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CASAS DO SERTÃO MARISTELA RIBEIRO

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Catálogo do projeto Casas do Sertão, da artista visual Maristela Ribeiro. Realizado em conjunto com a Comunidade de Morrinhos, no município de Feira de Santana - BA e aprovado através de edital público pelo Programa Nacional de Cultura do Banco do Nordeste do Brasil — BNB / BNDES.

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CASAS DO SERTÃOM A R I S T E L A R I B E I R O

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CASAS DO SERTÃOM A R I S T E L A R I B E I R O

Projeto aprovado através de edital público pelo Programa Nacional de Cultura do Banco do Nordeste do Brasil — BNB / BNDES e adotado pelo PPGAV — EBA / UFBA como parte integrante do programa de doutorado da artista Maristela Ribeiro.

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“... O sertão está em toda parte.”

Guimarães Rosa

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CASAS DO SERTÃOM A R I S T E L A R I B E I R O

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AGRADECIMENTOS

Na realização deste trabalho, contei com o apoio de muitas pessoas, o que torna difícil enumerá-las sem correr o risco de cometer alguma injustiça pelo esquecimento. Mesmo assim, considero importante expressar meus agradecimentos àqueles que foram totalmente indispensáveis ao longo da trajetória desta pesquisa.

Agradeço especialmente ao meu marido, Heitor, pelo apoio irrestrito e por ter assumido a produção execu-tiva com impressionante dedicação e entusiasmo contagiante, mesmo sem ter tido experiência anterior nessa área. Serei sempre grata por sua generosidade e pelo seu empenho em superar as dificuldades encontradas.

Do mesmo modo, agradeço a Edson Machado, pela sensibilidade, envolvimento e por ter colaborado de diversas formas, inclusive com preciosas sugestões.

Meus agradecimentos a toda a equipe do projeto “Casas do Sertão”, pela confiança demonstrada e pela responsabilidade na condução deste trabalho. Foi um prazer tê-los como parceiros.

Ao povo de Morrinhos, agradeço a hospitalidade e o acolhimento com que fomos recebidos na comu-nidade, permitindo a nossa aproximação do seu espaço, muitas vezes a presença na intimidade do lar, interferindo no seu cotidiano. Esse processo possibilitou a comprovação de que, através da arte e de ações artísticas, é possível aproximar pessoas com interesses distintos e experiências diversas com o objetivo de colaborar para um mundo melhor. Juntos plantamos uma semente. Espero que esta aproveite as chuvas do período de São José e que germine e cresça forte e saudável. Que a esperança e a prosperidade estejam sempre com vocês.

Meus agradecimentos especiais a todos que cederam suas casas para que nestas fossem feitas as interven-ções artísticas previstas no projeto. Agradeço à direção da Escola Antônio Carneiro por todo o apoio físico para a realização das oficinas e pelo espaço cedido para o painel de mosaico.

Aos artistas do Grupo GEMA, pela possibilidade de interlocução e pelo rico diálogo proporcionado nas reuniões de estudo em arte contemporânea.

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Serei eternamente grata ao artista e curador Eriel Araújo por ter “derrubado a minha casa” e me aberto as portas para outra, mais forte, melhor e mais ampla.

A minha gratidão ao mestre, artista e amigo Juraci Dórea por sempre disponibilizar o seu precioso tempo para ouvir os meus questionamentos e dúvidas, com atenção e delicadeza, contribuindo de forma signifi-cativa para a minha formação como artista.

À George Lima pela generosidade em participar voluntariamente da Oficina de Fotografia dando a sua contribuição como fotógrafo e artista.

Agradeço a minha orientadora Graça Ramos por aceitar os meus voos e me permitir a liberdade indispen-sável para o processo de criação.

Às professoras Viga Gordilho e Maria Hermínia e aos colegas do doutorado em Artes Visuais do PPGAV da Escola de Belas Artes da UFBA, pelos diálogos e reflexões acerca do pensamento contemporâneo.

Aproveito para agradecer ao designer Thiago Magri pela paciência em ir e vir inúmeras vezes, tentando compreender, para dar forma às minhas idéias.

Registro o meu reconhecimento a Dea Federico por ter contribuído, com seu jeito tranquilo e confiante, para que se estabelecessem as condições necessárias para a execução do projeto “Casas do Sertão”.

Agradeço por fim aos responsáveis pelo Programa Nacional de Cultura do BNB e BNDES por ter nos propor-cionado as condições financeiras e materiais para a realização de um sonho que se transformou em realidade. Aí está!

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CRÉDITO DAS IMAGENS

Capa Maristela RibeiroOficina de MosaicoHeitor Ribeiro e Maristela Ribeiro Oficina de Fotografia; Cenas do CotidianoMaristela Ribeiro e Edson MachadoI Sessão de Cinema; Intervenção Artística; Exposição a Céu AbertoEdson MachadoArte da ContracapaThiago Magri

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Dedico a Heitor o projeto “Casas do Sertão”

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SUMÁRIO

O CÉU ABERTO, O SERTÃO, A CASA E UM PONTO DE VISTA 12Alejandra Muñoz

ESSA MOBILIDADE QUE TRANSFORMA 17Conversa com Marcelo Rezende

OFICINA DE MOSAICO 21

OFICINA DE FOTOGRAFIA 26

I SESSÃO DE CINEMA DE MORRINHOS 32

CENAS DO COTIDIANO DE MORRINHOS 37

INTERVENÇÕES ARTÍSTICAS 41

EXPOSIÇÃO A CÉU ABERTO 62

PORTÕES E JANELAS: ATRAVESSANDO CASAS DO SERTÃO 64Larissa Min

CASAS DO SERTÃO 66Entrevista com Lígia Motta

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MUNICÍPIO DE FEIRA DE SANTANADivisão Distrital

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MORRINHOS

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O CÉU ABERTO, O SERTÃO, A CASA E UM PONTO DE VISTA

Alejandra Muñoz1

Uma das linhas de investigação da arte contemporânea é a realização de propostas que envolvem ações com comunidades em que a ideia de arte tem escassa relevância ou nula influência na vida das pessoas. É nessa perspectiva que Maristela Ribeiro tem desenvolvido vários dos seus trabalhos, muitas vezes asso-ciando instalações e fotografia como linguagens expressivas, mediante operações de manipulação de imagem, deslocamento de referências e composições colaborativas.

