carvalho. os três povos da república

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JOSÉ MURILO DECARVALHOé professor titular daUniversidade Federal doRio de Janeiro e autor de,entre outros, A Formaçãodas Almas – o Imaginárioda República no Brasil(Companhia das Letras).

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96 REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003Os trs povosda RepblicaJOS MURILO DE CARVALHOJOS MURILO DECARVALHO professor titular daUniversidade Federal doRio de Janeiro e autor de,entre outros, A Formaodas Almas o Imaginrioda Repblica no Brasil(Companhia das Letras).Aprimeira quinzena republicana, que vai de 1889 at a Revolta da Vacina em 1904, foi turbulenta. Houve assassina- tos polticos, golpes de estado, revol- tas populares, greves, rebelies milita- res, guerras civis. Ausente da procla- mao do novo regime, o povo estevepresente nesses anos iniciais. Mas asoligarquias conseguiram inventar econsolidar um sistema de poder capazde gerenciar seus conflitos internosque deixava o povo de fora. Inaugurou-se um perodo de paz oligrquica,baseado em uma combinao de cooptao e represso, interrompidoapenas em 1922, quando se deu a primeira revolta tenentista. O propsitodeste texto examinar a posio doREVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003 97povo, em suas vrias faces, duranteesse apogeu do sistema oligrquico,quando a rbita da Repblica mais sedistanciou da democracia.O POVO NO INCIO DA REPBLICAO movimento republicano posterior a 1870 foi integrado sobretudo porfazendeiros, profissionais liberais, jornalistas, professores, estudantes decursos superiores e oficiais do Exrcito.Era uma combinao de proprietriosrurais, predominantes no partido paulista, e representantes de setores m-dios urbanos, mais presentes no grupodo Rio de Janeiro. Povo mesmo, nosentido de trabalhadores rurais e urbanos, operrios, artesos, pequenos proprietrios, funcionrios pblicos de n-vel inferior, empregados, no havia. Aproclamao do novo regime foi feitapelos militares. A nica manifestaopopular no dia 15 de novembro deveu-se ao renegado Jos do Patrocnio,que proclamou a Repblica na CmaraMunicipal.No entanto, os conflitos entre osnovos donos do poder, que se seguiram proclamao, permitiram algumaparticipao popular durante os primeiros quinze anos do novo regime. Houve choques entre civis e militares, entremilitares da Marinha e do Exrcito, entrerepublicanos presidencialistas e parlamentaristas, entre brasileiros e portugueses, entre monarquistas e republicanos, entre jacobinos e liberais. Da aseqncia de golpes, revoltas militares,guerras civis, greves e assassinatos polticos que agitaram os anos seguintes proclamao. Em meio a essa turbulncia, s vezes graas a ela, setores populares invadiram a arena poltica, agindo98 REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003tao poltica, as eleies. A terceira era ado povo da rua, do povo ativo, que agia porconta prpria, direta ou indiretamente motivado pela poltica.Comeo pelo povo das estatsticas. Atarefa facilitada pela existncia de dadosrazoavelmente confiveis provindos domelhor censo feito at ento, o de 1920. Hmuito o pas estava sem recenseamento e omais confivel era ainda o de 1872, velhode cinco dcadas. Foi com base nesse censo de 1872 que o bilogo Louis Couty tentou pela primeira vez, em 1881, quantificaro povo poltico do Brasil. Seus clculospodem ser resumidos como indicado naTabela I.com variados graus de autonomia. A capital federal foi um plo de agitao, sobretudo durante o perodo jacobino que durouat 1897. Envolveram-se nas turbulnciasoperrios, artesos, soldados, marinheiros,pequenos proprietrios e contingentes doimenso setor informal caracterstico da cidade. Na Revolta Federalista, no Rio Grande do Sul, muitos combatentes vinham dapeozada das estncias, assim como naRevolta da Armada esteve presente o proletariado naval. Canudos, naturalmente, foimovimento puramente popular (1).A agitao, que se espalhava pelos estados graas s incertezas do processo eleitoral, no convinha aos governantes civis.Era particularmente danosa para a negocia-o de emprstimos e pagamento da dvidaexterna, de vez que destrua a confianados banqueiros internacionais. Da o esfor-o de construir um sistema de poder quepudesse reconstituir a estabilidade conferida pelo Poder Moderador durante o Imprio. A soluo foi dada por Campos Salespor meio do sistema que batizou de polticados estados, j suficientemente estudado(2). Sua receita foi resumida na conhecidafrase: de l [dos estados] que se governaa Repblica, por cima das multides quetumultuam, agitadas, nas ruas da capital daUnio (Sales, 1908, p. 252). A consolida-o do regime passava, assim, pelo alijamento da participao popular. Organizarum governo republicano vivel significavaafastar-se da democracia. Que lugar coubeao povo nessa fase oligrquica? Ele foi, defato, alijado da vida poltica nacional?O POVO DAS ESTATSTICASPode-se dizer que havia trs povos, outrs caras do povo, na Primeira Repblica.A primeira cara, a mais visvel, era a dopovo das estatsticas. Por isso entendo opovo revelado pelos nmeros censitrios,o povo civil, a populao em todas as dimenses de sua existncia. A segunda caraera a do povo que aparecia nos momentoslegalmente determinados para a manifesTabela 1O POVO DO BRASIL SEGUNDO COUTY, 1881Populao total .............................11.000.000ndios e escravos ............................ 2.500.000Agregados, caipiras,capangas, capoeiras,beberres .......................................... 6. 000.000Comerciantes, funcionrios,criados, artesos ............................. 2.000.000Proprietrios de escravos ............. 500.000(Fonte: Couty, 1988, p. 102)Segundo o cientista francs, os nmeros indicavam a ausncia de massas organizadas, agrcolas ou industriais, e de eleitores capazes de impor ao governo direodefinida. A concluso que tirou foi: oBrasil no tem povo, querendo dizer comisso que o pas no tinha povo poltico, comoas naes civilizadas (Couty, 1988, p.102) (3). A concluso seguinte era que diante de tal ausncia de povo poltico a presena do Poder Moderador se tornava tile necessria para administrar os estadosmaiores polticos em que se dividiam asclasses dirigentes.Em 1916, o deputado Gilberto Amadorepetiu a anlise de Couty, sem, no entanto,1 Sobre o envolvimento popularna capital federal, ver: JosMurilo de Carvalho, 1987.Sobre o movimento jacobino,ver: Queiroz, 1986; e Penna,1988.2 Ver Lessa, 1988.3 Em clamoroso erro, a tradutora do texto traduz le Brsil napas de peuple por o Brasilno povoado.REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003 99dar o devido crdito ao francs ou a SilvioRomero, que j a retomara em 1906 (4).Sem dispor de dados atualizados, afirmouque nada teria mudado na situao socialdo pas desde os tempos do Imprio. Os 15milhes de habitantes do interior, afirmou,eram gente pouco produtiva, entregue prpria misria, sem sade, sem hbitos detrabalho, dominada por supersties, intilcomo fora econmica. E concluiu, exatamente como Couty em 1884: Povo, propriamente, no o temos (apud Senna, 1969,pp. 123-5). Em 1925, Gilberto Amado retomou o exerccio, j ento com a ajuda dosresultados do censo de 1920. Resumo seusnovos clculos na Tabela II.Os clculos de Gilberto Amado podeme devem ser aprofundados e corrigidos. Aeducao era fator importante, uma vez queera impedimento legal ao voto, mas outrascaractersticas tambm pesavam na caracterizao da poltica oligrquica. Alm disso, no se pe admitir que um coroneldeixasse de votar por ser analfabeto (muitos de fato o eram). A populao do passegundo o censo de 1920 est na Tabela III.Tabela 1IPOVO DO BRASIL SEGUNDO GILBERTOAMADO, 1920Populao total ..................... 