caso clÍnico de cirurgia de tecidos moles: hÉrnia...

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1 CASO CLÍNICO DE CIRURGIA DE TECIDOS MOLES: HÉRNIA INGUINAL Caracterização do paciente: DJ, felídeo fêmea inteira, Europeu Comum, com cerca de 11 semanas e 0,76 kg de peso. Motivo da consulta: Dor e tumefação da região inguinal esquerda, prostração. História clínica: Os proprietários relataram que a DJ tinha caído no dia anterior à consulta e que desde então notaram uma tumefação na região inguinal esquerda. Foi referido também que a DJ se mostrava mais parada e que parecia estar com dor. A DJ foi encontrada na rua com cerca de 9 semanas de idade, estando com os proprietários desde então. Não estava desparasitada ou vacinada. Vivia num apartamento sem acesso ao exterior, não costumava fazer viagens, era alimentada com uma dieta comercial seca, tinha livre acesso a água e não coabitava com outros animais. Não tinha acesso a lixo ou a ervas ou hábito de roer objectos estranhos ou outros alimentos, para além da sua dieta habitual. Relativamente às perguntas efetuadas para os diferentes sistemas, não foram referidas quaisquer alterações. Exame geral: A DJ manifestava uma atitude normal em estação, decúbito e movimento, possuía um temperamento equilibrado, encontrava-se alerta e não era agressiva. Apresentava uma desidratação entre 6 e 8% e uma condição corporal de magro a caquético. Os movimentos respiratórios e o pulso não evidenciavam alterações. A temperatura estava normal (38,2 ºC), à introdução do termómetro apresentava normorreflexia perineal e tónus anal adequado e após a sua remoção não apresentava muco, sangue ou parasitas. As mucosas estavam ligeiramente pálidas (algo normal em jovens) e o TRC era inferior a 2 segundos. À palpação, os GL apresentavam-se normais. A palpação abdominal e a auscultação cardiopulmonar não evidenciaram qualquer anomalia. Foi detetado parasitismo externo intenso e uma tumefação da região inguinal esquerda (Anexo I - Fig. 1) que era redutível à palpação e algo dolorosa. Os olhos e os ouvidos foram avaliados e estavam normais. Exame locomotor: A inspeção em estação e em marcha não evidenciou qualquer alteração. A palpação e a manipulação evidenciaram dor e um aumento ligeiro da temperatura na zona afetada, o que é sinal de inflamação. Exame neurológico: A DJ apresentava-se alerta, não havia alterações da postura, da marcha, das reações posturais, reflexos miotáticos e flexores, pares cranianos ou sensibilidade. Só à palpação da zona afetada é que se notou um ligeiro aumento da temperatura.

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CASO CLÍNICO DE CIRURGIA DE TECIDOS MOLES: HÉRNIA INGUINAL

Caracterização do paciente: DJ, felídeo fêmea inteira, Europeu Comum, com cerca de 11

semanas e 0,76 kg de peso.

Motivo da consulta: Dor e tumefação da região inguinal esquerda, prostração.

História clínica: Os proprietários relataram que a DJ tinha caído no dia anterior à consulta e

que desde então notaram uma tumefação na região inguinal esquerda. Foi referido também que a

DJ se mostrava mais parada e que parecia estar com dor.

A DJ foi encontrada na rua com cerca de 9 semanas de idade, estando com os proprietários

desde então.

Não estava desparasitada ou vacinada.

Vivia num apartamento sem acesso ao exterior, não costumava fazer viagens, era alimentada

com uma dieta comercial seca, tinha livre acesso a água e não coabitava com outros animais.

Não tinha acesso a lixo ou a ervas ou hábito de roer objectos estranhos ou outros alimentos, para

além da sua dieta habitual.

Relativamente às perguntas efetuadas para os diferentes sistemas, não foram referidas

quaisquer alterações.

Exame geral: A DJ manifestava uma atitude normal em estação, decúbito e movimento,

possuía um temperamento equilibrado, encontrava-se alerta e não era agressiva. Apresentava

uma desidratação entre 6 e 8% e uma condição corporal de magro a caquético. Os movimentos

respiratórios e o pulso não evidenciavam alterações. A temperatura estava normal (38,2 ºC), à

introdução do termómetro apresentava normorreflexia perineal e tónus anal adequado e após a

sua remoção não apresentava muco, sangue ou parasitas. As mucosas estavam ligeiramente

pálidas (algo normal em jovens) e o TRC era inferior a 2 segundos. À palpação, os GL

apresentavam-se normais. A palpação abdominal e a auscultação cardiopulmonar não

evidenciaram qualquer anomalia. Foi detetado parasitismo externo intenso e uma tumefação da

região inguinal esquerda (Anexo I - Fig. 1) que era redutível à palpação e algo dolorosa. Os

olhos e os ouvidos foram avaliados e estavam normais.

Exame locomotor: A inspeção em estação e em marcha não evidenciou qualquer alteração. A

palpação e a manipulação evidenciaram dor e um aumento ligeiro da temperatura na zona

afetada, o que é sinal de inflamação.

Exame neurológico: A DJ apresentava-se alerta, não havia alterações da postura, da marcha,

das reações posturais, reflexos miotáticos e flexores, pares cranianos ou sensibilidade. Só à

palpação da zona afetada é que se notou um ligeiro aumento da temperatura.

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Diagnósticos diferenciais: Vasculares: hematoma, seroma; Inflamatórias/Infeciosas: abcesso,

celulite, linfadenomegália, quisto mamário; Traumas/Tóxicos: hérnia traumática, trauma;

Anomalias: hérnia congénita.

Exames complementares: RX abdominal LL e VD (Anexo I - Fig. 2), em que era visível

uma fratura simples do ísquio esquerdo.

Diagnóstico (s): Fratura simples do ísquio esquerdo e hérnia inguinal traumática esquerda.

Tratamento pré-cirúrgico: Como a DJ apresentava uma fratura e se encontrava em má

condição corporal, desidratada e extremamente parasitada, resolveu-se adiar a intervenção para

ela recuperar um pouco e, assim, proporcionar uma maior estabilidade anestésica e facilitar o

maneio. Sabia-se, porém, que o grau de fibrose encontrado iria ser maior.

Foi internada, colocada em repouso absoluto em jaula e submetida a AINE (2 mg/kg

cetoprofeno sc SID), analgésico (4 mg/kg cloridrato de tramadol im BID), desparasitação (22

mg/kg flubendazol po SID, durante 3 dias), fluidoterapia iv (NaCl 0,9% + glicose 2,5% a uma

taxa de manutenção de 112 mL/kg/dia) e a uma dieta adequada a pediátricos. Passados 2 dias, a

DJ teve alta com cetoprofeno (2 mg/kg SID) durante 3 dias e repouso. Uma semana depois foi

reavaliada (a hérnia já era menos redutível como inicialmente previsto) e, como se apresentava

estável, foi submetida a cirurgia.

Para isso foi internada e submetida a fluidoterapia (NaCl 0,9% + 2,5% de glicose, a uma taxa

de manutenção de 105 mL/kg/dia), antibioterapia profilática (12 mg/kg amoxicilina - ácido

clavulânico sc SID), AINE (2 mg/kg cetoprofeno sc SID) e analgesia (4 mg/kg cloridrato de

tramadol im BID). Uma vez que se tratava de um animal pediátrico, não se realizou jejum.

Cirurgia: A DJ foi sedada com medetomidina (10 µg/kg im) e ketamina (5 mg/kg im). De

seguida, alterou-se a taxa de fluidoterapia para 210 ml/kg/dia e procedeu-se à entubação com um

tubo endotraqueal nº 2,5, após anestesia traqueal com lidocaína 2%. A anestesia foi mantida com

isoflurano a 2% e O2 a 2 L/min. (Anexo I - Fig. 3a). Procedeu-se à tricotomia da região

abdominal caudal e inguinal (Anexo I - Fig. 3b) e, em seguida, colocou-se a DJ em decúbito

dorsal, fixando-se os membros (Anexo I – Fig. 3c). Para o seu aquecimento usou-se uma botija

de água quente. Posteriormente procedeu-se à limpeza e desinfecção cirúrgica do local com

aplicações intercaladas de álcool e de clorexidina a 10%. Colocou-se um pano de campo, fixado

com pinças de campo, para delimitar o campo cirúrgico, e iniciou-se a cirurgia com uma incisão

da pele na linha média da região abdominal caudal, cranialmente à sínfise pélvica. De seguida,

continuou-se a incisão pelo tecido sc, dissecou-se e pesquisou-se o saco herniário (Anexo I – Fig.

3d, 3e e 3f). Como este não era visível por esta aproximação abdominal, efetuou-se uma

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abordagem inguinal, fazendo-se uma incisão da pele lateral ao local da tumefação. Dissecou-se a

região e fez-se exposição e incisão do saco herniário, visto que ele não era facilmente redutível

(Anexo I - Fig. 3g, 3h e 3i). Logo a seguir, reduziu-se o seu conteúdo (mesentério), dissecando-

se à volta com uma zaragatoa (Anexo I - Fig. 3j e 3k). Depois ligou-se o saco herniário o mais

junto possível à sua base com um fio de sutura monofilamentar de poligliconato não absorvível

2/0 (Anexo I - Fig. 3l e 3m) e procedeu-se à sua remoção (Anexo I - Fig. 2n). Por último,

fechou-se o tecido restante (tecido muscular e sc, e pele) usando um padrão contínuo simples

com o mesmo tipo de fio (Anexo I - Fig. 3o e 3p), verificou-se se havia hemorragia (Anexo I -

Fig. 3q e 3r) e procedeu-se à sutura das restantes camadas da parede abdominal (AIE, músculo e

tecido sc de igual forma e pele num padrão id) (Anexo I - Fig. 3s). A limpeza do campo cirúrgico

foi sendo feita ao longo do procedimento através da colocação de compressas, de modo a

garantir a correta visualização das estruturas. Já a hemostase foi garantida pela aplicação de

pinças de mosquito nos vasos sangrantes.

Tratamento pós-cirúrgico: No mesmo dia, a DJ manteve-se internada e com analgésico (4

mg/kg cloridrato de tramadol im BID) e alimentada (bastante importante em pediatria). No dia

seguinte, foi-lhe administrado novamente antibiótico (12 mg/kg amoxicilina - ácido clavulânico

sc SID), AINE (2 mg/kg cetoprofeno sc SID) e analgésico (4 mg/kg cloridrato de tramadol im

BID). Teve alta ao final desse dia com enrofloxacina (5 mg/kg po SID) durante 5 dias, uma vez

que havia suspeita de incubação viral. Foi também recomendada a limpeza diária da ferida

cirúrgica (povidona iodada diluída em água duas vezes ao dia), colocação, se necessário, de

polissulfato de mucopolissacarídeo (Hirudoid® tópico), à volta da mesma, e a vigilância de

alterações de apetite, vómitos e diarreia.

Acompanhamento: A DJ voltou 7 dias depois para a consulta de controlo, onde se mostrou

ativa e bem-disposta. O estado geral estava normal, comia bem e a ferida cirúrgica apresentava

bom aspeto, sem sinais de inflamação ou deiscência de sutura, não havendo dor ou desconforto

local. A única alteração prendeu-se com o facto de não ter defecado durante 2 a 3 dias, o que

podia estar relacionado com a fratura ou mesmo com a cirurgia, mas depois começou a defecar

normalmente.

Discussão do caso clínico: A anamnese, o exame geral e o RX permitiram identificar os

seguintes problemas: prostração, dor e tumefação da região inguinal esquerda, desidratação entre

6 e 8%, condição corporal magro a caquético, parasitismo externo intenso, aumento ligeiro da

temperatura na região inguinal esquerda e fratura simples do ísquio esquerdo. Tendo em conta

este quadro foi diagnosticada fratura simples do ísquio esquerdo e hérnia inguinal traumática.

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Uma hérnia é a protusão de um órgão ou um tecido, através de um defeito (abertura natural,

iatrogénica ou traumática) na parede da cavidade anatómica onde se encontra, podendo causar

morbilidade e mortalidade apreciável3,4a

. Pode ocorrer em qualquer lado, embora as mais comuns

sejam abdominais (como na DJ)

4a. O fator mais importante na herniação é a presença de um

defeito na parede, independentemente de uma protusão estar presente4a

.