O atual projeto “Casas do Sertão” abrange uma série de ações cujo propósito é provocar a percepção dos moradores de Morrinhos, povoado de distrito de Jaguara no município de Feira de Santana, Bahia. A proposta foi aprovada pelo Programa Nacional de Cultura do Banco do Nordeste (BNB), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e é parte do projeto de Doutorado da artista no Programa de Pós-Gradação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia (PPGAV/UFBA).

Um dos aspectos mais fortes de Morrinhos e da comunidade local, que não chega a 400 habitantes, é a escala das relações coletivas. A pequena população tem como lazer principal a televisão em casa. O único equipamento coletivo existente é a Escola Municipal Antônio Carneiro. Não há teatro, não há cinema, não há estádio, não há auditório e, muito menos, museu, galeria, clube ou outro equipamento esportivo – aliás, como em mais de 80% dos municípios brasileiros. Os acontecimentos de congregação coletiva de Morrinhos acontecem na única praça do povoado, que carece de mobiliário urbano adequa-do ou versátil para usos recreativos (palco móvel, coreto, bancos etc).

Em contato com a comunidade, ao longo do ano de 2013, Maristela e sua equipe desenvolveram estratégias de aproximação e convivência por meio de oficinas e atividades coletivas. Entre maio e julho, aconteceu a Oficina de Mosaico, em que crianças, jovens e adultos realizaram um painel de mosaico de quase 45m² na parede lateral da Escola Municipal Antônio Carneiro. Na primavera, foi realizada uma estratégia educativa de sensibilização principalmente dirigida aos jovens, a Oficina de Fotografia, com a participação dos fotó-grafos Edson Machado e George Lima — cabe salientar que a equipe não encontrou nenhuma fotografia impressa na comunidade, apenas imagens digitais recentes capturadas por poucos aparelhos celulares habilitados no povoado. Em paralelo, foi produzido um Audiovisual (em processo de finalização) com o objetivo inicial de registrar as ações do projeto, mas que se foi transformando em filme de curta-metragem — criado pelos documentaristas Johny Guimarães e Volney Menezes — sobre Morrinhos, seus artefatos e

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traços culturais. Finalmente, como desdobramento das atividades anteriores, em janeiro de 2014 começou a ser exibida a Sessão de Cinema, com participação da maioria da comunidade (cerca de 250 pessoas) reunida na pequena praça local onde foram projetadas as fotografias e os vídeos registrados nas oficinas. Assim, todas essas atividades foram instâncias de acercamento e conhecimento essenciais para a artista pensar o tipo de intervenção que faria em um segundo momento: a exposição “Casas do sertão a céu aberto sob um ponto de vista”.

A ideia inicial do projeto era fazer uma intervenção na fachada de algumas casas que, com baixo inves-timento financeiro — através de técnicas como pintura, adesivos, stencils ou aplicações de relevo, entre outras — levasse a Morrinhos uma melhoria construtiva, um elemento de afirmação cultural e de reforço da autoestima dos proprietários dos imóveis. Porém, por parte dos moradores houve o temor de que tal intervenção, modestíssima em termos materiais, mas significativa em termos simbólicos, pudesse compro-meter um futuro investimento do governo federal no povoado através do programa de habitação popular “Minha Casa Minha Vida”. A possibilidade de que uma alteração simples da fachada, mediante interven-ção artística, pudesse criar a ideia equivocada de “prosperidade” dos moradores das precárias moradias foi suficiente motivo de apreensão dos moradores e de reversão da perspectiva inicial da artista. O interior das modestas casas continuaria nas mesmas condições de precariedade de abrigo elementar, isto é, sem saneamento básico, sem água encanada, sem qualidade construtiva, e com paredes de adobe e chão de terra batida. As casas seriam afetadas menos na sua materialidade e mais no aspecto significativo como meio de acesso dos moradores ao que, para os burocratas de plantão dos projetos de gabinete das instâncias federais, talvez, nunca seria admissível: a arte. Entendo que só esse fato já constitui um gesto de grande potência artística, isto é, a reação ao direito à Arte em nome de uma expectativa de suposto recurso que, possivelmente, não mudaria a situação da maior parte das pessoas do povoado.

Portanto, a relação entre a imagem da fachada e o conteúdo real das casas já contém uma semente poderosa para uma reflexão que me parece importante e que conjuga pelo menos três níveis inter-rela-cionados. Em primeiro lugar, a entrelinha de um modus operandi tácito dos poderes públicos a partir da imposição de alguma coisa (no caso, um conjunto de moradias) e não mediante o diálogo com a popu-lação sobre os tipos de soluções para as carências (no caso, um conjunto associado a um equipamento cultural simples que reforce os laços de vizinhança e comunidade). Um programa como o “Minha Casa Minha Vida” parte da ideia de que habitação popular é apenas construção, e não arquitetura, portanto, não surpreende que os conjuntos sejam exatamente iguais em qualquer lugar, isto é, a ubiquidade como uma condição essencial da ação federal e, consequentemente, uma cegueira oficial proposital diante das especificidades das comunidades às quais supostamente se estão encaminhando as ações. Em segundo lugar, o pressuposto inconsciente, por parte dos moradores, de que a condição de precariedade crôni-ca é a única perspectiva de reivindicação coletiva. Nesse entendimento, o direito de cidadania inexiste enquanto se afirma a ideia correlata de que os valores simbólicos são menos importantes que os valores materiais. Assim, pareceria que almejar algo mais que um teto não estaria nos horizontes das pessoas de Morrinhos. Por último, pode-se constatar a relevância da imagem na formação do juízo de valor, isto é, o poder da imagem enquanto aparência, em detrimento de qualquer prospecção de conteúdo em uma situação como esta. Para os moradores do povoado como para a maioria das pessoas, a fachada é a imagem da casa e da condição de vida do morador, então, além do exposto antes na perspectiva no

