o artigo de 1996, o leitor deve ter em mente que as refe- rências a noções como ‘perspectiva’ e ‘ponto de vista’, bem como à idéia de um ‘pensamento indígena’, remetem àquele trabalho. As regras do jogo O ‘antropólogo’ é alguém que discorre sobre o discurso de um ‘nativo’. O nativo não precisa ser especialmente selvagem, ou tradicionalista, tampouco natural do lugar onde o antropólogo o encontra; o antropólo- go não carece ser excessivamente civilizado, ou modernista, sequer estrangeiro ao povo sobre o qual discorre. Os discursos, o do antropólo- go e sobretudo o do nativo, não são forçosamente textos: são quaisquer práticas de sentido 1 . O essencial é que o discurso do antropólogo (o ‘ob- servador’) estabeleça uma certa relação com o discurso do nativo (o ‘obser- vado’). Essa relação é uma relação de sentido, ou, como se diz quando o primeiro discurso pretende à Ciência, uma relação de conhecimento. Mas o conhecimento antropológico é imediatamente uma relação social, pois é o efeito das relações que constituem reciprocamente o sujeito que conhece e o sujeito que ele conhece, e a causa de uma transforma- O NATIVO RELATIVO Eduardo Viveiros de Castro MANA 8(1):113-148, 2002

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O ser hum ano, tal como o imaginam os, não existe.

 N elson Rodrigue s

As pág ina s a seg uir foram a da ptad as do a rrazoad o introdutório a u m livro

em preparação, onde desenvolvo anál ises e tnográf icas anter iormente

esb oçada s. A principa l de las foi um a rtigo pu blicad o em  Mana, “Os Pro-

nome s C osmológicos e o Perspe ctivismo Ame rínd io” (Viveiros de Ca stro

1996), cujos pre ssupostos me tate óricos, diga mos a ssim, sã o ag ora e xplici-tados. Embora o presen te texto possa ser l ido sem ne nhu ma familiarida -

de prévia com o ar t igo de 1996, o le i tor deve ter em me nte q ue as refe-

rên cias a noções como ‘pe rspectiva’ e ‘ponto d e vista’, bem como à idéia

de u m ‘pe nsam ento indígen a’, reme tem àq ue le trabalho.

As regras do jogo

O ‘an tropólogo’ é algu ém qu e discorre sobre o discurso de u m ‘na tivo’.

O na t ivo não p rec isa se r e spec ia lme nte se lvag em , ou t rad iciona l is ta ,

tam pouco na tural do lug ar ond e o an tropólogo o encontra; o an tropólo-

go n ão care ce ser excess ivame nte c iv ilizado , ou mode rn ista , sequ er

estra ng eiro ao povo sobre o qua l discorre. Os d iscursos, o do an tropólo-

go e sobre tudo o do na tivo, nã o são forçosam en te textos: são qu aisque r

práticas de sentido1. O e ssencial é q ue o discurso do a ntropólogo (o ‘ob-

servador’) esta be leça u ma certa re lação com o discurso do na tivo (o ‘obse r-

vado’). Essa re lação é uma relação de sent ido, ou , como se d iz qu an do

o primeiro d iscurso pretende à C iên cia , uma relação de conhecimento .

Ma s o conhecimento an tropológico é imed iatam en te u ma relação social ,

po is é o e fe i to da s re lações que cons t ituem rec ip rocam en te o su je ito

que conhe ce e o sujeito que e le conhece, e a causa de uma t ransforma-

O N ATIVO RELATIVO

Edua rdo Viveiros de Ca stro

MAN A 8(1):113-148, 2002

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ção ( toda re lação é um a t ra ns fo rmação) na cons t itu ição re lac iona l de

ambos2.

Essa (meta)relação n ão é de ide ntidade : o an tropólogo semp re d iz, epor tan to faz , ou t ra coisa q ue o na t ivo, mesmo qu e p re tend a nã o fazer

ma is qu e red izer ‘textua lmen te’ o discurso de ste, ou qu e ten te dialogar

— noção duvidosa — com e le. Tal difere nça é o e feito de conh ecimen to

do discurso do antropólogo, a relação e ntre o sen tido de seu d iscurso e o

sen tido d o discurso do nativo3.

A alterida de d iscursiva se ap óia, está claro, em u m pre ssuposto de

seme lha nça. O an tropólogo e o nativo são entidade s de me sma esp écie e

condição: são am bos hum an os, e e stão amb os instalados em su as cultu-ras respectivas, que podem , even tualmente , ser a mesma . Mas é a qui que

o jogo começa a f icar in teressante , ou m elhor, es t ran ho. Aind a q ua nd o

an tropólogo e n ativo comp artilha m a me sma cultura, a relação de senti-

do e ntre os dois discursos difere ncia tal comu nidad e: a relação d o antro-

pólogo com sua cultura e a d o nativo com a dele nã o é exatam en te a m es-

ma . O que faz do na tivo um na tivo é a pre ssuposição, por pa rte do an tro-

pólogo, de q ue a re lação do primeiro com sua cu ltura é na tural , is to é ,

intrínseca e espontâ ne a, e , se p ossível, nã o reflexiva; me lhor a ind a se forinconscien te. O na tivo exprime su a cultura em seu discurso; o an tropólo-

go també m, mas , se e le p re tende ser ou t ra co isa que um na t ivo , deve

pode r exp rimir sua cultura culturalme nte , isto é, reflexiva, cond iciona l e

consciente me nte. Sua cultura se acha contida, nas du as acep ções da pala-

vra, na relação de sentido que seu d iscurso estab elece com o discurso do

na tivo. Já o discurso do nativo, este está contido univocame nte, en cerra-

do em sua p rópria cultura. O a ntropólogo usa ne cessariam ente sua cultu-

ra; o nativo é suficien teme nte usado p ela sua.

Tal diferen ça, é ocioso lem brar, nã o reside na assim cha ma da na tu-

reza d as coisas ; e la é p rópria d o jogo de l ingu ag em qu e vam os descre-

vendo, e define as p ersonag ens d esigna das (arbitrariame nte no m asculi-

no) como ‘o an tropólogo’ e ‘o na tivo’. Veja mos m ais algu ma s reg ras d es-

se jogo.

A idé ia an tropológica de cu ltura coloca o antropólogo em p osição de

igualda de com o na tivo, ao implicar qu e todo conhe cime nto an tropológi-

co de outra cultura é culturalme nte m ed iad o. Tal igu aldad e é , porém , em

primeira instância, s imp lesmen te e mp írica ou d e fato: ela d iz respe ito à

condição cul tural comum (no sen t ido de ge né rica) do antropólogo e d o

na tivo. A relação d ifere ncial do an tropólogo e o na tivo com suas culturas

respectivas, e p ortan to com sua s culturas recíprocas, é de tal orde m q ue

a igua lda de d e fato não imp lica um a igua lda de d e direito — um a igua l-

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da de n o p lano do conhec imento . O a n t ropó logo tem usua lmente uma

vanta ge m ep istemológica sobre o nativo. O discurso do primeiro nã o se

acha situad o no mesmo p lano q ue o discurso do segu ndo: o sentido que oan tropólogo estab elece dep end e do sentido nativo, ma s é ele qu em d etém

o sentido desse sen tido — ele qu em explica e interp reta, tradu z e intro-

du z, textualiza e con textua liza, justifica e sign ifica e sse sen tido. A ma triz

rela ciona l do discurso an tropológico é h ilem órfica: o sentido do an tropó-

logo é forma; o do na tivo, ma téria. O discurso do nativo nã o deté m o sen -

tido de se u p róprio sen tido. De fato, como diria G ee rtz, somos todos nati-

vos; ma s de d ireito, un s semp re são ma is nativos qu e outros.

Este art igo propõe as pe rguntas segu intes. O que acontece se recu-sarmos ao discurso do an tropólogo sua va ntag em estratégica sobre o dis-

curso do nat ivo? O q ue se pa ssa qu an do o d iscurso do nat ivo fun ciona,

de ntro do discurso do antropólogo, de modo a p roduzir reciprocam en te

um efeito de conhecimen to sobre e sse discurso? Qu an do a forma intrín-

seca à matér ia do pr imeiro modif ica a matér ia impl íci ta na forma do

seg un do? Trad utor, traidor, diz-se; ma s o que a contece se o tradu tor deci-

d ir t ra ir sua própria l íng ua ? O q ue suced e se , insa t is fei tos com a m era

igua ldad e p assiva, ou d e fato, entre os sujeitos desses d iscursos, reivind i-carmos um a igua lda de ativa, ou de direito, en tre os discursos eles mes-

mos? Se a disparidad e e ntre os sen tidos do an tropólogo e d o na tivo, lon-

ge de ne utralizada por tal equ ivalên cia, for interna lizada , introduzida em

am bos os discursos, e assim poten cializad a? Se, em luga r de ad mitir com-

placentem en te q ue somos todos nativos, levarmos à s última s, ou de vida s,

conseq üê ncias a ap osta oposta — que somos todos ‘an tropólogos’ (Wag-

ne r 1981:36), e não u ns ma is an tropólogos que os outros, ma s ape na s cada

um a seu modo, isto é, de m odos muito diferen tes? O q ue mud a, em sum a,

qu an do a an tropologia é toma da como uma prática de sentido em conti-

nu ida de ep istêmica com as prá ticas sobre as q ua is discorre, como equ i-

valente a elas? Isto é, quan do a plicamos a noção de “a ntropologia simé -

trica” (Latour 1991) à an tropologia e la própria, nã o pa ra fulminá -la por

colonialista, exorcizar seu e xotismo, mina r seu cam po intelectua l , ma s

pa ra fazê-la d izer outra coisa? Outra coisa nã o ape nas q ue o discurso do

na t ivo, pois isso é o que a a ntropologia nã o pode de ixar d e fazer , ma s

outra qu e o d iscurso , em g era l sussurrado, que o antropólogo enu ncia

sobre si me smo, ao discorrer sobre o discurso do nativo?4

Se fizerm os tud o isso, eu diria q ue estare mos faze nd o o qu e sem pre

se cha mou p ropriam en te de ‘an tropologia’, em vez de — por exem plo —

‘sociologia’ ou ‘psicologia’. Digo a pe na s diria, porqu e mu ito do qu e se

fez e faz sob esse n ome su põe, ao contrário, qu e o a ntropólogo é a que le

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que detém a posse e minente da s razões que a razão do nativo desconhe-

ce. Ele te m a ciên cia d as doses p recisas de un iversalida de e p art iculari-

da de contida no nat ivo, e d as i lusões que es te en tretém a respei to de s ipróprio — ora ma nifestand o sua cultura n ativa a creditan do m an ifestar a

na tureza h um an a (o na t ivo ide ologiza sem sa be r), ora ma nifes tan do a

na tureza hu ma na acreditand o man ifestar sua cultura n ativa (ele cognit i-

za à revelia)5. A relação de conhecimen to é aqu i concebida como unila-

teral, a alterida de en tre o sen tido dos discursos do an tropólogo e do n ati-

vo resolve-se em u m en globam en to . O an tropólogo conh ece de jure o

na tivo, ainda q ue p ossa de sconh ecê-lo de facto. Qua nd o se vai do na tivo

ao an tropólogo, dá -se o contrário: aind a qu e e le conh eça de facto o antro-pólogo (freqü en teme nte m elhor do que es te o conhece) , não o conhece

de jure , pois o na tivo não é , justam en te, an tropólogo como o an tropólo-

go. A ciên cia d o antropólogo é d e outra orde m q ue a ciência do na tivo, e

precisa sê-lo: a condição d e p ossibilida de da primeira é a d eslegitimação

da s preten sões da se gun da, seu “e pistemocídio”, no for te d izer de Bob

Scholte (1984:964). O conhe cime nto p or pa rte d o sujeito exige o de sco-

nhe cime nto por parte do objeto.

Ma s não é re almen te preciso fazer um dram a a respeito disso. Comoate sta a história da disciplina , esse jogo d iscursivo, com ta is reg ras d esi-

gu ais, disse mu ita coisa instrutiva sobre os na tivos. A expe riência pro-

posta no pre sente artigo, entretan to, consiste precisam en te e m recu sá-lo.

Não porque ta l jogo produza resul tados objet ivamente fa lsos , i s to é ,

represente de modo errôneo a n atureza d o nativo; o conceito de verdade

objetiva (como os de rep resentaçã o e de na tureza) é parte da s regras des-

se  jogo, não do q ue se prop õe aq ui. De resto, uma ve z dad os os objetos

qu e o jogo clássico se dá , seu s resultad os são freq üe ntem en te convincen -

tes , ou pelo menos, como gostam de dizer os adeptos desse jogo,

‘plausíveis’6. Recusa r e sse jogo s ign ifica a pe na s da r-se outros objetos,

compatíveis com as outras reg ras acima e sboçad as.

O que es tou sug erindo, em poucas pa lavras , é a incompat ib ilida de

en tre dua s concep ções da an tropologia, e a n ecessidad e de escolhe r entre

elas . De um lad o, tem os um a imag em d o conhe cime nto antropológico

como resultand o da a plicação d e conce itos extrínsecos ao objeto: sabe -

mos de an temã o o que sã o as relações sociais, ou a cogn ição, o pa rente s-

co, a re ligião, a p olítica etc., e va mos ver como tais entida de s se rea lizam

ne ste ou na qu ele conte xto etn ográfico — como elas se rea lizam , é claro,

pe las cos tas dos in teressados . De outro (e es te é o jogo aq ui proposto),

está um a idéia do conh ecimen to an tropológico como envolvend o a pres-

supos ição fund am enta l de que os p roced imentos que carac te r izam a

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investigação são conceitualmente da me sma ordem q ue os procedimen-

tos investigad os7. Tal eq uivalên cia no p lano dos p roced imentos , sub li-

nhe -se , supõe e p roduz uma não-eq uivalên cia rad ical de tudo o mais .Pois , se a pr imeira concep ção de an tropologia imag ina cada cultura ou

soc ieda de como en carnan do uma solução espe c ífica de um prob lema

ge né rico — ou como pree nche nd o uma forma un iversal (o conce ito antro-

pológico) com um conteú do pa rticular —, a segu nd a, ao contrário, sus-

pe ita qu e os problem as eles me smos são radicalmen te diversos; sobretu -

do , e la par te do p r inc íp io de qu e o an t ropó logo não sabe de an tem ão

qu ais são eles. O qu e a an tropologia, ne sse caso, põe e m relação são pro-

blem as difere nte s, nã o um problem a ún ico (‘na tura l’) e sua s difere nte ssoluçõe s (‘cultura is’). A “a rte d a a ntrop ologia” (Ge ll 1999), pe nso e u, é a

arte de de termina r os problema s postos por cada cultura, não a de acha r

soluções pa ra os problema s postos pela n ossa. E é e xatam en te p or isso

que o pos tu lado da con t inu idad e d os p roced imentos é u m impe ra t ivo

epistemológico8.

