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A medida do possvel...sade, risco e tecnobiocincias

Luis David Castiel

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros CASTIEL, LD. A medida do possvel... sade, risco e tecnobiocincias [online]. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria; Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. 204 p. ISBN 85-85676-70-1. Available from SciELO Books .

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o contedo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, est bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

A MEDIDA DO P O S S V E L . . .

FUNDAO OSWALDO CRUZ Presidente Eloi de Souza Garcia

Vice-Presidente de Ambiente, Comunicao e Informao Maria Cecilia de Souza Minayo

EDITORA FIOCRUZ Coordenadora Maria Cecilia de Souza Minayo

Conselho Editorial Carlos E. A. Coimbra Jr. Carolina . Bori Charles Pessanha Hooman Momen Jaime L. Benchimol Jos da Rocha Carvalheiro Luiz Fernando Ferreira Miriam Struchiner Paulo Amarante Paulo Gadelha Paulo Marchiori Buss Vanize Macdo Zigman Brenner

Coordenador Executivo Joo Carlos Canossa P. Mendes

Luis David Castiel

a medida do possvel...sade, risco e tecnobiocincias

copyright Luis David Castiel, 1 9 9 9

Capa Alexander Mello Projeto grfico e preparao Contra Capa

Catalogao-na-fonte Centro de Informao Cientfica e Tecnolgica Biblioteca Lincoln de Freitas Filho C35lm Castiel, Luis David A medida do possvel... sade, risco e tecnobiocincias./ Luis David Castiel. - Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/Editora Fiocruz, 1999. 204p.; 16 x 23 cm ISBN: 85-86011-28-2 (Contra Capa Livraria) ISBN: 85-85676-70-1 (Editora Fiocruz) Inclui bibliografia. 1. Filosofia mdica. 2. Tecnologia mdica - tendncias. 3. Processo sade-doena. 4. Fatores de risco. CDD20.ed-610.7

1999 Todos os direitos desta edio reservados C o n t r a C a p a Livraria L t d a . < [email protected] > Rua Barata Ribeiro, 3 7 0 - Loja 2 0 8 2 2 0 4 0 - 0 4 0 - Rio de Janeiro - RJ Tel (21) 2 3 6 - 1 9 9 9 Telfax (21) 2 5 6 - 0 5 2 6 Editora Fiocruz Rua Leopoldo Bulhes, 1480, Trreo, Manguinhos 2 1 0 4 1 - 2 1 0 - Rio de Janeiro - R J Tel (21) 5 9 8 - 2 7 0 1 - 5 9 8 - 2 7 0 2 Telfax (21) 5 9 8 - 2 5 0 9 - 5 9 8 - 2 7 0 0

Minha gratido a todos aqueles que, de uma forma oude outra, me auxiliaram na concretizao deste trabalho. Em especial, a meus colegas da Escola Nacional de Sade Pblica - F I O C R U Z , Rio de Janeiro, e aos vrios grupos de alunos, que, com suas crticas, me ajudaram a desenvolver com mais apuro os argumentos deste livro. Agradeo ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico pela concesso de bolsa de produtividade em pesquisa a partir de agosto de 1 9 9 8 .

Para Marcia e Carolina

Vivemos todos com a

c o n s c i n c i a c o n c r e t a de n o p o d e r m o s dizer

N o para a c i n c i a , a t e c n o l o g i a e a medicina. M e s m o se quisssemos, n o p o d e m o s dizer N o para o c o m p l e x o b i o m d i c o que se a p r o p r i a de n o s s o s c o r p o s , define n o s s o e s t a d o de sade e n o s p o s i c i o n a e m um g r a d i e n t e de a d a p t a o , que vai d o t e m p o r a r i a m e n t e c a p a c i t a d o at o p e r m a n e n t e m e n t e i n c a p a c i t a d o . N o p o d e m o s dizer N o a o c o m p l e x o de i n f o r m a o empresarial/governamental q u e se c o n e c t a a nossos n m e r o s de previdncia social, carteiras de m o t o r i s t a , c o n t a s - c o r r e n t e , c a r t e s de c r d i t o , cadastros de pessoas fsicas, telefones, rdios, televises, c o r r e i o e l e t r n i c o e o u t r o s v e t o r e s t e c n o l g i c o s de i d e n t i d a d e . N o podemos dizer N o e x p e r i n c i a da cincia, da t e c n o l o g i a e da m e d i c i n a , q u e atua c o l e t i v a m e n t e c o m o c e n t r o disciplinador que policia o u t r o s significados e outras r e l a e s de p o d e r n a vida c o n t e m p o r n e a . M a s c o m o p o d e m o s c o n t i n u a r c o m p r e e n d e n d o e d a n d o c o n t a destas profundas e p e r m a n e n t e s p r e s e n a s e m n o s s o s c o r p o s , nossas p e s s o a s , nossas idias de ns-prprios? M a i s ainda, c o m o c o m p r e e n d e r e m o s nossa freqente e intensa nsia para dizer S i m ? Joseph Dumit (1997:5)

Sumrio

Introduo

13

Vivendo entre exposies e agravos:a teoria da relatividade do risco

37

Apocalipse... agora?Epidemiologia molecular, testagens gnicas preditivas, comunicao social de riscos genticos

67

Novo milnio e tecnobiocincias:a vida como ela ... informao?

97

Hestrias clnicas:categorias para o corpo que adoece

125

Zumbis, cobras, sombras, morcegos:anotaes introdutrias sobre a filosofia da mente e a conscincia-de-si

155

bem da verdade':breves consideraes ao final

183

Referncias bibliogrficas

187

[introduo ]

Introduo[e um pouco mais]

Qual a funo bsica da introduo em um texto ensastico? Em termos gerais (e explcitos), ela costuma consistir em uma apresentao das intenes do autor em relao ao tema a ser tratado no restante do trabalho. Ela pode ressaltar ou justificar a importncia do assunto, iniciar por algum aspecto pitoresco ou relevante ligado ao tpico ou mesmo esboar um plano geral da abordagem a ser desenvolvida. Porm, implicitamente, ela tambm pode incluir antecipaes a eventuais aspectos vulnerveis do trabalho, sob a forma de argumentaes ou desculpas a possveis falhas, geradoras de crticas ou ressalvas s idias contidas no texto (Fiorin 1996). E, por que no, qualidade, competncia ou seriedade do escriba. Afinal, a assim chamada vida acadmica ocupa um certo nicho ecolgico no mundo social, do qual podem ser feitas analogias com a etologia, especialmente no que diz respeito a disputas territoriais, de dominncia e hierarquia, encobertas em debates entre vertentes que se arrogam supremacia ou, menos pudicamente, em mal disfarados conflitos de interesses pecunirios. Estes embates, por sua vez, podem estar ligados, em primeiro lugar, a aspectos relativos manuteno de prestgio, de audincias e de clientelas, apesar da concomitncia de justificativas mais nobres, ou seja, em razo de ideologias, filosofias e/ou polticas, que podem inclusive assumir formas de argumentao eruditas e sofisticadas. Assim, parecem absolver as partes litigantes de causas menos elevadas das disputas; em segundo lugar, a outros ingredientes passveis de consumir parte nodesprezvel de nossas atividades profissionais, ou seja, exerccios cabotinos de manuteno das chamas da fogueira de vaidades de cada um, na qual ns acadmicos, por mais que queiramos evitar tal faceta reprovvel da condio humana, inapelavelmente camos, presas do 'narcisismo das pequenas diferenas' (Freud 1 9 3 0 ) . Este comentrio preliminar, talvez despropositado, cumpre a funo de justificar previamente a introduo deste livro. Em outras palavras, trata-se de ilustrar algo entendido como efeito colateral das produes acadmicas, em geral, e daquelas ligadas aos domnios da sade coletiva,

em particular. A introduo propriamente dita pode gerar alguma estranheza por seu formato pouco acadmico para o referido campo, pois deve-se demonstrar a atividade chamada (pejorativamente) de acadmica em um contexto de graves e prementes demandas em sade. Para os adeptos deste modo de pensar, esta breve (introduo ) introduo. Comecemos, ento, com uma autocrtica prvia por meio da descrio dos efeitos sugador & nowhere man... Para isto, utilizamos uma obra da cultura 'pop', que permite interpretaes de profundo valor sociolgico, especialmente para aqueles que militam na rea acadmica da sade coletiva. Em Submarino Amarelo , Pepperland foi invadida pelos Azuis malvados (Blue meanies), que congelaram todas as pessoas que viviam alegremente ao som das msicas 'pop' da poca. Um sobrevivente consegue escapar e vai em busca de nossos heris (d'ento). Aps o contato, os Beatles precisam atravessar o Mar da Cincia (?!). A, encontram dois personagens. Um deles uma figura meio humana, meio obesa, sem braos, com uma cauda e um bico em forma de cometa com o qual suga vorazmente tudo o que est a seu redor. Isto chega a tal ponto que, aps sorver o 'cenrio', acaba alcanando o prprio rabo, suga a si prprio e some de cena. Logo aps, o submarino amarelo entra em pane e aparece um pequeno ser adulto, mas que lembra um filhote de urso com a fisionomia do Coringa (do Batman). Ele est datilografando algo em uma mquina de escrever (tecnologia de 1968...). Ento, fala algumas palavras sem nexo em latim (como ad hoc e quid pro quo) e diz: "to pouco tempo e tanto para conhecer". Apresenta-se, mostrando diversos cartes diferentes, sendo o ltimo o de PhD, sem qualquer nome... Diz ser: "fsico, poliglota capitalista, botnico, satirista, pianista, dentista". Como fala em rimas, explica que faz isto "porque se falasse em prosa, saberiam que ignoro o que falo". Apesar de seu desajeitamento e, aparentemente, sem saber sobre o que est fazendo, consegue consertar o motor do submarino. Os Beatles perguntam o seu nome. "Nowhere man", responde. Entra a conhecida msica (para os pertencentes faixa etria dos quarenta e mais...). Estas imagens servem como analogia de dois riscos que correm os intelectuais/acadmicos ao adotarem em suas anlises de seus campos de estudo pontos de vista crticos em relao a aspectos eventualmente estabelecidos e at mesmo consagrados:1

Desenho animado de 1 9 6 8 , dirigido por George Dunning a partir de histria de Lee Minoff, c o m animao de Heinz Edelman, que recebeu novo tratamento grfico computacional e foi relanado em 1 9 9 9 .