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plano federal sobre o “risco” das aparências, no plano pessoal, o que acontecesse na fachada das casas com a intervenção artística já seria uma ação de reconhecimento de um valor que, para eles, não havia antes. Nesse contexto, a artista passa a investigar uma possível lógica de desaparecimento da materialida-de das fachadas, de negação do interior invisível (ou que parece não se querer ver!) e de deslocamento da paisagem existente num processo de autorreferência. De modo mais abrangente, a intervenção expõe delicadamente a ferida: o desaparecimento da autoestima, a negação do direito à cidadania, a mudan-ça pelo deslocamento do “ponto de vista” cotidiano. A proposta, então, abrange dez casas nas quais a fachada existente é apenas pintada de branco e utilizada como suporte para uma fotografia em escala real instalada por período de algumas horas ou poucos dias. Quatro elementos serão fundamentais para a composição da artista: o céu aberto como espaço expositivo, o sertão como lugar, a casa como problema e um ponto de vista como estratégia.

A proposta se apropria da lógica do outdoor subvertendo a função publicitária para encaminhar outro tipo de mensagem: mediante a simples instalação de uma foto da paisagem local desde um ponto de referência conhecido por todos, mas diferente da perspectiva habitual do local, a fachada como imagem desaparece, junto com toda a percepção da casa, enquanto outra imagem cria uma ilusão de ponto de fuga, de acesso pelo olhar para outra profundidade que não é mais a da modesta moradia. É a dimensão da natureza, mesmo antropizada, prevalecendo às acanhadas perspectivas construtivas que se projetam para aquela região. É a perenidade do lugar transcendendo ao provisório das ações. É o valor daquela profundidade visual que a artista revela indo além das acanhadas perspectivas de quem pode, de fato, fazer muitíssimo mais por aquelas pessoas, mas que, em nome dos conchavos partidários de turno, nunca farão nada a não ser por interesse eleitoreiro sazonal. Assim, a intervenção torna-se um exercício de adver-tência sobre a dignidade daquele lugar, mesmo nas suas limitações e carências, em suas expectativas e em suas projeções de futuridade.

As imagens extraem sua veemência desse deslocamento de lugar para outro lugar subvertido. O exercício de uma camada retiniana (a foto) para uma camada de acolhimento (a fachada). Assim, a foto exposta na escala da própria captura e no mesmo contexto que foi tomada adquire uma dimensão metalinguísti-ca: a paisagem aberta que se transforma em outra paisagem aberta. O instante da captura que reforça sua fugacidade na nova situação provisória. A ilusão de subversão que não se consuma: os precários inte-riores que ninguém vê invisibilizados pelos horizontes que ninguém se pergunta aonde conduzem. Maristela cria antiespelhos para um povoado onde não há nenhuma fotografia analógica impressa, onde apenas a virtualidade parece estar chegando a conta-gotas, onde a maioria tem como único registro de si a foto da carteira de identidade.

O impulso para a criação artística não tem de ser estético. Pode ser visceral e, em alguns casos, é urgente que assim seja! Mas a arte é uma forma de conhecimento e pode ser uma plataforma de transformação de contextos, sejam ideológicos, materiais ou simbólicos. Em Morrinhos, a arte de Maristela não é materiali-dade, mas uma alternativa ante o embrutecimento predominante.

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1 Alejandra Hernández Muñoz é arquiteta, mestre em Desenho Urbano e doutora em Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAU/UFBA). É professora permanente de História da Arte da Escola de Belas Artes (EBA/UFBA). Atua como crítica e curadora, participa de júris e comitês de seleção artística. Integrou a equipe curatorial do Programa Rumos Artes Visuais 2011-2013 do Instituto Itaú Cultural (São Paulo) e atualmente é curadora-adjunta da 3ª Bienal da Bahia.

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ESSA MOBILIDADE QUE TRANSFORMAConversa com Marcelo Rezende1

Marcelo Rezende — Qual a primeira casa que aparece em sua memória como um elemento emocional, parte de sua personalidade?

Maristela Ribeiro — A casa da minha avó Mari em Ipirá, terra natal da minha mãe.

M.R — Você poderia descrever as razões, o que havia nesse espaço que ajudou a compor sua sensibilida-de? Estamos falando aqui de questões espaciais ou emocionais?

M.Rro — As duas se misturam. A luminosidade da casa, o aspecto arejado e fresco, o piso de cerâmica que depois de lavado exalava um cheiro agradável de limpeza, o fogão à lenha que era utilizado de vez em quando para comidas especiais, a água retirada do pote e servida em moringa, a brisa das árvores da praça acolhedora e sombreada localizada em frente a casa, o clima festivo dos encontros familiares nas férias...

M.R — Em quais lugares você já morou? E de que modo isso influenciou o modo como você imagina ser uma moradia e uma comunidade?

M.Rro — Feira de Santana, Itaberaba, Salvador, Ruy Barbosa, Fazenda Bonfim (próximo a Itaberaba), Lavras-MG, Instituto Sacatar... A diversidade das minhas moradas talvez tenha contribuído para a construção imaginária de meios para a criação de um lar. A moradia para mim tem estreita relação com um lar. Uma comunidade composta de moradias seria um lugar com vizinhança onde se estabelecem trocas e rela-ções. Forma-se uma constelação com os referenciais de cada um.

M.R — Você fala aqui sobre comunidade, algo muito presente em seu projeto. Poderia descrever de que modo construiu uma relação com os moradores das casas que vemos em sua pesquisa?