30.635.605Pessoas alfabetizadas ...................7.493.357Homens alfabetizados .................4.470.068Adultos brasileirosalfabetizados......................................1.000.000Como a Constituio republicana eliminara a exigncia de renda para o exerc-cio do voto mas mantivera a da alfabetiza-o, introduzida em 1881, Gilberto Amadodeu nfase aos dados sobre educao, desprezando as outras caractersticas da populao. Do milho de adultos brasileiros alfabetizados, isto , daqueles que, segundoa Constituio, estariam aptos a votar, deduziu ainda os semi-analfabetos, chegando concluso de que o nmero de pessoascapazes de formar qualquer idia, por elementar que seja, das coisas, no deveriapassar de 500 mil (Amado, 1969, p. 48).Sua concluso final tambm no se afastava muito da de Couty: diante de tal ausncia de capacidade cvica, ganhava importncia o governo dos mais capazes.Tabela 1IIPOPULAO DO BRASIL, POR ESTADOS, 1920Estados Populao Estados Populao(1.000) (1.000)Alagoas 978 Paraba 965Amazonas 363 Paran 686Bahia 3.334 Pernambuco 2.154Cear 1.319 Piau 609D. Federal 1.157 Rio de Janeiro 1.559Esprito Santo 457 Rio G. Norte 537Gois 511 Rio G. Sul 2.182Maranho 874 Santa Catarina 668Mato Grosso 246 So Paulo 4.592Minas Gerais 5.888 Sergipe 477Par 983 Terr. do Acre 92Brasil 30.635(Fonte: Recenseamento de 1920, v. IV, 1a parte, pp. IX-X)Demograficamente, o Brasil na pocaera muito distinto do atual. Tinha popula-o menor do que a do estado de So Paulohoje. O estado mais populoso, Minas Gerais, era menor do que o atual municpio doRio de Janeiro. Algo que no mudou muitoem relao aos dias de hoje a desigualdade demogrfica. Os cinco maiores estados,Minas, So Paulo, Bahia, Rio Grande doSul e Pernambuco, respondiam por 59% dototal da populao. Minas e So Paulo sozinhos representavam 34%. A dominao4 Ao receber Euclides da Cunhana Academia Brasileira deLetras em 1906, Silvio Romeroretomou o texto de Couty sobre a ausncia de povo dizendo que ele deveria estar emtodas as mos e em todas asescolas. Ver Romero, 1907,pp. 18-20.100 REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003da poltica nacional pelos grandes estados,sobretudo por Minas e So Paulo, tinhaassim slida base demogrfica, uma vezque era a demografia que determinava otamanho das bancadas na Cmara dos Deputados.Dado relevante para a anlise poltica o que indica a ocupao da populao. Asinformaes, ainda de acordo com censode 1920, esto na Tabela IV.poca, o Chile tinha 43% da populao nosetor primrio, o Uruguai 42%, a Argentina 24%. Ampliando a comparao, os Estados Unidos tinham 31% e a Blgica 16%(5). A predominncia agrria era generalizada, s escapando o Distrito Federal, comose pode ver na Tabela V.At mesmo o estado mais desenvolvido, So Paulo, era ainda predominantemente agrcola, sem falar no fato de que suariqueza, e em boa parte a do pas, provinhada economia cafeeira. Entre os grandesestados, Minas Gerais salientava-se comoo mais rural. Havia outra caracterstica maisimportante, do ponto de vista poltico, doque a ruralidade. Era a grande desigualdade na distribuio da propriedade da terra.Dos 6,4 milhes de pessoas ocupadas naagricultura, apenas 577 mil, ou seja, 9%,eram proprietrias. O nmero no excedede muito o que foi calculado por Couty paraos proprietrios de escravos em 1881. Tirados uns 70 mil administradores e arrendatrios, os 91% restantes eram trabalhadores rurais. Separando-se administradores, capatazes e artesos, isto , carpinteiros, pedreiros, ferreiros, que tinham sal-rios um pouco melhores, o resto os trabaTabela IVPOPULAO SEGUNDO A OCUPAO, 1920Ocupao Populao (%)Agricultura, pecuria, extrao 70,2Indstria 12,9Transporte 2,8Comrcio 5,4Administrao pblica, civil e militar 2,1Administrao particular 1,1Profisses liberais 1,8Pessoas que vivem de rendas 0,4Servio domstico 4,0Total 100N=Ocupao maldefinida 9.191.044Profisso no declarada 416.568e sem profisso 21.027.993Total 30.635.605(Fonte: Recenseamento de 1920, vol. IV, 5a parte, pp. XX e 7)Dos 30,6 milhes de habitantes, 9,1milhes tinham ocupao conhecida e definida. Desses, 6,4 milhes ocupavam-seda agricultura, pecuria ou extrao de minerais, ou seja, 70,2% da populao empregada. Era um pas de grande predominncia rural, mesmo em comparao comos vizinhos sul-americanos. Na mesmaTabela VOCUPAO NA AGRICULTURA E INDSTRIA, ESTADOSSELECIONADOS, 1920Estados Ocupao Ocupaoligada ligadaao solo ( %) indstria (%)Distrito Federal 6 32So Paulo 62 16Minas Gerais 78 9Pernambuco 74 11Bahia 72 10Rio G. Sul 65 13Brasil 69 13(Fonte: Recenseamento de 1920, v. IV, parte V, p. XX.O total nesta tabela de 69% por no estar includa aextrao de minerais)5 Os dados para outros pasesso fornecidos pelo prpriocenso (vol. IV, parte 5a, p. XXX).REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003 101lhadores agrcolas propriamente ditos vivia em condies que no se afastavammuito das do tempo da escravido. Se asdirias a seco (sem alimentao) de umferreiro valiam a partir de 5$000 em MinasGerais em 1924, as de um trabalhador agr-cola tinham um piso de 2$500, as de umretireiro (tirador de leite) de 1$500. EmPernambuco e Bahia, os salrios eram ainda mais baixos. A diria do trabalhadoragrcola era de 1$500 no primeiro caso e de1$000 no segundo. Salrios um pouco maisaltos podiam ser encontrados apenas emSo Paulo e no Rio Grande do Sul. Aosbaixos salrios deve-se acrescentar a precariedade das relaes de trabalho. Contratos de trabalho s existiam para trabalhadores imigrantes protegidos por seuscnsules. Os acordos eram orais e o pagamento se fazia das maneiras mais diversas em salrio, em mercadoria, numa combinao dos dois (o que era mais comum),por empreitada, por tarefas, por meao,por tera. O pagamento em mercadoria eraparticularmente perverso. O trabalhadorcomprava no barraco do proprietrio apreos altos e tinha o valor descontado nosalrio. Na pecuria nordestina, quase nocirculava dinheiro: o vaqueiro recebia seupagamento em crias do gado (6).Levando a anlise um passo adiante,verifica-se que entre os poucos propriet-rios havia ainda grande desigualdade notamanho dos estabelecimentos, como mostra a Tabela VI.Os nmeros indicam que os 72% deestabelecimentos que possuam menos de100 hectares, que podemos classificar depequenas propriedades, ocupavam 9% darea total. As propriedades mdias (de 100a menos de 1.000 ha) tinham posio equilibrada. Respondiam por 24% dos estabelecimentos e 28% da rea. J as grandes, oslatifndios, representavam