carvalho -carvalho - 2011 - o reino do ndongo no contexto da restauração mbundu

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Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Ano IV, Nº 7, Julho/2011 7 O Reino do Ndongo no Contexto da Restauração: Mbundus, Portugueses e Holandeses na África Centro Ocidental Flávia Maria de Carvalho 1 Resumo: O principal objetivo do artigo é analisar as relações estabelecidas entre os governadores e funcionários da Coroa portuguesa e as autoridades locais do reino do Ndongo, no período de 1640 (Restauração portuguesa) a 1671 (fim da autonomia política da região). O período foi marcado por uma série de conflitos como as invasões holandesas nos territórios que posteriormente passaram a ser chamados de Angola, e embates travados entre religiosos da Companhia de Jesus e capuchinhos italianos que contestavam o monopólio do missionarismo português na África Centro Ocidental. Palavras-chaves: História de Angola, reino do Ndongo, elites políticas africanas, administração portuguesa. Abstract: The main purpose of this paper is to analyze the relations between governors and officials of the Portuguese Crown and local authorities of the kingdom of Ndongo, between 1640 (Restoration of Portugal) to 1671 (end of the political autonomy of its region). The period was marked by a series of conflicts as the Dutch invasion in the territories that later came to be called Angola, and clashes between religious caught the Society of Jesus and Italian Capuchin who were contesting the monopoly of Portuguese missionarism in Western Central Africa. Key-words: History of Angola, the kingdom of Ndongo, African political elites, Portuguese administration. Apresentação A partir da década de quarenta do século XVII o então reino do Ndongo passa a ser o cenário de importantes embates internacionais. Em um primeiro plano os colonizadores portugueses, estabelecidos nos territórios da África Centro Ocidental desde finais do século XV, são desafiados por invasores holandeses que tinham pretensões nítidas, e até mesmo óbvias, de tomar o controle do fornecimento de escravos. O momento também é o cenário da Restauração portuguesa 2 , marcando a retomada da soberania política portuguesa e a ascensão da Casa de Bragança sobre o reino e sobre suas possessões coloniais. Simultaneamente, a Coroa portuguesa e o Vaticano entram em embates sobre o controle das atividades missionárias. Conflitos protagonizados por inacianos portugueses e capuchinhos italianos, que não concordavam com o monopólio lusitano da evangelização. 1 Doutoranda em História da Universidade Federal Fluminense desenvolve pesquisas sobre as relações entre os governadores e demais funcionários da Coroa portuguesa e as elites políticas de Angola nos séculos XVII e XVIII, com projeto intitulado “Elites política angolanas: ngolas, sobas, macotas, macunzes e tandalas na dinâmica dos governos portugueses séculos XVII e XVIII”, orientado pela Profª Drª Mariza de Carvalho Soares. Mestre em História pela mesma instituição, com dissertação intitulada “Violência e corpo escravo: impasses nas experiências coloniais ilustradas - Rio de Janeiro e Angola na segunda metade do século XVIII”, orientada pelo Prof. Dr. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. 2 Adotamos como referências principais para as análises sobre a Restauração portuguesa os trabalhos de Eduardo D’Oliveira França. Portugal na época da restauração. São Paulo: Hucitec, 1997; e de Fernando Bouza Álvarez. Portugal no tempo dos Filipes. Política, cultura, representações. (1580-1668). Lisboa: Edições Cosmos, 2000.

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Carvalho - 2011 - O Reino do Ndongo no Contexto da Restauração Mbun

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  • Sankofa. Revista de Histria da frica e de Estudos da Dispora Africana Ano IV, N 7, Julho/2011

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    O Reino do Ndongo no Contexto da Restaurao: Mbundus, Portugueses e Holandeses na frica Centro Ocidental

    Flvia Maria de Carvalho1

    Resumo:

    O principal objetivo do artigo analisar as relaes estabelecidas entre os governadores e funcionrios da Coroa portuguesa e as autoridades locais do reino do Ndongo, no perodo de 1640 (Restaurao portuguesa) a 1671 (fim da autonomia poltica da regio). O perodo foi marcado por uma srie de conflitos como as invases holandesas nos territrios que posteriormente passaram a ser chamados de Angola, e embates travados entre religiosos da Companhia de Jesus e capuchinhos italianos que contestavam o monoplio do missionarismo portugus na frica Centro Ocidental. Palavras-chaves: Histria de Angola, reino do Ndongo, elites polticas africanas, administrao portuguesa. Abstract:

    The main purpose of this paper is to analyze the relations between governors and officials of the Portuguese Crown and local authorities of the kingdom of Ndongo, between 1640 (Restoration of Portugal) to 1671 (end of the political autonomy of its region). The period was marked by a series of conflicts as the Dutch invasion in the territories that later came to be called Angola, and clashes between religious caught the Society of Jesus and Italian Capuchin who were contesting the monopoly of Portuguese missionarism in Western Central Africa. Key-words: History of Angola, the kingdom of Ndongo, African political elites, Portuguese administration.

    Apresentao

    A partir da dcada de quarenta do sculo XVII o ento reino do Ndongo passa a

    ser o cenrio de importantes embates internacionais. Em um primeiro plano os

    colonizadores portugueses, estabelecidos nos territrios da frica Centro Ocidental desde

    finais do sculo XV, so desafiados por invasores holandeses que tinham pretenses

    ntidas, e at mesmo bvias, de tomar o controle do fornecimento de escravos. O

    momento tambm o cenrio da Restaurao portuguesa2, marcando a retomada da

    soberania poltica portuguesa e a ascenso da Casa de Bragana sobre o reino e sobre suas

    possesses coloniais.

    Simultaneamente, a Coroa portuguesa e o Vaticano entram em embates sobre o

    controle das atividades missionrias. Conflitos protagonizados por inacianos portugueses e

    capuchinhos italianos, que no concordavam com o monoplio lusitano da evangelizao.

    1 Doutoranda em Histria da Universidade Federal Fluminense desenvolve pesquisas sobre as relaes entre os governadores e demais funcionrios da Coroa portuguesa e as elites polticas de Angola nos sculos XVII e XVIII, com projeto intitulado Elites poltica angolanas: ngolas, sobas, macotas, macunzes e tandalas na dinmica dos governos portugueses sculos XVII e XVIII, orientado pela Prof Dr Mariza de Carvalho Soares. Mestre em Histria pela mesma instituio, com dissertao intitulada Violncia e corpo escravo: impasses nas experincias coloniais ilustradas - Rio de Janeiro e Angola na segunda metade do sculo XVIII, orientada pelo Prof. Dr. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. 2 Adotamos como referncias principais para as anlises sobre a Restaurao portuguesa os trabalhos de Eduardo DOliveira Frana. Portugal na poca da restaurao. So Paulo: Hucitec, 1997; e de Fernando Bouza lvarez. Portugal no tempo dos Filipes. Poltica, cultura, representaes. (1580-1668). Lisboa: Edies Cosmos, 2000.

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    Internamente a situao dos portugueses tambm no era estvel. Intrigas e guerras

    marcam esse perodo da presena portuguesa nos territrios dos povos mbundus, em

    contraponto com o discurso vigente no perodo anterior da Unio Ibrica, onde as

    instrues filipinas defendiam relaes pacficas entre colonizadores e as lideranas locais.

    Sustentados pelo discurso missionrio, os agentes da Coroa deveriam resgatar almas, ao

    mesmo tempo em que os corpos deveriam ser vendidos nos mercados americanos. O

    perodo posterior da Restaurao portuguesa marca a redefinio de estratgias junto as

    principais lideranas locais, perodo de guerras e de grande violncia principalmente nos

    governos de Salvador Correia de S, Joo Fernandes e Andr Vidal de Negreiros, perodo

    dos governos braslicos em Angola.

    Nesse contexto uma das principais prioridades entre os administradores

    portugueses era a meta de legitimar seu poder frente s ameaas internas e externas que

    fragilizavam o seu governo e seus objetivos nas regies do reino de Ndongo, que no ano de

    1671 perde sua autonomia, sucumbindo aos interesses metropolitanos, e passando a ser

    denominado Angola.