As hérnias podem ser classificadas de acordo com o local, presença ou não ao nascimento,

estado do conteúdo (redutibilidade, encarceramento, estrangulação) e tipo de material

herniado3,4a

. Neste caso, a DJ apresentava uma hérnia inguinal, adquirida, redutível e com

mesentério como conteúdo.

A hérnia é constituída por um anel (o defeito na parede, que se espessa e provoca

estrangulação durante as tentativas de resolução espontânea), um saco (tecidos que envolvem o

conteúdo) e conteúdo3,4a

. No caso da DJ, a hérnia tinha o canal inguinal como anel, o omento

como saco e o mesentério como conteúdo.

A hérnia inguinal é uma protusão de órgãos ou tecidos (normalmente omento2) através do

canal inguinal2 e ocorre esporadicamente nos pequenos animais

3,4b. Ela pode ser provocada por

uma anomalia congénita ou traumática, principalmente em animais mais jovens2.

Independentemente da causa, uma anomalia ao nível do anel inguinal provoca protusão do

conteúdo abdominal2. As hérnias inguinais unilaterais (como a da DJ) são mais frequentes do

que as bilaterais2,4b

. Em gatos, a situação é ainda mais rara que nos cães e não tem predisposição

sexual ou racial4b

. A causa mais importante de hérnias inguinais é o alargamento da entrada do

processo vaginal e fatores anatómicos, hormonais, metabólicos ou nutricionais estão envolvidos

no processo da sua formação4b

. Os animais com hérnias inguinais apresentam-se à consulta com

uma história de tumefação indolor na região ou por vómito, letargia, dor e depressão, se o

conteúdo estiver encarcerado2,4b

. A aparência externa da hérnia varia com o conteúdo herniário e

o grau de obstrução vascular: se houver estrangulamento intestinal, herniação de um corno

grávido ou da bexiga, é evidente uma tumefação grande, flutuante e dolorosa; caso contrário, é

indolor e mole2,4b

. O diagnóstico é feito principalmente pela anamnese e pelo exame físico,

nomeadamente a palpação da tumefação (se a tumefação for redutível e o canal inguinal palpado,

o diagnóstico é confirmado)2,4b

. Meios complementares, como o RX e a ecografia abdominal,

ajudam a identificar as estruturas envolvidas e a descartar diagnósticos diferenciais (neoplasia

mamária, linfadenopatia, lipoma, abcesso, hematoma, quisto, granuloma)1,2,4b

.

O tratamento das hérnias é cirúrgico e consiste numa técnica chamada herniorrafia. Os seus

objetivos consistem em reduzir o conteúdo abdominal e fechar o canal inguinal, para evitar

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recidivas2. Ela deve ser realizada o mais rapidamente possível, pois qualquer atraso resulta em

maior dificuldade de realização da técnica e desenvolvimento de complicações associadas a

obstrução intestinal ou prenhez2,4b

. O maneio pré-cirúrgico inclui antibioterapia (aquando de

suspeita de encarceramento ou obstrução intestinal), fluidoterapia, anestesia (segundo os

protocolos existentes), posicionamento (decúbito dorsal) e preparação asséptica das regiões

abdominal caudal e inguinal2. A abordagem depende da localização (uni ou bilateral), da

redutibilidade do conteúdo e da existência de estrangulação intestinal ou trauma abdominal

concomitante2. Como tal, essa abordagem pode ser feita diretamente sobre o anel inguinal ou

medialmente, com posterior exposição inguinal, em casos mais complicados ou no caso de

fêmeas (palpação de ambos os canais inguinais)2,3,4b,5

. Independentemente da abordagem

utilizada, a técnica baseia-se nos seguintes princípios: verificação da viabilidade do conteúdo

herniário (e remoção das porções afetadas), redução da hérnia, fecho do anel inguinal ou do

defeito (fio monofilamentar para diminuir a probabilidade de infecção), diminuição da tensão no

fecho (flap do músculo sartório ou próteses), obliteração do espaço morto, eliminação da causa e

maneio das hérnias congénitas (esterilização)2,3,4b

. O sucesso desta intervenção depende do

conhecimento da anatomia local e da qualidade da técnica empregada4b

. Em fêmeas, a

esterilização é aconselhada, pois o parto e o alargamento uterino (prenhez, piómetra) aumentam

a probabilidade de recidiva2. No pós-operatório, os drenos e os antibióticos não são necessários;

porém, o local da sutura deve ser observado para pesquisa de sinais de infecção ou de formação

de seroma ou hematoma, e o exercício reduzido durante alguma semanas2,4b

. Caso ocorra

abcedação, deve-se remover as suturas cutâneas, drenar e aplicar tratamento tópico, com o

intuito de prevenir deiscência de sutura2,4b

.

O prognóstico normalmente é excelente, a não ser que ocorra perfuração ou fuga de conteúdo

intestinal2.

Referências bibliográficas: 1Gogny A, Bruyas J, Fiéni F (2010) “Pyometra in an Inguinal

Hernia in a Bitch” Reproduction in Domestic Animals 45, 461-464; 2Fossum T (2002)

“Surgery of the Abdominal Cavity: Inguinal, Scrotal and Femoral Hernias” in Fossum T (Eds.)

Small Animal Surgery, 2ª Ed, Mosby Elsevier, 261-267; 3Pratschke K (2002) “Management of

hernias and ruptures in small animals” In Practice, 570-571 e 578-581; 4a

Read R & Bellenger C

(2003) “Hernias” in Slatter D (Eds.) Textbook of Small Animal Surgery 1, 3ª Ed, Saunders,

446-448; 4b

Smeak D (2003) “Abdominal Hernias” in Slatter D (Eds.) Textbook of Small

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Animal Surgery 1, 3ª Ed, Saunders, 452-455; 5Wirght J (1963) “The Surgery of the Inguinal

Canal in Animals” The Veterinary Record 75, 1352-1357

CASO CLÍNICO DE GASTROENTEROLOGIA: PANLEUCOPÉNIA FELINA

Caracterização do paciente: Julie, felídeo fêmea castrada, cruzada de Siamês, com 5 meses

de idade e 1,5 kg de peso.

Motivo da consulta: Anorexia parcial, náusea, vómito e prostração.

História clínica: A sintomatologia tinha aparecido de forma súbita e já durava há 3 dias. O

vómito ocorria 3 a 4 vezes por dia, era bilioso, aquoso e não apresentava saliva ou alimento.

Apesar de beber água normalmente, também a vomitava. Foi referido também que os vómitos

eram precedidos de salivação (que era exacerbada na presença de alimento), inquietação e

contrações abdominais fortes.

A Julie estava desparasitada corretamente e não estava vacinada. O passado médico-cirúrgico

apenas incluía uma OVH eletiva aos 4 meses e meio de idade e não tomava qualquer medicação.

Vivia num apartamento sem acesso ao exterior desde que foi encontrada aos 2 meses. Não

costumava fazer viagens, era alimentada com uma dieta comercial Premium seca e húmida, tinha

livre acesso a água e coabitava com dois cães, vacinados e desparasitados corretamente. Não

tinha acesso a lixo ou a ervas ou hábito de roer objectos estranhos ou ingerir outros alimentos,

para além da sua dieta habitual.

Relativamente às perguntas efetuadas para os restantes sistemas, não foram referidas

quaisquer alterações.

Exame geral: A Julie manifestava uma atitude normal em estação, decúbito e movimento,

tinha um temperamento equilibrado, encontrava-se alerta e não era agressiva. Apresentava uma

desidratação entre 6 e 8% e uma condição corporal normal. Os movimentos respiratórios e o

pulso não apresentavam alterações. A temperatura estava acima do normal (39,2 ºC), à

introdução do termómetro apresentava normorreflexia perineal e tónus anal adequado e após a

sua remoção não apresentava muco, sangue ou parasitas. As mucosas estavam ligeiramente

pálidas e o TRC era de 3 segundos. À palpação, os GL apresentavam-se normais. A palpação

abdominal e a auscultação cardiopulmonar não evidenciaram qualquer anomalia. Os olhos e os

ouvidos não foram avaliados.

Exame dirigido ao aparelho digestivo: A inspeção e a palpação da cabeça, boca, esófago,

abdómen, ânus e região perianal não evidenciaram nenhuma alteração, assim como a auscultação

abdominal.

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Diagnósticos diferenciais: Inflamatórias/Infecciosas: campilobacteriose, clostridiose,

coccidiose (isosporose, criptosporidose, toxoplasmose), giardíase, salmonelose, toxocaríase,

FIV/FeLV, panleucopénia felina, PIF; Traumas/Tóxicos: CE, intussusceção, arsénico, chumbo,

organofosforados, permetrinas, piretrinas, piretróides; Anomalias: síndrome do intestino curto;

Idiopáticas/Imunomediadas: GE aguda, diarreia juvenil idiopática; Nutricionais: alergia ou

intolerância alimentar.

Exames complementares: hemograma: panleucopénia [0,29x103/µL (normal: 5,5x10

3 –

19,5x103)]; anemia [2,81x10

6/µL (normal: 5,0x10

6 – 10,0 x10

6); Hb – 3,5 (normal: 8,0-15,0);

Hto (%) – 11,7 (normal: 24,0-45,0)]; trombocitopénia [41x103/µL (normal: 150 x10

3 - 500

x103)]; bioquímica: hipoproteinémia [3,89 g/dL (normal: 6,0 - 7,9)] por hipoalbuminémia [1,63

g/dL (normal: 2,8 - 3,9)].

Diagnóstico presuntivo: Panleucopénia felina.

Tratamento: A Julie foi internada e submetida a um tratamento de suporte composto por:

fluidoterapia (iv) – LR + glicose 2,5% + 20 mEq/L KCl a uma taxa de 172 mL/kg/dia durante as

primeiras 24 horas e, quando resolvida a desidratação, à taxa de manutenção de 87 mL/kg/dia;

antibioterapia - metronidazol (15 mg/kg iv BID), amoxicilina - ácido clavulânico (12 mg/kg im

BID), enrofloxacina (5 mg/kg sc SID); antiemético - citrato de maropitant (1 mg/Kg sc SID);

protetor gástrico - ranitidina (2,5 mg/kg iv BID); AINE – cetoprofeno (2 mg/kg sc SID);

alimentação – NPO até final do quadro de emese, passando a ser feita com dieta húmida e de

elevado valor energético.

Acompanhamento: Durante o internamento, o estado da Julie foi-se deteriorando. Os

vómitos continuaram e agravaram-se (aumento da frequência e alteração do seu aspeto, que de

bilioso passou a sanguinolento); a anorexia, a palidez e a náusea permaneceram; a prostração, a

depressão e a desidratação agravaram-se, começando a apresentar hipotermia; e desenvolveu

diarreia, que também se agravou (apresentando melena e hematosquezia: Anexo II - Fig. 1).

Adicionalmente procedeu-se ao seu aquecimento com botijas de água quente e mantas (Anexo II

– Fig. 2), à administração de enemas de carvão ativado (2mg/kg BID) e à transfusão de plasma.

Apesar de todas as tentativas, a Julie acabou por falecer ao fim de 3 dias.

Discussão do caso clínico: A anamnese, o exame geral, o hemograma e a bioquímica

permitiram identificar os seguintes problemas: anorexia, náusea, vómito, prostração,

desidratação entre 6 e 8%, mucosas pálidas, TRC de 3 segundos, hipertermia ligeira,

panleucopénia, anemia e trombocitopénia severas e hipoproteinémia por hipoalbuminémia.

Tendo em conta este quadro, foi diagnosticada presuntivamente panleucopénia felina. Esta

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doença é provocada pelo VPF, um parvovírus da mesma família que o VPC1,2,6

. Devido à

proximidade genética e à evolução dos vírus, os gatos podem ser infectados pelas variantes 2a, 2

b e 2c do VPC, que causa uma doença indistinguível da provocada pelo VPF, embora seja algo

pouco frequente1,2,4,6

. Mesmo assim, é recomendada uma vigilância serológica, pois podem

ocorrer coinfecções ou superinfecções que colocam em causa a eficácia da vacinação2. O VPF é

altamente contagioso e afeta principalmente gatinhos e gatos com menos de 1 ano de idade 3.

A infecção dá-se pelo contacto com secreções de um gato infectado ou com um ambiente

contaminado, sendo também viável a via transplacentária, desde que a infecção da gata ocorra

durante a gestação1,6,7

. Gatis, refúgios e criadores são os locais de maior risco1,6

. Assim, a

infecção da Julie pode ter acontecido através do contacto com outros gatos de rua, pela mãe ou

mesmo pelos coabitantes caninos. O vírus pode sobreviver no ambiente até 1 ano, pois é

eliminado em grandes quantidades nas fezes e resistente a temperaturas até 56ºC durante 30

minutos1,7

.