apenas 4% dosestabelecimentos, mas respondiam por 63%da rea. Como havia mais estabelecimentos do que proprietrios, de vez que algunsfazendeiros possuam mais de uma fazenda, o nmero de grandes proprietrios eraainda menor do que os 26.315 da tabela.Somando mdios e grandes proprietrios,os que realmente detinham o poder econ-mico, social e poltico nos municpios, temos cerca de 180 mil pessoas. Eram oscoronis da Repblica, os que mandavamdiretamente nos municpios e, indiretamente, nos estados e na Unio (7).A populao urbana, definida como adas cidades com 20 mil habitantes ou mais(74 ao todo), representava apenas 16,6%do total. Nos estados hoje identificadoscomo Nordeste, ela no passava de 10%.Os operrios industriais no chegavam a300 mil, quase um tero dos quais no setortxtil, concentrados na capital federal e emSo Paulo. O grupo em melhor condio deconstituir a base para uma opinio pblicaindependente era o dos profissionais liberais, categoria na qual o censo inclua professores, juristas, engenheiros, religiosos,mdicos e parteiras. Ele no passava de 168mil pessoas.A dependncia da maioria em relaoaos senhores de terra era agravada pelabaixssima escolaridade, como mostra aTabela VII.Tabela VIDISTRIBUIO DA PROPRIEDADE RURAL, 1920Estabelecimentos No % rea (hectares) %At menos de 100 ha 463.879 72 At menos de 100 ha 9100 a menos de 1.000 ha 157.959 24 100 a menos de 1.000 ha 281.000 ha a mais 26.315 4 1.000 ha a mais 63(Fonte: IBGE, 1990, p. 318)6 Ver Ministrio da Agricultura,Industria e Commercio, 1927;19247 Sobre o sistema coronelista, vero clssico estudo de VictorNunes Leal (1948), Ver tambm: Pang, 1979.102 REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003Fora o Distrito Federal, s o Rio Grande do Sul superava os 30% de alfabetizados. Os ndices mais altos desse estado,assim como os de So Paulo e de SantaCatarina, devem-se sem dvida presenade imigrantes europeus e seus descendentes. A taxa de alfabetizao dos estrangeiros era mais que o dobro da dos brasileiros(52% e 23%, respectivamente). Havia nopas 1,6 milho de estrangeiros, concentrados no Distrito Federal, em So Paulo e nosTabela VIIALFABETIZAO, ESTADOS SELECIONADOS,1920 (%)Estados %Alagoas 14,8Bahia 18,4Distrito Federal 61,3Minas Gerais 20,7Pernambuco 17,8Piau 12,0Rio de Janeiro 24,7Rio G. Sul 38,8So Paulo 29,8Santa Catarina 29,5Brasil 24,5(Fonte: Recenseamento de 1920, v. IV, parte 4, pp. X-XI)estados do Sul. O estado de So Paulo,sozinho, abrigava 53% deles. A populaoda capital desse estado era composta de 35%de imigrantes. Nos outros estados, a heran-a da escravido pesava com mais fora. Oanalfabetismo era um dos aspectos maisterrveis dessa herana.Nem mesmo as capitais dos estadosapresentavam panorama encorajador, embora, naturalmente, tivessem menos analfabetos. A melhor situao era a do DistritoFederal, com 61,3% de alfabetizados, a piorera a de Teresina com apenas 16,5%. Namdia, os alfabetizados representavam cerca da metade da populao das capitais.A situao calamitosa da educao popular no Brasil fica mais evidente quandocomparada com a de outros pases. Os dados so fornecidos pelo prprio censo de1920. Na populao de 7 anos ou mais, oBrasil tinha 31% de alfabetizados, a Argentina tinha 62%, exatamente o dobro. Ofosso cresce ainda mais se compararmos opas com a Frana ou os Estados Unidos.Na primeira, a alfabetizao da populaode 10 anos ou mais era de 89%, nos EstadosUnidos, de 94%. At mesmo Portugal, cujoestilo de colonizao foi responsvel pelatradio brasileira de descaso pela educa-o popular, tinha na poca o dobro de alfabetizados na populao total (53%), quando comparado com a ex-colnia.Considerando que a Constituio exclua analfabetos, estrangeiros e menoresde 21 anos do direito do voto (no mencionava as mulheres, tradicionalmente excluTabela VIIIPOPULAO APTA A VOTAR, 1920Populao NoTotal 30.635.605Menos analfabetos, sobram 7.493.357Menos as mulheres, sobram 4.470.068Menos os estrangeiros, sobram 3.891.640Menos os menores de 15 anos, sobram 3.218.243REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003 103das), conclui-se que a prpria carta republicana reduzia a cerca de 10% a populaocapaz de participar do governo do pas,como se pode ver na Tabela VIII.A populao apta a votar era menor doque a da Tabela VIII, uma vez que o limitede idade era de 21 anos e no de 15. O censono fornece dados de alfabetizao para apopulao de 21 anos e mais. Mas poss-vel fazer uma aproximao. Havia 6 milhes de homens com 21 anos ou mais. Ataxa de alfabetizao para os homens de 15anos ou mais era de 40%. Aplicando essataxa para os 6 milhes, tem-se 2,4 milhescomo um nmero aproximado dos brasileiros adultos alfabetizados autorizados avotar. O nmero bem maior do que o encontrado por Gilberto Amado. Mas, dependendo de como se interpreta seu conceitode semi-analfabetismo, pode ser que o n-mero final a que chegou no fosse muitofora de propsito.O quadro social do pas que acaba deser mostrado no destoa, assim, muito daquele entrevisto por Couty e GilbertoAmado. Mas, antes de tirar as conclusesdos dois autores sobre a impossibilidade defazer funcionar um sistema representativocom esse material humano, cabe examinarmelhor o comportamento poltico dessepovo aparentemente to pouco preparadopara compor uma nao de cidados. Aparticipao poltica por excelncia numsistema representativo moderno se d viaenvolvimento eleitoral. Cabe, ento, examinar o povo das eleies.O POVO DAS ELEIESComeo documentando o impacto dademografia na representao dos estadosna Cmara Federal (Tabela IX).Embora sub-representados, os cincomaiores estados em populao, Minas, SoPaulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Pernambuco, respondiam por 54% dos deputados. Minas e So Paulo sozinhos, com34% da populao, detinham 28% da reTabela IXNMERO DE DEPUTADOS POR ESTADOEstados Nmero Estados Nmerode deputados de deputadosAlagoas 6 Paraba 5Amazonas 4 Paran 4Bahia 22 Pernambuco 17Cear 10 Piau 4D. Federal 10 Rio de Janeiro 4Esprito Santo 4 Rio G. Norte 16Gois 4 Rio G. Sul 17Maranho 7 Santa Catarina 4Mato Grosso 4 So Paulo 22Minas Gerais 37 Sergipe 4Par 7 Terr. do Acre Brasil 212(Fonte: Ministrio da Agricultura, Industria e Commercio, 1914, pp. 3-241)104 REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003presentao na Cmara. As grandes bancadas, disciplinadas pelos partidos republicanos estaduais, eram a base da poltica dosestados, uma vez que garantiam maioria devotos na Cmara aos presidentes da Rep-blica. Como dizia Gilberto Amado em 1931:No regime em que vivemos, o Brasil no um pas, no uma nao; o Brasil apenas So Paulo, Minas; Rio Grande; seriaBahia e Pernambuco se nesses estados houvesse maior riqueza e intensidade (Amado, 1969, p. 175) (8). No por acaso, shavia eleio competitiva quando um oumais dos cinco grandes, podendo-se incluirna lista tambm o estado do Rio de Janeiro,entrava em dissidncia.Passo ao exame da participao eleitoral. A principal eleio nacional no sistema presidencial a do prprio presidente da Repblica. Os resultados estona Tabela X.Duas coisas ficam muito