1

1) de o crtico ser um caso suscetvel sua prpria crtica; por exemplo, se tal crtico for dito 'de esquerda' e/ou tocar em questes de falta de tica na sua rea profissional, e sua ao, eventualmente, estiver dissociada dos respectivos preceitos ideolgicos e ticos defendidos em seus enunciados - aspecto 'sugador'. 2) de os produtos de sua atividade intelectual serem pouco efetivos para propiciarem mudanas na sociedade em que (se) vive; ou, sendo mais contundente, de serem encarados to-somente como exerccios masturbatrios, infecundos ou incuos diante da premncia das situaes (costumeiramente) chamadas de 'problemas mdico-sanitrios' aspecto ''nowhere man". isto, diga-se de passagem, no de todo improcedente. Algumas vezes, aquilo que designado pejorativamente como acadmico, terico, filosfico ou 'coisa de intelectual', recebe uma crtica que traz implcitos argumentos denotativos de inoperncia no campo das prticas que justificam este estigma. Especialmente, se pensarmos em termos de uma eficcia social clara ou imediata destas atividades. Abordar estes aspectos uma das intenes deste livro. Creio ser relevante apresentar algumas questes conceituais passveis de serem encaradas como perfunctrias pelos representantes dos saberes estabelecidos nos domnios considerados hegemnicos na sade, em geral, ou da vertente do 'pragmatismo emergencial', em particular. Em outras palavras, tal nfase corre sempre o risco de ser vista como pouco pertinente em seu teor crtico ao referir-se aos problemas da firmeza (e efetividade) dos fundamentos e das categorias vigentes para abordar o adoecimento humano sob o ponto de vista biomdico-epidemiolgico. preciso mencionar uma objeo baseada nas caractersticas eminentemente operativas da medicina tecnocientfica, trazendo implcita uma imagem totalizante de sua eficcia resolutiva; todavia casos em que tal eficcia no se consuma so encarados como atpicos, idiossincrticos ou, ento, sem elementos (ainda) que permitam suas correspondentes incluses em categorias estveis de conhecimento. Uma das formas mais compreensivas de rebater eventuais crticas solidez das categorias consagradas em sua proposta de abordagem satisfatria dos fenmenos relativos ao adoecimento pode ser ilustrada atravs de uma - relativamente comum - disposio contra-argumentativa. Esta possui um carter de desmobilizao, que pode ser resumido com a seguinte locuo (ou variante): "Tudo bem, posso at admitir alguma pertinncia nas crticas mas, alm de 'teorias' ou 'filosofia', o que se prope no lugar das categorias disponveis para lidar com os casos concretos de doena, tanto em termos clnicos como epidemiolgicos?"

Pois bem, prope-se que, de modo concomitante operao efetiva dos dispositivos biomdicos e epidemiolgicos vigentes e suas respectivas categorias, estejamos atentos para anomalias (no sentido kuhniano) que porventura apaream nas correspondentes proposies tericas, pois "as teorias determinam no s a forma dos instrumentos cientficos, como tambm os tipos de perguntas a que se procura responder com as experincias" (Bohm & Peat 1 9 8 9 : 9 2 ) . Dito de outro modo, as discusses suscitadas pela observao de situaes indicativas de limitaes, insuficincias, dificuldades conceituais e tericas podem servir como matria de reflexo e busca de superao para quem as percebe, inclusive na atividade clnica, ao visarem alvio, cura ou ainda o entendimento do que ocorreu com aquele paciente ou aquelas populaes, sob circunstncias especficas. Enfim, so teis para aqueles que se dispem a admitir algumas brechas nos saberes e em suas categorias descritivas e explicativas subjacentes aos seus intentos de diagnstico, tratamento e prognstico, por um lado, e distribuio e etiologia de molstias, distrbios, transtornos, enfermidades ou outros modos de se nomear o sofrimento humano, por outro. Tal como parece, o ttulo deste livro denota uma ambigidade intencional. A comear pelas reticncias, que tm este propsito ao sugerirem uma interrupo do discurso, atribuvel omisso de determinados contedos, e insinuarem haver algo mais entre as linhas de uma suposta produo com pretenses ensasticas. Como se fosse um sutil aceno que busca alguma cumplicidade dos leitores, particularmente para aqueles que no sabem se devem deter-se em seu contedo ou prosseguir na inglria e irrealista busca de atualizao em suas respectivas reas de especializao diante do frenesi destes 'internticos' tempos de difuso acadmica. Aceno equivalente a uma piscadela de olho (nos moldes de Henri Atlan) para destacar a manifestao do implcito sobre o explicitado, do latente sobre o manifesto. A bem da verdade, estes artifcios procuram apontar para outra das pretenses do trabalho: os sortilgios por que podem passar os conceitos cientficos em funo das vicissitudes das palavras que os constituem. Ora, o intuito aqui a explorao de dimenses implcitas em um ttulo cujo esprito de manchete, como chamariz, procura capturar a ateno do possvel leitor estimulando sua curiosidade em funo de uma aparente faceta intrigante. Para isto, so usados recursos no apenas lxicos, como tambm grficos. Sem dvida, escamoteado neste formato, h um reclamo ante a perplexidade gerada pelo atual vrtex pragmticoinformacional.

O ttulo, por um lado, indica uma locuo coloquialmente empregada (e neste caso, a crase seria necessria), que traz uma dimenso condicional consecuo de algo. Assim, o que h para ser realizado, efetuado ou produzido pode no s-lo em sua completude, seja em termos materiais ou temporais, seja contingencialmente conforme circunstncias e imponderabilidades demarcadas pelo contexto - o possvel. Por outro, na forma grafada, sem crase, as palavras se rearranjam em termos gramaticais e semnticos, adquirindo outras dimenses. Para abord-las, preciso uma breve digresso. H uma operao lgica de transformao e reduo do possvel, algo indefinido, avesso a qualquer definio formal e operacional, em potencial, algo que pode ser quantificado e formalizado (Atlan 1 9 9 1 ) . A sua origem pode ser traada na mecnica: o conceito de energia potencial que evolui para se transformar em energia cintica - possvel como realidade oculta/virtual. Ganha-se em preciso e controle e perdese uma boa parte do carter criativo e inovador referente atualizao de outras possibilidades latentes. O impreditvel que permite a inovao resulta das combinatrias do acaso - rudos, flutuaes, indeterminaes - e no de uma vontade dirigida para isto. Veja-se, por exemplo, a descoberta casual (serendipidade) do sildenafil (Viagra), o frmaco hit de 1 9 9 8 . As pesquisas farmacolgicas estavam dirigidas para a gerao de um vasodilatador coronariano para o alvio em casos de angina pectoris. Nos testes, percebeu-se a alta incidncia de uma marcante manifestao inesperada. J que os efeitos coronarianos no eram satisfatrios, o efeito colateral original tornou-se o principal. o que para muitos era im-potencial, deixou de s-lo. N o campo da sade, uma das vias mais evidentes destes processos se localiza no mbito da gentica molecular, cuja divulgao pblica j lugar-comum.. Por exemplo, a conhecida revista Time apresentou na edio de 11 de janeiro de 1 9 9 9 um nmero especial sobre as impressionantes perspectivas da gentica molecular, assinalando na chamada de capa: "O futuro da medicina. Como a engenharia gentica ir nos modificar no prximo milnio", com nfase na influncia das tecnobiocincias para o sculo X X I . Curiosamente, a mesma revista, em 17 de janeiro de 1 9 9 4 (anos novos so sintomaticamente apropriados para a difuso de 'novas' perspectivas), lanara um nmero especial similar, estampando na capa: "Gentica - O futuro agora. Novos avanos podem curar doenas e salvar vidas, mas quanto deve a natureza ser manipulada (engineered)?". Observe-se que a mudana de esprito perceptvel. A interrogao sobre a manipulao da natureza parece superada pelos atuais fatos biotecnolgicos. Em cinco anos, ela foi substituda por uma

afirmao descritiva categrica a respeito do que (potencialmente em vez de possivelmente) o futuro inexorvel nos trar... 'Possveis' como potencialidades podem ser encontrados na maioria dos avanos das tecnobiocincias e suas produes - processos de conhecimento-regulao/poder ou tecnobiopoder (Haraway 1 9 9 7 ) - que so institudos nos mundos da vida e da sade sob determinadas formas, e no de outras, engendrando prticas, crenas e identidades. Inegavelmente, no somos mais os mesmos diante dos efeitos materiais e simblicos originrios da clonagem de mamferos, da disponibilizao de novos frmacos (descobertos por acaso ou no) e das intervenes minimizadoras das marcas da passagem do tempo sobre nossos corpos. Em outras palavras, as tecnobiocincias apresentam um trao unificador constitudo pelo quadro de referncia tecnolgico e biocientfico, no qual a gentica molecular se instaura como eixo nuclear de pesquisa e desenvolvimento de tcnicas e produtos elaborados a partir de e/ou dirigidos para os organismos viventes, com as mais variadas finalidades. Para as tecnobiocincias, mesmo assumindo que o nvel de integrao da biologia distinto daquele da mecnica, os resultados seriam os mesmos: estruturas moleculares do ADN do genoma responsveis pela transformao do possvel em potencial, operacionalmente descrito, aguardando atualizao. Esta uma generalizao indevida. Sem dvida h situaes em que isto tem se tornado factvel - vide os diagnsticos genticos para determinados distrbios, como a coria de Huntington, a distrofia muscular Duchenne, a fibrose cstica; mas h circunstncias em que fatores incontrolveis participam dos processos de atualizao: a gnese e o desenvolvimento de doenas de etiologia multifria e imprevisvel, como as colagenoses. Portanto, a medida do possvel no possvel, pois neste caso no se trata de possibilidade e sim de potencialidade. H aqui uma marcante figura de linguagem, prpria de nossos tempos: o oxmoro (captulo 2 ) . Na sade pblica, em geral, e na epidemiologia, em particular, a idia de 'potencial' obtida em estudos populacionais se modaliza em 'possvel' no nvel individual e esta uma das questes cruciais para operarmos com o conceito de risco (de adquirir doenas). A esse respeito til uma incurso no terreno dos dicionrios. As origens das palavras sade e doena oferecem perspectivas curiosas. Conforme Ferreira (1986), sade se origina do latim salute, ou seja, 'salvao', 'conservao da vida'. O termo afim so apresenta, alm dos sentidos mais conhecidos de 'sadio' e seus equivalentes (em certa medida, a expresso 'so e salvo' uma redundncia), interessantes acepes

no-biolgicas e morais. Por exemplo: 'diz-se do objeto sem quebra ou defeito', 'reto', 'ntegro'; 'razovel', 'moderado' e tambm, 'puro', 'impoluto', 'imaculado' ou ainda 'verdadeiro' e 'sincero'. O termo doena provm do latim dolentia, com os sentidos conhecidos de falta de ou perturbao da sade e idias equivalentes. H outras acepes figuradas e regionalismos: 'tarefa difcil' (por extenso, 'parto', em Minas Gerais); 'mania', 'vcio', 'defeito'. Dolentia tambm d origem 'dolncia' - 'mgoa', 'lstima', 'dor', ou seja, aspectos relativos a manifestaes de ordem subjetiva referidas a sensaes e reaes de mal-estar, incmodo, desagrado e desprazer. O verbete 'indolncia', por sua vez, indica 'insensibilidade', 'apatia'; 'negligncia', 'desleixo'; 'inrcia', 'preguia', estados que se caracterizariam pela 'ausncia' da capacidade ativa de reagir e/ou da disposio de captar sensaes. Como sabemos, o antnimo de doente no 'indoente'; inexiste tal palavra (captulo 3 ) . O adjetivo 'indolente' tem, alm das acepes (pejorativas) mais conhecidas ('preguioso', 'negligente'), conotaes ligadas falta de energia e de capacidade de reao: 'insensvel' (inclusive dor), 'sem atividade', 'inerte'. J 'dolente' designa aquele que possui tal capacidade, mas para transparecer seu sofrimento, sua dor. Neste sentido, porta ainda os significados de 'lastimoso' e 'magoado'. O aspecto crucial, todavia, o fato de a etimologia latina dolentia ser a mesma de dolere, ou seja, 'doer'. Diante destas constataes, alguns aspectos merecem reflexo. Em primeiro lugar, talvez de modo surpreendente, o estatuto ontolgico subjetivo da dor se constitui em um aspecto que provoca muitas discusses no mbito das neurocincias e da chamada filosofia da mente. Em outros termos, dores so sentidas por pessoas como eu. Ento, possvel afirmar que epistemicamente a dor um fato bvio, porm a forma como a sinto subjetiva. As dores existem? possvel fazer equivaler as dores que sinto com as dores dos outros seres humanos (Searle 1998)? Este, por incrvel que possa parecer, um tema controverso no mbito da filosofia da mente sobre o qual, por ora, no pretendemos nos estender. Mas h ainda outras questes: em relao aos animais, at que nvel na escala zoolgica pertinente a atribuio de sencincia, o nvel mais alto de sensibilidade - ou mais baixo de conscincia (Dennett 1 9 9 7 ) responsvel pelas sensaes dolorosas? Morcegos, sem dvida, sim. as cobras? As lagostas (captulo 5)? Qual o ponto limtrofe? H um? Parece muito difcil alcanar o estabelecimento de critrios satisfatrios