A sua transmissão é feita pela via oro-fecal, replicando-se no tecido linfoide da orofaringe e

provocando posteriormente uma virémia com disseminação por todos os tecidos6, embora as

lesões apenas apareçam naqueles com elevadas taxas de mitose (MO, intestino, GL, baço, timo,

olhos). Tem um PI de 5 a 7 dias, tornando o gato contagioso 2 a 3 dias antes da exibição da

sintomatologia e continuando assim até 2 a 6 semanas pós-infecção1.

A doença clínica pode ser hiperaguda, aguda ou subclínica. A primeira provoca uma

mortalidade de 100%3 e morte súbita nas primeiras 12 horas. Ocorre entre as 4 semanas e os 12

meses de idade e é causada por um choque séptico com desidratação aguda, hipotermia e coma.

A aguda, que foi a forma manifestada pela Julie, é a mais comum e a sintomatologia apresentada

pode ser moderada ou bastante severa. Caracteriza-se por uma mortalidade entre os 25 e os 90%3

e os animais normalmente apresentam febre (40-41ºC), depressão, letargia, desidratação,

anorexia e vómitos. A diarreia aguda de intestino delgado é rara (diferente do VPC), podendo só

aparecer tardiamente e a hipotermia é possível com o agravamento da desidratação, tal como

neste caso. Em situações de sépsis causadas por neutropénia e destruição das criptas intestinais

ocorrem úlceras orais, hematosquezia (como na Julie), icterícia e petéquias por CID. A nível

analítico observa-se panleucopénia, trombocitopénia, hipoalbuminémia e, mais raramente,

anemia não regenerativa1,7

. Todas estas alterações foram encontradas. Poderão igualmente

ocorrer elevações das enzimas hepáticas e da bilirrubina e hipoglicémia por endotoxémia, como

azotémia pré-renal por desidratação1,7

. Por último, a forma subclínica tem uma prevalência até

75%1 e caracteriza-se por anorexia e depressão durante 1 a 3 dias

7. As consequências de uma

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infecção durante a gestação dependem da altura em que ela ocorra: infertilidade e reabsorção

fetal (até aos 20 dias); aborto, mumificação fetal (até aos 40 dias); atrofia do timo e do nervo

ótico, retinopatia, hidrocefalia, hipoplasia cerebelar (que também ocorre em infecções até às 2

semanas de idade), miocardite e cardiomiopatia dos gatinhos (até ao término) 1,7

.

O diagnóstico presuntivo pode ser feito através da anamnese, sintomatologia, exame físico e

analítica, mas a confirmação só é possível recorrendo a: ELISA (fezes), PCR (fezes, sangue),

ME (fezes, baço, íleo) e histopatologia (jejuno, íleo, baço, GL). A serologia também é possível,

mas só é aconselhada em locais com um grande número de animais de forma a ser implementado

um programa de vacinação adequado, e as amostras pareadas (manifestação clínica e

convalescença) têm de apresentar títulos elevados, para o seu resultado ser definitivo. É sempre

necessário ter atenção à interpretação dos testes, pois um resultado positivo pode ocorrer se o

animal foi vacinado nas 6 semanas anteriores ao teste com uma vacina viva atenuada, e um

resultado negativo pode surgir se a eliminação viral for intermitente ou se a eliminação fecal

ocorreu apenas nas primeiras fases da doença1,6,7

.

O tratamento é de suporte e agressivo e pode diminuir a mortalidade. O ponto essencial é a

correção do desequilíbrio hidroelectrolítico e a prevenção de infecções secundárias por bactérias

anaeróbias e Gram-, devido à fragilidade da parede intestinal7. Dessa forma, deve-se proceder ao

internamento do animal, manter uma temperatura e higiene adequadas, fazer fluidoterapia

agressiva (40 a 60mL/kg/dia iv) com LR suplementado com glicose (nos casos de septicémia ou

hipoglicémia) e KCl, administrar colóides ou fazer transfusões de plasma/sangue

(hipoalbuminémia), administrar antibióticos de largo espectro (12,5 a 25 mg/kg po BID/TID de

amoxicilina – ácido clavulânico + 5 a 10 mg/kg iv/im/sc TID de gentamicina ou 5 mg/kg po/sc

SID de enrofloxacina ou 22 mg/kg po SID/BID de cefalosporina) e antieméticos (0,5 a 1 mg/kg

sc SID de citrato de maropitant ou 1 a 2 mg/kg im/sc TID/QID de metoclopramida), fazer

nutrição parentérica através de uma sonda nasoesofágica (anorexia) ou entérica com alimentos

de elevada digestibilidade findo o quadro de emese, e estimular o apetite (2 a 4 mg/kg BID de

ciproheptadina, 1 mg/kg BID de mianserina, 4 mg/animal a cada 72 horas de mirtazapina ou

vitamina B)1,6,7

. A administração de interferão ω felino (2,5 MU/kg/dia iv, durante 3 dias) é

possível, já que possui efeitos antivíricos, o que pode ser uma ajuda na prevenção da doença.

Porém, apesar da capacidade de inibição da replicação do VPF demostrada in vitro e da eficácia

em cães com VPC, possui um efeito antiviral atípico no caso de doenças provocadas por VPF5.

O prognóstico varia de reservado a grave, no caso de gatinhos ou de gatos bastante jovens

com sintomatologia bastante severa a bom, no caso de adultos que ficam com imunidade

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duradoura. Os gatinhos infectados com menos de 10 semanas de idade que sobrevivam ficarão

com disfunções neurológicas para o resto da vida7. No caso da Julie, o prognóstico foi reservado

a grave, de acordo com a severidade da sintomatologia, idade e valores analíticos. Os fatores que

o fazem variar ainda não são conhecidos, mas a presença de leucopénia, trombocitopénia,

hipocalémia e/ou hipoalbuminémia são considerados negativos, havendo relação paralela entre a

gravidade dos seus valores e a severidade da doença, embora não estejam relacionados com a

mortalidade ou morbilidade provocadas pela doença3. A hipotermia

7 e a coinfecção com

bactérias, outros vírus e parasitas também influenciam o prognóstico. A presença de parasitas

poderia ser descartada, visto que a Julie estava corretamente desparasitada, mas a pesquisa de

bactérias e de outros vírus, nomeadamente FIV/FeLV (que cursam também com diarreia) devia

ter sido realizada.

Devido às características do VPF, a prevenção é crucial. Dessa forma, o isolamento dos

animais infectados, a limpeza dos ambientes contaminados e a vacinação são a chave. O VPF é

bastante resistente aos desinfetantes comuns, mas a desinfecção de jaulas, bebedouros

comedouros, liteiras, sapatos, roupa e ambiente pode ser feita com ácido paracético, hipoclorito

de sódio (1:30) ou hidróxido de sódio. No caso de um surto, em que haja necessidade de proteger

gatos suscetíveis (não vacinados, vacinados incompletamente, privados de colostro) é possível a

administração de um soro (hiper) imune (2-4mL/kg sc/ip/iv), que confere proteção durante 2 a 4

semanas e pode reduzir a morbilidade. Tem origem em gatos vacinados ou recuperados da

doença, sendo a sua aplicação feita apenas quando o efeito da vacinação tiver passado, pois o

soro pode interferir com esta1,6

. As vacinas disponíveis no mercado são bastante eficazes7, desde

que aplicadas corretamente. Neste caso, a Julie não era vacinada, aumentando a sua

suscetibilidade ao VPF. Como noutras patologias, a imunidade inicial (passiva) é fornecida pelos

anticorpos maternos presentes no colostro, que se mantêm em concentrações protetoras até às 6 -

8 semanas de idade. A partir daí, os valores baixam e deixam de ser protetores, embora

interfiram com a imunidade ativa (vacinação ou infecção natural) até às 12-16 semanas. No caso

de mães que tenham sobrevivido à panleucopénia felina ou que habitam em locais de alto risco, o

tempo de interferência aumenta. Segundo o European Advisory Board on Cat Diseases, o

esquema vacinal deve ser implementado entre as 8 e as 12 semanas e todos os gatos devem ser

vacinados, com exceção de fêmeas lactantes/gestantes (transmissão via colostro/transplacentária)

e gatinhos com menos de 4 semanas de idade (risco de hipoplasia cerebelar). O protocolo vacinal

consiste na primovacinação (primeira dose às 8-9 semanas de idade e reforço 3 a 4 semanas

depois, tendo o animal no mínimo 12 semanas de idade nessa altura) e nos reforços posteriores.

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O 1º reforço é feito no ano seguinte, para garantir que se estabelece uma imunidade adequada,

pois a primovacinação pode não tê-lo feito6. Os reforços seguintes bastam ser realizados a cada 3

anos ou mais (7 anos7), pois as vacinas conferem imunidade de longa duração, ao contrário do

que é normalmente feito. No caso de gatos dos quais não se conhece o passado vacinal, deve-se

fazer uma primeira administração, seguida de reforços anuais não sendo necessário o reforço

inicial, e uma nova dose às 16-20 semanas de idade àqueles provenientes de ambientes de alto

risco.

Referências bibliográficas: 1Colado M, Pérez V (2010) “Panleucopenia Felina” in Colado M

et Pérez V (Ed) Enfermedades infecciosas felinas, 1ª Ed, Servet, 147-161; 2Decaro N,

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Crippa A, Comerio T, Angioletti A, Roccabianca P (2007) “Evaluation of inflammation and

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interferon-ω administration” Veterinary Immunology and Immunopathology 118, 68-74;

6Truyen U, Addie D, Belák S, Boucraut-Baralon C, Egberink H, Frymus T, Gruffydd-Jones T,

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Horzinek MC (2009) “Feline Panleukopenia – “ABCD guidelines on prevention and

management” Journal of Feline Medicine and Surgery 11, 538-546; 7Zoran D (2006) “Chapter

32 - The cat with signs of acute small bowel diarrhea” in Rand J (Ed.) Problem Based Feline

Medicine, 1ª Ed, Saunders Elsevier, 698-701 e 722-724

CASO CLÍNICO DE PNEUMOLOGIA: CALICIVIROSE FELINA

Caracterização do paciente: Manecas, felídeo macho inteiro, Europeu Comum, com 7

meses de idade e 1,8 kg de peso.

Motivo da consulta: Anorexia, claudicação dos MP, diarreia, halitose e úlceras linguais.

História clínica: O Manecas foi recolhido da rua e está com a nova proprietária há 24 horas.

Já tinha sido avistado na vizinhança e quando foi recolhido (à noite) encontrava-se com bom

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aspeto. Na nova casa, a proprietária deu-lhe banho, alimentou-o e separou-o dos restantes

animais (18 gatos no total, todos vacinados e desparasitados corretamente), apenas notando

halitose, claudicação ligeira dos MP e pouco apetite. No dia seguinte, reparou que apresentava

diarreia (fezes de consistência mole, mas não líquida) e úlceras linguais. Ao fim do dia, como a

diarreia não tinha passado (4 episódios relatados) e como o Manecas ainda não tinha comido, a

proprietária procurou aconselhamento médico-veterinário.

Exame geral: O Manecas manifestava uma atitude normal em estação e decúbito, em

movimento apresentava claudicação de grau I dos MP, tinha um temperamento equilibrado,

encontrava-se alerta e não era agressivo. Apresentava uma desidratação entre 6 e 8% e uma

condição corporal normal a magro. Os movimentos respiratórios e o pulso não evidenciavam

alterações. A temperatura estava normal (38,3 ºC), à introdução do termómetro apresentava

normorreflexia perineal e tónus anal adequado e após a sua remoção não apresentava muco,

sangue ou parasitas. As mucosas estavam normais e o TRC era inferior a 2 segundos. À

palpação, os GL apresentavam-se normais. A palpação abdominal e a auscultação

cardiopulmonar não evidenciaram qualquer anomalia. Os olhos e os ouvidos foram avaliados e

estavam normais.

Exame dirigido ao aparelho digestivo: A inspeção e a palpação da cabeça, esófago,

abdómen, ânus e região perianal não evidenciaram nenhuma alteração, assim como a auscultação

abdominal. A inspeção da boca tornou evidente a presença das úlceras nos bordos da língua

(Anexo III – Fig. 1 e 2).