Dos proced imentos, repito, não d os que os leva m a cab o. Pois tam-

pouco se trata d e cond en ar o jogo clássico por produzir resultados sub je-

tivame nte falsea dos, ao nã o reconhe cer ao na tivo sua cond ição de Sujei-to: ao mirá-lo com um olha r distan ciad o e care nte d e e mp atia, construí-lo

como um objeto exótico, diminuí-lo como um primitivo não coevo ao

observador, ne ga r- lhe o d ireito hum an o à in ter locução — conhece-se a

litan ia. Nã o é na da disso. Ante s pe lo contrário, pe nso. É justo porqu e o

an tropólogo toma o na tivo muito facilme nte por um outro sujeito que ele

nã o conseg ue vê-lo como um sujeito outro, como um a figu ra de O utrem

qu e, ante s de ser sujeito ou objeto, é a e xpressão de u m mu nd o possível.

É por nã o ace itar a condição de ‘nã o-sujeito’ (no sen tido de outro que o

sujeito) do na tivo que o antropólogo introdu z, sob a ca pa de um a p rocla-

ma da igua lda de de fato com e ste, sua sorrateira vanta ge m de direito. Ele

sab e de ma is sobre o na tivo de sde a ntes do início da pa rtida ; ele pre de fi-

ne e circun screve os mun dos possíveis expre ssos por esse outrem ; a a lte-

ridad e d e outrem foi radicalmente separad a d e sua capacidade de altera-

ção. O autê ntico an imista é o antropólogo, e a ob servaçã o participan te é

a verda de ira (ou seja, falsa) participaçã o primitiva.

Não se trata, portanto, de p ropugn ar um a forma de idealismo intersubjetivo,

ne m d e fazer valer os direitos da ra zão comunicacional ou do consenso dia-

lógico. Me u p onto de a poio aqui é o conceito acima e vocado, o de O utrem

como estrutura a priori. Ele está prop osto no conhe cido come ntá rio de G illes

Deleuze a o Vend red i d e Miche l Tourn ier9. Len do o livro de Tourn ier como a

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de scrição ficcional de um a e xperiência m etafísica — o que é u m m und o sem

outrem? —, Deleuze proced e a u ma indu ção dos efeitos da p resen ça desse

outrem a par t i r dos efe i tos causados por sua ausência . Outrem aparece ,assim, como a cond ição do cam po pe rceptivo: o mun do fora do a lcan ce da

percepção atua l tem sua p ossibilidad e d e e xistência g arantida pe la presen-

ça virtual de um outrem por qu em ele é p ercebido; o invisível para mim sub -

s is te como rea l por sua v is ib i lidade pa ra outrem 10 . A ausê ncia de outrem

aca rreta a de sapa rição da categ oria do possível; caindo esta, desmorona o

mu nd o, qu e se vê re du zido à p ura su pe rfície do imediato, e o sujeito se d is-

solve , passand o a coincidir com as coisas-em-si (ao m esmo tem po e m que

estas se de sdobram e m d uplos fan tasmáticos). Outrem, porém, não é n in -g u é m, nem sujeito nem objeto, mas u ma estrutura ou relação, a relação ab so-

luta que dete rmina a ocupação da s posições relativas de sujeito e de objeto

por personag ens concre tos , be m como sua a l ternân cia : outrem d esigna a

mim para o outro Eu e o outro eu p ara mim. Outrem não é u m elemen to do

camp o percep t ivo; é o p r incípio que o const itu i , a e le e a seus conteú dos.

Ou trem nã o é, portan to, um p onto de vista p articular, relativo ao sujeito (o

‘ponto d e vista do outro’ em relação a o me u p onto de vista ou vice-versa),

ma s a poss ib i lidade de q ue ha ja ponto de v is ta — ou se ja , é o conceito d epon to de vista. Ele é o ponto de v is ta que p ermite que o Eu e o Outro ace-

dam a um ponto d e vista11 .

Deleuze prolong a aq ui criticam ente a famosa an álise de Sartre sobre o

‘olha r’, afirma nd o a existência de u ma estrutura a nterior à reciprocidade de

perspectivas do regard sar t riano. O q ue é e ssa es tru tura? Ela é a e s tru tura

do p ossível: Outrem é a exp ressão de um m undo possível. Um possível que

existe realmente, mas que nã o existe atualme nte fora de sua expressão em

outrem. O possível expr imido e s tá en volvido ou implicado n o exprimen te

(que lhe p erman ece en tretanto heterogên eo), e se acha efetuado na lingu a-

gem ou no signo, que é a realidad e d o possível enqu anto tal — o sentido. O

Eu surge en tão como explicação de sse implicado, atua lização de sse possí-

vel, ao tomar o luga r que lhe cab e (o de ‘eu ’) no jogo de lingu age m. O sujei-

to é assim efeito, nã o causa; ele é o resultado d a interiorização de um a rela-

ção que lhe é exter ior — ou antes , de um a re lação à qua l e le é inte rior: as

re lações são or ig inar iame nte exter iores aos termos, porque os termos são

interiores às relações. “H á vários sujeitos porque h á outrem , e não o contrá-

rio” (Deleuze e G ua ttari 1991:22).

O p roblema nã o está, portanto, em ver o na tivo como objeto, e a solu-

ção nã o reside em pô-lo como sujeito. Que o na tivo seja um sujeito, nã o

há a men or dúv ida ; mas o q u e p o d e s er  um sujeito , e is precisam en te o

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qu e o n at ivo obriga o an tropólogo a pôr em dú vida . Tal é a ‘cogitação’

esp ecificam en te a ntropológica; só ela pe rmite à a ntropologia assum ir a

presença v ir tual de Outrem que é sua condição — a condição de passa-ge m de um m un do possível a outro —, e qu e de termina a s posições deri-

vad as e vicárias de sujeito e de ob jeto.

O físico interroga o ne utrino, e n ão p ode discordar d ele; o antropó-

logo respond e pe lo na t ivo, qu e e ntão só pode (de d irei to e , freq üe nte-

me nte , de fato) concordar com e le. O físico precisa se a ssociar a o ne utri-

no, pe nsar com seu recalcitrante objeto; o an tropólogo associa o na tivo a

si mesmo, pen sand o que seu objeto faz as m esma s associações que ele —

isto é, que o nativo pen sa como ele. O p roblem a é que o nativo certamen -te  pensa , como o antropólogo; ma s, mu ito provavelmen te, ele nã o pen sa

como o antropólogo. O n ativo é, sem d úvida, um ob jeto especial, um obje-

to pensan te ou um sujeito. Mas se e le é objetivam ente um sujeito, então

o que e le pen sa é um pe nsame nto ob je t ivo, a expressão de um mu ndo

possível, ao me smo título que o qu e p en sa o a ntropólogo. Por isso, a d ife-

rença m alinowskiana en tre o que o na tivo pe nsa (ou faz) e o qu e e le p en-

sa qu e p en sa (ou que faz) é u ma diferen ça espú ria. É justame nte p or ali,

por essa bifurcação da naturez a do outro, que pretende entrar o an tropó-logo (qu e faria o qu e p en sa)12. A boa d iferen ça, ou diferen ça rea l, é e ntre

o que pe nsa (ou faz) o na tivo e o qu e o a ntropólogo pen sa qu e (e faz com

o que ) o nativo pe nsa, e sã o esses dois pen same ntos (ou faze res) qu e se

confrontam . Tal confronto não pre cisa se resu mir a uma me sma e qu ivoci-

da de d e p ar te a p ar te — o equ ívoco nunca é o me smo, as pa r tes nã o o

send o; e d e resto, que m d efiniria a ad eq uad a u nivocida de? —, mas tam-

pouco pre cisa se conten tar em ser um diálogo ed ifican te . O confronto

de ve pode r produzir a m útua implicação, a comum a lteração dos discur-

sos em jogo, pois não se trata d e che ga r ao consenso, mas ao conceito.

Evoque i a distinçã o criticista e ntre o qu id facti e o quid juris. Ela m e

pa receu útil porque o primeiro problem a a resolver consiste ne ssa avalia-

ção da pre ten são ao conhe cime nto imp lícita n o discurso do antropólogo.

Tal proble ma nã o é cogn itivo, ou seja, psicológico; nã o concern e à possi-

bilida de em pírica do conhe cime nto de u ma outra cultura 13 . Ele é ep iste-

mológico, isto é, político. Ele diz respe ito à q ue stão prop riam en te tra ns-

cend enta l da leg itimidade atribuída a os discursos que e ntram e m relação

de conhecimento , e , em pa rt icular, às re lações de ordem que se de cide

estatu ir en tre esses discursos, qu e certam en te nã o são ina tas, como tam -

pouco o são seus pólos de e nu nciação. Ningu ém n asce a ntropólogo, e

me nos ainda, p or curioso que pa reça, na tivo.

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No limite

Nos últimos temp os, os antropólogos temos mostrad o gran de inquietaçãoa re speito da identidad e e de stino de nossa disciplina : o que ela é, se ela

ainda é, o que ela de ve ser, se ela tem o direito de ser, qua l é seu objeto

próprio, seu mé todo, sua missão, e por a í afora (ver, por exe mp lo, Moore

1999). Fiqu em os com a qu estão d o objeto, qu e imp lica a s de ma is. Seria

ele a cul tura , como na t radição discip l ina r am ericana ? A organ ização

social, como na tradição b ritânica? A na tureza hu man a, como na tradição

francesa? Pen so que a resposta ad eq uad a é : toda s as respostas anter io-

res, e ne nhu ma d elas. Cultura, socieda de e nature za dão na mesma ; taisnoções não de sign am o objeto da a ntropologia, seu assunto, mas sim seu

problema, aqu ilo qu e ela justame nte nã o pode assumir (Latour 1991:109-

110, 130), porqua nto há um a ‘trad ição’ a m ais a levar em conta, aq ue la

qu e conta m ais: a trad ição do na tivo.

Admitamos, pois se há de começar por a lgum luga r, que a m atér ia

privilegiada da an tropologia seja a socialida de hu ma na , isto é, o que va-

mos cham an do de ‘relações sociais’; e a ceitem os a pond eraçã o de qu e a

‘cultura’, por exemp lo, nã o tem e xistência inde pe nd en te de sua a tualiza-ção nessas relações14 . Resta, ponto importante, q ue tais relações variam

no espa ço e no temp o; e se a cu l tu ra não e x is te fo ra d e sua expressão

relacional , então a var iação re lacional tamb ém é variação cu ltural , ou ,

dito de outro modo, ‘cultura’ é o n ome qu e a an tropologia dá à va riação

relacional.

Ma s essa variação relacional — nã o obriga ria e la a sup ormos um

sujeito, um sub strato invariante d o qua l ela se pred ica? Questão semp re

laten te , e ins is tente e m sua sup osta evidê ncia; que stão , sobretud o, mal

formulada . Pois o qu e varia crucialmente nã o é o conteúdo d as relações,

mas sua idéia mesma: o que conta como relação nesta ou na quela cultu-

ra .  N ão são as relações q ue variam , são as variações q ue relacionam . E

se ass im é, então o substrato imaginado das variações , a ‘natureza

hum ana ’ — pa ra pa ssarmos ao conceito caro à terceira gra nde t radição

an tropológica —, mud aria completame nte de funçã o, ou me lhor, deixaria

de ser uma sub stância e se tornaria uma verda deira função. A natureza

deixaria d e ser um a e spécie d e m áximo denominador comum d as cultu-

ras (máximo que é u m m ín imo, uma hum anitas min im a), uma sorte d e

fun do de se me lha nça obt ido por cancelam en to das d iferen ças a fim de

constituir um su jeito constan te, um e missor-refere nte e stáve l dos sign ifi-

cados culturais variáveis (como se a s difere nças n ão fossem igu almen te

na turais!). Ela p assa ria a ser algo como um mínimo múltiplo comum da s

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diferen ças — maior que as culturas, não m en or que elas —, ou algo como

a integ ral parcial da s diferen tes configura ções relaciona is que cham am os

‘culturas’15 . O ‘mínimo’ é, ne sse caso, a mu ltiplicida de comum ao h um a-n o — hum anitas m ul tip lex . A d i ta n a tu reza d e ixar ia a ssim d e ser u ma

substância auto-seme lhan te situada em algum lugar na tural privilegiado

(o céreb ro, por exem plo), e assumiria e la própria o estatuto de u ma rela-

ção d ifere ncial, disposta entre os term os qu e ela ‘na tura liza’: torna r-se-ia

o conjunto de tran sformações requ eridas pa ra se d escrever as variações

en tre a s diferen tes configura ções relaciona is conhecidas. Ou, p ara usar-

mos ainda uma outra image m, ela se tornaria a qui um pu ro limite — ma s

nã o no sentido geom étrico de limitação, isto é, de pe ríme tro ou term o queconstran ge e de fine um a forma sub stancial (recorde-se a idéia, tão pre-

sen te n o vocab ulár io an tropológico, das encein tes me nta les ) , e s im n o

sent ido ma temá tico de p onto pa ra o qual ten de u ma sér ie ou uma rela-

ção: limite-tensão, não limite-contorno16. A natureza hu ma na , ne sse caso,

seria uma opera ção teórica d e ‘pa ssagem ao limite’, que ind ica a qu ilo de

qu e os seres huma nos são virtualmente cap azes, e nã o uma limitação qu e

os determina atua lme nte a nã o ser outra coisa17 . Se a cu ltura é um siste-

ma de d ifere nça s , como gostava m de dizer os es t ru tura l is tas , en tão ana tureza tamb ém o é: diferen ças de diferen ças.