claras. A primeira confirma a tese de que o povo dasestatsticas demogrficas est quase totalmente ausente das estatsticas eleitorais. Nemmesmo os 7,8% de adultos alfabetizados aosquais a Constituio dava o direito do votodele se utilizavam. No perodo coberto poresta anlise, a participao eleitoral girouentre 1,4% e 3,4% da populao. Pior ainda,a maior participao se deu na primeira elei-o, a de Rodrigues Alves. Em nmerosabsolutos, cerca de 550 mil pessoas votaramem cada eleio, nmero muito prximo dos500 mil de Couty e de Gilberto Amado.Somente na ltima eleio da Primeira Repblica que houve um aumento consider-vel do comparecimento s urnas, no chegando, no entanto, a 6% da populao. Osnmeros so escandalosos se lembrarmosque antes da introduo da eleio direta,em 1881, a participao eleitoral se elevavaa 13% da populao livre.A ausncia quase total de participaoverificava-se na prpria capital da Rep-blica onde o ndice de escolaridade era maisTabela XELEIES PRESIDENCIAIS, 1894-1930Candidato No de % de votantes % dos votosvencedor votantes sobre a do vencedor(mil) populao sobre total devotantesPrudente de Morais (1894) 345 2,2 84,3Campos Sales (1898) 462 2,7 90,9Rodrigues Alves (1902) 645 3,4 91,7Afonso Pena (1906) 294 1,4 97,9Hermes da Fonseca (1910) 698 3,0 57,9Venceslau Brs (1914) 580 2,4 91,6Rodrigues Alves (1918) 390 1,5 99,1Epitcio Pessoa (1919) 403 1,5 71,0Artur Bernardes (1922) 833 2,9 56,0Washington Lus (1926) 702 2,3 98,0Jlio Prestes (1930) 1.890 5,6 57,7(Fonte: adaptado de Ramos, 1961, p. 32. Os dados de votantes para 1910 foram corrigidos de acordo com: Ministrioda Agricultura, Industria e Commercio, 1914, pp. 244-5)8 Sobre a poltica dos grandesestados, ver os captulos escritos por Joseph Love (Rio Grande do Sul), John Wirth (MinasGerais) e Robert Levine(Pernambuco) em Boris Fausto,1975, 1977, vol. 1. Ver ainda: Schwartzman, 1975.REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003 105alto. Com cerca de 20% da populao aptaa votar, votou apenas 1,3% dela na eleiopresidencial de 1894, 0,9% na de 1910, e2,2% na de 1922. A participao eleitorals comeou a subir na dcada de 1920 (9).Era generalizado o receio de sair s ruas emdias de eleio devido violncia dos capangas a servio dos candidatos. Na capital, como no pas, aplicava-se o que LimaBarreto disse dos polticos da Repblicados Bruzundangas: tinham conseguidoquase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador o voto(Barreto, 1956, p. 113) (10).Pode-se argumentar que as estatsticaseleitorais no so confiveis por causa dacorrupo generalizada que caracterizavaas eleies. De fato, havia fraude no alistamento de eleitores, fraude na votao, fraude na apurao dos votos, fraude no reconhecimento dos eleitos. Todas as fases doprocesso eleitoral eram controladas porpessoas ligadas s chefias locais que seconectavam, por sua vez, s chefias estaduais e essas nacional. Havia eleiesfeitas exclusivamente pelos chefes que seutilizavam de outras pessoas apenas paravariar a caligrafia. Eram as eleies ditas abico de pena. Mas a fraude apenas afetavaa representao, reduzindo sua autenticidade. Ela no reduzia o nmero de votantes, podia mesmo aument-lo. Fica, assim,a concluso, contrria ao ditado bblico, deque poucos eram os chamados a votar emenos ainda os que votavam. E o voto dosltimos era manipulado pelos chefes locais,estaduais e nacionais.A baixa participao eleitoral fica melhor demonstrada na Tabela XI.Lembre-se, para comear, que a eleiopresidencial de 1910 foi uma das poucascompetitivas do perodo. Nela, Rui Barbosa disputou a presidncia com o marechalHermes da Fonseca. Os dois grandes estados, Minas Gerais e So Paulo, tinham-sedesentendido. O candidato da oposio, RuiBarbosa, apoiado por So Paulo, levou acabo a primeira campanha eleitoral dirigida populao. Apesar disso, como demonstra a Tabela XI, alm de ser muito baixo onmero de eleitores em relao popula-o, o comparecimento eleitoral foi tambm muito pequeno. No Brasil como umtodo, o ndice de absteno dos eleitoresfoi de 40%. Em cinco estados, a abstenosuperou os 50%. ndice to alto de nocomparecimento, fora do perodo aqui estudado, s se verificou na eleio presidencial de 1955 (40%). Nas eleies presidenciais da atual Repblica, a absteno temgirado em torno de 15%.Alm da absteno, havia ainda a presena dos votos nulos, que atingiam 10%dos votos dados. Levando-se em contaapenas os votos vlidos, a participao eleitoral no pas cai para 2,7% da populao,nenhum estado superando os 4,3% do RioGrande do Sul. A taxa de 10% era o dobrodas que se verificaram no perodo de 1945a 1964, maior tambm do que a de 1989,mas a metade da de 1994 (19%) (11). difcil interpretar o sentido, na poca, dosvotos no aproveitados. O aproveitamentoou no do voto dependia mais do apuradordo que do votante. Alta porcentagem devotos vlidos podia indicar apenas maiorcontrole oligrquico do processo eleitoral.Inversamente, baixa porcentagem podiaindicar maior competio. Quanto maior ocontrole da mquina, menor o nmero devotos nulos. Os casos do Rio Grande do Sule de So Paulo so exemplares. O ndice devalidade de quase 100%, altamente improvvel. S pode ser creditado ao fortecontrole exercido pelo PRR e PRP. J aBahia, marcada por intensas lutas internas,teve um dos mais altos ndices de nulidade.J dizia Francisco Belisrio de Souza, referindo-se s eleies imperiais, que as elei-es que apareciam nas atas como as maisregulares eram, na verdade, aquelas feitasa bico de pena, revelia do votante (Souza,1979, p. 33).O caso do Distrito Federal o mais escandaloso. Em 1910, os eleitores representavam apenas 2,7% da populao. Votaram 34% dos eleitores. Dos votos dados,apenas 52% foram validados. Ao final, osvotos vlidos correspondiam a 0,5% da populao. Como a capital era o municpiocom a maior taxa de alfabetizao (61%), preciso concluir que no era apenas o grau9 Ver Carvalho, 1987, pp. 85-6; e Conniff, 1981, p. 73.10 O romance de 1917.11 A Estatstica Eleitoral fala emvotos apurados (vlidos) semmencionar voto nulo e branco.Para as eleies posteriores a1945, ver: Santos, 1990, pp.144-48; e Nicolau, 1998, pp.23-8.106 REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003de instruo que afetava a participao eleitoral. Nos estados, as oligarquias afastavam os votantes das urnas, pois no lhesinteressava promover a disputa eleitoral.Eleies eram caras, exigiam arregimenta-o de eleitores e compra de votos. Maiorcompetio significava mais eleitores e,portanto, mais gastos. Na capital da Rep-blica, a absteno no era produzida porTabela XIELEITORES E VOTANTES NA ELEIO PRESIDENCIAL DE 1910, POR ESTADOSEstados Eleitores Votantes Votos Votoscomo % como % apurados apuradosda populao dos eleitores* como % como % dados votantes populaoAlagoas 2,7 60,5 89,0 1,5Amazonas 3,5 44,7 97,8 1,6Bahia 4,0 91,5 66,7 2,4Cear 4,3 67,5 95,3 2,8D. Federal 2,7 34,4 52,1 0,5Esprito Santo 5,7 59,1 80,4 2,8Gois 5,1 51,6 95,9 2,5Maranho 4,8 42,6 85,7 1,7Mato Grosso 4,8 43,9 99,7 2,1Minas Gerais 5,7 54,9 96,9 3,1Par 10,2 66,9 77,4 5,3Paraba 3,8 54,1 61,1 1,3Paran 6,9 48,1 99,4 3,4Pernambuco 4,3 53,0 93,2 