Exame locomotor: A inspeção em estação não evidenciou qualquer alteração. Já a inspeção

em marcha demonstrou alteração ligeira da marcha normal dos MP (claudicação grau I). À

palpação notou-se um aumento ligeiro da temperatura nas zonas articulares dos MP, o que é sinal

de inflamação. Não evidenciava dor, tanto à palpação como à manipulação.

Diagnósticos diferenciais: Inflamatórias/Infecciosas: bactérias (clamidiose, salmonelose,

yersiniose), micoplasmose, vírus (herpesvirose, FIV/FeLV); Traumas/Tóxicos: acetaminofeno,

produtos cáusticos; Idiopáticas/Imunomediadas: complexo eosinofílico felino.

Exames complementares: FIV/FeLV - negativo; coprologia – negativo (parasitas

gastrointestinais).

Diagnóstico presuntivo: Calicivirose felina.

Tratamento: O Manecas foi internado e submetido a: fluidoterapia (iv) – LR + glicose 2,5%

+ 20 mEq KCl a uma taxa de 159 mL/kg/dia, durante as primeiras 24 horas, passando depois a

uma taxa de manutenção (87 mL/kg/dia); antibioterapia – amoxicilina - ácido clavulânico (12

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mg/kg sc SID), enrofloxacina (5 mg/kg sc SID), metronidazol (15 mg/kg iv BID); tópicos

orais/protetores gástricos – ácido hialurónico (Aftaspray®, pulverizações po TID), fosfato de

alumínio (0,25 mL/kg po TID); antiemético - metoclopramida (5 mg/kg sc BID); desparasitação

interna - fenbendazol + praziquantel (1 comprimido/10 kg, SID, 3 dias); nutrição - alimento de

elevada digestibilidade na forma seca e húmida.

Acompanhamento: Ao longo do internamento, o estado do Manecas foi melhorando. Ao

final do 1º dia já comia, suspendendo-se a administração do antiemético e substituindo-se toda a

medicação parentérica por entérica no dia seguinte. O grau de hidratação melhorou,

suspendendo-se a fluidoterapia ao fim de 4 dias. A antibioterapia foi mantida durante 4 dias, com

exceção do metronidazol que foi administrado durante 7 dias. As úlceras foram desaparecendo

ao longo do tempo, tal como a halitose, e só teve mais 2 episódios de diarreia, que ocorreram nos

2 dias seguintes ao internamento. A claudicação também desapareceu. A administração do

produto tópico e do protetor gástrico foi feita durante 7 dias, baixando-se a frequência aquando

das melhorias clínicas. O Manecas recuperou totalmente e teve alta ao fim de 8 dias. O controlo

foi feito telefonicamente 7 dias depois, no qual a proprietária informou que o Manecas estava

perfeitamente normal, sem apresentar qualquer sintomatologia anterior.

Discussão do caso clínico: A anamnese e o exame geral permitiram identificar os seguintes

problemas: anorexia, claudicação grau I dos MP, diarreia, halitose, úlceras linguais, condição

corporal normal a magro e desidratação entre 6 e 8%. Tendo em conta este quadro, foi

diagnosticada presuntivamente calicivirose felina. Esta doença é provocada pelo VCF, um vírus

pertencente à família Caliciviridae. O VCF é altamente contagioso, está associado ao complexo

granulofílico felino e a ITU’s e possui grande mutabilidade e adaptabilidade, característica

concedida pelo seu genoma2,6,7

, que permitiu a formação de um subtipo que provoca doença

sistémica virulenta, o VCF-SV1a,11

.

O vírus está distribuído mundialmente e a sua prevalência é proporcional ao número de

animais no local7. A transmissão ocorre pelo contacto com secreções oro-nasais de animais na

fase aguda da doença ou de portadores crónicos2,6

, urina ou fezes2,7

. Como o vírus pode persistir

no ambiente até 1 mês em locais secos e à temperatura ambiente e sobreviver mais tempo ainda

em locais mais frios2,7

, também pode ocorrer transmissão indireta por jaulas, bebedouros,

comedouros, equipamentos e pessoal infectado1c,2,6

. Apesar de não se considerar a existência de

reservatórios ou hospedeiros alternativos6,7

, estudos recentes demonstram que cães4 e pulgas

5

podem representar fontes de infecção. Para além disso, os portadores crónicos, representam uma

fonte constante de infecção para outros gatos suscetíveis7. Desta forma, a infecção do Manecas

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pode ter acontecido por qualquer uma destas formas, visto que vivia na rua, não estava

desparasitado e foi habitar num local com um grande número de gatos.

A infecção pelo VCF pode ocorrer por uma de 3 vias: nasal, conjuntival ou oral, ocorrendo a

replicação primária na orofaringe, o que demora 2 a 10 dias (PI)1c,6

. Formam-se vesículas,

tipicamente nas margens da língua, que necrosam e se transformam em úlceras. A recuperação

pode demorar 2 a 3 semanas, embora gatos recuperados continuem a excretar vírus nos 30 dias

seguintes. Caso essa excreção se prolongue (mais de 30 dias), esses gatos tornam-se portadores

crónicos, ou seja, animais saudáveis que excretam vírus, podendo esse estado durar toda a vida.

Como o vírus se armazena principalmente nas amígdalas, a amigdalectomia podia ser

recomendada; porém isso não é suficiente, o que demonstra que o vírus deve estar também

localizado noutros locais6. Mais raramente pode atingir o pulmão, causando alveolite e

pneumonia, e as articulações, provocando sinovite por deposição de imunocomplexos,

espessamento da membrana, aumento do líquido sinovial e consequente claudicação. Já o VCF-

SV tem um PI de 1 a 5 dias6 e atinge todos os sistemas causando vasculite disseminada e falência

orgânica múltipla, o que resulta em morte em mais de 75% dos casos. A razão da manifestação

desta forma sistémica virulenta pode dever-se à evolução viral ou à resposta imunomediada e a

fatores ambientais (como introdução de um novo animal noutro local, o que lhe causa stress e

consequente imunodepressão) e de maneio (higiene dos utensílios, roupas, comedouros,

bebedouros, liteiras)1a,2,6,7

.

Os sinais clínicos variam conforme a estirpe viral, idade do animal e fatores diversos (stress

crónico, coinfecção por FIV/FeLV ou Bartonella henselae, neoplasia, doenças crónicas,

sobrecrescimento bacteriano oral)2,6,7

, mas há um sinal que é característico e que pode ser único:

a ulceração oral. Diferenciam-se 2 formas clínicas da doença2: aguda e crónica. A forma aguda

inclui 3 quadros2: doença oral e respiratória superior aguda (febre, úlceras, sialorreia, dor,

anorexia, corrimentos oro-nasais, conjuntivite, espirros, que são mais observados em gatinhos, e,

mais raramente, tosse, estertores, dispneia e depressão; também pode aparecer diarreia), doença

sistémica virulenta (pirexia, edema cutâneo da cabeça e membros, dermatite ulcerativa, lesões

crostosas, alopécia periocular/nariz/lábios/orelhas/almofadas plantares, dispneia, anorexia,

petéquias, equimoses, epistaxe, hematosquezia e letargia; os adultos são mais severamente

afetados e, mesmo vacinados contra o VCF, não estão protegidos contra uma infecção provocada

pelo VCF-SV) e poli-artrite1c,2,6,7

. Já a crónica apresenta 2 quadros2: gengivite-estomatite crónica

(sialorreia, halitose, disfagia, anorexia, pelagem fraca, engrossamento do tecido orofaríngeo),

glomerulonefrite (vómitos, náuseas, pu-pd, anorexia, emagrecimento) e poliartrite (claudicação,

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que também pode ocorrer até 1 mês pós-vacinação, resolvendo-se entre 24 a 48 horas2)1c,2

, todas

por deposição de imunocomplexos. Destes sinais, o Manecas apresentava ulceração oral,

halitose, diarreia e claudicação ligeira dos MP, compatível com o quadro de doença oral da

forma aguda.

O diagnóstico é feito com base nos sinais clínicos, elevada contagiosidade e mortalidade e

pelo isolamento viral de secreções oro-nasais e conjuntivais. Podemos usar como meios de

diagnóstico o PCR (secreções orais, sangue, feridas, pulmão, líquido sinovial), a serologia

(ELISA, neutralização viral) e a imunohistoquímica (tecidos fixados em formol), que nos

fornece o diagnóstico definitivo. Independentemente do método usado, a interpretação de

resultados positivos deve ser cuidadosa, devido à existência de portadores crónicos3,9

. De todos

os métodos disponíveis, a serologia é pouco útil, visto que os anticorpos vacinais podem

interferir e os portadores crónicos podem ter níveis elevados de anticorpos sem exibirem

sintomatologia1c,2,6

.

O tratamento existente é de suporte. Dessa forma deve-se fazer fluidoterapia iv (reidratação e

restauração dos distúrbios eletrolíticos e ácido-base), nutrição adequada (alimento mole para não

causar dor, altamente palatável e aquecido para aumentar o aroma, visto que a congestão nasal

provoca uma diminuição do olfacto; um tubo gastroesofágico é aconselhado se a anorexia

persistir mais de 3 dias), estimulantes de apetite (ciproheptadina – 0,1 a 0,5 mg/kg po BID/TID;

mirtazapina – 3,75 mg/animal po a cada 72 horas1c

), AINE’s (diminuição da temperatura e dor),

antibióticos de largo espectro (suspeita de infecção secundária: amoxicilina - ácido clavulânico -

22 mg/kg iv TID, doxiciclina – 5 mg/kg po SID, marbofloxacina – 2 mg/kg iv/po/sc SID,

trimetoprim-sulfonamida – 15 mg/kg po BID1c

), instilações nasais com NaCl várias vezes ao dia,

mucolíticos, descongestionantes e nebulizações salinas (limpeza, descongestão e rehidratação

local) e interferão ω felino (2,5 MU/kg sc SID1c

)1c,2,6,7

.

Devido às características do VCF, a prevenção é crucial. Dessa forma, o isolamento dos

animais infectados, a limpeza dos ambientes contaminados e a vacinação são a chave. Visto as

pulgas serem uma possível fonte de contágio, o seu controlo é aconselhável, cumprindo os

planos de desparasitação externa mensais. A desinfeção de jaulas, bebedouros, comedouros,

liteiras, sapatos, roupa e ambiente pode ser feita com peroximonossulfato de potássio, hipoclorito

de sódio (1:30), derivados de cloro, isopropanol (40 e 60%), etanol (70 e 90%), bicarbonato de

sódio (5%) ou outros produtos domésticos1b,6,7

. Desde que aplicadas corretamente, as vacinas

disponíveis no mercado protegem contra a doença e são seguras, embora não previnam uma

infecção. Para além disso, não protegem contra todas as estirpes existentes, embora uma vacina

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com as estirpes VCF e VCF-SV produza uma melhor proteção cruzada do que as atuais apenas

com a estirpe VCF3. Neste caso, o Manecas não era vacinado, aumentando a sua suscetibilidade

ao VCF. Segundo o European Advisory Board on Cat Diseases, todos os gatos devem ser

vacinados. O protocolo vacinal consiste na primovacinação (primeira dose às 8-9 semanas de

idade e reforço 3 a 4 semanas depois, tendo o animal no mínimo 12 semanas de idade nessa

altura) e nos reforços posteriores. O 1º reforço é feito no ano seguinte, para garantir que se

estabelece uma imunidade adequada, pois a primovacinação pode não tê-lo feito1d

. Os reforços

seguintes bastam ser realizados a cada 3 anos, ao contrário do que é feito normalmente. No caso

de gatos provenientes de ambientes de alto risco, uma nova dose deve ser administrada às 16-20

semanas de idade1d,2,6,7

.

Referências bibliográficas: 1a

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CASO CLÍNICO DE UROLOGIA: FLUTD OBSTRUTIVA

Caracterização do paciente: Deco, felídeo macho castrado, Europeu Comum, com 8 anos de

idade e 4,6 kg de peso.

Motivo da consulta: Alopécia ventral, anorexia parcial, disúria, estrangúria, hematúria,

poilaquiúria, prostração e tenesmo.