    Em sntese, o recorte cronolgico adotado mostra os desafios assumidos pelos

    portugueses para legitimar sua soberania nos territrios da frica Centro Ocidental, mais

    especificamente no reino do Ndongo, terra do povo mbundu.

    Dividimos o trabalho em trs partes:

    1 O reino do Ndongo: a corte africana do Ngola entre os mbundus;

    2 O Ndongo e as disputas internacionais;

    3 Angola braslica: os governos de Salvador Correia de S, Andr Vidal de

    Negreiros e Joo Fernandes.

    1 parte: O reino do Ndongo: a corte africana do Ngola entre os mbundus

    1.1. Territorialidade e identidade mbundu

    Os territrios do ento chamado reino do Ndongo compreendiam faixas de terra

    entre dois importantes rios da regio: o Kwanza e o Bengo. Cercado por importantes

    reinos da frica Centro Ocidental como o Congo e a Matamba, o Ndongo era habitado

    pelos mbundus3, povo de origem banto, falante de kimbundu, que segundo Jan Vansina

    teria migrado para a regio buscando reas com melhores potenciais agrcolas4.

    3 A regio era habitada majoritariamente pelo povo mbundu, tambm chamado e grafado em alguns textos e fontes como umbundu. 4 VANSINA, Jan. Paths in the Rainforests. Toward a History of Political Tradition in Equatorial Africa. Madison. Wisconsin, 1990.

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    A principal autoridade entre os mbundus era o Ngola5, ttulo que deu origem a

    designao portuguesa Angola para suas conquistas. Contudo o poder do Ngola era restrito

    e limitado. Muitos dos sobas que viviam em seus domnios eram totalmente independentes,

    ou por razes geogrficas que dificultavam o acesso a esses sobados, ou pela ausncia de

    legitimidade do poder poltico do Ngola junto a esses chefes locais. Alguns sobas

    reconheciam o Ngola somente por seus poderes msticos, como por exemplo, em relao

    ao dom de fazer a chuva6, mas no o viam como autoridade poltica.

    O sistema poltico e administrativo do reino do Ndongo nesse perodo era diferente

    do modelo vigente no reino do Congo, como esclarece Birmingham:

    Contrariamente ao Congo, onde, por exemplo, um mani Mbata era governador da provncia de Mbata, um mani Mbamba governador da provncia de Mbamba e assim por diante, no Ndongo no havia governadores de provncias. [...] Cada uma dessas regies dividia-se em numerosos chefados (sobados), na sua maioria autnomos7.

    Essa diferena organizacional entre Congo e Ndongo foi determinante para a

    definio da meta dos portugueses na regio. Seria mais vantajoso concentrar os esforos

    para a contestao da soberania do Ngola do Ndongo junto aos seus sobas, do que do

    Mani Congo junto aos manis provinciais.

    A presena dos portugueses na regio, e seu relacionamento com os mbundus,

    implicaram na necessidade da decodificao de smbolos e procedimentos relacionados ao

    exerccio do poder, itens totalmente desconhecidos pelos pioneiros, mas que aos poucos

    foram se tornando familiares aos sucessores da empreitada africana nos territrios do

    Ndongo.

    O historiador Luiz Felipe Barreto8 analisou essa questo de forma genrica em seus

    estudos sobre as etapas multisseculares do processo de colonizao portugus. A

    contribuio salienta como um imperativo do aprendizado da realidade colonial para a

    definio de estratgias e de metas especficas para cada regio do ultramar portugus.

    Os descobrimentos antropolgicos seriam produtos da aquisio de informaes e da

    compreenso dessas linguagens e simbolismos variados sobe os modelos de organizao e

    5 HEINTZE, Beatrix. Angola nos sculos XVI e XVII. Estudos sobre fontes, mtodos e Histria. Luanda: Ministrio da Cultura, 2007. De acordo com a historiadora, outra terminologia utilizada para o ttulo dos reis do Ndongo era Kiluanji. 6 Era comum os sobas enviarem pagamentos para o Ngola em troca de chuvas. Era responsabilidade dos sobas fazerem com que esses tributos chegassem s mos do Ngola, no existiam cobradores de impostos na corte do Ngola. HEINTZE, Beatrix. Op cit. 7 BIRMINGHAM, David. Alianas e conflitos. Os primrdios da ocupao estrangeira em Angola (1483-1750). Luanda: Arquivo Histrico de Angola, 2004. 8 BARRETO, Luiz Felipe. Os Descobrimentos e ordem do saber uma anlise scio cultural. Lisboa: Ed. Gradiva, 1989. Luiz Felipe Barreto no analisa casos especficos da colonizao portuguesa, mas insere a noo das Descobertas Antropolgicas para a compreenso da presena portuguesa nos territrios ultramarinos portugueses.

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    identificao de hierarquias e dos canais de comunicao teis na construo de uma

    relao entre colonizadores e as autoridades locais.

    A ocupao portuguesa na regio, iniciada no sculo XV, forneceu esses pr-

    requisitos aos agentes colonizadores, o que fez com que no sculo XVII, em comparao

    com seus rivais estrangeiros, os portugueses levassem vantagens em alguns itens. Essa

    bagagem cultural favoreceu os deslocamentos dos lusitanos pelo interior, a comunicao

    com pombeiros e tangomaos9, assim como a compreenso de terminologias lingusticas

    kimbundus, porm no bastou para que posteriores alianas entre os mbundus e

    estrangeiros fossem evitadas, quando estes sinalizavam com vantagens comerciais no trato

    negreiro.

    Do estabelecimento de feitorias, passando pela adoo do sistema de capitanias

    hereditrias efetivado por Paulo Dias Novais10, at os investimentos militares para a

    subordinao do reino do Ndongo, os portugueses experimentaram mtodos diversificados

    na tentativa de tornar Angola uma pea funcional em seu sistema colonial.

    O sistema de capitanias foi implementado por uma Carta Rgia no ano de 1571,

    definia os limites dos territrios localizados nas margens do rio Kwanza. De acordo com

    essa Carta Rgia essa capitania deveria ser dividida em duas partes: uma moldada nos

    moldes tradicionais das capitanias implementadas na Amrica Portuguesa, outra parte que

    deveria ser posteriormente devolvida Coroa portuguesa. Aps a morte de Paulo Dias

    Novais, vrias tenses passaram a tomar conta dos territrios de Angola motivadas pelas

    disputas de sucesso, esses desentendimentos passaram a ser uma preocupao para os

    colonizadores, o que levou a Coroa anular o sistema de capitanias e implementar o sistema

    de governo-geral no ano de 1592, e no ano de 1595 foi criado o asiento privilgio de

    fornecimento de escravos por parte dos traficantes portugueses para os mercados da

    Amrica Espanhola11.

    A instruo da Coroa portuguesa que estava voltada para a reduo do poder do

    Ngola tinha propsito claro: ampliar as reas de fornecimento de escravos para o crescente

    9 ZERON, Carlos Alberto. Pombeiros e Tangomaos, intermedirios do trfico de escravos na frica sculo XVI. In: II Colquio Internacional sobre mediadores culturais. Lagos: Centro de Estudos Gil Eanes, 1999, p. 15-38. Segundo o historiador a grafia da palavra pumbeiro se aproxima do termo do dialeto africano kimbundo pumbu, da mesma forma que mpunbu, que significam originalmente trs pontos comerciais, relacionados aos grandes mercados da frica Centro Ocidental. 10 O sistema de capitanias foi implementado no ano de 1571 atravs de uma Carta Rgia do mesmo ano. 11 O trabalho de Maria de Ftima Gouva fornece um importante mapeamento do quadro administrativo das heterogneas possesses do Imprio Ultramarino Portugus, analisando o papel dos privilgios e das redes clientelares na formao desses quadros burocrticos. GOUVA, Maria de Ftima. Poder Poltico e Administrao na Formao do Complexo Atlntico Portugus (1645-1808). In: FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVA, Maria de Ftima (Orgs.). O Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001, p. 285-315.