a este respeito. Mesmo assim, temos notcias de grupos que cometem aes terroristas em solidariedade sencincia das cobaias... Em segundo lugar, a conhecida distino da antropologia mdica entre disease (doena-processo) e illness (doena-experincia) pode ser equiparada, pelos significados atribudos, doena e dolncia, respectivamente. Esta categorizao de certo modo reflete as formas cindidas da cultura ocidental para lidar com as situaes de dor. H dimenses objetivveis (sensrio-motoras) e subjetivadas, e cada aspecto tem seus respectivos profissionais, prticas e tratamentos com graus distintos de legitimidade social e cientfica (captulo 4 ) . Ainda, a idia de 'promoo / em / de sade' (PS) apresenta a potencialidade de veicular, mesmo implicitamente, posturas moralizantes de busca e manuteno de retido e pureza e de evitao de mculas que corrompam o estado perfeito de sade (voltaremos a isto); o conceito de r i s c o , tal c o m o produzido em parte considervel dos estudos epidemiolgicos, assume esta funo de maneira notvel (captulos 1 e 3 ) . Plant e Rushworth (1998) chamam nossa ateno para um ponto relevante na na pesquisa epidemiolgica de fatores de risco e de desfechos de sade (health outcomes). Ambos so produzidos a partir de categorias tais como idade, sexo, grupo tnico, estado conjugal, aspectos scioeconmicos etc. Em certos casos, tais categorias no apresentam o mesmo nvel de estabilidade em suas definies. Por exemplo: sexo (masculino, feminino) e estado conjugal. Percebe-se imediatamente que a primeira refere-se a um atributo individual de carter biolgico enquanto a segunda demarca uma condio relacionai, vinculada a aspectos socioculturais. Vale assinalar que, em uma tentativa de incluir tais aspectos, a categoria 'sexo' costuma ser adaptada para 'gnero' em trabalhos antropo-sociolgicos. H estudos que mostram transtornos de vrias ordens decorrentes da perda do cnjuge (Surtees & Wainwright 1999), mas o fato de pessoas casadas, independentemente do sexo (evidentemente que no so relaes sexuais), estarem sob os efeitos de fatores de proteo para determinados desfechos de sade no permite identificar com clareza qual a origem desta proteo (para alm de uma vaga idia relativa segurana emocional). Alm de haver diferentes formas de 'ser' solteiro (celibatrio ou no, por exemplo), viver com parceiros estveis (coabitando ou no, com filhos ou no etc.) admite mltiplas formas de interao. Cada relao possui particularidades, apresentando combinaes prprias de tenses e conflitos e prazeres e satisfaes, que variam ao longo do tempo de vida conjunta.

Portanto o 'estado conjugal' se constitui em um representante (proxy) de algo mais complexo e instvel do que tal condio permite concluir. Em geral, os epidemiologistas reconhecem tais limitaes, mas nem sempre explicitam-nas. Obviamente, classificar 'conjugalidade' como fator de risco ou proteo para agravos sade no sustenta a indicao de unies entre indivduos com as finalidades preventivas correspondentes. Em termos conceituais, o risco se constitui em uma forma presente de descrever o futuro, sob o pressuposto de que se pode decidir qual o futuro desejvel. Segundo Luhmann ( 1 9 9 8 ) , "o conceito de risco considera uma diferena de tempo, isto , a diferena entre o julgamento anterior e o julgamento posterior ocorrncia da perda. se dirige dire tamente a esta diferena [...] [um] paradoxo da simultaneidade de vises opostas de tempo" (Luhmann 1 9 9 8 : 7 2 ) . Paradoxo que, por sua vez, est envolvido em uma dimenso temporal. A medida que o tempo passa, a cada momento, h um julgamento plausvel. O conceito de risco homogeneiza as contradies no presente ao estabelecer que s possvel administrar o risco (o futuro) de modo racional, ou seja, atravs da considerao criteriosa da probabilidade de ganhos e perdas, conforme decises tomadas. Para Sennett, mesmo nesta perspectiva, digamos economtrica, o risco tornou-se "desnorteante e deprimente [...] [pois] falta matematicamente ao risco a qualidade de uma narrativa, em que um acontecimento leva ao seguinte e o condiciona" ( 1 9 9 9 : 9 7 ) . O que so ganhos e perdas no terreno do viver e morrer humanos? Como pergunta Millr Fernandes (1997) em um inspirado hai-kai: "Probleminhas terrenos: quem vive mais, morre menos?". Esta i n d a g a o i r o n i z a a p r e o c u p a o e x a c e r b a d a c o m a procrastinao da morte e dos sinais de envelhecimento que o mundo ocidental persegue na atualidade, paradoxo cruel de uma poca em que grupos populacionais atingem altos ndices de longevidade. E, para isto, no dito senso comum, a fuga dos riscos se tornou sinnimo de estilo de vida sadio (Forde 1 9 9 8 ) , 'pleno' de temperana e prudncia; uma gesto criteriosa e ponderada dos riscos toda vez que estes no puderem ser sumariamente evitados, postura que poderia ser chamada de 'sadiismo'... I n e g a v e l m e n t e as e s t i m a t i v a s de r i s c o p r o d u z i d a s p e l o s epidemiologistas transcendem aspectos intrnsecos pertinncia da construo tcnico-metodolgica e suas respectivas adequaes na interpretao dos achados. imprescindvel considerar os aspectos morais, polticos e culturais correspondentes a elas. Em especial, cabe destacar a interface com a mdia e a 'indstria da ansiedade': mltiplos riscos recebem a ateno de programas de TV, de matrias de peridicos leigos e a

conseqente oferta de bens, produtos e servios direcionados ao suposto controle/minimizao de tais riscos (Forde 1 9 9 8 ) . Luhmann (1998) sugere que no pertencemos mais famlia de heris trgicos que, ao final de suas jornadas, descobriam que haviam preparado seus prprios destinos mesmo tentando escapar dos fados, em razo de sabermos, de antemo, o que nos est reservado, conforme nossas decises. Ou, como assinala Bernstein (1996) em um jogo de palavras intraduzvel para a lngua portuguesa, o homem chegou a um ponto de se colocar como Prometeu - 'contra os deuses', os antigos responsveis por nossos trgicos destinos (against the gods como trocadilho de against the odds) - contra as probabilidades provveis. Isto se constitui em, digamos assim, uma meia-verdade, pois lidamos, justamente, com probabilidades... Os destinos podem no se realizar, mesmo apresentando considerveis graus de probabilidade, mesmo se estes so descritos e relativizados atravs de categorias originalmente baseadas na teoria dos conjuntos vagos (fuzzy) em que a pertena a determinada categoria (em termos dicotmicos, 0 ou 1, sim ou no, verdadeiro ou falso) no pode ser feita com preciso, mas passvel de ser abordada em termos fracionrios, intermedirios. A partir de alguns procedimentos, tal lgica pode ser aplicada a determinadas categorias de processos, pois um dos problemas dimensionar a magnitude aceitvel do estado de indistino (fuzziness) de certos sistemas/processos para que sejam estudados por tal via. So inegveis as vrias conquistas em termos de conhecimento do risco em sade (onde se destacam os emblemticos estudos de tabagismo e cncer de pulmo). Estas servem de caldo cultural em que ocorre a germinao e o crescimento das propostas de PS. Para o reconhecido estudioso da sade pblica Milton Terris ( 1 9 9 2 ) , o respectivo conceito originrio se localiza nos trabalhos do historiador mdico Henry . Sigerist, que em 1 9 4 5 delimitou as quatro grandes atividades fundamen tais da medicina: 1) a promoo da sade; 2) a preveno das doenas; 3) o restabelecimento dos doentes; e 4 ) a reabilitao. Na verdade, estas tarefas foram esquematizadas em um consagrado modelo de nveis de preveno com base no conceito de 'histria natural da doena' (Leavell & Clark 1 9 7 6 ) . A PS era a designao de uma das partes constituintes do nvel primrio de preveno, de carter mais genrico (como as medidas de saneamento), uma vez que as medidas preventivas tinham aspectos mais especficos (por exemplo, a vacinao). O foco original da PS centrava-se na nfase em prticas mantenedoras do estado de sade, tambm atingveis mediante processos de educao

em sade. No estavam em jogo ainda as dimenses polticas, sociais e ideolgicas que surgiriam posteriormente. A origem desta perspectiva localiza-se no conhecido relatrio do ministro da sade canadense Marc Lalonde em 1 9 7 4 . N o documento, h quatro principais fatores determinantes do campo da sade, oriundos a saber: do meio-ambiente, da organizao dos servios de sade, de aspectos de ordem biolgica e do estilo de vida (comportamental) (Bunton & McDonald 1 9 9 3 ) . Tal relatrio deu ensejo a uma srie de congressos, encontros e reunies tcnicas nos anos 1 9 8 0 - 9 0 , cujo foco irradiador pode ser localizado em 1 9 8 0 no documento do escritrio regional europeu da OMS com vistas ao processo de planejamento do programa de educao em sade para o perodo de 1 9 8 0 - 4 (Parish 1 9 9 5 ) . O Primeiro Congresso Internacional sobre Promoo em Sade em Ottawa (Canada 1 9 8 6 ) merece ser mencionado, pois a foram postulados os princpioschave da proposta: a) fortalecimento da participao comunitria no contexto da vida cotidiana em vez de apenas o enfoque em indivduos sob risco; b) ao nos determinantes/causas de sade, com nfase para o meio ambiente; c) combinao de diversas abordagens e mtodos com plementares; d) busca de polticas pblicas voltadas de maneira efetiva e concreta para a sade; e) desenvolvimento de habilidades profissionais no pessoal de sade, especialmente em nvel primrio, com vistas capacitao e viabilizao da PS em um nvel populacional. Os aspectos essenciais que demandavam ateno eram: a) a melhora do acesso sade; b) a propiciao de um ambiente 'sanitognico'; c) o reforo de redes sociais e suporte social; d) a promoo de comportamentos positivos de sade e estratgias apropriadas de coping; e) a ampliao do conhecimento e a disseminao de informaes (Parish 1 9 9 5 ) . De acordo com Nogueira, o objetivo essencial dessas propostas a estimulao de uma postura ativa das populaes diante de questes de sade por meio de cuidados de sade no-institucionalizados. Assim, compreende-se a nfase nas diretrizes acima enunciadas, que se associam nova cepa de polticas pblicas de sade, pois "[a] to propalada crise fiscal do Estado acabou por impor uma lgica de gastos que busca justamente uma maior efetividade e eficcia das aes pblicas no campo da sade, e para este fim as diversas frmulas de autonomia do cuidado [...] so apontadas como solues adequadas (Nogueira 1 9 9 8 : 5 0 ) . Conforme o documento original da OMS, a PS foi definida como o "processo de capacitar as pessoas a aumentarem o controle sobre sua sude, aprimorando-a" (WHO 1 9 8 6 ) . Portanto, no interior deste campo que prospera o destaque dado aos 'comportamentos ligados ao estilo