História clínica: Aproximadamente há 1 mês, a proprietária reparou que o Deco lambia

muito o abdómen e a região perianal, começando a perder pêlo nestas zonas. Há 5 dias, e de uma

forma aguda, o Deco ficou prostrado, começou a comer pouco (embora bebesse água

normalmente) e sempre que ia à liteira tinha imensas dificuldades em urinar, havendo alturas em

que as tentativas eram improdutivas e em que vocalizava. Para além disso, o Deco começou a ir

mais vezes à liteira e quando conseguia urinar fazia-o em gotejos. A proprietária referiu também

que via sangue na liteira e que o Deco não tinha nenhum antecedente médico semelhante. Não

foi referida qualquer alteração na posição de micção.

O Deco estava desparasitado e vacinado corretamente. O passado médico-cirúrgico apenas

incluía uma orquiectomia eletiva aos 6 meses de idade e não tomava qualquer medicação.

Vivia num apartamento sem acesso ao exterior. Não costumava fazer viagens, era alimentado

com uma dieta comercial seca, tinha livre acesso a água e não coabitava com outros animais.

Não tinha acesso a lixo ou a ervas ou hábito de roer objectos estranhos ou ingerir outros

alimentos, para além da sua dieta habitual.

Relativamente às perguntas efetuadas para os restantes sistemas, não foi referida qualquer

alteração.

Exame geral: O Deco manifestava uma atitude normal em estação, decúbito e movimento,

tinha um temperamento nervoso, encontrava-se alerta e não era agressivo. Não estava

desidratado e apresentava uma condição corporal normal a obeso moderado. Os movimentos

respiratórios e o pulso não apresentavam alterações. A temperatura estava normal (38,2 ºC), à

introdução do termómetro apresentava normorreflexia perineal e tónus anal adequado e após a

sua remoção não apresentava muco, sangue ou parasitas. As mucosas estavam normais e o TRC

era inferior a 2 segundos. À palpação, os GL apresentavam-se normais. A auscultação

cardiopulmonar não evidenciou qualquer anomalia. A palpação abdominal causava desconforto e

a bexiga estava visivelmente distendida (Anexo IV – Fig. 1). Os olhos, a boca e os ouvidos

foram avaliados e encontravam-se sem alterações. Foi observada alopécia abdominal ventral

generalizada (Anexo IV – Fig. 2).

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Exame dirigido ao aparelho urinário: Os rins eram palpáveis e apresentavam tamanho,

superfície e consistência normais. A bexiga encontrava-se bastante distendida e dolorosa à

palpação. Os ureteres não eram palpáveis e as mucosas peniana e prepucial encontravam-se

congestionadas.

Diagnósticos diferenciais: Inflamatórias/Infecciosas: FLUTD obstrutiva, ITU;

Traumas/Tóxicos: trauma uretral; Anomalias: estritura uretral adquirida; Metabólicas: urolitíase;

Idiopáticas/Imunomediadas: cistite idiopática felina; Neoplasias: neoplasias uretrais ou vesicais.

Exames complementares: hemograma: leucocitose ligeira [leucócitos - 20,48x103/µL

(normal: 5,5x103 – 19,5x10

3)] com neutrofilia ligeira [neutrófilos – 18,86x10

3/µL (normal:

2,5x103 – 12,8x10

3)] e linfopénia moderada [linfócitos – 0,99x10

3/µL (normal: 1,5x10

3 –

7,0x103)]; bioquímica: hipoproteinémia [PPT’s - 5,95 g/dL (normal: 6 – 7,9)] por

hipoalbuminémia [albumina – 2,49 g/dL (normal: 2,8 – 3,9)], azotémia (pós-renal) [creatinina –

10,70 mg/dL (normal: 0,9 – 2,2) e ureia – 513,5 mg/dL (normal: 22,0 – 64,0)]; urianálise: urina

vermelha e turva (Anexo IV – Fig. 3), densidade – 1,017 (normal: 1,020-1,040), proteinúria (+2),

piúria (+2), bilirrubinúria (+1), hematúria/hemoglobinúria (+3) e sedimento urinário inativo, sem

cristais e com poucas células epiteliais; urocultura: negativa; RX [Anexo IV – Fig. 4a) e 4b)]:

bexiga bastante distendida e com contornos regulares, sem cálculos urinários visíveis.

Diagnóstico presuntivo: FLUTD obstrutiva.

Tratamento: O Deco foi internado e sujeito a cateterização iv para fluidoterapia com NaCl

0,9% a uma taxa de manutenção (68 mL/kg/dia), cistocentese (recolha de urina para cultura e

antibiograma), descompressão e desobstrução do trato urinário para restabelecimento do fluxo

urinário. Para esta última procedeu-se à algaliação, feita sem sedação e com alguma facilidade

(só inicialmente é que houve uma ligeira resistência provavelmente devido à presença de um

tampão uretral). De seguida, a bexiga foi esvaziada e a algália suturada ao prepúcio.

Adicionalmente foi medicado com amoxicilina - ácido clavulânico (12 mg/kg sc SID),

cetoprofeno (2 mg/kg sc SID), cloridrato de tramadol (4 mg/kg im BID), metoclopramida (5

mg/kg sc BID), ranitidina (2,5 mg/kg po BID) e dieta comercial húmida e seca específica para

problemas urinários. Após avaliação dos resultados analíticos, adicionou-se nova medicação

(hidróxido de magnésio – Maalox Plus®: 1 comprimido/ 20kg po BID, Arctostaphylus uva-ursi

+ Vaccinium myrtillus + Althaea officinalis + Olea europaea + L-metionina + vitamina C +

Lactobacillus acidophilus + Zea mays + Taraxacum dens leonis + Phyllanthus niruri - Dialix®

TU: 1 comprimido/2,5 kg po SID, benazeprilo: 0,5 mg/kg po SID) com o intuito de fazer

proteção renal.

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Acompanhamento: Ao fim dos 3 primeiros dias verificaram-se melhorias notórias (começou

a comer e a urinar sem alterações e apresentava-se mais confortável), suspendendo-se a

administração de antiemético e removendo-se a algália. Porém, ao 4º dia de internamento houve

um retrocesso e o seu estado voltou a piorar: vomitou pela 1ª vez e voltou a apresentar anorexia e

obstrução. Dessa forma, algaliou-se novamente, reintroduziu-se o antiemético, introduziu-se

butilbrometo de escopolamina (Buscopan®; 1comprimido/20kg po BID; cólicas), metronidazol

(12 mg/kg po BID, prevenção em caso de afeção GI) e ácido ursodesoxicólico (Destolit®; 1

comprimido/20 kg po SID; protecção hepatobiliar) e procedeu-se a novo RX [Anexo IV – Fig.

4c) e 4d)], que evidenciou a presença de uma estrutura circular central, de contornos bem

definidos na bexiga. Nos 4 dias seguintes, a situação agravou-se ainda mais (hipotermia,

desidratação) e o Deco acabou por sucumbir após um episódio de choque. Posteriormente

realizou-se uma necrópsia onde foi encontrada a causa de obstrução e de morte: massa tumoral

vesical, compatível com carcinoma das células transicionais, localizada na parede (Anexo IV –

Fig. 5).

Discussão do caso clínico: A anamnese, o exame geral, o hemograma, a bioquímica e a

urianálise permitiram identificar os seguintes problemas: alopécia ventral, anorexia parcial,

disúria, hematúria, poilaquiúria, prostração, tenesmo, condição corporal normal a obeso

moderado, desconforto abdominal, distensão e dor vesical, congestão das mucosas peniana e

perianal, leucocitose e neutrofilia ligeiras, linfopénia moderada, hipoproteinémia por

hipoalbuminémia, azotémia pós-renal (obstrução), piúria, proteinúria, hematúria,

bilirrubinúria/hemoglobinúria e descamação epitelial ligeira. Tendo em conta este quadro, foi

diagnosticada presuntivamente FLUTD obstrutiva. FLUTD é um conceito que engloba todos os

problemas que afetam a bexiga e/ou a uretra e é uma das principais razões para a procura de

assistência médico-veterinária em gatos2,4,7

. Independentemente da causa há um conjunto de

sinais clínicos comuns: poilaquiúria, estrangúria, hematúria, periúria e disúria3,4,5,6

. A FLUTD

pode ser classificada de acordo com a presença ou não de uma causa e pelas manifestações

clínicas (obstrutiva ou não obstrutiva)3,4

. Tendo em conta o quadro apresentado pelo Deco,

considerou tratar-se de um quadro de FLUTD obstrutiva. As causas mais comuns de FLUTD

obstrutiva são: cistite idiopática felina, tampões uretrais e urolitíase4. A cistite idiopática felina é

considerada a causa mais comum de FLUTD obstrutiva4,5

, enquanto a 2ª causa mais comum é a

urolitíase4. Outras causas como neoplasias, distúrbios de comportamento, disfunções

neurológicas, ITU e malformações anatómicas são mais raras3. A incidência desta patologia é

maior nos machos e, nestes, maior ainda nos castrados3. Já a prevalência é maior no Inverno e na

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Primavera2. Os gatos obesos, sem acesso ao exterior, com idades entre os 2 e os 6 anos (sendo

rara em idades inferiores a 1 ano e superiores a 10 anos) e que partilham o habitat com outros

animais constituem o grupo de risco2,3,4,5

. Outros fatores de risco incluem: diminuição da

atividade física, dieta (seca e com níveis de Mg2+

e/ou cinzas elevados), baixo consumo de água

e alterações ambientais3,4

.

A fisiopatologia depende da causa subjacente. No caso da cistite idiopática felina, não se

compreende bem a razão porque acontece, mas provavelmente deve-se a uma alteração na

interação entre o suprimento nervoso, a camada protetora de GAG’s e os componentes da urina5.

Os tampões uretrais, são constituídos por uma matriz proteica, proveniente da parede vesical

como resultado de uma inflamação, e material cristalino, podendo resultar em obstrução,

distensão vesical e, eventualmente, azotémia pós renal1,4

. Por último, a urolitíase ocorre por

fatores relacionados com a dieta2,4

.

Como referido, os sinais mais comuns são: estrangúria, periúria, poilaquiúria, disúria e

hematúria de forma aguda. Os animais afetados também podem apresentar lambedura excessiva

do pénis e região perianal, vocalização durante a micção e extrusão e congestão peniana. Por sua

vez, o exame físico evidencia uma bexiga de parede espessada, sensível à palpação, distendida e

de difícil descompressão1. Caso o animal apresente depressão, anorexia, vómito, desidratação e

hipotermia ou acidose e hiperventilação ou hipercalémia e bradicardia ou choque, estamos

perante um quadro de azotémia pós-renal indicativo de obstrução completa. Os episódios

normalmente têm uma duração de 1 a 10 dias e são separados por intervalos de dias a semanas

de aparente normalidade2,6

. A resolução da sintomatologia ocorre normalmente em 7 dias4.

O diagnóstico desta síndrome é feito pela integração das informações obtidas na anamnese,

sintomatologia, exame físico, urianálise completa, urocultura com antibiograma e imagiologia,

pois nenhum sinal ou conjunto de sinais é diagnóstico de uma FLUTD em particular3. O estudo

imagiológico pode ser feito recorrendo a RX abdominal (deteção de cálculos radiopacos e de

tamanho superior a 3 mm), ecografia abdominal (avaliação da bexiga, cálculos), estudos

contrastados (anomalias conformacionais, estritura uretrais, coágulos sanguíneos, cálculos não

radiopoacos, espessamento da parede vesical) e uroendoscopia (observação das mucosas vesical

e uretral, cálculos não evidentes por outros métodos, massas tumorais e remanescências uracais).

Nos casos de recidiva ou persistência de sintomatologia, os estudos contrastados e a

uroendoscopia são os métodos por excelência2,4

. A realização de biópsias da parede vesical

também é praticável e a sua avaliação histológica evidencia a presença de inflamação e

infiltração por mastócitos das paredes6. Os parâmetros bioquímicos e hematológicos devem

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também ser determinados de forma a se identificar e corrigir as alterações que possam existir e a

ter-se conhecimento do estado renal1.