2,1Piau 5,0 70,7 79,3 2,8Rio G. Norte 3,4 66,4 81,0 1,9Rio G. Sul 7,4 57,3 99,9 4,3Rio de Janeiro 6,3 68,5 77,4 3,4Sta. Catarina 5,9 56,2 98,4 3,2So Paulo 4,5 67,7 99,9 3,1Sergipe 3,0 51,2 94,7 1,4Brasil 5,0 60,3 89,9 2,7(Fonte: Ministrio da Agricultura, Industria e Commercio, 1914, p. 244-5. * Dados recalculados)oligarquias. Era devida ao puro medo. Aseleies eram batalhas comandadas porcapangas armados de facas e navalhas.Quem tinha juzo ficava em casa.Como era de esperar, nas eleies legislativas a absteno era ainda maior. Em1912, quando se renovou a Cmara e umtero do Senado, o comparecimento foi de52%, ndice muito mais alto do que os queREVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003 107uma terceira cara do povo, que nem era amassa dos cidados, nem os rebanhos eleitorais. Havia um povo que se manifestava,em geral margem dos mecanismos formais de participao, quando no contra oprprio sistema poltico. Esse povo tantoexistia nas cidades como no campo. Chamo-o de povo da rua para indicar que elesaa do mbito domstico para o domniopblico sem, no entanto, enquadrar-se nasregras dos palcios. Sua ao nem sempretinha conseqncia imediata para o sistemapoltico, mas no mnimo denunciava suasfissuras e limitaes.O fenmeno vinha dos tempos do Imprio. No agitadssimo perodo regencial,conflitos entre grupos da elite abriram caminho para vrias revoltas populares quesacudiram o pas de norte a sul. No inciodo Segundo Reinado, esses grupos chegaram a um acordo poltico em torno do Poder Moderador. Eles entenderam que essePoder tinha condies de arbitrar seus conflitos, garantindo que nenhuma faco fosse excluda da posse do governo. Comoconseqncia, terminou a agitao regencial. Mas as manifestaes populares nodesapareceram: elas mudaram de natureza. Sem os conflitos entre elites que lhesabrissem brechas polticas por onde se esgueirar, elas assumiram um carter defensivo em relao a iniciativas do Estado.Populaes rurais e urbanas revoltaram-secontra polticas do Estado central que,embora legais, entravam em conflito comseus valores, tradies e costumes. Elas serevoltaram contra o recenseamento, o registro civil, a introduo do sistema mtrico, o recrutamento militar, o aumento detarifas de transporte coletivo, a seculariza-o dos cemitrios. Eram medidas de racionalizao e secularizao do Estado quefreqentemente conflitavam com estilostradicionais de vida. Chamei os agentesdessas revoltas de cidados em negativopara indicar sua postura reativa diante dapoltica (Carvalho, 1996).Algo semelhante se passou na Repblica aps a consolidao oligrquica. A poltica dos estados cumpria o mesmo papeldo Poder Moderador no que se referia aose verificaram depois de 1945. Os votosnulos para senadores foram quase 20%.Hoje, nulos e brancos para eleies legislativas podem chegar a 41%, como se deuna eleio de 1994. Novamente, o Rio Grande do Sul aparece como modelo de controle poltico, exibindo 100% de votos vlidos (Ministrio de Agricultura, Industria eCommercio, 1914, pp. 244-5).Voltando Tabela X, observa-se outrainformao que tem a ver com a competi-o poltica. V-se que no perodo de 1904a 1922 apenas duas eleies presidenciaispodem ser classificadas de competitivas, ade 1910, ganha por Hermes da Fonsecacontra Rui Barbosa, e a de 1922, ganha porArtur Bernardes contra Nilo Peanha. Foram as nicas em que o vencedor teve menosde 70% dos votos. Na de 1919, Rui Barbosa apenas incomodou Epitcio Pessoa. Altima eleio da Primeira Repblica foi amais disputada, mas no se pode dizer quea competio cresceu depois de 1922, porque a de 1926 foi quase unnime. A baixacompetio mostra a eficcia dos estadosmaiores polticos em neutralizar as oposi-es. O fantasma da dissidncia oligrquicaestava sempre presente e era necessrio umesforo constante de negociao, ameaase, muitas vezes, de pura represso, parapreservar o arranjo criado por Campos Sales. Como mecanismo de arbitramento entre elites, a poltica dos estados era menoseficiente do que o Poder Moderador. Dequalquer modo, a concluso que se podetirar dos dados apresentados era que o eleitorado, o povo das eleies, o povo polticooficial, por si s, era incapaz de constituirqualquer ameaa ao sistema.O POVO DA RUATanto o texto de Couty como o de Gilberto Amado concluam que no havia povopoltico, que o povo civil no agia politicamente. Vimos que, de fato, o povo eleitoralera muito reduzido e, alm disso, tinha seusvotos torcidos pela manipulao dos resultados. Mas havia um terceiro povo, ou108 REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003arbitramento dos conflitos entre grupos daelite. At a consolidao, verificou-se algosemelhante ao que se passara no perodoregencial, talvez com maior gravidade, umavez que a guerra civil atingiu a capital dopas. O perodo turbulento acabou na Revolta da Vacina, que combinava o estilonegativo do Segundo Reinado com novamodalidade de conflito, tpica dos primeiros anos do novo regime. A revolta de 1904foi um protesto da populao pobre do Riode Janeiro contra a ingerncia do Estado,considerada ilegtima, em suas vidas. Masteve como aliados intelectuais positivistase alunos de escolas militares, os ltimosainda imbudos de positivismos eflorianismos, e inconformados com a consolidao do ajuste oligrquico (12).A partir de 1904, at 1922, as multidesagitadas da capital, que tanto incomodavam Campos Sales, apareceram na Revolta da Chibata de 1910 e nas grandes grevesde 1917-19, que tambm atingiram o estado e a cidade de So Paulo. A revolta de1910 foi protagonizada pelo que se poderiachamar de proletariado naval, ainda submetido a prticas disciplinares da poca daescravido. Os marinheiros deixaram osgovernantes estupefatos com sua capacidade de manobrar as modernas belonavesrecm-compradas e levaram o pnico capital da Repblica. Pego de surpresa, ogoverno anistiou de incio os revoltosos,mas logo a seguir os perseguiu, prendeu edeportou (13).As greves operrias constituram ingrediente novo, gerado no bojo da abolio daescravido e do aumento da imigrao estrangeira. A populao operria era pequena mas salientou-se pela agressividade,sobretudo na cidade de So Paulo e na capital federal. Pequeno e dividido em vriastendncias, que iam do governismo aoreformismo e ao anarco-sindicalismo, omovimento operrio teve que enfrentar ainda a falta de tradio de organizao e aao repressora dos governos e dos patrespara defender os interesses da classe. Seuponto alto verificou-se nas greves de 1917-19 em So Paulo e no Rio de Janeiro. Em1917 houve 45 greves na capital e 29 nointerior do estado de So Paulo, salientando-se as dos operrios txteis (14). Calculou-se em 236 as greves havidas no estadode So Paulo e na capital federal entre 1917e 1920, envolvendo em torno de 300 miloperrios. Em 1917, houve greves geraisnas cidades de So Paulo e do Rio de Janeiro. Na greve geral do Rio de Janeiro envolveram-se cerca de 100 mil operrios (15).Apesar das divises ideolgicas, o movimento operrio tentou organizar-se. Entre 1915 e 1929 foram criadas cerca de 70associaes operrias no estado de SoPaulo. Elas vieram somar-se a outras 66fundadas