de vida', eventualmente conducentes a 'comportamentos de risco', que devem ser evitados. Kickbusch, reconhecida autora no campo, apresenta um elaborado arrazoado em que aponta para discusses polticas e epistemolgicas na sociedade e nas cincias sociais relativas ao conceito de 'auto-cuidado' (self-care). Em outras palavras, os comportamentos conducentes manuteno do estado de sade, o resultado esperado do sucesso das aes de PS. A autora assinala imprecises e ambigidades tericas de concei tos-chave da PS como 'estilo de vida', que diferiria "radicalmente do desenvolvido no incio dos anos 1 9 7 0 pela epidemiologia da conduta" (Kickbusch 1 9 8 9 : 2 3 7 ) . Este ponto de vista do auto-cuidado se aliceraria no discurso de evitao dos fatores de risco, mediante a auto-vigilncia e a "adoo de estilos de vida saudveis", sob a tica funcionalista, sem nexos com a "teoria sociolgica global", isto , a "modificao de conduta por motivos de sade, mais do que a permisso de padres de vida mais sadios por motivos de bem-estar" (ibid.:238). Tal enfoque equivocado teria sido o responsvel pelo fracasso de programas de PS que desconsideraram a dimenso contextual, aspecto que o enfoque sobre estilos de vida sustentado pela OMS levaria em conta por considerar o "auto-cuidado como coisas que as pessoas fazem em um determinado contexto" - leia-se circunstncias culturais e estruturais - e que "depende da cultura global sobre sade e doena e sobre o papel da medicina em um grupo e sociedade deteminados" (:238). A autora admite que, no final dos anos 1 9 8 0 , estudar o auto-cuidado sob o marco conceituai dos estilos de vida era uma tarefa controversa e complexa. Apesar disto, parecia haver aspectos promissores, talvez por cogitar que a abordagem de contextos e culturas globais sobre sade, doena e cuidado estivesse relacionada a perspectivas tericas e investigativas vinculadas a diferentes escolas na rea das cincias humanas e sociais, potencialmente capazes de vises distintas e complementa res. Todavia nem sempre pode-se garantir tal sinergia. Eventualmente ocorrem posies dspares conforme as vertentes de compreenso do que venha a ser 'cultura global' sobre sade e doena de determinado grupo ou sociedade. Ambos os termos, 'cultura' e 'global', admitem diversas interpretaes. Ainda assim, o conceito de 'auto-cuidado' - ancorado em noes de pensadores de peso como Anthony Giddens, pela perspectiva de compreenso sociolgica, e Gregory Bateson, sob o ponto de vista epistemolgico - passa a considerar 'estilo de vida' como algo baseado no contexto e no significado em vez de algo dependente do indivduo. Sem dvida, um avano. Ainda insatisfatrio, infelizmente. As proposies epistemolgicas batesonianas sobre o contexto, tal c o m o

ressaltadas por Kickbusch, ou seja, o 'padro que conecta', esto contidas principalmente no captulo dois de Mind and nature (Bateson 1 9 8 7 ) . Trata-se uma dura crtica aos pressupostos dos modos hegemnicos de fazer cincia, especialmente daquelas que sustentam os contedos biomdico-epidemiolgicos que fundamentam a PS e o auto-cuidado. Para no nos alongarmos em demasia neste tpico, ilustrativo citar alguns dos ttulos dos respectivos subcaptulos de Bateson, em si bastante elucidativos de sua postura: "a cincia nunca prova nada" (no h verdade como correspondncia precisa entre nossa descrio e o que descrevemos); "o mapa no o territrio e o nome no a coisa nomeada" (a relao entre a descrio e o que descrito assume formas de classificao, compromisso da coisa com a classe); "a experincia objetiva no existe" (toda a experincia subjetiva, a percepo consciente ocorre mediante imagens); "os processos de formao de imagens so inconscientes" (s os produtos dos processos podem ser acessveis); "a diviso do universo apreendido em partes e em todos conveniente e pode ser necessria. Mas no h nenhuma necessidade que determine como ela ser feita" (a explicao sempre se desenvolve a partir da descrio, mas esta pode possuir caracterstcas arbitrrias); "as sequncias divergentes so imprevisveis" (consegue-se conhecer o genrico, mas o especfico, escapa); "nmero (resultado de contagem) diferente de quantidade (resultado de medida); "a quantidade no determina o padro" ( possvel estabelecer padres atravs da relao entre quantidades; quantidades e padres so de diferentes tipos lgicos, no se ajustam ao mesmo pensamento); "na biologia no existem valores uniformes" (variaes de quantidade no so acompanhadas necessariamente de alteraes de qualidade, h faixas de valores timos); "habitualmente a linguagem s salienta uma das partes de qualquer interao" (sujeito e predicado atribuem qualidades/propriedades s coisas, sem que se saiba com preciso do que se trata, por exemplo, "aquele objeto duro"). Visivelmente, a epidemiologia que ainda orienta grande parte dos estudos sobre fatores de proteo e de risco a agravos sade no parece coadunar-se com os postulados de Bateson. No basta situar o autocuidado e o estilo de vida "contextualmente", valorizando significados e singularidades, se o modo de produo de conhecimento das ditas tecnobiocincias, como foi, ainda que sumariamente, indicado, no acompanha pressupostos similares.22

A respeito das relaes entre epidemiologia e contexto, ver os comentrios sobre as possibilidades de uma 'epidemiologia contextual' mediante o uso de tcnicas qualitativas de investigao em Castiel ( 1 9 9 6 ) .

preciso ainda determo-nos para pensar quais so os cuidados com o 'auto' (self) como categoria diante das dimenses socioculturais de 'autocuidado'. A noo individualista de identidade-de-si que conhecemos ancora-se nas chamadas fontes ortodoxas do self da tradio filosfica ocidental, cuja gnese, desde os gregos at os dias de hoje, configura uma noo de identidade individuada, destacada do coletivo - singulari zada, estabilizada e definida reflexivamente (Taylor 1 9 9 4 ) . Esta no se constitui na perspectiva predominante de muitos povos e culturas noocidentais, por exemplo, sociedades de pases como ndia, China e de vastas regies do Sudeste asitico e da frica, isto , cerca de 8 0 % da populao planetria! Sob diversas formas, os respectivos contextos culturais sustentam posturas identitrias institudas de modo heteronmico nas quais se destacam imperativos familiares e o cumprimento de normas ticas fundadas primordialmente nos valores da coletividade, sobrepujando idias de autonomia de 'eus' (Kleinman 1 9 9 5 ) . "O ' s e l f , mesmo onde encarado como algo singularmente individual - acentua o autor - visto c o m o estando s o c i o c e n t r i c a m e n t e i m b r i c a d o em redes sociais inextricveis, vnculos ntimos que tornam processos interpessoais a fonte de decises vitais [...]. A idia de primazia do individual , no entanto, ainda, uma presuno da ocidentalizao" (ibid.:47). Esta, enfim, parece ser a perspectiva norteadora do caminho que deve ser palmilhado pelos povos do planeta em direo globalizao, almejada pelo capitalismo monopolista em suas vrias facetas (especialmente, na dita sociedade ps-industrial em que ocorre a hegemonia econmica obtida pelos setores de servios e de produo de conhecimentos). Mesmo com as evidentes mostras de boas intenes, isto parece incidir nas polticas de sade propugnadas por organismos internacionais que enfatizam a autonomia, trao marcante do individualismo do Ocidente. Tanto a PS como a epidemiologia que lhe serve de suporte produzem uma reconfigurao tardo-moderna da medicina (Bunton & Burrows 1 9 9 5 ) , que assume novos formatos. Um deles a medicina da preveno clnica, como indica o Guia para Mdicos da Organizao Pan-americana de Sade ( 1 9 9 8 ) , elaborado por um grupo de trabalho canadense sobre o Exame Peridico de Sade. Trata-se de um conjunto formal de normas tcnicas para a PS por meio de exames peridicos dirigidos deteco e controle dos processos pr-patognicos de adoecimento (em outros termos, do risco). Ao resenhar o trabalho, Telles (1998) assinala o fato de os clnicos constiturem-se como o plo legitimado(r) de informaes sobre sade,

mas ainda assim os autores do Guia apontam para o fato de as medidas vigentes de PS no serem indiscutveis ou conclusivas em termos de conhecimento sobre determinadas questes. Alm disto, o discurso que d sustentao s normas muitas vezes se distancia do racionalismo (crtico). Ento, o Guia prope que cada norma seja operada como contingente, relativizada; como princpio prima facie, ou seja, a ser verificado caso a caso, afastando-se, portanto, de sua caracterstica dimenso demarcadora rumo ao terreno palmilhado pelo principialismo biotico. O campo da PS est em franca expanso. Basta fazer uma rpida incurso no Medline para acessarmos grande quantidade de trabalhos sobre o tema em suas vrias (e nem sempre claras) designaes. Alis, esta percepo foi assinalada por Kulbok e associados (1997) ao fazerem meno confuso presente no campo em foco. Aps uma anlise crtica dos mesmos termos, estes autores assinalaram diferentes sentidos nas formas c o m o profissionais especializados empregam idias e conceptualizaes inerentes rea: 'promoo sade', 'comportamento na promoo sade', 'comportamento na proteo sade', 'comportamento na preveno doena', 'comportamento na sade preventiva', 'comportamento de sade', 'estilo de vida saudvel'. Curiosamente, 'promoo' e 'promover' apresentam interessantes aspectos polissmicos (Ferreira, 1 9 8 6 ) . Por uma via, podem referir-se ao avano, elevao a uma situao superior, ascenso e, por extenso, ascese. Isto inclui noes causais, originrias e, mesmo, de 'instncia viabilizadora'. Por outra, vinculam-se a imagens recorrentes de marketing, de propaganda, como estmulo publicitrio (com vistas divulgao e ao consumo) de determinados pontos de vista, idias e produtos. N o campo da sade, tais sentidos tendem a se unificar e adquirir uma poderosa dimenso semntica: instncias viabilizadoras de elementos propiciadores de situaes superiores. Para atingir os pretendidos efeitos, so utilizadas estratgias de difuso pblica, que inevitavelemente se vinculam a aspectos retricos. No caso em questo, para a boa sade, ou melhor, a evitao de riscos que possam compromet-la. Promover sade, promovendo a sade. Pode-se atribuir, no entanto, uma srie de crticas epidemiologia riscolgica que sustenta a PS. Um exemplo o trabalho de Petersen e Lupton ( 1 9 9 6 ) The new public health. Health and self in the age of risk, em particular o captulo apropriadamente intitulado: "Epidemiology: governing by numbers". Claro que a discusso desenvolvida se refere ao panorama dos pases ditos de Primeiro Mundo. Mesmo assim, ela se mostra comparvel a determinados aspectos de nossa sade pblica.