A chave para o sucesso do tratamento é o diagnóstico, mas como muitas vezes não se

consegue determinar a etiologia, o objetivo é reduzir a recidiva dos episódios3. Dessa forma, os

proprietários devem ser alertados dos custos inerentes e da necessidade de cumprimento da

terapia e controlo, para além dos fatores de risco. Independentemente da causa de obstrução, a

abordagem de emergência não varia1: cateterização iv, fluidoterapia, descompressão vesical por

cistocentese, desobstrução uretral e correção dos desequilíbrios existentes3. O primeiro passo

será sempre estabilizar o animal e depois sedar (se necessário) para algaliação e desobstrução

uretral por retropropulsão com soro fisiológico. Se necessário, pode-se fazer massagem peniana

simultaneamente à compressão vesical manual, o que pode resultar na eliminação de tampões

uretrais ou cálculos muito pequenos2. A manutenção ou não da algália vai depender do fluxo

urinário, da sintomatologia e eficiência do músculo detrusor3. De forma a evitar a desidratação, e

porque pode ocorrer diurese pós-obstrutiva, é necessário vigiar a produção de urina3.

Adicionalmente é imperativo haver maneio da dor, pois é uma patologia extremamente dolorosa.

A analgesia pode ser conseguida recorrendo a diversos fármacos, como: butorfanol (0,2 a 0,5

mg/kg im/sc), buprenorfina (20 µg/kg iv/im/sc QID), hidromorfina ou penso de fentanil, se a dor

for bastante severa4. Caso ocorram espasmos uretrais pós-obstrutivos (fatores de risco para

recidiva), é recomendada a administração de antiespasmódicos como: fenoxibenzamina,

prazosina e/ou acepromazina (α1-antagonistas), de forma a diminuir o tónus uretral3,4

. A

antibioterapia pode ser dispensável, pois a bibliografia refere que deve ser feita apenas em

situações em que a ITU seja comprovada2,4

. Neste caso, foi usado profilaticamente amoxicilina -

ácido clavulânico, pois não se sabia a causa de obstrução e queria-se proteger o Deco de uma

eventual infecção. Caso a causa da obstrução sejam os tampões uretrais, pode ser usada a

amitriptilina (0,5 a 1 mg/kg po SID), fármaco que tem ação antidepressiva, anticolinérgica, anti-

histamínica, analgésica e anti-inflamatória. Este fármaco parece ser também benéfico no caso de

cistite idiopática felina quando administrado diariamente durante 1 ano, mas com benefício

residual se usado a curto prazo3,4,6

. A cirurgia (uretrostomia perineal) só está indicada para

animais que não respondam ao tratamento e que estejam gravemente afectados3. Outros fármacos

como a prednisolona, o DMSO e os GAG’s podem ser usados, mas a sua eficácia ainda não está

totalmente comprovada1,3,6

.

O prognóstico varia com a duração da obstrução e a correção da falha renal. É grave quando a

duração da obstrução é superior a 60 horas, o volume de eritrócitos numa amostra centrifugada

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de urina com sangue é superior a 2% e se a densidade urinária é inferior a 1,020. O prognóstico

pós-uretrostomia é bom, pois a recidiva de obstrução é improvável, embora o procedimento

possa predispor a ITU ascendente1. A recidiva de um caso de FLUTD obstrutiva pode atingir os

45%3 e é maior em animais com mais de 4 anos de idade que tenham sofrido obstrução por

tampões uretrais1,3

. No caso do Deco, o prognóstico considerado foi reservado.

Para a prevenção aconselha-se a redução do stress e a mudança ambiental (limpeza frequente

e substituição semanal da areia da liteira, colocação de liteiras em locais sossegados e em

número adequado, aumento do número de atividades, maior interação com os proprietários, uso

de feromonas sintéticas - Feliway®)3,4

, para além do fornecimento de uma dieta que diminua a

probabilidade de formação de cálculos e mantenha o pH da urina baixo, tal como a densidade

(alimento húmido). A adição de água com sabor a peixe ou carne pode ser feita com o intuito de

aumentar a ingestão de água1,6

.

Tendo em conta o quadro inicial do Deco, o diagnóstico considerado foi o de FLUTD

obstrutiva. Como as analíticas não evidenciavam cristalúria ou ITU, considerou-se como causa

dessa FLUTD obstrutiva a cistite idiopática felina. Devido a restrições orçamentais, não foi

possível a realização de ecografia abdominal (ou uroendoscopia, pois havia indicação para tal),

algo que nos poderia ajudar na obtenção de um diagnóstico definitivo. Este só foi possível com a

realização de uma necrópsia (FLUTD obstrutiva por neoplasia), embora no RX abdominal

realizado durante o internamento se tenha visualizado algo que poderia ser compatível devido à

localização. Como referido, as neoplasias podem causar FLUTD obstrutiva, mas é algo bastante

raro e agressivo7. É uma situação mais prevalente em machos com idades entre os 6 e os 19 anos

(média de 15 anos) e desenvolve-se em locais distantes ao trígono vesical7. O seu tratamento

pode ser médico ou cirúrgico. O tratamento médico pode incluir uma monoterapia com piroxican

(0,3 mg/kg po 2-3 vezes/semana) ou uma terapia conjunta de doxorrubicina + ciclofosfamida. Já

o tratamento cirúrgico inclui cistotomia ou exérese parcial e pode ser auxiliado com um

tratamento médico (piroxican)7. O prognóstico é mau e, independentemente do tratamento

aplicado, o tempo de sobrevida não é superior a 9 meses7.

Referências bibliográficas: 1Filippich L (2006) “Chapter 11 - The cat straining to urinate” in

Rand J (Ed.) Problem Based Feline Medicine, 1ª Ed, Saunders Elsevier, 173-175 e 179-184;

2Grauer G (2003) “Chapter 47 - Urinary Tract Disorders” In Nelson R & Couto C (Eds.) Small

Animal Internal Medicine, 3rd

Ed, Mosby Elsevier, 642-649; 3Hostutler R, Chew D, DiBartola

P (2005) “Recent Concepts in Feline Lower Urinary Tract Disease” Veterinary Clinic of North

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America: Small Animal Practice 35, 147-170; 4Moore D (2003) “Feline lower urinary tract

disease - Proceedings of the ESFM Feline Congress 2002” Journal of Feline Medicine and

Surgery 5, 133-138; 5Sævik B, Trangerud C, Ottesen N, Sørum H, Eggertsdóttir A (2011)

“Causes of lower urinary tract disease in Norwegian cats” Journal of Feline Medicine and

Surgery 13, 410-417; 6Senior D (2006) “Feline Lower Urinary Tract Disease” in Proceedings

of the WSAVA 2006 Congress, 354-356; 7Wilson H, Chun R, Larson V, Kurzman I, Vail D

(2007) “Clinical signs, treatments and outcomes in cats with transitional cell carcinoma of the

urinary bladder” Journal of the American Veterinary Medical Association 1, 101-106

CASO CLÍNICO DE CARDIOLOGIA: DIROFILARIOSE CANINA

Caracterização do paciente: King, canídeo macho inteiro, raça indefinida, com 8 anos de

idade e 7,8 kg de peso.

Motivo da consulta: Anorexia parcial, astenia, cansaço ao exercício, diarreia, dispneia, perda

de peso, prostração, tosse seca intermitente e vómitos.

História clínica: Aproximadamente há 2 meses, a proprietária começou a notar que o King se

cansava mais após os seus passeios diários e que, de vez em quando, tossia de forma seca e tinha

dificuldades em respirar, algo que acontecia mais frequentemente após o exercício. Também

reparou numa diminuição do apetite. Há 4 - 5 dias, a proprietária reparou que o King começou a

ficar mais prostrado e que parecia mais magro. De forma súbita, o King deixou de comer,

embora continuasse a beber normalmente, e começou com vómitos e diarreia, o que durava há 2

dias. O vómito era antecedido de inquietação, mas não de salivação, tinha aspeto aquoso e

amarelado, apresentava saliva, mas não alimento, e ocorria 3 a 4 vezes por dia. Já a diarreia era

acastanhada, bastante líquida, com odor muito forte e ocorria 4 a 5 vezes por dia.

O King estava desparasitado e vacinado corretamente. Não tinha passado médico-cirúrgico e

não tomava qualquer medicação.

Tinha sido encontrado aos 4 anos de idade na Figueira da Foz e vivia desde então num

apartamento sem acesso ao exterior. Não costumava fazer viagens, era alimentado com uma

dieta comercial seca e húmida, tinha livre acesso a água e não coabitava com outros animais.

Não tinha acesso a lixo ou a ervas ou hábito de roer objectos estranhos ou ingerir outros

alimentos, para além da sua dieta habitual.

Relativamente às perguntas efetuadas para os restantes sistemas, não foi referida qualquer

alteração.

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Exame geral: O King manifestava uma atitude normal em estação, decúbito e movimento,

tinha um temperamento equilibrado, encontrava-se alerta e não era agressivo. Apresentava uma

desidratação entre 8 e 10% e uma condição corporal magro a caquético. Os movimentos

respiratórios e o pulso não apresentavam alterações. A temperatura estava normal (38,8 ºC), à

introdução do termómetro apresentava normorreflexia perineal e tónus anal adequado e após a

sua remoção não apresentava muco, sangue ou parasitas. As mucosas estavam ligeiramente

pálidas e o TRC era inferior a 2 segundos. À palpação, os GL apresentavam-se normais. A

auscultação pulmonar não evidenciou qualquer anomalia, enquanto a cardíaca evidenciou a

existência de um sopro de grau IV/VI ao nível da projeção da válvula tricúspide. À palpação

abdominal evidenciava dor moderada no quadrante superior direito. Os olhos, a boca e os

ouvidos foram avaliados e encontravam-se sem alterações.

Exame dirigido ao aparelho gastrointestinal: A inspeção e a palpação da cabeça, boca,

esófago, abdómen, ânus e região perianal não evidenciaram nenhuma alteração, assim como a

auscultação abdominal.

Exame dirigido ao aparelho cardiovascular: Sem alterações do padrão respiratório, atitude

e postura. Não existiam edemas ventrais ou alterações das características do pulso. A cabeça

apresentava simetria normal, sem edema e as mucosas oral e ocular encontravam-se ligeiramente

pálidas e o TRC era inferior a 2 segundos. Não apresentava pulso ou ingurgitamento jugular e a

auscultação cardiovascular pôs em evidência um sopro de grau IV/VI, mais evidente ao nível da

projeção da válvula tricúspide.

Diagnósticos diferenciais: Vasculares: ICC (cardiomiopatia dilatada,

insuficiência/estenose/displasia da válvula tricúspide); Inflamatórias/Infecciosas: dirofilariose

canina, babesiose, erliquiose, leishmaniose; Neoplasias: neoplasias cardíacas (i.e.

hemangiossarcoma no AD); Degenerativas: endocardiose.

Exames complementares: hemograma: leucocitose moderada [leucócitos - 40,94x103/µL

(normal: 6,0x103 – 17,0x10

3)] com neutrofilia moderada [neutrófilos – 87,50x10

3/µL (normal:

3,0x103 – 14,0x10

3)] e linfopénia ligeira [linfócitos – 0,86x10

3/µL (normal: 1,0x10

3 – 4,8x10

3)];

ligeira anemia normocítica normocrómica [eritrócitos – 5,45x106/µL (normal: 5,50x10

6-

8,50x106); Hb – 11,8 (normal: 12,0-18,0); Hto (%) – 35,7 (normal: 37,0-55,0)]; esfregaço:

presença de microfilárias (2 a 4 num campo pequeno); bioquímica: hiperproteinémia [PPT’s -

8,39 g/dL (normal: 5,4 – 7,5)] por hiperglobulinémia [globulinas – 5,65 g/dL (normal: 2,7 –

4,4)]; hipoglicémia [glicose - 71,5 mg/dL (normal: 76,0-119,0)]; azotémia [creatinina – 7,05

mg/dl (normal: 0,5 – 1,7) e ureia – 492,3 mg/dL (normal: 17,0 – 60,0)].

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Diagnóstico presuntivo: Dirofilariose canina.

Tratamento: O King foi internado e submetido a fluidoterapia (LR + glicose 2,5% + 20

mEq/L KCl a uma taxa de 142 mL/kg/dia durante as primeiras 24 horas e, quando resolvida a

desidratação, à taxa de manutenção de 60 mL/kg/dia) e a administração de antibióticos

[metronidazol (15 mg/kg iv BID), enrofloxacina (5 mg/kg sc SID)], antieméticos

[metoclopramida (5 mg/kg sc SID)], protetores gástricos [ranitidina (2mg/kg iv BID), fosfato de

alumínio (0,25 mg/kg po BID), hidróxido de alumínio (Maalox Plus® - 1 comprimido/20 kg po

BID)]; analgésicos [cloridrato de tramadol (4 mg/kg im BID)], dieta (NPO até final do quadro de

emese, passando depois a ser feita com dieta húmida e de elevado valor energético) e IECA’s

[enalapril (0,25 mg/kg po SID)]. Após análise dos resultados analíticos, iniciou-se a

administração de doxiciclina (5 mg/kg po SID), ivermectina (50 µg/kg sc única) e de um

suplemento vitamínico e mineral (Hemolitan pet® - 1gota/kg po BID).