M.Rro — Procurei estabelecer uma relação de confiança, algo que seria imprescindível para a realização de todo o projeto. Utilizei cuidadosamente estratégias de aproximação por meio de oficinas de arte e de eventos artísticos nos quais busquei levantar, a partir das narrativas dos próprios moradores, conteúdos que compõem sua história, seus mitos, suas lendas e o que há de mais particular e que caracteriza essa comunidade. Para esta finalidade, utilizei uma oficina de mosaico, com o objetivo de proporcionar um aprendizado que, além da experiência artística, fosse também capaz de se reverter posteriormente em renda. Ao perceber que não havia imagens impressas das pessoas e do lugar, ofereci uma oficina de foto-grafia com a participação de um fotógrafo profissional, onde juntos formamos um banco de dados com

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mais de 8 mil fotos. Esse arquivo foi apresentado em duas ocasiões à comunidade em projeção na única praça pública, com o título “Cinema de Morrinhos”. Numa era pós-fotográfica foi uma experiência singular observar essas pessoas admiradas em ver suas próprias imagens ali refletidas. Pude contar também, na reali-zação do projeto, com a participação de outros artistas, além de uma socióloga e um médico veterinário, que são “extensionistas” rurais experientes e conhecem de perto as dificuldades enfrentadas na área rural.

M.R — O quanto esse trabalho, a partir de uma experiência comunitária, é também parte do projeto?

M.Rro — Acredito que o trabalho é o conjunto. Sem essas pessoas e esse lugar o trabalho não existiria. A síntese só pode ser pensada a partir das relações estabelecidas. O trabalho em si extrapola completamen-te os limites das fotos ou imagens, o trabalho são as pessoas, as relações que foram constituídas ao longo desse período, é o contato, o aperto de mão, o clima, o ambiente, a luz intensa do sertão, o calor escal-dante, a poeira, o silêncio, o canto dos pássaros, a melodia formada pela brisa e o farfalhar das árvores, a alegria ruidosa das crianças soltas, brincando, empinando pipa, jogando bola; é a lata d’água na cabeça de mulheres que vão e voltam trazendo água da fonte... A iconografia se completa a partir da minha inte-ração com as pessoas.

M.R — O que significa para você ocupar emocionalmente um espaço?

M.Rro — Significa criar laços para torná-lo familiar. Em outras palavras, criar identidade. Ver refletido no espaço a minha cara.

M.R — E de que forma esse espaço se reflete na cara do outro, a partir da experiência criada por você?

M.Rro — Morrinhos é uma comunidade que demonstra a decadência do modelo tradicional da pecuária explorada no seu entorno. Foi ampliada a partir da chegada de muitos trabalhadores demitidos e expulsos das grandes fazendas ao redor, pela nova geração de proprietários que temia os encargos com as novas leis trabalhistas. Muitos tiveram os seus direitos negados de forma total ou parcial.

Tendo contato com a realidade local, pude observar de perto a condição de vida de algumas pessoas que sofreram e ainda sofrem com o resultado dessa migração imposta. Apesar da proximidade com Feira de Santana, a segunda maior cidade do interior nordestino, falta tudo em Morrinhos. Faltam os meios de produção, entre estes, terra e conhecimento, além da assistência médica, saneamento básico, segurança, e, sobretudo autoestima.

Busquei com as intervenções artísticas produzir uma alteração na percepção do outro, para que, a partir do espaço real e do espaço concebido, por uma fração de segundo que fosse, pudesse abrir a possibi-lidade para uma reflexão. É uma metáfora para falar do esquecimento, da ausência, da inexistência de pessoas pobres, para os poderes constituídos. É uma metáfora que pode lançar a discussão sobre o modo de vida de uma população necessitada e completamente distante de tudo que uma sociedade moderna produz para o benefício de todos e que lhe são negados pelo sistema vigente.

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M.R — Você acredita que seu trabalho apenas documenta essa situação social ou é também capaz de interferir?

M.Rro — Sou o resultado de tudo que li, ouvi, assisti e apreciei esteticamente, e certamente tudo isso influenciou consideravelmente o meu modo de ser. Acredito perfeitamente no poder da arte e na sua capacidade de transformação, senão do mundo, pelo menos de uma parte da vida das pessoas. Mesmo que seja uma pequena alteração, mas a arte tem esse potencial e essa aptidão de tirar a pessoa do lugar em que se encontra, e é exatamente essa mobilidade que transforma, modifica, altera. Emocionalmente falando, na maioria das vezes o indivíduo não consegue mais voltar para o mesmo ponto em que estava. Já vi isso na prática.

1 Marcelo Rezende é diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM/BA).

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“... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando.”

Guimarães Rosa

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OFICINA DE MOSAICOEntre maio e julho de 2013, sob a coordenação de Maristela Ribeiro, crianças, jovens e adultos de Morrinhos trabalharam em cooperação para construir o painel de mosaico que agora ilustra a parede lateral da Escola Municipal Antônio Carneiro, única da localidade.

Na apresentação do projeto e da equipe de trabalho à comunidade, a artista sugeriu a criação de um espaço de intercâmbio de ideias e troca de experiências, através da prática coletiva. Esta estratégia visa-va ao aprendizado de técnicas artísticas em oficinas, de modo a estabelecer um contexto em que as pessoas pudessem encontrar meios para criar e construir elementos nas suas próprias casas, depois do projeto realizado, contribuindo inclusive para a geração de trabalho e renda de forma sustentável.

Depois de instruir e expor a técnica do mosaico, Maristela sistematizou o trabalho buscando dar asas ao imaginário do grupo, instigando os moradores a produzir desenhos que tivessem significa- dos relacionados com aquele espaço. Destes, alguns foram selecionados e redimensionados para figurar no painel, que se tornou um dos pontos atrativos de Morrinhos, uma vez que reúne o traba- lho e a cooperação de muitos moradores.

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OFICINA DE FOTOGRAFIAA segunda etapa do projeto teve como tática de sensibilização a realização de uma oficina de fotografia para os jovens de Morrinhos, ministrada pelo fotógrafo Edson Machado durante os meses de outubro e novembro de 2013. A abertura da oficina teve a participação de George Lima, artista integrante do GEMA, grupo de pesquisa em arte contemporânea.

Além de levar as instruções básicas sobre a fotografia, a oficina serviu para contribuir na produção da memória visual da comunidade. Através do projeto foram oferecidas, a 30 crianças e jovens, câmeras foto-gráficas descartáveis com 28 poses cada, para que elas pudessem fotografar a comunidade de Morrinhos sob sua perspectiva.