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    mercado atlntico de meados do sculo XVII, alm de assegurar uma importante aliana

    previamente defensiva s possveis, e anunciadas, invases holandesas na frica Centro

    Ocidental.

    Os Ngolas tinham seu poder marcado pelo sobrenatural, seriam os grandes

    responsveis por trazer a chuva. Sua funo era estratgica para a manuteno da unidade

    do reino, mesmo quando para muitos sobas essa vertente mstica era a nica reconhecida.

    Para os mbundus o controle da natureza era uma atribuio do Ngola, relacionando essa

    prtica ao dom de comunicao com os ancestrais, elemento estranho aos colonizadores

    portugueses, que precisaram de tempo para compreender a forte presena da ancestralidade

    e do componente mgico da figura real no processo de reconhecimento de seu soberano.

    As hipteses explicativas sobre as origens do primeiro Ngola foram analisadas por

    Miller12. De acordo com seus estudos o primeiro Ngola no teria sido uma pessoa concreta,

    mas sim o princpio abstrato da organizao poltica baseada no Ngola, que

    originalmente teria constitudo um emblema de linhagem em forma de um pedao de ferro.

    Um componente cultural marcante do povo mbundu foi a valorizao das

    tradies, e a fora da oralidade na preservao de valores e crenas. Graas a isso, a

    tradio do rei ferreiro foi preservada em vrias regies da frica Centro Ocidental, ponto

    que pode ser percebido tambm no uso de insgnias comuns em diferentes regies.

    Frente a isso os portugueses constataram a funo mltipla do Ngola, que, portanto

    deveria ser mantido no poder, desde que fosse um aliado portugus. Esse objetivo foi

    conquistado no ano de 1626, quando auxiliado pelos portugueses assumiu o ttulo mximo

    do Ndongo, Ngola Ari13, que se manteve durante toda sua vida um aliado incondicional

    dos portugueses.

    1.2. A hierarquia do Ndongo em meados do sculo XVII

    O reino do Ndongo era formado por uma sociedade altamente hierarquizada, onde

    papis eram muito bem definidos, e a prestao de servios ao Ngola levou formao de

    uma complexa corte.

    Alm do Ngola e dos sobas, existiu no Ndongo um grupo extremamente poderoso:

    os makotas. Esses eram homens descritos como idosos, que exerciam a funo de

    12 MILLER, Joseph C. Poder poltico e parentesco. Os antigos Estados mbundus em Angola. Luanda: Ministrio da Cultura, 1995. 13 Ngola Ari auxiliou em vrios momentos os portugueses, entre seus feitos exemplificamos a vitria dos portugueses auxiliados por suas tropas, na vitria sobre a rainha Nzinga, entre 1626 e 1627. BIRMINGHAM, David. Op cit. HEINTZE, Beatrix. Op cit.

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    aconselhar o Ngola. Sua influncia era tamanha que chegava a limitar o poder dos sobas e

    at mesmo a interferir nos processos de sucesso dos Ngolas.

    A sucesso real entre os mbundus deveria seguir os princpios baseados na

    matrilinearidade, vlido na poligmica sociedade do Ndongo. De acordo com os relatos de

    Cadornega14 o sucessor do Ngola deveria ser filho da esposa principal do rei, caso esta no

    tivesse filhos, o herdeiro deveria ser o filho da segunda esposa. Os filhos do rei com

    escravas no tinham direito a pleitear o cargo, princpio vlido tambm para as sucesses

    entre os sobas. O que Cadornega nos mostra o papel decisivo dos makotas no processo

    sucessrio.

    Atravs da anlise entre velhice e conhecimento identificamos a valorizao da

    experincia de vida, alm do peso da oralidade na divulgao e preservao ancestral desses

    aconselhamentos entre a cultura mbundu.

    De acordo com Beatrix Heintze15 a hierarquia dos mbundus era formada por vrios

    outros grupos. Abaixo dos Ngolas e dos makotas, estavam os sacerdotes supremos

    chamados mani-ndongos, abaixo vinham os tandalas, espcie de primeiros ministros, em

    seguida os tandalas de cari, ministros secundrios, na sequncia vinham as lideranas

    militares representadas pelos ngolambole, que eram os chefes dos exrcitos, depois os

    ferreiros, grupo tambm ligado aos poderes sobrenaturais em funo da relao entre a

    origem do Ngola e o mito do rei ferreiro, e as especializaes funcionais do squito do

    Ngola: o criado (mordomo): mwene lumbu, o roupeiro: mwene musete, o chefe de cozinha:

    mwene quizoula e os embaixadores que representavam a autoridade real nos acordos que

    exigiam deslocamentos: os macunzes16.

    A estratificao social entre os mbundus tambm comprovada pela existncia de

    grupos que poderiam ser escravizados e de outros que no poderiam. Na lngua kimbundu,

    os murindas eram pessoas que no poderiam perder sua liberdade, evidenciando os

    privilgios e as desigualdades nos estatutos sociais.

    As terminologias podem variar quando as fontes so confrontadas, como o que

    ocorre na anlise do Dirio annimo de uma viagem s costas dfrica e as ndias espanholas17.

    14 A obra de Cadornega uma das mais importantes fontes para a histria da presena portuguesa em Angola. Descrevendo com detalhes muitos hbitos e feitos da colonizao angolana, Cadornega sem dvida uma referncia essencial para os estudos africanistas. CADORNEGA, Antnio de Oliveira. Histria Geral das Guerras Angolanas. Lisboa: Divises de Publicaes e Biblioteca, 1942. 15 HEINTZE, Beatrix. Op cit. 16 Idem. 17 Dirio annimo de uma viagem s Costas dfrica e s ndias Espanholas. Organizado e comentado por Gilberto Ferrez. In: Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, vol. 267, abril-junho de 1965. Esse manuscrito tem como ttulo original: Journal dun vouyage sur ls costes dafrique et aux Indes dEspagne avec une description particulire de la rivire de la Plate, de Buenosayres, e autres lieux; commenc en 1702 et fini en 1706, editada em

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    Trabalhando com esse fascinante relato nos deparamos com outros termos para a

    designao do squito do Ngola.

    O documento, transcrito na Revista do IHGB e editado junto a um comentrio de

    Gilberto Ferrez, descreve a incrvel trajetria de um espio annimo enviado frica

    para fiscalizar, e reportar, para um amigo em Paris todas as etapas do trfico. O objetivo

    de sua viagem era obter escravos na costa africana e transport-los para Buenos Aires. A

    embarcao cedida pelo rei francs Compagnie Royale de lAssiente saiu das regies de La

    Rochelle no ano de 1702 e partiu em direo as terras de Loango e posteriormente de

    Cabinda.

    Ao chegar s terras de Cabinda o espio se deparou com quatro embarcaes: uma

    holandesa, duas portuguesas e uma inglesa. Essa afirmao nos mostra a abertura

    internacional do trfico na costa Centro Ocidental no incio do sculo XVIII, e a

    dificuldade encontrada pela Coroa portuguesa para estabelecer um controle efetivo sobre o

    fornecimento de escravos para Europa e para as colnias.

    Os trechos mais ricos do documento so os que descrevem os procedimentos

    necessrios para se estabelecer os contatos iniciais com o principal soba das terras de

    Cabinda. Assim como em outros relatos, a moradia do soba descrita como um local

    isolado, que exigia um deslocamento aproximado de quatro lguas em relao costa.

    David Birmingham18 mostra que o isolamento dos Ngolas era um comportamento

    comum. Os reis permaneciam em suas propriedades mantendo contatos restritos somente

    com alguns de seus funcionrios, que eram incumbidos de represent-los junto aos

    estrangeiros interessados em estabelecer alianas e obter a permisso prvia para a

    instalao dos barraces no litoral. Esse hbito do Ngola refora o carter mstico da

    autoridade do chefe mbundu, ao mesmo tempo em que descentralizava o poder decisrio

    do Ngola, j que suas ordens eram transmitidas por terceiros, em funo da opo pela

    ausncia de contatos com os colonizadores e demais autoridades locais que por ventura

    necessitassem estabelecer acordos e alianas.