Acompanhamento: Ao longo do internamento, o estado do King agravou-se: os vómitos, a

diarreia e a anorexia mantiveram-se, o grau de desidratação aumentou, desenvolveu-se

hipotermia (34 ºC), hematosquezia e melena, as mucosas ficaram mais pálidas e ocorreram 2

episódios convulsivos. Ao fim de 3 dias, o King acabou por falecer. A confirmação do

diagnóstico (e determinação da causa de morte) só foi possível com a realização de necrópsia

(Anexo V – Fig. 1 a 4), onde se visualizou um trombo de filárias adultas ao nível da veia

pulmonar (Anexo V – Fig. 3) – (morte por tromboembolismo pulmonar provocado por

dirofilariose).

Discussão do caso clínico: A anamnese, o exame geral, o hemograma e a bioquímica

permitiram identificar os seguintes problemas: anorexia parcial, astenia, intolerância ao

exercício, diarreia, dispneia, perda de peso, prostração, tosse seca intermitente, vómitos,

desidratação entre 8 e 10%, condição corporal magro a caquético, mucosas ligeiramente pálidas,

sopro de grau IV/VI ao nível da projeção da válvula tricúspide, dor moderada ao nível do

quadrante superior abdominal direito, leucocitose moderada com neutrofilia moderada e

linfopénia ligeira, anemia normocítica e normocrómica ligeira, hiperproteinémia por

hiperglobulinémia, hipoglicémia, azotémia pré-renal e microfilarémia. Tendo em conta este

quadro foi diagnosticada dirofilariose canina. A dirofilariose é provocada pela Dirofilaria

immitis e afeta principalmente canídeos2, embora também possa afetar felídeos e humanos

1. Não

há predisposição racial ou etária, embora seja mais frequente em animais com 4 a 8 anos de

idade2. Os machos são afetados duas vezes mais do que as fêmeas e os animais de raças gigantes

que vivam no exterior são mais susceptíveis2.

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Embora a dirofilariose canina seja uma doença típica de países tropicais5, as alterações

climáticas (aquecimento global5) e as mudanças de hábitos (habitação, armazenamento de água,

irrigação, poluição, resistências a fármacos e inseticidas, globalização, aumento do comércio e

viagens internacionais, turismo, viagens, fácil movimento de animais e humanos1,5

) permitiram o

diagnóstico em todo o mundo1, aparecendo até em zonas consideradas livres de doença

4a. Na

Europa, as infecções são sazonais (Verão) e ocorrem principalmente a Sul, ou seja, em Portugal

(principalmente na zona da Figueira da Foz, de onde era originário o King), Espanha, França,

Itália e Grécia5. Contudo, a infecção está a generalizar-se e a atingir países a Norte

4a,5. A

transmissão depende da presença de um número suficiente de cães infectados e microfilarémicos,

de mosquitos sensíveis e de um clima favorável (temperatura, humidade e altitude adequadas)5.

O parasita é transmitido por um mosquito e fatores como a temperatura, a humidade relativa e

a precipitação determinam a abundância desse mosquito e a prevalência da doença5. A uma

temperatura ótima de 25-27 ºC e a uma humidade relativa de 80%, o desenvolvimento do

mosquito demora 10 a 14 dias1, não se desenvolvendo a temperaturas inferiores a 14 ºC

4a.

O ciclo de vida do parasita é algo longo, demorando 7 a 9 meses1. O mosquito fêmea infecta-

se com L1 (larvas) ao alimentar-se do sangue de um animal infectado1,2,7

. As microfilárias

atingem o intestino em 24 horas, seguindo para os tubos de Malpighi. Aqui desenvolvem-se em

L3 e migram posteriormente para a cavidade bucal, onde se tornam infectantes (2 semanas)7.

Quando o mosquito se torna a alimentar, as L3 são depositadas no hospedeiro, através da ferida

provocada na pele1,2

. Passados 21 dias, as L3 atingem os tecidos abdominais e ao 41º dia atingem

os torácicos1. A transformação em L4 (adultos imaturos) começa ao 3º dia e acaba entre o 9º e o

12º dia1,7

. Já a transformação em L5 finaliza aos 50-70 dias e até aos 89 dias, migram para a

vascularização pulmonar1,2,7

. Aos 120 dias, os parasitas tornam-se sexualmente maduros e o

hospedeiro torna-se microfilarémico 6 a 9 meses pós-infecção1,2,7

.

A patofisiologia da dirofilariose deve-se à presença de adultos nas artérias pulmonares, que

causam hipertensão pulmonar e ICC direita2,4b,7

. Apesar de menos importantes, as microfilárias

podem provocar pneumonia e glomerulonefrite4b

, devido à formação de um complexo anticorpo-

microfilária. A severidade das lesões e da sintomatologia está relacionada com o número de

infecções, a duração da infecção e a interação parasita-hospedeiro2. As lesões ocorrem

preferencialmente na porção caudal da vasculatura, se o número de parasitas for baixo (pois

quando esse número aumenta vão para outros locais) e incluem proliferação da íntima vascular

(que é tanto maior quanto maior a duração da infecção e a carga parasitária4d,7

), inflamação

rugosa e granulomatosa, hipertensão pulmonar, quebra da integridade vascular, edema

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perivascular e fibrose2,4b,4d,7

. Consequentemente, as artérias pulmonares ficam dilatadas,

espessadas, tortuosas, funcionalmente incompetentes e rugosas2,4b

. A morte dos parasitas pode

causar tromboembolismos que irão resultar em vasoconstrição, obstrução, hipóxia e agravamento

da hipertensão pulmonar, com posterior consolidação dos lobos pulmonares afetados, ICC direita

(especialmente quando secundária a insuficiência da válvula tricúspide), dilatação e hipertrofia

compensatória ou enfarte pulmonar2,4b,4d,7

. Também podem ocorrer migrações aberrantes

afetando os músculos, cérebro, espinal medula, câmara anterior do olho e outras artérias2,7

. Caso

haja incompetência da válvula tricúspide pode ocorrer migração retrógrada dos parasitas, que

passam a ocupar o AD e a veia cava caudal, resultando na síndrome de dirofilariose caval, que é

mais comum em animais de raças pequenas e médias (como no caso do King)2,4d,7

. Mais

raramente pode ocorrer amiloidose renal e, em casos de congestão hepática crónica secundária,

cirrose7.

Tendo em conta a fisiopatologia, a sintomatologia da dirofilariose é crónica4d

, mas depende

da severidade e da duração da infecção e reflete as lesões existentes2. A maioria dos cães

diagnosticados é assintomática e são mais predispostos a ter doença arterial avançada2,4d,7

.

Quando sintomáticos, os animais exibem dispneia após exercício, intolerância ao exercício,

fadiga, síncope, tosse, hemoptise, perda de peso, anorexia, sinais de insuficiência cardíaca direita

e “rouquidão”7. As alterações observadas no exame físico dependem do estadio da doença (fraca

condição corporal, taquipneia ou dispneia, distensão ou pulso da veia jugular, ascite ou outras

alterações que indiquem insuficiência cardíaca direita, sons pulmonares aumentados ou anormais

e arritmias cardíacas ou sopros à auscultação cardiopulmonar, em casos de doença severa)2,7

.

Caso haja epistaxe, CID severa, febre, trombocitopénia e hemoglobinúria estamos perante

doença arterial pulmonar severa e tromboembolismo2,4d,7

. Pode ocorrer morte em caso de

sintomatologia aguda4d

. O King apresentava a maioria destes sinais clínicos.

O primeiro método de diagnóstico a ser usado deve ser o teste de antigénios das dirofilárias

fêmeas adultas, pois é preciso e mais sensível do que o teste de microfilárias1,2,7

. Como os

antigénios só são detetáveis 6 a 7 meses pós-infecção, não se deve testar cachorros antes dos 7

meses de idade1,7

. Os resultados fracamente positivos devem ser repetidos e os resultados falsos

negativos podem resultar de cargas parasitárias baixas, presença de apenas fêmeas imaturas ou

infecção apenas com machos, enquanto os falsos positivos decorrem sempre de erros

técnicos1,2,7

. Os testes de deteção das microfilárias devem ser realizados em simultâneo com o

teste anterior para validar os resultados serológicos, identificar hospedeiros e alertar o médico

veterinário de potenciais complicações severas, se for administrado um microfilaricida em

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animais com uma grande carga parasitária1. Porém, nunca podem ser usados isoladamente, pois

os animais que fazem prevenção mensal são amicrofilarémicos ou possuem cargas parasitárias

reduzidas1,2,7

. As infecções ocultas, nas quais não é visualizável microfilarémia, podem resultar

da destruição intra-pulmonar das microfilárias pelo sistema imune ou infecção por parasitas de

um único sexo, estéreis ou imaturos7. Devem ser usados métodos adicionais de diagnóstico para

confirmar o diagnóstico e estadiar a severidade da doença1. Para isso podemos usar a radiografia

(alterações mais comuns: dilatação do VD e artéria pulmonar, artérias pulmonares lobares

alargadas e tortuosas, infiltrados pulmonares intersticiais ou alveolares, edema, pneumonia,

fibrose e consolidação pulmonar), a ecocardiografia (visualização de dilatação cardíaca e

parasitas que surgem como ecos brilhantes ou alterações da válvula tricúspide), a ECG (normal

ou com arritmias, evidências de dilatação ventricular ou atrial direita, hipertrofia ventricular

direita ou dilatação da artéria pulmonar) e a analítica (eosinofilia, basofilia, monocitose, anemia

regenerativa moderada, trombocitopénia, gamopatia policlonal, azotémia, elevação moderada

dos valores das enzimas hepáticas, hiperbilirrubinémia, proteinúria, hipoproteinémia por

hipoalbuminémia)1,2,4d7

. No caso do King dever-se-ia ter confirmado o diagnóstico com testes

serológicos e realizado um RX para avaliar a cavidade torácica. Porém o RX não foi possível,

pois o King nunca esteve suficientemente estável, e o diagnóstico só foi confirmado

posteriormente com a necrópsia.

Dantes, a dirofilariose era classificada em 4 classes de acordo com a sintomatologia e os

achados diagnósticos: classe 1 (leve), 2 (moderada), 3 (severa) e 4 (síndrome caval)1,2,7

. Mais

recentemente, os animais são incluídos numa de duas categorias, de acordo com os fatores de

risco (carga parasitária, idade e tamanho do cão, problemas de saúde concomitantes, severidade

da lesão pulmonar, grau de redução de exercício)4d

, em baixo e alto risco de complicações

tromboembólicas. Na 1ª categoria são incluídos os animais que satisfaçam todas as seguintes

condições: ausência de sinais clínicos, que apresentem RX torácicos normais e níveis baixos ou

nulos de antigénios circulantes ou resultado antigénico negativo, que não apresentem doenças

concomitantes e parasitas visíveis à ecocardiografia e que possam sofrer restrição de exercício4d

.

Já na 2ª categoria são incluídos todos os animais que não cumpram um ou mais requisitos: sinais

clínicos relacionados com a doença, RX torácicos anormais, níveis elevados de antigénios

circulantes, parasitas visualizáveis à ecocardiografia, doenças concomitantes e que não possam

sofrer restrição de exercício4d

. Atendendo ao quadro clínico exibido, o King foi considerado

pertencente à categoria 2 (elevado risco de complicações tromboembólicas) e a sua dirofilariose

classificada como classe 3 a 4. De notar que fatores como o nível de atividade do animal, a

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extensão da doença pulmonar concomitante e a severidade da infecção influenciam a

probabilidade de ocorrência de complicações tromboembólicas1.

