castas projecto porvid portugal, o santuário mundial ... · pos experimentais e viveiros onde ......

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Castas Projecto Porvid Portugal, o santuário mundial da biodiversidade da Tinha Um conjunto de factores favoreceu a manutenção, em Portugal, de centenas de castas de vinha autóctones, cada uma delas com um grau de variabilidade bem acima do que acontece nos países que foram apostando em clones de meia dúzia de castas na moda e muito produtivas. Um grupo de cientistas vem estudando o potencial desse património genético, que, diz o rosto deste oroiecto. oode tornar o oaís numa Meca da viticultura. Abel Coentrão (texto) e Tiago Machado (fotos) hegámos atrasados a quase tudo. Às Luzes, à Industrialização, à Democracia. Portugal, um pequeno país teimosa- mente agarrado à cauda da Europa tem um pequeno segredo mal guar- dado que o anda a pôr nas bocas do mundo que tem boca para um bom vinho como um país de vanguarda, a anos-luz dos restantes países viní- colas do planeta. Na revista World ofFine Wineií lhe chamaram Arca de Noé da biodiversidade da vinha. Antero Martins, sumidade na área da genética quantitativa aplicada ao melhoramento de plantas, ou mais simplesmente um dos "Noés" desta história, prefere pensar que estamos a caminho de nos tornarmos uma espécie de "Meca do Vinho". Mas porquê tanta excitação? A culpa é do tal atraso. Em parte, pelo menos, concede o responsável pela Investigação da Sogrape, An- tónio Graça, outro dos envolvidos na recém-criada Associação Portu- guesa para a Diversidade da Videira (Porvid), que desde 2009 prossegue, agora de uma forma institucional, os esforços de identificação e pre- servação da biodiversidade destas plantas iniciados há 35 anos por um trio de "carolas", o referido An- tero Martins, do Instituto Superior de Agronomia, da Universidade de Lisboa, Nuno Crespo, da Univer- sidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e Luís Carneiro, da Estação Agronómica Nacional. 0 seu esforço permitiu identificar, no nosso país, 250 castas autóctones (no território que pode ser o da península), muito para das dezenas utilizadas, pelos produtores. Eo númerojá peca por defeito porque, nas análises genéti- cas mais recentes, se percebeu que plantas que se pensavam ser apenas uma variante (genótipo) dentro da casta, são afinal castas diferentes. O que vai, de certeza, engrossar a lista deste património. Quando o mundo se rendia a vinhos estremes, feitos a partir de

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Page 1: Castas Projecto Porvid Portugal, o santuário mundial ... · pos experimentais e viveiros onde ... nesta zona do país, indiciando outra origem. Depois, ao longo destes anos, ao calcorrear

CastasProjecto Porvid

Portugal, o santuário mundialda biodiversidade da Tinha

Um conjunto de factores favoreceu a manutenção, em Portugal,de centenas de castas de vinha autóctones, cada uma delas com umgrau de variabilidade bem acima do que acontece nos países queforam apostando em clones de meia dúzia de castas na moda e muitoprodutivas. Um grupo de cientistas vem estudando o potencial desse

património genético, que, diz o rosto deste oroiecto. oode tornar o oaísnuma Meca da viticultura. Abel Coentrão (texto) e Tiago Machado (fotos)

hegámosatrasados a quase tudo. Às Luzes,à Industrialização, à Democracia.Portugal, um pequeno país teimosa-mente agarrado à cauda da Europatem um pequeno segredo mal guar-dado que o anda a pôr nas bocas domundo que tem boca para um bomvinho como um país de vanguarda,a anos-luz dos restantes países viní-colas do planeta. Na revista WorldofFine Wineií lhe chamaram Arcade Noé da biodiversidade da vinha.Antero Martins, sumidade na áreada genética quantitativa aplicada aomelhoramento de plantas, ou mais

simplesmente um dos "Noés" destahistória, prefere pensar que estamosa caminho de nos tornarmos umaespécie de "Meca do Vinho". Mas

porquê tanta excitação?A culpa é do tal atraso. Em parte,

pelo menos, concede o responsávelpela Investigação da Sogrape, An-tónio Graça, outro dos envolvidosna recém-criada Associação Portu-

guesa para a Diversidade da Videira(Porvid), que desde 2009 prossegue,agora de uma forma institucional,os esforços de identificação e pre-servação da biodiversidade destas

plantas iniciados há 35 anos por umtrio de "carolas", o já referido An-tero Martins, do Instituto Superiorde Agronomia, da Universidade deLisboa, Nuno Crespo, da Univer-sidade de Trás-os-Montes e AltoDouro e Luís Carneiro, da EstaçãoAgronómica Nacional. 0 seu esforçopermitiu identificar, no nosso país,250 castas autóctones (no territórioque pode ser o da península), muito

para lã das dezenas utilizadas, pelosprodutores. E o númerojá peca pordefeito porque, nas análises genéti-cas mais recentes, se percebeu queplantas que se pensavam ser apenasuma variante (genótipo) dentro da

casta, são afinal castas diferentes. O

que vai, de certeza, engrossar a listadeste património.