    Amsterd em 1723. Na Biblioteca Nacional existe outra edio dessa fonte rara, que foi trabalhada por Affonso dEscragnolle Taunay, que utilizou o Dirio em seus trabalhos Na Bahia Colonial 1610-1764 e Rio de Janeiro de antanho, no captulo Oficial negreiro publicado pela RIHGB, no tomo 90, vol. 144. Taunay tambm utilizou a preciosa fonte em seu clssico Subsdios para a Histria do trfico africano no Brasil Colonial. A verso lida por Taunay foi editada na mesma cidade, s que sua data de edio varia para 1730. Alm dele Regine Pernous fez um estudo sobre esse documento que foi publicado com o ttulo LAmerique du Sud au XVIII sicle no Cahiers dHistoire et de Bibliographie n 3, Nantes, 1943. Para esse trabalho a pesquisadora teve acesso outra edio do manuscrito tambm datada de 1723 e editada em Rouen. 18 BIRMINGHAN, David. Op cit.

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    No j citado Dirio annimo o rei designado como Angoye19, e o chefe responsvel

    pelo comrcio como mafougne que acompanhado por um capito portugus deveria

    conduzir os franceses at o rei Angoye. Nas palavras do viajante annimo:

    Entraram ento para ver o rei do pas. O rei Angoye residia a quatro lguas de Cabinda, e recebeu-nos no dia 21. Para isso enviaram uma embaixada que foi levada por um capito portugus e o Mafougne, ou chefe do comrcio; aguardava-os em terra com redes e negros que deveriam conduzi-los at o rei. A duas lguas dali, encontraram vrios oficiais e guardas que o rei enviara para receb-los. Todos incorporados chegaram ao palcio (se tal nome se pode dar a uma cabana feita de bambus e coberta de palha). Graas a oferta de magnficos presentes, um manto escarlate, um robe-de-chambre e um chapu com penacho de plumas brancas, o rei prometeu ajud-los a obter os negros que precisava. Tiveram tambm licena para construir uma feitoria ou barraco para depsito das mercadorias trazidas da Europa, com que deveriam adquirir os 500 negros que pretendiam levar; isso requeria tempo, muita diplomacia, sagacidade e pacincia, presentes e uma srie de complementos20.

    Nas palavras do annimo nunca se despede sem antes beber. Por isso preciso

    trazer algumas garrafas de cachaa, que a alma da conversa e sem o que seria bem difcil

    chegar a algum acordo com os negros 21.

    Nas pginas do Dirio surgem outros cargos dos africanos que compunham esse

    cenrio de trocas variadas. O rei tinha secretrios e conselheiros, sendo que alguns falavam

    at portugus. Entre eles os destacados pelo autor foram: o mambuc, que era o primeiro

    ministro e sucessor do rei; o maure, que era o segundo ministro e chefe do Conselho, e o

    macinge, que era o capito da costa, que alm de outras funes abastecia os navios

    negreiros.

    Entre os intermedirios do trfico destacamos os pumbeiros e os tangomaos22. Os

    pumbeiros representavam os interesses portugueses nos negcios do trfico, eram os

    agentes legais da operao, enquanto os tangomaos eram os atravessadores que

    negociavam escravos sem a permisso da Coroa portuguesa, que desde o sculo XVII j

    havia instaurado regulamento para o controle das atividades de resgate, venda e transporte

    dos africanos. Os tangomaos em contrapartida eram mais integrados s comunidades com

    que mantinham relaes, passando a ter um vnculo maior com os hbitos e as formas de

    viver dos africanos. Outra diferena entre os dois grupos era a forma com que eles se

    inseriam nos grupos locais. Os pumbeiros se aproximavam das populaes africanas com o

    interesse definido voltado para obteno de informaes sobre quais seriam as melhores

    possibilidades de trocas para a aquisio dos cativos.

    19 Precisamos estar atentos quanto utilizao literal desses termos, j que temos a noo de que eles foram transcritos por um francs, a partir do que ele ouvia nas terras de falantes de kimbundu. 20 FERREZ, Gilberto (org.). Dirio annimo.... Op cit 21 Idem. Identificao de determinados itens valorizados nas etapas que garantiam o contato com as autoridades nativas. 22 ZERON, Carlos Alberto. Op cit.

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    Essa aproximao dos tangomaos, ou lanados, com a cultura africana foi

    comentada pelo jesuta J. Tavares, que vivia em Angola mostrando como a lgica do trfico

    repercutiu em variados procedimentos comportamentais, alterando at mesmo suas

    caractersticas:

    Vestindo-se como nativos, entalhando no rosto as marcas das etnias locais, os lanados foram os primeiros europeus a se adaptarem aos trpicos. Andam nus e para mais se acomodarem, e com o natural usarem o gentio da terra onde tratam, riscam o corpo todo com um ferro [...] e fazendo nele muitos lavores [...] que ficam parecendo em vrias figuras, como de lagostas, serpentes [...] andam por todo aquele Guin tratando e comprando escravos por qualquer ttulo que os pode haver23.

    As marcas tatuadas pelos tangomaos representam prticas relacionadas ao uso do

    corpo como um veculo de comunicao. Os registros corporais tinham como propsito

    identificar esses indivduos como membros das sociedades locais, expressando visualmente

    que eles compreendiam suas linguagens e seus cdigos.

    Aventureiros, cristos-novos, ou degredados, os tangomaos viam no negcio

    negreiro uma possibilidade rentvel de negcio, passando a adotar as colnias africanas

    como moradia, onde poderiam deixar de lado seus estigmas marginalizados e se integrar de

    uma forma ativa na economia e na vida social local.

    Essas variaes na nomenclatura do squito sinalizam para questes referentes as

    diferentes tradues das variantes de lnguas do tronco lingustico banto, ao mesmo tempo

    nos permitem hipoteticamente questionar a variao de cargos, e de suas denominaes, no

    governo de diferentes Ngolas. Beatrix Heintze24 em sua coletnea de artigos sobre Angola

    no sculo XVII dedica cinco captulos introdutrios para a discusso de possibilidades

    metodolgicas, e da importncia da crtica de fontes utilizadas nas pesquisas sobre Angola

    colonial. Discute pontos relevantes como a produo de fontes ser em sua maioria produto

    da viso europeia, e da utilizao de registros extrados da tradio oral dos povos

    mbundus. A historiadora defende a utilizao cuidadosa e o confronto de fontes para a

    aquisio e utilizao de informaes seguras.

    Seguindo algumas dessas sugestes metodolgicas, traando paralelos cuidadosos,

    podemos concluir que a sociedade do Ndongo possua um vasto squito dedicado aos

    servios do Ngola, funcionrios estes que muitas vezes representavam a autoridade real

    desempenhando importantes funes nas etapas africanas do trfico negro, principalmente

    nas negociaes que intermediavam o contato entre as lideranas mbundus e os agentes

    responsveis pela aquisio dos negros no interior dos reinos da frica Centro Ocidental.

    23 Palavras do cronista J. Tavares, citado por Luiz Felipe de Alencastro em seu livro O Trato dos viventes : Formao do Brasil no Atlntico Sul. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 48. 24 HEINTZE, Beatrix. Op. cit.

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    1.3. Nos bastidores do trfico: acordos e barganhas na busca pelas peas da ndia

    As trocas de mercadorias por corpos marcaram as primeiras etapas do trfico.

    Desse ponto podemos discutir as transformaes ocorridas nas sociedades mbundus aps a

    abertura do mercado atlntico. Um item significativo foi a introduo de novos valores

    materiais entre essas comunidades.

    Entre os gneros mais apreciados pelos agentes africanos do trfico estavam

    objetos de estanho, objetos de cobre, espelhos, miangas, armas, munies, rolos de tabaco

    e tecidos. Segundo Pierre Chaunu: Certas culturas africanas pagaram o luxo dos panos de

    cor que a sua indstria no sabia produzir, mas que o gosto desejaria, pelo preo elevado

    duma exportao de homens 25.