desde o incio do sculo (Simo,1966, p. 202). Em 1906, foi realizado oprimeiro Congresso Operrio Brasileiro,envolvendo associaes de vrios estados.O segundo Congresso aconteceu em 1913,o terceiro em 1920. Em 1908, foi criada aConfederao Operria Brasileira (COB),sob liderana anarco-sindicalista. Apoiadas por imprensa agressiva, as associaesoperrias lutavam por maiores salrios,melhores condies de trabalho, contra medidas repressoras como a Lei Adolfo Gordo de 1907, que previa a expulso de agitadores estrangeiros, e por causas maisamplas como o pacifismo.O efeito direto das lutas operrias nosistema poltico foi limitado. Em parte, issose deveu ao fato de que o anarco-sindicalismo era infenso ao envolvimento pol-tico; concentrava-se na ao econmicacontra os patres. Conseqentemente, eracontra a organizao de partidos polticose a participao eleitoral. As tentativas deformao de partidos operrios, at 1922,em geral promovidas por setores de orientao socialista, no tiveram xito. No Riode Janeiro, algumas organizaes se aproximaram da poltica, mas o fizeram dentrodo que se chamou de sindicalismo amarelo, isto , num esprito clientelista e nomilitante. O marechal Hermes da Fonseca,quando presidente da Repblica, tentoucooptar o movimento patrocinando, em1912, a organizao de um CongressoOperrio, ao qual aderiram algumas associaes de trabalhadores, mas que foi rejeitado pela maioria.12 Sobre essa revolta, ver:Sevcenko, 1984; e Carvalho,1987, cap. IV.13 Sobre a revolta dos marinheiros, ver: Morel, 1979. Parauma viso diferente, ver:Martins, 1988.14 Clculos de Azis Simo (1966,pp. 149-58).15 Ver: Fausto, 1977, pp. 134-91. Ver ainda: Foot & Leonardi,1982, cap. 17.REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003 109Outra razo para o escasso impactopoltico do movimento operrio provinhado prprio sistema oligrquico. Como seviu, eram nulas as possibilidades de influenciar a poltica via participao eleitoral.Nessas circunstncias, os setores militantes do movimento operrio podiam mesmoser atrados por tentaes golpistas. Foi oque de fato se deu no Rio de Janeiro em1918, quando organizaes anarco-sindicalistas planejaram um assalto ao Palciodo Catete, a ser realizado no mbito de umagreve geral e para o qual se contava com oapoio de praas do Exrcito. O plano fugiada tradio anarco-sindicalista. Sem dvida, inspirou-se, sobretudo no que se refereao tipo de aliana pretendido, na revoluobolchevista do ano anterior. A conspiraofoi denunciada e abortada. Aps 1922, omovimento operrio entrou em descenso.Seu maior impacto foi indireto e retardado.Aps 1930, a poltica social e trabalhistaentrou na agenda dos governos para nomais sair.Alm da ao espetacular das greves erevoltas, havia tambm atividade, emboramenos organizada, em torno de problemascotidianos. No dia-a-dia, a populao dacapital da Repblica, e certamente tambmde outras cidades, interagia com autoridades, sobretudo policiais, para protestar epara reivindicar. Encontrava mesmo canaisde se fazer ouvir, que no passavam nempela representao, nem pela rebeldia. Surpreendentemente, muitas das queixas dapopulao do Rio na poca no diferemmuito das de hoje. Giravam em torno desegurana, da qualidade dos servios p-blicos urbanos, das condies de vida (16).O povo da rua nas cidades era de militares, operrios, trabalhadores. No campo,era de beatos e bandidos. Mais controladanas regies da grande agricultura, a populao rural conseguia s vezes se fazer ouvironde predominava a pecuria ou a pequenaproduo de subsistncia. Na tradio doSegundo Reinado e incio da Repblica, ossertanejos eram freqentemente movidospor mistura de motivao religiosa e pol-tica. Os dois exemplos mais importantesdesse tipo de manifestao, no perodo,foram os movimentos do Contestado e doJuazeiro. O primeiro se deu no sul do pas,em terras contestadas pelos estados doParan e Santa Catarina; o segundo nossertes do Cariri, estado do Cear.O movimento do Contestado sobreviveu por mais tempo que o de Canudos, como qual apresentava semelhanas, graas asua mobilidade e ao fato de se ter localizado em regio de florestas, favorvel defesa contra expedies militares. Fora iniciado pelas pregaes do monge Joo Maria,ainda no Imprio. Proclamada a Repblica, o sucessor de Joo Maria reagiu negativamente nova ordem, que chamava delei da perverso, expresso que lembrava a lei do co, que era como o Conselheiro se referia ao novo regime. O movimento reativou-se em 1911, sob a lideran-a de um soldado desertor do Exrcito, quese fez chamar de Jos Maria, pretendendose irmo de Joo Maria. Fazendo uso deseus conhecimentos militares, Jos Mariadeu organizao ao movimento e tornoumais explcita a posio monarquista. Lan-ou um manifesto monarquista e nomeouimperador a um fazendeiro analfabeto. Foicombatido com violncia, inclusive comuso de canhes. Protegidos pela floresta,os crentes resistiram at 1915, quando foram dispersados por tropas federais. Calculou-se o nmero de crentes entre 5 e 12mil (17).O movimento baseava-se em valoresigualitrios e num estilo comunitrio devida. No havia dinheiro, nem comrcio,tudo era repartido entre os irmos. Prticas religiosas ocupavam quase todo o tempo dos fiis. O livro sagrado era CarlosMagno e os 12 Pares de Frana. Haviauma guarda de honra, chamada precisamente Os 12 Pares de Frana, composta de 24pessoas, e no de 12, pois escapava aoscrentes o sentido da expresso Par de Fran-a. Movimento profundamente religioso eutpico, negava radicalmente os piores tra-os do mundo rural da Primeira Repblica,a desigualdade e a dependncia da popula-o no proprietria em relao aos donosde terra. Os crentes acreditavam que omonge retornaria para estabelecer o reino16 Ver: Silva, 1988, p. 146. Oautor examina queixas publicadas em seo que a popula-o levava ao Jornal do Brasil.As relaes da populao coma polcia foram estudadas porMarcos Luiz Bretas (1977).17 Ver: M. I. P. de Queiroz, OMessianismo no Brasil e noMundo, pp. 268-82; e DuglasTeixeira Monteiro, 1974.110 REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003da felicidade, acabando tambm com aRepblica, smbolo do mal.Formado por populao tambm sertaneja, mas de caractersticas distintas, foi omovimento criado pelo padre CceroRomo Batista em Juazeiro, Cear. Iniciado tambm no Imprio, atingiu o auge durante a Primeira Repblica, tendo o PadimCio vivido at 1934. O pequeno arraial deJuazeiro, que tinha umas seis casas quandoPadre Ccero comeou a pregar, atingira 40mil por ocasio de sua morte. Padre Cceroprocurou tambm formar uma comunidade dominada pela religio. Juazeiro tornouse a Nova Jerusalm, a que no faltavamum Horto das Oliveiras e um Santo Sepulcro. Mas paravam a as semelhanas comCanudos e Contestado. O Padre no desafiava abertamente a religio nem se opunha Repblica. Seu movimento no eramessinico, nem utpico, no representava alternativa radical s realidades do mundo rural da poca. O Padre meteu-se empoltica, nos conflitos entre coronis, foiprefeito, vice-governador do estado. A seumodo, foi ele prprio um coronel paternalista. Tratava os fiis como crianas,aconselhava, castigava. Nada mais