O motivo (caracteristicame nte ka ntiano, escusad o dizer) do limite-contorno,

tão presen te no imag inário da d isciplina, é p articularmente conspícuo qua n-

do o hor izonte ass im del imitado consis te na cham ad a n at u re z a h u m a n a,

como é o caso da s orien tações n atu ral-universalistas ta is a sociobiologia ou

a p sicologia evolucionária, e, em boa me dida, o próprio estruturalismo. Mas

ele está presen te tamb ém n os discursos sobre as culturas hum anas, onde dá

testem un ho da s limitações — se p osso me exprimir assim — da p ostura cul-

tural-relativista clássica. Recorde -se o tema consa gra do pe la frase d e Evan s-

Pritchard a respeito da bruxaria zand e — “os Azand e nã o podem p ensar qu e

seu pe nsam ento está e rrado”—; ou a imag em antropológica corrente da cul-

tura como próte se ocular (ou crivo classificatório) qu e só p erm ite ‘ver a s

coisas’ de um cer to modo (ou qu e ocul ta cer tos peda ços da rea l ida de) ; ou

ainda, para c itarmos um e xemplo mais recente , a me táfora do “bocal” e m

que cada ép oca histórica estaria en cerrada (Veyne 1983)18 . Seja com respei-

to à na ture za, seja às cultura s, o motivo me p are ce igua lmen te ‘limitad o’. Se

quiséssemos ser perversos, diríam os qu e sua n eu tralida de e stratégica, sua

co-presen ça nos camp os inimigos do universalismo e do relativismo, é um a

prova e loqüente de q ue a noção de enceinte m entale é u m a d a s enceintes

menta les características de nosso comum ‘bocal’ histórico. De qualquer

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O N ATIVO RELATIVO122

modo, ela mostra b em que a sup osta oposição en tre un iversalismo natura lis-

ta e re lativismo culturalista é, no mínimo, mu ito relativa (e p erfeitame nte

cultural), pois se resume a u ma que stão de e scolher as dimen sões do bocal,o tama nh o do cárcere em qu e jazem os prisione iros: a ce la incluiria ca tolica-

men te toda a espé cie hu man a, ou seria feita sob medida pa ra cada cultura?

Ha veria ta lvez u ma só grand e p eni tenciár ia ‘na tura l’, com diferen tes a las

‘cul turais’, uma s com celas talvez um pouco ma is esp açosas qu e outra s?19

O ob jeto da a ntropologia, assim, seria a va riaçã o da s relações sociais.

Nã o da s relações sociais tomad as como um a p rovíncia ontológica distin-

ta, mas d e todos os fen ôme nos possíveis en qu an to relações sociais , en -qu an to imp licam relaçõe s sociais: de toda s as relações como sociais. Ma s

isso de u ma p erspectiva qu e nã o seja totalmente d ominada p ela doutrina

ocide ntal da s relações sociais; um a p erspe ctiva, portanto, pronta a a dm i-

tir que o trata me nto de toda s as relações como sociais pode levar a u ma

reconceituação rad ical do q ue seja ‘o social’. Diga mos en tão qu e a an tro-

pologia se d isting a dos outros discursos sobre a socialida de hu ma na n ão

por dispor de u ma d outrina p art icularmen te sólida sobre a n ature za da s

relações sociais, ma s, ao contrário, por ter a pe na s uma vaga idéia inicialdo qu e seja u ma relação. Pois seu p roblema ca racterístico consiste me nos

em de terminar q ua is são as relações sociais que constituem seu objeto, e

muito mais em se perguntar o que seu objeto const i tu i como relação

social , o que é u ma relaçã o social nos termos de se u objeto, ou melhor,

nos term os formu láveis pela relaçã o (social, natu ralme nte , e constitutiva)

entre o ‘an tropólogo’ e o ‘na tivo’.

Da concepção ao conceito

Isso tudo nã o quere ria ap en as dizer que o ponto de vista aqu i de fen dido,

e exemplif icado em meu t rabalho sobre o perspect iv ismo ameríndio

(Viveiros de Ca stro 1996), é ‘o pon to de vista do n ativo’, como os an tro-

pólogos professam d e longa d ata? De fato, nã o há n ad a d e p articularme n-

te or ig inal no ponto de v ista ad otado; a or ig inal ida de qu e conta é a d o

ponto de vista indígen a, não a do me u comen tário. Mas, sobre a que stão

de o objet ivo ser o ponto de v is ta do n at ivo — a resposta é s im, e n ão.

Sim, e m esmo ma is, porqu e m eu problem a, no a rtigo citado, foi o de sabe r

o que é u m ‘ponto de vista’ para o nativo, enten da -se, qua l é o conceito

de ponto de vista p resen te na s culturas am azônicas: qu al o ponto de vis-

ta n ativo sobre o pon to de vista. Nã o, por outro lad o, porque o conceito

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O N ATIVO RELATIVO 123

na t ivo de ponto de v is ta nã o coincide com o concei to de p onto de v is ta

do na t ivo; e p orque m eu ponto de v ista nã o pode ser o do na t ivo, mas o

de minha re lação com o ponto de vista nativo. O q ue en volve uma dimen-são essen cial de  ficção , pois se trata de pôr em ressonância interna dois

pontos de vista completam ente he terogêne os.

O q ue fiz em me u a rtigo sobre o p erspe ctivismo foi uma expe riên cia

de pensamento e um exercício de f icção antropológica. A expressão

‘exper iênc ia d e p ensam ento’ nã o tem a qu i o sen t ido usua l de e n t rada

imaginária na e xperiência pelo (próprio) pe nsam en to, ma s o de en trada

no (ou t ro) pensame nto pe la e xper iênc ia rea l : não se t ra ta de imag inar

uma exper iênc ia , mas de exper imen tar uma imaginação20

. A experiên-cia, no ca so, é a minha própria, como etnógra fo e como leitor da biblio-

grafia e tnológica sobre a Amazônia indígena , e o e xperimento, uma fic-

ção controlad a p or essa e xperiência . Ou seja , a f icção é a ntropológica,

ma s sua a ntropologia n ão é fictícia.

Em q ue consiste tal f icção? Ela consiste e m tomar a s idéias indíge-

nas como conceitos, e e m extrair de ssa decisão suas conseqü ên cias: de -

terminar o solo pré-conceitua l ou o p lan o de ima nê ncia qu e ta is concei-

tos pressupõem, os personag ens conceituais que eles acionam, e a maté-ria d o real que eles põem . Tratar e ssas idé ias como conce itos n ão signifi-

ca, note-se be m, que e las sejam objetivam en te dete rminada s como outra

coisa, outro tipo d e ob jeto atu al. Pois tratá -las como cognições ind ividua is,

rep rese nta ções coletivas, atitud es p roposiciona is, crença s cosmológicas,

esqu em as inconscien tes, disposições encorporada s e p or aí afora — estas

seriam outra s tantas ficções teóricas que a pe na s escolhi não acolher.

Assim, o tipo de trab alho que ad vogo aq ui não é, nem um e studo de

‘me ntalida de primitiva’ (supond o que tal noção ainda tenh a u m se ntido),

ne m u ma an álise dos ‘processos cognitivos’ indígen as (sup ondo qu e e stes

sejam a cessíveis, no pre sen te esta do do conhe cime nto psicológico e e tno-

gráfico). Meu objeto é m en os o modo de pe nsar indígena qu e os objetos

de sse pe nsar, o mun do possível que se us conceitos projeta m. Nã o se tra-

ta, tampouco, de red uzir a a ntropologia a um a série de en saios etnosso-

ciológicos sobre visões de m undo. Prime iro, porque não há mun do pron-

to para se r visto, um mu nd o ante s da visão, ou ante s, da divisão en tre o

visível (ou p en sáve l) e o invisível (ou p ressu posto) qu e institui o horizon-

te de um pen same nto. Segu ndo, porque tomar a s idé ias como conceitos é

recusar sua exp l icação em te rmos da noção t ranscende n te d e contexto

(ecológico, econômico, político etc.), em favor d a noção iman en te de  pro-

b lema, de cam po problem ático onde as idéias estão imp licad as. Não se

trata , por fim, de propor uma interpretação do pen samen to ame r índ io,

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O N ATIVO RELATIVO124

ma s de rea lizar uma exper imentação com ele , e portanto com o n osso.

No inglês dificilme nte trad uzível de Roy Wagn er: “e very und erstan ding

of an other cu lture is an expe rime nt w ith on e’s own ” (1981:12).Tomar a s idé ias indígen as como concei tos é af irma r uma in ten ção

an tipsicologista, pois o que se visa é um a ima ge m de jure do pensame n-

to, irred utível à cognição em pírica, ou à an álise e mp írica d a cogn ição fei-

ta em term os psicológicos. A jurisdição do conceito é extrate rritorial à s

facu ldad es cogn itivas e aos e stados intern os dos sujeitos: os conceitos são

objetos ou eve ntos in telectua is, nã o es tad os ou a t r ibu tos men tais. Eles

certam en te ‘pa ssam p ela cab eça ’ (ou, como se d iria e m inglês, ‘cruzam a

me nte ’): ma s eles nã o ficam lá, e sobre tud o, nã o estão lá prontos — elessão inventa dos. Deixemos as coisas clara s. Nã o acho qu e os índ ios ame ri-

can os ‘cognizem’ difere ntem en te d e nós , is to é , que seus p rocessos ou

categorias ‘me ntais’ sejam d iferen tes dos de qua isque r outros hu ma nos.

Nã o é o caso de ima ginar os índios como dotados de um a n eu rofisiologia

pe culiar, qu e processaria diversam en te o diverso. No qu e me concerne ,

pen so que e les pe nsam exatame nte ‘como nós’; mas p enso també m q ue

o q u e eles p en sam, is to é , os concei tos que eles se dã o, as ‘de scr ições’

qu e e les produzem , são mu ito difere ntes dos nossos — e p ortan to que omu nd o descri to por esse s conceitos é mu ito diverso do nosso21 . No qu e

concern e a os índios, pe nso — se minh as an álises do pe rspectivismo estão

correta s — que eles pen sam qu e todos os human os, e a lém de stes , mui-

tos outros sujei tos nã o-huma nos, pen sam exata me nte ‘como eles’, mas

qu e isso, longe de produzir (ou resultar de) um a convergência referencial

universal, é exa tame nte a razão da s divergên cias de perspe ctiva.

A noção de conceito supõe u ma imag em d o pensa me nto como ativi-

da de dist inta d a cognição, e como outra coisa qu e u m sistema d e rep re-

senta ções. O qu e me intere ssa no pensa me nto nativo ame ricano, assim,

não é nem o sabe r local e suas representações mais ou me nos verdad ei-

ras sobre o rea l — o ‘ind ige nous kn owledge ’ hoje tão disputad o no mer-

cado global de repre sentações —, nem a cogn ição indíge na e suas cate-

gorias me ntais, cuja ma ior ou me nor repre sentativida de , do ponto de vis-

ta da s faculda de s da e spécie, as ciên cias do espírito pretend em explorar.

N e m representações , ind ividua is ou coletivas, raciona is ou (‘ap are nte -

me nte ’) irraciona is, qu e e xprimiriam p arcialmen te estad os de coisas an te-

riores e e xteriores a e las; ne m categorias e processos cognitivos, univer-

sais ou pa rticulares, ina tos ou ad qu iridos, qu e ma nifesta riam p roprieda -

de s de um a coisa do mund o, seja ela a me nte ou a socieda de . Meu obje-

to são os conceitos ind íge na s , os mund os que e les const ituem (mu ndos

que ass im os expr imem ), o fund o v ir tua l de onde e les p roced em e que

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O N ATIVO RELATIVO 125

eles pre ssupõem . Os conceitos, ou seja, as idéias e os problema s da ‘ra-

zão’ ind íge na , não sua s categ orias do ‘en ten dime nto’.

Como terá ficad o claro , a noção de concei to tem a qu i um sent idobe m d ete rminad o. Tomar as idéias indíge na s como concei tos s ign ifica

tomá-las como d otada s de um a sign ificaçã o propriame nte fi losófica, ou

como potencialmente capa zes de um uso filosófico.

Decisão irresp onsáve l, dir-se-á , tan to mais que nã o são só os índ ios

qu e nã o são filósofos, ma s, sub linh e-se com força, tamp ouco o prese nte

au tor. Como aplicar, por exem plo, a n oção de conceito a u m p en same nto

que , aparentem ente, nun ca achou ne cessár io se de bruçar sobre s i mes-

mo, e qu e rem eteria antes ao esqu em atismo flue nte e variega do do sím-bolo, da figu ra e da re pre sen tação coletiva que à a rqu itetura rigorosa da

razã o conceitual? Nã o existe u m b em conhe cido a bismo histórico e psico-

lógico, uma “ruptura decisiva” e ntre a imag inaçã o mítica pa n-hum ana e

o u niverso da racionalida de he lênico-ocide nta l (Vern an t 1996:229)? Entre

a b ricolag em do signo e a e ng en ha ria d o conce ito (Lévi-Strau ss 1962)?

Ent re a t ranscendê ncia p arad igmát ica da F igura e a iman ência s in tag-

má tica d o Conceito (Deleuze e Gu attari 1991)? Entre u ma economia inte-

lectual de t ipo imag ístico-mostrativa e outra d e t ipo doutrinal-dem ons-trativa (Whiteh ouse 2000)? Enfim, qu an to a tud o isso, qu e é cau da tário

ma is ou men os d ireto de He ge l, ten ho algum as dú vida s . E ante s d isso,

tenh o meu s motivos para falar em conceito. Vou-me a ter aq ui ape na s ao

primeiro de les, qu e de corre da de cisão de toma r as idé ias na tivas como

situada s no me smo plano qu e a s idé ias an tropológicas.