    A cachaa tambm era muito apreciada, mas normalmente ela era fornecida aos

    intermedirios como cortesia, no sendo usada na troca por escravos. Todos os negcios

    tinham como medida de equivalncia a referncia de uma pea, e as suas fraes que eram

    as meias-peas e as braas, que equivaliam a um quarto da pea.

    O termo pea da ndia, por sua vez, valia vrias peas. A definio, negro pea da

    ndia, era a representao em mercadorias do que se considerava como valor mximo de

    um escravo, podendo ser tambm convertido de acordo com o gnero e, ou a idade dos

    cativos. O significado desse termo vem sido trabalhado pela historiografia. Na definio de

    Regine Pernoud26 o termo negro pea da ndia era um africano entre 15 e 35 anos sem defeitos

    fsicos e de boa constituio. J para Roy Glasgow a definio aplicada ao escravo de

    primeira [...] entre os 18 e os 24 anos de idade, com cerca de seis ps (mais ou menos) de

    altura e sem nenhum defeito fsico27.

    Affonse dEscragnolle Taunay relaciona o uso dessa expresso ao hbito de se

    empilharem os escravos da mesma forma que os tecidos indianos, em suas palavras:

    arrumando a mercadoria humana como se tratasse de fardos, a empilhar as suas vtimas de tal modo que ainda lhes sobraria espao para os clandestinos escapos dos rigores da taxa de exportao. [...] Assim ao nosso ver o nome pea da ndia originou-se de uma comparao de valores entre escravos e peas de pano de procedncia indiana28.

    25 CHAUNU, Pierre. A civilizao da Europa das Luzes. Lisboa: Ed. Estampa, 1985, vol. II, p. 48. 26 Gilberto Ferrez escreve que para Regine Pernoud, uma pesquisadora que analisou anteriormente o documento buscando uma identificao de seu autor, o termo negro pea da ndia era um africano entre 15 e 35 anos sem defeitos fsicos e de boa constituio. FERREZ, Gilberto (org). Dirio.... Op. cit. 27 GLASGOW, Roy. Nzinga. Resistncia africana ao colonialismo portugus em Angola. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1982, p. 54. 28 TAUNAY, Affonso de Escragnolle. Subsdios para a Histria do trfico africano no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Imp. Nacional, 1941, p. 589.

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    No reino de Cabinda, localizado nos arredores das possesses portuguesas de

    Angola, um escravo pea da ndia valia, em mdia, dez peas e uma braa; enquanto uma

    escrava pea da ndia valia, tambm em mdia, oito peas e uma braa; j as crianas

    escravas, independente do sexo, valiam em torno de seis a sete peas e uma braa29. Uma

    pea podia ser negociada por determinados objetos, como por exemplo, dez bacias de

    cobre, ou por seis canecas pequenas de estanho, ou por vinte e quatro facas, mas nem

    todos os produtos poderiam ser usados no escambo, quando o africano que estivesse

    sendo negociado era uma pea da ndia, nesse caso somente os itens mais desejados

    entravam nas transaes30. Essas eram cotaes dos mercados negreiros que variavam de

    acordo com os traficantes, fornecedores e futuros senhores.

    Como salientou Marina de Mello e Souza:

    O comrcio com os portugueses e as mercadorias que introduzia forneciam novos e abundantes signos de prestgio. Dessa forma, os chefes envolvidos no trfico, principalmente de escravos, tornavam-se mais poderosos e expandiam seus territrios e aldeias tributrias. Essas expanses davam-se por meio de guerras que mediam o poder dos chefes, estabeleciam novas composies polticas e territoriais e produziam escravos, disputados pelos mercados interno e externo, com um gradual predomnio deste31.

    Partindo desses acordos comerciais vrias redes foram formadas, em muitos casos

    aproximando as duas margens do Atlntico portugus e permitindo que grupos particulares

    realizassem seus negcios margem da fiscalizao metropolitana. Essas alianas exigiram

    dos colonizadores estratgias cuidadosas, onde o embate direto, conflitos fsicos e as

    guerras, no deveriam ser os principais recursos para viabilizar os negcios, mas que foram

    mais constantes do que os discursos da Coroa idealizavam.

    2 parte: O Ndongo e as disputas internacionais

    2.1. Quem manda? Quem obedece? Interesses e projetos mltiplos para a administrao do reino

    do Ndongo

    O Portugal dos Filipes no se tinha construdo sobre a residncia do rei, mas sim sobre uma ausncia (Bouza lvarez)

    29 As braas entram no preo dos escravos como taxa dada aos intermedirios que cotavam esses valores. Cf. FERREZ, Gilberto. Dirio annimo.... Op. cit. 30 De acordo com o relato do viajante annimo os intermedirios, pumbeiros e tangomaos, determinavam quais eram os produtos que iriam ser trocados, e que deveriam ser envolvidos em cada etapa no mximo dois itens. Idem. 31 SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista. Histria, mito e identidade na festa de coroao de rei congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.

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    A afirmao de Bouza lvarez pode ser ampliada tambm para questes

    relacionadas administrao colonial. Partindo dela podemos pontuar tanto a existncia de

    dificuldades na afirmao da soberania portuguesa tanto junto aos mbundus, quanto aos

    estrangeiros que cobiavam o lucrativo mercado atlntico de escravos.

    Durante o perodo da Unio Ibrica (1580-1640) as possesses coloniais

    portuguesas foram governadas pelo Conselho de Portugal instituio sediada em Madri,

    que posteriormente teve suas atribuies transferidas para o Conselho Ultramarino.

    Nesse perodo a poltica filipina discursava sobre a importncia das atividades

    missionrias junto s almas pags dos africanos, e defendia o estabelecimento de contatos

    pacficos com as autoridades africanas. Nas entrelinhas dessas intenes identificamos nos

    ideais evangelizadores do resgate uma excelente oportunidade para a obteno de escravos

    destinados aos mercados atlnticos. Os tratados teolgicos procuraram durante todo o

    perodo escravista justificar e normatizar a captao e o cativeiro africano32.

    Logo aps a Restaurao portuguesa, no ano de 1642, foi criado o Conselho

    Ultramarino33, importante instituio responsvel pela conduo da administrao colonial,

    com meta de normatizar as aes e nortear a conduo dos negcios ultramarinos

    portugueses. Interpretamos a criao do Conselho Ultramarino como um reflexo da

    poltica portuguesa restaurada pela Casa de Bragana com pretenses de reafirmar sua

    soberania nos territrios coloniais.

    O perodo posterior Restaurao representou uma virada determinante no que diz

    respeito ocupao dos territrios da frica Centro Ocidental. A Coroa portuguesa, agora

    sobre o governo de Dom Joo IV, tinha pela frente trs desafios principais no que diz

    respeito ao reino do Ndongo. O primeiro objetivo era restabelecer a soberania nos

    territrios coloniais, aps sessenta anos da administrao filipina, o segundo era impedir a

    perda desses territrios para estrangeiros interessados no negcio negreiro, o que

    enfraqueceria consequentemente a economia da Amrica portuguesa, e o terceiro objetivo

    era a implementao de uma bem sucedida poltica junto s autoridades dos mbundus.

    32 Entre os principais tratados teolgicos destacamos a obra de Manuel Ribeiro da Rocha, e suas definies sobre o que viria a ser o resgate humanitrio. Ethope resgatado... Lisboa: Of. patriarcal de Francisco Luiz Amaro, 1758. Jorge Benci e os ensinamentos sobre as metodologias crists para o castigo de escravos em A economia crist dos senhores no governo dos escravos. So Paulo: Ed. Grijalbo, 1977. E o sermo do padre Antnio Vieira sobre a condio escrava dos corpos cativos e a conquista da liberdade de suas almas. VIEIRA, padre Antnio. Maria Rosa Mystica. Excellncias poderes e maravilhas do seu Rosrio. Compendidas em trinta sermes ascticos e panagyricos sobre os dois Evangelhos desta Solenidade, Novo e Antigo. Lisboa: Imp. Craesbeckiana, 1688. 33 O Conselho Ultramarino assumia as antigas funes do Conselho das ndias das Conquistas Ultramarinas, de acordo com Maria de Ftima Gouva a retirada do termo ndias representou o crescimento das colnias atlnticas em detrimento das possesses asiticas. GOUVA, Maria de Ftima. Op. cit.