É importante salientar que até aquele momento não tinham sido encontradas fotografias impressas no povoado.

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Estas são algumas das fotografias tiradas pelos alunos durante a oficina

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I SESSÃO DE CINEMA DE MORRINHOSEm janeiro de 2014, contando com a presença expressiva de cerca de 250 moradores em praça pública, ocorreu a I Sessão de Cinema de Morrinhos. Neste evento, foi exibido à comunidade um registro audiovisual (30’) contendo imagens de Morrinhos e de seus moradores, capturadas durante todas as etapas do projeto “Casas do Sertão” por Maristela Ribeiro, bem como algumas fotografias da comunidade produzidas pelo fotógrafo Edson Machado.

Além da exibição desse vídeo, houve também a mostra de um curta (5’) produzido pelos documentaristas baianos Johnny Guimarães e Volney Menezes e a do video-art As Estrelas de Morrinhos, realizado pela artis-ta canadense Karen Ostrom.

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Cenas do cotidiano de Morrinhos

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“Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo!”

Guimarães Rosa

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INTERVENÇÕES ARTÍSTICAS

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Casa de Samba

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Casa de dona Piche

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Casa de Dinalva

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Casa de Nuna

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Casa de dona Luiza

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Casa de Renusa

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Casa de Joana

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Casa de Chico do Bar

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Casa de seu João

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Casa de seu Renato

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EXPOSIÇÃO A CÉU ABERTONa antevéspera do dia de São José, Morrinhos recebeu, com muita expectativa, visitantes vindos de várias partes para um passeio no povoado acompanhados pela artista, que os levou a fazer o percurso das intervenções de sua autoria realizadas nas fachadas das casas da vila.

Em seguida, houve a apresentação em praça pública dos músicos Tito Pereira, ao piano, e Rogerio Ferrer no acordeom. O evento foi finalizado com a projeção do filme Morrinhos, criado pelos documentaristas Johny Guimarães e Volney Menezes, cujo teor lança luzes sobre a comunidade, com seus artefatos e traços culturais.

Muitos moradores passaram a madrugada e o dia inteiro na preparação do caruru completo que foi servido no final do evento a cerca de 300 pessoas, com direito a samba de roda — manifestação tradicional na região — ao som das batidas do pandeiro e tambor e das canções em uníssono.

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PORTÕES E JANELAS: ATRAVESSANDO CASAS DO SERTÃO

Larissa Min1

Em uma tarde quente de outubro, a artista-pesquisadora Maristela Ribeiro em companhia do seu marido Heitor se dirigem a uma comunidade rural através de uma estrada vazia do interior — a terra parece uma casca fina em cima de um manto de rocha. Geralmente, no meio do verão essa terra arde queimada, cor de cinza, mas nesse dia se vê da janela do carro que ela se abre nua, rala, surpreendentemente verde. O inverno fora úmido — atípico, em uma terra consumida por ciclos periódicos de seca.

Na condição de uma artista residente do Instituto Sacatar, Maristela Ribeiro me leva para visitar Morrinhos, um pequeno povoado no meio de fazendas da caatinga. Existem 90 famílias que vivem em um pedaço de terra quadrado de pequenas casas, uma adjacente à outra. Algumas pintadas, outras nuas, mas em nenhuma delas se encontram um jardim ou quintal. O povo de Morrinhos não possui terra – o pouco que cultivam pertence aos proprietários das grandes fazendas agrícolas privadas do entorno, e, a alguns centí-metros do fundo da casa, cercas de arame farpado inexoravelmente se erguem, demarcando a fronteira entre o povo e as terras do entorno. Dentro de linhas visíveis e invisíveis, eles são, portanto, segregados, excluídos da participação no manejo de uma terra que — mesmo árida — nunca podem ocupar totalmen-te ou chamar de sua.

É neste contexto que o projeto “Casas do Sertão” se manifesta de forma mais surpreendente. Em sua confor-mação final, é uma pausa: não obstante as casas feitas de material simples, em decaimento, sob a pressão de exíguo espaço à disposição da comunidade, atada por um legado histórico colonial, a intervenção de Maristela os reconfigura. Sobrepondo as fachadas humildes com imagens deliberadamente escolhidas, as casas são transformadas em janelas que se abrem às vastas paisagens ao redor, esculpindo vias nos espa-ços de sonhos e anseios de que esses moradores foram despojados. Podem as paredes de uma humilde casa dissolver-se em novos caminhos, levando-nos a novas perspectivas que redefinem o sentido de ser e de pertencer, individual e comunitariamente? Através da arte, esses espaços físicos tornam-se locais onde os espaços cognitivos e emocionais são redesenhados e a imaginação se torna mais uma vez possível. Como é que o nosso espaço físico define nosso ser, nosso sentido de ser em conexão com esse espaço – e será que esse relacionamento pode ser transformado?

Talvez a Rua das Flores em Morrinhos seja assim chamada não apenas como uma ironia, mas como uma afirmação de uma simples vontade: a tentativa de redefinir a relação de seres humanos com seu lugar, e

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transformá-lo em seu lar. Apesar de não terem jardins ou quintais, moradores cavam pequenos buraquinhos em frente de suas casas, onde plantas minúsculas formam raízes, brotam, e finalmente florescem embaixo de varais.

Naquela tarde quente, enquanto continuávamos nossa caminhada, pessoas saíram de suas casas para nos receber, entrelaçaram seus braços ao redor de Maristela e nos seguiram, enquanto meninos orbitavam em torno de nós em suas bicicletas enferrujadas mal escondendo sua cinética alegria. E assim chegamos em frente da casa de Dona Luíza — a porta se abrindo aos seus três quartos pequenos, escuros, sem janelas. Aguardando em sua porta, um braço embalando o outro sob o cotovelo, Dona Luíza sorri e fica ao lado acolhendo-nos. Enquanto nós ficamos na sala da frente, onde seus netos se acumulam num sofá puído, ela hesita por apenas um momento antes de tomar a decisão de permitir a nossa entrada no resto de sua casa: um quarto minúsculo que funciona como sala, outro no meio com uma cama de solteiro, e um último onde se encontram um fogo de lenha e baldes de água marrom que são usados para lavar e cozinhar. Enquanto fala conosco naquele último quarto, ela nos dá vislumbres de sua pobreza e humildade, da vulnerabilidade do seu estado, e de sua confiança e coragem em permitir que sua casa e ela mesma sejam vistas. E nesse gesto de generosidade total, ela nos dá não só um vislumbre de sua vida, mas consegue criar um verdadei-ro sentido de “casa”. Mesmo que paredes de terra de sua casa sem janelas sejam humildes, por meio de suas ações ela também abre espaços que transformam as paredes em um elemento capaz de transcender o espaço físico em direção a um sentido emocional de lar.