A expe riên cia p roposta aqu i, dizia e u acima , começa p or afirma r a

eq uivalên cia d e d irei to en tre os d iscursos do antropólogo e d o na t ivo,

be m como a cond ição mutua me nte constituinte d esses discursos, que só

acedem com o tais à existência ao en trarem em relação de conhe cimen to.

Os conce itos antrop ológicos atu alizam ta l relaçã o, e sã o por isso comp le-

tame nte relacionais, tanto em sua expressão como em seu conteúdo. Eles

nã o são, ne m re flexos verídicos da cultura do n ativo (o sonho p ositivista),

ne m p rojeções i lusórias da cultura do a ntropólogo (o pesa de lo constru-

cionista). O q ue eles reflete m é u ma certa re lação de inte ligibilidad e entre

as du as cu ltu ras , e o q ue e les p roje tam são as duas cul tura s como seu s

pre ssupostos ima ginad os. Eles ope ram, com isso, um du plo desen raiza-

me nto: são como vetores semp re a a ponta r para o outro lado, interface s

tran scontextuais cuja funçã o é repre sen tar, no sentido diplomá tico do ter-

mo, o outro no seio do mesmo, lá como cá.

Os conce itos antropológicos, em sum a, são relativos porqu e sã o rela-

cionais — e são relacionais porqu e são relatores . Tais or ige m e fun ção

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O N ATIVO RELATIVO126

costum am vir ma rcada s na ‘ass inatura ’ caracter ís t ica d esses conce i tos

por uma pa lavra estranh a: mana , totem, kula, potlatch, tabu , gumsa/ gum -

lao… Ou tros conceitos, nã o men os autên ticos, portam u ma a ssina tura e ti-mológica qu e e voca a ntes as a na logias en tre a tradição cultural de onde

em erg iu a d iscip lina e as t rad ições q ue são seu objeto: dom, sacr ifíc io ,

pa rente sco, pe ssoa… Ou tros, enfim, igua lme nte legítimos, são invenções

vocabu lares que procura m ge ne ralizar dispositivos conceitua is dos povos

estud ad os — an imismo, oposição seg me nta r, troca restrita, cismogê ne -

se… —, ou, inversa me nte, e ma is problema t icame nte , de sviam pa ra o

interior de u ma econom ia teórica e spe cífica ce rtas noções difusa s de n os-

sa tra dição — proibição d o ince sto, gê ne ro, símbolo, cultura … —, bus-cando universalizá-las22.

Vemos en tão que numerosos conce i tos , p rob lemas , en t idades e

ag en tes propostos pe las teorias antropológicas têm su a origem n o esfor-

ço ima ginativo da s socied ad es me smas qu e elas prete nd em e xplicar. Nã o

estar ia a í a or ig inal ida de da an tropologia , ne ssa s ine rgia en tre as con-

cep ções e p ráticas prove nien tes dos mu nd os do ‘sujeito’ e d o ‘objeto’?

Recon he cer isso ajuda ria, en tre outra s coisas, a mitiga r nosso comp lexo

de inferiorida de diante da s “ciên cias na turais”. Como observa Latour:

“A de scrição do kula eq uipara-se à de scrição dos buracos neg ros. Os comple-

xos sistemas de alian ça são tã o imaginativos como os complexos cenários evo-

lutivos propostos pa ra os gen es eg oístas. Compree nde r a teologia d os aborí-

gines au stralian os é tão importante qu an to cartografar as grand es falhas sub-

ma rinas. O sistema de posse da terra n as Trobriand é um objetivo cien tífico

tão intere ssante como a sondag em d o gelo da s calotas polares. Se a q ue stão é

sabe r o que importa na de finição de um a ciên cia — a capa cidad e de inovação

no qu e diz respeito às agê ncias que p ovoam nosso mun do —, então a a ntropo-

logia e staria be m p róxima do topo d a h ierarqu ia disciplina r […]” (1996a:5)23 .

A ana logia fe ita ne ssa p assagem é entre as concepções indígen as e

os objetos da s ciên cias ditas na turais. Esta é um a p erspe ctiva possível, e

me smo nece ssária: deve-se p oder p roduzir uma de scrição cien tífica da s

idéias e p ráticas ind ígen as, como se fossem ob jetos do mu nd o, ou me lhor,

pa ra qu e sejam objetos do mun do. (É preciso não esque cer que os obje-

tos cien tíficos de Latou r são tud o me nos e ntida de s ‘objetivas’ e ind ife-

rentes, pacientem ente à e spera d e u ma descrição.) Ou tra e stratégia pos-

sível é a de comparar a s concepções indígenas à s teorias científicas, como

o faz Horton, segu nd o sua “te se d a s imilar idad e” (1993:348-354), que

an tecipa algun s aspectos da a ntropologia simé trica de Latour. Ou tra ain-

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O N ATIVO RELATIVO 127

da é a estratégia aqui advogada. Cuido que a a ntropologia semp re an dou

de ma siado obce cada com a ‘Ciência’, não só em relação a si mesma — se

ela é ou n ão, pode ou n ão, deve ou n ão ser um a ciência —, como sobre-tudo, e este é o rea l problema , em relação às concepções dos povos que

estud a: seja p ara de squa lificá-las como erro, sonho, ilusão, e e m se gu ida

explicar cientificam en te como e por qu e os ‘outros’ nã o consegu em (se)

expl icar c ient i ficam en te; seja p ara promovê-las como mais ou me nos

homogên ea s à ciên cia, frutos de u ma m esma vontade de sab er consubs-

tancial à hu ma nidade . Assim a s imilar idade de Horton, ass im a ciên cia

do con creto de Lévi-Strau ss (Latour 1991:133-134). A imag em da ciên cia,

essa espé cie de pad rão-ouro do pensam ento, nã o é porém o único terre-no, nem necessariame nte o melhor, em que podem os nos relacionar com

a a tivida de intelectual dos povos estrang eiros à trad ição ocide nta l.

Imag ine-se u ma outra ana logia q ue a d e Latour, ou uma outra simi-

laridade qu e a d e H orton. Uma a na logia onde , em lug ar de toma r as con-

cepções indígen as como entidade s sem elhante s aos bura cos ne gros ou às

falhas tectônicas , tome mo-las como algo de m esma ordem q ue o cogito

ou a m ônad a. Dir íam os en tão , parafrasea nd o a c itação an ter ior, qu e o

conceito me lané sio da p essoa como “d ivíduo” (Strath ern 1988) é tã o ima -ginativo como o individu alismo possessivo de Locke; que compree nd er a

“filosofia da che fia am eríndia” (Clastres 1974) é tã o imp ortante qu an to

comentar a dou t r ina heg e l ian a d o Estado ; que a cosmogonia ma ori se

eq uipara a os parad oxos eleá t icos e à s an t inomias kan t iana s (Schrempp

1992); qu e o pe rspe ctivismo a ma zônico é um objetivo filosófico tão inte -

ressante como compre en de r o sistema d e Leibniz… E se a qu estão é sabe r

o que importa n a a val iação d e u ma filosofia — sua cap acidade de cr iar

novos conce itos —, entã o a an tropologia, sem p reten de r substituir a filo-

sofia , não deixa de ser um poderoso ins t rumento filosófico, capaz de

am pliar um p ouco os horizontes tão e tnocê ntricos de nossa filosofia, e de

nos l ivrar, de p assa ge m, da an tropologia dita ‘fi losófica’. Na de finição

vigorosa de Tim Ingold (1992:696), que é melhor deixar no original:

“a n th ropo logy is ph i losophy wi th the peop le in” . Por ‘people’, Ing old

entend e aqu i os “ordinary people”, as pe ssoas comu ns (Ing old 1992:696);

ma s ele está tamb ém jogan do com o sign ificado de ‘people’ com o ‘povo’,

e m ais aind a, como ‘povos’. Uma filosofia com ou tros povos de ntro, en tão:

a p ossib i lida de de um a a t iv ida de filosófica qu e m an tenh a u ma relação

com a nã o-filosofia — a vida — de ou tros povos do plan eta , além de com

a n ossa p rópria 24 . Não só as pessoas comuns, entã o , ma s sobretu do os

povos incomu ns, aqu eles qu e e stão fora de n ossa e sfera d e ‘comun icaçã o’.

Se a filosofia ‘rea l’ ab un da em selvage ns ima giná rios, a g eofilosofia visa-

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O N ATIVO RELATIVO128

da pe la an tropologia faz um a filosofia ‘imag inária’ com selvag en s rea is.

 Real toads in imag inary garde ns , como disse a poeta M arianne Moore.

Note-se, na p aráfrase qu e fizemos ma is acima , o de slocamen to queimporta. Agora não se trataria m ais, ou ape na s, da de scrição antropológi-

ca do kula (enquanto forma melanésia de social idade) , mas do kula

enq uan to descrição melanésia (da ‘socialidad e’ como forma an tropológi-

ca); ou ainda , seria preciso continua r a compre en de r a “ teologia a ustra-

lian a” , ma s agora com o constituind o ela própria um dispositivo de com -

 preensão; do me smo modo, os complexos sistem as de alian ça ou de pos-

se da terra d eve riam ser vistos como ima gina ções sociológicas indígenas.

É claro que será sem pre n ecessár io de screver o kula como uma de scri -ção, compreen de r a re lig ião aboríg ine como um compreen der , e imagi-

na r a ima ginaçã o ind ígena : é pre ciso sabe r t ran sformar as concepções

e m conceitos, extraí-los delas e d evolvê-los a elas. E um conce ito é um a

relação complexa e ntre concepções, um ag enciame nto de intuições pré-

conceituais; no caso da an tropologia, as concepções e m re lação incluem ,

an tes de m ais nada , as do antropólogo e as d o nativo — relação de re la-

ções. Os conce itos na tivos são os conceitos do a ntropólogo. Por hipótese.

Não explicar, nem interpretar: multiplicar, e experimentar

Roy Wag ne r, desde seu The Inve nt ion of Culture , foi um d os prime iros

an tropólogos que soube ra dical izar a constatação d e uma eq uivalência

en tre o an tropólogo e o n ativo decorrente d e sua comum condição cultural.

Do fato de q ue a a proxima ção a um a outra cultura só pode se fazer nos ter-

mos daq ue la d o antropólogo, Wagne r conclui qu e o conhe cime nto antro-

pológico se de fine p or sua “objetivid ade relativa” (1981:2). Isto nã o sign i-

fica u ma objetivida de de ficien te, isto é, subjetiva ou pa rcial, mas um a ob je-

tividad e intrinsecam en te relacional, como se de preend e do que se segue :

“A idéia de cultura […] coloca o pesqu isador em p osição de igu alda de com

aqu ele qu e e le pesquisa: ambos ‘pertencem a uma cultura’. Como cada cul-

tura p ode se r v is ta como um a m an ifes tação e specífica […] do fenôm en o

hu ma no, e como jama is se d escobriu um mé todo infalível de ‘grad ua r’ dife-

rente s culturas e arran já-las em tipos natura is, assumimos qu e cad a cultura,

como tal, é e quivalente a q ualqu er outra. Tal postulado cham a-se ‘relativi-

da de cultural’. […] A combina ção de ssas du as implicações d a idé ia de cu ltu-

ra, isto é, o fato de qu e os an tropólogos pe rtence mos a u ma cultura (objetivi-

da de re la t iva) e qu e somos obr igados a p ostu lar que todas as cul turas se

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O N ATIVO RELATIVO 129

equ ivalem (relativida de cultural), leva-nos a um a p roposição ge ral a respe i-

to do es tud o da cul tura . Como ates ta a repe t ição da idéia de ‘re la t ivo’, a

apre en são de outra cul tura envolve o re lac ionam en to [relationship ] en tredua s var iedad es do fen ômen o huma no; e la v isa a cr iação de u ma re lação

intelectual entre e las, um a compree nsão qu e inclua a am ba s. A idé ia de ‘re-

lacionam ento’ é importante a qui porque é m ais apropriada a e ssa aproxima-

ção de d uas e nt idades (ou pontos de v ista) equivalentes q ue noções como

‘an álise’ ou ‘exam e’, que trae m u ma preten são a um a objetividade ab solu-

ta” (Wag ne r 1981:2-3).

Ou , como diria De leu ze: não se trata d e a firma r a re latividade do ver-da de iro, ma s sim a ve rdad e do relativo. É digno de n ota que Wag ne r asso-

cie a noção de relação à d e p onto de vista (os termos relaciona dos são pon-

tos de v is ta), e qu e e ssa idé ia d e u ma verdad e d o relat ivo defina jus ta-

me nte o q ue Deleuze cha ma de “pe rspectivismo”. Pois o perspectivismo

— o de Leibniz e Nietzsche como o dos Tuk an o ou Ju runa — nã o é u m

relativismo, isto é, afirma ção de um a relativida de do verd ad eiro, mas u m

relacionalismo, pelo qua l se a firma qu e a ve rdad e do relativo é a relação.

Inda gue i o que aconteceria se recusássemos a vantagem epistemo-lógica do d iscurso do antropólogo sobre o d o na tivo; se e nte nd êssem os a

relação de conh ecimen to como suscitan do um a m odificação, nece ssaria-

me nte recíproca, nos termos por ela re laciona dos, isto é, atua lizad os. Isso

é o me smo que pe rguntar : o que acontece qu ando se leva o pensamento

na tivo a sério? Qu an do o propósito do an tropólogo de ixa d e se r o de e xpli-

car, interp retar, contextua lizar, raciona lizar e sse pe nsam en to, e p assa a

ser o d e o u til izar, t irar su as conse qü ên cias, verificar os efeitos que ele

pode produzir no nosso? O qu e é pe nsar o pe nsam en to nat ivo? Pensa r,

d igo, sem p ensar se a qui lo que pen samos (o outro pensame nto) é “ apa -

rentemente i r racional” 25 , ou p ior a inda, naturalmente racional26 , mas

pe nsá-lo como algo que nã o se pen sa nos termos dessa alternativa, algo

inteiramen te a lhe io a esse jogo?