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    Um importante embate, que teve como cenrio o reino do Ndongo, em meados do

    sculo XVII, foi promovido pelas diferenas entre os jesutas portugueses e os capuchinhos

    italianos. No ano de 1622, o papa Gregrio XV criou a Propaganda Fide, instituio que

    defendia o fim do exclusivismo portugus nas atividades missionrias. Eram favorveis

    abertura dos trabalhos de evangelizao para outras ordens religiosas, contrariando dessa

    forma os interesses da Companhia de Jesus. Esse conflito evidenciava os atritos entre a

    Coroa portuguesa e o Vaticano, e teve desdobramentos decisivos para histria da frica

    Centro Ocidental, evidenciando as alianas entre os poderes locais e os membros religiosos,

    muitas vezes defensores dos interesses de seus pases.

    Um dos casos mais relevantes foi a disputa entre esses grupos pela converso da

    rainha Nzinga34, personagem clebre e polmica citada e debatida pelos mais variados

    autores. A histria da cruel rainha extrapola a questo da evangelizao e fornece

    tambm uma perspectiva para os estudos sobre as alianas e as disputas de poder

    envolvendo portugueses, holandeses, jagas e mbundus na segunda metade do sculo XVII.

    Nzinga reivindicava o trono do Ndongo, de acordo com seus argumentos ela seria a

    legtima herdeira do reino por ser a neta de um antigo soberano da regio chamado

    Chiluangi Chiamdambi Angola (Kiluanj Kia Ndambi a Ngola). Os portugueses no viam

    com bons olhos essa pretenso de Nzinga, em funo de seu temperamento difcil e de

    seus hbitos jagas. Travaram com ela muitas batalhas, que marcaram o mandato de

    alguns governadores, como por exemplo, a administrao de Joo Correia de Sousa, de

    Ferno de Sousa, Bartolomeu Vasconcelos da Cunha e Lus Mendes Chichorro.

    Nesse contexto, as instrues da Coroa portuguesa, repassada e endossada pelos

    governadores, visavam coroao de um Ngola aliado dos portugueses. Esse projeto foi

    finalmente bem sucedido no ano de 1626, com a coroao de Ngola Ari, rei do Ndongo,

    que durante toda a sua vida foi leal aos interesses dos portugueses. Ngola Ari forneceu

    apoio militar aos portugueses em uma batalha que isolou Nzinga e a levou s terras de

    Matamba, onde conseguiu junto aos jagas ter sua soberania reconhecida. Dessa forma

    assumiu o posto de rainha de Matamba.

    No ano de 1621, Nzinga foi convertida ao catolicismo pelos portugueses passando

    a ser chamada Ana de Sousa, converso extremamente poltica, que em momento algum

    significou uma real adoo dos princpios cristos. Fato esse comprovado pela negao dos

    34 Muitos autores escreveram sobre Nzinga. Charles Ralph Boxer foi um dos primeiros estudiosos a dedicar ateno aos poderes africanos, principalmente no captulo Angola, a me preta, de seu livro Salvador Correia de S e a luta pelo Brasil e Angola. Outros autores tambm pesquisaram a trajetria de Nzinga, como Roy Glasgow e Luiz Felipe de Alencastro que, em seu j citado O Trato dos Viventes, analisa as referncias rainha em textos de Hegel e do Marqus de Sade.

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    princpios religiosos, de acordo com relatos de missionrios da poca, Nzinga transforma

    o reino de Matamba em um reino de luxria e de perversidades 35. Posteriormente Nzinga

    volta a se converter, sendo que dessa vez sob a tutela dos capuchinhos italianos, gerando

    um profundo descontentamento entre os portugueses, sinalizando mais uma vez a

    utilizao da possibilidade de converso como fator para obter vantagens com os colonos

    estabelecidos nos territrios da frica Centro Ocidental.

    A luta contra as investidas de Nzinga eram pautas recorrentes na correspondncia

    entre os administradores e a Coroa portuguesa. Entre vrios embates uma de suas irms foi

    feita prisioneira pelos portugueses, o que serviu como elemento de barganha para vrias

    tentativas de acordo.

    2.2. As vsperas da ocupao holandesa

    No ano de 1641, os holandeses tomaram Angola do controle da Coroa portuguesa.

    O mrito por esse feito foi creditado recm fundada Companhia das ndias Ocidentais

    (WIC), uma instituio definida por Luiz Felipe de Alencastro como semi-privada que

    atuava no cenrio internacional, conquistando territrios e dominando reas estratgicas

    para a aquisio de escravos, fortalecendo dessa forma a presena poltica e os interesses

    econmicos dos holandeses nos territrios coloniais das duas margens do Atlntico.36

    Ainda no perodo da Unio Ibrica, Espanha e Holanda assinaram um acordo que

    pretendia uma trgua entre esses pases pelo perodo de doze anos. A dita Trgua dos Doze

    anos vigorou entre 1609 e 1621, no coincidentemente ano de criao da WIC. O fim dessa

    trgua reaviva hostilidades hispano-holandesas e altera o acesso dos Estados Gerais s

    mercadorias coloniais, desagradando e atrapalhando as ambies holandesas. Esse fator no

    contexto das disputas europeias foi decisivo para a realidade colonial nesse perodo. A

    partir desse perodo os holandeses passam a investir nos domnios coloniais, investindo

    principalmente nas colnias nordestinas da Amrica portuguesa e nos territrios angolanos.

    Os holandeses, mesmo sem a vivncia portuguesa secular nas colnias, tinham

    claras suas metas de conquistar as duas margens atlnticas para a efetivao de um modelo

    sistmico de explorao agrcola: ocupao territorial e fornecimento de escravos.

    Em 1624, durante o governo de Ferno de Sousa, os holandeses conseguem

    estabelecer um bloqueio naval nas regies de Benguela e Luanda, alm de conquistar por

    um curto perodo regies da Bahia, que foi recuperada no mesmo ano. As tropas do

    35 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op. cit., p. 278. 36 A Companhia das ndias Ocidentais foi fundada no ano de 1621, no contexto de ampliao dos investimentos neerlandeses nas atividades coloniais do Atlntico portugus. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op cit.

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    governador Ferno de Sousa evitaram o desembarque dos holandeses nos territrios

    angolanos, sinalizando para a Coroa a necessidade de fortalecer as defesas nesses limites da

    costa africana. O episdio evidencia as pretenses dos holandeses, e as dificuldades dos

    portugueses para a manuteno de seus domnios.

    No ano de 1635, os holandeses conquistam a Zona da Mata pernambucana, e no

    ano seguinte Maurcio de Nassau nomeado governador da Nova Holanda37. Em 1641,

    tomam os territrios de Angola, enfraquecendo muito a posio portuguesa na regio, que

    ficou praticamente reduzida as terras de Massangano.

    A poltica implementada pelos holandeses em Angola nos leva a uma discusso

    conceitual sobre o modelo de governo indireto utilizado por Luiz Felipe de Alencastro para

    definir a relao entre portugueses e as autoridades locais. O autor identifica que a

    prioridade dos portugueses era o estabelecimento de acordos que visavam cooperao,

    evitando ao mximo guerras, vistas como reveses ao bom andamento dos negcios

    negreiros na regio.Comparando o pragmatismo dessas aes consideramos que esse

    conceito se aplica muito mais aos mtodos de governo utilizados pelos holandeses, do que

    de fato pelos portugueses.

    Analisando fontes do perodo, Beatrix Heintze38 fornece importantes sugestes

    metodolgicas para a leitura e interpretao de discursos seiscentistas. Percebemos que

    muitos sobas de territrios adjacentes aos territrios de Luanda consideravam a presena

    holandesa como uma alternativa em contraponto com a presena portuguesa. Nesse

    mesmo recorte o ento rei do Congo, Garcia II, escreveu para Maurcio de Nassau

    disponibilizando fortalezas e outras facilidades comerciais. Afirmava que estava desiludido

    com os perversos e ambiciosos portugueses, que tinham planejado conquistar o seu reino

    embaixo da capa da amizade 39.