revelador da postura paternalista do que o usoda palmatria para castigar homens barbados que se comportavam mal (18).Juazeiro no foi uma repblica radicalmente distinta da repblica oficial, como oforam Canudos e Contestado. Mas, a seumodo, atendeu a um exigncia feita peloscrticos republicanos da Repblica, comoOliveira Viana e Gilberto Amado: aproximar o real do legal. Em seu conhecimentoprofundo da alma sertaneja, em sua habilidade em utilizar valores tradicionais paraintroduzir elementos de modernidade, Padre Ccero criou uma repblica paternalistamais prxima da populao do que a dosbacharis e dos coronis. Ele prprio estava prximo do povo, era respeitado e amado, o que no se podia dizer de nenhumpresidente da Repblica.Houve outros movimentos messinicosde menor expresso. Em Caldeiro, nomesmo Cear, os seguidores de Ccero,beatos Jos Loureno e Severino, criaramsua prpria comunidade. Seus mtodoseram distintos dos do Padim. Sua comunidade se aproximava mais do radicalismodo Contestado, sem dinheiro, sem propriedade particular. Acusada de prticas comunistas, a comunidade foi bombardeadae destruda no incio da dcada de 30. Maisde 400 seguidores de Senhorinho, um seguidor de Severino, foram massacrados porforas militares.Nem s de religio se alimentou a rebeldia sertaneja. Os cangaceiros, bandidossociais, eram produto do mesmo mundo doscoronis de que surgiram Canudos eJuazeiro. Reagiam situao de desigualdade e arbtrio que predominava no serto,mas utilizavam as mesmas tticas e mtodos mundanos dos coronis, sobretudo aviolncia. Tambm negociavam com osgrandes proprietrios e at mesmo com ogoverno, como quando aceitaram combater a Coluna Prestes. Eram, no entanto, umaforma de organizao popular, dotada defora prpria. Como tal, escapavam ao controle dos proprietrios e incomodavam asautoridades. No por acaso, seu maior inimigo eram as polcias estaduais, formadasembora por pessoas da mesma extraosocial (19)Beatos e bandidos representavam formasde organizao e protesto da populao rural que se davam margem do sistema poltico. Apresentavam modelos alternativosao da repblica oficial, com maior ou menorgrau de radicalismo. exceo de Juazeiro,foram todos destrudos a ferro e fogo e nodeixaram traos a no ser na memria popular. Canudos teve pelo menos a sorte deencontrar em Euclides da Cunha um intelectual da elite que o imortalizou.CANHES E VACINASO povo civil era mantido sob controlepela prpria estrutura social do pas. O povodas eleies era enquadrado nos mecanismos legais de cooptao e de manipulao,o povo da rua era quase sempre tratado abala.18 Ver: M. I. P. Queiroz, OMessianismo, pp. 253-68; eDella Cava, 1970.19 Sobre as bases sociais docangao, ver: Fac, 1965.REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003 111A violncia foi particularmente intensano combate aos movimentos messinicosrurais. De Canudos ao beato Loureno, oscrentes foram combatidos por tropas doExrcito e da polcia, com uso de artilhariapesada. No caso do Conselheiro, havia adesculpa da suposta ameaa ao novo regime. A desculpa no existia nos outros casos, embora os rebeldes do Contestado sedissessem monarquistas. No Caldeiro, opretexto j era o comunismo. Padre Ccerolivrou seu movimento da represso inserindo-o no conflito entre grupos de elite,sempre resolvido com menor grau de violncia. O cangao tambm teve algumasobrevida enquanto fez parte o jogocoronelista. Lampio correspondia-se enegociava com coronis baianos. Foi aRevoluo de 1930, em seu esforo de combater o coronelismo, que ditou seu fim violento nas mos da polcia baiana.A violncia tambm predominou nocombate ao povo da rua urbano, tanto o dosmovimentos tradicionais, como a Revoltada Vacina, como o de movimentos modernos, como as greves operrias, como o darevolta dos marinheiros. A famosa expresso da poca de que questo social era questo de polcia tinha um sentido preciso: erao delegado de polcia que tratava do assuntode greves. Era com ele que grevistas tinhamque negociar ou lutar. Mas a violncia eramenor do que no campo. O cenrio urbano,a maior visibilidade, inclusive internacionalpor causa dos imigrantes, garantiam aomovimento operrio maior proteo. Nascidades no se verificaram os massacres dossertes. Em todos esses movimentos, noentanto, emergia um trao comum: a incapacidade do regime de incorporar o povo darua, o povo politicamente ativo.No foi apenas com violncia que ogoverno tratou com os trs povos da Rep-blica. A elite ilustrada que se formara noltimo quartel do sculo XIX era obcecadapela idia de cincia, progresso, civiliza-o, modernidade. Parte dela acreditava queo povo brasileiro, por sua composio racial e caractersticas culturais, era incapaz deseguir outros povos no caminho da modernidade. Euclides da Cunha, mesmo exaltando o sertanejo, continuava descrente desua aptido para o progresso, prevendo mesmo sua extino (Cunha, 1980, p. XXIX).Outra parte dessa elite era menos pessimista. Julgava que ao civilizatria do Estadopoderia ainda recuperar a populao brasileira para a civilizao. Missionrios doprogresso, sados das escolas tcnicas (medicina, engenharia, militares), combateramo atraso nas cidades e no interior. Nas cidades, os representantes tpicos de tais misses foram o mdico Osvaldo Cruz e o engenheiro Pereira Passos, que empreenderam o saneamento e a reforma urbana doRio de Janeiro. O primeiro, em seu esforode vacinar compulsoriamente a populaocontra a varola, acabou provocando a revolta de 1904 (20).No interior, os mais conspcuos missionrios da civilizao foram os mdicossanitaristas Artur Neiva e Belisrio Pena eo general Cndido Rondon. Neiva e Belisrio percorreram em 1912 boa parte doNorte e Nordeste, verificando que o pasera um vasto hospital. Belisrio criou aseguir uma campanha nacional em favordo sanitarismo, identificando nas precriascondies de sade da populao o problema central do pas. Encontrou em MonteiroLobato um divulgador entusiasta de suasidias. Antigo descrente da capacidade domatuto, do jeca, que considerava um parasita, um piolho da terra, inadaptvel civilizao, o escritor paulista, influenciadopelos sanitaristas, passou a dizer que o jecano era assim, estava assim. A cincia e amedicina o salvariam (21).O general Rondon, positivista ortodoxo, foi o primeiro diretor do Servio deProteo aos ndios, criado em 1910. Percorreu o oeste abrindo estradas, estendendo linhas telegrficas, distribuindo ferramentas aos ndios. Na mesma regio, umatentativa insana de domar a natureza pelatcnica resultou em desastre total. A construo da estrada de ferro Madeira Mamor,ligando Brasil e Bolvia, obra de empres-rios norte-americanos, empregou 30 miloperrios, seis mil dos quais morreram naque foi depois chamada de Ferrovia doDiabo (22).20 Ver: Costa, 1985; eBenchimol, 1982.21 Ver: Pena, 1918; e Lobato,1959a, 1959b.22 Sobre Rondon , ver: Viveiros,1958. Sobre a Ferrovia do Diabo, ver: Hardman, 1988.112 REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003Os mtodos usados pelos missionriosda civilizao, e mesmo sua viso do povo,eram muito superiores aos dos que descriam da populao e dos que