Leva r a sé rio é, pa ra come çar, nã o ne utralizar. É, por exem plo, pôr

en tre parên teses a que stão de sab er se e como tal pensam en to ilustra uni-

versais cogni t ivos da espé cie h um an a, expl ica-se p or cer tos modos de

transmissão social do conhe cime nto, exprime um a visão de mun do cultu-

ralme nte p articular, valida fun ciona lmen te a d istribu ição do pod er políti-

co , e outras tan tas formas de neu tralização do p ensa men to alhe io . Sus-

pe nde r ta l questão ou, pelo menos, evitar en cerrar a a ntropologia n ela;

de cidir, por exemp lo, pensar o outro pe nsam ento a pe na s (digamos assim)

como uma atua lização de virtualida des insuspeitas do pe nsar.

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O N ATIVO RELATIVO130

Leva r a sério sign ificaria, e ntã o, ‘acre ditar’ no q ue dizem os índ ios,

tomar seu pen samento como expr imindo um a verdade sobre o mu ndo?

De forma a lguma ; es ta é ou t ra q ues tão ma l co locada . Para c re r ou nã ocrer em um pe nsam en to, é p reciso prime iro ima giná-lo como um sistema

de crenças . Mas os problemas autent icamente antropológicos não se

põem jama is nos termos p sicologistas da crença , nem nos termos logicis-

tas do valor de verda de , pois nã o se trata de tomar o pensam en to alheio

como uma opinião, ún ico objeto possível de cren ça ou de scrença , ou como

um conjun to de p roposições, ún icos objetos possíveis dos juízos de ve r-

da de . Sab e-se o es t rago causad o pela a ntropologia a o defin ir a re lação

dos na tivos com seu d iscurso em termos de crença — a cultura vira um aesp écie d e te ologia d ogm ática (Viveiros de C astro 1993) —, ou ao trata r

esse d iscurso como um a opinião ou como um conjun to de p roposições —

a cu ltura vira u ma tera tologia e pistêmica: erro, ilusão, loucu ra, ideolo-

gia…27. Como observa Latour (1996b:15), “a cren ça nã o é um estad o men -

tal, ma s um efeito da relação en tre os povos” — e o tipo me smo do efeito

que não preten do produzir.

O an imismo, por exem plo, sobre o q ua l já escrevi ante s (Viveiros de

Ca stro 1996). O Vocabulário de Lalande , que n ão se m ostra, quan to a isso,mu ito destoan te em face d e e studos psico-antropológicos recen tes sobre

o tópico, define “a nimismo” ne stes e xatos termos: como um “e stado me n-

tal” . Mas o animismo ame rínd io pode se r tudo, men os isso. Ele é um a

im agem do pensamen to, que repa rte o fato e o direito, o que cabe de di-

reito ao pensame nto e o que remete continge nteme nte a os estados de coi-

sas; é, mais espe cificame nte, u ma conve nção de interpretação (Strathern

1999a:239) que p ressupõe a person itude fo rmal do que há a conhe cer,

fazen do assim do pe nsam en to uma a tivida de e u m e feito da relação (‘so-

cial’) entre o pe nsad or e o p ensa do. Seria ap ropriad o dizer q ue , por exem-

plo , o posit iv ismo ou o jusnatura lismo sã o es tad os me ntais? O me smo

(nã o) se d iga d o animismo am azônico: e le nã o é um e s tado me ntal dos

sujeitos individu ais, mas u m d ispositivo inte lectua l tran sind ividua l, qu e

toma, a l iás , os ‘es tad os men tais’ dos seres do m un do como um de seus

objetos. Ele n ão é uma condição da m en te do na tivo, ma s um a ‘teoria d a

me nte’ ap licad a  pelo na tivo, um m odo de resolver, aliás — ou m elhor, de

dissolver —, o problem a em inen tem en te filosófico da s ‘outras m en tes’.

Se não se t ra ta de descrever o pen samento indígena ame ricano em

termos de cren ça, tampouco en tão é o caso de relacionar-se a e le sob o

modo da crença — seja sugerindo com benevolência seu ‘fundo de

verd ad e’ aleg órico (um a a legoria social, como pa ra os durk he imian os, ou

na tura l, como para os mate rialistas culturais), seja, pior aind a, ima gina n-

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O N ATIVO RELATIVO 131

do qu e e le d ar ia acesso à essên cia ín t ima e ú lt ima da s coisas , de tentor

qu e ser ia de um a ciência esotér ica infusa. “Uma an tropologia qu e […]

red uz o sent ido [mea n in g ] à cren ça, ao dogma e à cer teza ca i forçosa-men te na a rmad ilha de te r de acred i ta r ou n os sen t idos na t ivos, ou em

nossos próprios” (Wagn er 1981:30). Mas o plan o do sen tido não é povoa-

do p or cren ças p sicológicas ou prop osições lógicas, e o ‘fun do’ contém

outra coisa que verdad es . Nem u ma forma d a doxa, ne m um a figura d a

lógica — ne m opinião , nem p roposição —, o pe nsam en to nat ivo é a qu i

tomad o como ativida de de simb olizaçã o ou prá tica d e se ntido: como dis-

positivo auto-referencial ou taute górico de produ ção de conceitos , isto é ,

de “símb olos que represen tam a si mesmos” (Wag ne r 1986).Recusar-se a pôr a que stão em termos de crença pa rece-me u m tra-

ço crucial da de cisão an tropológica. Para ma rcá-lo, ree voque mos o Ou-

trem de leuziano. Outrem é a e xpressão de um mun do possível; mas e ste

mu ndo d eve semp re, no curso usual da s interações sociais, ser atua lizado

por um Eu: a imp licaçã o do possível em ou trem é exp licad a p or mim. Isto

sign ifica q ue o possível passa p or um proce sso de verificação que dissipa

en tropicamen te sua es t ru tura . Qua ndo de senvolvo o mund o exprimido

por outrem, é pa ra val idá - lo como rea l e ingre ssar nele , ou entã o parade sme nti-lo como irrea l: a ‘exp licaçã o’ introdu z, assim, o elem en to da

crença . Descrevend o ta l processo, Deleuze ind icava a condição-limite

que lhe p ermitiu a d eterminação do conceito de O utrem:

“[E]ssas relações d e desen volvimen to, que formam tanto n ossas comun ida-

de s como nossas contestações com outrem, dissolvem sua estrutura, e a redu -

zem, em um caso, ao estad o de objeto, e , no outro, ao estado de sujeito. Eis

por que , para a preen der outrem como tal, sentimo-nos no direito de exigir con-

dições espe ciais de e xpe riên cia, por ma is artificiais qu e fossem elas: o momen -

to em q ue o exprimido ainda nã o possui (pa ra nós) existência fora do qu e o

exprime — Ou trem como expre ssão de um m un do possível” (1969a:335).

E concluía recordand o uma má xima fund am en tal de sua re flexão:

“A reg ra qu e invocáva mos ante riormen te: nã o se e xplicar de ma is, sign i-

ficava, ante s de tudo, não se expl icar de ma is com outrem, não e xplicar

outrem de ma is, man ter seu s valores implícitos, mu ltiplicar n osso mu nd o

povoando-o de todos esses exprimidos que não exis tem fora de suas

exp ressões” (Deleu ze 1969a:335).

A lição pode ser ap rovei tada pe la an tropologia . Man ter os valores

de outrem implícitos nã o significa celeb rar algu m mistério nu minoso que

eles e ncerre m; sign ifica a recusa de atua lizar os possíveis expressos pelo

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O N ATIVO RELATIVO132

pe nsam ento indígen a, a delibera ção de gua rdá-los indefinidamente como

possíveis — ne m d esrea lizan do-os como fantasias dos outros, ne m fanta -

sian do-os como a tuais pa ra nós. A expe riên cia an tropológica, ne sse caso,de pe nd e da interiorização formal da s “cond ições espe ciais e a rtificiais” de

que fala Deleuze: o momento em q ue o mund o de outrem n ão existe fora

de sua e xpressão transforma-se em uma condição eterna , isto é, interna à

relação a ntropológica, que rea liza e sse possível com o v irtual28. Se h á a lgo

que cabe de direito à a ntropologia, não é certame nte a tarefa d e explicar 

o mun do de outrem , mas a de m ultiplicar nosso m un do , “p ovoan do-o de

todos esses e xprimidos que não existem fora d e suas e xpressões”.

De porcos e corpos

Rea lizar os possíveis nativos como virtua lida de s é o m esmo q ue tratar a s

idéias n ativas como conce itos. Dois exem plos.

1. Os porcos dos índios. É comum e ncontrar-se n a etnografia ame ri-

cana a idéia d e q ue , para os índ ios, os animais são h um an os. Tal formu-

lação conden sa uma n eb ulosa de concep ções sut ilme nte variadas , quenã o cabe a qui elaborar: nã o são todos os animais que são huma nos, e n ão

são só eles qu e o são; os animais não são hu ma nos o tempo todo; e les

foram hu ma nos mas nã o o são mais; eles tornam -se hum an os qua ndo se

acha m fora de nossas vistas; eles ape na s pensa m qu e são hu man os; eles

vêem-se como human os; e les têm u ma a lma h uma na sob um corpo ani-

ma l; eles são gente a ssim como os huma nos, ma s não são hum an os exa-

tam en te como a ge nte ; e a ssim p or diante. Além disso, ‘an ima l’ e ‘hu ma -

no’ são trad uções eq uívocas de certas pa lavras indígen as — e nã o esque -

çamos que e s tamos d ian te d e cen tenas de l íng ua s dist inta s, na ma ioria

da s qua is, a l iás , a cópu la n ão costuma vir marcad a p or um verbo. Mas

nã o imp orta , no momen to . Suponh am os qu e e nun ciad os como “os an i-

ma is são hu man os” ou “ certos animais são gente ” façam algum sentido,

e um sent ido qu e n ada tenha de ‘metafórico’, para u m d ado g rupo indí-

ge na . Tan to sen tido, diga mos (ma s não exata me nte o me smo tipo de sen-

tido), quan to o que a afirmação a paren teme nte inversa, e hoje tão pouco

escan da losa — “os hum an os são an ima is” —, faz pa ra nós. Sup onha mos,

en tão, que o p rime iro enu nciado faça sentido para , por exemp lo, os Ese

Eja d a Ama zônia b olivian a: “A afirmaçã o, qu e e u freq üe ntem en te ouvi,

de qu e ‘todos os anima is são Ese Eja’ […]” (Alexiade s 1999:179)29.

Pois be m. Isabe lla Lepri , estud ante de an tropologia que hoje traba-

lha, por coincidência, junto a esses me smos Ese Eja, pergu ntou-me , pen -

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O N ATIVO RELATIVO 133

so qu e em ma io de 1998, se eu a credi tava qu e os pecaris são hum an os,

como dizem os índios. Resp ondi qu e n ão — e o fiz porqu e su spe itei (sem

ne nh um a razã o) qu e e la a credi tava qu e, se os índios d iziam tal coisa ,en tão devia ser verdad e. Acrescentei , pe rversa e a lgo men t irosame nte,

que só ‘acreditava’ em átomos e ge ne s, na teoria d a re lativida de e n a e vo-

lução das e spécies, na luta de classes e na lógica do cap ital, en fim, ne sse

tipo d e coisa; mas q ue , como a ntropólogo, tomava pe rfeitamen te a sério

a idéia de qu e os peca ris são huma nos. Ela m e contes tou: “C omo você

pode sustenta r qu e leva o qu e os índ ios dizem a sé rio? Isso nã o é só um

modo d e ser pol ido com se us informan tes? Como você pode levá-los a

sério se só finge acred itar n o que eles dizem?”Essa intimaçã o de hipocrisia m e ob rigou, é claro, a reflet ir. Estou

convencido de q ue a que stão de Isabe lla é a bsolutam en te crucial, de q ue

toda antropologia d igna desse nome precisa respondê-la, e d e q ue não é

na da fácil respondê -la be m.

Uma respos ta possíve l, na tu ra lmente , é aqu e la con t ida em uma

rép lica cortante de Lévi-Strau ss ao he rme ne utismo mí(s)tico de Ricœ ur:

“É pre ciso escolhe r o lad o em q ue se está. Os mitos não dizem nad a cap az

de nos instruir sobre a ordem d o mun do, a nature za do rea l, a orige m d ohomem ou o seu destino” (1971:571). Em troca, prossegue o autor, os

mitos nos ensinam muito sobre a s sociedades de ond e p rovêm , e, sobre-

tudo, sobre ce r tos modos fun da me nta is (e u niversais) de opera ção do

espíri to hum ano (Lévi-Strauss 1971:571). Op õe-se , assim, à va cuida de

referen cial do mito, sua plen itud e d iagn óstica: dizer qu e os pe caris são

humanos não n os ‘diz’ na da sobre os pe caris, ma s muito sobre os hum a-

nos que o dizem .