Os citados autores procedem a uma anlise do papel da epidemiologia do risco na nova sade pblica (NSP). Alm da epidemiologia, a NSP utiliza conceitos e estratgias como PS e educao em sade, marketing social, screening diagnstico, imunizao, participao comunitria, polticas pblicas de sade, colaborao intersetorial, ecologia e economia em sade (Petersen & Lupton 1 9 9 6 ) . A NSP se caracteriza por sua postura modernista, isto , ela "dependente da cincia como baluarte de sua credibilidade e posio social e compartilha uma crena nos po deres da racionalidade e organizao para alcanar progresso na luta contra o sofrimento e a doena" (ibid.:6). Sob tal tica, a nova sade pblica no esmiua as relaes de poder e permanece adequada ao projeto neoliberal em voga. Em sntese, a idia de primazia do individualismo em que agentes racionais exercem suas prerrogativas, um clima de descrdito quanto autoridade poltica dos governos e nfase excessiva no papel do mercado como instncia reguladora da economia. Neste momento, a sade escapa do mbito da medicina, da fisiolo gia do organismo e da epidemiologia. "A sade contempornea uma fuso de estilos e contextos sociais, econmicos e culturais [...] em que, para a cincia mdica, o corpo do paciente atua como a fonte primria e objeto da sade, para os promotores de sade o estar-bem (wellness) dos indivduos um produto de seus estilos de vida" (O'Brien 1 9 9 5 : 2 0 4 ) A exemplo de outros terrenos das tecnobiocincias, e mesmo que alguns autores promotores da PS tentem contornar tal vnculo (Kickbusch 1 9 8 9 ) , permanecem indcios de a concepo do 'corpo-mquina' subjazer s concepes da PS. Outra rpida incurso no mbito dos dicionrios mostra como, a exemplo de outras noes biolgicas (cf. o caso de stress), em ingls 'comportamento' (behavio(u)r) tambm se refere mecnica, ou seja, aos modos de agir/reagir de determinados materiais sob certas circunstncias (Webster's 1 9 9 4 ) . Mais revelante ainda o conceito de 'resilincia', utilizado pela PS a partir da noo fsica relativa a algo prprio s molas: "poder ou capacidade de retornar forma ou posio originais depois de ser dobrado, comprimido ou distendido". O prprio verbete dicionarizado aponta para a dimenso (experiencial) de "retorno" ao status de sade: "capacidade de recuperar-se prontamente de doena [illness], depresso, adversidade ou situaes equivalentes" (idem). Mangham e outros adaptaram o conceito para o campo da PS como "a capacidade de indivduos e sistemas enfrentarem com sucesso adversidades ou riscos significativos. Esta capacidade muda no tempo, reforada por fatores de proteo

disponveis para os indivduos, sistema e ambiente, e contribui para a manuteno da sade" ( 1 9 9 6 : 3 7 3 - 4 , nfase minha). Conforme indicam Stotz e Valia (1998), Kotliarenco e outros ( 1 9 9 7 ) , patrocinados pela OPS, organizaram uma publicao a este respeito para a Amrica Latina. Frankish e colaboradores (1997) estudaram as relaes entre a categoria 'viver ativo' (active living) e os determinantes de sade como meio de demarcar a postura das pessoas em relao atividade fsica, ao lazer e recreao como componentes de um 'estilo de vida' considerado saudvel. Sob esta perspectiva, tais pesquisadores afirmam que o 'viver ativo' assume que a "participao em atividades (comportamentos) [...] envolve a pessoa toda (whole), corpo, mente e esprito; parte de uma vida dinmica, na qual indivduos e ambientes continuamente se inter relacionam e afetam uns aos outros, e subjetivo em natureza, e seu significado relativo a cada pessoa" (Frankish et al. 1 9 9 7 : 2 8 9 ) . H crticas sociolgicas dirigidas ao campo da promoo de estilos de vida saudveis. Em linhas gerais, podem ser mapeadas matricialmente em trs nveis: 'da estrutura', 'da vigilncia' e 'do consumo', conforme os focos, se populaes, identidades, risco ou ambiente (cf. Nettleton & Bunton 1 9 9 5 ) . Em nosso trabalho, demarcaremos e procuraremos explorar o segundo e terceiro aspectos. Como 'identidades' e 'risco' se mesclam operando com idias de 'si-prprio' (self), 'comportamentos' e 'estilos de vida', que devem ser devidamente estudados, conceptualizados e abordados para que sejam viabilizadas intervenes em busca de sade. N o caso, entendida como evitao (na medida do possvel) de situaes de risco. A idia de 'comportamento' est inevitavelmente referida s relaes de alteridade - com o dito ambiente/cultura, com outras coisas viventes ou no, se viventes - humanos ou no. Neste ponto, h uma possvel afinidade com a idia filosfica de intencionalidade tratada pelas cincias cognitivas, inegavelmente um dos mais destacados setores tecnobiocientficos. Ao pensarmos em comportamento, alm de evitarmos as polmicas teorias behavioristas (de Skinner e Watson), devemos ter em mente qual a noo mais adequada de conscincia-de-si e, por extenso, como mencionam Frankish e outros (1997), sem quaisquer explicaes do que venham a ser tais aspectos de "pessoa toda, corpo, mente e esprito" que esto em jogo. Categorias essenciais, sem dvida, mas extremamente intrincadas, passveis de mltiplos encaminhamentos em terrenos inco mensurveis e que incluem aspectos ligados s crenas religiosas e ao prolfico campo da filosofia da mente sem, contudo, apresentarem solues consistentemente satisfatrias sob o ponto de vista cientfico (captulo 5 ) .

Em especial, as noes de pessoalidade e comportamento pessoal podem estar sendo alteradas pelos novos elementos trazidos pela biomedicina, pelas neurocincias e pela neurofilosofia. Basta que observemos as questes que problematizam a categoria de 'pessoa' e a idia de doena mental a partir de bases psicobiolgicas veiculadas tanto pelos novos psicofrmacos, como pelas tcnicas de cartografia cerebral: tomografia por emisso de psitrons e por emisso de ftons nicos (Dumit 1 9 9 7 ) . Alis, o behavionsmo neural (de Gilbert Ryle e Carl G. Hempel) se constitui em uma das vertentes do monismo materialista da neurofilosofia. Tal via postula que os estados mentais so apenas padres de comportamento e disposies ao comportamento. Este, por sua vez, consistiria apenas em movimentos corporais despossudos de componentes mentais que lhes seriam concomitantes. H vrias crticas a esse behaviorismo, pois ele incapaz de: 1) explicar as relaes generativas entre estados mentais e comportamentos; e 2) analisar a relao entre mente e comportamentos sem considerar outros estados mentais (Searle 1 9 9 8 ) . H propostas que procuram avanar neste terreno conflagrado. Uma delas o fisicalismo (com diferentes proposies) que, em linhas gerais, postula que estados mentais so idnticos a estados cerebrais, mas no explica como h estados cerebrais que no so mentais (Searle 1 9 9 8 ) . O funcionalismo (de Putnam), uma outra, prope que os estados mentais podem ser encarados como estados fsicos no porque possuam base fsica, mas sim em razo de suas relaes causais. Crenas e juzos seriam estados mentais decorrentes de determinados sistemas de relaes, independentes dos componentes/substratos materiais responsveis por tal configurao. Assim, estados mentais seriam estados funcionais e vice-versa, definidos a partir de relaes causais de bases fsicas (Searle 1 9 9 8 ) . Um dos efeitos desta via so as propostas de inteligncia artificial forte, nas quais estados funcionais do crebro equivalem a estados computacionais, vale dizer, de processamento de informao (captulo 5 ) . Em certo sentido, pode-se considerar, sintomaticamente, como mais um dos rebentos do que estamos chamando domnios tecnobiocientficos, a emergncia, no incio da dcada de 1 9 9 0 , da chamada 'medicina baseada em evidncias' (MBE). Fortemente ligada ao movimento da dita 'epidemiologia clnica' anglo-saxnica, iniciado na Universidade McMaster (Canad), ela se aproximou bastante da medicina, sendo definida originalmente como o "processo de sistematicamente descobrir, avaliar e usar achados de investigaes como base para decises clnicas" (Guyatt et al. 1 9 9 2 ) .

preciso salientar a curiosa metamorfose gramatical ocorrida. O adjetivo 'clnica' se transforma no substantivo de mais amplitude 'medicina', e recebe uma locuo adjetiva de indiscutvel efeito retrico. 'Baseada' veicula a sugestiva idia de solidez, como em 'fundao/fundamento', que ser constituda pelo elemento sensorial humano considerado mais fidedigno (a viso) para o testemunho de fatos que ento podero ser evidenciados como 'verdades'. H, deste modo, a meta apregoada de aperfeioar o uso do raciocnio a partir da casustica clnica de cada mdico e seus potenciais vieses (captulo 4 ) . Para tal finalidade ser atingida, devem-se seguir alguns preceitos, bem sintetizados por Jenicek: "formulao de uma clara questo clnica a partir do problema do paciente que precisa ser respondido; busca na literatura por artigos relevantes e por outras fontes de informao; avaliao crtica da evidncia (informao trazida por pesquisa original ou por sntese de pesquisas, por exemplo, meta-anlise); seleo da melhor evidncia [...] para a deciso clnica; vinculao da evidncia com a experincia clnica, conhecimento e prtica; implementao dos achados teis na prtica clnica; avaliao da implementao e do desempenho geral do profissional da M B E ; ensino a outros mdicos de como praticar a M B E " (Jenicek 1 9 9 7 ) . Independentemente dos aspectos discursivos, a MBE tem sido alvo de intenso debate no mbito das cincias da sade (Jenicek 1997; Jackson et al. 1998). No nossa inteno aprofundar aqui as mltiplas discusses acerca do campo em foco. Para tanto, o artigo de Jenicek (1997) apresenta um resumo das muitas crticas de carter tico, conceituai e metodolgico, assim como vrias indicaes bibliogrficas a este respeito. Para nossos propsitos, basta mencionarmos o que aponta Barata ( 1 9 9 6 ) a respeito das dimenses ideolgicas embutidas neste deslocamento, no qual transparece a faceta emprico-lgica das tecnobiocincias, mediante mitos estreitamente vinculados entre si: 1) a incondicional objetividade do conhecimento cientfico e sua capacidade de evidenciar 'verdades'; 2) a potncia do instrumental quantificador probabilistico neste processo; 3) a idia de progresso irrestrito no desenvolvimento tecnolgico de produtos, tcnicas e intervenes com vistas preveno, deteco e ao tratamento; 4 ) a forte crena na neutralidade do empreendimento cientfico, cuja premissa maior a dicotomia sujeito/ objeto e, por conseguinte, o controle de ambos, otimizando a objetividade e evitando os perigos da subjetividade. Vale, ainda, o destaque de dois aspectos: a) a problemtica integrao com a experincia clnica, conhecimento e prtica de cada mdico, princi