Quando o mundo se rendia avinhos estremes, feitos a partir de

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meia dúzia de castas francesas, plan-tadas nos quatro cantos do globo;quando viveiristas e agricultoresde outros países seleccionavam eu-

genisticamente, por elimininação,castas, e plantas (genótipos) dentrodas castas com as melhores caracte-rísticas para responder ao mercado,cada vez mais global mas, em contra-

ponto, a estreitar o gosto, Portugalestava ainda a acordar do longo sono

salazarista, que o manteve fechado,e não apenas à Coca-Cola. Por cámantinham-se tradições como asdos vinhos de lote, com mistura de

castas, muita vinha velha por arran-car - alguma até pré-íiloxérica, comoos mortórios do Douro - e técnicasculturais que favoreciam o acaso

em vez da selecção e, que, por isso,mantiveram uma parte importanteda biodiversidade do país, o únicoque tem cem por cento do territórionuma qualquer região demarcada,lembra António Graça.

Pode parecer contraditório, maseste atraso acertou o nosso relógiocom o do planeta, que já reconhe-cia a importância da biodiversidadenesses finais de 70, em que, gastan-

do horas fora das aulas e fins-de-se-

mana, Martins e seus pares puserampés ao caminho. Numa abnegaçãoque ainda hoje os mantém, apesarde jubililados, ainda ligados ao pro-jecto, conseguiram, em pouco tem-po, criar uma rede informal: com as

direcções regionais de agriculturae algumas empresas, que percebe-ram desde logo a importância departicipar nesta missão de recolha,estudo, selecção e - note-se a dife-

rença - preservação das variedadesgenéticas da vinha portuguesa. Em

poucos anos, dezenas de quintaspor esse país fora acolheram cam-

pos experimentais e viveiros ondeesse património foi mantido.

Agora, depois de o Estado ter ce-dido em 2009 à Porvid parte de umaherdade em Pegões, na Penínsulade Setúbal, nada longe de proprie-dades e da adega de sócios comoa José Maria da Fonseca ou a Coo-

perativa de Santo Isidro de Pegões,entre outros, as plantas estão todas acaminho de uma nova casa. Milhares

As grandesnações do vinho

já começam areplicar o modeloportuguês, maslevam um atrasode décadas narecolha de dadosdelas já foram instaladas (em vasos)e vai-se preparar mais terreno paraguardar 50 mil genótipos das tais250, ou mais, castas portuguesas,mesmo ao lado de uma área de 80a 100 hectares onde uma parte im-

portante dessa variabilidade vai serenxertada e posta a produzir, paraanálise comparativa.

A necessidade de guardar um tãoelevado número de espécimes é fa-cilmente percebida se soubermos

que, nas mais de 60 castas já bemestudadas ao longo destes anos, háexemplos de uma diversidade intra-casta impensável noutros países, queandaram a deitar essa variabilidadeao lixo. Se o Riesling alemão se faz

praticamente só de um clone, do ?

Alvarinho, há 530 genótipos diferen-tes conhecidos, com diferentes con-

sequências na produção, comparaAntero Martins. Aliás, foi depois deestudada a variabilidade interna da

Touriga Nacional, um dos primeirosalvos da atenção do projecto, que osector conseguiu descobrir e selec-cionar genótipos que, com ganhossuperiores a 30%, resolveram o pro-blema da baixa produtividade e da

desconfiança com que esta grandecasta portuguesa era encarada, nadécada de 70, pelos produtores doDouro.

0 estudo aprofundado da variabi-lidade dentro de cada casta foi umdos grandes avanços do projecto e

Antero Martins insiste sempre emassociá-lo à entrada em cena deuma sua assistente, Elsa Gonçal-ves, que o ultrapassou - e ele di-locom o gosto de quem não quer ficarcom o conhecimento só para si - nacapacidade de pôr a estatística, e a

informática, ao serviço da genéticaquantitativa. Graças a este aporte,já reconhecido no meio científicointernacional, a equipa conseguiu,para mais de seis dezenas de castas,identificar as suas variantes internase o comportamento de cada uma,independentemente de factoresambientais, em parâmetros comoa produção, a acidez, o açúcar (im-portante para o teor alcoólico) e asantocianas (pigmentos responsáveispela cor escura do vinho tinto).

Não é difícil imaginar a utilidadedeste conhecimento para a vitivi-nicultura portuguesa. E há casosconcretos em que ele já resolveuproblemas, explica António Graça.Já se percebeu por exemplo que atinta-roriz, muito apreciada, entreoutros aspectos, pela cor que impri-me aos vinhos, perde, precisamentenesse aspecto, a partir de um de-terminado patamar de produção,potenciado por condições ambien-

tais favoráveis. Perante isto, temsido feito um esforço de enxertar as

novas vinhas com genótipos menos"produtivos", mas que garantema qualidade máxima pretendida.António Graça, tal como AnteroMartins, antevêem o que isto, mul-tiplicado por todo o nosso parquede castas, significa, em termos de

competitividade, para o país, numaaltura em que são visíveis os efeitosdas alterações climáticas.