1 Larissa Min é uma escritora nascida em Curitiba que mora nos EUA. Atualmente ela se encontra no Brasil para realizar dois projetos: Breaking English, um relato não-ficcional da dupla migração de sua família (da Coréia do Sul para o Brasil e mais tarde para os EUA) como uma forma de analisar as experiências de migração global, deslocamento e lembrança; e Wondering Gondwana, uma narrativa que combina dois dos últimos lugares selvagens do mundo - a Antártida e a Amazônia - para falar sobre o desenvolvimento, conservação, justiça social e mudança climática global. Em apoio a esses projetos ela foi premiada com uma bolsa Fulbright do governo americano, bolsas-subsídios da Fundação Hedgebrook em Washington e do Instituto SACATAR na Bahia, e premiada pela Fundação Nacional de Ciência dos EUA para viajar à Antártida por 11 semanas como uma artista-escritora. Saiba mais em www.breakingenglish.org.

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CASAS DO SERTÃOEntrevista com Lígia Motta1

Lígia Motta — O que lhe levou a criar o projeto “Casas do Sertão”?

Maristela Ribeiro — Em 2007, durante uma residência artística no Instituto Sacatar, desenvolvi um projeto denominado “Territórios Invisíveis” cujo tema abordava a “invisibilidade social”. No decorrer do trabalho, entrevistei várias pessoas que exerciam serviços diversos e que não eram reconhecidas nem valorizadas socialmente pelo seu trabalho. Ali encontrei uma coisa interessante: durante uma entrevista com uma gari de Itaparica, me deparei com uma contradição instigante em que ela comparava a casa com o corpo. “A minha casa é simples como eu sou, mas não se parece comigo porque eu queria que ela fosse melhor.” No decorrer dessa fala, a casa e o corpo apareciam várias vezes como uma coisa só. Naquele episódio, observei que o espaço arquitetônico aparecia como uma extensão do sujeito, que ora refletia, ora introje-tava. Acho que foi a partir dessa provocação...

O tema da moradia passou a ser para mim objeto de variados estudos e pesquisas em diferentes aspectos e vertentes. Contudo, me pareceu que qualquer que fosse a abordagem adotada seria convergente a ideia de que a casa é lugar de revelação e constituição da vida. Sinônimo de abrigo, ambiente de repou-so, mais que um espaço físico, a casa é o lugar de interioridade, que garante a distinção entre o público e o privado. Ela possibilita ao homem criar raízes na vida e se constitui como elemento de estabilidade. Sem esse abrigo, o homem torna-se errante.

L.M — Por que desenvolver esse trabalho em uma área rural?

M.R — Em alguns momentos, necessito de quietude em meio às pessoas simples, longe dos ruídos urbanos e da seara contemporânea.

L.M — Por que o interesse por questões de ordem social?

M.R — Nasci em Feira de Santana em uma década (de 1960) marcada por conflitos sociais, tensões políti-cas e preocupações com a paz mundial e os ideais de liberdade. Em meio às ditaduras militares daquele período, surgiram os movimentos da contracultura, como os hippies, o feminismo e a revolução sexual. Desde muito cedo acompanhei os movimentos de contestação política, social e cultural, das denomina-das “minorias” que lutavam pelos seus direitos. Os anos 60 foram revolucionários nos costumes, na moda, nas artes. Acho que recebi a influência desse período de renovação do comportamento, de uma geração

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que não se conformava com as normas vigentes e contestava os parâmetros estabelecidos.

Por outro lado, sempre me impressionou a forte pobreza existente no estado da Bahia, principalmente na Região Semiárida e no Agreste, onde está localizado o município de Feira de Santana. A gestão das políti-cas públicas que se estabeleceu nos estados do Nordeste brasileiro se manteve ao longo do tempo sob o domínio de uma pequena parcela de atores, em detrimento da socialização da população mais numerosa e necessitada e do seu acesso aos direitos.

Parece-me relevante, como artista, observar e questionar esta realidade na tentativa de expressá-la de outro modo. Acredito na arte como instrumento de intervenção cultural com amplo poder transformador.

L.M — Por que Morrinhos?

M.R — Imagino que há de se encontrar no caminho a resposta para a escolha de um lugar. Ainda estou no caminho... não sei. Mas quando passei pela primeira vez em Morrinhos me senti atraída pelo lugar. Decidi que faria um trabalho artístico por ali. Escrevi o projeto “Casas do Sertão” em pouquíssimo tempo e o enca-minhei para participar de uma concorrência nacional através de edital público.

O projeto foi aprovado pelo Programa Nacional de Cultura do Banco do Nordeste (BNB), copatrocinado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e em março de 2013 dei início à construção poética do projeto. Pouco tempo depois, esse mesmo projeto foi aprovado pelo PPGAV2 da Universidade Federal da Bahia como parte integrante do meu programa de doutorado3.

L.M — Qual era o objetivo do projeto?

M.R — Buscando a abertura de diálogo entre as artes visuais e outras áreas do conhecimento, propus desenvolver, através desse projeto, uma série de ações com a finalidade de provocar a percepção dos indivíduos desse pequeno povoado. Visava favorecer a ampliação do repertório estético com aproxima-ções que tangenciam questões de cunho social e que estimulam a reflexão sobre a vida e o cotidiano.

Como eu disse antes, os temas que contornam questões de ordem social me importam. Foi assim que concebi Lata D’Água na Cabeça, Fendas e Frestas, Territórios Invisíveis, Os Modernos, e tantos outros traba-lhos...