palmente porque no se define claramente as formas de operar as categorias mediante os modos de raciocnio clnico - deduo, induo e abduo, cujas caractersticas apresentam grandes incompatibilidades (captulo 4 ) . H uma proliferao de propostas baseadas em evidncias. Mesmo assumindo que a epidemiologia sempre atuou como fonte de evidncias para a sade pblica, ainda assim propugna-se uma "sade pblica baseada em evidncias" (Muir Gray 1997). Ou ento, "processos decisrios para programas de sade comunitria baseados em evidncias" (Jackson et al 1 9 9 8 ) , nos quais as decises correspondentes so, entre outros pontos, "informadas pelas melhores evidncias disponveis sobre o comportamento individual, caractersticas da populao e estratgias para promover a sade [...]. Alm disso, aes de promoo sade e preveno de doenas tomadas em contextos comunitrios podem se mostrar mais custo-efetivas do que a tomada de aes teraputicas posteriores em contextos clnicos" (Jackson et al 1 9 9 8 ) . No obstante enuncia-se que um dos maiores desafios de tal enfoque no campo snito-coletivo aparece no mbito da promoo sade baseada em evidncias, em que "medir e avaliar as respectivas variveis dependentes e independentes muito mais difcil do que nos domnios da preveno da doena [...] e implementar medidas de PS tambm mais complexo e menos factvel" (Jenicek 1 9 9 7 : 1 9 0 - 1 ) . A meu ver, os maiores obstculos no se referem s dificuldades provenientes de nem sempre dispor-se de evidncias seguras sobre determinadas questes ou, mesmo quando esto disponveis, no haver certeza sobre quais seriam as melhores escolhas, ou ainda problemas na operao com variveis (in)determinadas ou nas limitaes na implementao de medidas de PS. Preocupaes centrais deveriam, medida do possvel, tomar como base a evidncia (?) de que sade se configura como uma macrocategoria multifria, pois ela admite, conforme o contexto, mltiplas definies, com distintas repercusses e decorrncias. Em particular, no mbito humano, 'sade' com certeza diferente de 'vida'. Ela seria antes um pr-requisito para o viver que inclui o prazer, a dor, a inveno, a criatividade e os arrebatamentos. isto infelizmente no ocorre sem riscos. Muitas vezes, as formas de viver no se reduzem a 'estilos' e 'comportamentos' passveis de escolha ou troca. Como sugerem Stotz e Valia, com base em Lvi-Strauss, as pessoas, ao viverem suas vidas, buscam construir ordenaes totalizantes, mediante processos de bricolage. Juntam pedaos de impresses, experincias, aprendizados, sob diferentes misturas (narrativas, imagens) e com aspectos muitas vezes inconscientes. As (re)descries de si-prprias acontecem "com o recurso a um repertrio limitado e constantemente atualizado por diferentes combi

naes para o qual se faz uso da imaginao. Da apareceriam resultados 'brilhantes e imprevistos' para o pensamento cientificamente orientado" (Stotz & Valia 1 9 9 8 : 4 7 ) . Nogueira ( 1 9 9 8 ) lembra que Rorty ( 1 9 9 1 ) , ao propor a idia de recontextualizao, emprega outra metfora visual, a da teia/rede constantemente re-tecida em ns (trocadilho no intencional) para lidar com desejos e crenas que so (re)interpretados continuamente. Certas partes da rede aparecem diretamente para o sujeito; outras, possuem um estatuto inconsciente. Algo correlato pode ser visto na forma como Wittgenstein aborda o conceito de 'jogo' e mostra a impossibilidade de estabelecer critrios categorizadores comuns a todos os distintos representantes da categoria, baseados na lgica formal. Em funo de haver reas cujos limites so indefinidos e/ou superpostos, prope a imagem de uma corda torcida, com mltiplas fibras menores. Se a metfora vlida, cada um de ns se relaciona com o viver, primordialmente consigo mesmo, mediante 'fibras' de componentes experienciais misturados que se 'torcem' e se relacionam entre si de modos imprevisveis, gerando 'cordas', ordenaes identitrias de aspectos multiformes, com margens de alterao ao longo do tempo. Elas resultam de trajetrias prprias, que se presentificam singularmente nos modos que so possveis, independentemente de escolhas essencialmente marcadas pela esfera volitiva. A unidade humana bsica - pessoa - consiste em uma categoria cultural cujos diferentes atributos - racionalidade, autonomia, gnero, etnia, entre outros - variam conforme culturas, tempos e lugares (Dumit 1 9 9 7 ) . Como ilustrao, para algumas pessoas, tanto a forma de manifestar sua sexualidade, como a aderncia a determinadas crenas religiosas podem assumir dimenses fundamentais em suas presentes configuraes identitrias. Isto precisa ser levado em conta, por exemplo, nos respectivos programas de promoo de sade, preveno e tratamento a doenas sexualmente transmissveis. Aparentemente, a PS se prope a desenvolver aquilo que Dumit chama de 'modelagem objetiva de si-mesmo' (objective self-fashioning), ou seja "[...] como tomamos fatos sobre ns prprios - sobre nossos corpos, mentes, capacidades, traos, estados, limitaes, propenses e t c . - que tenhamos lido, ouvido ou encontrado no mundo e os incorporamos em nossas vidas" (ibid.:89, nfase do autor). A modelagem objetiva de simesmo admite dois sentidos inter-relacionados: 1) como compreendemos ns-prprios c o m o sujeitos a(d)os discursos da objetividade tecnobiocientfica e de seus produtos; e 2 ) como tais discursos nos escolhem como objetos de interveno, estudo e experimentao (idem).

Neste livro, o captulo um aborda elementos conceituais e tericos da construo da categoria risco por disciplinas relacionadas engenharia de segurana, epidemiologia e s cincias atuariais, com nfase no papel da biologia molecular neste processo. So consideradas repercusses tanto em termos psicolgicos e socioculturais, como sob o ponto de vista da comunicao social, e discutidas as relaes entre as noes de risco, estilo de vida e tardo-modernidade. Por fim, a idia de 'relatividade' do risco apresentada em sua dimenso mltipla: trata-se de um constructo produzido em uma poca particular e que est ligado a determinada viso do mundo e do que a experincia humana, de modo a influenciar os respectivos enfoques tericos e metodolgicos. O captulo dois estuda aspectos tericos subjacentes construo da vertente molecular da epidemiologia e do conceito de risco gentico, tendo c o m o referncia as questes postas pela atualidade: novas tecnologias, globalizao, proliferao de estratgias comunicacionais e diluio de matrizes identitrias. So discutidos os problemas relacionados constituio de novos campos interdisciplinares, tais como os da epidemiologia e da gentica moleculares. Ao final, desenvolve-se uma anlise das repercusses na comunicao social de contedos genticos, em especial quando referidos s testagens genticas preditivas e clonagem de animais a partir de metforas triunfalistas, deterministas e sustentadoras de crenas relativas existncia e supremacia de conceitos como 'pureza', 'essncia' e 'unificao' de 'eus/egos' racionais e integrados. O captulo trs, por seu turno, considera a expectativa de um novo milnio quando se torna 'natural' admitir o surgimento de inclinaes para a avaliao e o balano do passado, assim como para as tentativas de previso dos cenrios futuros. Partindo deste ponto de vista - e enfatizando suas incertezas - prope-se uma discusso dos rumos e perspectivas da epidemiologia. A partir de proposies de epidemiologistas consagrados nesta direo, so abordados e discutidos o alcance e os limites de novos aspectos assumidos pela disciplina, especialmente a incluso de tcnicas e instrumentos da bioinformtica e da biologia molecular. Nestas reas (entre muitas outras), notvel o fato de a noo de informao possuir enorme importncia. So, ento, analisadas origens e deslocamentos conceituais desta noo e suas possveis repercusses e efeitos no campo das cincias biolgicas, em geral, e de suas prticas de pesquisa, em particular. O captulo quatro desenvolve uma anlise dos modos de categorizao na biomedicina e a sua pertinncia na abordagem do adoecimento. Para isto, a noo de 'corpo' revista, assinalando-se a importncia da subjetivao na configurao do ser humano. Padres de categorizao

so apresentados, destacando-se o papel da lgica formal na construo das categorias clssicas. A distino fenomenolgica referente s modalidades de apercepo (monottica, polittica e sinttica) e a categorizao b a s e a d a n o s c r i t r i o s de s e m e l h a n a familiar, c e n t r a l i d a d e e prototipicalidade so explicadas. A clnica e as categorias biomdicas so discutidas sob a tica dos respectivos sujeitos e objetos de interveno. Ao final, enfatiza-se a importncia da sabedoria prtica e das narrativas na operao do dispositivo clnico e de sua efetividade, tanto do ponto de vista do mdico como do paciente. Por fim, o captulo cinco prope uma discusso da noo de consci ncia-de-si a partir de pontos de vista da filosofia da mente. Para isto, apresenta-se uma viso sinptica das origens do cognitivismo localizadas no chamado movimento ciberntico. Em seguida, so resumidas especulaes de filsofos e pesquisadores das neurocincias, tomando por base a 'classificao' proposta pelo fsico Roger Penrose. Sob tal perspectiva, a filosofia da mente pode ter tipificadas suas abordagens do campo da conscincia em grandes propostas de inteligibilidade, com quatro posies bsicas: a) ponto de vista da inteligncia artificial 'forte': a mente como um todo pode ser explicada em termos de processos computacionais; b) ponto de vista da inteligncia artificial 'fraca': atividades cerebrais causam a conscincia e podem ser simuladas, mas isto no implica que a simulao apresente propriedades mentais. H algo mais do que computao na conscincia; c) processos cerebrais causam a c o n s c i n c i a , mas no podem ser simulados em c o m p u t a d o r ; e d) a conscincia no pode ser explicada de nenhuma forma em termos cientficos. Em sntese, o pano de fundo do trabalho se ancora principalmente nas perspectivas propostas por Atlan ( 1 9 9 1 ) : as aporias estabelecidas pela cultura ocidental mantm pontos de vista regidos pelo princpio da razo suficiente com sua armadura lgica baseada na causalidade como agente dos fenmenos naturais. No obstante, para cada domnio de investigao da natureza, devemos ponderar nossas efetivas margens de conhecimento dos tipos de objetos e de fenmenos aos quais nos dedicamos, procurando discernir, medida do possvel, o quanto de regulao e emancipao tais possibilidades veiculam. Quanto mais complexo e singular for um fenmeno, mais incerta ser a teoria capaz de dele dar conta. No obstante nosso af de controle, precisamos considerar as medidas possveis em jogo, ou seja, preciso admitir que a tecnocincia proporcionou flagrantes provas de expanso de nossos domnios, mas ao mesmo tempo, em muitas coisas essenciais, permanece uma incmoda sensao de nossa ignorncia ter se ampliado.

Vivendo entre exposies e agravos:a teoria da relatividade do risco1

Nos dias de hoje, a noo de risco desfruta de uma peculiar popularidade em diversos cantos do mundo. Se, em termos usuais, ser 'popular' relaciona-se a uma idia de difuso, reconhecimento e, digamos, aceitao pblica, tal circunstncia flagrante. Para alm dos contextos biomdicos/ epidemiolgicos, da sade ocupacional e das cincias atuariais, fala-se e escreve-se com freqncia sobre o risco nos chamados mass media. Por outro lado, percebe-se que as pessoas, na esfera privada, de alguma forma incorporaram a idia de risco, mesmo que as resultantes em termos comportamentais sejam distintas: ou acat-la, procurando administrar os modos de viver, comer, beber, exercitar-se, expor-se ao sol, manter relaes sexuais e t c ; ou desafi-la, adotando estilos de vida considerados arriscados, possivelmente a partir da suposio da posse de imuni dades imaginrias... Coletivamente, parece pairar uma aura de ameaa sobre todos ns, passvel de ser efetivada, de modo particularizado, a qualquer instante. Em especial, se no nos precavermos de acordo com o que mandam os preceitos da preveno em sade, as normas de segurana no trabalho, as idias de cautela nas atividades cotidianas no s urbanas, como tambm rurais (vide o uso inadequado de agrotxicos). C o m o diz Beck ( 1 9 9 2 ) , vive-se em uma sociedade globalizada de risco - uma sociedade catastrfica. Sua afirmao, por um lado, se dirige ao contexto capitalista avanado, no qual se destacam os riscos de acidentes (hazards) tecnolgicos de carter coletivo, resultantes do processo de modernizao destas formaes scioeconmicas; por outro, assinala os riscos da pobreza nas sociedades da escassez no dito Terceiro Mundo e nos bolses de misria do mundo industrializado (Beck, 1 9 9 2 ) . Vale ressaltar a existncia de uma verdadeira indstria de determin a o / a v a l i a o de riscos ligados dimenso t e c n o l g i c a (risk assessment), baseada em disciplinas ligadas engenharia, toxicologia,

Uma verso anterior deste texto foi publicada com o mesmo ttulo em Cincias, Sade -Manguinhos, vol. III, n. 2 , 1 9 9 6 : 2 3 7 - 6 4 .