s podiam conceber a fora como instrumento de combate ao que consideravam rebeldia e atraso.No entanto, os reformistas ilustrados tambm no primavam pelas convices democrticas. O povo permanecia massa inerte, doente, analfabeta, que s poderia sertratado de maneira paternalista, quando noautoritria e tecnocrtica. Lobato, aps suaconverso, pregou a entrega de todo o poder aos higienistas. Os missionrios do progresso, ironicamente, se viam como salvadores do povo, do mesmo modo que osmessias do serto. Apenas no tinham oapoio popular e a capacidade de mobilizao dos ltimos.SADA POR CIMAEm 1922, revolta de jovens oficiais daEscola Militar do Realengo e do Forte deCopacabana, provocada por nova questomilitar ligada campanha presidencial,inaugurou o incio da crise da repblicaoligrquica. O elemento perturbador foi afora armada, que se mantivera silenciosadesde o governo do marechal Hermes daFonseca. O prprio marechal se viu frente da revolta. Outra revolta se seguiu em1924, ainda isolada do elemento civil. Mas,em 1930, a aliana da dissidncia oligrquica com os militares ps fim ao regime (23).Dois anos depois da primeira revolta,para celebrar o 35o aniversrio do regime,Vicente Licnio Cardoso organizou umacoletnea de ensaios escritos por autoresnascidos com a Repblica (Cardoso, 1990).O tom da maioria dos ensaios era de crticae desiluso. O prprio organizador, republicano convicto, afirmava na conclusodo livro: A grande e triste surpresa da nossagerao foi sentir que o Brasil retrogradou.E ainda: Foi profunda a nossa desiluso,por certo. [] Vemos a cada momento, emtorno a ns, a negao no s de tudo oque sonhamos, tambm de tudo o que pensamos (Cardoso, 1990, pp. 303, 304). Partilhavam do desencanto e das crticas alguns dos mais respeitados intelectuais dapoca includos na coletnea, GilbertoAmado, Pontes de Miranda, Tristo deAthade, Oliveira Viana. Tema recorrenteera o da ausncia de povo poltico no Brasil. No havia povo, no havia classes organizadas, no havia opinio pblica, nohavia partidos, no havia governo representativo, no havia repblica, no haviademocracia. Tratava-se de um diagnsticoque lembrava claramente a influncia deAlberto Torres, autor da admirao de todos os participantes da coletnea. Torresescrevera em 1914: Este Estado no umanacionalidade; este pas no uma sociedade; esta gente no um povo. Nossoshomens no so cidados (Torres, 1933,p. 297). Oliveira Vianna elaborava a anlise comparando o Brasil com a Inglaterra.L a ao do governo era dirigida de forapara dentro, vinha da presso de classes,grupos, clubes. Aqui, ao contrrio, o governo do povo era apenas governo de clse cteries politicantes que controlavam oscandidatos eleitos. No havia organizaosocial, opinio pblica capaz de se imporao governo. Nosso problema, diagnosticava, no estava em atacar os governos porno serem patriticos. Nenhum governo espontaneamente patritico, [] o nossogrande problema poltico est em obrigaros governos a serem patriticos (Vianna,1990, pp. 135-8).No se pode dizer que as crticas dessesautores estivessem equivocadas. Todoscomparavam um regime republicano idealizado com a dura realidade e tiravam aconcluso inescapvel da distncia entre oBrasil real e o Brasil legal. No entanto, haviaem todos eles uma incapacidade de ver opovo sob luz favorvel, de perceber o ladopositivo das aes do que chamei de povoda rua. Esse povo ativo ou era consideradofantico, ou obscurantista, ou desordeiro.O povo civil era simplesmente ignorante,analfabeto, doente, um Jeca Tatu. O povodas eleies era massa passiva de manobra.Como conseqncia, no viam sada para a23 Sobre o papel dos militares, ver:Carvalho, s.d.REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003 113Repblica que passasse pela interfernciapopular, que passasse pela democracia.Pontes de Miranda (1990) clamava por umaSegunda Repblica via reforma constitucional. Gilberto Amado pedia a formaode elites ilustradas de diretores mentais(Amado, 1990, p. 66). Oliveira Vianna queria nova mentalidade dos legisladores. Portrs de todas as sadas propostas, estava aindicao de Alberto Torres no sentido deque o Estado deveria retomar a tarefa deorganizar a nao.A Primeira Repblica no conseguiuunificar seus trs povos. No pde, ou nobuscou, transformar em cidado o jeca deLobato, o sertanejo de Euclides, o beato doContestado, o bandido social do cangao, ooperrio anarquista das grandes cidades.Liberal pela Constituio, oligrquica pelaprtica, no foi fruto de opinio democr-tica nem disps de instrumentos para promover essa opinio.Mas seria esse um epitfio justo para oregime que foi atropelado pela revolta de1930? Afinal, 1930 foi verso muito melhorada do golpe de 1889. Em vez de umaparada militar pelas ruas da capital, houveum movimento nacional surgido no bojoda reao a mais uma eleio fraudada.Havia militares de novo e havia oligarquiasdissidentes, mas havia tambm simpatiageneralizada entre intelectuais, entre setores mdios urbanos e mesmo entre oper-rios. Sobretudo, o movimento de 1930 distinguiu-se do de 1889 pelos resultados. Eleredefiniu de imediato a agenda poltica nacional, recolocou o Estado na liderana danao, trouxe a questo social e sindicalpara o centro do palco, gerou movimentosde mobilizao popular, provocou uma exploso de criatividade entre os pensadoresda sociedade e da poltica. De onde teriamsado essas foras renovadoras? Seriamsimples flores de pntano?Pode-se perguntar se o fracasso do regime no foi decretado pelos critrios que eleprprio estabeleceu ao se definir como repblica liberal, e que por mecanismos novistos e no previstos continuaram se movendo para a frente as foras da sociedade.Rebeldesda Revoluode 30114 REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003BIBLIOGRAFIAAMADO, Gilberto. Eleio e Representao. 3a ed. Rio de Janeiro, S Cavalcanti Editores, 1969 (1a ed. de 1931).________. As Instituies Polticas e o Meio Social no Brasil, in Vicente Licnio Cardoso (org.). Margem daHistria da Repblica. Recife, FJN/Massangana, 1990.BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. 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Iberismo eAmericanismo no Brasil. Essaobra me serviu de inspiraopara a redao dos trs ltimos pargrafos.REVISTA USP, So Paulo, n.59, p. 96-115, setembro/novembro 2003 115IBGE. Estatsticas Histricas do Brasil. Sries Econmicas, Demogrficas e Sociais de 1550 a 1988. 2a edio. Rio deJaneiro, IBGE,1990.LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. Rio de Janeiro, Forense, 1948.LESSA, Renato. A Inveno Republicana. Campos Sales, as Bases e a Decadncia da Primeira Repblica Brasileira.So Paulo/Rio de Janeiro, Vrtice/Iuperj, 1988.LOBATO, Monteiro. Velha Praga, in Urups. So Paulo, Brasiliense, 1959a, pp. 269-76.________. Jeca Tatu, in Problema Vital. So Paulo, Brasiliense, 1959b, pp. 329-40.MIRANDA, Pontes de. Preliminares para a Reviso Constitucional, in Vicente Licnio Cardoso (org.). Margem daHistria da Repblica. Recife, FJN/Massangana, 1990, pp. 143-77.MARTINS, Hlio Lencio. A Revolta dos Marinheiros, 1910. 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