O ponto culminante do projeto seria realizar intervenções artísticas nas fachadas das casas que seriam sele-cionadas, tentando conferir novos significados a partir do conjunto de caracteres que fossem identificados em Morrinhos.

L.M — Quais as ações que foram realizadas antes da Intervenção Artística nas fachadas das casas?

M.R — Propus, como estratégia de aproximação, realizar oficinas de arte e alguns eventos artísticos. Na apresentação do projeto e da equipe de trabalho4 à Comunidade, sugeri a criação de um espaço de

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intercâmbio de ideias e troca de experiências, através da prática coletiva. Esta estratégia visava ao aprendizado de uma técnica artística, de modo a estabelecer um contexto em que as pessoas pudessem encontrar meios para criar e construir elementos nas suas próprias casas depois do projeto realizado, contri-buindo inclusive para a geração de trabalho e renda de forma sustentável.

Optaram pela Oficina de Mosaico, que foi realizada nos meses de maio, junho e julho com crianças, jovens e adultos. Nessa oficina, além da realização do painel de mosaico de aproximadamente 45 m2 na parede lateral da Escola Municipal Antônio Carneiro, foi dado início às pesquisas de campo e ao levantamento e catalogação dos dados com possibilidade de utilização posterior.

A Oficina de Fotografia, decorrente do interesse manifestado pelos jovens estudantes de Morrinhos, não constava no projeto, porém foi concebida, com a participação dos fotógrafos Edson Machado e George Lima, como uma estratégia educativa de sensibilização e coordenada por Edson durante os meses de outubro e novembro. É importante salientar que não havia fotografias impressas na comunidade. Só encon-tramos imagens digitais capturadas recentemente pelos poucos aparelhos celulares habilitados.

A Sessão de Cinema de Morrinhos, desdobramento das atividades anteriores, começou a ser exibida em janeiro de 2014, no início de uma noite agradável de verão, com céu estrelado e uma brisa afável. Esse evento também extrapolou a programação, entretanto teve a participação da maioria da comunidade reunida em praça pública (aproximadamente 250 pessoas), onde foram projetadas as fotografias e os víde-os com a participação dos moradores que foram registrados durante todo o percurso do projeto.

A proposta para a criação de um audiovisual tinha como objetivo fazer um registro das ações decorrentes do projeto. Todavia, o conteúdo se ampliou durante o processo e foi produzido um filme de curta-metragem, criado pelos documentaristas Johny Guimarães e Volney Menezes, cujo teor lança luzes sobre Morrinhos, com seus artefatos e traços culturais.

L.M — Qual a ideia para a Intervenção Artística nas fachadas das casas?

M.R — A ideia central era buscar uma aproximação com o lugar para poder extrair dali, na convivência com o espírito local, uma síntese que fosse o resultado da reflexão sobre a condição de vida daque-las pessoas. Procurava traçar metaforicamente um paralelo entre essa condição e as linguagens visuais contemporâneas.

Em resumo me propus a tentar alterar a percepção das pessoas. As casas deveriam desaparecer. Sumir. Sair daquele cenário. Reapareceriam depois de outra forma. Com outra aparência. Sobre a fachada das casas seriam inseridas imagens próprias da região, de forma que, à primeira vista, causasse a impressão de ausência. Essa alteração de consciência do observador me interessou intensamente. É uma metáfora para o desaparecimento das pessoas.

Foi em comum acordo com os moradores de Morrinhos que dei início aos preparativos para transformar a aparência das casas que passariam pela intervenção, o que poderia durar uma hora, um dia, um mês, um

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ano ou mais... Dependendo apenas do interesse de cada um dos envolvidos, pois as imagens poderiam ser facilmente removidas.

É importante ressaltar que, durante a realização da primeira etapa do projeto, os moradores foram cadas-trados no programa de governo “Minha Casa Minha Vida Rural”. Esse fato inviabilizava qualquer ação de caráter mais permanente, portanto optei pela realização de um trabalho com características transitórias, de cunho efêmero.

L.M — Por que escolheu trabalhar com o que chamou de “imagens imprevistas deslocadas”?

M.R — Foi uma forma que encontrei de abrir uma questão. Escolhi a paisagem local como referência. Busquei fazer o deslocamento de imagens que fazem parte do repertório visual local.

Talvez o contato com Dona Luíza tenha favorecido o aparecimento da síntese que eu buscava. Rezadeira antiga, trabalhadora rural aposentada, de jeito doce e trato simples, Dona Luíza, aos 80 anos, é a proprie-tária da casa de taipa das janelas verdes, com chão batido, compreendida por cômodos minúsculos separados por cortinas de pano, que fica localizada por ironia na emblemática Rua das Flores.

É compreensível o meu interesse pelo modo de vida de Dona Luíza. Com apenas três blocos de construção de cerâmica superpostos de cada lado e uma tábua comprida solta apoiada nas extremidades pelos blocos, ela criou um banco que fica do lado de fora da sua casa, encostado na parede da entrada. Segundo ela, para o conforto dos visitantes e a distração de todos que acompanham o movimento da Rua das Flores. Meninos se viram pra lá e pra cá o tempo todo, jogam bola, pulam e brincam. Mulheres descem carregando lenha e sobem com latas d’água na cabeça. Homens puxam animais, cavalos, jegues e motos. Galinhas, galos, pintos e cachorros circulam livremente.

Não há sanitário na casa de Dona Luíza. As necessidades fisiológicas são satisfeitas no mato por detrás da casa. Não há água encanada. O banho é de balde, tomado no chão batido da pequena cozinha, composta por um acanhado fogão de lenha, um armário de três portas, uma prateleira com poucos manti-mentos, três ou quatro panelas pretas pela fuligem e fumaça do borralho, um bule, uma garrafa térmica, um pote d’água, algumas canecas, meia dúzia de talheres e pratos.