1

Histria,

epidemiologia/bioestatstica e s cincias atuariais, institucionalizada na Society for Risk Analysis e na publicao Risk analysis (Gabe 1 9 9 5 ) . Certamente um dos principais elementos da construo do esprito de risco de nossas sociedades modernas localiza-se na abundante produo cientfica. H grande quantidade de investigaes sobre tal temtica acumulada nas ltimas trs dcadas, decorrente em parte da ampliao do acesso tecnologia computacional e a pacotes estatsticos. Uma conseqncia deste processo foi a 'epidemia de risco', assim chamada pelo psiclogo noruegus John-Arne Skolbekken. Aps realizar uma pesquisa bibliogrfica acerca do uso do conceito nas publicaes da rea da sade, ele apontou a progressiva e acentuada elevao da 'incidncia' de artigos sobre o tema nas revistas mdicas e epidemiolgicas de pases anglo saxnicos e escandinavos no perodo 1 9 6 7 - 1 9 9 1 (Skolbekken 1 9 9 5 ) . Da mesma forma, Carter mostra como em 1 9 8 0 a palavra risk aparece cerca de 5 . 5 0 0 vezes em referncias citadas na base de dados Excerpta Medica e em 1 9 9 3 chega a quase 15 mil vezes (Carter 1 9 9 5 ) . Segundo Hayes ( 1 9 9 2 ) , possvel agrupar as reas desta produo cientfica (que, inevitavelmente, se superpem) em: a) verificao/mensurao, como suporte a estratgias preventivas na interao na clnica mdica. Aqui se incluem as prticas da chamada medicina prospectiva ou preditiva, cujas intervenes preventivas ocorrem a partir da identificao de exposio a fatores de risco ; b)anlise, avaliao e administrao dirigidas a riscos ocupacionais, controle e segurana de produtos industrializados e percepo pblica (ligada a Society for Risk Analysis); c) risco epidemiolgico, rea voltada para a assim chamada sade pblica; pode estar referenciada a dois domnios: ambiental: aborda riscos provocados por exposies a resduos radiativos, poluentes txicos e outros subprodutos de atividades econmicas e sociais; e individual: lida com riscos resultantes de 'escolhas' comportamentais pessoais localizadas na rubrica estilo de vida.2

Nestas circunstncias, a idia de predio no costuma ser determinista, c o m o o termo poderia sugerir, mas sim probabilista. C o m o veremos, mesmo c o m o avano da testagem gentica, as predies (na acepo 'proftica') da medicina s so vlidas no atual estado da arte para algumas doenas especficas (como a coria de Huntington). 'Predies' do risco (probabilidades) a partir dos conhecimentos disponveis sobre as relaes entre exposies/agravos na maioria das doenas adquirem relevncia a posteriori, ou seja, aps a ocorrncia do agravo. Isto confirmaria as relaes de causao, mesmo que se desconheam os mecanismos precisos deste processo. Para alguns autores, no entanto, a cincia s se legitima de fato com a descoberta dos mecanismos (Atlan 1 9 9 4 ) . Com o surgimento de estudos de medicina experimental e epidemiologia c o m base na biologia molecular, a determinao dos riscos, em algumas circunstncias, se tornar mais bem demarcada, permitindo predies c o m margens de erro menores.

2

Como veremos, a proliferao de estudos sobre risco teve repercusses em termos de difuso pblica atravs dos mass media. Por ora, cabe assinalar o estabelecimento de uma retroalimentao ciberntica entre emissores e receptores das informaes. Em funo da divulgao de informaes consideradas vitais para a sobrevida das populaes, h o interesse imediato do pblico por tais questes (especialmente, diante da possvel imputao de irresponsabilidade, caso se assumam posturas desacauteladas a este respeito), propiciando uma demanda para a qual os mass media procuram apresentar, entre outros tpicos, as 'ltimas descobertas da cincia' sobre os riscos. Um dos encaminhamentos possveis para o pblico diante das configuraes de risco divulgadas buscar o setor econmico responsvel pela oferta/comercializao de produtos de proteo/preveno aos riscos. H, ento, servios, prticas, bens de consumo de diversos tipos para enfrentar e prevenir as potenciais ameaas nossa sade, sem no entanto, importante assinalar, existirem garantias incondicionais de que, assim procedendo, estaremos protegidos, pois o risco uma entidade probabilstica. Em geral, as situaes de exposio no se apresentam de modo a permitir que as previses de agravos sejam certas, imediatas e i n d i s c u t v e i s . S e m p r e h a p o s s i b i l i d a d e da o c o r r n c i a de imponderabilidades incontrolveis. Isto no negligencivel. Assim, possvel perceber a emergncia de discursos populares de resistncia ideologia do risco que recusam as caractersticas inerentes aos pressupostos da probabilidade. So facilmente identificveis e consistem na outra face da mesma moeda. So representados por dois modelos bsicos, muitas vezes com base em casos ocorridos na esfera pessoal: a) algum de idade avanada, cuja exposio a fatores de risco no decorrer da vida no alterou sua sade ou sobrevida; b) algum no 'vigor da juventude' e sem um histrico de exposio que inesperadamente sucumbe em virtude de um evento vinculado a reconhecidos fatores de risco (Davison et al. 1 9 9 1 ) . Entre as muitas questes carreadas por este conceito-constructo est a idia de virtualidade, to cara dita tardo-modernidade. Alis, preciso demarcar com mais clareza a noo de virtual, bastante divulgada nos dias de hoje. A partir de Pierre Lvy (1996), 'virtual', aplicado idia de risco, se ope a 'atual', no sentido de algo que no aparece explicitamente, mas que existe como faculdade ou latncia e passvel de realizar-se. H, contudo, a oposio virtual real que se enraza na ptica (imagem real/virtual), assim como a referncia produo 'artificial' de algo (virtual natural), e portanto vinculada idia de simulao

e a modelos ligados a sistemas computacionais entre outros recursos produtores de, seguindo Baudrillard, 'simulacros' ou de, seguindo Spielberg e Lucas, 'efeitos especiais'. Curiosamente, 'virtual' se relaciona 'virtude', na acepo de fora efetiva, eficcia, poder. Por exemplo, uma "simpatia com a virtude de curar dor de cotovelo". Creio que o conceito de risco tambm inclui este poder, pois possvel pensar em termos de exposio com a virtude de gerar determinado agravo... A seguir, uma breve descrio de alguns aspectos semnticos do termo.

Sentidos de riscoRisco um vocbulo especialmente polissmico e, portanto, d margem a muitas ambigidades. Como desenvolvido em outro lugar (Castiel 1 9 9 4 ) , o referido termo possui conotaes no chamado senso comum. Nesta perspectiva, h controvrsias quanto a suas origens: tanto pode provir do baixo-latim nsicu, riscu, provavelmente do verbo resecare, cortar, como do espanhol risco, penhasco escarpado. Em uma segunda acepo, excluindo os termos relacionados ao verbo riscar, indica, por um lado, a prpria idia de perigo e, por outro, sua possibilidade de ocorrncia (Ferreira, 1 9 8 6 ) . N o sculo passado, seu sentido estava relacionado s apostas e chance de ganhar ou perder em certas modalidades de jogos (ditos de azar). Em pocas mais recentes, adquiriu significados ligados a desenla ces negativos (Douglas 1986). O tema recebeu um forte impulso no campo da engenharia durante a Segunda Grande Guerra em funo da necessidade de estimar os danos decorrentes do manuseio de materiais perigosos (radiativos, explosivos, combustveis). Na biomedicina, estas anlises serviram para dimensionar os possveis riscos na utilizao de tecnologias e procedimentos mdicos (Skolbekken 1 9 9 5 ) . N o Dicionrio de epidemiologia (Last 1 9 8 9 ) , o verbete risco faz meno: a) probabilidade de ocorrncia de um evento (mrbido ou fatal); b) a um termo no-tcnico que inclui diversas medidas de probabilidade relacionadas a desfechos desfavorveis. A prpria idia de probabilidade pode ser lida de dois modos: a) intuitivo, subjetivo, vago, ligado a algum3

H distintas teorias de probabilidade, c o m clculos e interpretaes prprias. Alm da tica 'frequentista', h a 'probabilidade bayesiana', 'pessoal' ou 'subjetiva', que procura considerar o fato de os humanos possurem crenas, opinies, preferncias, refletidas por seu comportamento real ou potencial e passveis de influir na probabilidade de ocorrncia de determinados eventos. Por outro lado, h a literatura que procura demonstrar o fato de as pessoas no se comportarem de m o d o subjetivo bayesiano (ver Oakes 1 9 9 0 ) .

1

grau de crena, isto , uma incerteza no-mensurvel; e b) objetivo, racional, precisvel mediante tcnicas probabilsticas, incerteza mensurvel (Gifford 1 9 8 6 ) . A abordagem dos fatores de risco est calcada nesta segunda acepo, isto , marcadores que visam predio de morbi-mortalidade futura. Deste modo, poder-se-ia identificar, contabilizar e comparar indivduos, grupos familiares ou comunidades em relao exposio aos ditos fatores (j estabelecidos por estudos prvios), proporcionando intervenes preventivas. Como diz Ayres: "a particularidade que permite identificar a discursividade prpria da epidemiologia pode ser sinteticamente descrita pelo conjunto indissocivel de trs caractersticas que nos levaro inter-relao elucidadora entre a epidemiologia do risco e seus antecessores: uma pragmtica do controle tcnico; uma sintaxe do comportamento coletivo e uma semntica da variao quantitativa" (Ayres 1995:115). Na epidemiologia, h trs formulaes bsicas de risco: absoluto, relativo e atribuvel . importante fazer aqui dois comentrios. Em primeiro lugar, comum considerar que a taxa expressa o risco. Segundo Last, isto pertinente caso seja aplicado s situaes apresentadas no sentido mais restrito de taxa, ou seja, como quocientes que representem mudanas no decorrer do tempo. Mesmo no interior da epidemiologia, o conceito de taxa polissmico. Desta forma, para ele, taxa no expressa risco nas seguintes situaes: 1) quando sinnimo de quociente, referindo-se a propores. Por exemplo: taxa de prevalncia; 2 ) quando quociente que representa mudanas relativas (reais ou potenciais) em duas quantidades (numerador e denominador). Por exemplo: taxa de colesterol no sangue (Last 1 9 8 9 ) . Estas d i s t i n e s , no e n t a n t o , n o so c o n s e n s u a i s . O u t r o s epidemiologistas diferenciam claramente 'taxa de incidncia' e 'risco de adoecer', tanto em termos conceituais como nos mtodos de estimao. Enquanto a primeira estaria referida ao potencial instantneo de mudana na situao de sade (casos novos) por unidade de tempo, relativo ao tamanho da populao de interesse (sem agravos) no tempo V (a medida expressa em unidades de l/tempo), o segundo se definiria como "a probabilidade de que um indivduo sem doena desenvolva-a no decorrer de um perodo especificado de tempo, desde que ele no morra por outra causa durante tal perodo" (Kleinbaum et al 1 9 8 2 : 9 9 ) . Sendo uma probabilidade condicional, varia de zero a um e no possui unidades de medida.44

Para maiores detalhes sobre indicadores e seus clculos ver, por exemplo, Last ( 1 9 8 9 ) .