A solução n ad a tem de espe cificame nte lévi-straussian a; ela é a pos-

tura ca nônica da an tropologia, de Durkh eim ou dos inte lectualistas vito-

r ian os aos d ias de hoje . Muito da an tropologia cha ma da cogni tiva, por

exe mp lo, pode ser vista como uma e lab oração sistemá tica de tal atitude ,

qu e consis te em redu zir o d iscurso indígen a a um conjunto de proposi-

ções, seleciona r aq ue las que são falsas (altern ativame nte , ‘vazias’) e p ro-

du zir uma explicação de por que os huma nos acredi tam nelas , visto qu e

são falsas ou vazias . Uma e xpl icação, tamb ém por exem plo, pode ser

aq ue la qu e conclui que tais proposições são objeto de um e mb utimen to

ou a spea me nto por parte de seus e nun ciad ores (Sperbe r 1974; 1982); elas

reme tem, portan to, nã o ao mu nd o, ma s à relação dos enu nciadores com

seu próprio d iscurso. Tal re lação é igu almen te o te ma privi leg iad o da s

an tropologias ditas ‘simb olistas’, de tipo sem ân tico ou pra gm ático: en un -

ciados como esse sob re os pe caris falam (ou fazem ), ‘na verd ad e’, algo

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O N ATIVO RELATIVO134

sobre a socied ad e, não sobre o que falam. Eles nã o ensinariam na da sobre

a ordem do mund o e a natureza do real , portanto, nem para nós, nem para

os índ ios. Levar a sério uma afirmaçã o como “os pe caris são hu ma nos”,ne sse caso, consistiria e m m ostrar como certos hu ma nos pode m levá-la a

sério, e me smo acred itar ne la, sem qu e se mostrem, com isso, irraciona is

— e, na turalmen te , sem q ue os pecaris se m ostrem, por isso , hum an os.

Salva-se o mu nd o: salvam-se os peca ris, salvam-se os na tivos, e sa lva-se ,

sobretud o, o an tropólogo.

Essa soluçã o nã o me satisfaz. Ao contrá rio, ela m e incomoda profun -

da me nte. Ela p arece implicar que , para levar os índ ios a sér io , qu an do

afirmam coisas como “os pe caris são hu ma nos”, é p reciso n ão acreditarno qu e e les dizem , visto que , se o fizéssem os, nã o estaríamos nos levan-

do a sér io . É preciso acha r outra saída . Como não tenh o espa ço nem,

sobretudo e evidentem en te, competê ncia para rep assar a vasta literatura

filosófica sobre a gra má tica da cren ça, a certe za, as atitude s proposicio-

na is etc., ap resen to aq ui ape na s certas considera ções suscitad as, intuiti-

va ma is que reflexivame nte, por minha expe riên cia d e e tnógrafo.

Sou a ntropólogo, nã o suinólogo. Os pe caris (ou, como disse u m ou tro

an tropólogo a propósito dos Nue r, as vacas) não m e interessam en orme-men te, os huma nos sim. Mas os pecaris in teressam enormeme nte à que -

les hum anos que dizem que eles são hum anos. Portanto , a idéia de q ue

os pecaris são hu ma nos me intere ssa, a mim tamb ém , porqu e ‘diz’ algo

sobre os huma nos que d izem is so . Mas n ão porque e la d iga a lgo que

esses hum anos nã o são capazes d e d izer soz inhos , e s im p orque , ne la ,

esses hum an os estão dizendo algo nã o só sobre os pe caris , ma s també m

sobre o qu e é se r ‘hum an o’. (Por que os Nue r, ao contrár io e p or exem-

plo, não dizem qu e o ga do é h uman o?) O e nunciado sobre a hu man idade

dos peca ris, se certam en te revela — ao a ntrop ólogo — algo sobre o esp í-

rito hu ma no, faz m ais qu e isso — pa ra os índios: ele afirma algo sobre o

concei to de humano. Ele af i rma, inter alia , que a noção de ‘espír i to

hu ma no’, e o conceito ind íge na de socialida de , incluem e m sua exten são

os peca ris — e isso modifica ra dicalmente a in ten são de sses concei tos

relativamente aos nossos.

A cren ça do na t ivo ou a de scren ça do an tropólogo não têm na da a

fazer aqu i. Pergunta r(-se) se o a ntropólogo de ve a creditar n o na tivo é u m

category mistake eq uivalente a inda ga r se o nú me ro dois é alto ou verde .

Eis os pr ime iros e leme ntos de m inh a resp osta a Isab el la . Qua nd o um

an tropólogo ouve de um interlocutor indíge na (ou lê na etnografia d e u m

coleg a) algo como “os peca ris são hu ma nos”, a afirma ção, sem d úvida,

interessa-lhe porque ele ‘sabe ’ que os pecaris nã o são hum an os. Mas e sse

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O N ATIVO RELATIVO 135

sabe r — um sabe r essencialmente arbitrário, para n ão dizermos burro —

de ve pa rar aí : seu ún ico interesse consiste e m ter de spertado o interesse

do an t ropó logo . Nã o se de ve pe d i r mais a e le . Não se pode , ac ima detudo, incorporá-lo imp licitame nte na economia d o comen tário a ntropoló-

gico, como se fosse ne cessário exp licar (como se o e ssencial fosse e xpli-

car) por que os índ ios crêem que os pecaris são human os qua ndo de fato

eles nã o o são. É inú til pe rgun tar-se se os índ ios têm ou n ão razã o a e sse

resp eito: pois já nã o o ‘sab em os’? Ma s o que é p reciso sab er é justame nte

o que não se sabe — a sab er, o que os índios estão dizen do, qua nd o dizem

qu e os pecaris são hum an os.

Uma idéia como esta está longe d e ser evide nte. O problem a qu e elacoloca nã o reside n a cópula d a proposição, como se ‘pe cari’ e ‘hu ma no’

fossem noções comuns p artilha da s pe lo an tropólogo e pe lo na tivo, e a ún i-

ca difere nça re sidisse n a e qu açã o bizarra e ntre os dois termos. É pe rfeita-

me nte p ossível, diga -se de p assag em , qu e o sign ificad o lexical ou a inte r-

pre tação sem ân tica de ‘pe cari’ e ‘hu ma no’ sejam m ais ou me nos os me s-

mos para os dois interlocutores; não se trata de um problem a d e trad ução,

ou d e d ecidir se os índ ios e nós tem os os me smos natural kind s (talvez,

talvez). O p roblema é q ue a idéia d e q ue os pecaris são humanos é par tedo sen t ido dos ‘conceitos’ de pe cari e de hum an o naq ue la cul tura , ou

me lhor, é essa idé ia q ue é o verdad eiro conceito em potência — o concei-

to que d etermina o modo como as idéias de p ecari e de h uma no se re la-

cionam . Pois nã o há ‘primeiro’ os peca ris e os hum an os, cada qu al de seu

lado, e ‘de pois’ sobrevém a idéia de qu e os pe caris são hum an os: ao con-

trário, os pecaris, os hum an os e sua re lação são d ad os simultaneamente30.

A es t re i teza in telectua l qu e rond a a an tropologia , em casos como

esse, consis te na re dução d as noções de pe cari e d e h uma no exclus iva-

me nte a variáveis inde pen den tes de uma proposição, qua ndo elas devem

ser vistas — se qu ere mos levar os índios a sério — como variações inse -

pa ráveis de u m concei to . Dizer qu e os pe caris são hum an os, como já

observe i, nã o é d izer a lgo ape na s sobre os peca ris, como se ‘hu ma no’ fos-

se um pre dicado pa ss ivo e pacífico (por exem plo, o gên ero em qu e se

inclui a e spécie pe cari); tamp ouco é d ar u ma simp les d efinição verbal de

‘pe cari’, do tipo “ ‘surub im’ é (o nome de ) um pe ixe” . Dizer q ue os peca -

ris são hum an os é dizer algo sobre os pecaris e sobre os hum anos, é dizer

algo sobre o que pode ser o hum ano: se os pecaris têm a huma nidade e m

potên cia , en tão os huma nos ter iam , ta lvez, um a p otência-peca ri? Com

efei to , se os peca ris pode m ser conceb idos como hum an os, en tão de ve

ser poss ível conceb er os huma nos como pe caris: o que é ser hu ma no,

qu an do se é ‘pe cari’, e o qu e é ser pe cari, qu an do se é ‘hu ma no’? Qu ais as

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O N ATIVO RELATIVO136

conseqü ên cias d isto? Que conceito se pode e xtrair de um enu nciado como

“os pe caris são hum an os”? Como transformar a concep ção expressa p or

uma proposição desse tipo em um conceito? Esta é a verda de ira qu estão.Assim, quan do seu s interlocutores indígena s lhe dizem (sob cond i-

ções, como sempre, qu e cabe espe cificar) que os pecaris são h uma nos, o

que o an t ropólogo deve se pergu n tar nã o é se ‘acred i ta ou não’ que os

pe caris sejam h um an os, ma s o que uma idé ia como essa lhe en sina sobre

as noções indígen as de hum anidade e d e ‘pecari tude ’. O que uma idéia

como essa, note-se, ensina-lhe sobre essas noções e sobre outras coisas:

sobre as re lações en tre e le e seu in ter locutor, as si tua ções em q ue ta l

en un ciad o é produ zido ‘esponta ne am en te’, os gên eros de fala e o jogode l ingua gem em q ue e le cabe etc. Essas outras coisas, porém — e gosta-

ria d e insistir sobre o pon to — estã o muito longe de esg otar o sentido do

en un ciad o. Red uzi-lo a um d iscurso qu e ‘fala’ ap en as de seu e nu nciador

é n ega r a e ste sua inten cionalida de , e, de que bra, é obrigá-lo a trocar se u

pe cari por nosso hum ano . O que é um péss imo neg ócio para o caçador

do pe cari.

E ne sses termos, é óbvio qu e o etn ógrafo tem d e a creditar (no senti-

do de confiar) em seu in te r locutor: pois se e s te nã o es tá a lhe da r umaopinião, ma s a en sina r-lhe o que sã o os peca ris e os hu ma nos, a e xplicar

como o hu ma no es tá implicado no pe cari… A pergu nta , ma is uma vez,

de ve ser : para que serve e ssa idé ia? Em que age nciame ntos e la pode

en trar? Qu ais suas conseq üê ncias? Por exem plo: o que se come, quan do

se come u m p ecari, se os pecaris são hum an os?

E ma is: carece ver se o conceito construível a pa rt ir de e nu nciados

como esse se exprime de modo realmen te ad equ ado pe la forma “ X é Y”.

Pois não se trata ta nto de um problema d e pre dicação ou atribu ição, mas

de defin ir um conjunto v ir tual de even tos e de sér ies em que entram os

porcos selvage ns de nosso exemp lo: os pecaris and am em ba ndo… têm

um chefe… são ba rulhe ntos e a gressivos… sua a pa rição é súbita e impre-

vis ível… são ma us cun ha dos… comem aça í… vivem sob a terra… são

en carna ções dos mortos… e a ss im p or d ian te . Nã o se t ra ta com isso de

identificar os atribu tos dos pe caris a a tribu tos dos hu ma nos, mas de algo

mu ito difere nte. Os p eca ris são peca ris e hum anos, são hum anos naq uilo

que os humanos não são pe caris; os peca ris imp licam os hum an os, como

idéia , em sua distância mesma d ian te dos hum anos . Assim, qua ndo se

diz que os peca ris são hu ma nos, nã o é para identificá-los aos hum an os,

ma s para diferen ciá-los de si me smos — e a n ós de n ós mesmos.

Disse anteriormen te qu e a idéia de que os pecaris são huma nos está

longe de ser eviden te. Por certo: nen hum a idéia interessan te é evide nte.

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O N ATIVO RELATIVO 137

Esta, em pa rticular, não é nã o-evide nte porque seja falsa ou inverificável

(os índ ios dispõem de vários mod os de verificá-la), mas porqu e d iz algo

nã o-evide nte sobre o mundo. Os pecaris não são eviden temen te hum a-nos, eles o são nã o-evide nte me nte . Isto qu ere ria d izer qu e tal idé ia é ‘sim-

ból ica’, no sent ido que Sp erbe r deu a es te a djet ivo? Enten do qu e nã o.

Spe rbe r conce be os conce itos ind ígen as como proposições, e p ior, como

proposições de segun da classe, “rep resentações sem iproposicionais” que

prolonga m o “sab er e nciclopéd ico” sob um modo nã o-referencializável:

confusã o do a utopositivo com o referen cialme nte vazio, do virtual com o

fictício, da iman ên cia com a clau sura … Mas é possível ver o ‘simb olismo’

de outro modo qu e e sse de Sp erbe r, que o toma como algo lógica e cro-nologicamen te posterior à en ciclopéd ia ou à semâ ntica, algo que ma rca

os limites do conh ecime nto verd ad eiro ou verificáve l, o ponto ond e e le se

tran sforma e m ilusã o. Os conce itos ind ígen as p ode m se r ditos simb ólicos,

ma s em sent ido muito d iferen te; não são su b proposicionais, são su p er  -

proposiciona is, pois supõe m a s proposições en ciclopé dicas ma s de finem

sua sign ificação vital, seu sen tido ou valor. As proposições e nciclopé di-

cas é q ue são sem iconce itua is ou sub simb ólicas, nã o o contrário. O sim-

bólico não é o sem iverd ad eiro, ma s o pré -verda de iro, isto é, o imp ortanteou relevan te: ele d iz respe ito não a o que ‘é o caso’, mas ao q ue importa

no que é o caso, ao que interessa p ara a vida no que é o caso. O q ue vale

um peca ri? Essa é a q ue stão, literalmente, interessante31.

“Profund o: outra p alavra p ara se miprop osiciona l”, ironizou, certa

vez, Sperb er (1982:173). Ma s en tão cab eria re plicar — ba na l: outra p ala-

vra p ara proposiciona l. Profun dos, com efeito, os conceitos indígen as ce r-

tame nte o são, pois projetam um fund o, um p lan o de imanê ncia povoad o

de intensidade s, ou, se o leitor prefere a lingu age m de Wittgenstein, um

Weltbild qua dri lha do por “p seud oproposições” de ba se que ignoram e

preced em a partilha e ntre o verda de iro e o falso, “tecen do uma re de q ue ,

lançada sobre o caos , pode lhe dar a lguma consis tência” (Prado Jr .

1998:317). Esse fundo é a “b ase sem fund am en to” que não é ne m racio-

na l/razoáve l ne m irraciona l/insensa ta, mas que “ simplesme nte e stá lá —

como n ossa vida ” (Prad o Jr. 1998:319).