    Apesar das crticas aos portugueses, Dom Garcia deixava claro que permaneceria

    catlico e que no aceitaria missionrios, embaixadores ou colonos em seu reino. A fora

    do catolicismo congols superava as alteraes polticas nos territrios da frica Centro

    Ocidental40. A marca do catolicismo no Congo um importante fator desencadeador de

    embates entre os inacianos portugueses e os missionrios capuchinhos italianos.

    37 Luiz Felipe de Alencastro cita o termo statthalter para o cargo assumido por Maurcio de Nassau no governo dos territrios dominados. Idem. 38 HEINTZE, Beatrix. Op cit. 39 Correspondncia do rei do Congo Garcia II, citada por BIRMINGHAM, David. Op cit., p. 120. 40 Marina de Mello e Souza analisa essa questo com profundidade em seu j citado Reis negros no Brasil escravista.

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    Outro ponto desfavorvel para os lusitanos nesse contexto, mas que no chega a

    ser surpreendente, foi a aliana entre os holandeses e a rainha Nzinga, que via nessa

    conquista a possibilidade de obter vantagens comerciais e principalmente para enfraquecer

    o rei do Ndongo, Ngola Ari, vassalo dos portugueses.

    De acordo com a interpretao de Birmingham, os holandeses se aproximaram

    muito mais do modelo de administrao indireta, firmando acordos de cooperao com as

    autoridades africanas, estabelecendo as bases conceituais do governo indireto. Partindo da

    noo de que para obter escravos no era necessrio a implementao de um domnio dos

    grupos locais, nem mesmo gastos com conquistas militares. Preocupao recorrente entre

    os governadores portugueses que objetivavam o domnio do Ndongo. A articulao valeria

    mais do que a fora na lgica dos holandeses, que poupavam seus esforos para os embates

    com os portugueses.

    No ambiente restaurador posterior a 1640, mesmo com as metas portuguesas para

    reaver a sua soberania em seus domnios ultramarinos, a presena holandesa alm de

    enfraquecer os vnculos econmicos entre metrpole e colnias, representou um obstculo

    ao reconhecimento da legitimidade da Casa de Bragana.

    Vale ressaltar que a anlise desses discursos de africanos que defendiam as

    investidas holandesas deve ser cautelosa, visto que podemos considerar que essa aparente

    preferncia para negociar com os holandeses esteja relacionada ao fato de estarem em uma

    posio privilegiada naquele momento. A cordialidade em relao aos neerlandeses,

    evidenciada pelas crticas aos portugueses, pode ser considerada uma manobra para obter

    sua simpatia.

    Por volta de 1646 o foco de resistncia estava concentrado nos arredores de

    Massangano, o que preocupava os holandeses. A situao dos portugueses em Angola foi

    revertida com a chegada de Salvador Correia de S, que expulsou os holandeses

    inaugurando uma nova fase na administrao de Angola, marcada pela governana de

    homens extremamente vinculados aos seus interesses particulares enraizados

    principalmente na Amrica portuguesa. Uma das primeiras medidas tomadas por Salvador

    Correia de S foi a punio dos sobas que haviam se aliado aos holandeses.

    O historiador Charles Boxer, em sua obra Salvador Correia de S, analisa a trajetria

    que levou o governador a enraizar interesses em variadas regies do Imprio Ultramarino.

    Das atividades familiares tradicionais exercidas no Rio de Janeiro, passando pelos

    investimentos nas minas de prata de Potos, chegando aos interesses escravistas nos

  • Sankofa. Revista de Histria da frica e de Estudos da Dispora Africana Ano IV, N 7, Julho/2011

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    territrios angolanos, Salvador Correia de S um caso tpico da terceirizao dos sistemas

    de defesa da Coroa portuguesa para as mos de particulares.

    Alm de todos os detalhes e da riqueza de fontes trabalhadas, Boxer inova trazendo

    para o debate o papel dos africanos como peas fundamentais para o desencadeamento da

    ocupao e posterior expulso dos holandeses de Angola. Analisa o caso da converso da

    rainha Nzinga, discute a organizao dos sobados e oferece pistas para a compreenso da

    complexa hierarquia dos povos mbundus do Ndongo.

    3 parte: Angola braslica: os governos de Salvador Correia de S, Andr Vidal de

    Negreiros e Joo Fernandes

    3.1. Identidades braslicas nos governos portugueses em Angola

    O perodo posterior a expulso dos holandeses caracterizado como um perodo

    de intensificao das guerras e de aumento nas tenses entre os governadores portugueses

    e as autoridades locais.

    A administrao de Salvador Correia de S marca um perodo de crescimento na

    exportao de escravos. Apesar da assinatura de um Tratado de Paz com o rei Garcia II do

    Congo, foram travadas batalhas com esse reino visando aumentar a influncia da Coroa

    portuguesa em territrios adjacentes, conflitos esses que culminaram na guerra entre a

    Luanda portuguesa e o Congo.

    Todos os investimentos de Salvador Correia de S eram coerentes com seu projeto

    de acumular riquezas particulares, ao mesmo tempo em que defendia os interesses da

    metrpole portuguesa. Ele e a gerao que o sucedeu, definidos por Luiz Felipe de

    Alencastro como governadores braslicos, estiveram envolvidos nas lutas pela expulso e

    pela defesa dos territrios da Amrica portuguesa, o que os levava a crer que eram

    merecedores de privilgios que deveriam ser extrados nas oportunidades geradas pela

    concesso de cargos administrativos em variados territrios do Imprio Ultramarino

    Portugus.

    Essas redes de privilgios, tpicas das sociedades do Antigo Regime, foram

    analisadas por Antnio Manuel Hespanha41. Em seus trabalhos Hespanha relaciona

    aspectos da administrao colonial com as teias de relaes, parentescos e recompensas que

    41 XAVIER, ngela B. & HESPANHA, Antnio M. "A Representao da Sociedade e do Poder". In: MATTOSO, Jos (dir.). Histria de Portugal, volume 4: O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

  • Sankofa. Revista de Histria da frica e de Estudos da Dispora Africana Ano IV, N 7, Julho/2011

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    muitas vezes determinaram a configurao dos quadros burocrticos das possesses

    ultramarinas.

    O sucessor de Salvador Correia de S foi Rodrigo Miranda Henriques, que

    governou Angola de 1652 a 1653. Destacamos como metas de sua administrao o plano

    de reabrir a carreira comercial: Luanda Rio de Janeiro Buenos Aires. Evidenciando a

    importncia de Angola para os negcios comerciais lisboetas e fluminenses na bacia do

    Prata, projeto que foi uma das prioridades de Salvador Correia de S.42

    Rodrigo Henriques chegou Luanda com instrues para incrementar o comrcio e

    cobrar o antigo tributo anual de escravos, que todos os chefes mbundus submetidos

    tinham sido anteriormente obrigados a pagar Coroa Portuguesa. Morreu um ano aps a

    sua chegada, segundo David Birmingham43, realizando poucas tarefas.

    Na sequncia da administrao portuguesa em Angola, assumiu o governo

    Bartolomeu Vasconcelos da Cunha, em um perodo marcado pelos conflitos com a rainha

    Nzinga. Foi contrrio s reivindicaes de Nzinga em relao ao trono do Ndongo, e

    visando facilidades no acesso ao interior do Ndongo, barganhou a rendio de sua irm

    Mukambu (Brbara), prisioneira portuguesa. Exigia em troca da libertao facilidades para

    abrir uma rota comercial em direo Matamba territrio dominado pelos jagas, vassalos

    de Nzinga.

    A origem e a composio do que chamamos de jagas alvo de vrias discusses

    entre os africanistas. Para Beatrix Heintze os termos jagas e imbangalas so sinnimos, j

    para David Birmingham os imbangalas so os componentes majoritrios entre os

    acampamentos jagas. Em nossa pesquisa seguimos a definio de Birmingham em funo

    da anlise sobre o comportamento jaga de agregar em seus exrcitos homens adultos de

    origens variadas.