As discordncias permanecem nas tentativas de distino entre os enfoques individual e coletivo do risco e suas correspondentes estimativas. Deste modo, haveria mtodos que encaram risco como medida (terica) de probabilidade individual de ocorrncia de agravo ', os atuariais; e aqueles que dimensionam a 'fora de morbidade' em populaes, razes de densidade de incidncia (Czeresnia & Albuquerque 1 9 9 5 ) . Em segundo lugar, como no possvel observar simultaneamente o efeito da exposio e no-exposio no mesmo indivduo (idem), o dispositivo estatstico-epidemiolgico opera com grupos populacionais com base no pressuposto de que a diversidade dos indivduos estar distribuda de modo homogneo nas amostras devidamente selecionadas. Os clculos produzem taxas mdias que refletem, portanto, valores referentes aos agregados (efeitos causais mdios). Se, porventura, quisermos representar a unidade atravs do quociente relativo quantidade observada pelo mesmo valor, bvio que esta no representa nenhum 'indivduo', que, assim, torna-se uma abstrao . Portanto, o risco um achado relativo dimenso agregada. Sua validade para o nvel individual d margem a erros lgicos. Estas questes so estudadas na epidemiologia (e na sociologia) sob a rubrica das falcias ecolgicas de dois tipos, conforme a operao: atomstica ou agregativa; o que vlido para o nvel agregado pode no o ser para o nvel do indivduo ou vice-versa (Susser 1 9 7 3 ) .5

Outro ponto importante a considervel margem de confuses oriundas da indistino entre risco relativo e absoluto. O risco relativo, mesmo sendo um relevante indicador da fora de associao entre um fator presumvel e um evento indesejado, no pode ser relacionado probabilidade de que determinado indivduo ser atingido por tal evento. Skrabanek e McCormick (1990) apresentam um exemplo ilustrativo. Pilotos areos possuem riscos relativos mais elevados de sofrerem acidentes deste tipo, se comparados com passageiros eventuais, como a maioria de ns. No entanto, mesmo sendo elevado o risco relativo na comparao, o risco absoluto de acidentes para pilotos bastante baixo.6

5

N o caso de uma amostra de cem indivduos, a unidade obtida atravs da diviso por cem, mas o indivduo 'produzido', neste caso, , apenas um constructo mdio resultante da operao. Por exemplo: o resultado de uma pesquisa de usurios de televiso por assinatura para estabelecer o perfil de seu assinante afirma que ele homem, de 4 5 anos, profissional de nvel educacional superior, com renda familiar ao redor de 4 mil reais etc. Isto , obviamente, uma construo abstrata a partir das mdias obtidas em cada aspecto mensurado.6

Para outras possibilidades de interpretaes falaciosas no terreno biomdicoepidemiolgico, consultar os autores acima mencionados.

Aspectos epistemolgicos, tericos e disciplinaresEpidemiologistas, em geral, no costumam por em questo aspectos que problematizem a construo dos conhecimentos sobre o(s) risco(s), em especial sob o ponto de vista de suas pretenses preditivas. Neste sentido, Hayes (1991) faz uma aguda anlise de limitaes implcitas desta abordagem. Para ele, essencial estar atento a determinados tpicos: 1) regularidade dos efeitos empricos: no podem haver alteraes nas relaes entre os marcadores de risco e os eventos de interesse. Como, na maioria das vezes, os mecanismos causadores dos agravos so desconhecidos, estes no devem variar de modo inesperado. Trata-se, em suma, da metfora da caixa preta. Alis, a dita 'epidemiologia dos fatores de risco' tambm chamada de 'epidemiologia da caixa preta' (Pearce 1990). Em outras palavras, essencial a estabilidade das condies de 'existncia' do objeto para que o sujeito investigador o apreenda com fidedigni dade: nem o objeto de estudo pode variar em suas caractersticas, atributos, propriedades, nem suas inter-relaes com o meio circundante em termos espao-temporais; 2) definio do estatuto dos fatores de risco especficos: fundamental saber claramente se o fator determinante ou predisponente em relao queles to-somente contribuintes ou incidentalmente associados. isto no costuma ser facilmente discernvel em muitas situaes, especialmente naquelas que envolvem a participao de aspectos ditos psicognicos ou, ento, na controvrsia causada por estudos em que no se observaram efeitos da hipercolesterolemia na ecloso de doenas cardiovasculares em mulheres (Lupton & Chapman 1 9 9 5 ) . 3) fatores de risco pertencentes a nveis de organizao distintos (social x natural): h dificuldades para estabelecer com preciso os mecanismos e mediaes entre variveis consideradas sociais (desemprego, analfabetismo, pobreza etc.) e aquelas ditas biolgicas (idade, estado imunolgico, caractersticas genticas), apesar de, em certos casos, aparentemente no haver dvidas quanto s relaes entre elas. Por exemplo: misria e mortalidade por causas perinatais. 4 ) perodo de tempo considerado vlido para a predio: problemtico lidar com exposies ocorridas em pocas transcorridas h longo tempo (mais de 1 5 , vinte anos, por exemplo) e/ou em quantidades reduzidas no decorrer de longos intervalos cronolgicos, de modo que no se torna possvel garantir a relao causal no caso de ocorrncia do agravo. Isto especialmente relevante em exposies ocupacionais, nas quais no se chega a gerar danos imediatos, tais danos s ocorrendo, eventualmente, aps muitos anos (Hayes 1 9 9 1 ) .

Uma das importantes crticas feitas ao enfoque quantitativo do risco consiste no fato de ele instituir uma entidade que possuiria uma 'existncia' autnoma, objetivvel, independente dos complexos contextos socioculturais em que as pessoas esto. Em outras palavras, o risco adquire um estatuto ontolgico, que de certa forma acompanha quele produzido pelo discurso biomdico para as doenas, mas possuidor de c a r a c t e r s t i c a s p r p r i a s , ou seja, de a t r i b u t o s de virtualidade 'fantasmticos', pois a 'existncia' dos riscos pode ser invisvel, uma vez que nem sempre perceptvel por seus sinais/sintomas - objetos dos tradicionais instrumentos da semiologia mdica. Muitas vezes, so necessrios sofisticados exames laboratoriais para 'localizar' este arisco ser, capaz de se desenvolver de modo silente e traioeiro e tornar-se presente de modo ameaador. Se, por um lado, a retrica do risco pode servir de veculo para reforar contedos morais e conservadores (Lupton 1 9 9 3 ) , por outro, ela redimensiona o papel da configurao espao-temporal na compreenso do adoecer: 1) a biomedicina incorpora como tarefa sua a localizao e identificao nos sadios de seus possveis riscos, oriundos de modalidades de exposio ambiental e/ou de suscetibilidades biolgicas, mediante tcnicas diagnsticas cada vez mais refinadas; 2) surge uma infindvel rede de riscos em que comportamentos, sinais, sintomas e doenas podem confluir para se tornarem fatores de risco para outras afeces (p. ex. hipertenso arterial como risco para doenas cardacas); 3) o eixo temporal assume mais importncia nos modelos explicativos dos processos de adoecer (Armstrong 1 9 9 5 ) . Vemos, ento, surgir no discurso e na interveno biomdica uma nova condio medicalizvel: o estado de sade sob risco (Kenen 1 9 9 6 ) , que traz importantes implicaes: a) como substrato gerador de preceitos comportamentais voltados para a promoo e a preveno sade, em ltima anlise, base do projeto de estender a longevidade humana ao mximo possvel; b) no estabelecimento de laos com a produo tecnolgica biomdica; c) na ampliao das tarefas da clnica mdica, em outros termos, o aparecimento de uma vigilncia mdica, como sugere Armstrong ( 1 9 9 5 ) ; d) na criao de demanda por novos produtos, servios e especialistas voltados preveno dos mltiplos riscos; e) no reforo do poder e prestgio dos profissionais responsveis por atividades dirigidas s novas tcnicas e programas de controle ou pesquisa de fatores de risco (Kenen 1 9 9 6 ) . H ainda situaes particulares em que conhecimentos aparentemente estabelecidos em relao a consagrados fatores de risco tornam-se instveis. Recentemente a associao entre a ingesto de cloreto de sdio e a

patognese ou agravamento da hipertenso arterial sistmica (HAS) foi posta em xeque. Investigaes recentes baseadas em estudos metanalticos mostraram que a influncia da dieta em termos globais parece ser mais importante do que o uso sem controle per se de sal na alimentao. H robustas indicaes de que o foco dos cuidados ao tratamento e preveno da HAS deva ser a ingesta adequada de sais minerais (especialmente, de clcio, via laticnios, frutas e verduras), mais do que a restrio de sal (McCarron 1 9 9 8 ) . Outra controvrsia em relao a uma 'verdade epidemiolgica' consagrada se localiza na recente discusso no que diz respeito ao questionvel papel per se das gorduras (saturadas e poliinsaturadas) na patognese das doenas cardiovasculares (Ravnskov 1998). Estas situaes podem refletir uma abordagem de complexos fenmenos interativos (biolgicos, psicolgicos e sociais) por meio de tcnicas lineares para a estimao do risco insuficientes para abranger a alta complexidade dos fenmenos relativos ao humano. Um dos encaminhamentos decorrentes da aceitao desta constatao o desenvolvimento de procedimentos no lineares para a modelagem matemtica de sistemas dinmicos (Philippe & Mansi 1 9 9 8 ) . Nesta tica, preciso ter em mente que a rigor tais modelos so estatsticos. Os procedimentos consistem basicamente em representaes abstratas constitudas por elementos com significados e interdependncias no interior de estados de flutuao e variabilidade. Sua funo primordial a de estabelecer ordenaes para interpretar as relaes entre objetos que foram matematizados (Lima 1 9 9 5 ) . Ainda no se conseguiu modelar satisfatoriamente o comportamento dos indivduos, a relao entre a freqncia de uma ameaa sade e a respectiva percepo, a dinmica das decises institucionais (conforme as relaes de poder envolvidas) e as intermediaes que interferem nos processos de produo de conhecimento (Levins 1 9 9 4 ) . Paralelamente s avaliaes e mensuraes quantitativas de risco, h diversas linhas de pesquisa que analisam as repercusses psicolgicas e sociais do discurso e da percepo do risco. Gabe (1995) realizou uma detalhada descrio deste panorama disciplinar, que servir de eixo para nossa breve aproximao. Sob o ponto de vista psicolgico, h estudos de percepo leiga que se caracterizam por uma proposta metodolgica quantitativa similar quelas empregadas pelas disciplinas 'riscolgicas'. Trabalhos do final dos anos 1 9 6 0 e incio dos anos 1 9 7 0 se basearam em modelos behavionstas para estudar (e medir) nveis aceitveis de risco a partir dos comportamentos sociais existentes, que definiriam as escolhas das pessoas diante de benefcios e riscos 'involuntrios', provenientes de avanos

tecnolgicos e seus eventuais acidentes (hazards), em comparao com benefcios e riscos 'voluntrios' (como fumar ou dirigir em alta velocidade). N o final dos anos 1 9 7 0 , a hegemonia do behaviorismo foi abalada pelos marcos referenciais da psicologia cognitivista. Seus representantes desenvolveram mltiplos instrumentos de pesquisa, que incluem escalas psicomtricas e questionrios para identificar os critrios pelos quais as pessoas avaliavam determinados perigos em comparao c