O tratamento não é fácil, nem seguro4d

. Os objetivos do tratamento consistem em melhorar a

condição clínica do animal e eliminar todos os estadios parasitários, com o mínimo de

complicações1. Para isso é necessário ter um bom conhecimento do ciclo de vida do parasita, de

forma a se poder intervir em todas as fases1. Antes de efetuar qualquer tratamento é necessário

fazer uma avaliação do animal1,7

: fazer RX (avaliação do estado cardiopulmonar e potenciais

complicações pós-tratamento) e análises sanguíneas (hemograma, bioquímica e urianálise)1,7

. De

notar que a presença de parasitas adultos é grave e quanto mais tempo permanecerem no animal,

maiores serão as lesões e maior a probabilidade de doença e morte1. Dessa forma, o tratamento

deve ser iniciado o mais rápido possível. O tratamento deve seguir o protocolo elaborado pela

Sociedade Americana da Dirofilariose: estabilização do animal, restrição de exercício,

corticosteróides, lactonas macrocíclicas, doxiciclina e melarsomina1. A restrição de exercício

deve ser iniciada logo aquando do diagnóstico e o exercício deve ser tão mais restrito, quanto

mais severos forem os sinais clínicos1. Essa restrição deve aumentar ainda mais aquando da 1ª

administração de melarsomina e continuar durante mais 6 a 8 semanas após a última

administração1. Os corticosteróides são importantes pois ajudam a reduzir os sinais clínicos de

tromboembolismo (0,5 mg/kg prednisona BID na 1º semana, SID na 2ª e QOD na 3ª e 4ª

semana) e não diminuem a eficácia da melarsomina, o que acontecia com a tiacetarsamida, que

deixou de ser usada (cáustica, tóxica7)1,2,4d

. Devem ser usados logo aquando do diagnóstico, se o

animal estiver sintomático, e após a 3ª administração de melarsomina (pelas mesmas razões

anteriormente mencionadas)1. As lactonas macrocíclicas são fármacos microfilaricidas e objetivo

da sua utilização consiste em eliminar as larvas, prevenir a reinfecção e permitir o

amadurecimento das formas juvenis, aumentando a sua suscetibilidade à melarsomina1. Para

isso, devem fazer-se 4 administrações: duas 2 meses antes da 1ª administração da melarsomina,

uma na altura dessa 1ª administração e a 4ª na altura da 2ª de melarsomina. Caso haja suspeita de

microfilarémia, devem ser precedidas pela administração de corticosteróides e anti-histamínicos

de forma a reduzir potenciais reacções1. Estudos recentes demonstram que a selamectina é um

fármaco seguro e que pode ser usado mesmo em animais altamente microfilarémicos, pois

provoca morte lenta dos parasitas, reduzindo ou eliminando as reações adversas associadas ao

uso de microfilaricidas4c

. A doxiciclina (10 mg/kg) é administrada BID durante 4 semanas e o

seu objetivo é diminuir em 95% o número de bactérias do género Wolbachia, que têm aparecido

associadas à Dirofilariose, reduzir a patologia associada aos parasitas mortos e interromper a

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transmissão do parasita1. Para ser eficaz deve ser administrada 1 mês antes da melarsomina e

idealmente associada à ivermectina (50 µg/kg7), pois estudos recentes demonstram que animais

previamente tratados com estes fármacos em simultâneo apresentam lesões arteriais menos

severas e ausência virtual de trombos1,6

. A melarsomina (adulticida) é o fármaco de eleição, pois

é mais eficaz que a tiacetarsamida e parece não estar associado a grande risco de

tromboembolismo e hipertensão pulmonar2,7

. A sua administração é feita ao nível dos músculos

epaxiais e pode provocar inflamação e desconforto local1. Existem 2 protocolos para a sua

administração (2 e 3 administrações) mas, devido à segurança e eficácia (98%), o protocolo que

inclui 3 administrações (1 administração de 0,25 mg/kg seguida de duas em 24 horas no mês

seguinte) é o aconselhado, independentemente da classe da doença (1 a 3)1,2,3,4d,7

. É importante

relembrar que a restrição de exercício é ainda mais importante nesta altura para diminuir as

complicações posteriores2.

A terapia cirúrgica só é aconselhada em animais que apresentem a forma mais grave da

doença, a síndrome caval, e deve ser realizada o mais rápido possível, pois caso contrário os

animais morrem em 2 dias (como aconteceu com o King). A cirurgia pode ser feita com sedação

ligeira, anestesia local e remoção dos parasitas do AD e do orifício da válvula tricúspide pela

veia jugular1,4d,7

. O sopro desaparece em 12 a 24 horas e é necessário fazer fluidoterapia, para

repor a função hemodinâmica e renal, para além do tratamento preventivo de dirofilariose1. A

remoção cirúrgica (com fluoroscopia) dos parasitas presentes na artéria pulmonar também é

possível e é o método de eleição em animais de alto risco ou severamente infectados (diminuição

do risco de tromboembolismo)1,4d,7

. A taxa de mortalidade associada é muito baixa e a remoção

do maior número de parasitas possível aumenta a sobrevivência e a taxa de recuperação1.

As complicações do tratamento decorrem da trombose provocada pelos parasitas mortos e

consequente obstrução, sendo inevitáveis4d,7

. Elas ocorrem 5 a 30 dias após o tratamento

enquanto a recuperação ocorre entre 4 - 6 semanas (lesões endoteliais) a vários meses

(hipertensão e doença vascular)7. Os sinais clínicos incluem depressão, febre, taquicardia,

taquipneia, dispneia, tosse, hemoptise, ICC direita, colapso ou morte. Restrição do exercício,

corticoterapia (1 – 22 mg/kg prednisona SID), oxigenoterapia (hipóxia), broncodilatadores (10

m/kg aminofilina po/im/iv TID), fluidoterapia, antitússicos, antibioterapia, hidralazina

(diminuição da resistência vascular), vasodilatadores e heparina (200-400 UI/kg sc BID/TID em

casos de tromboembolismo severo) devem fazer parte do tratamento das complica ções4d,7

.

O prognóstico é bom para a dirofilariose assintomática, mas reservado para a mais severa2.

Piora com CID severa, síndrome caval, embolização massiva, granulomatose eosinofílica,

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doença pulmonar arterial severa e insuficiência cardíaca2. O animal apresenta melhorias nas 4

semanas seguintes ao tratamento e recupera totalmente em 1 ano2.

A profilaxia deve ser iniciada o mais rapidamente possível (nunca depois das 8 semanas de

idade) e sempre precedida de teste antigénico1.7

. Pode ser tópica, oral ou parentérica e a

intervalos mensais ou bianuais, sendo de extrema importância em animais que habitem em zonas

endémicas1. Os fármacos mais usados são as lactonas macrocíclicas, que apresentam excelentes

razões terapêuticas/tóxicas e destroem tanto L3 e L4 como jovens adultas1. Possuem eficácia

pós-infecção (importante em animais que não começaram a prevenção antes da época de

transmissão ou que tenham falhado uma administração durante essa época), mas a administração

tem de cumprir as recomendações (mensal para produtos orais – ivermectina e milbemicina - e

tópicos – moxidectina e selamectina; bianuais para parentéricos – moxidectina de libertação

lenta)1,3,7

. Apesar de existirem raças (Collies) suscetíveis a estes fármacos, eles são seguros em

qualquer raça, desde que administrados nas doses recomendadas (6-12 µg/kg ivermectina, 0,5-

1,0 mg/kg milbemicina, 6 mg/kg selamectina, 3 µg/kg moxidectina)1,3,7

. Falhas de eficácia são

possíveis e ocorrem devido a ignorância dos proprietários relativamente aos riscos da doença, à

falha de cumprimento dos protocolos de protecção e de instrução adequada das medidas de

prevenção existentes por parte dos professionais1,3

. Devido a esta situação, colocou-se a questão

de um possível desenvolvimento de resistência, visto que os animais positivos sujeitos a esta

profilaxia podiam ser fonte de propagação de parasitas resistentes3. Como fatores para o

desenvolvimento de resistências temos: biologia, genótipo e habitat do parasita, relação

hospedeiro-parasita, número de animais tratados e dose usada1. Para evitar estas situações (falta

de eficácia, desenvolvimento de resistências) é necessária a educação de todos os intervenientes

(clientes, profissionais) e o uso dos fármacos profiláticos apenas em animais negativos ao teste

de antigénios de dirofilárias adultas (a não ser quando usados previamente a um tratamento

adulticida)1,3

. Devem ser realizados testes periódicos para confirmar animais como negativos e o

primeiro deve ser executado 1 ano após o início da profilaxia (tempo de eliminação das

microfilárias)1,7

.

Referências bibliográficas: 1American Heartworm Society (2010) “Current Canine

Guidelines for the Diagnosis, Prevention and Management of Heartworm (Dirofilaria immitis)

Infection in Dogs” Triennial Symposium of the American Heartworm Society (atualização de

2012); 2Atkins C (2005) “Chapter 206 – Canine Heartworm Disease” in Ettinger S & Feldman E

(Eds.) Textbook of Veterinary Internal Medicine, 6th

Ed, Elsevier Saunders, 1118-1136;

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32

3Atkins C (2011) “Heartworm Disease in Dogs – An Update 2011” Proceedings of the 36

th

World Small Animals Veterinary Congress, 162-165; 4a

Genchi C, Guerrero J, McCall J,

Venco L “Epidemiology and prevention of Dirofilaria infections in dogs and cats” Proceedings

of Dirofilaria Day, 147-158; 4b

Grandi G, Zivicnjak T, Beck R (2007) “Pathogenesis of

Dirofilaria spp. infections” Proceedings of Dirofilaria Day, 61-65; 4c

McCall J, Dzimianski M,

Steffens W, Supakorndej N, Supakorndej P, Mansour A, Ard M, McCall S, Hack R, Domingo D

(2007) “Safety and efficacy of selamectin in dogs with Dirofilaria immitis infection”

Proceedings of Dirofilaria Day, 165-173; 4d

Venco L (2007) “Heartworm (Dirofilaria immitis)

disease in dogs” Proceedings of Dirofilaria Day, 119-124; 5Genchi C, Rinaldi L, Mortarino M,

Genchi M, Cringoli G (2009) “Climate and Dirofilaria infection in Europe” Veterinary

Parasitology 163, 286-292; 6 Kramer L, Grandi G, Passeri B, Gianelli P, Genchi M, Dzimianski

M, Supakorndej P, Mansour A, Supakorndej, McCall S, McCall J (2011) “Evaluation of lung

pathology in Dirofilaria immitis-experimentally infected dogs treated with doxycycline or a

combination of doxycycline and ivermectin before an administration of melarsomine

dihydrochloride” Veterinary Pathology 176, 357-360; 7Ware W (2006) “Chapter 10 –

Heartworm Disease” in Nelson R & Couto C (Eds.) Small Animal Internal Medicine, 3rd

Ed,

Mosby Elsevier, 169-183

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ANEXO I – HÉRNIA INGUINAL

Fig. 1 - Tumefação inguinal esquerda. Fig. 2 – RX (LL e DV).

a) b) c)

d) e) f)

g) h) i)

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Fig. 3 – Procedimento cirúrgico: a) preparação da cirurgia; b) campo cirúrgico; c) colocação da paciente; d), e) e

f) dissecção e pesquisa do saco herniário; g), h) e i) dissecção, exposição e incisão do saco herniário; j) e k)

dissecção do saco herniário; l) e m) ligação da base do saco herniário; n) parede do saco herniário (bastante

fibrosado); o) e p) encerramento; q) e r) verificação da hemostase; s) final da cirurgia.

j)

k) l)

m) n) o)

p)

q) r)

s)

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ANEXO II – PANLEUCOPÉNIA FELINA

Fig. 1 – Hematosquezia. Fig. 2 – Depressão e prostração notória.

ANEXO III – CALICIVIROSE FELINA

Fig. 1 e 2 – Úlceras no bordo lingual.

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ANEXO IV - FLUTD OBSTRUTIVA

Fig. 1 – Distensão vesical.

Fig. 2 – Alopécia ventral. Fig. 3 – Urina.

Fig. 4 – RX: a) VD, b) LL (direita), c) LL (esquerda, contraste negativo), d) pormenor da figura anterior.

a)

b)

c)

d)

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Fig. 5 – Massa tumoral vesical.

ANEXO V - DIROFILARIOSE CANINA

Fig. 1 – Aspecto do coração e pulmões (sinais de edema e congestão pulmonar).

Fig. 2 – Cavidades cardíaca (hipertrofia do VE e dilatação doVD).

a) b)

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Fig. 3 – Filárias adultas: a) e b) trajeto entre o AD e a veia pulmonar; c) trombo.

Fig. 4 – Veia pulmonar (hiperplasia e fibrose) e pulmão direito (trajetos de migração larvar, nódulos parasitários

calcificados - setas).

a)

c)

b)