2. Os corpos dos índios. Me u coleg a Peter G ow na rrou-me , certa fei-

ta, a seguinte cena , presenciada em uma de suas estada s entre os Piro da

Amazônia p eruana :

Uma p rofessora da missão [na aldeia de ] San ta Clara e stava tentan-

do convencer uma mulher piro a prep arar a comida de seu filho peq uen o

com águ a fervida . A mulher rep l icou: “Se b eb em os ág ua fervida , con-

traímos diarréia”. A professora, rind o com zomba ria da resposta, exp li-

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O N ATIVO RELATIVO138

cou que a diarréia infan til comum é ca usad a justam en te pe la inge stão de

ág ua não-fervida. Sem se ab alar, a mu lher p iro respondeu : “Talvez p ara

o povo de Lima isso seja verda de . Ma s para n ós , ge nte n at iva daq ui , aág ua fervida d á d iarréia . Nossos corpos são difere nte s dos corpos de

vocês” (Gow, comun icaçã o pe ssoal, 12/10/00).

O que pode o antropólogo fazer com essa resposta d a m ulher índia?

Várias coisas. Gow, por exemp lo, teceu comentá rios argutos sobre a an e-

dota, em u m artigo em prep aração:

“Este e nun ciad o simples [“nossos corpos são d iferen tes”] captura com ele-

gâ ncia o qu e Viveiros de Ca stro (1996) cha mou de pe rspectivismo cosmoló-gico, ou mu ltinaturalismo: o que d istingu e os diferen tes t ipos de g ente são

seus corpos, nã o suas culturas. Deve-se notar, en tretan to, que esse exe mp lo

de cosmologia pe rspectivista nã o foi obtido no curso de um a d iscussão eso-

térica sobre o mun do oculto dos espíritos, ma s em u ma conversação em tor-

no de preocup ações eminen teme nte práticas: o que causa a diarréia infan-

til? Seria ten tador ver a s posições da p rofessora e d a m ulhe r piro como repre -

senta nd o du as cosmologias d istintas, o m ulticulturalismo e o mu ltinaturalis-

mo, e imag inar a conversa como um choque de cosmologias ou culturas. Istoseria, penso, um e ng an o. As dua s cosmologias/cu lturas, no caso, estão em

conta to já h á m uito temp o, sua imbricação precede de muito os processos

ontoge né ticos através dos qua is a professora e essa mu lher piro vieram a for-

mu lá-las como au to-evide nte s. Ma s sobretu do, tal inte rpreta ção estaria tra-

du zindo o d iálogo nos termos gerais de u ma de suas pa rtes, a sab er, o multi-

culturalismo. As coorden ad as da posição da mu lher piro estariam send o sis-

tema ticame nte v io lad as pe la aná l ise . Isso não que r d izer, é c laro , que e u

cre ia que a s crianças devem be ber ág ua n ão-fervida . Mas isso q u e r  dizer

que a an álise etnográfica não pode ir adiante se já se de cidiu de a ntemã o o

sentido geral de um encontro como esse”.

Concordo com muito do argu men to acima. A an edota rep ortada por

Gow é de fato uma esplêndida i lus t ração, especialmente por der ivar de

um incidente b an almen te cotid iano, da d ivergên cia i r red ut ível entre o

que chame i de “ multiculturalismo” e de “mu ltinaturalismo”. Mas a a ná-

lise suge rida por ele nã o me pa rece a única possível. Assim, sobre a q ue s-

tão da t radu ção da conversa nos termos ge rais de u ma d as pa rtes — no

caso, a professora: nã o seria igua lmen te possível, e sobre tud o nece ssário,

tradu zi-la n os term os gerais da outra pa rte? Pois nã o há terceira posição,

um a posição absoluta de sobrevôo que mostrasse o caráter relativo d a s

du as outras. É preciso tomar p artido.

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O N ATIVO RELATIVO 139

Será qu e se p oderia dizer, por exem plo, qu e cad a m ulher está ‘cul-

tura lizan do’ a ou tra ne ssa conversa, isto é, atribu indo a tolice d a ou tra à

‘cultura’ de sta, ao pa sso que ‘interpre ta’ a su a p rópria posição como ‘na tu-ral’? Seria o caso de se d izer q ue o argu me nto sobre o ‘corpo’ avan çad o

pe la m ulher piro já é um a e spécie de concessão aos pressupostos da pro-

fessora? Talvez; mas nã o houve concessão re cíproca. A mu lher p iro con-

cordou em discordar, ma s a professora, de m odo algum . A prime ira n ão

contes tou o fato de que as pe ssoas da cidad e d e Lima (“talvez”) devam

beb er águ a fervida, ao passo que a segund a recusou peremp toriame nte

a idéia de que as pessoas da a ldeia de Santa C lara nã o o devam.

O ‘re lativismo’ da mu lhe r piro — um rela tivismo ‘na tura l’, nã o ‘cul-tural’, note-se — poderia ser interpretado seg und o certas hipóteses a res-

pe ito da e conomia cognitiva d as socied ad es nã o-modernas, ou sem escrita,

ou tra dicionais etc. Nos term os da te oria de Robin H orton (1993:379-ss.),

por exemp lo . Hor ton d iagn ost ica o qu e cha mou d e “ paroqu ia lismo de

visão de mu ndo” (world-v iew parochialism ) como a lgo cara cterístico de s-

sas socied ad es: contrariam en te à exigência implícita d e un iversalização

cont ida n as cosmologias racional izada s da mod ern idade ocide ntal , as

cosmologias dos povos trad iciona is pa rece m m arca da s por um esp írito degrande tolerância, mas que é n a verdade uma indiferença à concorrên cia

de v isões de mu nd o discrepa ntes . O relat iv ismo apa ren te dos Piro não

ma nifesta ria, assim, sua largu eza de vistas, mas, muito ao contrário, sua

miopia: eles pou co se importam com o as coisas são a lhu res32.

Há vários motivos pa ra se recu sar um a leitura como essa d e H orton;

en tre outros, o de q ue o dito relativismo primitivo não é a pe na s inte rcul-

tural, mas intracultural e ‘au tocultural’, e que ele n ão exp rime ne m tole-

rân cia, nem indifere nça , ma s sim exteriorida de a bsoluta à idéia cripto-

te ológica d e ‘cultura ’ como conju nto d e cre nça s (Tooke r 1992; Viveiros

de Ca stro 1993). O motivo principa l, en treta nto, está pe rfeitam en te pre fi-

gu rado nos comentá rios de Gow, a sab er, qu e e ssa idé ia do “pa roquialis-

mo” tradu z o deba te de Santa C lara n os termos da p osição da p rofessora,

com seu u niversalismo na tural e seu difere ncialismo (ma is ou me nos tole-

ran te) cultural . Há várias visões de mu ndo , mas há um só m u n d o — u m

mu nd o onde todas as crianças deve m be be r águ a fervida (se, é claro, se

en contrarem em uma pa rte do mesmo onde a d iarréia infan t il se ja u ma

ameaça).

Em lugar de ssa lei tura, proponho uma outra. A an ed ota dos corpos

diferentes convida a um esforço de determinação do mundo poss ível

expre sso no juízo da mu lher piro. Um m un do  possível no qu al os corpos

hum anos se jam d i fe ren tes e m Lima e e m San ta Clara — no qua l se ja

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O N ATIVO RELATIVO140

necessário qu e os corpos dos brancos e d os índ ios sejam difere nte s. Ora ,

determinar e sse m undo n ão é inventar um mund o imaginário, um mund o

dotad o, diga mos, de outra física ou outra b iologia, onde o universo nãoseria isotrópico e os corpos se comp ortariam segu nd o leis diferen tes e m

luga res d ist intos. Isso seria (má ) ficção cien tífica. O qu e se trata é d e

en contrar o p roblem a re al que torna possível o mund o implicado na répli-

ca da mulher p i ro. O argu me nto de q ue “n ossos corpos são diferen tes”

nã o exprime u ma teoria b iológica a lterna tiva, e, natura lme nte, eq uivoca-

da , ou u ma biologia objet iva imaginariamen te nã o-standard 33 . O qu e o

argu me nto piro man ifesta é um a idéia não-biológica de corpo , idé ia q ue

faz com qu e q ue stões como a diarréia infantil não sejam tratadas e nqu an-to objetos de u ma teoria biológica. O argu me nto afirma q ue nossos ‘cor-

pos’ respe ctivos são difere ntes, en tend a-se, qu e os conceitos piro e oci-

de nta l de corpo são d iverg en tes, não q ue nossas ‘biologias’ são diversas.

A ane dota da á gua piro não reflete um a outra visão de um m e s m o corpo,

ma s um outro conceito de corpo, cuja dissonâ ncia subjacen te à sua ‘ho-

mon ímia’ com o nosso é, justame nte , o problema. Assim, p or exe mp lo, o

concei to p iro de corpo pod e nã o es tar , ta l o nosso , na a lma , is to é , na

‘me nte ’, sob o modo de u ma repre senta ção de um corpo fora de la; e lepode estar, ao contrário, inscri to no próprio corpo como perspect iva

(Viveiros de Ca stro 1996). Nã o, entã o, o conce ito como rep resen tação de

um corpo extraconce itual, mas o corpo como pe rspectiva interna do con-

ceito: o corpo como implicad o no conce ito de pe rspectiva. E se, como dizia

Spinoza, não sabem os o que p ode u m corpo, qua nto menos saberíamos o

que pode esse corpo. Para não falar de sua a lma .

Recebido em 15 de janeiro de 2002

Aprovado em 18 de fevereiro de 2002

Edua rdo Viveiros de Ca stro é p rofessor de e tnologia no Mu seu N aciona l /  UFRJ, e membro da Equipe de Recherche en Ethnologie Amérindienne(Paris).

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O N ATIVO RELATIVO 141

Notas

1 O fato de o discurso do antropólogo consistir can ônica e l i teralmente emum texto tem muitas implicações, que n ão cabe desen volver aq ui. Elas foram obje-to de aten ção exaustiva por parte d e correntes recentes de reflexão auto-antropo-lógica. O mesmo se diga d o fato de o discurso do nativo não ser, geralmente , umtexto, e do fato de e le ser freqüe ntem ente tratado como se o fosse.

2 “O conhe cimen to não é u ma conexão entre u ma substância-sujeito e um asubstância-obje to , mas u ma re lação entre d uas re lações , das q uais uma e s tá no

domínio do objeto, e a outra n o domínio do sujeito; […] a relação e ntre dua s rela-ções é e la própria u ma relação” (Simond on 1995:81, ên fases re movidas). Tradu zipor ‘cone xão’ a p alavra rapport , que Gilbert Simondon distingu e de relation, ‘re-lação’: “podem os chamar de re lação a d isposição dos e leme ntos de um s is temaqu e e s tá a lém d e um a s imples v isada arbi t rár ia do e spír ito , e reservar o termoconexão p ara u ma relação arb itrária e fortuita […] a relação seria um a cone xãotão rea l e importa nte com o os próprios termos; pode r-se-ia dizer, por conseg uinte ,que uma verdadeira re lação entre dois termos equivale , de fa to, a um a conexãoen tre três termos” (Simond on 1995:66).

3 Veja-se M . Strathe rn (1987), para um a a ná lise d os pressup ostos relacio-na is de sse efeito de conh ecimento. A au tora argum en ta qu e a relação do nativocom seu d iscurso não é, em p rincípio, a m esma que a d o antropólogo com o seu, equ e tal difere nça a o mesmo tem po condiciona a re lação entre os dois discursos eimpõe limites a toda e mpresa de auto-antropologia.

4 Somos todos nativos, ma s ninguém é nat ivo o temp o todo. Como recordaLam be k (1998:113) em u m come ntário à noção d e habitus e congêne res, “as prá-t icas encorporad as são rea l izada s por age ntes capazes tamb ém d e pe nsar con-

temp lativame nte: nad a do qu e ‘nã o é preciso dizer’ [goes without saying] perma-ne ce não-dito pa ra sempre ”. Pen sar contem plativam en te, sublinhe-se, não sign i-fica pen sar como pe nsam os antropólogos: as técnicas d e re flexão variam crucial-me nte . A a ntropologia reversa d o na t ivo (o cargo cult me lanésio, por exemp lo;Wagne r 1981:31-34) não é a a uto-an tropologia d o an tropólogo (Strathe rn 1987:30-31): uma antropologia simétrica feita do interior da tradição que ge rou a an tropo-logia n ão é simétrica a u ma an tropologia simétrica feita fora d ela. A sime tria n ãocancela a diferen ça, pois a reciprocida de virtual de pe rspectivas em q ue se pe nsaaq ui nã o é n en hum a ‘fusão d e h orizontes’. Em suma , somos todos antropólogos,mas ningué m é antropólogo do m esm o jeito: “está mu ito bem qu e Gidde ns afirme

qu e ‘todos os a tores sociais […] são teóricos sociais’, ma s a frase é va zia se a s téc-nicas de te orização têm pouca coisa em comum ” (Strathe rn 1987:30-31).

5 Via de regra, supõe-se q ue o nativo faz, sem sabe r o que faz, as dua s coi-sas — a raciocina ção n atura l e a raciona lização cu ltural —, em fases, reg istros ousituações difere nte s de sua vida. As ilusões do n ativo são, acrescen te-se, tidas por

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O N ATIVO RELATIVO142

ne cessárias, no dup lo sen tido de ine vitáve is e ú teis (são, dirão outros, evoluciona -riamen te ad ap tativas). É tal necessidad e qu e de fine o ‘na tivo’, e o disting ue d o‘an tropólogo’: este pod e e rrar, ma s aq ue le pre cisa iludir-se.

6 A ‘implausibilidade’ é uma acusação freqü entem ente levanta da pelos pra-t icantes d o jogo c lássico contra os que preferem outras regras . Mas essa n oçãope rtence à s salas de interroga tório policial: é lá qu e de vem os toma r o má ximo cui-da do pa ra q ue nossas histórias sejam ‘plau síveis’.

7 É assim que interpreto a d eclaração d e Wagn er (1981:35): “Estud am os acultura a través da cultura, e portanto as ope rações, sejam qu ais forem, que carac-terizam n ossa investigação d evem ser també m p roprieda des g erais da cultura.”