    Dando sequncia governana braslica, desembarcou em Luanda Lus Mendes de

    Sousa Chichorro, que governou no perodo de 1654 a1658. Uma das principais

    singularidades de sua administrao foi a aliana com os rebeldes jagas. Os jagas eram um

    grupo multi-tnico, de maioria imbangala, formado por homens que viviam de atividades

    relacionadas guerra. Seus hbitos violentos eram sinnimos de ameaas entre os reinos e

    sobados da frica Centro Ocidental.

    Chichorro deu continuidade ao projeto de seu antecessor que pretendia estabelecer

    negociaes com Nzinga. Apesar de ter recebido ordens expressas do rei Afonso VI para

    42 Uma das consequncias desse movimento foi o avano dos representantes da Coroa portuguesa em direo ao litoral sul, que posteriormente resultou na fundao da Colnia de Sacramento. Cf. BOXER, Charles Ralph. Op. cit. 43 BIRMINGHAM, David. Op cit.

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    no declarar nenhuma guerra, com exceo de um motivo forte, originado por alguma

    atividade delituosa, tal como a implicao com comerciantes ou missionrios, seu governo

    no fugiu a tendncia braslica de enxergar na guerra um mtodo seguro para a efetivao

    de seus projetos.

    Entre os feitos de Chichorro citamos as campanhas militares que pretendiam tornar

    os sobas de Quissama vassalos portugueses. A respeito dessa questo, a Cmara Municipal

    de Luanda foi contrria aos feitos do governador, temendo que Luanda ficasse

    desprotegida e vulnervel a um possvel ataque holands. Aps um ano e meio em

    campanha, Chichorro resolveu regressar e concentrar seus esforos nas fronteiras de

    Angola e do Congo. Durante o governo de Sousa Chichorro, as tensas relaes entre o

    Congo e Luanda resultaram em uma guerra intermitente, que persistiu por dez anos, at a

    batalha de Mbwila, em 1665, decretando o fracasso do Tratado de Paz assinado anos antes

    por Salvador Correia de S junto s autoridades congolesas.

    Joo Fernandes Vieira, que governou Angola no perodo de 1658 a 1661, tambm

    encarava a nomeao para o cargo como uma recompensa pelos servios prestados Coroa

    Portuguesa na luta de reconquista de territrios da Amrica Portuguesa contra os

    holandeses. Foi coerente com seus antecessores no que diz respeito ao uso de exrcitos e

    da fora, avesso ao modelo de um governo indireto, e mais prximo do que seria o fomento s

    rivalidades tnicas para aumentar o fornecimento de escravos para o mercado atlntico.

    Joo Fernandes comandou trs campanhas militares durante o seu mandato,

    provavelmente por altura das estaes de seca. Joseph Miller44 defende em um de seus

    artigos a relao estabelecida entre as alteraes nos fatores climticos, prejudiciais

    produo de alimentos nos territrios da frica Centro Ocidental, ao aumento das fomes e

    das guerras.

    A primeira foi um ataque em regies prximas a Luanda, nos rios Bengo e Dande,

    contra um chefe local chamado Ngoleme a Kaita. Nesse ataque os portugueses contaram

    mais uma vez com o apoio de Ngola Ari. Joo Fernandes foi acusado mais tarde de ter

    destrudo o chefado de Ngoleme a Kaita, sdito dos portugueses.

    A segunda campanha militar de Joo Fernandes foi contra os Ndembus (Dembos),

    buscando evitar a fuga de escravos para terras do sul do Congo, de onde no podiam ser

    recuperados. A terceira campanha militar de Joo Fernandes foi contra os ovibumdus, em

    territrios ao sul, nas regies do Libolo e Hako, enviou exrcitos para proteger as rotas

    44 MILLER, Joseph. The significance of drought, disease and famine in the agriculturally marginal zones of West-Central Africa. In: The Journal of African History, vol. 3, n1, p. 17-61. Cambridge University Press, 1982.

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    comerciais na regio garantindo o comrcio de escravos e de marfim, j que a regio estava

    sujeita a invases dos imbangalas e de chefes libolos.

    De acordo com Luiz Felipe de Alencastro, Joo Fernandes encetou preparativos

    militares para invadir o Congo logo que desembarcou em Luanda: o Congo era perigoso

    no por suas capacidades ofensivas, mas porque constitua um plo de atrao

    antiescravista, acoitando escravos dos angolistas 45.

    O governo de Andr Vidal de Negreiros (1661-1666) defendia a ao militar direta

    e o envio de seus homens de confiana ao interior para obter escravos pela fora. No

    perodo de seu governo a guerra entre a Luanda portuguesa e o Congo, em 1665, assumiu

    seus contornos definitivos. Os portugueses alegavam que o rei do Congo, Dom Antnio I,

    se recusava a entregar as minas de ouro que haviam sido prometidas de acordo com o

    Tratado de Paz assinado por Salvador Correia de S e do rei do Congo, Garcia II.

    Negreiros levou as ofensivas de Chichorro e de Joo Fernandes s ltimas consequncias.

    Aps a morte de Ngola Ari I, rei do Ndongo e fiel vassalo dos portugueses,

    sucedeu no trono do Ndongo, Ngola Ari II. O novo rei colocou muitos obstculos aos

    interesses da Coroa portuguesa. Essa resistncia presena portuguesa no Ndongo leva os

    colonizadores a organizarem uma reconquista, lutando contra Ngola Ari II, que foi

    derrotado, dando fim a realeza independente dos mbundus ocidentais.

    Concluses:

    Aps a Restaurao, os territrios africanos dominados pelos portugueses foram

    palco de vrios conflitos envolvendo interesses e motivaes diversas.

    A ameaa holandesa, e a sua efetiva ocupao, exigiram que os portugueses

    organizassem estratgias para minimizar os efeitos gerados pela aliana de alguns reis e de

    vrios sobas que, nesse contexto, preferiram negociar com os agentes da WIC. A

    resistncia nas terras de Massangano foi fundamental para a garantia das alianas com

    Ngola Ari, rei do Ndongo e fiel vassalo portugus, e para o contra ataque liderado por

    Salvador Correia de S, que deu incio um perodo de governos, que em suas aes

    destoaram, e muito, dos discursos da Coroa que pregavam a cooperao e o

    estabelecimento de alianas pacficas com as lideranas africanas.

    A ao de ordens missionrias religiosas fomentou outro foco de conflitos nos

    territrios do Congo e de Angola. Inacianos e capuchinhos refletiram na colonizao do

    ultramar portugus divergncias entre os direitos sobre a evangelizao e sobre os mtodos

    45 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op cit, p. 285.

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    para a conduo dessa catequese-cativeiro, representando tambm um feixe dos conflitos

    entre o Vaticano e a Coroa portuguesa. O missionarismo como um dos braos da

    colonizao estabeleceu sua marca na converso, e principalmente na legitimao da prtica

    escravista dos lusitanos, dos luso-africanos e mesmo entre os nativos convertidos, que viam

    no resgate das almas um bom negcio avalizado pela conscincia dos feitos cristos.

    Em sntese, a pluralidade de grupos distintos fez com que o antigo reino do

    Ndongo fosse cenrio de embates polticos, disputas por promissores negcios, ao mesmo

    tempo em que se tornava um lugar de intensas trocas culturais.

    O recorte cronolgico adotado engloba um perodo onde ameaas internas e

    externas foram simultneas, e onde a prpria hierarquia dos mbundus se refinava para

    atender s demandas das negociaes, como, por exemplo, a especializao das funes de

    chefe de comrcio, embaixadores e de vrios componentes do squito do Ngola.

    A crescente abertura do mercado atlntico, e a busca pela afirmao da soberania

    portuguesa nos territrios mbundus alterou de forma significativa a realidade dos grupos

    africanos e exigiu das autoridades portuguesas uma versatilidade em seu sistema defensivo

    entre vrias frentes distintas.

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    ARTIGO RECEBIDO EM: 20/05/2011

    ACEITO PARA PUBLICAO EM: 24/06/2011