Antevendo o risco, é o homemdas empresas, António Graça,quem mais toca, na conversa coma FUGAS, na questão ambiental.Mas Portugal está a construir, como projecto da Porvid, a capacidadede escolher, a cada momento, as vi-nhas que melhor se adaptam, porexemplo, à subida da temperaturaambiente, rejubila. Já Antero Mar-tins foge da sua genética quantitati-va para fazer notar que estaremospreparados para responder a outro

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tipo de desafios, como o das modas,o gosto. Se hoje se produzem vinhoscom teores de álcool bem acima dos

12,5 graus que eram habituais háumas décadas, nada nos diz que osvinhos de baixo teor alcoólico, paraos quais hoje já há algum mercado,não se tornarão um trend. E, se fornecessário, nós saberemos dar res-

posta a essa demanda, vinca.

Apesar de ir dizendo que gostavade ser mais reformado do que é - edesconfiamos que não conseguiriamanter-se muito longe do campoexperimental de Pegões, que nosmostrou com orgulho - AnteroMartins não esconde a satisfaçãopelo reconhecimento que o projec-to vem tendo por esse mundo fora,nas revistas especializadas e em con-

gressos do sector. As grandes naçõesdo vinho já começam a replicar omodelo português, mas levam umatraso de décadas na recolha de da-dos. E "o projecto de Pegões é paramais 50 anos", nota António Graça.0 seu sucesso pleno está no entantodependente da entrada de mais di-nheiro - por via das quotas de maisassociados, mecenas, apoios estatais

e fundos europeus - que garantamuma estabilidade financeira que estaluta pela biodiversidade no sectorainda não teve.

Se nunca houve muito dinheiro,o esforço valeu-lhes, pelo menos,alguns "brindes". Com o estudoaprofundado da variabilidade den-tro de cada casta, os portuguesescomeçaram a ter dados concretossobre o caminho que cada umadelas seguiu, desde um ponto deorigem. Esse ponto, como noutrasespécies vegetais, é aquele em quea variabilidade da planta é maior(porque foi necessário mais tempopara a conseguir). É o contributoluso para a história desta culturamilenar. Que não traz boas notícias

para todos. Rioja ficou a saber, pelaPorvid, que o seu Tempranillo (anossa Tinta Roriz ou Castelão, nosul) não surgiu por ali, como pen-savam, mas na zona de Valdepenãs,

a sul de Madrid. Já a casta forte da

Bairrada, a Baga, terá afinal surgidono Dão. E a Jaen, famosa nesta re-gião, tem aqui tão pouca variedade

que o mais certo é ser muito recentenesta zona do país, indiciando outraorigem.

Depois, ao longo destes anos, aocalcorrear o país, os investigado-res foram percebendo também quePortugal é um santuário da Vitis sil-

vestrys, a planta silvestre que há mi-lhares de anos foi domesticada pelohomem para se tornar nas videiras

que hoje conhecemos. Há mais de150 núcleos destas vinhas e, assina-la António Graça, só nos faltará en-contrar algum vínculo arqueológicopara podermos, quem sabe, pôr emcausa a teoria que coloca no médioOriente o nascimento da cultura dovinho. Já há na Europa quem de-fenda a tese da origem múltipla, e

Portugal está muito atento a esse

debate, que, como a questão dabiodiversidade, do uso de castasraras e desconhecidas, pode gerardividendos económicos se, comoinsiste António Graça, formos ca-

pazes de "comunicar, comunicar,comunicar isto lá fora".

Já este ano, a Porvid associou-se a um projecto, com origem em

França e ambições Globais, a WineMosaic, que luta pela promoção das

castas antigas do mediterrâneo,como aquela, quase extinta, que é

cultivada por um italiano na Tosca-na e que, se não vende nada no seu

país, teve sucesso em Hong Kong e

no Japão, segundo a Wine Specta-tor. "É que, sabe, eu acho que novinho, mais do que o que está ládentro, muito do que se vende é

cultura, é a sua história, o trabalho

que implicou", acrescenta o presi-dente da Porvid, Antero Martins,convicto de que Portugal terá muitoa ganhar com as dezenas de hecta-res de vinha, amostra complexa, e

completa da nossa biodiversidade,que ele espera ver plantados, e con-tinuamente estudados, em Pegões.Numa herdade prestes a tornar-se o

novo santuário da viticultura por-tuguesa.

Foi depois de estudada aTouriga Nacional, um dosprimeiros alvos da atençãodo projecto, que o sectorconseguiu descobrir eseleccionar genótipos queresolveram o problema da baixaprodutividade