Em apenas um quarto de aproximadamente 9 m2, dormem a avó, as netas e o medo que as acompanha em dias de chuva com trovoada, nas três camas com colchão de capim e dois mosquiteiros. Medo de a casa cair, segundo elas. As paredes de taipa são forradas com tecidos de chita com grandes flores azuis. Estas são as únicas flores que vislumbramos na Rua das Flores. No canto do quarto, podem-se ver duas malas e uma sacola, onde possivelmente são guardadas as roupas e os pertences individuais.

A escuridão causada pela ausência de janelas no interior da casa de Dona Luíza é amenizada pelas frestas dos caibros irregulares do telhado e das varas das paredes de taipa, que não conseguem vedar comple-tamente o ambiente. Entra uma luz tênue que contribui para criar uma atmosfera de penumbra. Nestas vagas, sobretudo, entra água em dias de chuva e tempestades.

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A sala diminuta, composta por um sofá, uma cadeira plástica infantil, uma mesinha de 60 cm x 80 cm e uma televisão de 14 polegadas, é o espaço de convivência da família. É também o lugar de pouso onde costumam dormir outros familiares que aparecem de vez em quando. Os jovens assistem TV e Dona Luíza passa horas cerzindo as roupas puídas. Além dela, vivem ali uma neta de 20 anos, outra de 14 anos e a bisnetinha de 4 anos, filha da mais velha, cujo companheiro está sempre ausente, em busca de trabalho.

A seca assola a região frequentemente, a falta d’água é constante, mas a Rua das Flores prossegue a mesma. Nos finais de tarde, quando chega a brisa, ouvem-se casos dos antigos como Maria Rocha, Ludugero e Caetano, que em uma briga perdeu a mão esquerda que se encontra enterrada junto à Cruz da praça em frente à capela. Aparecem também histórias de assombração como a da “mulher da trouxa” que transforma em estátua o curioso que olha para ela, ou a da “carroça” que vagueia pelos ares com um vulto coberto, na véspera de uma tragédia, fazendo zoada, circulando enlouquecida e arrastando corrente nas madrugadas escuras de ruas vazias e mentes cheias de imaginação.

A Rua das Flores é assim, movimentada em determinados horários do dia. Em outros, depois do almoço, por exemplo, no calor sufocante da maioria dos meses do ano, a Rua das Flores silencia, dorme, se acalma. Não se ouve nem se vê ninguém. Todos se encontram recolhidos.

1 Ligia Motta é crítica e curadora de arte. Especialista em Artes Visuais: Cultura e Criação. Escreve a Coluna Arte e Galeria no Jornal Folha do Estado há mais de 10 anos.2 Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia.3 Projeto de Doutorado: Estratégias da Arte – imagens imprevistas deslocadas. 4 Heitor Filho - assistente de produção; Dinorah Lobo - socióloga, Edson Machado - fotógrafo, Johny Guimarães e Volney Menezes - documentaristas, Aline Cardoso - estagiária de pesquisa, Suely e Isabel - assistentes de campo, Sr. Carlos - motorista.

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EQUIPE DE TRABALHO DO PROJETO CASAS DO SERTÃO

Criação e Coordenação do Projeto Maristela Ribeiro

Produção Executiva GeralAraújo Assessoria Ltda.

Produção Executiva em Feira de Santana / MorrinhosHeitor Ribeiro

Intervenção ArtísticaMaristela Ribeiro

Documentação FotográficaMaristela Ribeiro e Edson Machado

Audiovisual Johny Guimarães e Volney Menezes

Oficina de MosaicoMaristela Ribeiro

Oficina de FotografiaEdson Machado - com participação de George Lima

Socióloga Dinorah Lôbo

Designer GráficoThiago Magri

Assessor de Comunicação Ederval Fernandes

Assistente de Pesquisa Aline de Oliveira

Assistentes de CampoIzabel e Suely

Pintor e PedreiroClovinhos e Antônio Maria

Revisão Gramatical dos TextosSimone Rubin

Tradução Eneida Sanches

Curador da Exposição no Museu de Arte Contemporânea de Feira de SantanaEriel Araújo

Montador da ExposiçãoGeorge Lima

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Oficial do Salão Regional de Artes Visuais da FUNCEB.

Entre 2012 e 2014 Maristela propôs desen-volver, através do projeto apresentado neste catálogo, uma série de ações com a finalidade de provocar a percepção dos moradores de Morrinhos, pequeno povoado na área rural do município de Feira de Santana. Buscou favorecer a ampliação do repertório estético com aproximações que tangenciam questões de cunho social e que estimulam a refle-xão sobre a vida e o cotidiano.

A artista tem obras em vários acervos públicos e privados. Desde meados dos anos 90 participa com frequência de cole-tivas, salões e bienais na Bahia, em outros estados brasileiros, assim como em outros países, tendo recebido diversos prêmios e menções.

www.maristelaribeiro.blogspot.com.br

MARISTELA RIBEIRO, FEIRA DE SANTANA — BA

Artista plástica, doutoranda em artes visuais e mestre em poéticas visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Iniciou seu percurso artístico por meio dos Salões Regionais de Arte promovidos pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. Seu trabalho artístico aborda o diálogo poético com experimentações oriundas das linguagens visuais contemporâneas.

Entre 2002 e 2006 apresentou trabalhos a partir de uma investigação com mulheres que estavam afastadas da sociedade, interagindo com situações em que essa problemática operava em seus limites extremos, resultando na mostra individu-al “Fendas e Frestas”, apresentada nos Conjuntos Culturais da Caixa em Salvador, Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e no Centro Cultural Recoleta em Buenos Aires.

Em 2007 recebeu o Prêmio Sacatar para Residência Artística em Itaparica com artistas oriundos da Alemanha, EUA, Síria e Canadá. No final da Residência apre-sentou em praça pública um vídeo com a participação dos moradores da Ilha, dentre eles, vendedores ambulantes, varredores de ruas, pescadores, maris-queiras e pessoas que exerciam serviços diversos.

Em 2008 fundou e coordena até a presen-te data o GRUPO GEMA — Grupo de Pesquisa em Arte Contemporânea — cole-tivo formado por artistas e pesquisadores.

Em 2010 o GRUPO GEMA ganhou o Prêmio

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