8 Ver, sobre isso, Jullien (1989:312). Os prob lema s rea is de ou tras cultura ssão problema s ape nas possíveis para a nossa; o pape l da an tropologia é o de d ara e ssa possibilida de (lógica) o estatu to de virtua lida de (ontológica), de term inan do— ou seja, construindo — sua op era ção late nte e m nossa p rópria cultura.

9 Publicado em a pên dice à  Logique du S ens (Deleu ze 1969a:350-372; vertamb ém Deleuze 1969b:333-335, 360). Ele é retomad o, em term os praticam en teidên ticos, em se u qu ase -último texto, Qu ’est-ce qu e la Philosophie ? (Deleuze eGu atta ri 1991:21-24, 49).

10 “[O]utrem p ara m im introduz o signo d o não-perceb ido naquilo que per-cebo , de te rminando-me a ap reend er o que não pe rcebo como percep t íve l pa raoutrem ” (Deleuze 1969a:355).

11 Esse ‘ele’ que é Ou trem nã o é um a  pessoa, uma terceira pe ssoa d iversa doeu e do tu, à espe ra de sua vez no diálogo, mas tamb ém n ão é uma coisa, um ‘isso’de q ue se fala. Ou trem seria ma is bem a “q uarta p essoa do singu lar” — situad a,diga mos assim, na te rceira marg em do rio —, anterior ao jogo pe rspectivo dos pro-

nom es pe ssoais (Deleuze 1995:79).

12 Que fa r ia o qu e p ensa p orque a b i fu rcação de su a na tu reza , a inda q uead mit ida por uma que stão de p r incípio , d is tingue, na pessoa do a ntropólogo, o‘an tropólogo’ do ‘na tivo’, e portan to vê-se exp ulsa de cam po an tes do jogo. Aexpre ssão “bifurcação d a n ature za” é d e Whitehe ad (1964: cap. II); ela p rotestacontra a divisão do real em qua lidad es primárias, inerentes a o objeto, e qua lida-de s secund árias, atribu ídas ao objeto pelo sujeito. As prime iras são a m eta p ró-pria da ciên cia, mas a o mesm o temp o seriam , em ú ltima instância, ina cessíveis;as seg un da s são sub jetivas e, em ú ltima instân cia, ilusórias. Isto produz du as na tu-

rezas, “das qua is uma seria conjetura e a outra, sonho” (Whitehe ad 1964:30; ver acitação e se u comen tário em Latour 1999:62-76, 315 n. 49 e n. 58). Tal bifurcaçã oé a mesma presente na oposição antropológica en tre natureza e cultura. E quan-do o objeto é ao me smo temp o um su jeito, como no caso do na tivo, a b ifurcaçãod e su a natu reza transforma-se n a distinção en tre a conjetura do an tropólogo e osonh o do n ativo: cognição vs. ideologia (Bloch), teoria p rimária vs. secun dá ria

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(Horton), mode lo inconsciente vs. consciente (Lévi-Strau ss), repre senta ções p ro-posicionais vs. semiproposicionais (Sperbe r), e assim p or dian te.

13 Ver M. Strathern (1999b:172), sobre os termos da relação possível deconhecimen to entre , por e xemp lo, os antropólogos ociden ta is e os me lanésios:“Isto nad a tem a ver com compree nsão, ou com estruturas cognitivas; não se tratade sa be r se eu posso enten de r um me lanésio, se posso interag ir com ele, compor-tar-me a deq uad ame nte e tc. Estas coisas não são problemáticas. O problema come-ça qua ndo começamos a produzir descrições do mund o”.

14 A pond era ção é de Alfred Ge ll (1998:4); ela pode ria, é claro, aplicar-seigualmente à ‘natureza h uma na’.

15 Esse a rgumento é apenas aparen temente semelhan te ao que Sperber(1982: cap . 2) ava nça contra o relativismo. Pois esse a utor nã o crê qu e a diversi-da de cultural seja u m p roblema polít ico-epistemológico irredutível. Para e le, asculturas são exemp lares continge ntes de uma m esma na tureza huma na substanti-va. O máximo de Spe rber é u m d enominad or comum, jamais um mú ltiplo — ver acrítica d e Ingold (2000:164) a Spe rbe r, feita d e outro p onto de vista, ma s compa tí-vel com o a qui ad otado.

16 Sobre estas dua s idéias de limite, uma d e origem platônica e euclidiana , a

outra de origem a rquime diana e estóica (qu e rea pa rece no cálculo infinitesima ldo sé culo XVII), ver De leuze (1981).

17 Ver, no me smo sentido, a d ensa argu men tação fenome nológica de Mimica(1991:34-38).

18 Veyne pa rafraseia inad vertidam en te Evan s-Pritchard, ao e screver, sobreessa condição (universal) de p risioneiro de u m b ocal histórico (pa rticular) , qu e“qu ando não se vê o que não se vê , não se vê sequer q u e nã o se vê” (Veyne

1983:127, ên fase s minh as, pa ra m aior clare za).

19 Estou aq ui , obviame nte , in terpre tando o en saio de Veyne com um tan tode m á vontad e. Ele é b em m ais rico (porqu e ma is am bíguo) do que isso, extrava-san do o b ocal da infeliz image m d o ‘bocal’.

20 Essa leitura da noção de Gedankenexperiment é a plicad a p or T. Marcha is-se à obra d e F. Jullien sobre o p en same nto chinês (Jullien e Ma rchaisse 2000:71).Ver ta mb ém Ju llien (1989:311-312), sobre a s ‘ficções’ comp ara tivas.

21 Respond end o aos crít icos de sua an álise da socialidade me lanésia, que aacusam de n eg ar a exis tência de u ma ‘na tureza hu ma na’ inclusiva dos povosda qu ela re gião, Marilyn Strathe rn (1999b:172) esclareceu: “[A] diferen ça q ue exis-te e stá no fato de qu e os modos pe los qua is os melané sios descrevem, dão contada natureza h uma na, são radicalmente d iferentes d os nossos — e o p onto é quesó temos acesso a d escrições e exp licações, só pode mos traba lhar com isso. Não há

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me io de e ludir essa diferen ça. Então, não se pode dizer: muito bem, ag ora ente ndi,é só uma que stão de de scrições diferente s, entã o passemos aos pontos em comumentre n ós e e les… pois a pa r t ir do momen to em qu e e ntramos em comunicação,

nós o fazem os através de ssas autode scrições. É essencial da r-se conta d isso”. Oponto, com efeito, é esse ncial. Ver tam bé m o q ue diz F. Jullien , sobre a d iferen çaen tre se afirma r a existência de diferen tes “modos de orienta ção no pensa men to”e se afirma r a ope ração d e “ outras lógicas” (Ju llien e Ma rchaisse 2000:205-207).

22 Sobre a ‘assina tura ’ da s idéias filosóficas e científicas e o ‘ba tismo’ dosconce itos, ver De leuze e G ua ttari (1991:13, 28-29).

23 A citação, e o pará grafo que a pre cede , foram can ibalizados de Viveiros

de Ca stro (1999:153).

24 Sobre a ‘nã o-filosofia’ — o plan o de iman ên cia ou a vida —, ver Deleu ze eGu atta ri (1991:43-44, 89, 105, 205-206), be m com o o brilhan te com en tário de Pra-do J r. (1998).

25 A expressão “ap arente men te irracional” é um clichê secular da a ntropolo-gia, de And rew Lang em 1883 (cf. Detienn e 1981:28) a Dan Sperber e m 1982.

26 Como professam a s que p oderíamos cha ma r “antropologias do bom sen-

so”, no dup lo sen tido do gen itivo, como a de O be yesek ere (1992) contra Sah lins ea d e LiPuma (1998) contra Strathe rn.

27 As observações de Wit tge nste in sobre o Golden Bough perman ecem, aesse título, completa me nte p ertine nte s. Entre outra s: “Um símb olo religioso nã ose funda sobre nenh uma opinião . E é somente e m relação à opinião que se p odefalar em e rro”; “Creio que o q ue caracteriza o homem primitivo é que ele nã o agea p ar t ir de opiniões (ao contrário, Frazer)”; “O ab surdo consiste aq ui no fato dequ e Frazer a pre sen ta tais idé ias [sobre os ritos da chu va etc.] como se esses povos

tivessem um a rep resenta ção completam ente falsa (e me smo insen sata) do cursoda n atureza, quan do eles possuem ap ena s uma interpretação estranha dos fenô-men os. Isto é, se e les pu sessem por escrito seu conhecimento da nature za, ele n ãose d isting uiria   fundamenta lmen te do nosso. Apen as sua magia é ou tra” (Witt-ge nstein 1982:15, 24, 27). Sua ma gia, ou, pod eríamos d izer, seus conce itos.

28 A exteriorização d essa con dição esp ecial e a rtificial, isto é, sua ge ne raliza-ção e na turalização, ge ra o equ ívoco clássico da an tropologia: a e ternida de formaldo possível é fan tasma da sob o modo de u ma n ão-contemp orane idade h istóricaen tre o antropólogo e o na tivo — tem -se en tão a primitivização de Ou trem, seu

conge lame nto como objeto (do) pa ssado ab soluto.

29 Alexiad es cita seu inte rlocutor em e spa nh ol — “Todos los an imales sonEse Eja”. Note -se já aq ui um a torção: ‘todos’ os anima is (o etnóg rafo mostra qu ehá nu me rosas exceções) nã o são ‘hu ma nos’, e sim ‘Ese Eja’, etnônimo que podeser tra du zido como ‘pe ssoas hu ma na s’, em oposição a ‘esp íritos’ e a ‘estran ge iros’.

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30 Não e s tou a qui me re fer indo ao problema da a quis ição ontogen ét ica de‘conceitos’ ou ‘categ orias’, no sen tido que a p sicologia cogn itiva d á a esta s pa la-vras. A simultaneidade das idéias de pecari , hum ano e de sua identidade (condi-

ciona l e contextua l) é , do pon to de vista em pírico, um a cara cterística do p en sa-men to dos adul tos dessa cul tura . Ainda qu e se adm itisse que as cr ianças come-çam p or adq uir ir ou ma nifes tar os ‘concei tos’ de pe car i e de hu man o ante s dese rem en s inada s que “os peca r is são human os” , re s ta q ue os adu l tos, quand oagem ou argumentam com ba se nesta idéia , não reencenam e m suas cabeças ta lsuposta seqü ên cia cronológica , pr imeiro pen sand o nos huma nos e n os pecar is,dep ois em sua a ssociação. Além disso e sobretudo, tal simultane idade não é emp í-rica, mas transcende ntal: ela significa qu e a hum an idade d os pecaris é um com-ponente a priori da idéia de p ecari (e da idéia de h uma no).

31 “As noções de importância , de ne cess ida de, de in teresse são mil vezesmais determinan tes que a noção de verdad e.  N ão, de form a algu m a, porque e lasa subs ti tuam , mas porque m ede m a verdade do qu e d igo” (Deleu ze 1990:177,ênfases m inhas).

32 E com efe ito , a rép l ica da mulhe r p iro é idên t ica a u ma observação dosZand e, consignad a no livro que é a b íblia dos antropólogos da pe rsuasão de H or-ton: “Uma vez , ouvi um zan de dizer de nós: ‘Talvez lá n o país de les as pe ssoasnã o sejam a ssassina da s por bruxos, mas aq ui elas são” (Evans-Pritchard 1978:274).

Agrade ço a Ingrid Webe r a lembrança.

33 Como a dvertia G ell (1998:101) em um contexto sem elhante , a m agia n ãoé uma física eq uivocada , mas uma ‘me ta-física’: “O en ga no d e Frazer foi , porassim d izer, o de imaginar que os praticantes da mag ia d ispun ham de uma teoriafísica não-standard , quand o, na verda de, ‘mag ia’ é aq uilo que se tem qu and o sedispensa uma teoria física em vista de sua redun dância, e qua ndo se b usca apoiona idéia, em si mesma pe rfeitame nte p raticável, de q ue a e xplicação de q ualquerevento da do […] é q ue ele é cau sado intencionalmente” .

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Resumo

Este artigo ten ta e xtrair as implicaçõesteóricas do fato de q ue a a ntropologianão ape nas estuda relações, mas que oconhecimento assim produzido é elepróprio uma relação. Propõe-se, assim,uma imag em d a atividade a ntropológi-ca como funda da no pressuposto de queos procedimen tos característicos da dis-

ciplina são conceitua lmente d e me smaordem que os procedimentos investiga-dos. Entre tais implicações, está a recu-sa da n oção corrente de q ue cad a cultu-ra ou socieda de e ncarna um a soluçãoespecífica d e u m p roblema gen ér ico ,preen chend o uma forma un iversa l (oconceito antropológico) com um con-teúdo particular (as concepções nati-vas). Ao contrário, a image m a qu i pro-

posta suge re que os problemas eles mes-mos são radicalmente d iversos, e qu e oantropólogo não sabe de antemã o quaissão eles.Palavras-chave Conhecimento Antropo-lógico, Ima ginação Conceitual, Cu ltura,Relação, Perspe ctivismo

Abstract

This article a ttemp ts to extract the th e-oretical implications a rising from th efact tha t an thropology not only studiesrelations, bu t that the kn owledge it pro-du ces in the process is itself a re lation.It therefore p roposes an imag e of an-thropology as an ac t iv ity found ed onthe prem ise that the procedu res char-

acte ristic of the discipline a re conce p-tually of the same order as those it in-vestigates. Among the se implications isthe re jection of the conte mp orary no-t ion tha t ea ch cul ture or socie ty em -bodies a specific solution to a g en ericprob lem, fil ling a un iversal form (theanthropological concept) with a partic-ular conten t (the n ative concep tions).Much th e opposite: the imag e proposed

here sugg ests that the p roblems them-selves a re rad ical ly he terogen ic, andthat the anthropologis t cannot knowbeforeha nd w hat these w ill be.Key words Anthropological Knowledge ,Concep tual Imagination, Culture, Rela-tion; Persp ectivism